REVISTA DA ESMESE
“DIREITO DO FUTURO E
O FUTURO DO DIREITO”
Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n° 03. 2002
©REVISTA DA ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA
SERGIPE
DE
Comissão Editorial: Desª Josefa Paixão de Santana - Coordenadora; Juiz Netônio Bezerra Machado e Juíza Rosa Geane Nascimento
Santos - Membros.
Coordenação Técnica e Editorial: Joana Angélica de Souza Torres
Revisão: Ronaldson Sousa
Editoração Eletrônica: Joana Angélica de Souza Torres e Ana Lucia
da Silva Lourenço
Capa: Juan Carlos Reinaldo Ferreira
Tiragem: 500 exemplares
Impressão: Gráfica J. Andrade
Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe
Escola Superior da Magistratura de Sergipe
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R454
Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe.
Aracaju: ESMESE/TJ, n. 3, 2002.
Semestral
1. Direito - Períodico. I. Título.
CDU: 34(813.7)(05)
COMPOSIÇÃO
Diretora
Desembargadora Clara Leite de Rezende
Presidente do Conselho Administrativo
e Pedagógico
Desembargador José Artêmio Barreto
Coordenadores de Curso
Adriano José dos Santos
Ana Leila Costa Garcez
APRESENTAÇÃO
O DIREITO DO FUTURO
O tema que titula este número da revista, “O Direito do Futuro e
o Futuro do Direito”, nos traz a reflexão às grandes mudanças por que
passou a sociedade, especialmente após a revolução industrial que fez
surgir uma sociedade de massa reivindicadora de uma nova ordem jurídica, capaz de atender aos seus anseios.
Para sintonizar-se com os novos tempos, princípios garantidores
dos direitos fundamentais do cidadão, foram se introduzindo nas constituições dos países democráticos causando uma verdadeira revolução nas
concepções liberais até então reguladoras das relações sociais.
As constituições materiais vão se sobrepondo às constituições formais, reflexo da superação do positivismo jurídico que se seguiu à Revolução Francesa e influenciou todos os comportamento entre os homens e
entre estes com o Estado, até o início do século passado.
Toda esta revolução nos possibilitou uma constituição contemporânea, de natureza material, aberta, absorvendo os princípios gerais de
proteção ao cidadão, mas tendo em vista o social, possibilitando uma
legislação infraconstitucional capaz de atender aos anseios de todos.
Estatutos de grande alcance social surgiram para que a cidadania
fosse exercida como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Alimentos, o ECA, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Legislação Ambiental
se instalaram entre os estudiosos do Direito a necessidade de aprimoramento do acesso à Justiça. A explosão demográfica ocorrida nos últimos
50 anos exigiu um ajuste no ordenamento jurídico que se encontra em
andamento.
Neste estado de coisas o mundo foi se comportando de forma
diferente na economia e na política, de maneira a estabelecer novas
formas de convivência para salvaguardar o fortalecimento da economia
e da manutenção da paz.
Os países começam a se organizar em grupos tendo por objetivos
interesses comuns, criando organismos supranacionais para gestão dos
problemas que a todos atingem.
O conceito de soberania começa a ser modificado a partir da aceitação de um comando que transcende as suas constituições, as quais passam a submeter-se às normas dele advindas.
Assim foi formada a União Européia, principal exemplo de comunidade internacional de convivência entre países, e que, apesar dos retrocessos inevitáveis tem se mantido com muito sucesso, inicialmente com
poucos países agora atingido o número de 15, numa demonstração de
superação de suas divergências profundas na esfera política, para alcance
de um bem maior, a paz, que possibilita o progresso econômico.
Outros aglomerados de países mantêm o mesmo sistema como os
asiáticos, a Alca e o nosso Mercosul, ainda em estágio de formação mas
que num futuro de alcance imprevisível virá a se tornar uma comunidade
internacional.
No futuro a ordem jurídica não mais pertencerá a um só país mas
a um grupo de países, como referido, e o cidadão terá livre acesso aos
demais, exercitando os seus direitos além das fronteiras que estarão abertas.
Paralelamente ao quadro que descrevemos, uma ordem econômica privada se instala através das grandes holding e do comando do mercado financeiro internacional, interferindo diretamente na economia dos
países que ficam vulneráveis às suas oscilações com reflexos diretos em
suas economias e qualidade de vida. É o que se chama a globalização da
economia, parte do processo da globalização que envolve os demais aspectos: cultural, educacional, artístico, etc....
O comportamento social que surge num quadro de transformação radical do mundo contemporâneo gera conflitos novos em todas as
suas áreas, destacando-se a área econômica e a criminal onde diferentes
tipos de delitos começam a ser praticados em todo o mundo, sem que
exista uma ordem jurídica correspondente para combatê-los.
Assim ocorre com o chamado crime organizado cujos tentáculos
alcançaram todos os países e que por objetivar finalidade econômica está
respaldado em moderníssima tecnologia, dispondo de um aparato inteligente que vem desafiando a ordem jurídica dos países mais poderosos
como EUA, Inglaterra, Alemanha e Itália com resultados tímidos na sua
repressão.
Os crimes comuns de homicídio e furto que sempre ocorreram
mas dentro de um controle aceitável começam a perder importância diante da magnitude dos congêneres oriundos do narcotráfico de proporção incomparável e cujo combate esbarra na sua internacionalização,
enfrentando as dificuldades da competência etc...
Os crimes econômicos também ocupam papel de destaque neste
quadro de novos delitos emergentes de uma sociedade global, com iguais
dificuldades de repressão, como é exemplo a clonagem de cartões de
crédito, as invasões de contas por hackers, o branqueamento de capitais
(lavagem de dinheiro), o tráfico de órgãos e de mulheres, a exploração de
florestas com violação ao meio ambiente e muitos outros.
É de se constatar que o mundo ainda não está preparado para
estas mudanças e a ordem jurídica se presta apenas para o uso interno
dos países ou no máximo para um grupo de países como é o caso da
União Européia.
A legislação do chamado mundo civilizado prioriza definitivamente o cidadão, mas o seu alcance é irrisório se comparado com o
grande espectro não atingido.
Os direitos de 4ª dimensão começam também a pressionar o legislador de todo o mundo para impor uma ética aceitável desde a produção
de alimentos transgênicos, medicamentos (com possíveis efeitos futuros)
e o que é mais ousado a produção de clones humanos, capazes de por em
risco o futuro da espécie na ânsia de superar os limites da inteligência.
A engenharia genética evolui com grande desenvoltura enquanto a
sua regulamentação legal tímida não encontrou espaço no Código Civil,
nem criminal.
O econômico vem superando os valores resguardados aos verdadeiros objetivos contidos no ordenamento fundamental trocando-se o
fim (que é indivíduo) pelos meios, instrumentos econômicos de realização do indivíduo.
