V Encontro Nacional da Anppas
4 A 7 de outubro de 2010
Florianópolis – SC – Brasil
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Intensificação da Produção Leiteira em Região do
Centro Oeste: Impactos Sociais e Ambientais
Margot Riemann Costa e Silva (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Pedagoga, Professora do Mestrado em Serviço Social e
Mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial
[email protected]
Vera Lúcia Alves Rezende
Assistente Social. Pesquisadora da Rede Goiana de
Pesquisa sobre o Esvaziamento das Regiões de Economia Rural
[email protected]
Resumo
Este trabalho relata pesquisa realizada na região de Piracanjuba/Goiás, maior bacia leiteira de
Goiás e terceira maior do Brasil. O objetivo da investigação é verificar os impactos sociais e
ambientais da intensificação dos sistemas de produção ao longo das décadas de 1990 e 2000. Os
resultados sugerem que a riqueza adicional gerada está sendo apropriada pelos elos industriais e
comerciais da cadeia produtiva situados fora do território, e que os produtores rurais, seus
familiares, os trabalhadores envolvidos na produção e a população local e regional não estão
sendo beneficiados na mesma proporção.
Introdução
A liberalização do mercado de alimentos no Brasil na década de 1990 repercute de forma
arrasadora para o agropecuarista. Libera-se a importação indiscriminada de alimentos, ao mesmo
tempo em que o Estado abandona a regulamentação das cadeias produtivas. Na cadeia láctea
este processo ocorre sem nenhuma preparação e deixa o produtor em ampla desvantagem para
negociar preços (MEIRELES, 1996), o resultado é o achatamento dos preços pagos aos
produtores (BARROS, 2000). Desencadeia-se um esforço para aumentar a produtividade e
competitividade da produção agropecuária local, intensificando a pesquisa e a difusão de
tecnologias.
O produtor adere com entusiasmo à difusão de novas tecnologias porque acredita que conseguirá
recompor sua renda, além de ascender à condição de empresário rural. Mas o que se percebe é
que a modernização da produção não modifica as relações no interior da cadeia produtiva, e a
recomposição da renda não acontece. Da “porteira para dentro” o produtor é instado a agir como
moderno empresário, mas “da porteira para fora” ele continua sendo, na terminologia goiana, o
roceiro de sempre, tratado como um ignorante, um cidadão de segunda classe, que deve entregar
seu produto sem negociação prévia, exposto à flutuação do mercado, cuja escala agora é
internacional. Sua situação é de extrema vulnerabilidade, coagido a submeter-se às condições
impostas pela indústria e pelo segmento comercial. Sendo inexistente ou muito fraca sua
organização política – excluindo aí o Movimento Sem Terra - ele não consegue sequer articular
seus interesses.
A adesão às novas tecnologias de produção alavanca e expande os negócios dos segmentos
industriais e comerciais do agronegócio, mas o produtor passa a ter crescente dificuldade para
defender a lucratividade da atividade. Desta maneira, as políticas públicas para o campo a partir
de 1990 (expansão do crédito, programas de transferência de renda, melhora do acesso à
educação, expansão da eletrificação rural) não conseguem neutralizar os efeitos devastadores da
reorganização produtiva deflagrada na década de 1990. A persistente evasão demográfica, que
não afeta somente o campo, mas também as pequenas cidades interioranas, assim como a
reprodução da defasagem de renda entre as famílias dos centros urbanos e das áreas rurais
(PESQUISA NACIONAL DE AMOSTRAGEM DOMICILIAR – PNAD, 2008) são consequências
desta situação.
A região de Piracanjuba/Goiás, maior bacia leiteira de Goiás, e terceira maior do Brasil, cuja
produção de leite entre 1990 e 2007 aumenta em 388% (Pesquisa Pecuária Municipal do IBGE
2008) ilustra exemplarmente as contradições que acompanham o processo de reorganização
produtiva no campo. Enquanto o PIB per capita salta de R$ 3.386,00 (1999) para R$ 11.709,00
1
(2008) a população rural diminui na razão de 0,27% e a população total na razão de 0,15%. A
produção agropecuária representa 35% do PIB do município. Aparentemente a intensificação da
produção não resultou em benefícios para a população local.
Para elucidar esta contradição e verificar os impactos, não somente sociais, mas também
ambientais, da intensificação dos sistemas de produção em região do Centro Oeste iniciamos em
2001 uma série de pesquisas no município de Piracanjuba que abrangeram: 1) perfil dos sistemas
de produção de leite; 2) condições de trabalho e renda dos trabalhadores permanentes em
estabelecimentos leiteiros; 3) perfil do produtor de leite; 4) levantamento mensal de custos da
produção de leite ao longo de doze meses por amostragem estratificada; 5) avaliação
socioambiental das fazendas cujo custo foi coletado; 6) indicadores de emprego, renda e
migração no município, abrangendo área urbana e área rural.
1 - Metodologia
1.1 - Caminho metodológico
A partir de qual referência devemos avaliar os impactos da intensificação da produção leiteira na
cidade de Piracanjuba/Goiás?
