PARASHÁ VAYESHEV
Shabat de 5 de Dezembro de 2015 (23 de Kislev de 5776)
COMO MUDAR O MUNDO
Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra - Ipanema com o escritório do
Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)
Em suas Leis de Arrependimento, Moisés Maimônides faz uma das declarações mais
poderosas da literatura religiosa. Depois de ter explicado que nós e o mundo somos
julgados pela maioria dos nossos atos, ele continua: “Portanto, devemos nos ver
durante todo o ano como se nossos atos e os do mundo estivessem uniformemente
divididos entre bem e mal, para que o nosso próximo ato possa alterar tanto o
equilíbrio de nossas vidas quanto o equilíbrio do mundo” (1). Nós podemos fazer a
diferença, e é potencialmente imensa. Esse deveria ser sempre nosso pensamento.
Poucas declarações estão mais em desacordo com a maneira como o mundo nos
parece na maioria das vezes. Cada um de nós sabe que apenas um de nós, e que há
outras sete bilhões de pessoas no mundo hoje. Que diferença concebível podemos
fazer? Não somos mais do que uma onda no oceano, um grão de areia à beira-mar,
poeira na superfície do infinito. É aceitável que com um ato pudéssemos mudar a
trajetória de nossa vida, e mais ainda, mudar a trajetória da humanidade como um
todo? Nossa parashá nos diz que sim, é isso mesmo.
Como se desdobra na história dos filhos de Jacob, há um rápido aumento da tensão
entre seus filhos, o que ameaça transbordar em violência. José, décimo primeiro dos
doze, é o filho favorito de Jacob. Diz a Torá que ele era o filho da idade avançada de
Jacob. Mais significativamente, ele foi o primeiro filho da esposa amada de Jacob,
Rachel. Jacob “o amava mais” do que a seus outros filhos, e eles sabiam disso e se
ressentiam. Eles tinham inveja do amor de seu pai, e foram provocados pelos sonhos
de grandeza de José. A visão do manto colorido que Jacob lhe tinha dado, como um
símbolo de seu amor, provocou a ira dos irmãos.
Veio então o momento oportuno. Os irmãos estavam longe de casa, cuidando do
rebanho, quando José apareceu à distância, enviado por Jacob para ver como eles
estavam. Sua inveja e raiva atingiram o ponto de ebulição, e eles resolveram se
vingar violentamente. “Aí vem o sonhador!”, diziam uns aos outros. “Venham agora,
vamos matá-lo e jogá-lo em um desses poços e dizer que um animal selvagem o
devorou. Então vamos ver o que resulta de seus sonhos”.
Apenas um dos irmãos discordou: Reuben. Ele sabia que o que eles estavam propondo
era muito errado, e ele protestou. Neste ponto, a Torá faz algo extraordinário. Faz
uma declaração de algo que não pode ser literalmente verdade e nós, lendo a
história, sabemos disso. O texto diz: “Mas Reuben ouviu e salvou [José] deles”.
Sabemos que isso não é verídico por causa do que aconteceu em seguida. Reuben,
percebendo que era um só contra muitos, inventa um estratagema. Ele diz: “Não
vamos matá-lo. Vamos jogá-lo vivo em um dos poços e deixá-lo morrer. Dessa forma,
não seremos diretamente culpados de assassinato”. Sua intenção era voltar ao poço
mais tarde, quando os outros estivessem em outro lugar, e resgatar José. Quando a
Torá diz: “E Reuben ouviu e o salvou deles” está usando o princípio de que “D-s
conta uma boa intenção como uma ação” (2). Reuben queria salvar José e tinha
intenção de fazê-lo, mas na verdade ele falhou. O momento passou, e quando ele
agiu, já era tarde demais. Voltando ao poço, José já não estava ali, tinha sido
vendido como escravo.
Sobre isso, diz um Midrash: “Se Reuben soubesse que o Santo, bendito seja Ele, iria
escrever sobre ele, ‘E Reuben ouviu e o salvou deles’, ele teria levantado José sobre
seus ombros e levado de volta para seu pai” (3). O que isso significa?
Considere o que teria acontecido se Reuben realmente agisse naquele momento. José
não teria sido vendido como escravo. Ele não teria sido levado para o Egito. Não teria
trabalhado na casa de Potifar. Não teria atraído a mulher de Potifar. Não teria sido
preso sob falsa acusação. Não teria interpretado os sonhos do copeiro e do padeiro,
nem teria feito o mesmo, dois anos depois, para o Faraó. Ele não teria se tornado
vice-rei do Egito. Ele não teria trazido sua família para ficar lá.
Certamente D-s já havia dito a Abraão muitos anos antes, “saiba com certeza que por
quatrocentos anos tua descendência será estrangeira em um país estranho e que eles
serão escravizados e maltratados lá” (Gen. 15:13). Os israelitas teriam se tornado
escravos de qualquer maneira. Mas pelo menos isso não teria ocorrido como resultado
de suas próprias disfunções familiares. Um capítulo inteiro de culpa judaica e
vergonha poderia ter sido evitado.
