RE...CONHECIMENTO
REPERCUSSÕES DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA SAÚDE DOS TRABALHADORES
PÚBLICOS1
TELES, Maria Cecília Cardoso2
Resumo: Este artigo apresenta conhecimentos adquiridos na prática profissional, articulados aos
estudos realizados, na busca de soluções para questões relativas ao sofrimento apresentado por
servidores públicos, que o referem, em seu discurso, à falta de reconhecimento, desrespeito e
insatisfação no trabalho. A organização do trabalho no serviço público como causa de adoecimento é
colocada em discussão, evidenciando-se o sentido da atuação do profissional especialista em saúde
do trabalhador na empresa pública. Entre os fundamentos para uma atuação efetiva e eficaz nas
intervenções, a escuta é apontada como um caminho para o encontro com a subjetividade dos
sujeitos envolvidos; e a ética é reafirmada como postura profissional que valoriza a dignidade da
vida. Conclui-se que ambos os fundamentos precisam ser resgatados nas relações de trabalho entre
os próprios agentes públicos para que o reconhecimento e a saúde prevaleçam.
Palavras-Chave: sujeito, sofrimento, trabalho, escuta, liberdade, criatividade, equipe
Abstract: This article introduces knowledge from the professional practice and studies about the
alternatives to public worker’s suffering due to the lack of recognition, disrespect and dissatisfaction on
work. The organization of work in the public institutions as a cause of this illness is discussed showing
the importance of the professional specialist on health inside de public company. Between the
grounds for a genuine and effective action, the listening show a way to find the subjectivism of the
individual involved; and the professional ethic is confirmed as something that valuable the dignity of
life. In conclusion, both grounds should be ransom in the relations of work to prevail the recognition
and health.
Key-words: individual; suffering; work; listening; freedom; creativity; team
Introdução
Este artigo apresenta conhecimentos teóricos articulados à experiência na atenção a
trabalhadores públicos em situações mediadas cotidianamente.
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Trabalho apresentado à disciplina de Metodologia da Pesquisa, sob orientação do Professor Dr. Daniel Vieira da Silva,
como crédito parcial no curso de especialização em Saúde do Trabalhador, IBPEX, Curitiba-PR, 2009-2010
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Maria Cecília Cardoso Teles é terapeuta ocupacional, integra o Setor de Saúde Ocupacional e Capacitações da Fundação
Cultural de Curitiba. E-mail: [email protected]
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A escolha do tema deu-se em busca de resposta para uma questão recorrente: muitos
servidores públicos atribuem seu adoecimento à falta de reconhecimento da instituição, desrespeito
dos colegas ou gestores e insatisfação quanto ao lugar que ocupam no trabalho. Trata-se portanto,
de uma reflexão, um aprofundamento da compreensão, à luz da teoria sobre o que move os sujeitos
nas relações de trabalho, gerando saúde ou doença mental.
Na relação trabalho-saúde mental está implicado, no mínimo, um sujeito, que se envolve em
uma ação considerada trabalho. Faz-se importante, portanto, conceituar estas duas categorias para
se iniciar qualquer discussão.
Sujeito, conforme entendido pela Psicodinâmica do Trabalho, é definido por Dejours (1999),
em seu livro A Banalização da Injustiça Social, como um termo utilizado para designar quem vivencia
afetivamente a situação tratada, ou seja, sob a forma de emoção ou de sentimento, o que não é
apenas conteúdo do pensamento, mas um estado do corpo. A afetividade está na base da
subjetividade, meio pelo qual a pessoas vivenciam seu contato com o mundo. A subjetividade não é
uma criação, e sim, uma condição essencialmente invisível, que acontece independente da vontade.
Negar ou desprezar a afetividade e a subjetividade é o mesmo que negar ou desprezar no homem o
que é sua humanidade, é negar a própria vida; e se assim o é, a afetividade e a subjetividade estão
envolvidas em todo ato significado por um sujeito como trabalho.
