ORTOGRAFIA BRASILEIRA: UM NOVO CAPÍTULO1
Mariana Rodrigues dos Santos (UERJ)
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“A linguagem escrita tem que ser trabalhada,
porque os seus elementos ficam onerados com encargos de clareza, expressão e atração que na fala
se distribuem de outra maneira” (Câmara Jr.)
INTRODUÇÃO
A escrita foi um artifício inventado pelos seres humanos para
poder registrar por mais tempo as coisas que eram ditas. A ortografia
oficial, em todos os países, é uma decisão política, é uma lei, um decreto assinado pelos que tomam as decisões em nível nacional. Por
isso, ela pode ser modificada ao longo do tempo, segundo critérios
racionais e mais ou menos científicos, ou segundo critérios sentimentais, políticos e religiosos.
Seu aprendizado exige exercício, memorização, treinamento.
É uma competência que precisa ser aprendida, ao contrário de outras,
que são adquiridas naturalmente.
Escrever de acordo com a ortografia oficial é uma habilidade
do mesmo tipo de tocar piano ou operar um computador, ninguém
nasce sabendo, é preciso aprender, treinar, exercitar-se. Vale ressaltar que boa parte dos chamados “erros de português” são, na verdade, desvios da ortografia oficial.
Buscamos neste trabalho apresentar as regras vigentes da ortografia nacional e compará-las com a proposta do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que poderá entrar em vigor a partir
de 2009 (poderá, porque não sabemos até que ponto nossos patrícios
concordarão definitivamente com o texto apresentado).
Trabalho elaborado sob orientação do Professor José Pereira, do Departamento de Letras,
pela aluna Mariana Rodrigues dos Santos, do curso de Pós-graduação em Língua Portuguesa,
referente à disciplina de História da Língua Portuguesa.
1
Entretanto, primeiramente faremos uma análise sobre a importância da escrita em nossas vidas e apresentaremos um breve histórico da ortografia no Brasil.
Por fim, demonstraremos pontos positivos e negativos a respeito do novo acordo ortográfico, fazendo uma abordagem mais crítica sobre o assunto proposto.
A IMPORTÂNCIA DA ESCRITA
Nos dias atuais, a escrita está numa posição embaraçosa. Há
muito tempo ela não tem mais a simples função de documentar. É
um dos mais poderosos instrumentos de comunicação.
Nas sociedades toda a vida organizada é regida por documentos escritos. Ela nos revela conhecimentos, consciências e vivências.
O ato de escrever é fazer uma revelação do processo cultural
e propor sua atualização; é fazer com que o indivíduo revele sua própria sensibilidade e visão; e dar a si a oportunidade de se identificar,
de recordar, de criar; é um instrumento de trabalho criador e prático;
é meio dinamizador de todo um processo cultural.
Através da palavra escrita, podemos exprimir os nossos pensamentos, os nossos sentimentos, as nossas emoções e os fatos.
Não podemos esquecer que a escrita não é mais do que uma
representação gráfica secundária da fala, a qual goza de certos privilégios. Uma mensagem escrita é relativamente permanente, enquanto
a fala é totalmente efêmera. O texto escrito pode ser conservado e
posteriormente consultado. Fatos e idéias transpostos para a escrita
podem ser preservados sem tornar-se uma sobrecarga para a memória. Além disso, as mensagens escritas podem ser lidas por qualquer
quantidade de pessoas em diferentes épocas e lugares.
A modalidade “escrita” pode ser um fator importante para que
se estabeleça e se mantenha um dialeto como padrão. Quando graficamente representada, uma língua ou dialeto tem mais possibilidades
de servir de modelo por ter maior estabilidade.
Ela é um componente indispensável para as sociedades atuais,
e provavelmente continuaremos a depender cada vez mais dela.
Quanto mais complexa se torna a civilização e quanto maior a quantidade de informações a serem conservadas e transmitidas, ainda
mais indispensável do que já é se tornará a palavra escrita.
Um exemplo comum de nosso respeito para com a palavra escrita é a preocupação de não cometer erros de grafia. Seguir as regras
oficiais da ortografia nacional é considerado como um aspecto importante do uso correto da língua.
HISTÓRICO DA ORTOGRAFIA PORTUGUESA
Com o objetivo de tornar mais clara a proposta de análise dos
acordos ortográficos de 1990 e o atual, decidimos por fazer um breve
histórico da Ortografia Portuguesa e chegamos as seguintes considerações:
→ Século XVI – em 1536, Fernão de Oliveira escreve a Gramática
da Linguagem Portuguesa; em 1540, João de Barros escreve a
Gramática da Língua Portuguesa. A partir dessas duas publicações
podemos afirmar que os estudos ortográficos da língua portuguesa
começam a receber um maior prestígio.