O direito do futuro andará por certo nessas direções mas sua evolução seguirá os novos condicionamentos do mundo, que hoje se encontra em conflito de culturas diferentes, de valores opostos numa luta de
fundo econômico mas de combustível religioso alheio ao controle das
grandes nações, protagonistas também deste conflito, que se localiza apenas no início, mas, que, envolve a todos numa grande batalha tecnológica
de proporções mundiais.
Não vislumbro onde chegará o Direito no futuro. Porém sendo o
justo a ser perseguido uma construção da cultura humana, por certo que
o mundo encontrará o seu ponto de equilíbrio na obtenção de uma ordem jurídica que, realizando o jogo dialético da evolução do comportamento do indivíduo e das nações, chegará a uma síntese capaz de fazer a
humanidade mais justa.
Penso ser este o futuro do Direito.
Desembargadora Clara Leite de Rezende
Aracaju, 16 de dezembro de 2002.
SUMÁRIO
Escola Superior da Magistratura de Sergipe
Sumário
APRESENTAÇÃO .............................................................................................7
DOUTRINA ....................................................................................................... 17
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E EMPRESAS - UMA PARCERIA
NECESSÁRIA
Fátima Nancy Andrighi ......................................................................19
CIDADANIA E OS DIREITOS DE PERSONALIDADE
Gustavo Tepedino .................................................................................23
O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AS AÇÕES COLETIVAS PARA A TUTELA DE DIREITOS OU INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
William Santos Ferreira ......................................................................45
DIREITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Rômulo de Andrade Moreira .............................................................85
RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA DO PROPRIETÁRIO
DO VEÍCULO PELA INFRAÇÃO DE TRÂNSITO E DEVIDO PROCESSO LEGAL
Eusebio de Oliveira Carvalho Filho ...............................................119
AÇÃO POPULAR CONSTITUCIONAL
Carlos Augusto Alcântara Machado ...............................................129
AS CONSEQUÊNCIAS DA SUSPENSÃO DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
Rosa Maria Mattos Alves de Santana Britto ..................................147
CRIMINALIDADE VIRTUAL
José Anselmo de Oliveira ..................................................................153
OS PRINCÍPIOS E A IMPORTÂNCIA PRÁTICA DA REFLEXÃO
TEÓRICA NO CONTEXTO PÓS-POSITIVISTA: DESCONFIANDO DA SAÍDA FÁCIL
Francisco Alves Junior .......................................................................165
O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
João Hora Neto ....................................................................................199
“COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR O CRIME DE
ABUSO DE AUTORIDADE EM RAZÃO DA LEI DOS JUIZADOS
FEDERAIS”
Evânio José de Moura Santos .............................................................213
ARMA DE BRINQUEDO: ARMA OU BRINQUEDO?
Ana Leila Costa Garcez ....................................................................221
A GESTÃO FISCAL E O CRIME DE CONTRATAÇÃO DE OPERAÇÃO DE CRÉDITO
Manoel Cabral Machado Neto .........................................................229
UMA REFLEXÃO SOBRE O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA
PARA INSTITUIR A CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA
Marcelo Jatobá Lôbo ..........................................................................237
SOLO CRIADO: UM INSTITUTO CONTROVERSO
Gabriela Maia Rebouças ..................................................................261
TEORIA DA INCONSTITUCIONALIDADE DO PROVIMENTO
EM COMISSÃO PARA DESVINCULADOS DO SERVIÇO PÚBLICO
Marcos Roberto Gentil Monteiro ......................................................271
A “VERTICALIZAÇÃO” DAS COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS NAS
ELEIÇÕES GERAIS DE 2002
Maurício Gentil Monteiro .................................................................277
POSITIVISMO JURÍDICO: O CÍRCULO DE VIENA E A CIÊNCIA
DO DIREITO EM KELSEN
Sidney Amaral Cardoso .....................................................................295
POR UMA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO ARTIGO 557
DO CPC
Pedro Dias de Araújo Júnior .............................................................305
A FAMÍLIA NO NOVO CÓDIGO CIVIL
Luciana Martins de Faro ...................................................................313
DIREITO CONSTITUCIONAL À FAMÍLIA
Cristiano Chaves de Farias ...............................................................319
O DIREITO À ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL
Fernando Clemente da Rocha .........................................................331
PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE, ÔNUS DA PROVA E
AUTOTUTELA : O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO?
José Sérgio Monte Alegre ....................................................................339
JURISPRUDÊNCIA ......................................................................................363
DOUTRINA
Escola Superior da Magistratura de Sergipe
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E EMPRESAS - UMA PARCERIA NECESSÁRIA
Fátima Nancy Andrighi.Ministra do Superior Tribunal de Justiça
O resgate da imagem da Justiça tem sido utilizado como bandeira
de luta de todos os interlocutores jurídicos, porquanto inegável a necessidade de visualização de caminhos que ofereçam alternativas para a melhoria
do quadro vigente.
Por esse prisma, sob pena de ser desperdiçada oportunidade única
que nos foi concedida pelo Poder Legislativo para resgatar a imagem da
Justiça, e que se fez marco na história do Poder Judiciário brasileiro, urge
abordar uma questão emergencial que deve ser cuidada com muito zelo
por todos. Trata-se do assoberbamento dos Juizados Especiais Cíveis.
Inegavelmente, é alvissareira a procura dos Juizados Especiais
Cíveis como leito adequado para a solução dos problemas jurídicos de
pequena monta e menor complexidade, porque comprova o exercício
pleno da cidadania. No entanto, é preocupante a perda da celeridade dos
processos que hoje tramitam nos Juizados Especiais Cíveis, devido à sobrecarga das secretarias com milhares de processos em andamento, o que
faz inevitavelmente retardar a data de designação das audiências, causando, conseqüentemente, o descumprimento do prazo legal para a entrega
do bem da vida reivindicado pelo cidadão.
Corre notícia que, devido ao excesso de processos, as audiências
de conciliação em vários Estados têm sido designadas até um ano após o
ajuizamento da reclamação.
Atentos a esses dados, procuramos a explicação para o abarrotamento de reclamações e, mediante estudo estatístico, ficou demonstrada
a presença intensa de algumas empresas de grande importância para o
setor econômico nacional, rotineiramente, na qualidade de reclamadas.
O que chama a atenção é que, em razão dos milhões de clientes
que atendem, o mais ínfimo número de consumidores insatisfeitos, por
exemplo, das empresas de telefonia, instituições financeiras, condomínios
horizontais, entre outros, representa enorme contingente de reclamantes,
momento em que fica evidente a incapacidade do Poder Judiciário de
acompanhar o crescimento desses vários segmentos produtivos da sociedade.