Codo (2006) define trabalho como um ato humano que implica na transmissão de significados
à natureza. Não é simplesmente mercadoria ou emprego e pode se traduzir em prazer ou sofrimento
para o sujeito que o realiza. A ação do trabalhador é uma relação tripla: sujeito, objeto e significados
se transformam enquanto transformam-se entre si. Abre-se assim, um circuito que inclui o significado,
uma terceira relação não verificada entre os outros animais e os objetos. O significado é algo que
fica, que permanece, transcende a relação do sujeito com o objeto e abre indefinidamente o circuito
da ação. No trabalho, o gesto permanece para além dos seus atores. Embora não dependa do
mercado, este pode, por ser transcendente, transformar qualquer ação em trabalho. Mesmo assim, a
simples ação ou gesto diferencia-se do trabalho na medida em que este não pode ser entendido
apenas em si mesmo, e requer um esforço retrospectivo ou prospectivo, pois o trabalho é histórico
por excelência.
Codo (2006) afirma que o trabalho é base de toda criatividade e prazer causados pela
atividade humana e, se causa prazer ou sofrimento, também determina saúde ou doença mental, pois
estas estão ligadas ao que o homem faz, como constrói a si mesmo e a sua sobrevivência. O modo
como os homens vivem e trabalham definem sua identidade, a forma como são. Por algumas de suas
características intrínsecas, ou quando submetido aos excessos da exploração, simultaneamente ao
prazer da criação, o trabalho produz dor e sofrimento. É na tensão entre o prazer e o sofrimento, que
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o trabalho se organiza, e é na forma como se dá a divisão de homens no trabalho que encontramos
os questionamentos e as respostas para o adoecimento ou a saúde mental provocados pelo
reconhecimento ou sua falta na instituição pública.
Da Compreensão Psicodinâmica aos Cuidados com o Sofrimento Relacionado à Organização
do Trabalho na Instituição Pública
Que o trabalho pode ter consequências sobre a saúde mental dos indivíduos é fato, mas ainda
são incipientes os conhecimentos produzidos para o desenvolvimento de metodologias de gestão que
minimizem estes efeitos, que também sabidamente, trazem custos para a empresa. Da mesma
forma, a organização do trabalho e as relações interpessoais são frequentemente desconsideradas
como fatores de adoecimento ou de saúde na empresa.
Le Guillant (1984), realizou durante os anos 50 os primeiros estudos sistemáticos que
relacionam trabalho e Psicopatologia, mas foi o estudo das repercussões da organização do trabalho
sobre o aparelho psíquico realizado por Christophe Dejours, que inovou e proporcionou a passagem
da Psicopatologia do Trabalho à Psicodinâmica do Trabalho, a partir dos anos 80. ( JACQUES e
CODO, 2002).
Esta passagem é extremamente importante para se compreender a formação dos
profissionais que atuam em saúde do trabalhador, porque traz uma mudança conceitual, uma virada
de paradigma. Se antes o foco do estudo privilegiava a patologia e o adoecimento, a Psicodinâmica
do Trabalho privilegia a saúde e a manutenção da normalidade: busca-se compreender como os
trabalhadores alcançam e sustentam o equilíbrio psíquico mesmo quando submetidos a condições de
trabalho desestruturantes e ainda, em que medida um espaço de trabalho que separa um
comportamento livre de um estereotipado pode influenciar a saúde do trabalhador. (DEJOURS,1993).
Para a Psicodinâmica do Trabalho, o significante liberdade refere-se à possibilidade do
trabalhador intervir para transformar a realidade que o circunda, conforme seus desejos. Localizar o
processo de anulação do comportamento livre é importante, pois o excesso de medidas impositivas,
restritivas da liberdade criativa e a fragmentação do trabalho em atividades muito simples e pouco
desafiadoras podem resultar em sofrimento e até mesmo em adoecimento.
Segundo Dejours (1987), o campo de estudo da Psicodinâmica do Trabalho está na
investigação do infrapatológico ou do pré-patológico, que engloba o sofrimento em suas formas, seus
conteúdos, sua significação. Temos no sofrimento outro importante significante para a abordagem
psicodinâmica: sofrimento, para Dejours, é um espaço clínico intermediário que marca a evolução de
uma luta entre o funcionamento psíquico do sujeito, com seus mecanismos de defesa, e as pressões
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organizacionais que o desestabilizam. O funcionamento psíquico busca evitar a descompensação e
conservar um equilíbrio possível, mesmo que isso aconteça à custa de um sofrimento.
