Contagem
Cristina Ricaldoni
Passados 40
anos, principais
lideranças da greve
dos metalúrgicos
de Contagem (MG),
de abril de 1968,
relembram aquele
período
a história contada
pelos protagonistas
O movimento operário de Contagem (MG) ressurgiu apesar
do cenário cinzento da ditadura militar e fez a primeira greve com
ocupação de fábrica Andréa Castello Branco
N
ão é preciso refletir muito
para encontrar diversos
significados para o ano
de 1968. Repressão, violência, resistência, censura, restrição, são os mais recorrentes de uma
longa lista que se forma na parte
que cabe à memória política brasi-
leira. E não por acaso. Foi em 1968
que a ditadura, instaurada em 1964
com o golpe militar, aprofundou a
repressão e deu início aos “anos de
chumbo”, o período mais duro do
regime das fardas.
O cenário era realmente pesado e
cinzento: violenta repressão militar
e policial ao movimento estudantil,
censura à imprensa, restrição à ação
parlamentar e institucionalização da
política do terror que cassou direitos civis, prendeu, torturou e exilou
milhares de brasileiros que ousaram
ter um pensamento dissonante. Foi
exatamente nesse ambiente inóspito
15
Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008
dos metalúrgicos, ocupavam espaço
nas fábricas, igrejas e associações,
fazendo um trabalho político a contagotas, de forma quase imperceptível,
mas intensa.
Imaculada Conceição de Oliveira,
operária da Metalúrgica Santo Antônio, estava na ampla frente formada
contra o regime. Ela começou sua
militância aos 16 anos como ativista
sindical, se tornou membro do Partido Comunista (PC) e, mais tarde, viria
a ser secretária-geral do sindicato dos
metalúrgicos e uma das principais
lideranças da greve de 1968. “A gente
trabalhava de dia e à noite ia para o
cinema escrever os jornais. Às quatro,
cinco da manhã a gente distribuía o
jornal do partido e fazia pichação de
muro. Depois a gente fazia uma distribuição mais legal, na porta da fábrica,
e já entrava para trabalhar”, relembra
a rotina dos anos anteriores à greve.
De classe social e com experiência
política bem diferentes, Delsy Gonçalves da Paula,
mais conhecida
como Sisse, era
i nteg ra nte da
Ação Popular e,
em 1966, por opção pessoal, foi
dar aulas de Português em Contagem. Mas a rotina
era mais ou menos a mesma da
jovem operária
comunista. “Esse
era um trabalho
que todas as orga­
Acervo Marcelo Pinheiro
que ressurgiu o movimento operário,
disposto a enfrentar o regime militar
e o poder patronal. Infelizmente, a
história dos trabalhadores durante a
ditadura é composta de fragmentos
esparsos e estudos acadêmicos que,
sem a devida profundidade, sugerem
uma interpretação distante dos fatos.
A começar pela primeira greve
com ocupação de fábrica do período
da ditadura militar, relatada como
fato espontâneo e de caráter meramente econômico. Passados quarenta
anos, o depoimento das principais
lideranças da greve, realizada em
abril de 1968 pelos metalúrgicos em
Contagem, Minas Gerais, contradiz
essa versão e mostra que havia uma
organicidade no movimento operário
e a intenção real de romper com a
política econômica recessiva imposta
pelos militares.
Após o golpe militar, cada uma
das forças progressistas e de esquerda
postas na clandestinidade – agora subdivididas
em “correntes”
– produzia uma
enxurrada de informação distribuída diariamente nas portas das
fábricas e de casa
em casa na Cidade Industrial,
em Contagem.
As correntes e a
oposição sindical, organizada
após a intervenção no sindicato
nizações faziam. A gente trabalhava para ganhar dinheiro e à noite
panfletava a Cidade Industrial toda.
Íamos de casa em casa colocando o
material debaixo da porta. E durante
o dia fazíamos reunião com os trabalhadores para poder discutir a sua
realidade”, conta Sisse.
Suas turmas eram compostas basicamente de operários de empresas
como a RCA Vitor, Belgo, Mannesman
e as aulas extrapolavam a disciplina.
“Eu era professora de Português, mas
dava também aula de política, através
de textos de jornais e letras de música
que escolhia de forma estratégica.
Ali a gente trabalhava a consciência
política”, relata.
