Razão e Progresso na Filosofia da História de Hegel
Carlos Prado
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Razão e Progresso na Filosofia da História de Hegel
Carlos Prado
Mestre em Filosofia pela UNIOESTE Campus de Toledo
Resumo: O objetivo do presente artigo é apresentar e analisar os principais
pontos em torno da filosofia da história de Hegel. Sua tese afirma que a História
é um processo racional e pré-determinado. Trata-se de uma teodicéia, na qual as
civilizações ultrapassaram estágios progressivos e determinados até alcançarem
a liberdade. Para compreensão dessa filosofia da história trataremos de expor
conceitos essenciais como, razão, espírito, Estado e progresso.
Palavras-chave: Filosofia. História. Razão. Espírito. Liberdade.
Reason and Progress in the Philosophy
of the History of Hegel
Abstract: The objective of the present article is to present and to analyze the
main points around the philosophy of the history of Hegel. His thesis argues
that history is a rational process and pre-determined. This is a theodicy in
which civilizations evolves progressive stages until they reach the liberty. To
understand this philosophy of history will try to expose the key concepts such as
reason, spirit, state and progress.
Keywords: Philosophy. History. Reason. Spirit. Liberty.
O homem não é por natureza o que deveria ser;
ele só alcança a verdade pelo processo da transformação”
(Hegel, Filosofia da História, p. 351)
Introdução
Hegel é um dos poucos filósofos que construíram um verdadeiro sistema, que expressasse
à unidade do todo numa síntese universal. Seu sistema busca explicar tudo. Trata-se de
uma visão global de toda realidade, elaborada a partir de princípios determinados. Como
sucessor direto de Fichte e Schelling, Hegel constrói uma filosofia própria buscando
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pensar o homem e a sua história, para encontrar o cerne racional do qual brota o devir
histórico.
Foi durante os anos em que permaneceu em Iena (1801-1807) que surgiram as primeiras
concepções de Hegel sobre a filosofia da história. O esboço dessa filosofia aparece em
artigos publicados no jornal Crítica da Filosofia, editado por seu colega Schelling. Não
obstante, a Filosofia da história de Hegel, foi publicada apenas em 1837. Trata-se de uma
obra póstuma que foi editada por seus alunos e discípulos, a partir de suas notas de aula.
Hegel é um filósofo da totalidade e sua filosofia da história é de fundamental importância
para que se alcance uma melhor compreensão sobre o seu sistema filosófico.
A Filosofia da história de Hegel é uma importante obra para a compreensão do
desenvolvimento da historiografia, já que sua visão da história apresenta características
de varias escolas. As concepções hegelianas sobre a história surgem dialogando com a
história teológica e com a história iluminista. Seu pensamento aparece como uma síntese
do pensamento histórico que o antecedeu. Hegel traz em suas teses as características
marcantes da história cristã, concebendo o desenvolvimento histórico como um plano
divino e da história progressista, fundamentada no Esclarecimento e na noção de progresso
característica do período moderno.
A história no período medieval tem como característica marcante a visão cristã dos
acontecimentos. Trata-se de uma história escrita no interior dos mosteiros que apresenta a
relação entre os fatos e o divino, sem uma concepção crítica por parte desses historiadores
vinculados a Igreja Católica. Por conseguinte, se construiu uma visão teológica da história
que compreende o movimento histórico como uma manifestação do projeto de Deus. Essa
é uma das principais características da história monástica; a interpretação providencial dos
acontecimentos históricos, ou seja, a vontade divina como fator determinante do processo
histórico. A partir dessa concepção teológica, monges e bispos buscaram escrever grandes
histórias universais.1
Posteriormente, os filósofos do século XVII e XVIII se voltam para a história buscando
encontrar nela o predomínio da razão e do progresso.2 Voltaire, por exemplo, além de
ter contribuído muito para a erudição na escrita e pesquisa histórica, buscou escrever
uma história universal, a partir da compreensão da evolução das sociedades, da história
dos homens. Trata-se de uma história idealista, mas que não é determinada pela vontade
divina, mas pela evolução dos costumes e das idéias. Voltaire, assim como outros filósofos
iluministas, é um defensor da razão, do homem como determinante de si mesmo e da
noção de progresso baseado no esclarecimento.
Michelet é outro historiador que busca encontrar um nexo comum na história da
humanidade. Na sua obra Introdução a história universal, ele não busca apenas escrever
uma história total, mas também se esforça para encontrar um sentido na história, uma
1
Um dos mais importantes historiadores que se insere nessa tradição é Bousset. Em sua obra Discurso sobre a
história universal, a história é tratada como a realização da vontade divina, cabendo ao historiador descrever esse
designo providencial.
2
Segundo Caire-Jabinet (2003, p. 84): “Os filósofos do século XVIII como Montesquieu e Voltaire escrevem a
história da “civilização” com a finalidade de compreender sua época. Nessa perspectiva, a história é posta a serviço
da noção de progresso rumo ao qual a humanidade tenderia no futuro.”
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razão. Tal sentido é o que ele chama de “a unidade da história do gênero humano”.
Segundo Michelet essa unidade é está presente no confronto permanente entre o homem
e a natureza. Por conseguinte, a história nada mais é do que a narração desse combate
sem fim.
A concepção da história apresentada por Hegel é herdeira dessas duas tradições distintas.
Hegel, por um lado, de maneira similar a história medieval, concebe a história como uma
teodicéia, como a objetivação do designo de Deus, mas por outro lado, Hegel também
é um filósofo do progresso, da liberdade e da razão, é um iluminista. Ao analisarmos as
concepções da história em Hegel não podemos perder de vista essa relação entre a sua
elaboração e aquelas que o antecederam. Vejamos agora, como é exposta a filosofia da
história de Hegel.
Razão e História
Hegel inicia sua exposição considerando os diferentes tipos de abordagem histórica.
Em sua concepção existem três formas de tratar a história: a história original, a história
refletida e a propriamente filosófica. Segundo Hegel, a primeira forma, a história original,
se reduz a descrição e tradução dos feitos e acontecimentos do presente. Tal abordagem
histórica não contém um grande alcance histórico, mas apenas descreve épocas breves,
trata-se de representar o tempo presente elaborando narrativas e textos informativos sobre
os acontecimentos que os historiadores vislumbram diante de seus olhos. Heródoto e
Tucídides são as maiores expressões desse tipo de abordagem histórica pouco abrangente
e irreflexiva.
