ANAIS ELETRÔNICOS ENILL
Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011
Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908
A IDEOLOGIA E A PRONÚNCIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Manuela Oliveira de Jesus (Mestranda/ UFS)
RESUMO
No presente artigo propõe-se uma reflexão acerca da ideologia que perpassa a ideia de
pronúncia do português em sua variedade brasileira. Para tanto, lançou-se mão
principalmente do conceito pecheutiano de ideologia e do trabalho da Profa. Dra.
Regina Célia Pagliuchi da Silveira, que a partir de pesquisas realizadas no Núcleo de
Pesquisa e Ensino de Português/Língua Estrangeira, no Instituto de Pesquisas
Linguísticas “Sedes Sapientiae” da PUC/SP (NUPPLE –IP – PUC/SP), com
informantes falantes nativos e falantes de outras línguas, diagnosticou como pronúncia
do português brasileiro o que ela chamou de globês. Será perceptível ao longo da
exposição realizada neste artigo que a escolha por tal pronúncia, como aquela que
“representa/ caracteriza” o falar dos brasileiros, não foi aleatória sendo fortemente
influenciada pelo aparelho ideológico do Estado (AIE) que é a mídia, sobretudo, a Rede
Globo de Televisão.
Palavras-chave: PLE; globês; ideologia.
1 O PORTUGUÊS BRASILEIRO
Sabe-se que o Brasil é um país de grandes dimensões geográficas e que seu
processo de colonização e povoamento foi rico em influências de outras línguas, a
resultante disso foi, dentre outras questões, a alta variação linguística no nível da
pronúncia. No entanto, Silveira (2008) defende uma instituição imaginária da sociedade
cuja resultante é uma identidade de pronúncia, a saber: o globês.
Para se chegar a tal pronúncia realizou-se uma investigação, sob coordenação
da citada autora, no Núcleo de Pesquisa e Ensino de Português/Língua Estrangeira, no
Instituto de Pesquisas Lingüísticas “Sedes Sapientiae” da PUC/SP (NUPPLE –IP –
PUC/SP), com informantes falantes nativos e falantes de outras línguas (tanto de
distanciamento quanto de interface com a língua portuguesa) sendo que estes últimos
estavam em estado de interlíngua e encontravam-se em exposição ao português
brasileiro inclusive ao ensino formal em São Paulo.
1
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A investigação anteriormente mencionada esboçou-se da seguinte forma:
inicialmente, apresentou-se aos informantes uma série de gravações contendo diferentes
variedades de pronúncias, coletadas de contadores de casos, cantores sertanejos e de
outras músicas populares brasileiras, apresentadores de noticiários locais e nacionais,
anúncios publicitários da mídia radiofônica e televisiva, professores universitários,
políticos e participantes de mesas-redondas, a fim de que, após a audição, os ouvintes
indicassem qual pronúncia consideravam a “melhor” e que teriam como expectativa
adquirirem. A maioria dos informantes atribuiu grau ótimo à pronúncia dos
apresentadores do Jornal Nacional da TV Globo.
Como é possível observar, os resultados indicaram uma complexidade para a
caracterização de uma pronúncia identitária brasileira, uma vez que mediante tal escolha
(a do globês), a referida variedade de prestígio até então, a carioca 1, perdeu seu status
para a pronúncia avaliada com grau ótimo e que se mostrou como unidade imaginária na
diversidade de variações linguísticas brasileiras distinguindo-se ainda das demais
pronúncias de outros países lusófonos, como Portugal, Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Frente a esse resultado,
evidenciou-se o problema, de se saber por que a pronúncia dos apresentadores da TV
Globo recebeu grau ótimo.
Acredita-se que esse padrão de pronúncia é construído sob o julgo da
ideologia, difundida, sobretudo, pela rede Globo de televisão, a qual se configura como
um dos aparelhos ideológicos do Estado, além disso, conforme Silveira (2008), o
tratamento da identidade de uma pronúncia nacional brasileira apresenta caráter
multidisciplinar. Por isso, a questão da pronúncia standard2, identidade linguística
brasileira avaliada com grau ótimo, deve ser examinada por diferentes prismas
relacionados entre si, a saber: linguístico, cognitivo, social, ideológico e idiomático.
2 FATORES DE ATRIBUIÇÃO DO GRAU ÓTIMO
1
Presente em gramáticas e livros de Português.
2
Do inglês, “padrão”.
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Todo lexicógrafo deve optar por um padrão de pronúncia na transcrição
fonética das entradas vocabulares de um dicionário bilíngue. No Brasil, muitos têm
procedido a suas transcrições a partir do dialeto carioca, tratada por Silveira (2008)
como pronúncia idiomática, uma vez que fora imposta a nação brasileira pelo Estado.