O contexto para construir um movimento operário vigoroso também
era favorável, apesar da repressão
individual e coletiva. Além da pressão
econômica, gerada por uma inflação
elevada e nenhuma correção salarial,
as condições de trabalho e a perda
de direitos eram combustíveis para o
movimento.
“Lutávamos pela construção das
Comissões Internas de Prevenção de
Acidentes (Cipas) e contra o Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS), porque nós tínhamos a estabilidade para o trabalhador com
mais de dez anos na empresa, o que
era muito comum naquele tempo.
Não era essa rotatividade como tem
hoje. Os patrões falavam que o FGTS
era uma opção espontânea, mas na
verdade não era. Ou você optava ou
perdia o emprego”, conta Imaculada
Conceição.
Além da pressão econômica – inflação elevada e nenhuma
correção salarial – as condições de trabalho e a perda de
direitos eram combustíveis para o movimento
Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008
16
se tornou um militante importante
e referência para os trabalhadores.
“Barriga vazia é tambor de revolução
e o que arrocha mais é a barriga dos
filhos”, ensina.
da fábrica ocupada pelos trabalhadores. Mas isso não enfraqueceu o
movimento, que ganhou a adesão de
duas empresas importantes, a SBE e
a Mannesmann. Nesse momento já
eram 6 mil trabalhadores em greve.
Abril vermelho
A falta de perspectivas de um
Era 16 de abril de 1968 quando acordo, a firmeza dos operários e,
a primeira greve com ocupação de principalmente, o crescimento da
fábrica eclodiu na Cidade Industrial, greve fizeram com que o governo
e se transformou em marco histórico federal se movimentasse: o ministropara o movimento operário pela re- coronel Jarbas Passarinho conclamou
sistência à polítios trabalhadores
ca econômica do
a retomarem as
regime militar. O
atividades sob a
trabalho subjetia rg umentação
vo das organizad e q u e n ão s e
ções clandestinas
tratava “de um
e da oposição sinmovimento jusdical realizado
tificado, legal ou
nos quatro anos
tolerável, mas de
anteriores se mauma pura e simterializou na luta
ples agitação” e
objetiva contra o
ameaçou com a
arrocho salarial.
intervenção do
A greve comesi nd icato dos
çou com os 1.200
metalúrgicos e
trabalhadores da
bancários, que
Belgo-Mi nei ra Imaculada Conceição conta que o grupo foi
também acolheu
tendo como rei- taxado de subversivo por reivindicar a criação os grevistas.
vindicações prin- de Cipa
C ont udo, o
cipais o reajuste de 25% nos salários e pronunciamento teve efeito conmelhoria nas condições de trabalho. trário ao esperado e a paralisação
Uma comissão foi criada para nego- cresceu atingindo outras empresas.
ciar com a diretoria da empresa, mas O ministro decidiu, então, conversar
a contraproposta feita pelos patrões, pessoalmente com os operários e,
10% de aumento, foi considerada in- numa cena histórica, se dirigiu para
suficiente e o movimento se espalhou a assembléia geral no sindicato dos
rapidamente pelo parque industrial metalúrgicos.
através das comissões de fábrica,
“Quando chegou ao sindicato,
onde os trabalhadores, já organiza- ele pensou que ia se sair muito bem
dos, entenderam exatamente o que no debate com os trabalhadores.
deveriam fazer.
Quando ele falava que o salário não
No dia seguinte a Delegacia Re- era tão baixo assim e que essa histógional do Trabalho decretou a ilega- ria de arrocho era coisa de agitador,
lidade da greve e surgiram rumores de subversivo, os operários falavam
de uma possível invasão policial o preço do produto anotado na caMarcelo Pinheiro
Tudo isso coincidia com a introdução da automação industrial no
Brasil, o que criava um caldo cultural propício para a insatisfação. “No
começo a própria empresa não tinha
experiência e colocava regras superrigorosas. Como eles não sabiam
como lidar com o equipamento, achavam que se um trabalhador parasse,
todos tinham que parar. Era proibido
até mesmo ir ao banheiro ou beber
água, isso causava uma revolta e foi
criando uma grande tensão entre os
trabalhadores”, relata.
Aproveitando o clima favorável
para a discussão, correntes como
Ação Popular, Política Operária (Polop), Colina, Corrente Revolucionária, assim como o Partido Comunista
e o próprio sindicato dos metalúrgicos, criaram pequenas células nas
fábricas. Praticamente todas possuíam trabalhadores organizados em
comissões.