O sofrimento designa então, em uma primeira abordagem, o campo que separa a
doença da saúde. Dentro de uma segunda acepção, o sofrimento designa um campo
pouco restritivo. (...) Entre o homem e a organização prescrita para a realização do
trabalho, existe, às vezes, um espaço de liberdade que autoriza uma negociação,
invenções e ações de modulação de modo operatório, isto é, uma invenção do
operador sobre a própria organização do trabalho, para adaptá-la à suas
necessidades, e mesmo, para torná-la mais congruente com seu desejo. Logo que
esta negociação é conduzida a seu último limite, e que a relação homem-organização
do trabalho fica bloqueada, começa o domínio do sofrimento – e da luta contra o
sofrimento.( DEJOURS, 1987, Apud SILVA, 1994, p. 15)
Uma organização de trabalho autoritária, que não oferece saída apropriada à energia
pulsional, conduz a um aumento da carga psíquica, e, portanto, ao sofrimento, que, por sua vez,
suscita estratégias defensivas. (DEJOURS e ABDOUCHELI ,1990).
O sofrimento e as estratégias defensivas do sujeito no trabalho refletem o modo como se dão
as relações do homem com a organização do trabalho e a consequente carga psíquica derivada do
encontro do sujeito integral - repleto de seus desejos e história de vida, com aquilo que lhe é
proporcionado pelo trabalho, seja ele intelectual ou manual, coletivo ou solitário. Não existe uma
única solução que possa ser aplicada a todos, pois o estudo da carga psíquica do trabalho deve ser
feito caso a caso. No entanto, Dejours (1980), explicita que
Para transformar um trabalho fatigante em um trabalho equilibrante precisa-se
flexibilizar a organização do trabalho, de modo a deixar maior liberdade ao trabalhador
para rearranjar seu modo operatório e para encontrar os gestos que são capazes de
lhe fornecer prazer, isto é, uma expansão ou uma diminuição de sua carga psíquica
de trabalho. Na falta de poder assim liberalizar a organização do trabalho, precisa-se
resolver encarar uma reorientação profissional que leve em conta as aptidões do
trabalhador, as necessidades de sua economia psicossomática, não de certas
aptidões somente, mas de todas, se possível, pois o pleno emprego das aptidões
psicomotoras, psicossensoriais e psíquicas parece ser uma condição de prazer no
trabalho. (DEJOURS, 1980, p.31-32)
O trabalho assalariado ainda é visto por muitos, como essencialmente benéfico e terapêutico,
como um instrumento neutro e indispensável para a ressocialização e a cura de doenças mentais. É
este tipo de pensamento que delega ao trabalhador a tarefa de adaptar-se a toda e qualquer
condição de trabalho, em contradição com a moderna visão ergonômica da Psicodinâmica do
Trabalho, que preconiza o contrário, ou seja, cabe à instituição buscar adaptar o trabalho ao homem.
Na visão de muitos gestores públicos perdura uma visão positivista, que busca legitimidade na
“cientificidade” e pensa o efeito benéfico do trabalho linearmente, deixando ao trabalhador a escolha
entre a adaptação ou a doença. Para Dejours (1987), uma situação de trabalho que não considera as
peculiaridades subjetivas do homem retira do trabalhador o direito à criatividade, de opinar quanto ao
conteúdo da tarefa, ou quanto ao melhor modo operatório e cadência de trabalho. Deste modo, as
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prerrogativas do trabalho livre são decididas pela direção da empresa. No trabalho assim organizado,
o que é prescrito separa-se do real, porque separa concepção e execução. Temos aqui dois
conceitos ergonômicos fundamentais para a Psicodinâmica do Trabalho: trabalho prescrito e trabalho
real. No espaço entre o que é prescrito e aquilo que se encontra no real pode ocorrer ou não a
sublimação e a construção da identidade do sujeito no trabalho. Assim, a principal crítica que a
Psicodinâmica dirige às organizações assim concebidas é que elas impedem a conquista da
identidade no trabalho, pois esta ocorre exatamente no espaço entre trabalho prescrito e trabalho
real. A organização científica do trabalho não apenas desapropria o trabalhador de seu saber; ela
proíbe, também, toda a liberdade de organização, de reorganização e de adaptação ao trabalho, pois
tal adaptação exige uma atividade intelectual e cognitiva não admitida. (DEJOURS,1993).
Uma outra característica importante da Psicodinâmica do Trabalho é que ela visa à
coletividade e não aos indivíduos isoladamente. Após diagnosticar o sofrimento psíquico em
situações de trabalho, não se busca atos terapêuticos individuais (que até podem ocorrer), mas a
meta é implementar intervenções voltadas para a organização do trabalho em que os indivíduos
estão inseridos.