Colocamos em discussão parâmetros formulados por um programa de extensão1 que vem
atuando com sucesso em todo Brasil, e que, apresentando um resultado exitoso de trabalho de
extensão no município de Buritama, São Paulo, concluiu que logrou
(...) recuperar a auto-estima do produtor e de sua família, a ponto de promoverem a reforma
completa em sua residência, de adquirirem eletro-domésticos novos, melhorando sobremaneira a
qualidade de vida de toda família.” (CAMARGO, 2006, p.7)
Trata-se de um referencial extremamente baixo. Conseguir reformar casa e adquirir eletrodomésticos novos deveria ser direito de qualquer cidadão que trabalha e produz. O produtor em
questão, mesmo não tendo domínio de tecnologias, certamente se esforçava para obter
resultados da melhor maneira possível, e produzia 148 litros de leite/dia. Os autores do programa
de extensão referem-se aos preços praticados pelo mercado de leite como se fosse um dado
inexorável, que escapa de nosso controle. Por isto não incorporam em suas conclusões o dado
que, se valessem as regras de vinte anos atrás, quando ainda o preço do leite do Brasil era fixado
pelo governo e representava entre 40% a 60% do preço final ao consumidor, este mesmo produtor
teria dobrado sua receita, ganhando cerca de dois salários mínimos por mês. Com esta
remuneração hipotética, mesmo sem aumentar a produção, os eletro-domésticos e a reforma da
casa seriam fatos naturais em sua vida.
1
Trata-se do programa “Balde Cheio” da Embrapa Pecuária Sudeste,
2
Os parâmetros citados espelham e reproduzem passivamente a condição de excluído do pequeno
produtor rural no imaginário social brasileiro. Por isso, um intenso programa de melhoramento da
produção, que envolveu diversos extensionistas graduados e pós-graduados e possibilitou apenas
padrões básicos de inclusão social parece ser bem sucedido. Se, ao contrário, partirmos de um
parâmetro onde o produtor rural, de qualquer tamanho, seja visto como um cidadão econômico,
livre para produzir e livre para fixar seus preços, um empreendedor rural, as referências mudam.
Dentro desta lógica, tendo o valor do patrimônio como referência, um proprietário de sete hectares
em Butirama teria que ter resultados compatíveis com, por exemplo, um proprietário de caminhão
no valor desta terra. Neste caso, o aumento de produtividade teria que possibilitar a multiplicação
do patrimônio, como ocorre, por exemplo, no caso de um empresário bem sucedido do transporte,
mesmo sendo pequeno. Apenas a reforma da casa e a compra de eletro-domésticos são
incompatíveis com a racionalidade empresarial capitalista, e qualquer empreendedor urbano
rechaçaria este tipo de perspectiva.
Para efeito de nosso estudo, a viabilidade econômica do produtor rural na condição de empresário
constitui nosso ponto de partida, a baseline, para a avaliação de impacto. Assim, a intensificação
da produção teria que proporcionar ao produtor, no mínimo, ganhos comparáveis com as
atividades empresariais urbanas. Mas não paramos aí. Coerente com a convicção de que a
racionalidade capitalista tem que ser progressivamente superada por uma perspectiva de
desenvolvimento sustentável, analisaremos o processo de mudança tecnológica da produção de
leite sob esta ótica.
Mas o que entendemos por desenvolvimento sustentável e o que significa analisar processos
econômicos e sociais por este viés?
Desde a clássica definição do Relatório Brundtland em 1987 (O desenvolvimento que procura
satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações
futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades. “Nosso futuro comum”, Comissão Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, da ONU, 1987) vem se estabelecendo um consenso
que desenvolvimento sustentável articula três eixos: a viabilidade econômica, a justiça social e
proteção ao meio ambiente (SACHS, 2006). Frequentemente é incorporado um quarto eixo, a
necessidade da criação de condições político-institucionais (BECKER, JAHN, 2006). Mesmo
reconhecendo a diversidade de interpretações que envolvem o pilar, por exemplo, da viabilidade
econômica – que variam desde a posição neoclássica até a posição da economia ecológica
(MUELLER, 2007), esta visão de desenvolvimento é promissora na medida em que rompe com o
unilateralismo das concepções tradicionais e busca superar dualidades: entre processos
socioeconômicos e a utilização de recursos naturais, entre processos tecnológicos e processos
3
sociais e ambientais. A perspectiva de desenvolvimento sustentável a partir destes quatro eixos
faz com que programas de mudança tecnológica na produção rural, por exemplo, não se limitem
apenas a aspectos técnicos, mas que tenham visão social – não apenas pontual, mas também
local e regional, visão dos aspectos ambientais e ainda a visão do marco político e institucional.
A dificuldade desta metodologia reside no fato que os quatro pilares em princípio têm a mesma
relevância, mas funcionalmente são diferenciados. Becker e Jahn (2006, p. 242) apontam que os
pilares sociais e ecológicos se referem aos objetivos dos processos de desenvolvimento,
enquanto que os pilares econômicos e politico-institucionais se referem aos recursos para o
desenvolvimento. Os autores sugerem uma metodologia, segundo a qual o desenvolvimento
sustentável deverá combinar três dimensões: uma normativa, que envolve as perspectivas
societárias, por exemplo, a igualdade e a justiça geracional e de gênero, ou a preservação das
bases naturais da sobrevivência; uma dimensão analítica, que focaliza as transformações sociais
sob o prisma das relações com a natureza, e uma terceira dimensão de natureza operativa que
combina a capacidade de articular perspectivas estratégicas de longo prazo com a solução de
problemas de curto prazo. Esta última dimensão envolve as estratégias e ações em áreas como
economia, tecnologia, meio ambiente, política e cultura (BECKER, JAHN, 2006, p. 243).
Diante da complexidade tanto da primeira, como da segunda concepção de desenvolvimento
sustentável, as dúvidas sobre quais parâmetros adotar parecem aumentar ao invés de diminuir.
Somam-se dificuldades adicionais, que surgem por exemplo em função da necessidade de
integração de conhecimentos vastos e diferenciados que processos de desenvolvimento
sustentável pressupõem. Citamos outra grande dificuldade: como contrapor-se à dinâmica própria
dos mercados, implacáveis, inclementes, guiados tanto por mãos invisíveis como muito visíveis?