“As linhas de trabalho político
eram completamente diferentes. Tinham pessoas que achavam que era
preciso fazer só trabalho de base, outros faziam o trabalho de base para se
vincular a uma coisa mais avançada
lá na frente. Mas uma coisa unificava:
aquelas reivindicações eram comuns.
Todo mundo estava contra a lei do
arrocho, todo mundo estava contra o
FGTS e acreditavam na importância
das Cipas. Todo mundo era contra a
ditadura. Aí não tinha divergência”,
conta Imaculada Conceição.
João Anunciato Reis, o Canela, era
metalúrgico da Sociedade Brasileira
de Eletrificação (SBE) e passou a fazer
parte da comissão de fábrica formada
pela oposição sindical. “A idéia era
ter células do sindicato dentro da
empresa, e eu ajudei a fazer isso”. O
que o levou para a militância foi a luta
contra o arrocho salarial, mas Canela
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Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008
Marcelo Pinheiro
Ênio Seabra: “Dizer que o pessoal estava despreparado não é verdade”
derneta e mostravam que o salário
não dava para pagar a comida. Ele
chegou a pedir um quadro negro em
que ele, meio afobado, tentava fazer
as contas. Quanto mais ele tentava
explicar, mais complicado ficava. Aí
ele se desesperou e resolveu ir embora”, conta Imaculada Conceição,
então secretária-geral do sindicato
dos metalúrgicos.
Mas antes de se retirar, Passarinho perdeu a compostura, bem como
a atitude negociadora, e elevou o tom
da conversa: “se as condições se agravarem, passando para a provocação
e o desafio, vai haver luta e perderá
quem tiver menos força, embora não
queiramos fabricar nem nos transformarmos em cadáveres porque há
muita gente interessada em transformar operários em carga de canhão,
iniciando uma contra-revolução que
saberemos enfrentar com as mesmas
armas”.
De forma surpreendente, no dia
seguinte à assembléia, os trabalhadores de mais quatro empresas – Acesita, RCA-Vitor, Demisa e Industam
– cruzaram os braços. O governo decidiu lançar uma proposta de reajuste
para os metalúrgicos: os mesmos
10% de reajuste, acompanhados de
um ultimato: “a recusa significa uma
declaração de guerra”. Era a primeira
vitória dos trabalhadores brasileiros
diante de um arrocho salarial sem
precedentes e, pressionado, o sindicato dos metalúrgicos decide encaminhar a proposta à assembléia com
a indicação de aceitação.
Mas os trabalhadores surpreenderam mais uma vez e rejeitam a proposta, intensificando o movimento
com a entrada de mais dez empresas
na greve, dentre elas a Mafersa, PoligHeckel e Cimec. Já eram 16 mil grevistas dentre os 21 mil trabalhadores
da Cidade Industrial.
Em cadeia nacional de rádio e
TV, Jarbas Passarinho declarou “o
início da guerra” contra os operários
mineiros. A Cidade Industrial foi tomada por 1.500 policiais, o sindicato,
fechado, e aproximadamente vinte
lideranças presas. Foram proibidas
assembléias, aglomerações operárias,
panfletagens e as empresas começaram a convocar os trabalhadores
sob ameaça de demissão por justa
causa.
Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008
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Com a greve esvaziada pela repressão, os metalúrgicos voltaram
ao t rabalho, cont rariados, mas
conquistando um reajuste de 10% e
com a certeza de que haviam aberto
uma fissura no modelo econômico
da ditadura militar. Dias depois,
às vésperas do Primeiro de Maio, o
presidente, general Arthur da Costa e
Silva, anunciou a extensão do reajuste de 10% para todos os trabalhadores
brasileiros.
Para os líderes dos operários de
Contagem, a greve de 1968 não pode
ser vista como uma simples reação
a um ambiente hostil. A dificuldade
econômica e o clima de pressão
já existiam há algum tempo e não
tinham produzido um movimento
vigoroso e com a força da greve dos
metalúrgicos mineiros. O mais correto seria tomá-la como uma ação
coletiva movida por dois aspectos
centrais − a opressão e exploração da
classe trabalhadora e a intensa ação
política dos grupos de esquerda.