Raramente se vê, no serviço público, a valorização necessária à detecção do sofrimento
causado pela organização do trabalho e modo como as relações humanas acontecem. São mais
comuns intervenções quando os sujeitos já se apresentam doentes. O absenteísmo é uma das
conseqüências dessa falta de atenção na gestão pública, bem como, a resistência expressa em
estratégias coletivas de defesa, que dificultam a produtividade no trabalho e aumentam
silenciosamente os conflitos entre os representantes da instituição e demais colaboradores. É
necessário que o profissional da saúde ocupacional esteja atento para auxiliar a reflexão e motivar
ações para corrigir excessos e instaurar processos de trabalho preventivos e promotores de saúde
mental, de preferência coletivos, para além das intervenções em situações onde a doença e o conflito
já se instalaram.
Para Dejours e Abdoucheli (1990), a mais surpreendente descoberta empírica da
Psicodinâmica do Trabalho foi a das estratégias defensivas construídas, organizadas e gerenciadas
coletivamente, cujos estudos de campo mostraram como o sofrimento e seus procedimentos
defensivos são utilizados ou mesmo explorados pela organização do trabalho.
(...) As defesas coletivas, com efeito, constituem uma modalidade de adaptação às
pressões de uma organização do trabalho que fere homens e mulheres. Poderíamos
mostrar como as estratégias coletivas de defesa funcionam também como sistema de
seleção psicológica dos trabalhadores, guardando no seio do coletivo, os operadores
que trazem sua contribuição à defesa, eliminando sem dó aqueles que se mostram
reticentes, chegando até a persegui-los às vezes a até mesmo considerá-los como
bode expiatórios do sofrimento. Enfim, vimos como as estratégias defensivas
contribuem para assegurar a coesão e a construção do coletivo de trabalho, ou seja,
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também a cooperação com vistas a atender os objetivos fixados pela organização do
trabalho. (DEJOURS e ABDOUCHELI, 1990, p. 132)
Posteriormente, observou-se que também os procedimentos defensivos individuais podem ser
utilizados em proveito da produtividade ou incorporados ao coletivo.
Observa-se no serviço público muitas estratégias de defesa coletivas, que tendem a
culturalmente ser incorporadas à dinâmica da instituição, como forma de conciliação entre os desejos
dos trabalhadores e as escolhas administrativas dos gestores. Por exemplo: para se compensar
baixos salários e a sobrecarga de trabalho, alguns acordos se formam e se instalam, como receber
horas-extras sem fazê-las, mas aceitar fazê-las sem receber a mais quando as fizer. Há um acordo
tácito de que assim, ninguém deve queixar-se. No entanto, quando isso se quebra, seja por uma
gestão que busca corrigir esta distorção ou por algum trabalhador que se queixa e se recusa a
cumprir o combinado, novas resistências se levantam, e novas estratégias defensivas surgem, dentre
elas: toda uma equipe poderá ter consultas médicas marcadas no dia extra em que deveriam
comparecer para trabalhar sem receber horas-extras; um grupo de trabalhadores poderá excluir a
chefia de suas decisões, silenciosamente ignorando suas determinações. Ao chefe que impõe-se
abusivamente e retira toda possibilidade de criatividade e liberdade de decisão dos trabalhadores de
sua equipe, principalmente os mais simples, pode ter como resposta defensiva, uma equipe que faz
exclusivamente o que lhe é solicitado, sem manifestar iniciativa ou pró atividade. Nestas situações é
comum o profissional de saúde do trabalhador ser chamado a intervir junto a sujeitos altamente
estressados, emocionalmente abalados por situações de conflito em que há demonstrações de poder,
repressão e desrespeito humano.