A definição de sustentabilidade proposta por Becker e Jahn (2006) parece responder bem a estes
obstáculos. Propõem que desenvolvimento sustentável seja “um corredor de possibilidades de
desenvolvimento, que simultaneamente orienta e limita as ações sociais e políticas nos campos
da ecologia, do social e do econômico” (BECKER, JAHN, 2006, p. 244). Neste sentido
sustentabilidade não seria nem um objetivo concretamente alcançável de tipo visionário,
tampouco um receituário de ação concreta e imediata. Tratar-se-ia de analisar, avaliar e abrir
caminhos de desenvolvimento alternativos, a partir de perguntas tortuosas mas precisas como:
“qual desenvolvimento diminui a não-sustentabilidade”, e ainda as perguntas “para onde
caminhamos”, “de que maneira caminhamos” e “qual caminho tomamos” (BECKER, JAHN, 2006,
p. 244)?
Em base desta proposta metodológica formulamos os parâmetros de análise dos impactos da
intensificação da produção leiteira em Piracanjuba, explicitando as questões:
4
1) A riqueza adicional gerada pela intensificação da produção foi desconcentrada, viabilizando
economicamente o produtor rural, ou foi absorvida pelos elos industriais e comerciais da cadeia
produtiva?
2) Ao produtor rural abriu-se uma perspectiva de cidadania econômica, entendida como a
liberdade para ir ao mercado, vender balizado por relações contratuais, e fixar preços? Sua
rentabilidade é compatível com as margens de lucro praticadas na economia em geral?
3) A intensificação da produção beneficiou economicamente familiares e funcionários envolvidos
na produção e melhorou a qualidade de seu trabalho?
4) A intensificação da produção contribuiu para desconcentrar regionalmente a riqueza,
beneficiando o desenvolvimento local e regional, gerando perspectivas de negócios, elevando o
padrão da renda e a qualidade dos empregos do local?
5) A intensificação da produção foi capaz de fornecer leite em quantidade e qualidade adequados
à necessidade da população local e regional?
6) O leite é essencial para a sobrevivência humana. A intensificação da produção ampliou o
acesso ao produto por parte da população?
7) A intensificação da produção se deu preservando o equilíbrio ambiental, a biodiversidade e os
recursos naturais disponíveis na região?
1.2 - Procedimento metodológico
Segundo o Censo Rural do IBGE (2006) há em Piracanjuba 1947 propriedades rurais, destas
1094 produzem leite. As fazendas de leite empregam em média um trabalhador permanente por
estabelecimento. Todas as fazendas investigadas por nós extraem do leite sua renda principal2.
A pesquisa entre trabalhadores permanentes foi realizada nos anos de 2001 e 2002 aplicando 135
questionários em 23 regiões. Foram levantados: salário, renda familiar, renda per capita familiar,
formalização do emprego, cumprimento de garantias como férias, descanso semanal remunerado,
duração da jornada de trabalho, rotatividade.
A pesquisa entre produtores foi realizada nos anos de 2005 (36 entrevistas) e 2006 (29
entrevistas) em 18 regiões do município. Foram levantados: perfil da produção, abrangendo as
tecnologias utilizadas, o padrão racial do gado, aspectos sanitários, incidência de doenças e
mortalidade animal; o perfil do produtor, abrangendo idade, características da moradia, o perfil do
lazer. O levantamento mensal de custos de produção de leite iniciou em agosto de 2009 em 24
fazendas escolhidas aleatoriamente por sorteio seguindo a estratificação da produção do
2
Os resultados completos da pesquisa estão publicados em livro (SILVA, 2008).
5
município, e está sendo encerrado em julho de 2010. Adotamos o software PRODAP como
ferramenta de análise.
A avaliação socioambiental das fazendas, cujo custo de produção foi levantado, inicia em
setembro 2010 e utiliza a ferramenta Avaliação Ponderada de Impacto Ambiental – APOIA
NOVORural
desenvolvida
pela
EMBRAPA
Meio
Ambiente,
Jaguariúna
(STACHETTI,
BUSCHNELLI, 2008).
A pesquisa sobre migração, emprego e renda no município foi feita através de aplicação do
questionário do PNAD 2008 em 144 domicílios, de um total de 8287 (estimativa do Ministério de
Desenvolvimento Social – MDS). Os dados foram cruzados com as estatísticas do IBGE: Censos
1991 e 2000 e PNAD 2008; da Secretaria de Planejamento de Goiás – SEPLAN, do MDS e do
Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - CAGED.
2 - Globalização e intensificação da pecuária leiteira em Goiás
Goiás em 1990 já se destacava como produtor de grãos. Na década de 1970 muitos recursos do
governo federal foram emprestados, praticamente a fundo perdido, para compra de tratores,
compra de adubos, formação de pastos, calcareamento, desmatamento (ESTEVAM, 1998). Mas o
estado não se destacava como produtor de leite, ocupava o quinto lugar no ranking brasileiro. Seu
rebanho era formado por matrizes de baixa produtividade. Na seca não se fazia nenhum tipo de
suplementação de volumoso, alguns produtores forneciam capim elefante que era plantado em
locais mais úmidos, como beira de córregos. Assim as médias de produção variavam de 3 a 4
litros/dia por vaca na estação das chuvas e 0,5 a 1 litro/dia por vaca na estação seca.
Os laticínios começam a trazer para Goiás touros da raça holandesa vindos de rebanhos do
Paraná. O cruzamento desses touros com as vacas zebuínas deu origem a vacas mestiças
(grande parte girolandas, porque as vacas gir ou giradas prevaleciam nos rebanhos) de excelente
desempenho. São as vacas chamadas de “Primeira Cruza” que mantêm a rusticidade da vaca
zebu, somado a um bom desempenho no leite.