“Dizer que a greve foi espontânea
é um erro. Existia toda a problemática
dos trabalhadores e, por outro lado, a
conjuntura política pós-1964. Havia
A retomada do sindicato
O golpe militar que derrubou o
governo constitucional de João Goulart, denominado “república sindicalista”, atacou a base em que se construiu o trabalhismo: os sindicatos.
Entre as primeiras medidas, estava
a intervenção direta nas entidades,
a substituição de lideranças e a perseguição de quadros. Os sindicatos
Salvio Penna
um movimento operário em ascensão
que foi cortado, mas as lideranças
continuavam lá. Ninguém pode
afirmar, nem eu mesma, que o dia e a
hora da greve não tenham sido marcados por alguma corrente. Eu creio
que não, mas todos já trabalhavam
para eclodir o movimento grevista”,
analisa Imaculada Conceição.
Ênio Seabra, presidente eleito do
sindicato dos metalúrgicos destituído
pelo Ministério do Trabalho e uma
das principais lideranças da greve,
também não comunga a tese de uma
greve espontânea. “Dizer que o pessoal estava despreparado não é verdade. Os metalúrgicos tinham uma
tradição de luta. Além disso, muitos
trabalhadores dentro do movimento
metalúrgico já eram militantes do
Partido Comunista há muitos anos.
Esses tinham uma posição política
bem avançada, assim como as pessoas vinculadas à Polop. Eu participava
da AP e existia um intercâmbio grande desses vários grupos. Também havia muito contato entre os operários
das diversas fábricas porque todo
mundo morava por ali. Dava para
difundir a luta”, relata.
Delsy Gonçalves de Paula: “À noite a gente panfletava a Cidade Industrial toda”
assumiram uma nova função, passaram a ser parceiros do Estado.
No Sindicato dos Metalúrgicos de
Contagem e Belo Horizonte a primeira reação veio de uma nova geração
de militantes, que ao lado das poucas
lideranças que restaram após o golpe,
organizaram a oposição sindical e
passaram a trabalhar como um sindicato paralelo durante os primeiros
anos da ditadura.
Somente em meados de 1967 a
oposição sindical venceu a eleição
e assumiu novamente a direção do
sindicato. Dirigida por Ênio Seabra, a
chapa defendia um programa bastante avançado para a época: expulsão
dos pelegos, oposição à política de
arrocho salarial do governo e ao fim
da estabilidade no emprego, dentre
outras medidas impostas pelo regime
militar aos trabalhadores.
Ênio Seabra, que já tinha sofrido a
impugnação do seu nome pelo Minis-
tério do Trabalho durante o processo
eleitoral, reverteu a situação e ganhou a eleição, mas foi impedido de
tomar posse por uma intervenção do
Ministério. Antônio Santana é quem
o substitui, mas as principais referências dos trabalhadores no sindicato
passaram a ser Imaculada Conceição,
Joaquim de Oliveira e Luiz Fernando, que formavam um núcleo mais
atuante, com presença constante nas
portarias das fábricas.
“Eu estava com 20 anos e pra gente tudo aquilo era muito novo porque
nossa experiência era de trabalhador,
era dentro da fábrica. Mas nós queríamos fazer um sindicato atuante,
então logo criamos o jornal O Metalúrgico e intensificamos o trabalho na
porta das fábricas”, conta Imaculada
Conceição, relembrando que o grupo logo foi taxado de subversivo por
reivindicar a criação das Comissões
Internas de Prevenção de Acidentes.
No Sindicato dos Metalúrgicos a primeira reação veio de uma
nova geração de militantes que organizaram a oposição sindical
e passaram a trabalhar como um sindicato paralelo
19
Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008
co muito bem organizado e menos
repressão interna, não foi à toa que
começou por lá. Montamos uma comissão para negociar com a empresa,
que parecia espontânea, mas não era
tanto assim. Muitos já trabalhavam
com a gente, eram lideranças. Chegamos a conclusão de que só eu – que
era do sindicato – seria permanente
na comissão para evitar as demissões”, diz.