Dejours (1987), busca na abordagem psicanalítica o conceito de sublimação como um
instrumento de compreensão das situações de trabalho. Afirma que a repetição consecutiva elimina
toda possibilidade de sublimação e leva, por meio da repressão, tanto a doenças somáticas, como a
descompensações mentais (psiconeuróticas). Segundo este autor, para que a sublimação possa
ocorrer na atividade de trabalho, é necessário que o trabalhador apresente condições ontogenéticas e
psíquicas. Deve ter aprendido a renunciar parcialmente às pulsões ainda na infância e a se interessar
por causas com um valor social, mantendo a curiosidade como algo benéfico, ou seja, é necessário
que haja uma dessexualização das pulsões parciais e mudança de objetivo na pulsão. Isto ocorre
porque o objeto transicional — que substitui o corpo da mãe — vem do exterior. Este processo tem
uma função essencial nas relações de trabalho. Quando a atividade laborativa representa algo de
enigmático para o sujeito, que instigue sua aprendizagem, o trabalhador apresenta uma competência
particular de jogar com seu desejo de entender a realidade. Isto mobiliza sua curiosidade, que será
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recompensada pela compreensão ou aprendizagem obtida. A compreensão provoca uma diminuição
do sofrimento e possibilita que a sublimação aconteça.
O processo de sublimação se desenvolve no mesmo espaço em que ocorre a epistemofilia
(desejo de entender a realidade), e para tanto, necessita que se abra um espaço organizacional para
que possa ocorrer. Entre a organização do trabalho prescrito e a organização do trabalho real deve
haver um espaço de operação criativa disponível ao trabalhador; um espaço para algum tipo de
atividade de concepção, que remete o trabalhador à mesma responsabilidade daquele que concebe
o trabalho. Outra característica importante do espaço organizacional propício à sublimação é a
existência de uma correspondência entre a situação de trabalho e o estado interno do sujeito, ao que
denomina-se “ressonância simbólica”. Situada entre os conteúdos psíquicos internos que dão forma à
curiosidade, e a cena externa, ligada ao trabalho, possibilita ao sujeito transitar de um a outro, o que
poderá acontecer se existir uma analogia, uma semelhança, entre os dois, ao mesmo tempo em que
as diferenças provocarão novos estímulos à curiosidade do sujeito para transformar a situação de
trabalho.
A relação que existe entre o sujeito, a organização do trabalho prescrito e trabalho real é
sempre conflitiva. As atitudes criativas e as tentativas de se realizar experiências novas no trabalho
precisam ser conhecidas e reconhecidas na instituição como contribuição específica daquele
trabalhador, para ter efeitos positivos, pois implicam num esforço psicológico, que pode refletir na
saúde global para mais ou para menos.
A contribuição dada pelo trabalhador à organização do trabalho, deve retornar a ele como uma
retribuição, que não se resume à simples atribuição de um salário ou de um prêmio por produtividade.
A retribuição da empresa precisa ter, antes de mais nada, um caráter moral e ético, constituindo-se
num reconhecimento dos interlocutores do trabalhador de que suas atitudes, dedicação e iniciativas
contribuíram para a realização do trabalho. O reconhecimento demonstra gratidão dos superiores
hierárquicos na empresa como alguma coisa que tenha utilidade do ponto de vista econômico e
técnico, o que é sentido pelo trabalhador como um julgamento e senso de utilidade.
Para que a sublimação possa produzir-se no trabalho, o trabalhador deve integrar uma equipe,
a quem presta sua contribuição, que é única e incomparável. A valorização da atividade do
trabalhador pelos seus próprios colegas é de suma importância na medida em que não é mais a
hierarquia que a faz. Dejours (1987), afirma que esta valorização baseia-se em critérios estéticos e
econômicos (no sentido de economia do corpo) quanto à realização do trabalho, tais como, pertencer
ao grupo profissional, respeitar suas regras, possuir elegância e leveza no trabalho. Na medida em
que as regras são respeitadas, elas não mais são vistas em primeiro lugar, e o trabalhador se
destaca por sua experiência. O reconhecimento é assim, feito pelos pares, isto é, pelo coletivo de
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trabalho, que é a equipe ou a comunidade à qual a pessoa pertence, e esse julgamento é necessário
para que se construa a identidade no trabalho.
