O Cotidiano Heloisa Villela, 1ºA Imagine-­‐se vivendo na favela Santa Marta, localizada em Botafogo, um rico bairro do Rio de Janeiro. Você mora lá no alto do morro, onde todos os dias você teme por sua casa, da qual você pode ser despejado a qualquer momento, pois se localiza em uma área de risco, diferente da enorme casa do outro lado do morro. De qualquer forma, o que importa é que um bondinho que sobe o morro pode te levar até bem perto de onde você mora. Logo na parte mais baixa da favela, há um carro da Unidade de Polícia Pacificadora, as UPPs, como são popularmente conhecidas, que foi instalada primeiramente na favela Santa Marta, em novembro de 2008. A viatura, que mais parece uma versão para a cidade de um tanque de guerra, está com as portas abertas e duas pessoas uniformizadas e armadas estão de pé do lado de fora. Não eretas como soldados e tampouco encolhidas como camundongos, mas relaxadas e conversando como se estivessem em casa e não invadindo a moradia e a vida dos que vivem na Santa Marta. Eles olham para você com desrespeito, olhando de cima para baixo e lhe causando a sensação de ser subitamente reduzido em tamanho e importância. Você tenta controlar o nervosismo e engole em seco antes de acelerar o passo. Eles sentem o cheiro do medo. Mas tudo bem, isso é melhor que o tráfico de drogas e os tiroteios diários. Outro benefício da polícia é a possibilidade de turismo nas favelas e não há nada que o distraia mais durante o dia do que ser observado por gringos e responder que sim a todos os comentários em inglês do guia, que por algum motivo costumam fazer os turistas rirem histericamente. Você sobe o longo caminho até o bondinho tentando manter a respiração sob controle, porque tem asma. Mas não tem problema, porque quando passa deste trecho tem algumas casas multicromáticas que sempre animam seus dias quando você é humilhado silenciosamente em sua própria comunidade. A espera não é muito longa, mas o transporte está muito cheio. É melhor que subir a pé, naturalmente, o que acontece sempre que o bonde quebra, o que não é raro. Contudo, isso não tem importância, a Copa e as Olimpíadas com certeza vão te distrair das crises de asma depois do esforço da subida. Isso supondo que a sua casa ainda estará no mesmo lugar, é claro. Você se lembra, então, do chá de bebê ao qual vai comparecer hoje. Você troca de roupa no banheiro, porque a cortina está quebrada e os turistas passam na frente da sua janela o tempo todo por causa do turismo na favela, em especial a Santa Marta, que pelo jeito é uma das mais procuradas do Rio. Deve ser por isso que tantas pessoas passam pelas ruas falando alguma língua estrangeira e tirando fotos das crianças. Depois você desce o morro a pé, porque o bonde vai demorar muito tempo para voltar ao topo. Ao pé do morro, já no começo da noite, você tem que passar por uma festa, à qual você até pensou em ir, mas não pôde, porque era muito cara. Você se espreme pelo meio dos jovens de classe média, que todas as noites frequentam o galpão da escola de samba do Santa Marta. Eles te olham feio, pois você está invadindo o espaço deles enquanto vai para a sua festinha. O som alto da música preencherá o ar da noite até a manhã do dia seguinte, impedindo os moradores da parte mais baixa do morro de dormirem e descansarem para outro dia de trabalho. Mas claro que é melhor que os antigos bailes funk, frequentados pelos moradores da própria favela. Afinal, ouvir funk a noite inteira no volume máximo é um desrespeito com os outros moradores. E, de qualquer forma, o progresso é necessário, os jovens devem ocupar a favela e torná-­‐la sua. Afinal de contas, onde já se viu pobre ter direito a diversão? Depois de lutar para sair da confusão, você finalmente chega ao chá de bebê ao qual foi convidado. Abrem a porta para você e você entra, sentindo de longe os olhares superiores dos policiais da UPP. Provavelmente eles ficarão observando a festa, uma vez que uma mulher grávida junto com sua família e amigos estarão tramando algum ato terrorista, ou talvez planejando trazer os traficantes de volta ao morro ainda naquela noite, assassinando brutalmente todos os jovens no galpão. Sendo assim, a viatura passa na frente da casa em curtos intervalos de tempo até as dez horas da noite, quando o toque de recolher determina que os moradores não podem mais fazer barulho. Afinal, nada é mais barulhento e incômodo que um chá de bebê em uma noite tranquila na qual o único ruído que se ouve é a música estrondosa da balada poucos metros acima. Este é o cotidiano na Favela Santa Marta, em Botafogo, no Rio de Janeiro, de acordo com os depoimentos de Sheila, a guia que nos mostrou a realidade das UPPs, e dos outros moradores entrevistados. Mas tudo bem, porque o que importa é que a Copa do Mundo e as Olimpíadas estão chegando e tudo deve estar pronto até o ano que vem. O que importa é que a pobreza está vestida e maquiada com as cores da bandeira do Brasil. O que importa é o turismo nas favelas, são as festas que sobem o morro e as Unidades de Polícia Pacificadora, que têm todo o direito de arrancar dos moradores até a sua última gota de dignidade, expulsando-­‐os ainda mais para a periferia para que possa ocorrer a espetacularização do centro para abrigar os megaeventos, que exigem a segregação espacial. Afinal de contas, estes grandes acontecimentos cuja data se aproxima valem muito mais que os 15% de pobres coitados que mal conseguem dinheiro para comer. Pão e circo. É isso o que realmente importa. Ou talvez apenas o circo mesmo, pois é mais econômico e possibilita a propaganda internacional do país do futebol. 
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O Cotidiano - Heloisa Villela, 1ºA