A mesma pesquisa estatística permitiu observar que os clientes
dessas empresas, quando recorrem ao Juizado Especial Cível, formulam
reclamações, na maioria dos casos, idênticas, que culminam em decisões
também idênticas. Apontando o exemplo das empresas de telefonia, verifica-se que a esmagadora maioria das reclamações busca indenização por
cobrança indevida ou desligamento de linha, não obstante o regular pagamento da conta, ou então, refere-se a problemas relativos à garantia e
manutenção de equipamentos.
De posse dessas informações, urge uma ação imediata dos Tribunais de Justiça Estaduais para impedir que sejam aniquilados os propósitos que justificam a existência dos Juizados Especiais Cíveis, especialmente a celeridade.
Não podemos privar o cidadão lesado do atendimento, ao tempo
em que também não é justo que algumas poucas empresas reclamadas
atulhem os Juizados Especiais Cíveis. É preciso harmonizar o interesse
do cidadão, em primeiro lugar, com o interesse dos Juizados Especiais.
Desse modo, pensamos que chegou a hora da busca de uma nova solução, antes que se instale o caos.
Ousar é preciso, por isso, invito todos a que lapidemos e adaptemos juntos a idéia da parceria com a descentralização das atividades dos
Juizados Especiais Cíveis.
N ão se olvida que a expressão parceria tem se revelado como
verdadeiro lugar comum e muito utilizada em múltiplas áreas da Administração Pública. Mas, sem dúvida, com notórios e exitosos resultados, o
que nos anima a imaginar que a adoção dessa experiência também alcançará sucesso no âmbito do Judiciário.
Como uma verdadeira revolução nos atuais modelos de procedimento do Poder Judiciário, principiaríamos sugerindo uma mudança no
espaço de atendimento ao cidadão, que, a partir da nova experiência, terá
possibilidade de reclamar seus direitos nas sedes das próprias empresas
geradoras dos conflitos, ou então, em outros locais de que elas mesmas
disponham para o atendimento, ou ainda, em outros de passagem obrigatória de pessoas, mas, sempre, com fácil acesso, ao alcance da mão, sem
dificuldade e tampouco burocracia.
Pode parecer, à primeira vista, protecionismo direcionado à empresa geradora dos conflitos. Contudo, não se pode fechar os olhos ou
ignorar o fato de vivermos num mundo dual. Dessa forma, sempre ha-
verá, paralelamente, a um benefício um contra-benefício. Por isso, ensinar
ao cidadão o direito de reclamar e proporcionar-lhe meios para isso importa, necessariamente, em exigir, também, o cumprimento da sua parte
na contratação dos serviços, estabelecendo-se, assim, uma perfeita reciprocidade de comportamentos.
Essa nova forma de solução de conflitos com parceria exige que
se empregue métodos modernos de documentação e até inéditos para a
atual visão do Judiciário. Para execução da parceria, idealiza-se um terminal de computador idêntico ao caixa eletrônico usado pelos bancos, que,
dotado de um software, além de elaborar a reclamação com o simples
preenchimento de pequenos campos, propiciará prévio, amplo e exaustivo diálogo sobre os direitos em discussão.
A reclamação, que só deve ser manejada quando se esgotarem
todas as possibilidades de soluções extrajudiciais, seguirá, via eletrônica,
para o Juizado Especial Cível.
Pretende-se, nessa parceria, além de utilizar os mediadores que
prestam serviços aos Juizados Especiais, treinar e especializar os funcionários da empresa-parceira para que, unidos no mesmo ideal, atendam
eqüitativamente tanto os interesses da empresa como do consumidor,
desarmando-se os espíritos de beligerância, melhorando a convivência
social, e, principalmente, mantendo íntegra as relações negociais.
O convite à reflexão para se perfilhar a experiência da parceria
Juizado Especial-Empresa implica em significativa mudança de mentalidade dos juízes, dos advogados e, também, de toda sociedade. Evidentemente fazemos parte do contexto ditado pelo mundo contemporâneo e
como agentes devemos fazer cumprir a verdadeira função do Poder Judiciário, que é atender os mais comezinhos anseios do ser humano – de
amor e de convivência pacífica - e com isso reduzir, na origem, os focos
de violência.
A psicologia do ser humano, amplamente demonstrada pelos quadros factuais que se delineiam, atesta que a animosidade advinda da insatisfação nas relações de consumo exaspera o cidadão/consumidor, levando-o, em casos extremados, à prática de atos passionais, desequilibrando a
harmonia da convivência social.
A semente da parceria Juizado Especial-Empresa plantada nos
corações atentos e preocupados com o processo de humanização da Justiça germinará em mais e melhores idéias e, principalmente, novas portas
abrir-se-ão, com intrepidez, na busca da tutela efetiva da criatura humana, razão e destinatário único da prestação dos serviços judiciários.
CIDADANIA E OS DIREITOS DE PERSONALIDADE *
Gustavo Tepedino, Professor Titular de Direito
Civil da Faculdade de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do
Programa de Doutorado em Direito Civil Comparado da Universidade do Molise, Itália. Visiting Professor of Law na Universidade de San Francisco,
Califórnia, U.S.A. Professeur Invitée da Faculdade de Direito da Universidade de Poitiers, França.
Diretor da Revista Trimestral de Direito Civil. Procurador Regional da República. **
SUMÁRIO: 1. Introdução. A codificação brasileira e os direitos da
personalidade. O Código Civil de 2002; 2. A personalidade na ordem
civil-constitucional: a cláusula geral de tutela da pessoa humana; 3. A
técnica das cláusulas-gerais na codificação de 2002: crítica e possibilidades hermenêuticas; 4. Insuficiência da técnica regulamentar em matéria
de proteção à pessoa. Exame de hard cases; 5. Pessoa jurídica e direitos da
personalidade. O art. 52 do Código Civil de 2002. A inadequação da
atribuição de danos morais à pessoa jurídica.
1. Mostra-se verdadeiramente eloqüente a inclusão do tema Cidadania e os Direitos de Personalidade no temário do maior congresso jurídico
brasileiro, a XVIII Conferência Nacional dos Advogados, dedicada à Cidadania, Ética e Estado. Significa, em primeiro lugar, a admissão de temas
tradicionalmente afetos ao Direito privado em agenda predominantemente
tratada sob o enfoque do Direito público. Sugere, em seguida, que os
chamados direitos da personalidade, concebidos em sua natureza
marcadamente civilista, devem ser revisitados, reestudados na perspectiva
do exercício da cidadania e dos direitos humanos, especificamente no que
concerne a relações em que a pessoa se torna mais vulnerável: as relações
de Direito privado. A indagação imediata parece inevitável: justifica-se
ainda a summa divisio público e privado, tão cara aos oitocentistas e aos
(sempre atentos) iluministas de plantão? E ainda: a dogmática da teoria
geral (dos direitos subjetivos e das fontes normativas) dá conta de uma
proteção integral à pessoa humana, para além da fixação de novos direi-
tos da personalidade?