O segundo tipo de abordagem histórica é a refletida, que ao contrário da original, ultrapassa
o tempo presente. A história refletida se divide em quatro tipos distintos: 1) a história
geral aborda a totalidade da história de um povo; 2) a história pragmática trata do ensino e
de reflexões morais e é utilizada na formação ética das crianças; 3) a história crítica julga
a veracidade e a credibilidade de outras narrativas históricas; 4) a história conceitual já
busca uma perspectiva geral e, portanto, constitui uma transição para a história universal
filosófica.
O terceiro gênero de abordagem da história é a filosófica. Hegel afirma que ao contrário
dos tipos de abordagens anteriores, que se submetem e ficam presos ao real existente e
seus dados factuais, “à filosófica, são atribuídas idéias próprias, que a especulação produz
por si mesma, sem considerar o que realmente existe.” (1995, p. 16). A tarefa da história
filosófica é produzir uma explicação para os acontecimentos e fatos históricos que são
independentes desses dados e os antecedem conceitualmente. Hegel (1995, p. 17) afirma
que “a história parece estar em contradição com a atividade filosófica”, pois, a história
propriamente dita, atém-se ao existente factualmente e separa a realidade do pensamento.
Por sua vez, a filosofia submete a história ao pensamento de acordo com um sistema
racional.3
3
“Segundo Hegel, apenas para o filósofo há um sentido na história, pois somente ele compreende que a racionalidade
do realizado corresponde à efetividade racional” (KERVÉGAN, 2008, p. 109).
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Para Hegel a filosofia da história deve levar o pensamento para a história e encontrar o
seu nexo racional, pois os acontecimentos históricos não estão desconexos, isolados e
individuais, mas, estreitamente ligados e racionalmente ordenados. A filosofia hegeliana
deixa claro que “a razão governa mundo, e que, portanto, a história universal é também
um processo racional.” (1995, p. 17). Hegel é uma das mais importantes expressões da
filosofia da Aufklãrung, fortemente influenciado pela Revolução Francesa e pelo ideal
do mundo moderno ordenado racionalmente, sua filosofia afirma que “a razão não é tão
impotente ao ponto de ser apenas um ideal, um simples dever-ser, que não existiria na
realizado, [...] Ela é o conteúdo infinito, toda essência e verdade.” (1995, p. 17).
A filosofia da história hegeliana afirma que o mundo é governado racionalmente, pois a
razão está na história, e está, por sua vez, não está entregue ao acaso e a improvisações
aleatórias. Se a razão está na história e é essa força que rege o mundo, o papel do filósofo
é buscar nos acontecimentos e ações que parecem isolados, o seu estreito nexo racional.4
O objeto analisado por Hegel é a história universal e seu problema é descobrir as leis
que regem o devir histórico, leis que não apenas dirigem, mas que se revelam na própria
história.
Para Hegel (1995, p. 17) “o estudo da história universal resultou e deve resultar em que
nela tudo aconteceu racionalmente, que ela foi a marcha racional e necessária do espírito
universal”. Segundo essa concepção a história universal tem sido uma teodicéia5, na qual
os fatos históricos ocorrem obedecendo a uma providência divina e, portanto, necessária
e inevitável para a reconciliação do espírito consigo mesmo.
Hyppolite (1983) afirma que a posição que Hegel assume em relação à história e à razão,
traz à discussão os conceitos de Positividade e Destino. A positividade aparece como o que
é dado e se impõe ao homem do exterior mediante coação e autoridade. Por conseguinte, a
idéia de destino traz à tona a influência da tragédia grega que aparece na filosofia hegeliana
como a manifestação do espírito. O destino é o espírito que se manifesta e se revela na
história, do interior para o exterior, revelando a fortuna de um indivíduo ou de um povo.
A história para Hegel é trágica, pois se a comédia é o homem se elevando e fugindo do
seu destino, por sua vez, a tragédia é o homem reconhecendo e se reconciliando com o
destino.6
4
“Hegel não se fixa pelo acontecimento histórico, procura compreender o seu sentido profundo e descobrir uma
evolução de valores sob uma mudança de instituições. [...] Apreender as transformações do espírito do mundo,
adaptar o pensamento ao devir espiritual, tal é em primeiro lugar o objetivo de Hegel.” (HYPPOLITE, 1983,
p.29).
5
“A filosofia da história é a verdadeirateodicéia. Mas em Hegel esse tema tem sentido bem diverso do que nos
românticos, enquanto em Novalis ou Shlegel a afirmação do sentido teológico da história visa humilhar as pretensões
da razão esclarecida, a teodicéia histórica de Hegel desenvolve uma racionalidade que as luzes cometeram o
equívoco de conceber segundo o entendimento finito. Para que o Estado racional possa assegurar a reconciliação
do espírito consigo mesmo, é preciso afastar o risco de uma ruptura inseparável da vida ética.” (KERVÉGAN,
2008, p. 108).
6
“Compreender o espírito de um povo, o seu destino, não consiste, com efeito, em justapor singularidades históricas,
mas em penetrar o seu sentido; o destino não é uma força brutal, é interioridade que se manifesta na exterioridade,
revelação da vocação do indivíduo. Portanto, para apreender o destino de um povo, é preciso efetuar a “síntese
originária” que Hegel vai buscar em Kant, mas que aplica às realidades espirituais e que entendo sob uma forma
viva – um sentido.” (HYPPOLITE, 1983, p. 48).
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A determinação da razão ou a natureza do espírito
Após esclarecer que a história universal é dirigida por um princípio racional, Hegel expõe
a determinação desse princípio. Trata-se de analisar a determinação em si da razão, ou
seja, trata-se de revelar a determinação do espírito que governa o mundo. A razão ou
espírito é definido como substância, conteúdo, matéria ativa e consciente para sua própria
atividade. Se “a razão é o pensar livre e determinante de si mesmo” (HEGEL, 1995, p. 19)
ela não se constitui de material externo, não necessita de meios dados exteriores, pois ela
é pura inquietude, atuação e produção que se alimenta de si mesma. Os pressupostos que
coordenam sua atividade incessante não são encontrados nos fatos exteriores, mas nela
mesma, na própria interioridade do espírito.7
Ao definir a natureza do espírito, Hegel (1995, p. 23) diz claramente que “a substância,
a essência do espírito, é a liberdade.” E se o espírito parece ter outras propriedades,
“a filosofia, ensina-nos que todas as propriedades do espírito só existem mediante a
liberdade, são todas apenas meios para a liberdade, todas procuram e a criam.” A filosofia
especulativa de Hegel não deixa dúvidas de que “a liberdade é a única verdade do espírito.”
