Discurso de posse do presidente do Conselho Administrativo de Defesa
Econômica – Cade, Vinícius Marques de Carvalho.
A nova lei de defesa da concorrência foi produto de uma evolução histórica de
mais de 50 anos do direito econômico. Esse processo foi marcado por uma
lógica em que os arranjos institucionais variaram conforme as necessidades de
regulação de conflitos inerentes ao desenvolvimento.
No caso brasileiro, os efeitos do abuso do Poder Econômico são constitutivos
de nossa historia de concentração de renda e iniquidade.
Prova da relação muitas vezes complementar e tensa entre Estado e mercado
revela-se no próprio nascimento da legislação concorrencial. Basta dizer que o
seu surgimento, em 1945, e o seu aperfeiçoamento, em 1962, foram alvos de
intensas criticas dos defensores do chamado livre-mercado, que não gostariam
de se submeter aos rigores de uma legislação antitruste nos moldes do Sherman
Act nos EUA.
A Constituição Brasileira de 1988 enfatiza os objetivos de assegurar a todos
existência digna, e de legar à sociedade e ao Estado brasileiro a missão de
construir uma ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, observados os princípios da livre concorrência e da defesa
do consumidor.
Um dos principais desafios rumo à efetivação de tais princípios reside,
certamente, na eficiente repressão ao abuso do poder econômico. Ineficiência
dos mercados, produtos e serviços de baixa qualidade, pouca criação e
inovação tecnológica, preços abusivos e aumento da concentração da renda são
apenas alguns dos efeitos mais conhecidos das práticas de dominação de
mercado.
É antiga e célebre a noção segundo a qual todo poder deve ser limitado nas
sociedades democráticas. O estado de direito e a separação de poderes se
constroem com base nessa premissa, em lógica normativa que se estende
também às relações econômicas. Não é simples, contudo, a tarefa de limitar o
exercício abusivo do poder em uma economia de mercado. A busca pela
concentração de poder econômico é o padrão de comportamento natural em
grande parte das estratégias empresariais. Assim, evitar tais formas de abuso
demanda aparato jurídico-institucional robusto, com nível técnico de
excelência e razoável capacidade de intervenção.
A Lei 8884/94 cumpriu um papel histórico e estruturante ao constituir o Cade
como autarquia, ao conferir mandato aos seus conselheiros, ao instituir o
controle de fusões e aquisições e ao prever instrumentos efetivos de
investigação contra condutas anticompetitivas.
Novos avanços, entretanto, eram imprescindíveis. Em uma economia cada vez
mais aberta e dinâmica, as autoridades de defesa da concorrência precisam ser
ágeis, sob pena de perderem efetividade; precisam garantir segurança jurídica,
sob pena de perderem parte de sua legitimidade; e precisam ter mecanismos de
acompanhamento dos mercados, sob pena de não conseguirem cumprir seu
principal objetivo, que é defender o consumidor e o mercado interno.
Esse último ponto ganha ainda mais importância no momento atual do país, em
que convivemos com aumento da renda de milhões de trabalhadores, que
acessam novos nichos de mercado, que consomem novos produtos e que
conferem uma dinâmica renovada à vida econômica, inclusive com criatividade
e audácia na abertura de novos empreendimentos. Esse é o cenário que tende a
se expandir nos próximos anos no Brasil.
Nosso aprendizado recente já é suficiente para encontrarmos um espaço
razoavelmente amplo para a defesa da concorrência. Apesar de muitos dos
problemas institucionais apenas terem sido solucionados agora pela lei 12.529
e dos recursos ainda escassos, o Cade já vinha conseguindo, com o trabalho
árduo de todos os conselheiros e servidores, reduzir o tempo de análise de atos
de concentração, julgar processos importantes e conquistar, em fevereiro 2010,
o prêmio conferido pela Global Competition Review de melhor agência
antitruste das Américas.
O trabalho dos últimos anos, notadamente dos últimos meses, nao se apoiou em
nenhuma formula ou modelo pré-concebido. Olhamos para a nossa política de
defesa da concorrência como resultado de um percurso histórico de escolhas para
um tipo específico de sociedade. Acreditamos em um processo constante de
aprendizado e descoberta, contando para isso com o diálogo com os diversos atores
que interagem na implementação dessa agenda tão importante ao país.