Na década de 1990 a liberalização do mercado de alimentos no Brasil revolucionou o segmento
lácteo. Os preços ao produtor recuaram em média 7,5% ao ano entre 1986 e 2001 (MARTINS,
2004 p. 23-24), o impacto só não foi maior, porque no mesmo período o custo da ração diminuiu
na proporção de 6,1% ao ano (MARTINS, 2004, p. 25). O produtor busca compensar o
achatamento da renda expandindo a produção por meio do aumento da produtividade. Em Goiás,
há um crescimento de produtividade na ordem de 117% por estabelecimento ao longo da década
(NORONHA, 2001 p. 15), resultado de um intenso trabalho de disseminação de novas tecnologias
de produção por parte de instituições de extensão, ensino e pesquisa tanto da área pública como
6
privada. São as tecnologias de pastejo rotacionado com ou sem adubação, produção de silagem
de milho e sorgo para a estação da seca, fornecimento de cana-de-açúcar picada também na
seca. E se multiplica o plantio de capins exóticos, principalmente as braquiárias, substituindo os
capins nativos.
O resultado é a expansão acentuada da produção. Entre 1990 e 2008 a produção física de leite
em Goiás cresce na proporção de 140% (Brasil 90%). Destaca-se o município de Piracanjuba, que
multiplica sua produção na razão de 388%, conquistando a condição de maior produtor de Goiás e
terceiro maior produtor do Brasil (PRODUÇÃO PECUÁRIA MUNICIPAL – PPM, 2008).
3 - Intensificação dos sistemas de produção em Piracanjuba
O município de Piracanjuba, fundado em 1831, originou-se como região de criação de gado de
corte. A partir de 1900, com a chegada da estrada de ferro no Triângulo Mineiro, passa a existir
também um importante comércio de manteiga. As fazendas desnatavam o leite, vendiam o creme
para comerciantes da cidade, que o transformavam em manteiga e vendiam em São Paulo. Mas
não existia ainda um comércio de leite. Nas fazendas, o leite desnatado era fornecido aos porcos
ou era descartado, despejado nas bicas d’água 3. As vacas de alta produção leiteira não tinham
valor comercial porque não havia mercado para o leite que elas produziam.
A produção de leite em Piracanjuba avança em grande escala a partir do ano de 1972, com a
instalação de moderno laticínio de propriedade do grupo Moreira Salles, a Companhia Leco de
Produtos Alimentícios. Esta empresa, com grande capacidade de captação de leite, gera um fluxo
importante de recursos para o município. Eram recursos estatais, repassados pelo Banco do
Brasil e altamente subsidiados. Sua finalidade era financiar a formação de pastos, adubação,
calcareamento, aquisição de matrizes e touros leiteiros, entre outros.
Em 1968 é criada a Cooperativa Agropecuária Mista de Piracanjuba – COAPIL - que a partir de
1996 inicia a comercialização de leite. Vários outros laticínios, no mesmo período, passam a
captar leite.
A partir deste período, Piracanjuba já se destaca como bacia leiteira, superando centros como
Inhumas, Anápolis e Santa Helena, que até então constituíam importantes centros de produção de
leite. A produção do município salta de 27.791.000 litros/ano em 1990, para 107.940.000 litros/ano
em 2008, um crescimento de 388%4, muito superior ao crescimento da produção de leite no
estado de Goiás, que foi da ordem de 268%, e no Brasil, que foi de 170% no mesmo período.
3
Informações fornecidas pelos senhores Tito Modesto e Jayme Martins, de Piracanjuba.
Na verdade a expansão do leite foi até superior, se considerarmos que na década de 1990 o município de Professor Jamil, importante
bacia leiteira, foi emancipado de Piracanjuba.
4
7
3.1 - Perfil das propriedades e da produção leiteira
Prevalecem em Piracanjuba, segundo o Censo Rural 2006, as propriedades menores que 100 ha
(76%), e cada fazenda emprega em média um funcionário permanente.
O grau de utilização de tecnologias como trator, ordenha mecânica e tanque de expansão é
superior às médias encontradas, por exemplo, por Gomes (2006) em Minas Gerais.
Tabela 1: Tecnologia e mecanização
Equipamentos
Piracanjuba
Minas Gerais
Tanque de expansão
75,38%
22,6%
Trator
49,23%
22,7%
Ordenha mecânica
29,23%
17,2%
Poço artesiano
20,00%
Não consta
Inseminação artificial
12,31%
13,0%
Irrigação
6,15%
5,8%
Fonte: Pesquisa de campo (2006); Gomes (2006)
Em sua grande maioria, 76% das propriedades, suplementam a alimentação das matrizes, no
período seco, com volumoso. Chama a atenção que 41% dos produtores mantêm algum tipo de
suplementação (ração e/ou volumoso) no período chuvoso.
O nível tecnológico das fazendas é pautado em larga medida pelo padrão racial do gado: 72% das
propriedades têm em seu rebanho animais com predominância de sangue taurino.
A média de leite produzida nos currais é de 283 l/dia, cada vaca tendo um desempenho de 10
l/dia.
A média de consumo anualizado de ração é de 1 kg para cada 4,35 litros de leite.
3.2 - Perfil e renda do produtor
O produtor de leite de Piracanjuba é predominantemente casado, católico, com idade média de 51
anos e têm em média dois filhos. A escolaridade é baixa, 40% apenas concluiram a quarta série,
outros 22% concluiram apenas o ensino fundamental. A maioria, 75%, mora na fazenda.
Segundo nossa pesquisa 55% dos produtores são do tipo familiar.
Quanto à questão da rentabilidade, todas as pesquisas têm sido unânimes na constatação de que
a pecuária leiteira não é lucrativa para o produtor rural.