→ Século XVII – nesse período os estudos ortográficos posicionamse moderadamente entre as considerações da Ortografia Etimológica
de Duarte Nunes de Leão e a Ortografia Fonética de João de Barros.
→ Século XVIII – em 1739, João de Morais Madureira Feijó escreve
a Orthographia, ou Arte de Escrever e Pronunciar com Acerto a
Língua Portugueza, a primeira obra de importância a tratar da ortografia naquele século; em 1746, Luís Antônio Verney escreve o Verdadeiro Método de Estudar, no qual faz críticas à ortografia etimológica vigente em Portugal.
→ Século XIX – as contidas na Gramática de Port Royal ou Gramática Geral e Razoada de Antoine Arnauld e Claude Lancelot influenciam os estudiosos deste período; um bom exemplo é a Gramática
Philosophica da Língua Portuguesa de Jeronymo Soares Barbosa,
lançada em 1822; em 1860, José Feliciano de Castilho escreve a Orthographia Portugueza, defendendo as vantagens do sistema etimológico na ortografia.
→ Século XX – neste momento começa a se pensar numa regularização e fixação da ortografia; em 1904, Gonçalves Viana lança a Ortografia Nacional, onde elabora um sistema ortográfico baseado em
três princípios essenciais: simplificação, regularidade e continuidade;
em 1928, Antenor Nascentes escreve O Idioma Nacional, no qual
segue, rejeita e acrescenta algumas disposições contidas na reforma
ortográfica de 1911; em 1931, o governo brasileiro oficializa o Acordo Ortográfico firmado entre a Academia das Ciências de Lisboa
e a Academia Brasileira de Letras; entretanto, este acordo foi revogado pela Constituição Brasileira de 1934; em 1943, estudiosos dos
dois países realizaram o Acordo Ortográfico de 1943 que apresentava pequenas alterações com relação ao anterior; no entanto, alguns
problemas foram detectados quanto à interpretação de algumas regras, resultando na formulação do Acordo Ortográfico LusoBrasileiro em 1945. As divergências continuaram fazendo existir
duas normas ortográficas: o Brasil baseava-se no acordo de 1943 e
Portugal, no de 1945. Começaram então os esforços para resolver essa situação, tendo como primeiro resultado a Proposta para Unificação da Língua Portuguesa de 1967. Em 1975, surge o primeiro projeto para um novo acordo ortográfico, o qual procura conciliar os aspectos das duas normas, tornando facultativas as grafias de todos os
pontos que provocam discórdia. No ano de 1990 aparece a proposta
do novo acordo ortográfico que trataremos mais profundamente no
próximo capítulo.
Numa segunda abordagem, segundo Carvalho e Nascimento
(2006: 58), podemos dividir a história da ortografia portuguesa em
três períodos distintos: o fonético, o pseudo-etimológico e o simplificado. Veremos a seguir as definições apresentadas acerca de cada
período:
1. PERÍODO FONÉTICO
Começa com os primeiros documentos redigidos em português e
termina no século XVI. Neste período as palavras eram escritas tal qual
eram pronunciadas: honrra (honra), ezame (exame). Também a maneira
de escrever variava muito: bem, ben bẽ, homem, omem, ome.
2. PERÍODO PSEUDO-ETIMOLÓGICO
Inicia-se no século XVI e vai até o ano de 1904, quando aparece a
Ortografia Nacional, de Gonçalves Viana. Dentro desse período as palavras eram escritas de acordo com a grafia de origem, reproduzindo todas
as letras do étimo, embora não fossem pronunciadas: esculptura, asthma,
character.
3. PERÍODO SIMPLIFICADO
Principia com a publicação da Ortografia Nacional e chega até nossos dias. A reforma de Gonçalves Viana foi baseada na fonética histórica, daí o sistema simplificado ser o verdadeiramente etimológico.
ANÁLISE DA PROPOSTA
DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO
O português já passou por várias reformas ortográficas, e
mais uma se anuncia para 2009. A reforma ocorrerá porque três países (Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe) ratificaram o acordo
ortográfico firmado em 1990.
O argumento em favor da unificação é o de que o português é
a terceira língua européia mais falada no mundo, depois do inglês e
do espanhol, e a existência de duas ortografias atrapalha sua difusão
internacional.
Difícil acreditar nessa argumentação visto que a difusão de
um idioma depende do prestígio e do poder político, econômico e
cultural dos países que o falam, e não da grafia. Além disso, não podemos esquecer que o português não tem só duas pronúncias e duas
ortografias; tem “numerosos” léxicos, pronúncias, sintaxes etc.