A substância que rege o mundo e produz o devir histórico se revelando na própria história
é a liberdade. Ela é a natureza e essência que conduz a história universal por diversos
estágios, que são etapas necessárias para a reconciliação do espírito, ou seja, para a que
cada homem se torne consciente dessa substancialidade.
O espírito, como foi dito, é em si e por si, sua unidade e substância não se encontram
na exterioridade, mas na sua interioridade, pois o espírito esta em si mesmo. Essa é a
natureza da liberdade, é a sua independência. A independência de outro, de algo externo,
que não está em si mesmo é o que caracteriza o homem livre. Quando sou dependente de
outro que não sou eu, me relaciono com algo fora de mim e não sou por mim mesmo, não
sou livre, pois segundo Hegel (1995, p. 24), “eu sou livre quando estou em mim mesmo.
Esse estar em si mesmo do espírito é a autoconsciência, a consciência de si mesmo.”
Hegel determina que a conscientização e objetivação da liberdade é o nexo racional que
governa a história universal. O progresso na consciência da liberdade é fio condutor das
transformações históricas, das ações e acontecimentos que pareciam estar desconexos.
“A história universal começa com o objetivo geral de que o conceito seja satisfeito em
si, quer dizer, como natureza; ele é o instinto inconsciente interior mais profundo, e todo
trabalho da história universal é trazê-lo à consciência” (HEGEL, 1995, p. 29).
As grandes civilizações representam estágios necessários que o espírito precisou
ultrapassar para o homem adquirir a consciência de que é livre e transformar essa
consciência, ainda subjetiva em realidade. A filosofia de Hegel (1995, p. 67) afirma que
“a história universal é, de maneira geral, a exteriorização do espírito no tempo, enquanto
a natureza é o desenvolvimento da idéia no espaço.” A história universal aparece para
Hegel, como o processo no qual o espírito que abandona a si mesmo, se reconhece e se
desenvolve no tempo e no espaço, retornando a si mesmo. A liberdade em si mesma,
enquanto substância do espírito é a única finalidade da história racionalmente ordenada.
7
“O espírito [...] não possui a unidade fora de si, ele a encontrou. Ele é em si mesmo e por si mesmo. A
matéria tem a sua substância fora de si; o espírito é o ser por si mesmo.” (HEGEL, 1995, p. 24).
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Todas as realizações da história universal convergiram para esse objetivo final, para o
auto-reconhecimento do espírito.8
O indivíduo na História
Uma vez determinada à natureza do espírito, Hegel se preocupa em investigar os meios
de realização desse princípio, ou seja, como a liberdade se produz no mundo se revelando
na própria história. A liberdade até agora foi analisada apenas como um princípio geral e
abstrato. O espírito que governa o curso da história universal aparece como algo interior
e verdadeiro, mas que ainda é subjetivo, que está em nossos pensamentos e não tem
existência. Hegel trata agora do segundo momento, o da realização da idéia.
O meio para a realização do princípio “é a vontade, a própria atividade humana. Apenas
por meio dessa atividade é que esse conceito e as suas próprias determinações serão
concretizadas, pois eles não vigora diretamente por si mesmos.” (HEGEL, 1995, p. 27). O
Espírito só pode se manifestar na história por meio da atividade humana, a liberdade é um
conceito interior e só ganha existência, ou seja, torna-se algo exterior, mediante as ações
dos homens. Surge uma nova questão; o que mobiliza a atividade humana? Hegel (1995,
p. 27) afirma claramente que o que movimenta o homem “é a necessidade, o instinto, a
tendência e a paixão do homem.” A vontade subjetiva é o fator que atua e exterioriza a
idéia que é interior.
A atividade humana, meio pelo qual o Espírito se exterioriza e ganha existência, é uma
atividade na qual o homem busca satisfação. A ação humana é sempre direcionada a um
objetivo, a um fim em particular, no qual o homem se empenha para alcançar um proveito
determinado que lhe agrade. Em uma passagem quase poética, Hegel (1995, p. 28) afirma
que “nada de grande acontece no mundo sem paixão.”9
O homem não atua apenas interessado em um interesse geral, mas em última instância, o
empenho de sua atividade tem por objetivo sua própria satisfação, sua atividade carrega
conscientemente um conteúdo particular e não geral. Não obstante, mesmo uma atividade
dirigida a um objetivo particular alcança algo mais abrangente, algo que não estava na
consciência do autor que a realiza. Mesmo os grandes homens da história, os indivíduos
históricos universais, como Alexandre da Macedônia, Júlio César e Napoleão, cujos fins
particulares carregam a substância da vontade universal, não tinham a consciência da
idéia. Esses administradores do Espírito, não tinham a consciência de que sua atividade
carregava em si, a manifestação do espírito universal.
Não obstante, Hegel destaca que “os grandes homens buscavam apenas a própria satisfação
e não satisfazer os outros.” Mas a satisfação dos grandes homens não é a mesma dos
homens comuns. Os grandes homens buscam uma satisfação superior, buscam grandes
8
“A História toda se torna como que uma espécie de strip-tease do Espírito, se revelando a si próprio,
tomando consciência e posse de si por uma liberdade cada vez maior.” (NÓBREGA, 2005, p. 71).
9 “Paixão é o lado subjetivo, formal, da energia, da vontade e da atividade, no qual o conteúdo ou o
objetivo ainda permanecem indeterminados. O mesmo se encontra na própria convicção, no próprio
pensamento e na própria consciência. Sempre depende do conteúdo de minha convicção, do objetivo da
minha paixão, se um ou outro é de natureza verídica.” (HEGEL, 1995, p. 29).
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feitos históricos, a glória e a eternidade, enquanto que os homens comuns se satisfazem
na vida privada. Por isso, as ações dos grandes homens, chamados por Hegel de “guias
das almas” tem um caráter universal e superior as ações do homem comum.10
Portanto, os indivíduos históricos atuam na história segundo as determinações de sua
vontade subjetiva que visa um fim particular, todavia, suas ações inconscientemente têm
um alcance muito maior, se tornando expressão da vontade do espírito universal.11 São
fins particulares desejados que alcançam fins universais inconscientes, resultado da busca
de glórias histórico-universais dos “administradores do espírito universal”.