O reconhecimento dos colegas abre um espaço ao individual, ou seja, permite que cada um
faça parte do coletivo, conservando alguma coisa a mais, uma característica particular. É importante
que o julgamento refira-se ao trabalho e não à pessoa, para permitir a construção da identidade. O
reconhecimento que se dirige diretamente à pessoa e não passa mais pelo trabalho identifica uma
relação erotizada e não permite a construção da identidade do trabalhador. O julgamento que
expressa valorização refere-se ao trabalho daquele que, por ser experiente e notoriamente
considerado especialista, pode construir outros modos de fazer por subversão e transgressão das
regras prescritas. Trata-se, nesse caso, de poder burlar certas regras seguindo um acordo mútuo
quanto à maneira de transgredi-las. Os trabalhadores criam, então, espaços públicos que são
espaços comuns no trabalho, onde eles podem decidir a melhor maneira de realizar uma determinada
tarefa. Essa atividade deve contar com a participação de todos, para que essas novas normas
possam resultar de um consenso que as legitime. Porém, não existem apenas critérios técnicos que
entram na definição desse consenso, pois a realização desse modo de fazer diferente depende da
história pessoal de cada um e do seu conhecimento e experiência anteriores.
Assim é que alguns trabalhadores, mesmo fugindo ao comum, são identificados como
especialistas e a eles é permitido fugir a certas normas, alcançando identidade própria e construindo
projetos fora do esperado pela instituição ou administrando atividades de um modo prático que não
está nas normas. É aceito por todos, porque resulta da experiência, oferece resultados satisfatórios
mesmo se considerados ultrapassados pelas novas tecnologias adotadas, faz parte da cultura da
instituição. Se por qualquer motivo houver impedimento desta “burla” pela empresa, pode causar ao
trabalhador o sentimento de humilhação e perda da identidade no trabalho, causando-lhe sofrimento
que pode chegar ao adoecimento. A percepção de que isso está ocorrendo é importante para reverter
o processo ou descaracterizá-lo daquilo que possa gerar qualquer correspondência com a
possibilidade do trabalhador perder identidade e seu lugar simbólico na instituição.
Ao contrário do reconhecimento que expressa valorização dos colegas, é comum, na
instituição pública, a desvalorização de alguns trabalhadores por suas características pessoais e
profissionais, os quais passam por uma depreciação e evitação sistemáticas, reforçadas na instituição
pelos comentários e atitudes de desprezo dos colegas. São alvos para quem coletivamente há um
silencioso combinado de dirigir a agressividade, gerando situações de conflito e perseguição, ao que
alguns autores denominam “bulling”.
O trabalhador da saúde ocupacional nestas situações tem uma delicada tarefa de chamada
ética, pois aqueles que sofrem estas pressões expressas em atitudes e palavras dos colegas, ao
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longo de meses ou até anos, são pessoas que apresentam alto nível de estresse, ansiedade,
agressividade ou que mostram-se retraídas, com baixa auto-estima, depressivas e, ainda em alguns
casos, com agravamento de problemas de saúde como alcoolismo e dependência de outras drogas.
Esta chamada ética envolve intervenções cotidianas de desmontagem das reações e atitudes que
alimentam a situação. É necessário habilidade para abrir espaços de escuta e reflexão junto a
chefias, a colegas e principalmente, à própria pessoa que sofre com esta situação, de modo a
arrefecer as resistências, os mecanismos de defesa e tornar o trabalho e a convivência possíveis e
produtivos.
A análise minuciosa e sistemática das organizações do trabalho, o desvendamento das
relações de poder, a apropriação do saber operário e o fracionamento da atividade, exigem respostas
fortemente personalizadas, pois direcionam o sujeito a dois importantes sofrimentos provocados pelo
trabalho: o medo e a monotonia.
O medo no trabalho pode, segundo Dejours (1993), ser relativo à degradação do
funcionamento mental e do equilíbrio psicoafetivo, originado na desestruturação das relações entre os
colegas de trabalho. Manifesta-se através da discriminação, da suspeição ou ainda de relações de
violência e de agressividade, opondo o trabalhador à sua hierarquia. Existe, também, um medo
específico relativo à desorganização do funcionamento mental, devido à autorrepressão exercida de
encontro ao aparelho psíquico e pelo esforço empregado para se manterem comportamentos
condicionados; há também, o medo relativo à degradação do organismo, ligado diretamente, às más
condições de trabalho. Sem negar a importância dos cerceamentos psíquicos ligados ao trabalho na
geração do sofrimento, Dejours (1993) chama a atenção para o fato de que é, principalmente, a
impossibilidade de mudar ou mesmo aliviar esses cerceamentos, a origem dos problemas de saúde.