8
Pesquisa realizada em Goiás em 2008 e 2009 (GOMES, 2009), fornece os seguintes dados: em
média, as propriedades leiteiras de Goiás têm um prejuízo anual de R$ 54,77, considerados a
depreciação dos equipamentos, o preço da mão-de-obra familiar e o retorno sobre o capital
investido. Apenas os extratos de produção acima de 500 l/dia têm lucro. Os produtores na faixa
entre 500 a 1000 l/dia obtêm um lucro de R$ 8.370,20/ano (o que representa menos de R$
700,00/mês) e os produtores acima de 1000l/dia lucram R$ 6.003,79/ano (o que representa cerca
de R$ 500,00/mês). Segundo Gomes (2009) a atividade não entrou em colapso ainda porque a
margem líquida, desconsiderando, portanto, as taxas de retorno sobre o capital investido, é
positiva para todos os extratos de produção, representando na média RS R$ 10.491,60 anuais, ou
seja, cerca de R$ 875,00/mês.
São necessários investimentos de R$ 786.594,00 para produzir 245 litros/dia (média de produção
constatada por sua pesquisa). O valor da terra representa 74,67% deste total (Gomes, 2009).
O produtor é confrontado ainda com a oscilação de preços na média de 25% a cada ano
(GOMES, 2006). Esta situação está relacionada com a inexistência de garantias contratuais, em
Goiás apenas 5,3% do leite comercializado no mercado formal é negociado com contrato
estabelecido entre produtor e lacticínio (GOMES, 2009).
Para Piracanjuba especificamente, investigação de Martins (2006) realizada em 2000 e 2001,
encontrou 40% de propriedades trabalhando com prejuízo.
Resultados preliminares de levantamentos que fizemos em 21 fazendas, e que estão em fase de
conclusão, indicam uma margem de rentabilidade abaixo de 0,3%/mês. Isto representa metade da
rentabilidade da poupança, e um terço do rendimento que um investimento em imóvel pode
proporcionar.
3.3 - As relações de trabalho
A grande maioria dos trabalhadores permanentes, 90%, ganha até dois salários mínimos.
A média salarial dos trabalhadores pesquisados é de 1,74 salários mínimos.
A produtividade na ordenha manual é de 100 a 300 l/dia por parte de 70% dos trabalhadores. Já
na ordenha mecânica um número próximo, 67,50 % dos trabalhadores, ordenham por dia mais de
300 l.
A renda familiar per capita média é de 0,84 salários mínimos.
Há uma melhora da renda per capita nas fazendas com ordenha mecânica, ainda que relativa.
Nas fazendas sem ordenha, 45,38% dos trabalhadores informaram uma renda per capita familiar
inferior a 0,5 salário mínimo, o que colocaria essas famílias na linha de pobreza. Elas escapam da
9
pobreza pelo fato da grande maioria, 82% dos entrevistados, residir nas fazendas e contar com
vantagens não monetárias em forma de leite, energia e aluguel. Nas fazendas com ordenha
mecânica o percentual de famílias que vivem com renda per capita inferior a 0,5 salários mínimos
cai para 7,5%.
Nossa pesquisa constatou a longa jornada de trabalho na pecuária leiteira e a inexistência do
direito ao descanso semanal: 84,62% dos trabalhadores entrevistados informaram trabalhar 10
horas ou mais diariamente; desses, 31% afirmaram trabalhar mais que 12 horas diárias.
Quanto ao descanso remunerado, 56,16% não tem acesso a este direito.
Tabela 2: Descanso remunerado
Descanso remunerado
%
Não tem
55,38
Uma tarde por mês
0,77
1 dia por mês
17,69
1,5 dias por mês
2,31
Quinzenal
9,23
Semanal
13,08
Dois dias por semana
0,77
Trabalhador em regime parcial
0,77
Total
100,00
Fonte: Pesquisa de campo 2001/2002
Assim, para 73% dos trabalhadores a jornada semanal é superior a 70 horas.
A intensificação da produção não melhora o padrão das extensas jornadas de trabalho. Nas
fazendas com ordenha mecânica o percentual de trabalhadores com jornada superior ou igual a
10 horas se eleva para 87,50% contra 82,22% nas fazendas sem ordenha mecânica. Quanto ao
descanso semanal remunerado há uma pequena melhora: o percentual dos trabalhadores que
não tem direito a descanso algum cai para 50%, contra 58,89% nas fazendas sem ordenha.
O percentual de trabalhadores em Piracanjuba que tem registro em carteira é de 50%, índice bem
superior ao encontrado pela pesquisa da EMBRAPA realizada em 1997 no estado de Goiás
(Bressan, 1999) de apenas 16,8% de trabalhadores com registro em carteira.
10
A reação à má qualidade dos empregos é a alta rotatividade. Foi indagado há quanto tempo o
entrevistado estava trabalhando naquela propriedade, metade estava no emprego havia menos de
seis meses.
Tabela 3: Rotatividade
Tempo de permanência na fazenda
%
Menos de 3 meses
30,00
De três meses a seis meses
20,00
De seis meses a um ano
10,77
De um ano a três anos
16,15
Mais de três anos
22,31
Não respondeu
0,77
Total
100,00
Fonte: Pesquisa de campo 2001/2002
Este dado explica em larga medida o forte fluxo migratório e o esvaziamento das regiões de
economia rural em Goiás.
As condições de trabalho verificadas não se restringem apenas ao trabalhador. Também o
produtor, familiar ou não, em sua maioria submete-se ao trabalho pesado para garantir o leite de
cada dia da mesa do brasileiro. São extensas suas jornadas, não há domingo, não há feriado, não
há temporal ou calor escaldante que interrompa a labuta contínua do leite.