O Estado como a configuração existencial da liberdade
A filosofia de Hegel contém uma das mais importantes elaborações sobre o conceito de
Estado. Em obras como a Filosofia do Direito e também na sua Filosofia da História, o
Estado é tema central da sua análise. Este conceito já foi objeto de pesquisa de inúmeros
livros e trabalhos importantes. Desenvolver uma análise sistemática sobre o conceito de
Estado em Hegel é um objetivo que escapa as intenções do presente artigo. Por conseguinte,
não vamos nos aprofundar no debate acerca do Estado em Hegel, apenas traçaremos os
pontos fundamentais desse conceito, conforme exposto e na filosofia da história.
Depois de determinar a natureza do Espírito, Hegel expôs os meios para a sua realização na
história, nesse sistema o Estado aparece como o terceiro momento. Trata-se do momento
material, no qual a idéia realizada pela atividade humana ganha configuração existencial.
O Estado aparece em Hegel (1995, p. 39) como “a realidade na qual o indivíduo tem
e desfruta a sua liberdade, como saber, crença e vontade do universal.” O Estado é a
realização da liberdade é a configuração na qual a idéia ganha vida, se objetiva.
Se o Estado é a forma existencial da liberdade, que é a natureza do espírito, logo, Hegel
chega à conclusão de que só fazem parte da história universal os povos que constituíram um
Estado. Os povos que não formaram um Estado, são povos sem história, estão excluídos
da história universal, pois esses povos não conheceram a configuração existencial da
liberdade. Segundo a interpretação de Hegel são povos pré-históricos e, por isso, não
despertam nenhum interesse à filosofia da história.
A finalidade absoluta do Estado é garantir a liberdade dos homens e, portanto, existe em si
mesmo e se conserva em si mesmo. “O Estado é o que existe, é a vida real e ética, pois ele
é a unidade do querer universal, essencial, e do querer subjetivo – e isso é a moralidade
objetiva” (HEGEL, 1995, p. 39). O Estado é a realização existencial da liberdade na
medida em que representa a conciliação entre a vontade subjetiva e objetiva. A unidade
entre a vida particular e a vida pública é encontrada no Estado e se manifesta por meio de
10 “Alexandre da Macedônia conquistou parte da Grécia e depois a Ásia: portanto foi impelido pela mania de
conquistas. Ele agiu graças à sua obsessão pela glória, pela conquista, e a prova de que foi movido por essas
obsessões é que fez exatamente aquilo que lhe trouxe a glória.” (HEGEL, 1995, p. 34).
11 “De fato é a Razão quem dirige a História. E existe uma “astúcia da Razão”, utilizando os homens da História
universal, imbuídos que são, regra geral, da sede do poder da glória, da ambição, para através disto que eles
buscaram restar para a humanidade uma liberdade maior, um estágio superior de civilização em que eles não
pensaram.” (NÓBREGA, 2005, p. 71).
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suas leis universais.12
Sobre essa questão em discussão, se faz necessário explicar o significado de liberdade
em Hegel. Para ele o conceito tem um sentido metafísico e expressa um rompimento
entre Hegel e os filósofos iluministas franceses. Na filosofia hegeliana a liberdade não se
expressa no livre arbítrio dos indivíduos. Por conseguinte, não se trata de uma liberdade
individualista e isolada, confirmada no interesse do indivíduo por si mesmo, mas, pelo
contrário, se trata de uma liberdade que se expressa na integração do indivíduo no todo.13
Hegel se defende das acusações de que o Estado, ao contrário do que ele desenvolve, não
representa a realização da liberdade, mas, a sua limitação. Para Hegel, a concepção de
que o Estado limita a liberdade natural é uma idéia individualista e isolada de liberdade.
Não obstante a limitação dos instintos, da cobiça e da paixão aparecem como momento
necessário para a realização da liberdade como um todo, pois “tal limitação é pura e
simplesmente a condição da qual surge a liberdade, sendo a sociedade e o Estado as
condições nas quais a liberdade se realiza” (HEGEL, 1995, p. 41).
O conceito de liberdade em Hegel surge como a integração do indivíduo à cidade, numa
relação em que o homem não reconhece o Estado como uma força estranha, mas reconhece
no Estado sua própria expressão e o trata como sua obra. Hegel (1995, p. 40) afirma que
“No Estado, o universal está nas leis, em determinações gerais e racionais. Ele é a idéia
divina, tal qual existe no mundo. [...] A lei é objetividade do espírito e da vontade em
sua verdade, e só a vontade que obedece à lei é livre, pois ela obedece a si mesma.” A
liberdade aparece como resultado de uma relação harmoniosa entre o indivíduo e o todo,
no qual os homens se reconhecem como parte integrante da cidade, superando a oposição
entre o indivíduo e a comunidade, entre a vida privada e a vida pública.
Hegel (1995, p. 46) ainda acrescenta que: “O mais importante é que a liberdade, como é
determinada pelo conceito, não tem por princípio a vontade subjetiva e a arbitrariedade,
mas sim o conhecimento da vontade geral;” Na elaboração desse conceito, apesar de
tecer severas críticas aos contratualistas14, Hegel parece se aproximar de Rousseau, em
especial, dos parágrafos de Do Contrato Social em que se discuti a passagem da liberdade
natural para a liberdade civil e o conceito de vontade geral.
Para Rousseau o contrato estabelece que todos os homens alienem sua liberdade natural,
impondo limites a ela, pois só assim o indivíduo alcança a sua verdadeira liberdade, uma
12 “É graças à conciliação das duas dimensões, da subjetividade e da objetividade, que o Estado pode
ser considerado racional. Ele é tanto uma realidade (inter)subjetiva, um desejo partilhado de viver
junto, quanto um sistema objetivo de instituições coordenadas de modo dinâmico em uma constituição.
(KERVÉGAN, 2008, p. 104)
13 “A liberdade, [...] transcende o indivíduo e a sua vida privada; é uma reconciliação do homem com o seu
destino, e este destino, encontra na história a sua expressão. A meditação dos filósofos franceses sobre a
liberdade é completamente diversa. De Descartes a Bérgson, a filosofia francesa parece recusar a história;
tende a ser dualista e procura a liberdade numa reflexão do indivíduo em si mesmo.” (HYPPOLITE,
1983, p. 109).
