UMA SIMPLES OBSERVAÇÃO CLÍNICA
Contraindicação formal para o uso de bloqueadores do sistema renina –
angiotensina – aldosterona é a estenose bilateral das artérias renais. Na
realidade a contraindicação é a isquemia renal bilateral e não a simples
estenose. O tecido renal precisa estar em sofrimento, isquêmico,
hipoperfundido, hipóxico para que essa contraindicação realmente seja
válida.
Desde o fim da década de 70, a partir do captopril e depois de tantos
outros que se seguiram bloqueando o SRAA em vários níveis, a classe
médica tem se utilizado desses fármacos para controle eficaz da pressão
arterial, nefro, cárdio e cérebro proteção com redução dos riscos
cardiovasculares em geral.
Antigamente este uso ficava mais restrito aos especialistas nefrologistas e
cardiologistas, mas hoje fazem parte do arsenal básico de qualquer clínico
que lide com doenças crônicas, e, olhe que isso é muito frequente e
natural neste país continental.
Quatro situações, neste último ano, em minha prática clínica me fizeram
escrever este texto que, modestamente, tem a intenção de contribuir para
a reflexão dos colegas médicos, especialistas e professores universitários
para continuarmos nossa missão de salvar vidas, ou pelo menos, não
reduzi-las.
1- Paciente mulher de 73 anos, portadora de HAS há 40 anos com
creatinina de 4 mg/dl. Vinha em acompanhamento com seu bom
geriatra, sempre com função renal preservada com creatininas
normais até seis meses atrás. Em uso de bloqueador do SRAA e mais
diurético com efetivo controle da PA. Uma boa entrevista, exame
físico e análise dos exames que já trazia não demonstravam ser a
mesma portadora de doença renal crônica. Não consegui detectar
qual seria a etiopatogenia para a perda da função renal. Ao se
despedir, apesar da anamnese ter sido feita com rigor, a paciente
pára na porta do consultório e revela: “Uma vez doutor um médico
me disse que um dos meus rins é menor que o outro”. Continuou a
se despedir já saindo pelo corredor enquanto eu pensava que
deveria colocar essa informação no prontuário. “Por favor, senhora,
volte aqui, disse eu. Sente-se. Uma luz surgiu. Eu gostaria que a
senhora suspendesse o uso do bloqueador do SRAA”. Ela relutou
porque seu geriatra havia dito que nunca parasse de tomar esse
remédio. Expliquei que havia a hipótese de isquemia renal bilateral
e que o uso desse fármaco poderia estar prejudicando, hoje, a
função renal. Substitui por um antagonista de cálcio, solicitei que a
paciente medisse a PA em casa, me ligasse se fosse o caso e fizesse
nova dosagem da creatinina uma semana após. Creatinina uma
semana depois: 3,2 mg/dl; quinze dias depois: 2,4 mg/dl, 20 dias
após: 1,4 mg/dl e 25 dias após normalização em 1,0 mg/dl.
2- Paciente mulher de 55 anos, portadora de HAS há 23 anos por
estenose unilateral de artéria renal por displasia fibromuscular.
Minha paciente que sumiu do consultório havia mais de 10 anos.
Retorna com perda de função renal e extremamente nervosa. Dez
anos atrás sua função renal era perfeita e agora apresentava déficit
moderado com creatinina de 1,8 mg/dl numa mulher magra.
História revela a utilização de bloqueador do SRAA prescrito por
mim desde sua última visita, como já disse, há mais de 10 anos
atrás. Raciocínio clínico e argumentei com a paciente: “Você precisa
parar de tomar esse bloqueador do SRAA”, ao que a paciente,
rapidamente retrucou: “Mas foi o senhor mesmo que o
prescreveu”. “Sim, eu sei, estou vendo aqui no seu prontuário, mas
agora você tem mais 10 anos de vida e pode ser que a artéria
contralateral também esteja afetada e assim precisamos retirar o
bloqueador do SRAA para tentar recuperar sua função renal”.
Paciente convencida retorna em 10 dias com função renal
absolutamente normal, com creatinina de 0,9 mg/dl.
3- Casos 3 e 4 semelhantes: Pacientes homens de cerca de 65 anos
portadores de HAS em uso de bloqueador do SRAA há mais de 30
anos e em acompanhamento regular com médicos. Elevação
contínua e progressiva da creatinina desde há um ano. Suspensão
dos bloqueadores do SRAA com normalização da função renal em
cerca de 30 dias.
Comentários:
Indicação precípua de bloqueadores do SRAA: Estenose unilateral de
artéria renal.
Contraindicação precípua de bloqueadores do SRAA: Estenose bilateral
das artérias renais
Indicação precípua de bloqueadores do SRAA: Isquemia renal unilateral.
Contraindicação precípua de bloqueadores do SRAA: Isquemia renal
bilateral.
Meus prezados colegas a doença mais frequente nestes tempos malucos é
a Aterosclerose. Cerca de 70% das pessoas a possuem em maior ou menor
grau.
Nossos pacientes estão envelhecendo graças, também, ao maravilhoso
controle que esses bloqueadores do SRAA possibilitaram, mas podem
morrer se não soubermos substituí-los no momento certo porque quando
iniciaram a sua utilização, há 20, 30 ou 40 anos atrás tinham artérias mais
jovens, menos ateroscleróticas, portanto se beneficiaram durante todos
esses anos desses fantásticos bloqueadores do SRAA, mas agora precisam
continuar vivendo e talvez seja o momento de reavaliarmos, em algumas
“novas situações”, a continuidade ou não desses fármacos.
SRAA – Servo Rubens Azevedo do Amaral – médico nefrologista – educador
– escritor – comunicador em saúde e qualidade de vida. Um “Gentecista”
em constante mutação.
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