Ênio Seabra, que havia sido destituído pela ditadura da presidência
do sindicato, foi eleito em assembléia como presidente do Comando
de Greve Unificado, retomando por
outro caminho a liderança dos metalúrgicos de Contagem. Para ele, a
confiança dos trabalhadores foi um
ref lexo do trabalho desenvolvido
nos anos anteriores. “Muito antes
do regime já existia bastante luta
dentro do sindicato e nas fábricas por
reivindicação salarial, por melhoria
nas condições de trabalho. A gente
começou em 1957 e a ditadura veio
em 1964. A gente não estava espe-
Salvio Penna
Como membro da diretoria do
sindicato, era ela quem facilitava a
ação das correntes nas fábricas. Após
fazer o trabalho “legal”, que era conversar com os operários em nome do
sindicato, Imaculada percorria as empresas levando recados das correntes
para os trabalhadores organizados
nas comissões de fábrica. “O pessoal
não podia chegar sem chamar a atenção. Muitos estavam sendo seguidos
pela Polícia Federal, pelo SNI [Serviço
Nacional de Informações], pelo Dops
[Departamento de Ordem Política e
Social], pela Polícia Civil. E pra mim
ficava mais fácil. Quando era abordada, eu dizia que era da diretoria do
sindicato e que estava ali para conversar com os trabalhadores, assim
eu passava todos os recados”.
Foi esse mesmo grupo que atuou
ativamente na greve iniciada na Belgo-Mineira. “Quando eu cheguei no
sindicato fiquei sabendo que tinha
começado a greve. Fomos para lá e
encontramos a fábrica toda parada.
A Belgo já tinha um trabalho políti-
Em encontro n o sindicato dos metalúrgicos, lideranças avaliam a greve de 1968
Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008
20
rando, mas já sabia que haveria um
embate”, conta.
O fato é que o carisma aliado à
perseguição política transformou
Ênio Seabra num mito para os trabalhadores. Seu discurso e sua história
de militância geravam uma enorme
confiança nos operários, que seguiam a orientação política defendida
pelo líder. Alguns episódios revelam
que a sua presença foi decisiva para
a manutenção da greve por longos
quinze dias.
Durante esse período, o sindicato
dos metalúrgicos se transformou em
base dos trabalhadores e Ênio Seabra voltou pela porta da frente. Mas
a diretoria do sindicato não tinha a
unidade necessária para sustentar
um movimento tão forte e passou a
ter uma posição ambígua a partir do
ultimato no ministro-coronel Jarbas
Passarinho. Ao mesmo tempo que
era forçado por parte dos diretores
e militantes a tomar uma posição de
vanguarda, publicamente assumia
uma posição mais legalista, absorvendo o discurso dos militares sobre
a ilegalidade da greve.
“Naquela época o sindicato era
um pouco complicado porque na
própria diretoria tinha opiniões muito
divergentes e até mesmo pessoas que a
gente supunha que não eram da luta.
A gente fazia as reuniões, mas muita
coisa não era tratada ali. Cada grupo
da diretoria fazia sua articulação de
trabalho depois. Mas acho que tudo
que fizemos teve muito valor. Pelo menos não ficamos na escuridão aguardando as coisas acontecerem Já que
chegou uma ditadura, não tinha outro
caminho, tinha que participar. Só as
conseqüências é que são difíceis... mas
aí é uma opção”, analisa. ✪
Andréa Castello Branco é jornalista
Contagem
Acervo Marcelo Pinheiro
O ministro do
Trabalho, Jarbas
Passarinho,
em Contagem
tentando demover
os trabalhadores
da decisão de
greve
A cidade operária
símbolo
A greve nasceu nas fábricas e empolgou 16 mil dos
21 mil trabalhadores da cidade industrial, um marco político
que ultrapassou os limites do município Nilmário Miranda
À
s 7 horas da manhã de
16 de abril de 1968, os
ope­rá­rios da trefilaria da
Companhia Siderúrgica
Belgo-Mineira pararam as máquinas
e ocuparam a fábrica. Logo, 1.600
metalúrgicos estavam em greve, a
primeira na história da empresa.
Elegeram a comissão de negociação,
organizaram-se em grupos para
manter a disciplina, impedir a bebida e qualquer baderna.
Em 19 de abril, os seiscentos metalúrgicos da Sociedade Brasileira de
Eletrificação (SBE) aderiram à greve.