Se ao menos Reuben tivesse sabido o que sabemos. Se ao menos ele tivesse sido
capaz de ler o livro. Mas nunca podemos ler o livro que narra as consequências de
nossos atos a longo prazo. Nós nunca sabemos o quanto nós afetamos a vida de
outros.
Há uma história que eu acho muito comovente, sobre como, em 1966, um menino
afro-americano de onze anos de idade se mudou com sua família para um bairro, até
então de brancos, em Washington (4). Sentado com seus irmãos e irmãs no degrau da
frente da casa, ele esperou para ver como seriam recebidos. Não foram. Os
transeuntes se viravam para olhá-los, mas ninguém lhes deu um sorriso ou até mesmo
um olhar de reconhecimento. Todas as histórias terríveis que ouvira sobre como os
brancos tratavam os negros pareciam estar se tornando realidade. Anos mais tarde,
escrevendo sobre esses primeiros dias em sua nova casa, ele diz: “Eu sabia que não
éramos bem-vindos aqui. Eu sabia que não iriam gostar de nós aqui. Eu sabia que não
teríamos amigos aqui. Eu sabia que não deveríamos ter nos mudado para cá...”.
Enquanto ele estava tendo esses pensamentos, uma mulher passou pelo outro lado da
estrada. Ela se virou para as crianças e com um largo sorriso disse: “Bem-vindos!”
Desaparecendo para dentro da casa, ela surgiu minutos depois com uma bandeja
cheia de bebidas e sanduíches de cream-cheese e geleia que ela trouxe para as
crianças, fazendo-as se sentirem em casa. Aquele momento - o jovem escreveu mais
tarde - mudou sua vida. Deu-lhe um sentimento de pertencimento que não havia
antes. Fez com que ele percebesse, num momento em que as relações raciais nos
Estados Unidos ainda estavam carregadas, que uma família negra poderia se sentir
em casa em uma área branca e que poderiam haver relações que eram cegas à
coloração da pele. Ao longo dos anos, ele aprendeu a admirar muito a mulher do
outro lado da rua, mas foi esse primeiro ato espontâneo de saudação que se tornou,
para ele, uma memória definitiva. Naquele momento quebrou-se um muro de
separação e estranhos tornaram-se amigos.
O jovem, Stephen Carter, finalmente tornou-se um professor de direito na
Universidade de Yale e escreveu um livro sobre o que ele aprendeu naquele dia. Ele o
chamou de Civilidade. O nome da mulher, ele nos diz, foi Sara Kestenbaum, e ela
morreu muito jovem. Ele acrescenta que não foi por acaso o fato dela ser uma judia
religiosa. “Na tradição judaica”, observa ele, tal civilidade é chamada de “hessed - a
prática de atos de bondade - que é por sua vez derivada do entendimento de que os
seres humanos são criados à imagem de D-s”. Civilidade, acrescenta, “em si, pode
ser vista como parte de hessed: ela realmente exige gentilezas para com os nossos
concidadãos, incluindo os que são estranhos, e até mesmo quando isso é difícil”. Até
hoje, ele acrescenta, “Eu posso fechar os olhos e sentir em minha língua a doçura
suave e macia dos sanduiches de cream cheese e geleia que eu ingeri naquela tarde
de verão, quando eu descobri como um simples ato despretensioso de civilidade
genuína pode mudar uma vida para sempre”.
Uma única vida, diz a Mishná, é como um universo (5). Mude uma vida, e você
começa a mudar o universo. É assim que fazemos a diferença: uma vida de cada vez,
um dia de cada vez, um gesto de cada vez. Nós nunca sabemos de antemão o efeito
que um único ato pode ter. Às vezes não sabemos nunca. Sara Kestenbaum, como
Reuben, nunca teve a oportunidade de ler o livro que conta a história das
consequências daquele momento a longo prazo. Mas ela agiu. Ela não hesitou.
Nenhum de nós, disse Maimônides, deve hesitar. Nosso próximo ato pode inclinar o
equilíbrio da vida de outra pessoa, bem como a nossa.
Nós não somos irrelevantes. Nós podemos fazer a diferença para o nosso mundo.
Quando fazemos isso, tornamo-nos parceiros de D-s na obra da redenção, trazendo o
mundo como ele é para um pouco mais próximo do mundo que ele deveria ser.
NOTAS:
(1)
Hilchot Teshuvá 3.
(2)
Tosefta, Peá 1:4.
(3)
Tanhumá, Vayeshev, 13.
(4)
Stephen Carter, Civility, New York: Basic Books, 1999, 61-75.
(5)
Mishná, Sanhedrin 4:5 (texto manuscrito original)
Texto original: “HOW TO CHANGE THE WORLD” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra - Ipanema
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