Tais indagações tornam-se angustiantes quando se tem presente a
promulgação do Código Civil de 2002, em face do qual há de se manter
um comportamento respeitoso, mas crítico, buscando-se a melhor solução interpretativa e sua máxima eficácia social, com base nos valores
consagrados no ordenamento civil-constitucional. Chega a ser paradoxal
que, embora se originando de um projeto redigido nos anos 70, tenha o
Código colhido de surpresa a comunidade jurídica. E isto ocorreu provavelmente porque durante mais de sessenta anos habituou-se, no Brasil, a
discutir a revisão do Código Civil de 1916, sem que se levasse efetivamente a sério a possibilidade de uma concreta recodificação1. O abandono injustificado de uma série de projetos de lei por parte do Poder Executivo parecia traduzir a vontade política negativa ou o reduzido interesse
da sociedade no sentido de uma reforma da legislação civil.
Vale relembrar, a título ilustrativo: em 1941 publicou-se importante projeto de lei relativo ao Código das Obrigações, elaborado pelos professores Orozimbo Nonato, Filadelfo Azevedo e Hahnemann Guimarães. Em 1961, foi convidado o professor Orlando Gomes para a redação do novo Código Civil, que deveria regular as matérias atinentes aos
direitos de família, reais e das sucessões. Contemporaneamente, a elaboração do anteprojeto de lei relativo ao Código das Obrigações foi cometida ao professor Caio Mário da Silva Pereira. Seu trabalho foi convertido em Projeto de Lei, após a revisão efetuada por uma comissão composta pelo autor juntamente com os professores Orozimbo Nonato,
Theóphilo Azeredo Santos, Sylvio Marcodes, Orlando Gomes e Nehemias
Gueiros.
Em 1967, sem que houvesse uma razão aparente, o governo simplesmente abandonou o Projeto, nomeando uma nova Comissão, composta pelos Professores Miguel Reale, que a presidiu, José Carlos Moreira
Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do
Couto e Silva e Torquato Castro. Os trabalhos desta Comissão resultaram
no Projeto de Lei n. 635, de 1975, o qual, depois de numerosas alterações, permaneceu esquecido por quase 20 anos, sendo finalmente alçado
à agenda prioritária do Congresso Nacional, e aprovado por meio da Lei
n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Durante todo este tumultuado arco de tempo, o Código de 1916
foi sendo profundamente alterado, de maneira gradual mas intensa, por
intermédio da magistratura e do legislador especial, sobretudo depois da
reforma constitucional de 5 de outubro de 1988. Pouco a pouco, o esmorecimento do interesse pelo velho projeto de lei parecia coincidir com a
perda de centralidade do Código Civil no sistema de fontes normativa.
Assim como na Europa Continental, numerosas leis especiais passaram a
regular setores relevantes do ordenamento, na medida em que a disciplina
do Código era considerada mais e mais ultrapassada. Este processo, amplamente registrado em doutrina, conhecido como movimento de descodificação,
na experiência brasileira reservou à Constituição de 1988 o papel
reunificador do sistema. A complexidade da produção normativa e a necessidade de uma releitura da legislação ordinária à luz da Constituição
tornavam sempre mais remota a aprovação do Projeto de Código Civil.
Por outro lado, a doutrina punha em dúvida a necessidade de um novo
Código Civil, dissociado de uma clara transformação da cultura jurídica,
que fosse capaz de demonstrar a plena consciência do impacto da Constituição nas relações de direito privado2. Ao lado disso, o interminável iter
parlamentar tornava sempre mais legítima a suspeita de que o projeto não
fosse se transformar em lei. Tais circunstâncias explicam a ausência de
uma discussão profunda entre os civilistas - sempre mais incrédulos - e as
perplexidades suscitadas pela decisão do governo de retomar o andamento do processo parlamentar e fazer aprovar o projeto. Nada obstante, o
Código foi finalmente aprovado e promulgado, revelando em seu texto a
influência dos Códigos Civis alemão – BGB -, de 1896, italiano, de 1942,
e português, de 1966.
Ao contrário do que de ordinário se verifica no processo de
codificação, o Código Civil de 2002 não traduz uma uniformidade política e ideológica, em razão da distância entre os contextos políticos do
início e da conclusão de sua elaboração3. Tal circunstância indica a complexidade axiológica da nova codificação brasileira, a exigir especial atenção da atividade do intérprete. Particularmente no que concerne à proteção da pessoa humana, não se pode negar a perplexidade causada pelo
projeto aprovado, que retrata uma lógica patrimonialista e individualista
de difícil conciliação com a ordem pública constitucional, marcada pelos
valores da solidariedade social, isonomia substancial e dignidade da pessoa humana4
Os direitos da personalidade, ausentes no Código de 1916, foram
admitidos no Brasil por força de construções doutrinárias, com base em
leis especiais e na Constituição da República. O Código de 2002 regula
alguns direitos da personalidade, na esteira de disposições semelhantes
dos arts. 5 a 10 do Código Civil italiano. Encontram-se enunciados os
direitos ao nome, ao pseudônimo, à imagem. Os atos de disposição do
próprio corpo são vedados quando ocasionam uma diminuição permanente da integridade física ou quando sejam contrários ao bom costume.
Duas cláusulas gerais são veiculadas nos arts. 12 e 21. O artigo 12 prevê
a possibilidade de cessão de ameaça ou da lesão a direito da personalidade
e o ressarcimento pelos danos causados. Nos termos do art. 21, “a vida
privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato
contrário a esta norma”.
4. Ambos os dispositivos, lidos isoladamente no âmbito do corpo
codificado, não trazem grande novidade, sendo certo que a vida privada
é constitucionalmente inviolável (CF, art. 5º, caput, e inciso X,) e que
qualquer lesão ou ameaça de lesão possibilita a correspondente tutela
jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV). Os preceitos ganham contudo algum
significado se interpretados como especificação analítica da cláusula geral
de tutela da personalidade prevista no Texto Constitucional nos arts. 1º,
III (a dignidade humana como valor fundamental da República), 3º, III
(igualdade substancial) e 5º, § 2º (mecanismo de expansão do rol dos
direitos fundamentais)5. A partir daí, deverá o intérprete romper com a
ótica tipificadora seguida pelo Código Civil, ampliando a tutela da pessoa
humana não apenas no sentido de admitir uma ampliação de hipóteses de
ressarcimento mas, de maneira muito mais ampla, no intuito de promover a tutela da personalidade mesmo fora do rol de direitos subjetivos
previstos pelo legislador codificado.
Como já se teve ocasião de sublinhar, mostra-se insuficiente qualquer construção doutrinária que, tipificando vários direitos da personalidade ou cogitando de um único direito geral da personalidade, acaba por
limitar a proteção da pessoa à atribuição de poder para salvaguarda meramente ressarcitória, seguindo a lógica dos direitos patrimoniais. Critica-se,
nesta direção, a elaboração corrente, que concebe a proteção da personalidade aos moldes (ou sob o paradigma) do direito de propriedade 6.