Além do diálogo com a sociedade, o Cade busca com seriedade o estreitamento
dos laços com os diversos atores governamentais. Autonomia e independencia não
podem nunca significar isolamento e distanciamento. A ação estatal requer
conexão com a sociedade e o mercado; coerência de diagnóstico e coesão. A
associação entre concorrência e desenvolvimento depende, desse modo, da
construção de instituições capazes de aplicar com vigor os princípios
concorrenciais na implementação das políticas públicas. Afinal, não é só o Cade e
a Seae que lidam com questões relacionadas ao abuso do poder econômico.
Refiro-me especificamente às políticas regulatórias. Identificamos como um
desafio aprofundar as possibilidades de interlocução entre os órgãos responsáveis
pelas políticas de defesa da concorrência e regulatórias, na medida em que em
vários setores regulados há uma preocupação das agências com o alcance de um
patamar adequado de competição entre as empresas.
A cooperação e um sistema de divisão e compartilhamento de tarefas e
informações, torna-se essencial para conferir eficiência e efetividade para as
políticas públicas.
Se a relação entre o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC e os
órgãos reguladores tem se estreitado nos últimos anos, infelizmente, e talvez até
paradoxalmente, o mesmo não se pode aduzir da interface óbvia com a política de
defesa do consumidor.
O direito do consumidor é hoje, sem sombra de dúvida, um dos principais vértices
das relações econômicas. E essa importância tem crescido nos últimos anos. Notase que as políticas públicas direcionaram-se para promover a mobilidade social
usando como instrumento a garantia de renda digna. Essa estratégia, aliada a outras
políticas econômicas e de distribuição de renda, além de reduzir a pobreza e levar à
classe média milhões de brasileiros nos últimos anos, permitiu que as pessoas
identificassem nas relações de consumo o caminho para sua constituição como
cidadãs.
Enfim, vivemos em uma sociedade em que é absolutamente natural comemorar a
inclusão e o acesso ao consumo, mas é fundamental que eles venham
acompanhados de valores e princípios como respeito e qualidade. Entendemos que
a defesa da concorrência também pode colaborar nesse processo.
O diálogo entre as duas políticas é imprescindível no contexto atual em que um
numero cada vez maior de mercados é submetido à lógica concorrencial. Com o
objetivo de consolidar essa cooperação, o Cade e a Secretaria Nacional do
Consumidor – Senacon celebram hoje um termo de cooperação que tem como
objeto o compartilhamento de informações, conhecimento, e a divulgação das
ações dos dois órgãos.
No que concerne à agenda do Cade na análise de atos de concentração e condutas
anticompetitivas, há passos decisivos a serem dados na direção da eficiência,
efetividade e transparência das nossas ações.
Quando nos referimos aos atos de concentração, essa agenda se resume
essencialmente à resolução rápida, nos casos simples, e eficaz nos casos
complexos. O novo sistema de análise deve ser capaz de propiciar uma
identificação célere dessas duas hipóteses. Essa atuação já tem surtido efeito nas
decisões do Cade. Apenas como exemplo, dos 143 casos notificados até o dia 19
de junho, 48 já foram julgados e outros 68 já têm parecer da SuperintendênciaGeral. Já houve também a aprovação em 27 dias do primeiro caso notificado sob a
vigência da nova lei.
Todo nosso esforço tem se direcionado para que o Tribunal consiga se dedicar
essencialmente aos casos de maior ameaça à concorrência. E é nesse âmbito que a
análise preventiva de fusões e aquisições ganha sentido.
O tempo que o Cade levará para decidir esses casos dependerá da nossa capacidade
de analisar as informações prestadas pelas empresas e do nosso conhecimento
prévio sobre o mercado. Mas não só isso, depende também da qualidade dessas
informações e da disposição de as partes se anteciparem aos problemas decorrentes
de uma fusão e sugerirem medidas compensatórias ao Cade.
No novo Cade, o combate a condutas anticompetitivas, por sua vez, também deve
ganhar mais espaço.
Independentemente da natureza de cooperação ou exclusão da conduta, o Cade
pode orientar seu foco para setores essenciais para o bem-estar social, como os de
infra-estrutura, alguns segmentos da indústria, serviços e agricultura. Trata-se de
empreender investigações usando como filtro o impacto daquele setor no
desenvolvimento social e econômico ao invés de apenas avaliar o prejuízo à
sociedade a partir dos efeitos de uma conduta em tese, escolhida como a mais
nociva ao consumidor in abstrato.
O combate a cartéis no Brasil também pode incrementar, cada vez mais, seus
resultados, e sensibilizar um maior contingente da sociedade. Para isso é preciso
garantir ações estruturantes em três eixos: administrativo, criminal e civil. Nesses
desafios temos contado com um apoio incansável do Ministério Público Federal e
dos Estaduais que compõem junto com outros atores, tais como o Departamento de
Polícia Federal e a Controladoria Geral da União, a Estratégia Nacional de
Combate a Cartéis.