Consoante a autora, essa pronúncia destoa da estandardizada, isto é, do globês, por esta
última não decorrer de uma decisão oficial, um decreto ou uma lei, mas de uma
conjunção de fatores que só se explicam por uma perspectiva multidisciplinar.
Assim, a “opção” por uma pronúncia estandardizada do Português brasileiro
(PB) encontra sustentação nos prismas elencados por Silveira (2008) para explicar essa
escolha. Sob o prisma linguístico, a autora afirma que os traços da pronúncia do
brasileiro estão fixados nas bases articulatórias e na frequência de uso, resultantes do
cancelamento de variações individuais e/ou grupais. Essas bases são hábitos
articulatórios adquiridos pelos falantes, cuja frequência de uso representa normas
individuais (idioletos), grupais, regionais e nacionais.
Do ponto de vista cognitivo, considera-se conforme Denhière e Baudet (1992)
dois tipos de representação cognitiva: a representação mental ocorrente e a
representação mental-tipo. No plano fonético, as variações individuais e grupais de
pronúncia funcionam como ocorrências sonoras na comunicação. As representações
mentais-tipo são estruturas de memória persistentes relativas a padrões de pronúncia. A
pronúncia do globês, nesse sentido, tem o poder de construir nos telespectadores
representações sonoras-tipo que passam a caracterizar cognitivamente aspectos de uma
identidade nacional, graças ao seu grande foco de irradiação, já que é veiculada pela TV
Globo.
No tocante ao prisma social, Heye (1990) acentua a sua importância no ensino
da língua portuguesa pelo escalonamento de grupos sociais diferenciados pelo nível de
escolaridade. Com esse procedimento, postula que o uso linguístico das classes sociais
escolarizadas varia do padrão real ou oral ao padrão normativo ou escrito. Em termos da
pronúncia, Silveira (2008) entende que é um fenômeno representativo da identidade
desses grupos, prestigiando-os ou discriminando-os socialmente. Esse enfoque mantém
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estreita relação com o prisma ideológico, uma vez que as ideologias e as relações de
poder não se manifestam fora da sociedade, corroborando com o postulado de Pêcheux
(1999, p. 149) que concebe ideologia pelo sujeito e para sujeitos. Assim, uma língua se
manifesta socialmente de muitas formas, embora não se isentem da atribuição valorativa
de seus usuários. Em meio à diversidade da fala, há sempre um modo que representa o
foco de irradiação linguística, sendo a ele atribuído maior prestígio social.
Desse modo, os resultados propiciaram caracterizar o globês como uma
pronúncia standard que resulta do privilégio de certas bases articulatórias do paulistano,
devido a seu prestígio, com o cancelamento de outras bases que são rejeitadas pelos
telespectadores (SILVEIRA, 2008, p. 28).
Já no que tange ao prisma idiomático, entende-se que há uma identidade
linguística que reflete uma identidade nacional. O idioma pode ser concebido como um
estado político e ideológico em que as instâncias de poder estabelecem um padrão
fonético, a fim de controlar as variabilidades de pronúncia. Contudo, há uma diferença
entre padrão idiomático e padrão estandardizado, que tem sido motivo de discussões das
políticas linguísticas3.
3 A IDEOLOGIA E UMA PRONÚNCIA DO PB
Dentre todas as razões elencadas e explicitadas anteriormente - as quais
fornecem alguma explicação para a escolha de nativos e estrangeiros pela pronúncia dos
apresentadores do Jornal Nacional da TV Globo, a que mais chamou a atenção foi o
prisma ideológico, ao qual deteremos maior atenção neste tópico.
Influenciado pelos estudos psicanalíticos de Lacan, Pêcheux (1999) apresenta
dois tipos de ideologias: uma Ideologia mais geral, a qual não tem história, ou seja, é
eterna mascarando sua própria existência no interior de seu funcionamento, produzindo
um tecido de evidências subjetivas. E outra ideologia dominante, a qual encontra seu
lugar e meio de realização nos aparelhos ideológicos do Estado (AIE).
3
Esse ponto não será discutido neste trabalho.
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Partindo do ponto de vista de que os sujeitos é que atribuem sentido e por que
não, existência às coisas do mundo, e entendendo como dito anteriormente que, em
consonância com Pêcheux, a ideologia existe pelo sujeito e para sujeitos, percebe-se que
onde existirem sujeitos (sociedade) existirá ideologia. Dessa forma, não é possível
pensar que a escolha pela pronúncia dos apresentadores do Jornal Nacional da Rede
Globo de Televisão tenha sido aleatória/ arbitrária.