4 - Intensificação dos sistemas de produção e desenvolvimento local
A má qualidade do emprego e os níveis baixos da rentabilidade da pecuária leiteira em
Piracanjuba repercutem no desenvolvimento local, ou melhor, na falta deste.
Não há diferenças significativas entre os níveis de pobreza registrados em Piracanjuba e as
médias de Goiás. As famílias com renda domiciliar per capita inferior a meio salário mínimo,
identificadas pelo Censo 2000 – quando Piracanjuba já havia triplicado sua produção de leite –
representavam 19,12% em Piracanjuba e 19,67% em Goiás. Os dados do MDS apontam 18% de
famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família em Piracanjuba (19,7% Goiás) e 37% (Goiás
38%) de famílias pobres cadastradas no Cadastro Único do MDS no ano de 2010.
Já quanto aos níveis de renda do trabalho, há diferenças entre Piracanjuba e as médias de Goiás.
Em Piracanjuba, segundo o Censo 2000, 30,53% dos trabalhadores recebiam menos de um
salário mínimo enquanto que a média de Goiás era de 26,01%. A diferença se mantém quando
11
olhamos as faixas salariais até dois mínimos: em Piracanjuba 64,63%, enquanto a média goiana
representa 58,04%. Nossa pesquisa de campo realizada em 2008 indicou um percentual de
34,58% de trabalhadores recebendo até um salário mínimo e 75,93% até dois salários mínimos,
dado que é coerente com os resultados da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar – PNAD,
Goiás: 36,55% de trabalhadores sem rendimento ou abaixo de um salário mínimo, e 70,1% de
trabalhadores com salário até dois salários mínimos.
Quando confrontamos os salários médios pagos na área urbana e rural em Goiás levantados pelo
PNAD 2008 fica clara a problemática de Piracanjuba. Abaixo de um salário mínimo estão 55,85%
(média de Goiás 36,55%) dos salários pagos no campo; abaixo de dois salários mínimos estão
81,43% (Goiás 70,1%). E a média salarial paga no campo, R$ 628,00 é um terço menor em
relação à média paga na cidade, R$ 994,00 (PNAD, Goiás, 2008).
Trabalha-se mais para receber menos. O Censo 2000 identificou 45,57% (Goiás 33,08%) das
pessoas ocupadas em Piracanjuba trabalhando mais de 49 horas semanais, e 65,63% (Goiás
51,92%) trabalhando mais que as 44 horas determinadas por lei.
Trabalha-se mais, recebe-se menos, e não há o acesso universal às garantias trabalhistas legais.
O Censo 2000 identificou apenas 22,89% de trabalhadores com carteira assinada em Piracanjuba,
contra 31,94% em Goiás. Nossa pesquisa de campo realizada em 2008 identificou 21,38% de
trabalhadores com carteira assinada, o que indica que não houve progresso. Os dados do
Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED, apontam em 2010 apenas 2691
empregos formais em Piracanjuba, dos quais, quase um terço são funcionários da administração
pública.
O esforço pela criação de riqueza por parte da população de Piracanjuba evidencia-se no
aumento da produção leiteira, que ao longo da década de 1990 quadruplicou, e do PIB per capita,
que triplicou. Mas não foi capaz de reduzir a pobreza, elevar os níveis de renda, elevar os níveis
dos salários, a qualidade do emprego. Todos estes indicadores mantiveram-se constantes, iguais
ou abaixo das médias de Goiás.
5 - Intensificação da produção leiteira e os impactos ambientais
Nossa pesquisa de impacto ambiental ainda não foi iniciada e dispomos apenas de algumas
indicações preliminares.
A pecuária leiteira dentre as atividade rurais tem menor impacto sobre a biodiversidade e é menor
a escala de utilização de agrotóxicos e adubos químicos. A intensificação da produção leiteira tem
exigido dos produtores um uso mais racional das pastagens, cuidados com a fertilidade do solo e
com a qualidade da água. Em Piracanjuba a presença da assistência técnica, juntamente com a
12
atuação do Ministério Público e do sindicato rural têm garantido a preservação das reservas
permanentes e legais.
As limitações existem em função do modelo tecnológico proposto. A matriz leiteira de sangue
predominante holandês tem um desempenho pouco eficiente em regiões quentes como o CentroOeste brasileiro. Não é um animal adaptado ao calor e não é adaptado às pastagens pobres de
braquiária brizantha. Por isto seu desempenho é muito inferior ao desempenho, por exemplo, em
regiões do Sudeste brasileiro. As médias de curral em Piracanjuba não conseguem passar dos 10
ou 12 litros/dia. O aumento da produtividade está sendo conseguido à custa do aumento
exponencial de insumos – rações e volumosos – que, no caso das rações são comprados fora da
propriedade. Mas não parece racional, nem economicamente, nem ambientalmente, fornecer
diariamente 2,3 kg de ração para obter em média apenas 10 l/leite/dia. E há ainda o problema
grave dos ectoparasitas, carrapatos e moscas do chifre, que atacam os animais de sangue
predominante taurino, e que estão praticamente fora de controle. Nossas pesquisas indicam que
os produtores fazem banhos de carrapaticida em intervalos médios de 18 dias, gerando
problemas tanto da segurança do produto para o consumidor, como para o aplicador do veneno.
Está posto o desafio para que a pesquisa, em interação com a experiência dos produtores,
desenvolva sistemas adequados para as regiões do Centro Oeste, intensificando a pesquisa
genética e encontrando animais melhor adaptados à região. É necessário diminuir a utilização de
insumos externos e aumentar a eficiência das pastagens. É necessário ainda, do ponto de vista
do equilíbrio ambiental, promover a integração de culturas e atividades rurais, aumentando a
diversidade das fontes de renda.