Enfrentar os cartéis internacionais também tem sido uma prioridade. Essas
condutas são especialmente danosas aos países em desenvolvimento e precisam de
atenção especial. As distorções no mercado internacional resultantes da
manipulação dos preços e dos mercados prejudicam não só os consumidores, como
as empresas brasileiras.
Aqui cabe uma pequena digressão para falar do excelente trabalho que o SBDC
tem feito na esfera internacional. A cooperação internacional é instrumento
imprescindível para a persecução efetiva de condutas e para a análise de fusões
transnacionais. A presença do Cade nesse cenário pode ser reforçada, em
continuidade aos trabalhos desenvolvidos nos últimos anos e coroados pela
organização da 11a Conferência Anual da Rede Internacional da Concorrência
(ICN), realizada em abril no Rio de Janeiro.
Outro componente importante na agenda dos próximos anos consiste na
transformação do Cade em um centro produtor de conhecimento sobre os
principais setores da economia. No direito da concorrência, as normas jurídicas
visam atingir objetivos econômicos, o que exige do julgador um zelo cada vez
maior com a fundamentação econômica de suas decisões.
É nesse contexto que a estruturação de um Departamento de Estudos Econômicos
apresenta-se como uma das inovações institucionais mais importantes da nova lei,
tendo como missão contribuir para que o Cade siga o exemplo de outras jurisdições
e se dedique a constituir bases de dados e a estudar mercados específicos.
Outro ponto que merece grande destaque diz respeito ao esforço, que pode ser
intensificado, de redução do déficit normativo da política de defesa da
concorrência no Brasil. A jurisprudência do Cade não pode ser a única fonte de
atualização do direito concorrencial brasileiro. O desenho normativo envolve de
imediato a regulamentação de alguns dispositivos legais, como a submissão de
contratos associativos, a venda de ativos e a dosimetria das penas. Além disso,
estão na nossa agenda a elaboração de novos guias, como os de concentração
horizontal e vertical, restrições verticais, cooperação entre empresas, bem como a
discussão sobre as políticas de negociação em atos de concentração e processos
administrativos.
Ainda na esfera da efetividade da atuação do Cade, nunca é demais lembrar o papel
que o Poder Judiciário exerce. Nos últimos três anos as decisões do Cade foram
confirmadas, em mais de 70%. Ademais, o êxito tem diminuído o incentivo à
judicialização. A título de exemplo, foram 343 medidas judiciais em 2007, e menos
de 55, em 2011. Para o futuro, a relação do Cade com o Judiciário pode pautar-se
não só pela defesa das suas decisões. Por exemplo, o Cade pode atuar na qualidade
de amicus curae sempre que a expertise em temas concorrenciais da Autarquia
puder contribuir para a resolução de processos judiciais de terceiros.
Por fim, pretendemos avançar na agenda de transparência, harmonização de
procedimentos e avaliação dos efeitos da aplicação da Lei. Essa preocupação com
os resultados revela-se não apenas na busca de eficiência, mas também no cuidado
em garantir a permeabilidade dos procedimentos do Cade a atores com visões não
raro contrapostas acerca do mérito dos casos analisados. Essa permeabilidade, que
já faz parte da cultura do Cade, além de contribuir para a qualidade do conteúdo da
decisão é ínsita à noção de devido processo legal, que também permeia as ações do
Conselho.
Ministro, acreditamos que esse conjunto de ações nos permitirá avançar de maneira
indutiva e perene, mas sempre enfrentando as seguintes questões: (i) temos as
melhores regras?; (ii) criamos os melhores meios de implementação?; (iii) nossas
políticas atingem bons resultados?
Esses questionamentos permearão nosso comportamento diário e certamente
revelarão a necessidade de correções de rota e ajustes incrementais, que dependem
de avaliação constante dos efeitos das ações públicas.
Por tudo que foi dito aqui, não temos dúvida de que vivemos uma nova etapa da
defesa da concorrência no Brasil. Temos um novo arranjo institucional que
estimula o ambiente competitivo, melhora as condições para a defesa dos direitos
econômicos
e
reafirma
o
compromisso
de
construir
um
modelo
de
desenvolvimento inclusivo. Tudo isso representa, sem dúvida, mais uma etapa no
processo de garantia de direitos fundamentais e constitui um avanço rumo à
maturidade democrática do nosso país.
Brasília, 18 de julho de 2012.
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