Desse modo, a personalidade humana deve ser considerada antes
de tudo como um valor jurídico, insuscetível, pois, de redução a uma
situação jurídica-tipo ou a um elenco de direitos subjetivos típicos, de modo a se
proteger eficaz e efetivamente as múltiplas e renovadas situações em que
a pessoa venha a se encontrar, envolta em suas próprias e variadas circunstâncias. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado, ado-
tado pelo Codificador brasileiro, será necessariamente insuficiente para
atender às possíveis situações subjetivas em que a personalidade humana
reclame tutela jurídica7.
Permanecem os manuais brasileiros, em sua maioria, analisando a
personalidade humana do ponto de vista exclusivamente estrutural (ora
como elemento subjetivo da estrutura das relações jurídicas, identificada
com o conceito de capacidade jurídica, ora como elemento objetivo, ponto de referência dos direitos da personalidade) e protegendo-a em termos
apenas negativos, no sentido de repelir as agressões que a atingem. Reproduz-se, desse modo, a técnica do direito de propriedade, delineando-se
a tutela da personalidade de modo setorial e insuficiente.
Em que pese, pois, a extraordinária importância das construções
doutrinárias que engendraram os direitos da personalidade, a proteção
constitucional da pessoa humana supera a setorização da tutela jurídica (a
partir da distinção entre os direitos humanos, no âmbito do Direito público, e os direitos da personalidade, na órbita do Direito privado) bem
como a tipificação de situações previamente estipuladas, nas quais pudesse incidir o ordenamento8.
Também não parece suficiente o mecanismo meramente repressivo e de ressarcimento, próprio do Direito penal, de incidência normativa
limitada ao aspecto patológico das relações jurídicas, ou seja, no momento em que ocorre a violação do Direito (binômio lesão-sanção). Exige-se,
ao reverso, instrumentos de promoção e emancipação da pessoa, considerada em qualquer situação jurídica que venha a integrar, contratual ou
extracontratualmente, quer de Direito público quer de Direito privado 9.
Procedendo-se, em definitivo, a uma conexão axiológica do tímido
elenco de hipóteses-tipo previsto no Código Civil de 2002 ao Texto Constitucional, parece lícito considerar a personalidade não como um novo
reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercida a sua
titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da
autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de legitimidade.
Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação
da pobreza e da marginalização, bem como de redução das desigualdades
sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não
exclusão de quaisquer direitos e garantias, ainda que não expressos, mas
decorrentes dos princípios adotados pelo Texto Maior, configuram uma
verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como
valor máximo pelo ordenamento.
Tal perspectiva, porém, não se confunde com a construção de um
único direito geral de personalidade, significando, ao contrário, o ocaso da
concepção de proteção da pessoa humana associada exclusivamente à
atribuição de titularidades e à possibilidade de obtenção de ressarcimento.
Cabe ao intérprete ler o novelo de direitos introduzidos pelos arts. 11 a 23
do Código Civil à luz da tutela constitucional emancipatória, na certeza de
que tais diretrizes hermenêuticas, longe de apenas estabelecerem parâmetros
para o legislador ordinário e para os poderes públicos, protegendo o indivíduo contra a ação do Estado, alcançam também a atividade econômica
privada, informando as relações contratuais. Não há negócio jurídico ou
espaço de liberdade privada que não tenha seu conteúdo redesenhado
pelo texto constitucional.
3. A opção metodológica acima indicada demonstra a insuficiência
da técnica das cláusulas gerais tão alardeada no Código Civil de 2002.
O Código Civil introduz cláusulas gerais que revelam uma atualização em termos de técnica legislativa, mas que exigem cuidado especial
do intérprete. Adotadas em diversos Códigos Civis, como no caso do
Código Comercial brasileiro de 1850, do Código alemão de 1896 e do
Código italiano de 1942, as cláusulas gerais, só por si, não significam
transformação qualitativa do ordenamento. No caso do Código Comercial brasileiro, a boa-fé objetiva não chegou a ser jamais utilizada. A doutrina e a jurisprudência alemãs, a propósito da dicção do § 242 do BGB,
precisaram de mais de 40 anos para determinar o real significado da boafé ali enunciada. Não foi muito diversa a experiência italiana, onde as
cláusulas gerais que, no Código Civil de 1942, eram inspiradas em uma
clara ideologia produtivista e autárquica, assumiram um significado inteiramente diverso por obra doutrinária, sobretudo depois do advento da
Constituição de 1948 10.
Em outras palavras, as cláusulas gerais em codificações anteriores
suscitaram compreensível desconfiança, em razão do alto grau de
discricionariedade atribuída ao intérprete: ou se tornavam letra morta ou
dependiam de uma construção doutrinária capaz de lhes atribuir um conteúdo menos subjetivo.
Para evitar a insuperável objeção, o legislador contemporâneo adota
amplamente a técnica das cláusulas gerais de modo só aparentemente
semelhante à técnica do passado, reproduzida inclusive pelo Código de
2002. O legislador atual procura associar a seus enunciados genéricos
prescrições de conteúdo completamente diverso em relação aos modelos
tradicionalmente reservados às normas jurídicas. Cuida-se de normas que
não prescrevem uma certa conduta mas, simplesmente, definem valores
e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência
interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites
para a aplicação das demais disposições normativas. Tal é a tendência das
leis especiais promulgadas a partir dos anos 90, assim como dos Códigos
Civis mais recentes e dos projetos de codificação supranacional.
Na experiência brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente,
o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Cidade são bons
exemplos de ampla utilização da técnica das cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados associada a normas descritivas de valores. O novo
Código Civil brasileiro, inspirado nas codificações anteriores aos anos 70,
introduz inúmeras cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados,
sem qualquer outro ponto de referência valorativo. Torna-se imprescindível, por isso mesmo, que o intérprete promova a conexão axiológica entre
o corpo codificado e a Constituição da República, que define os valores e
os princípios fundantes da ordem pública. Desta forma dá-se um sentido
uniforme às clausulas gerais, à luz da principiologia constitucional, que
assumiu o papel de reunificação do Direito privado, diante da pluralidade
de fontes normativas e da progressiva perda de centralidade interpretativa
do Código Civil de 1916.
Dito diversamente, as cláusulas gerais do novo Código Civil poderão representar uma alteração relevante no panorama do Direito privado
brasileiro desde que lidas e aplicadas segundo a lógica da solidariedade
constitucional e da técnica interpretativa contemporânea.