14 Ver: MÜLLER, Marcos L. O Direito Natural de Hegel: pressupostos especulativos da crítica ao
contraturalismo. IN: ROSENFIELD, Denis. (Editor). Estado e política: a filosofia política de Hegel. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. E também: BERNARDES, Júlio. A crítica de Hegel à teoria do contrato.
IN: ROSENFIELD, Denis. (Editor). Estado e política: a filosofia política de Hegel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
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vez que todos estariam submetidos às mesmas leis que foram por eles próprios elaboradas.
Assim, a liberdade civil determina que os indivíduos devem obedecer as leis, mas ao
obedecê-las, Rosseuau e também Hegel afirmam que os homens estão obedecendo a si
mesmos. Para Rousseau a vontade geral não é a vontade da maioria ou o aglomerado de
múltiplas vontades particulares, mas o fator unificador da multiplicidade de contratantes,
o que há de comum em todas as vontades particulares, ou seja, o “substrato coletivo das
consciências”.15
Em Hegel o Estado aparece como a unidade entre o lado subjetivo e o lado objetivo
da idéia, do princípio racional que governa o mundo. O Estado é a instituição que dá
existência e realidade a liberdade. Se quisermos conhecer o espírito, a consciência de um
povo, devemos então, olhar para as configurações de seu Estado, pois é nele que se reflete
a totalidade moral de uma comunidade. As leis, as instituições, o direito, a religião, seus
princípios morais e éticos, etc., estão estampados no seu Estado.
Cada civilização desenvolveu um Estado que refletia o espírito do seu povo, e cada
civilização alcançou um nível de liberdade, que representa um nível de desenvolvimento
ou de reconhecimento do espírito a si mesmo. Vejamos agora, o curso progressivo da
história, reconhecendo os diferentes momentos no desenvolvimento do espírito e
percebendo como o Estado foi crescendo em liberdade.
O curso progressivo da história
O exame da história universal nos revela que os homens e as civilizações são momentos
transitórios. Homens nascem e morrem, impérios surgem e desaparecem. A história
não é estática, pronta e acabada, mas ela é movimento e mudança permanente, puro
devir. Analisando o devir histórico, Hegel percebeu que o curso da história universal é
fundamentalmente progressivo, ou seja, o espírito racional que governa e se revela na
história traz em si a noção de progresso.
Segundo Hegel (1995, p. 53): “há muito que as mudanças que ocorrem na história
são caracterizadas igualmente como um progresso para o melhor, o mais perfeito.” E
acrescenta que a história revela “uma capacidade real de transformação, e para melhor
– um impulso de perfectibilidade.” Assim a história como movimento racional avança
passando por diversos estágios em direção a liberdade, ultrapassando o imperfeito em
direção ao perfeito. Apesar das transformações históricas serem múltiplas, Hegel encontra
neles um elemento unificador e racional que é a busca pela liberdade.
Dessa forma, a história avança progressivamente em direção a um fim, a um objetivo
absoluto, que é a reconciliação do Espírito consigo mesmo, realização da liberdade. Trata-
15 “[...] uma influência que foi sem dúvida capital, a influência de Rousseau. O que, à primeira vista, pode
parecer paradoxal. Em França, sentimo-nos frenquentemente tentados a interpretar o contrato social
como uma obra individualista, porque nela o Estado é considerado como o resultado de um contrato
entre particulares. Na realidade, porém, não foi o contrato, como contrato, que mais atraiu Hegel, mas
sim a idéia de vontade geral. Há uma certa transcendência da vontade geral sobre as vontades individuais
e o facto de considerar o Estado como vontade é, para Hegel, a grande descoberta de Rousseau.”
(HYPPOLITE, 1983, p. 25).
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se de uma evolução progressiva, que ultrapassando estágios determinados avança em
direção a realização do Espírito. “A história universal representa, pois a marcha gradual
da evolução do princípio cujo conteúdo é a consciência da liberdade” (HEGEL, 1995,
p. 55). Cada estágio histórico representa um momento do desenvolvimento do Espírito,
ou seja, representa um nível determinado de consciência da liberdade. Contudo, essa
marcha histórica não ocorre de maneira contínua, unidimensional e sem interrupções,
Hegel também afirma que o progresso pode ser suspenso por determinados períodos,
como o foi durante o período medieval, diante do autoritarismo da Igreja católica.16
O curso da história foi dividido por Hegel em quatro estágios: 1) o mundo oriental é a
etapa mais primitiva do espírito, na qual apenas um sabe e se reconhece como livre; 2) o
mundo grego é o estágio onde a consciência da liberdade alcança uma maior abrangência,
mas é ainda imperfeito e, só alguns homens são livres; 3) o mundo romano, assim como
mundo grego é ainda imparcial e a liberdade é restrita para alguns privilegiados 4) o
mundo germânico é a etapa final do progresso histórico, inaugurada pelo cristianismo e
alcançando a formação do Estado moderno é a sociedade onde todos os homens são livres
como tais. Somente no mundo germânico o Espírito completou seu desenvolvimento e a
liberdade pôde se realizar. Cada civilização representa um novo momento do despertar
do Espírito, suas leis, seu regime político, seu direito e ética, representam um momento
do Espírito na história universal.
Ao determinar as características do mundo oriental, Hegel afirma que o oriente representa
a infância da história. Fazem parte do mundo oriental a China, a Índia, a Pérsia, os povos
que habitavam a mesopotâmia, e ainda a Judéia e o Egito. Segundo Hegel esses povos
careciam do conceito de liberdade e, por isso representam o espírito em sua fase menos
desenvolvida e determinada. Trata-se do espírito como mera espiritualidade natural.
Os Estados do oriente tinham suas leis morais fundadas na própria natureza, como uma
força exterior que impõe deveres e obrigações por meio da coação. “Esse mundo tem
por fundamento a consciência imediata, a espiritualidade substancial à qual a vontade
subjetiva se relaciona primordialmente como fé, confiança e obediência” (HEGEL, 1995,
p. 95). Entre esses povos a liberdade racional não avançou até a liberdade subjetiva. O
Estado se estruturava em torno de uma relação familiar e patriarcal. As relações de poder
e a substancia moral foram determinadas a partir de um centro, que é o soberano ou
patriarca. Este por sua vez, aparece como um déspota e único homem livre, apenas esse
chefe supremo desenvolveu a interioridade expressa na liberdade subjetiva.