É através dos mecanismos de defesa empregados pelo trabalhador que torna-se possível
estudar e desvendar seu sofrimento. Assim, Dejours (1987) estabelece uma separação fundamental
entre os "coletivos de defesa" produzidos por sublimação e aqueles gerados por mecanismos
simplesmente adaptativos. Os coletivos de defesa por sublimação mantêm certa
relação de
continuidade com o desejo, porque permitem novas aberturas e garantem, frente ao sofrimento, uma
saída pulsional, não destruidora para o funcionamento psíquico e somático; já os coletivos originados
em defesas estritamente adaptativas têm uma tendência maior a quebrar com esse mecanismo. A
repressão é limitante para o jogo pulsional e, quando aliada a exigência de tarefas repetitivas e
monótonas, expulsa o sujeito de seu desejo, favorecendo a lógica da alienação. Os trabalhadores
assim submetidos tendem a desenvolver defesas contra o sofrimento, sendo comum a repressão
pulsional, a auto-aceleração ou a ideologia defensiva de profissão. (Dejours, 1987)
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O sofrimento pode tornar-se o instrumento de uma modificação na organização do trabalho ou
gerar um processo de alienação e de conservadorismo através de mecanismos de defesa quando
torna-se penoso tentar uma modificação nessa situação. Um exemplo disso são as resistências de
profissionais da vigilância e recepção ante propostas de revezamento ou diversificação de atividades
com a finalidade de expulsar a monotonia e propiciar maior integração com as equipes. A
acomodação no isolamento e monotonia da atividade
passam a ser valorizadas como algo do
sofrimento inerente à profissão e por isso, resistem a mudanças, perpetuando, através da adaptação,
situações de trabalho insatisfatórias do ponto de vista da saúde mental.
Dejours (1993) afirma que a ideologia defensiva funcional mascara, contém e oculta uma
ansiedade particularmente grave. Na medida em que se apresenta como um mecanismo de defesa
elaborado por um grupo social particular, apresenta uma especificidade: ela é destinada a lutar contra
um perigo e um risco real, deve ser coerente e obter a participação de todos os interessados.
Outra contribuição da Psicodinâmica do Trabalho é a sua abordagem da relação de prazer
que pode existir entre o trabalhador e seu trabalho. A compreensão da maneira como se elaboram as
duas facetas da organização do trabalho, isto é, aquelas que são, respectivamente, fonte de
sofrimento e de prazer, é indispensável para se tentar uma interpretação mais global dos laços entre
trabalho e saúde e, também, para se procurarem alternativas satisfatórias.
Como se vê, a Psicodinâmica do Trabalho constrói uma nova abordagem, na qual o trabalho
não mais é visto, unicamente, como uma terapêutica universal para remediar desequilíbrios mentais,
e incorpora conceitos sociológicos para caracterizar e detalhar a organização, conceitos ergonômicos
para identificar o espaço existente entre trabalho real e trabalho prescrito; e, enfim, conceitos
psicanalíticos, tais como os de sublimação, para compreender o indivíduo imerso no universo do
trabalho como portador de uma história singular que foi construída desde sua infância.
Por estas razões, a atenção aos trabalhadores, procurando auxiliá-los na reorientação de seu
movimento na instituição e na vida é necessária. Não se trata de ouvir apenas a dimensão subjetiva
do sofrimento, não referenciado socialmente, obedecendo à neutralidade terapêutica. Faz-se
necessário a mediação, a pró-atividade, e, também, o recuo. Assim é que, apesar do reconhecimento
de que muito do sofrimento manifesto pelos trabalhadores podem ser neutralizados, minimizados ou
até eliminados com medidas de organização estratégica na área de gestão de pessoas, ainda assim,
aposta-se no sujeito do desejo, e, em vários casos se alcança sucesso na intervenção ou alívio do
sofrimento. Como ilustração, é possível destacar que, às vezes, cuidar causa sofrimento. Uma
intervenção do técnico em segurança do trabalho em atenção a um servidor público que necessitaria
de melhores equipamentos e treinamento pode gerar cerceamento de suas atividades, que lhe davam
extremo prazer e reconhecimento profissional, visto que ao invés da instituição atender ao solicitado
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pelo técnico, pode decidir pelo impedimento do trabalhador em realizar suas atividades de risco e não
mais prestar aquele serviço. Situações assim, geram inatividade, humilhação e apreensões sob o
ponto de vista do trabalhador. O nível de estresse eleva-se e poderá ocasionar adoecimento físico
(observou-se agravamento e agudização de doenças cardíacas em alguns casos), gerando no corpo
do próprio trabalhador a restrição para a execução plena de sua atividade laboral. Estes casos
requerem muitas intervenções, inclusive junto aos responsáveis pela empresa e à equipe de
segurança. Refletir a medida de segurança e sua viabilidade, antes de se tomar medidas
administrativas podem evitar que trabalhadores percam seu espaço de trabalho na instituição, sejam
levados a se deparar com a inutilidade de sua função, e que, diante da pouca atividade e destituição
institucional de sua identidade laboral, eleve-se a carga psíquica que lhe acarretará um estresse
insuportável. Armadilhas como essas são comuns no serviço público, principalmente quando se trata
de profissões especializadas, cujos profissionais hoje são facilmente substituídos das mais diversas
formas por trabalhadores terceirizados. O servidor público, que goza da estabilidade estatutária,
nestes casos, é lançado ao não lugar na instituição, ao sofrimento da destituição de seu
conhecimento, à desvalorização profissional, que repercute em sua subjetividade, adoecendo.