6 - Intensificação da produção leiteira e os impactos sociais
Os dados sobre a situação do emprego e da renda tanto nas propriedades leiteiras, como do
município como um todo indicam um situação bastante medíocre. O crescimento exponencial da
riqueza produzida e que se explicita na triplicação do PIB per capita não foi capaz de ampliar as
oportunidades e a inclusão social em Piracanjuba. Aparentemente, dado a ser confirmado ainda
por pesquisa, a renda adicional gerada no período estudado foi apropriado pelos segmentos
industriais e comerciais da cadeia produtiva e que estão sediadas fora da região5.
5
O relatório do grupo de pesquisa Programa de Estudos do Negócio Agroindustrial (PENSA) da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA – USP) - Mapeamento e Quantificação da Cadeia do Leite, 2005
enumera os diversos grupos industriais e comerciais que vêm obtendo lucros crescentes com o agronegócio do leite:
A indústria de produtos veterinários: o rebanho leiteiro constitui apenas 18% do rebanho bovino total, no entanto, ele
responde por 29% dos negócios do setor no mercado de bovinos. Chama atenção a concentração de 36,5% do faturamento
em apenas quatro empresas;
A indústria de rações: o Brasil constitui o terceiro maior produtor de rações do mundo, sendo que 73% das rações são
consumidas pelo rebanho leiteiro bovino. Evidencia-se aí novamente a discrepância entre o tamanho do rebanho leiteiro
bovino – apenas 18% do rebanho bovino total - e o tamanho dos negócios que proporciona à indústria;
13
No centro da questão social da pecuária leiteira situa-se o não reconhecimento do produtor de
leite e de seus funcionários como “cidadãos econômicos”. Este termo é utilizado pelo cientista
político alemão Elmar Altvater (2004) para caracterizar a mudança de paradigmas operado pelo
avanço do capitalismo na Europa.
Em suas origens o mercado capitalista estabeleceu uma
igualdade formal e uma relação de liberdade na medida em que os proprietários de mercadorias
“só efetuam a transação, a compra ou a venda da sua mercadoria se julgarem que isso lhes é
favorável ou razoável “(SILVA, 2001, p.27). Constitui-se assim o cidadão econômico, livre para
produzir, para vender (inclusive sua força de trabalho) e para fixar seus preços. Esta liberdade é
uma conquista diante do sistema que o precede, o mercantilismo. No mercantilismo a atividade
econômica dependia da determinação e do consentimento dos grupos que tinham o monopólio
daquela atividade econômica específica. Das aristocracias rurais que tinham o monopólio da terra,
das corporações de mercadores que tinham o monopólio do comércio, ou das corporações de
oficio que tinham o monopólio das produções artesanais. Preços, formas de produção, taxas de
lucro, salários, mercados para a comercialização, eram todos regulados e controlados pelas
corporações.
O capitalismo da periferia não se constituiu tendo o mercado livre como fundamento. O autor
Marvin Brown (2010) sustenta a tese que o capitalismo desde seu início teve dinâmicas muito
diferentes no centro e nas periferias, e que os defensores do liberalismo sempre preferiram
ignorar este fato. Ele contesta Adam Smith quando este credita a riqueza das nações no Século
XVII e XVIII à “mão invisível do mercado” e ao “interesse egoísta do açougueiro, do padeiro ou do
cervejeiro”. Muito mais relevantes, segundo Brown (2010), para a criação da riqueza da Inglaterra
naquele momento foram as grandes plantações de fumo baseadas em mão de obra escrava na
Virgínia e em Maryland, guiadas pelas mãos muito visíveis dos proprietários e comerciantes de
escravos. Os liberais John Locke (ele próprio investidor da Royal Africa Company, companhia que
traficava escravos) e Adam Smith sempre preferiram ignorar este lado opressor e escravizante do
capitalismo que naquele momento expandia. O autor aponta que até 1831 o fluxo de escravos
africanos para os EUA superava em número o fluxo de imigrantes europeus, tal a importância do
trabalho escravo. Ilustrativa desta ambiguidade é ainda a história da East Indian Company
(Companhia das Índias Orientais), corporação comercial que atuava na Índia, e, mesmo após a
A indústria de embalagens, em especial de cartonagens: tem realizado altos lucros em função da grande participação do leite
UHT no total de leite fluido, 89% do total. Segundo Martins (2004) a embalagem cartonada custa mais que a matéria prima
no custo final do leite UHT;
A indústria de melhoramento genético: cresceu entre 2000 e 2005 à taxa de 30%, o dobro do crescimento do PIB brasileiro;
A indústria de ordenha e refrigeração: movimentou cerca de R$ 4,3 bilhões em 2004;
A indústria de adubos e defensivos: movimentou cerca de R$ 79 milhões em 2004. A indústria de sementes também teve
uma grande expansão em função das culturas de silagem de milho.
Um dado adicional chama a atenção: em 2008 grupos de investimentos compraram laticínios em função da alta lucratividade
deste segmento.
Estudo de Martins (2004 p. 128) sobre cadeias produtivas de leite no Brasil, que abrangeu também Piracanjub a, concluiu que
“todas as propriedades são desprotegidas e em todas ocorreram transferências de recursos para a economia”.
14
cassação generalizada das patentes de exclusividade das corporações efetuada pela Revolução
de 1648 na Inglaterra, manteve a exclusividade dos negócios na Índia (DOBB, 1987, p.179).
O povo norte americano fez uma revolução interna e estabeleceu as bases para o efetivo
exercício da cidadania econômica, as atividades passaram a ocorrer sem tutela e sem
constrangimentos. Esta revolução nunca ocorreu no Brasil e nossos processos econômicos
sempre seguiram subordinados aos interesses dos países do centro.