“Tudo o que designamos subjetividade está reunido no chefe de Estado, que determina o
que é melhor, salutar e útil para o bem-estar de todos” (HEGEL, 1995, p. 101). A partir
desse poder central se edifica um Estado com uma constituição teocrática e, portanto,
autoritária, impedindo que a interioridade se aflore nos indivíduos. Por conseguinte, a
16 Kervégan (2008, p. 107) afirma que Hegel “Concebe a história como terreno onde a liberdade racional
se afirma ao se objetivar. Todavia, o progresso histórico não ocorre de modo linear, mas segundo um
processo dialético que concebe amplo espaço às figuras da negatividade. É esse o sentido da astúcia da
razão: a razão somente se desenvolve historicamente ao colocar as paixões a serviço de um designo que
ninguém, exceto a filosofia, pode formular.”
R. Mest. Hist., Vassouras, v. 12, n. 2, p. 99-114, jul./dez., 2010
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liberdade subjetiva é determinada de fora, por um poder exterior, portanto, a interioridade
e a consciência da liberdade individual ainda não existem.
A liberdade subjetiva está ancorada nesse sujeito único e nenhum outro indivíduo tem
sua liberdade subjetiva separada desse centro, que aparece como um elemento natural.
No Estado oriental “a lei é vigente por si só, sem permitir essa adesão subjetiva. Na
lei, o homem não reconhece o seu próprio querer, mas o que lhe é totalmente estranho”
(HEGEL, 1995, p. 101). Os homens que obedecem as leis, não as obedecem por convicções
interiores, mas pela coação de forças exteriores. No mundo oriental, primeiro estágio
do desenvolvimento do espírito, a interioridade e a liberdade subjetiva não aparecem
desenvolvidas, por isso as leis surgem como um mandamento jurídico exterior.
O mundo grego é o segundo estágio na evolução do espírito, seguindo a analogia de
Hegel, essa etapa corresponde à puberdade, é a adolescência do espírito. A história da
civilização grega representa um avanço em direção a consciência da liberdade. Se no
mundo oriental apenas um homem era livre, no mundo grego alguns homens são livres. É
nesse estágio do desenvolvimento do espírito que a individualidade começa a se formar
Segundo Hegel, o mundo grego começa com Aquiles e termina com Alexandre da
Macedônia. Determinada por sua própria condição geográfica, a Grécia é uma civilização
ágil e dispersa, com o espírito contrário a monotonia, cheia de estímulo e entregue a
mudança, inundada de realizações e personagens, dos quais Hegel não esconde sua
admiração.
A civilização grega, assim como a romana, surgiu da migração e mistura de tribos, da
confluência das mais diversas nações. O mundo grego se constituiu com a chegada de
povos estrangeiros, que remonta aos séculos XV e XIV a.C. Tal colonização provocou a
mistura entre os nativos e os estrangeiros, formando assim, o espírito grego. Sobre esse
processo, Hegel (1995, p. 193 - 200) destaca que ocorreu “um colonização feita por povos
cultos, superiores aos gregos em cultura.” E acrescente que “é igualmente histórico que
os gregos receberam conceitos da Índia, da Síria e do Egito.” Daí surgiu os povos gregos,
cujo espírito se caracteriza pela dispersão e isolamento, mas também pela inquietação.
A civilização grega, ao contrário do mundo oriental, não está unida por laços naturais
ou relações patriarcais. Os gregos não constituem uma unidade nacional, mas uma
divisão interna e segundo Hegel (1995, p. 191) é justamente este “o caráter elementar do
espírito dos gregos que dá entender a origem da cultura deles a partir de individualidades
independentes; uma situação na qual cada um se mantém por conta própria”. Cada polis
grega determina a si própria, são cidades independentes. A exceção dessa fragmentação
nacional foi à investida dos gregos na guerra de Tróia. Uma unidade que jamais se
repetiu.
Os gregos representaram para o espírito universal um crescimento na consciência da
liberdade, contudo, ainda não se trata da pura liberdade subjetiva. “Pretendendo resumir
aquilo que é o espírito grego, o que determina o fundamento é que a liberdade desse
espírito está condicionada e em relação essencial com um estímulo da natureza” (HEGEL,
1995, p. 200). Apesar de ser livre, o grego precisa ser estimulado pelo exterior, ele não
possui em si o material e os meios da exteriorização, por isso necessita da matéria natural,
do estímulo da natureza. Por conseguinte, o grego ainda não é absolutamente livre e
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Razão e Progresso na Filosofia da História de Hegel
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autônomo. O grego é o artista plástico que transforma a pedra em obra de arte. O artista
necessita da pedra, ele transforma a natureza e carece dela para dar expressão a sua idéia.
Segundo Hegel (1995, p. 201) “o espírito grego é esse remodelador”, que desenvolveu sua
individualidade e subjetividade interior, mas que ainda é incompleta em si, necessitando
do estímulo exterior.
O terceiro estágio no desenvolvimento do espírito é o mundo romano, que corresponde à
idade viril, a fase adulta da história. Assim como os gregos, a sociedade romana se formou
a partir de vários povos, entre eles os Etruscos, Sabinos e Latinos, contudo, afirma Hegel
(1995, p. 243) que em seu período de formação Roma foi o “asilo de todos os criminosos”.
O Estado romano teria surgido como uma liga de ladrões, formado a princípio apenas
por homens e isolado de outros Estados, pois os povos vizinhos se recusavam a manter
relações com esse Estado de corruptos.
O Estado romano se formou pela força, pela coação, regido por leis severas e pela mais
rígida disciplina, constituindo um Estado fundado na dependência e subordinação.
Segundo Hegel (1995, p. 245): “Esse início da vida romana em brutalidade selvagem, [...]
determina os futuros fundamentos básicos dos costumes e leis romanos”. Roma surgiu
da união entre golpistas que em dificuldades teriam se associado. Segundo a lenda, os
próprios fundadores de Roma, Rômulo e Remo, eram ladrões que tinham sido expulsos
de suas famílias. Assim, o Estado romano surgiu como um Estado violento e, acrescenta
Hegel (1995, p. 245) que: “Um Estado que se autoformou e se baseia na violência precisa
ser mantido com violência.” Roma surgiu e permaneceu até sua queda como em Estado
que se baseava na Guerra.