A propósito, destacou-se em doutrina a importância dessa diretriz
metodológica no momento em que, com o objetivo de se desenhar uma
cultura jurídica pós-moderna, sublinhou-se as 4 características centrais da
técnica legislativa contemporânea, dentre as quais se destaca a narrativa,
como meio de legitimação e de persuasão11. A narrativa na linguagem
legislativa é considerada, pois, indispensável à unificação do sistema sempre mais complexo, de modo a permitir a atuação otimizada de uma
jurisprudência de valores comprometida com as opções (valorativas) da
sociedade.
Se o Século XX foi identificado pelos historiadores como a Era dos
Direitos, à ciência jurídica resta uma sensação incômoda, ao constatar sua
incapacidade de conferir plena eficácia ao numeroso rol de direitos conquistados. Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que
possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta
direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana, como tem ocorrido de maneira
superabundante nas diretivas européias e em textos constitucionais, bem
como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à
luz dos princípios que vinculam o intérprete, seja nas situações jurídicas
típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos
códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade
cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do
ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o
preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto.
4. Para se corroborar a necessidade de ampliação interpretativa da
proteção da pessoa humana em face da insuficiente técnica regulamentar
dos direitos da personalidade, segundo a metodologia antes proposta, temse recorrido a alguns casos emblemáticos, surgidos na experiência francesa e na européia 12.
Hipótese interessante é colhida da jurisprudência italiana. Impossibilitados de conceber um filho, marido e mulher decidem recorrer aos
métodos de fertilização assistida. Autorizada expressamente pelo marido,
a mulher vale-se de um banco de sêmen e consegue, desta forma, através
da chamada de inseminação heteróloga, dar à luz a uma criança. Passamse os anos e dissolve-se o casamento. O homem ingressa com ação negatória
de paternidade, diante de sua impossibilidade absoluta para a reprodução.
A magistratura acolhe o seu pedido, confirmado pelo Tribunal de Brescia.
A Corte de Cassação, finalmente, em grau de recurso, reformou as decisões anteriores, afirmando que o sacrifício ao princípio do favor veritatis se
impunha, em homenagem a valores cardiais do ordenamento constitucional italiano, com expressa referência ao princípio da solidariedade13.
Outro caso refere-se à transexualidade. À falta de expressa previsão legal, doutrina e jurisprudência brasileiras mostram-se resistentes à
admissão da intervenção cirúrgica de alteração do sexo e, mais grave,
contrárias à retificação do registro civil para a mudança do sexo e do
nome do transexual, mesmo após a cirurgia, normalmente realizada no
exterior. Além dos inúmeros inconvenientes sofridos por transexuais com
projeção na imprensa14, vale relatar hipótese em que o descompasso entre a realidade fática e a legislativa (rectius, interpretativa) propiciou verdadeira agressão à dignidade da pessoa humana.
Após 10 anos de vida conjugal na Dinamarca, com um marido
francês e um filho adotado segundo a legislação francesa, um brasileiro
transexual, chamado Juracy, veio ao interior da Bahia para visitar a família. Decidiu, então, com o marido, adotar uma criança abandonada, José,
com 6 anos de idade, “à moda brasileira”, ou seja, registrando-a como
filha do casal. Juracy foi presa pela polícia federal no momento em que
pretendia obter o passaporte para José, lhe sendo imputada a prática dos
crimes de uso de documento falso (art. 304, C.P.) – dizia-se mulher quando na verdade constava em sua certidão o sexo masculino - promoção de
ato destinado ao envio de criança para o exterior (art. 239 da Lei 8.069/
90) e falsidade ideológica (art. 299, C.P.), além de ter sido questionada
pelo Ministério Público a adoção de uma criança por um casal de homossexuais.
A partir daí, a vida da família transformou-se em verdadeiro pesadelo. Juracy foi recolhida ao pavilhão masculino do aterrorizante presídio
de Água Santa, no Rio de Janeiro, onde foi submetida, certamente, à mais
vil degradação. Seus filhos, o maior deles um adolescente estudioso, responsável e poliglota, segundo consta nos autos, foram recolhidos a um
asilo de menores. O pai, também denunciado, foi posto em liberdade
mediante o pagamento de fiança, afirmando em juízo desconhecer inteiramente, assim como o filho adolescente, a transexualidade de Juracy.
Ambos os réus foram absolvidos no processo criminal, tendo a 1ª
Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por maioria de votos,
mantido a sentença, rejeitando o recurso interposto pelo Ministério Público, embora a vida daquela família tenha sofrido, com o processo, a prisão
e as humilhações que lhe foram impostas, danos provavelmente
irreparáveis, ainda que os princípios constitucionais pudessem ser invocados, mesmo sem previsão legal específica, para a solução do conflito 15.
O terceiro caso a ser destacado, na esteira das mesmas considerações até aqui desenvolvidas, alude à possibilidade de se exigir do réu, na
ação de investigação de paternidade, que se submeta ao exame de DNA,
mesmo contra a sua vontade.
A jurisprudência, tendencialmente, tem tomado posição pela impossibilidade do constrangimento físico do réu, servindo a recusa como
prova, em favor do autor, do vínculo de paternidade, a ser sopesada pelo
magistrado no conjunto probatório. Este entendimento, de resto, foi o
adotado pelo Código de 2002, nos arts. 231 e 232, em matéria de prova16.
Alguns autores têm se manifestado no mesmo sentido, em homenagem
ao “direito individual, fundamental, constitucional, natural da pessoa à
sua integridade corporal. Violaria o direito constitucional à intimidade
(art. 5º, X) constranger-se alguém a fornecer material ou substância para
um exame biológico” 17.
A matéria foi submetida no final dos anos 90 ao Supremo Tribunal
Federal, em Habeas Corpus impetrado contra a obrigatoriedade do exame
determinada pelo juiz monocrático no Rio Grande do Sul, em decisão
confirmada pelo Tribunal de Justiça daquele Estado. A Suprema Corte,
por maioria apertada, manifestou-se pela concessão da ordem, em acórdão
redigido pelo Ministro Marco Aurélio18.
No controvertido julgamento restaram vencidos os Ministros Francisco Rezek, Sepúlveda Pertence e Ilmar Galvão, tendo sido relator o
primeiro deles, com voto primoroso em que coteja, de um lado, os direitos à intangibilidade e à intimidade, aqui atingidos pelo dever de oferecer
um fio de cabelo para o exame e, de outro, os direitos à investigação de
paternidade e à elucidação da verdade biológica, concluindo pelo
prevalecimento destes últimos. E remata : “A Lei 8.069/90 veda qualquer
restrição ao reconhecimento do estado de filiação, e é certo que a recusa
significará uma restrição a tal reconhecimento. O sacrifício imposto à
integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim com a certeza que a prova pericial pode
proporcionar à decisão do magistrado” 19.