Chama-se a atenção para o fato de que a Rede Globo é o canal de comunicação
de massa com maior alcance geográfico sendo transmitida tanto no Brasil como no
exterior. Além disso, Silveira (2008) defende que o globês é uma variável mais neutra4
sendo, por isso, mais amplamente aceita por falantes/ ouvintes da pronúncia do PB.
A partir disso, pode-se depreender que aqueles sujeitos - os quais
possivelmente acreditaram estar fazendo uma escolha de maneira autônoma,
independente - na verdade, aparecem determinados, na medida em que seu discurso (o
de atribuição do grau “ótimo” ao globês) encontra-se dissimulado sob a aparência da
autonomia, isto é, na transparência da linguagem.
Todavia, essa “opacidade” só se torna perceptível a partir do momento em que
se leva em consideração a influência que um AIE como a TV Globo exerce sobre seus
telespectadores. Isso, porque a televisão pode transmitir uma enormidade de
informações às mais longínquas regiões, uniformizando, conforme Silveira (2008), os
padrões de gosto, de comportamento, de consumo, de valores éticos e estéticos.
Pensando o caso da emissora de televisão, à qual nos remetemos neste artigo,
compreende-se a “decisão” dos informantes que se submeteram às audições dos
diferentes falares presentes no Brasil. Como estes sujeitos, estando submetidos à
ideologia irradiada pela Globo, poderiam escolher outra pronúncia senão o globês?
Desse modo, fica claro que a escolha pelo globês não fora uma escolha pessoal
de cada informante, haja vista as escolhas serem sociais. Se os nativos e estrangeiros
acreditaram que fizeram tal escolha, se deve ao fato de que, na verdade, eles estão sob a
4
Entenda-se essa neutralidade não no sentido ideológico, mas fonético.
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ilusória máscara da transparência em que eles se identificam com a “formação
discursiva” que o domina (PÊCHEUX, 1999).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que fora discutido no trabalho em tela partiu da perspectiva de que nenhum
discurso é produzido fora das relações sociais sendo, por isso mesmo, histórico e
ideológico, visto que o sujeito que o produz o faz de um lugar social e de uma posição
ideológica.
Os informantes da pesquisa realizada no Núcleo de Pesquisa e Ensino de
Português/Língua Estrangeira, no Instituto de Pesquisas Lingüísticas “Sedes Sapientiae”
da PUC/SP (NUPPLE –IP – PUC/SP), por serem sujeitos, certamente não estavam
imunes ao poder de irradiação ideológica da Rede Globo. Dessa forma, optaram por
aquele padrão de pronúncia que mais lhes soou “familiar” e “melhor” de aprender.
Tal “escolha” fora explicada a partir dos prismas elencados por Silveira (2008),
mas, mais que isso, encontrou sustentação no postulado pechetiano acerca da ideologia,
à qual estamos todos submetidos, uma vez que somos sujeitos e conforme o referido
autor, a ideologia só existe pelo sujeito e para sujeitos.
Assim, diferente do dialeto carioca, imposto à nação brasileira pelo Estado, a
pronúncia standard – o globês, revestiu-se da transparência da autonomia no que tange
à escolha dos sujeitos (informantes) por ela, dando a esses sujeitos a ilusão de escolha
independente (no sentido de autônoma). Ou seja, tal opção/ escolha manteve a
influência ideológica da Rede Globo dissimulada na transparência de seu sentido.
Desse modo, pode-se chegar à conclusão de que por mais que um sujeito ou
grupo de sujeitos acreditem estar saindo das amarras do Estado - no que diz respeito à
questão do padrão de pronúncia que caracteriza o português em sua variedade brasileira
- eles ainda estarão sob o julgo de ideologias reforçadas pelos AIE. Os quais também
estão sob o julgo de uma Ideologia mais geral que atende aos interesses de uma
sociedade capitalista marcada pela luta de classes.
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5 REFERÊNCIAS
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CALVACANTE, M. do S. A. de O. Análise do Discurso: fundamentos & práticas.
Maceió, EdUFAL, 2009.
HEYE, J. A importância da sociolingüística no ensino da língua portuguesa. In:
MELLO, L.A. (org.) Sociedade, culturas e língua – ensaios de sócio e
etnolingüística. FUNAPE: UFPb, 1990.
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução:
Eni Pulcinelli Orlandi et al. Campinas, UNICAMP, 1998.
___________. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes, 1999
SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi. Português: língua estrangeira: perspectivas.
São Paulo: Cortez, 1998. pp. 93-119.
___________. Estudos da Fonética e Fonologia do Idioma Português. 2ª ed. São
Paulo: Cortez, 1988.
___________. Uma pronúncia do português brasileiro. São Paulo; Cortez, 2008.
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