Ao comentar sobre um diálogo entre Goethe e Napoleão, Hegel diz que o Imperador francês
afirma ao poeta alemão que, diferentemente da tragédia antiga, na nova tragédia não é o
destino que se impõe aos homens, mas, no lugar da força do destino, teria surgido a política,
como força “à qual a individualidade teria que se render. Tal força é o mundo romano.
(HEGEL, 1995, p. 239). No Estado romano reina uma universalidade abstrata e o Estado
começa a destacar-se e a se impor sobre os indivíduos livres. A universalidade política
sacrifica a liberdade dos indivíduos que são postos ao cumprimento da universalidade
abstrata do Estado. O princípio de obediência não é voluntário, não há mais prazer ou
satisfação, como corria na polis ateniense, há apenas a rigidez do trabalho disciplinado.
Mas em oposição à universalidade abstrata do Estado, também surgiu em Roma, a pessoa
privada, ou seja, a pessoa jurídica. Trata-se de um conceito abstrato de pessoa, de uma
universalidade peculiar que se opõe a universalidade política. Dessa forma, surge de um
lado a universalidade política e do outro a liberdade abstrata do indivíduo. Uma oposição
entre universalidade abstrata e personalidade abstrata.17 Não obstante, esse direito positivo
ainda é vazio diante do poder rígido do Estado romano, pois, “o princípio jurídico é
exterior, ou seja, insípido e sem alma” (HEGEL, 1995, p. 247).
17 “Em Roma, encontramos principalmente a livre universalidade, essa liberdade abstrata que, por um lado
coloca o Estado abstrato, a política e o poder acima da individualidade concreta – subordinando esta
totalmente – e, por outro lado, cria perante essa universalidade a personalidade – a liberdade do eu em
si, que precisa ser diferenciada da individualidade” (HEGEL, 1995, p. 239).
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Roma surge da violência e se manteve pela violência, pela guerra e selvageria. Tal Estado,
assim como os gregos, reconheciam apenas alguns homens como livres e se impunha
diante da individualidade desses homens livres pela coação, força e rigidez. Mas, tal
Estado também desenvolveu a personalidade e o direito jurídico, mas a subjetividade
ainda estava incompleta e aparecia de maneira abstrata. Por isso, nas palavras de Hegel:
“Ao contemplarmos o mundo romano, vemos não uma vida concreta espiritual e rica em
si, mas o momento histórico-mundial abstrato da universalidade e o fim perseguido com
dureza insípida e insensível – o puro domínio para tornar válida aquela abstração.”
Por fim, o quarto momento da história universal é o mundo germânico, que corresponde à
velhice da história. Mas se para o homem a velhice é significado de fraqueza e debilidades,
na filosofia da história de Hegel a “velhice do espírito é a perfeita maturidade e força;
nela ele retorna à unidade consigo, em seu caráter totalmente desenvolvido do espírito.”
(1995, p. 97). O mundo germânico é o espírito do mundo moderno, é a reconciliação do
espírito consigo mesmo, ou seja, é a realização da liberdade. No Estado moderno, todos
os homens são livres. Trata-se da realização no espírito como existência orgânica em si.
No mundo germânico e cristão, a liberdade realiza o seu conceito de maneira completa e
se torna realidade.
Mas Hegel deixa claro que tal processo de reconciliação do espírito, não ocorreu sem
encontrar dificuldades em seu percurso. O mundo germânico surge como uma continuação
do mundo romano, pois deles adotaram a religião cristã como um sistema dogmático
pronto. Mas o cristianismo que traz em seu interior a liberdade subjetiva do indivíduo
afastou-se dos seus próprios princípios durante o sistema feudal. Segundo Hegel (1995,
p. 293) durante o período medieval, “A liberdade cristã tornou-se o contrário de si
mesma, tanto sob o aspecto religioso como no temporal, na mais cruel servidão.” Dessa
forma, a liberdade do espírito só pôde alcançar a realidade com o advento da reforma.
“O princípio cristão passou pela tremenda disciplinação da cultura, e pela Reforma lhes
foram devolvidas a sua verdade e a sua realidade” (HEGEL, 1995, p. 293).
No período medieval a Igreja tornou-se extremamente autoritária, abusando de seu poder e
domínio. Mas o essencial é que ela se tornou exterior. O perdão dos pecados era oferecido
aos homens em troca de dinheiro, como algo sensível e externo. O que fez a Reforma de
Lutero foi devolver a interioridade aos indivíduos. Cristo não está presente como forma
exterior, mas pode ser alcançado pela fé e pela comunhão. A doutrina luterana rompe
com a católica, apenas no sentido em que acaba com aquela relação de exterioridade. Os
princípios da Reforma são fundados na interioridade, onde cada homem pode determinar
a sua consciência, reafirmam que o homem pode ser livre por si mesmo e anulam a
autoridade e exterioridade da Igreja católica.
Hegel (1995, p. 346) destaca que na doutrina luterana “se encontra o novo e último lema
em torno do qual os povos se reúnem: a bandeira do espírito livre, que em si mesmo está
na verdade – e só nela.” O processo da reforma revigorou a verdadeira substância do
pensamento, fazendo renascer a consciência do livre espírito. Mas o conceito de liberdade
não se manifestou prontamente logo após reforma. Houve um processo de adaptação
do Estado, do direito, da propriedade, do governo e da constituição ao conceito da livre
vontade.
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Partindo da reconciliação do espírito na interioridade do sujeito, ela avançou para uma
reconciliação exterior, se manifestando nas leis. Por conseguinte, a Reforma resultou em
diversas transformações na formação estatal. Os princípios da igreja protestante tiveram
que travar lutas para ganhar existência política. E afirma Hegel que quem travou essa
batalha em nome da liberdade, não foram os alemães, mas os franceses. O espírito da
liberdade começou a agitar as mentes dos franceses contra as injustiças e os privilégios.
Por conseguinte, a Revolução Francesa surgiu proclamando a liberdade e a igualdade,
construindo o Estado Moderno e dando existência ao espírito universal, ou seja,
estabelecendo a verdadeira idéia, a consciência da liberdade. Por fim, Hegel (1995, p.
363) afirma: “Com esse princípio formalmente absoluto chegamos ao último estágio da
história, ao nosso mundo, aos nossos dias.”