Outra situação comum na empresa pública é a da discriminação de profissionais que, por suas
características pessoais ou posicionamentos políticos acumulam significações negativas por parte de
seus colegas. Geralmente conflituosos, ou se rebelam e não aceitam direcionamentos, agredindo e
sofrendo agressões, ou se calam, submissos e indiferentes ao ambiente de trabalho e à busca de
resultados de sua equipe. Noutras vezes, por gozarem de estabilidade no emprego, são deslocados
de seus ambientes de trabalho e colocados em funções muito aquém de seus conhecimentos e
experiências. Trabalhadores nestas situações podem sofrer durante anos, e, se a situação se inverte,
tendem a fazer o mesmo com quem os fez sofrer. A escuta destas pessoas e daquelas envolvidas
nestas situações requer uma ética extrema dos profissionais de saúde do trabalhador. É necessário
mediar os conflitos, proporcionar a emersão das qualidades profissionais, de realizar a chamada ética
aos trabalhadores e gestores da empresa. A intervenção pode possibilitar que a sublimação ocorra no
trabalho, através da aceitação por parte da empresa de projetos diferenciados, inclusão na estrutura
organizacional, condução dos afetos à valorização do trabalho, negociações e transferência de
setores que podem, por si só, proporcionar melhoria da saúde, da produtividade e satisfação no
trabalho.
Conclusão
A posição dos profissionais de uma equipe de saúde do trabalho é diferente daquela ocupada
no campo clínico. Participantes dos processos de trabalho, os profissionais dirigem sua atenção
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também às relações sociais e podem, com freqüência, perceber no discurso dos trabalhadores uma
ligação entre o conteúdo manifesto do sofrimento e a realidade das situações de trabalho. São de fato
estes profissionais, que, imersos em sua prática, e fundamentados na Psicodinâmica do Trabalho,
podem primeiro escutar e dar um sentido não somente individual, mas coletivo às queixas
verbalizadas.
Deste modo é que, opostamente à clínica, são chamados a
ocupar o papel de
mediadores das relações saúde-trabalho na empresa e, ainda, procuram convencer os dirigentes a
criar ou retomar espaços de criatividade, reconhecimento e convívio na empresa. Muitas ações são
possíveis para aumentar o conhecimento das competências dos trabalhadores e o reconhecimento
institucional e entre colegas numa empresa pública. Uma equipe de saúde ocupacional pode
sustentar iniciativas que evidenciem e valorizem a qualidade de vida do trabalhador, que levem
reconhecimento através de homenagens aos trabalhadores indicados por seus colegas de trabalho e
validados pela empresa, que mobilizem os trabalhadores para um clima organizacional amigável e
saudável, organizando confraternizações e
festividades, apoio ao fortalecimento do coletivo e
associação de funcionários, capacitações para atualização e inclusão de grupos ocupacionais que
tendem a resistir a mudanças, incentivo à continuidade dos estudos, capacitações e trabalhos que se
propõem à escuta de grupos de trabalhadores em sofrimento no trabalho ou na vida.
Re...conhecendo o contexto e a necessidade de transformações, conclui-se que o caminho se
faz com ética cotidianamente, um a um, e coletivamente, sempre que a sublimação ocorre e os
espaços institucionais tornam possível uma abertura para a escuta, o diálogo, o prazer, a criatividade
e o fortalecimento dos laços sociais.
Referências
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