No dia seguinte, os 4.500 trabalhadores da maior empresa do parque
industrial, a Mannesman, também
pararam. A partir de então, na mais
absoluta calma e ordem, a RCA,
Pohlig Haeckel, Industam, Cimec e
21
Teoria e Debate Especial 1968 H maio2008
Acervo Marcelo Pinheiro
Boletim Informativo dos Trabalhadores Número 1 convoca os trabalhadores em geral para
assembléia dos operários da Belgo
outras paralisaram a produção. Sem
os tradicionais piquetes, sem assembléias no sindicato.
O coronel Jarbas Passarinho, então
ministro do Trabalho, no dia 2 de abril,
viria à cidade de Contagem e tentaria
convencer os trabalhadores a interromper a greve, ilegal, contestatória
– e, estranho: sem líderes ostensivos.
Não pôde sequer intervir destituindo
a direção do sindicato, pois a greve
nasceu nas fábricas e empolgou 16 mil
dos 21 mil trabalhadores da cidade
industrial. Os metalúrgicos já tinham
vencido o medo, e então enfrentaram
o ministro que saiu da assembléia sob
vaias. O coronel-ministro pôs em prática a partir daí a “guerra” que prometeu. Na TV, disse que a greve era um
desafio ao governo e uma transgressão
Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008
22
à lei, e que os grevistas poderiam ser
demitidos e enquadrados na odiosa
Lei de Segurança Nacional. Com o
patronato acertou o não-pagamento
dos dias parados e a busca de um por
um em suas casas.
O parque industrial foi ocupado por 1.500 policiais militares. As
assembléias foram proibidas, assim
como a distribuição de boletins e
qualquer tipo de aglomeração. No dia
26 de abril os últimos grevistas retornaram ao trabalho. No entanto, no
dia 27, boletins inundaram a cidade
industrial convocando os trabalhadores para transformar o Primeiro de
Maio em um dia de protesto contra o
arrocho salarial.
Os vencedores aparentes: ditadura
e patronato. Por que então a já lendária
greve de 1968 jamais é esquecida? Por
que cientistas sociais como Francisco
Weffort, Magda Neves, Yone Grossi,
Delsy Gonçalves de Paula, Michel
Le Ven, Augusto Buonicore e tantos
outros a ela dedicaram milhares de
páginas e horas de pesquisas?
Contagem-1968 tornou-se um
marco pleno de significados políticos,
ultrapassou o município e o estado de
Minas Gerais. Meses depois estimulou
os metalúrgicos de Osasco, em São
Paulo. Introduziu novos modelos de
organização, de relação com os sindicatos. Recusou a lei (anti)greve e enfrentou o arrocho, levando o governo
militar a conceder abono de 10% para
todos os trabalhadores brasileiros pela
primeira vez desde o golpe de 1964. O
patronato viu-se incapaz de evitar a
greve. O controle essencial na relação
de dominação lhes escapou. Os trabalhadores fizeram-se ouvir, foram
contestadores, entraram em cena.
O golpe de 1964 atrasou o desenvolvimento político, social e cultural
do povo brasileiro. Mas sem dúvida o
sindicalismo sofreu grande derrota
e o golpe militar foi contra a classe
operária para impedir as greves. A
lei (anti)greve impunha exigências
que as inviabilizava e penalizava
duramente sua burla com demissão
sem indenização, afastamento de dirigentes sindicais envolvidos, multas
e intervenção nos sindicatos. A Lei do
Arrocho estipulava que os aumentos
salariais dependiam de um cálculo
que envolvia o salário real médio dos
últimos dois anos combinado com
a previsão de inflação nos próximos
doze meses e a estimativa de aumento da produtividade.
Entre 1964 e 1967, os trabalhadores brasileiros amargaram perda
de 12% do salário real. Leis que
restringiam severamente a atuação
dos sindicatos tinham como objetivo
facilitar a implantação de políticas
econômicas assentadas na compressão dos salários e na redução
de direitos sociais, como a estabilidade e a conseqüente facilitação
das demissões. Os trabalhadores e o
movimento sindical tiveram dificuldade em reagir. Setores da própria
esquerda interpretaram a partir dos
trabalhadores como cooptação da
classe operária e deslocaram para
os estudantes insubmissos, para os
marginalizados (chegavam a enaltecer o papel dos “bandidos sociais”) ou
para camponeses pobres, o papel de
vanguarda revolucionária.