No momento da globalização, quando empresas transnacionais em todo mundo subordinam as
economias locais às suas demandas, em países como Brasil a falta de liberdade no campo
econômico se potencializa.
Esta é a dificuldade do produtor e do trabalhador da pecuária leiteira. Sendo os elos mais fracos
da cadeia produtiva, enfrentam de uma só vez a postura preconceituosa da sociedade brasileira,
marcada pela tradição escravagista e do coronelismo, onde o trabalho braçal era considerado
indigno e a cultura rural como atrasada e inferior, como também o peso do “mercado”, agora de
escala mundial, aparentemente incontrolável. Esta é a origem da baixa rentabilidade da produção
leiteira, mesmo após sua reestruturação e adequação aos padrões vigentes de organização
empresarial.
Da porteira para dentro o produtor deve agir como empresário. Da porteira para fora ele deve
abdicar desta condição, entregar seu produto sem nenhum tipo de negociação prévia, sem
contrato formal, sem garantias de nenhum tipo. Hoje em agosto de 2010, no momento de uma
seca intensa os preços pagos situam-se 15% abaixo dos níveis de 2007, três anos atrás.
Esta racionalidade compromete a geração de progressos sociais.
Conclusão
Analisando o processo de intensificação da produção leiteira sob o viés do aumento ou não da
sustentabilidade, retomamos as questões postas inicialmente.
A riqueza adicional gerada pela intensificação da produção foi desconcentrada, viabilizando
economicamente o produtor rural, ou foi absorvida pelos elos industriais e comerciais da cadeia
produtiva? Nossos dados sugerem que a riqueza adicional gerada aparentemente foi apropriada
por grupos econômicos situados fora do território, e que neste momento, ao nível dos preços
praticados, não está beneficiando os produtores rurais, seus familiares e os trabalhadores
envolvidos na produção.
Ao produtor rural abriu-se uma perspectiva de cidadania econômica, entendida como a liberdade
para ir ao mercado, vender balizado por relações contratuais e fixar preços? Sua rentabilidade é
15
compatível com as margens de lucro praticadas na economia em geral? A rentabilidade do
produtor, de 0,3%/mês na média anual está muito abaixo das margens praticadas na sociedade e
no médio prazo caminha para inviabilizar a atividade. Não houve avanços politico-institucionais,
não se estabelecem contratos entre produtor e indústria, não há nenhum tipo de negociação
prévia, os preços são impostos unilateralmente por parte da indústria.
A intensificação da produção beneficiou economicamente familiares e funcionários envolvidos na
produção e melhorou a qualidade de seu trabalho? Aumentou o índice de formalização do
emprego, melhora que de certa forma é neutralizada pela eliminação dos postos de trabalho que a
intensificação provoca. As jornadas de trabalho aumentaram para todos os envolvidos na
produção, produtores e funcionários e a intensidade do trabalho também. As melhoras salariais
não são proporcionais aos ganhos em produtividade.
A intensificação da produção contribuiu para desconcentrar regionalmente a riqueza, beneficiando
o desenvolvimento local e regional, gerando perspectivas de negócios, elevando o padrão da
renda e a qualidade dos empregos do local? Aumenta a possibilidade de opções de negócios no
local e na região. Citamos o ramo da produção de insumos, produtos veterinários, produção e
manutenção de maquinário. Seriam necessários, no entanto, ações de estímulo para que
efetivamente estes negócios sejam instalados. Abre-se ainda a possibilidade de ações de
assistência técnica variada para biólogos, veterinários, engenheiros agrônomos, zootecnistas,
assistentes sociais, mas a baixa rentabilidade da atividade é fator impeditivo para a expansão da
assistência.
A intensificação da produção foi capaz de fornecer leite em quantidade e qualidade adequados à
necessidade da população local e regional? Ocorreu sim ampliação da oferta de leite e os níveis
crescentes de controle de qualidade tendem a garantir a segurança do produto para o
consumidor.
O leite é essencial para a sobrevivência humana. A intensificação da produção ampliou o acesso
ao produto por parte da população? A queda de preços no início da década de 1990 ampliou o
acesso da população ao produto. Hoje este acesso vem restringindo-se novamente, até pela
difusão do consumo de leite UHT (que domina 90% do mercado), cuja embalagem encarece
sobremaneira o produto final.
A intensificação da produção se deu preservando o equilíbrio ambiental, a biodiversidade e os
recursos naturais disponíveis na região? Nossas avaliações iniciais indicam a necessidade de
evolução dos modelos tecnológicos. Em que pese o mérito da disposição para a inovação que
caracteriza o conjunto dos esforços da intensificação da produção, o modelo praticado, alicerçado
16
na matriz leiteira de sangue predominantemente holandês não parece ser o mais adequado do
ponto de vista da utilização racional dos recursos naturais disponíveis na região Centro Oeste..
As avaliações sobre a pecuária leiteira em Goiás costumeiramente indicam a necessidade de
intensificar mais a produção para melhorar a rentabilidade, ao mesmo tempo em que recomendam
a racionalização os fatores produtivos. Tendo a sustentabilidade como perspectiva de futuro, não
parece ser esta a saída mais adequada. Mais correta é a abordagem multidimensional, e a
combinação de açoes no campo da pesquisa, da assistência técnica e no campo político
institucional.
A pesquisa em Piracanjuba aponta para a necessidade de afastar-se das políticas que viabilizam
apenas o elo industrial e o elo da comercialização no interior das cadeias. Priorizar o trabalhador
rural e o pequeno e médio produtor para garantir sua permanência no campo e estimular o
desenvolvimento local e regional. Esta conclusão pode parecer simples, mas contraria poderosas
lógicas que movimentam a nossa sociedade.
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Intensificação da Produção Leiteira em Região do Centro