Façamos uma comparação: “Sentei-me cá com ela e ficamos
a conversar” (Portugal) e “Sentei-me (linguagem formal, a forma
mais utilizada, porém, seria “Me sentei”) aqui com ela e ficamos
conversando” (Brasil); “golo”(Portugal) e “gol” (Brasil), “bicha”
(Portugal) e “fila” (Brasil). Aliás, até nomes geográficos são distintos: “Irão” (Portugal) e “Irã” (Brasil), “Moscovo” (Portugal) e “Moscou” (Brasil).
Gostaríamos de ressaltar que, embora já tenha sido aprovado,
o referido acordo ainda não entrou em vigor nos países lusófonos por
causar muitas divergências e pela dificuldade em se implementar
uma mesma proposta em vários países diferentes (Angola, Brasil,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e
Príncipe) –, não podemos esquecer que para que isso aconteça serão
necessárias promulgações de leis ou decretos-lei.
Não buscaremos aqui uma análise muito profunda, e sim, salientar os pontos mais polêmicos, segundo os estudiosos da língua.
No acordo atual, o alfabeto é composto por vinte e três letras,
sendo que o K, W e Y podendo ser usados apenas em casos especiais.
Já na nova proposta, ele passará a ser formado por vinte e seis
letras, ou seja, o K, W e Y passam a compor o alfabeto (Garcia,
1996).
→ Composição do alfabeto (vinte e seis letras) e dos nomes próprios estrangeiros e seus derivados.
A
B
C
D
E
F
G
H
I
(á)
(bê)
(cê)
(dê)
(é)
(efe)
(gê)
(agá)
(í)
J
K
L
M
N
O
P
Q
R
(jota)
(capa ou cá)
(ele)
(eme)
(ene)
(ó) X
(pê)
(quê)
(erre)
S
T
U
V
W
(xis)
Y
Z
(esse)
(tê)
(u)
(vê)
(dáblio)
(ípsilon)
(zê)
Obs.: Além destas letras, usam-se o ç (cê cedilhado) e os seguintes dígrafos: rr
(erre duplo), ss (esse duplo), ch (cê-agá), lh (ele-agá), nh (eneagá), gu (gê-u), qu (quê-u).
Com a inclusão das letras K, W, Y corremos o risco de incentivar ainda mais seu uso, segundo análise feita pelo professor Afrânio Garcia (1996):
A inclusão das letras k, w e y acabará por incentivar seu uso, o que
não é, de modo algum, desejável; certos derivados, como shakespeariano, darwnismo, mülleriano etc., são, de certo modo, inevitáveis, mas o
aportuguesamento de palavras como garrettiano e jeffersônia, para garretiano e jefersônia, ajudaria a uniformizar ainda mais a escrita portuguesa e, parece-nos, causaria problemas mínimos para sua adoção.
Não podemos negar que o novo sistema ortográfico tem pontos positivos. Em Portugal desaparecem o C e o P mudos, como em
“acção” e “baptismo” (mas mantém-se em “facto”, por ser pronunciado).
Também os encontros vocálicos EE e OO de “vêem” e “enjôo” perderão o acento circunflexo.
Entretanto, há muitos pontos negativos, como a supressão total do trema. Sem ele, como identificar “eqüino” (cavalo) de “equino” (ouriço-do-mar)? E como saber pronunciar palavras pouco usuais como “qüididade”?
A nova norma simplifica o uso do hífen, o que é bom. Só que,
ao mesmo tempo em que se elimina o hífen de “anti-semita” (antissemita), ele é introduzido em “microondas” (micro-ondas).
Outro problema da reforma é que deixará de ser usado o acento diferencial como em “pára” (verbo) e “para” (preposição); “pêlo”
(substantivo) e “pelo” (preposição + artigo).
Com a intenção de facilitar a visualização das principais mudanças indicadas no Novo Acordo Ortográfico, resolvemos apresentar um resumo mais simplificado, visando uma abordagem mais clara e objetiva das alterações propostas.
Trema→ cai na maioria das palavras, como “tranqüilo”,
mas permanece em termos derivados de outras línguas que
apresentem o sinal.
Hífen→ cai em palavras que designam um ser ou objeto
único, como anti-semita (que vira “antissemita).
Ditongos EI e OI→ deixam de ser acentuados nas paroxítonas, como “idéia” (que vira ideia).
Encontro vocálicos OO e EE→ deixam de ser acentuados em terminações como “enjôo”.
Alfabeto→ ganha mais três letras: K, W e Y.