Apresenta-se particularmente importante, independentemente da
posição vencedora, a admissão, pela Suprema Corte, do controle social
atinente à ordem pública na esfera privada e nos conflitos de interesse
tradicionalmente afetos ao Direito Civil - mercê da tutela da dignidade
humana. Matérias que no passado eram reservadas à autonomia da vontade ou, no máximo, a presunções legais, que estabeleciam verdades jurídicas formais e indiscutíveis, tornam-se objeto de controle pelo Judiciário,
na medida em que o respeito à dignidade da pessoa humana integra a
ordem pública constitucional, independentemente da natureza pública ou
privada da relação jurídica subjacente.
Ao comentar criticamente o acórdão, observou-se, argutamente,
em doutrina que a hipótese caracterizaria abuso de direito por parte do
réu: “o direito à integridade física configura verdadeiro direito subjetivo
da personalidade, garantido constitucionalmente, cujo exercício, no entan-
as responsabilidades decorrentes da relação de paternidade” 20.
Em outras hipóteses não reguladas por norma infraconstitucional,
a magistratura tem-se pronunciado mediante a aplicação direta (e invocação expressa) dos princípios constitucionais. São emblemáticos desta tendência a sentença de São Paulo, prolatada em 1992, que considerou
abusiva certa publicidade por atentar contra a dignidade da pessoa humana e
o voto vencido do Min. Ruy Rosado de Aguiar, proferido no Superior
Tribunal de Justiça, em 1994 em que considera o equilíbrio contratual
como expressão do princípio da “solidariedade social (art. 3o, I, da CF)” 21.
Em matéria de família, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, por intermédio de voto do Desembargador Breno Mussi, considerou
que o juízo competente para julgar a extinção de uma união civil de pessoas do mesmo sexo, formada por dois homossexuais, é a vara de família,
não já a vara cível, à luz dos princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana e da solidariedade social, a partir de uma visão da família
funcionalizada à realização de valores existenciais, não patrimoniais, ou
exclusivamente matrimoniais, como entendia o nosso Código Civil 22.
Ainda no campo do Direito de Família, a 3a Turma do Superior
Tribunal de Justiça, por voto do Ministro Barros Monteiro, deferiu o
dever de alimentos em favor da ex-companheira, após dissolvida a união
estável, mesmo à falta de previsão expressa infraconstitucional, em homenagem aos vínculos de solidariedade que norteiam aquela entidade
familiar, de modo a avocar a incidência da disciplina de alimentos prevista para a extinção da sociedade conjugal 23.
Também o Superior Tribunal de Justiça, por sua 3a Turma, considerou discriminatória a disposição estatutária de clube social que não
aceitava como dependente do sócio a criança que, estando sob a guarda
judicial do sócio, não fosse seu filho. A corte compeliu o clube a incluir o
menor como sócio-dependente, no quadro social. Reconhece o voto do
Relator, Ministro Eduardo Ribeiro a ampla “liberdade das associações
privadas para , em seus estatutos, disporem como mais adequado lhes
parecer. Nada impediria, por exemplo, determinassem que só poderiam
ser sócios, na qualidade de dependentes, os menores de 15 anos ou, mesmo, que não haveria tal categoria de sócios. O que não podem entretanto,
é estabelecer discriminação que a lei não admite”.
Tais são algumas decisões em que a magistratura brasileira tem
sido chamada a se pronunciar sem norma regulamentar específica, colhendo-se do texto constitucional os princípios diretivos que diretamente
servem a dirimir as controvérsias. Sublinhe-se, por outro lado, que em
todas elas verifica-se a redefinição valorativa dos institutos de Direito
privado, contemplando a jurisprudência a prevalência de situações existenciais sobre situações patrimoniais definidas expressamente pelo legislador ordinário.
Tal reconstrução valorativa é de ser operada em relação ao elenco
de direitos da personalidade previsto no Código Civil de 2002, bem como
no que tange às cláusulas gerais adotadas pelo codificador, de molde a lhe
emprestar conteúdo axiológico coerente com a legalidade constitucional.
5. Examine-se, a propósito, a cláusula geral contida no art. 52,
segundo a qual “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção
dos direitos da personalidade” 24. Andou bem o legislador, desta feita, em
não conferir à pessoa jurídica direitos informados por valores inerentes à
pessoa humana. Limitou-se aqui o art. 52 a permitir a aplicação, por
empréstimo, da técnica da tutela da personalidade, apenas no que couber,
à proteção da pessoa jurídica. Esta, embora dotada de capacidade para o
exercício de direitos, não contém os elementos justificadores da proteção
à personalidade, concebida como bem jurídico, objeto de situações existenciais.
Tal como a pessoa humana, a pessoa jurídica e diversos outros
entes despersonalizados são dotados de subjetividade, conferindo-se-lhes a
capacidade para serem sujeitos de direito. Somente no sentido tradicional,
portanto, pode-se identificar as noções de personalidade e capacidade,
equiparação que, justificando-se no passado, hoje suscita inconveniente
conceitual grave, na medida em que a personalidade se torna objeto de
tutela jurídica. Para evitar semelhante confusão conceitual, a doutrina
contemporânea aparta a noção de subjetividade daquela de personalidade
25
, esta expressão da dignidade da pessoa humana e objeto de tutela privilegiada pela ordem jurídica constitucional.
As pessoas jurídicas são sujeitos de direitos - como também podem
sê-lo os entes despersonalizados (basta pensar no condomínio ou na massa falida) -, dotadas de capacidade de direito e de capacidade postulatória,
no plano processual, segundo as conveniências de política legislativa. Tal
constatação permitiu que, ao longo do tempo, fosse estendida, pela doutrina e jurisprudência brasileiras, a proteção recém-consagrada aos direitos da personalidade às pessoas jurídicas. O mesmo raciocínio, de resto,
levou o Superior Tribunal de Justiça a admitir o ressarcimento por danos
morais às pessoas jurídicas26.
Assim é que, apesar de a importância prática da solução pretoriana,
que permitiu que se assegurasse o ressarcimento em hipóteses de difícil
configuração e liquidação de danos, é de se conjurar a perigosa associação da lógica empresarial, informada pelos valores próprios das relações
jurídicas patrimoniais, à tutela da pessoa humana, que preside as relações
jurídicas existenciais. A fórmula em apreço pode ser explicada, provavelmente, pela insuficiência das construções doutrinárias, no sentido de satisfazer os interesses ressarcitórios das pessoas jurídicas. Mas não se justifica a sua manutenção, que produz conseqüências inquietantes, dentre as
quais a fixação de critérios para a valoração de danos e a gradação do
quantum ressarcitório em descompasso com a axiologia constitucional,
equiparando-se empresa e pessoa humana.