Em 1967, com o fim da intervenção, surgem oposições sindicais em
todo o país. Em São Paulo surge o Movimento Intersindical Anti-Arrocho
(MIA). Em Mina Gerais, a oposição
apresenta uma chapa encabeçada por
Ênio Seabra, em uma aliança entre
Ação Popular, Partido Comunista
Brasileiro, Corrente Revolucionária
e independentes, com a proposta de
afastar os pelegos, fazer oposição ao
arrocho e contra o fim da estabilidade. A Delegacia Regional do Trabalho
(DRT) impugnou a candidatura de
Ênio, que foi à luta, ganhou o direito
de concorrer e foi eleito. O Ministério
do Trabalho destituiu Ênio Seabra e
impugnou mais três diretores. Nem
isso foi impedimento a uma direção
combativa. As esquerdas recuperaram
o sindicato dos bancários e atuaram
em sindicatos como o dos petroleiros,
dos marceneiros e dos professores públicos. Em março de 1968, assembléia
de 2 mil trabalhadores da Secretaria
de Saúde (hoje Minascentro) cria o
Comitê Intersindical Anti-Arrocho.
Em Minas e no Brasil, 1968 é um
ano marcado pela ampliação da oposição ao governo militar. Juscelino
Kubitschek (JK) é mineiro e junto
com Lacerda e Jânio Quadros compõe a Frente Ampla. O Movimento
Democrático Brasileiro (MDB) de
Minas soma-se à oposição liberal-democrata. As lutas estudantis crescem
em volume e extensão. Artistas, intelectuais, jornalistas, padres, famílias
de exilados e perseguidos se manifestaram. A volta dos trabalhadores à
cena estava latente.
Mas por que Contagem?
A cidade industrial de Contagem
foi um sonho das elites mineiras,
um “salto de sete léguas para o futuro”, como disse JK. Planejada para
impulsionar a industrialização em
Minas. Iniciada na década de 1940,
deslanchou nos anos 1960 e em 1968
já abrigava 105 indústrias e 28 mil
trabalhadores. Estrategicamente
situada, milhares de trabalhadores
foram atraídos para o maior projeto
de modernidade dos empresários
mineiros. Carteira assinada, direitos
consolidados, novo status social,
morar nos arredores da bela capital
mineira... Oitenta por cento dos operários da Belgo recebiam dois salários
mínimos, gastavam a metade com aluguel e transporte. O sonho das elites
realizava-se à custa do pesadelo dos
trabalhadores. Salários inferiores aos
de Belo Horizonte, superexploração do
trabalho, vigilância interna despótica,
jornadas longas e exaustivas. Áreas
ainda desocupadas pelas indústrias,
ruas não-urbanizadas, beiradas de
córregos, terrenos pantanosos viraram
favelas para os trabalhadores que não
conseguiam realizar o sonho da casa
própria autoconstruída nos bairros
da região. Bom para o patronato que
não precisava remunerar moradia e
transporte nos salários deprimidos.
Os bairros novos recebem os trabalhadores sem ruas asfaltadas, com
transporte público precário; falta tudo,
escola, saúde, lazer, energia...
Os boletins clandestinos referemse à vergonha dos trabalhadores de
mostrar as marmitas com arroz, ovo e
couve e ao clima opressivo, expresso
em situações como a restrição a usar
o banheiro.
O sonho das elites realizava-se à custa do pesadelo dos
trabalhadores: salários inferiores aos de Belo Horizonte,
superexploração, vigilância interna despótica...
23
Teoria e Debate Especial 1968 H maio 2008
A greve surge como uma ação
para resgatar a dignidade e o respeito próprio dos trabalhadores, como
revolta com o tratamento dispensado pelos empresários e pelo Estado
aos verdadeiros construtores do
progresso e “do salto de sete léguas
para o futuro”, contra a onipotência
do aparato militar e o desrespeito às
lideranças sindicais.
Quarenta anos depois, as lideranças
criticam o importante estudo pioneiro
do cientista político Francisco Weffort1
(1972) sobre a greve de Contagem, pela
subestimação do papel do sindicato dos
metalúrgicos e dos grupos de esquerda.
Dezenas de militantes das classes
médias atuaram em Contagem e no
Barreiro. Pessoas que renunciaram às
suas carreiras, com muita coragem
pessoal, viam nas favelas, nos bairros
desprovidos, assolados pela poluição,
o espaço coletivo da classe operária,
constituída como classe, agindo como
classe, liderando a revolução.