Ao descrever o curso da história universal fica evidente a noção de progresso apontada
por Hegel. Progressivamente a história foi se desenvolvendo como que de maneira similar
ao sol, que nasce no oriente e se põe no ocidente. “A história universal vai do leste para
o oeste, pois a Europa é o fim da história, e a Ásia é o começo” (HEGEL, 1995, p. 93). O
espírito que está na história e se revela nela, percorreu vários estágios, todos necessários,
do mundo oriental ao mundo germânico, e mediante as transformações históricas, o
espírito reconheceu todas as suas determinações e os homens tomaram consciência e
realizaram a liberdade.
Contudo, é importante destacarmos o significado do conceito de fim da história usado por
Hegel. Se a história é um desenvolvimento racional até a consciência da liberdade, então
parece claro que seu objetivo já teria se realizado no Estado Moderno e que, portanto, a
história teria chegado ao fim. Contudo, Hegel (1995, p. 78-79) afirma em uma passagem
que: “A América do Norte ainda está sendo desbravada”, e que ela aparece como “a
terra do futuro”, e mais adiante acrescenta: “Cabe à América abandonar o solo sobre o
qual se tem feito a história universal.” Essas passagens deixam claro que a história para
Hegel não chegou a um fim, ele não é o teórico do fim da história.18 Afinal o espírito é
inquietude, é movimento, devir permanente. Hegel afirma que a América do Norte pode
trazer um novo desenvolvimento do espírito. Mas o que significa abandonar o solo da
história universal? Esse é um enigma que Hegel não respondeu e não se preocupou em
tentar responder, pois apenas o devir histórico poderá trazer essa resposta, não o filósofo.
Hegel (1995, p. 79) diz que: “Por ser a terra do futuro, a América não nos interessa aqui,
pois no que diz respeito à história, nossa preocupação é com o que foi e com o que é.”
As críticas mais recorrentes a Filosofia da História de Hegel é a de que sua interpretação
não encontra sustentação na própria história. Assim, a filosofia hegeliana teria se afastado
em demasia dos acontecimentos e dados concretos e criado mundos idealizados a partir de
sua própria consciência interior. Critica-se Hegel por ter realizado adaptações históricas
de acordo com a constituição do seu sistema. Por conseguinte, seus críticos afirmam que
18 Sobre o fim da história em Hegel, Kervégan (2008, p. 30-31) afirma que: “Primeiramente é preciso
evitar um mal-entendido concernente à equivocidade da palavra “fim”. Ela pode significar “termo”
(que em alemão corresponde a das Ende) ou “propósito” (der Zweck); um propósito objetivo (telos),
e não aquele que qualquer um persegue. [...] Mas “termo” evidentemente, não significa que a história
cessaria, que não aconteceria mais nada, que o próprio acontecimento não teria mais vez. [...] Hegel quer
sobretudo dizer, o que conduz ao segundo significado, que a história mundial tem, para o filósofo, um
teloscorrespondente ao que chama de Estado moderno.”
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a história filosófica hegeliana encontraria fragilidade na sua própria base história, pois se
constituiria como um sistema idealizado sem raízes na realidade.
Hyppolite descreve uma das principais críticas dirigidas à Hegel. Seguindo sua
interpretação, a reconciliação do entre o espírito subjetivo e o espírito objetivo pode
não ter se realizado plenamente na história. Hyppolite (1983, p. 110) encerra sua obra
afirmando o problema da reconciliação perfeita descrita por Hegel. Diz ele: “Subsiste
no seu pensamento uma ambiguidade. É que a reconciliação do espírito subjetivo e do
espírito objetivo, síntese suprema do sistema, não é talvez integralmente realizável.” O
Espírito Absoluto e o Espírito do Povo não teriam se reconciliado perfeitamente após a
Revolução Francesa.
A história do século XIX e XX, manchada por grandes guerras e massacres, teria deixado
evidente que a liberdade dos homens ainda é uma liberdade restrita e abstrata. Além
disso, o conceito da racionalidade que dirige e governa a história teria sucumbido diante
dos problemas e contradições elementares do mundo capitalista dirigido pelo mercado.
Hyppolite (1983, p. 107) afirma que “Hegel não propõe nenhuma solução para a crise
do mundo moderno. Opõe unicamente o quadro da sociedade civil ao que apresenta o
liberalismo. A liberdade assim atingida não é verdadeira, apesar de ser necessária.”
Considerações finais
Vimos que para Hegel cabe ao historiador descrever os acontecimentos e cabe ao filósofo
encontra o nexo racional que liga todos os acontecimentos, que aparecem como desconexos
e isolados. Hegel encontrou o nexo racional na história universal na realização do princípio
de liberdade, que é a natureza, a essência do espírito que governa o mundo e se manifesta
na própria história. A história universal aparece apenas como o processo no qual o espírito
vai se revelando a si próprio, reconhecendo as suas próprias determinações e no curso
da história universal, progredindo na consciência que o indivíduo tem da liberdade. A
história aparece como uma teodicéia, como a realização de um plano divino, cujo objetivo
é que cada indivíduo alcance a liberdade.
Reconhecemos que a filosofia da história hegeliana é herdeira da história cristã e da história
iluminista, também é carregada de preconceitos e eurocentrismo, isso fica evidente ao
colocar a Europa como telos, termo da história e ao excluir a África e as civilizações
americanas pré-colombianas da história, pois para Hegel, esses povos não construíram
um Estado, não deram uma configuração existencial para a liberdade. Contudo, como
afirmava o próprio Hegel é impossível que uma filosofia ultrapasse o seu mundo, assim
como é tolo imaginar que um filósofo escape ao seu tempo. Tais concepções que parecem
estranhas para a história e filosofia escritas na atualidade, constituíam a visão característica
de uma época, da qual Hegel era parte integrante. Não obstante, apesar desses limites,
consideramos a filosofia da história de Hegel, fundamental para a compreensão do
mundo contemporâneo. Não importa o juízo que façamos da sua visão cristã, racional
e progressista da história, sua obra continua sendo fundamental e indispensável para
historiadores e filósofos.
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Referências
Hegel, G. W. F. Filosofia da história. UNB: Brasília, 2005.
Hyppolite. Introdução à filosofia da história de Hegel. Lisboa: Edições 70, 1983
Kervégan, Jean-François. Hegel e o hegelianismo. Edições Loyola: São Paulo, 2008.
Nóbrega, Francisco P. Compreender Hegel. Vozes: Petrópolis, 2005.
Rosenfield, Denis L. (Editor). Estado e política: a filosofia política de Hegel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
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