Consoantes mudas→ deixam de existir em Portugal e outros países, como “acção”.
Acento diferencial→ desaparece, como em “pára” (verbo) e “para” (preposição).
Dupla grafia→ admitida em diferenças fonológicas inconciliáveis, como “fato” e “facto”, “cômodo” e “cômodo”.
CONCLUSÃO
A ortografia é um assunto que sempre causa frisson. Provavelmente porque muitos vêem na grafia das palavras um patrimônio
nacional, comparável ao hino e à bandeira.
Podemos observar que a proposta do Novo Acordo Ortográfico apresenta pontos positivos e negativos.
Entretanto, não devemos esquecer que ela possui uma amplitude ainda maior.
Com a oficialização da nova grafia, inicia-se a transição na
qual o Ministério da Educação deverá reciclar os professores e “realfabetizar” os estudantes. As editoras precisarão reimprimir livros, dicionários e outros materiais. Tudo a custo social e financeiro elevadíssimo.
Assim que as regras forem incorporadas, começará a transição em que Ministérios da Educação e Cultura, Academias de Letras,
Associações Literárias e editores serão instruídos sobre como proceder para adequar-se. Sem contar o inevitável “período de pacificação”, como diz Evanildo Bechara, até que as resistências se apazigúem.
Embora a realização de uma reforma seja custosa, é preciso
ter em mente que qualquer reforma, mínima que seja, implica tais
custos. Por isso deveríamos aproveitar a oportunidade para promover
uma, mais completa e definitiva, eliminando as incoerências e instituindo um sistema simples e prático. Ainda mais se pensarmos que a
maioria dos falantes do português no mundo tem baixa escolaridade,
e a maior parte dos países lusófonos é pobre e presta serviços educacionais fracos.
Em vez de uma reforma radical e definitiva, como fizeram
outras línguas, as doses homeopáticas no português obrigam a que a
cada 50 anos seja feita uma nova reforma. Por sinal, avanços já previstos na proposta de 1907 ainda não foram postos em prática, como
a solução das grafias duplas x/ch/, g/j etc.
Não podemos esquecer que haverá um período de transição
em que conviverão a atual e a futura ortografia, o que poderá ocorrer
por, pelo menos, dois anos de adaptação e convivência.
Lembramos ainda que vários setores em Portugal se insurgem
contra o “abrasileiramento” do idioma, pois consideram que a reforma é uma espécie de afronta a mãe-pátria.
Nem todos estão convencidos da necessidade da reforma. Há
dificuldades políticas em países africanos paupérrimos; para eles, um
acordo ortográfico está longe de ser um assunto importante.
Os falantes de português no mundo são aproximadamente uns
235 milhões: perto de 190 milhões no Brasil; 10,5 milhões em Portugal; os demais, nos países africanos, muitos deles usuários de linguagem tribal, e em agrupamentos na Ásia e na América do Norte.
Portanto, devemos ser cautelosos ao falar de “uniformização
da língua” (uniformizar a forma escrita das palavras da língua portuguesa em todos os países onde ela é idioma oficial) como se propõe
na reforma ortográfica vista e analisada neste trabalho. É impossível
uniformizar um língua porque toda língua é, por natureza, heterogênea, múltipla e variável. A ortografia, porém, como é uma convenção
artificialmente estabelecida, está sujeita à ação direta dos que têm
poder de legislar sobre ela.
Com a nova reforma, estima-se que 1,6% do vocabulário lusitano e de 0,45% do brasileiro sofrerão mudanças, ou modificações,
gráficas. Apesar disso, serão conservadas as pronúncias típicas de
cada país. Entendemos então, que, na prática, a unificação proposta
pouco modificará do idioma português.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASTOS, Dau e SOUZA, Mariana e NASCIMENTO, Solange. Monografia ao alcance de todos. Rio de janeiro: Novas Direções, 2002.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa: cursos de
1ºe 2º graus. 23ª ed. São Paulo: Nacional, 1978.
CÂMARA JR, J. M. Dicionário de filologia e gramática: referente à
língua portuguesa. 6ª ed. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1974.
CARVALHO, Dolores Garcia e NASCIMENTO, Manoel. Gramática histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro, 2006.
GARCIA, Afrânio. História da ortografia do português do Brasil.
Rio de Janeiro: 1996.
LANGACKER, Ronald W. A linguagem e sua estrutura: alguns
conceitos lingüísticos fundamentais. Trad. Gilda Maria Corrêa de
Azevedo. Petrópolis: Vozes, 1972.
www.revistalingua.com.br
www.aldobizzocchi.com.br
http://www.academia.org.br/ortogra.htm
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