Consumiam suas noites, explicando a realidade capitalista, buscando
introduzir novas práticas políticas,
para além da revolta individual, da
sabotagem de peças. Andarilhos e
missionários da revolução, que acreditavam iminente. Tinham pressa; seu
tempo se conta por dias e semanas.
Percorrem as portas de fábricas, pontos de ônibus, escolas noturnas, bairros, favelas, igrejas. Nos “aparelhos” os
mimeógrafos produzem boletins que
eram distribuídos nas casas.
A greve na Belgo foi liderada pelo
Comando de Libertação Nacional
(Colina), organização autodenominada político-militar, que editava
o Piquete e era uma dissidência da
Política Operária (Polop).
Weffort, Francisco. “Participação e Conflito
Industrial: Osasco e Contagem − 1968” In Cadernos Cebrap, n. 5, São Paulo, 1972.
A Ação Popular agregava lideranças importantes como Ênio Seabra,
Mario Bento, Argentino, e “integrou
à produção” importantes quadros políticos, além de deslocar outros para
atuar nos bairros e escolas. Editava o
boletim Companheiro e outros específicos, como o Bodoque. A Corrente
Revolucionária, dissidência do PCB,
atuava no sindicato por intermédio
do inesquecível Joaquim de Oliveira,
vice-presidente, e da então jovem secretária Conceição Imaculada (posteriormente banida do país quando
trocada pelo embaixador alemão
sequestrado) e nas fábricas e bairros
com quadros jovens. Publicava o 1º
de Maio. A Polop, enfraquecida pela
dissidência Colina, entusiasmou-se
com a emergência da luta operária e
lançou o Partido Operário Comunista
(POC). Tinha importantes quadros
não-metalúrgicos, como Otavino Alves, Milton Freitas e Alcides Oliveira
e “deslocou” seus melhores militantes
para a cidade industrial. Publicava o
Combate.
O PCB era o partido mais antigo.
Fortemente atingido pelo golpe e pelas dissidências, tinha quadros como
Antônio Benigno, da Mannesman. O
próprio Antônio Santana, que ficou
como presidente do sindicato após
Ênio Seabra ser impedido de tomar
posse, era vinculado a Benigno. A
Igreja Católica, por meio de inúmeros padres, seminaristas e militantes
leigos, desempenhou também importante papel.
Em outubro, as esquerdas planejaram outra greve, acreditando no agravamento da situação
econômica e na possibilidade de
derrotar o governo militar. Os fatos
demonstraram que, na verdade, o
país caminhava para o golpe dentro
do golpe.
Teoria e Debate – Especial 1968 H maio 2008
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A repressão à Frente Ampla, ao
MDB, à contestação na área cultural,
ao Congresso de Ibiúna, a absoluta
intolerância à entrada em cena dos
trabalhadores e à insurgência, apontavam para as trevas da repressão.
Em 3 de outubro a nova greve foi
esmagada.
O legado
O mito e a mística de Contagem
permaneceram. Mesmo nos anos de
chumbo, militantes organizados ou
não, sobretudo cristãos engajados,
radicaram-se em Contagem e no
Barreiro.
Poucos anos depois, vieram o Jornal dos Bairros, o Centro de Estudos
do Trabalho, o Centro Cultural Operário, o Grupo de Estudos e Trabalho
em Educação Comunitária (Getec), as
pastorais e os movimentos populares
urbanos. Apenas dez anos depois, em
plena ditadura, vem a oposição sindical metalúrgica, em seqüência as greves nas fábricas. O novo sindicalismo
articula-se com os movimentos de
bairros e favelas, com as comunidades de base, com a imprensa popular.
Muitos dos dirigentes de 1968, junto
com as novas lideranças, fundaram
o Partido dos Trabalhadores (PT) e,
poucos anos depois, a Central Única
dos Trabalhadores (CUT).
A greve de 1968 jamais foi esquecida, pelo que significou, pelas novidades que trouxe para a organização e
para a orientação dos trabalhadores.
Não espanta, pois, que a tradição
inaugurada em 1968 seja celebrada e
elevada por dois prefeitos sindicalistas: Marília Campos, de Contagem,
oriunda do sindicalismo combativo
dos bancários dos anos 1980, e Emídio
de Souza, metalúrgico de Osasco. ✪
Nilmário Miranda é vice-presidente da
Fundação Perseu Abramo
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