É certo que em determinado momento histórico o trabalho
jurisprudencial teve indiscutível mérito, ampliando horizontes de reparação, assim como, nos anos 70, a admissão dos danos morais deu-se por
intermédio de raciocínio inteiramente patrimonializado (relembre-se, a
propósito, o enunciado da Súmula n. 491do STF, pela qual “ é indenizável
o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado”, consagrando danos morais que, todavia, seriam calculados com base em uma expectativa artificial de ganhos que o filho menor e desempregado poderia vir a gerar para a família!). A importância
histórica da jurisprudência evolutiva não justifica, contudo, a repetição
acrítica, pela doutrina, de tamanha promiscuidade conceitual,
descomprometida com a legalidade constitucional.
Resulta daí o equívoco de se imaginar os direitos da personalidade
e o ressarcimento por danos morais como categorias neutras, aplicáveis à
pessoa jurídica tout court, para a sua tutela (endereçada, em regra, à
maximização de seu desempenho econômico e de sua lucratividade). Ao
revés, o intérprete deve estar atento para a diversidade de princípios e de
valores que inspiram a pessoa física e a pessoa jurídica.
Não se discute ser a pessoa jurídica dotada de capacidade jurídica
(e neste sentido invoca-se tradicionalmente sua personalidade jurídica),
sendo efetivamente merecedoras de tutela as situações em que se verifica
uma falsa semelhança com a tutela da personalidade humana. Isto ocorre, por exemplo, na proteção do sigilo industrial ou comercial, só aparentemente assemelhado ao direito à privacidade; ou no tocante ao direito ao
nome comercial, cuja natureza não coincide com a do direito ao nome.
Todavia, a fundamentação constitucional dos direitos da persona-
lidade, no âmbito dos direitos humanos e a elevação da pessoa humana
ao valor máximo do ordenamento não deixam dúvidas sobre a preponderância do interesse que a ela se refere, e sobre a distinta natureza dos
direitos que têm por objeto bens que se irradiam da personalidade humana em relação aos direitos (em regra patrimoniais) da pessoa jurídica, no
âmbito da atividade econômica privada27.
Assim é que o texto do art. 52 parece reconhecer que os direitos
da personalidade constituem uma categoria voltada para a defesa e para a
promoção da pessoa humana. Tanto assim que não assegura às pessoas
jurídicas os direitos subjetivos da personalidade, admitindo, tão somente,
a extensão da técnica dos direitos da personalidade para a proteção da
pessoa jurídica. Qualquer outra interpretação, que pretendesse encontrar
no art. 52 o fundamento para a admissão dos direitos da personalidade
das pessoas jurídicas, contrariaria a dicção textual do dispositivo e se chocaria com a informação axiológica indispensável à concreção da aludida
cláusula geral.
A rigor, a lógica fundante dos direitos da personalidade é a tutela
da dignidade da pessoa humana. Ainda assim, provavelmente por conveniência de ordem prática, o codificador pretendeu estendê-los às pessoas
jurídicas, o que não poderá significar que a concepção dos direitos da
personalidade seja uma categoria conceitual neutra, aplicável indistintamente a pessoas jurídicas e a pessoas humanas.
Descartada a equiparação dos direitos tipicamente atinentes às
pessoas naturais (integridade psico-física, pseudônimo, etc.) vê-se que não
é propriamente a honra da pessoa jurídica que merece proteção, nem em
vertente subjetiva tampouco em caráter objetivo. A tutela da imagem da
pessoa jurídica – atributo mencionado, assim como a honra, pelo artigo
20 – tem sentido diferente da tutela da imagem da pessoa humana. Nesta,
a imagem é atributo de fundamental importância, de inspiração constitucional inclusive para a manutenção de sua integridade psicofísica. Já para
a pessoa jurídica com fins lucrativos, a preocupação resume-se aos aspectos pecuniários derivados de um eventual ataque à sua atuação no mercado. O ataque que na pessoa humana atinge a sua dignidade, ferindo-a
psicológica e moralmente, no caso da pessoa jurídica repercute em sua
capacidade de produzir riqueza, no âmbito da iniciativa econômica por
ela legitimamente desenvolvida.
Há que se resguardar, todavia, a necessária diferenciação entre as
pessoas jurídicas que aspiram ao lucro e aquelas que se orientam por
outras finalidades. Particularmente neste último caso não se pode considerar (como ocorre na hipótese de empresas com finalidade lucrativa)
que os ataques sofridos pela pessoa jurídica acabam por se exprimir na
redução de seus lucros, sendo espécie de dano genuinamente material.
Cogitando-se, então, de pessoas jurídicas sem fins lucrativos deve ser admitida a possibilidade de configuração de danos institucionais, aqui conceituados como aqueles que, diferentemente dos danos patrimoniais ou
morais, atingem a pessoa jurídica em sua credibilidade ou reputação.
Com efeito, a maior parte dos danos que são invocados em favor
da pessoa jurídica enquadram-se facilmente na categoria dos danos materiais. O ataque à imagem de uma empresa normalmente se traduz em
uma diminuição de seus resultados econômicos. Situações há, contudo,
em que a associação sem fins lucrativos, uma entidade filantrópica por
exemplo, é ofendida em seu renome. Atinge-se a sua credibilidade, chamada de honra objetiva sem que, neste caso, se pudesse afirmar que o
dano fosse mensurável economicamente, considerando-se sua atividade
exclusivamente inspirada na filantropia. Aqui não há evidentemente dano
material. E tal constatação não pode autorizar a irresponsabilidade, ou,
em sentido contrário, a admissão de uma desajeitada noção de dignidade
corporativa ou coletiva (que chega a lembrar o Ministro de Estado que,
anos atrás, se referiu carinhosamente a seu cão de estimação como sendo
um ser humano...). A solução, pois, é admitir que a credibilidade da pessoa
jurídica, como irradiação de sua subjetividade, responsável pelo sucesso
de suas atividades, é objeto de tutela pelo ordenamento e capaz de ser
tutelada, especialmente na hipótese de danos institucionais. Tal entendimento mostra-se coerente com o ditado constitucional e não parece destoar do raciocínio que inspirou a recente admissibilidade, pelo Superior
Tribunal de Justiça, dos danos morais à pessoa jurídica28.
Pode-se falar, portanto – e não injustamente – de ocasiões perdidas por parte do codificador brasileiro de 2002, o qual teria podido descrever e esmiuçar analiticamente os princípios constitucionais, de modo a
lhes dar maior densidade e concreção normativa, solucionando, finalmente, tantas controvérsias que agitam os tribunais. De todo modo, cabe
ao intérprete, não mais ao legislador, a obra de integração do sistema
jurídico; e esta tarefa há de ser realizada em consonância com a legalidade
constitucional. A tutela da personalidade há de ser perseguida em perspectiva integral e unitária, como manifestação dos fundamentos e objetivos da República, esculpidos nos artigos 1º e 3º do Texto Constitucional,
não já no sentido de assegurar novas posições jurídicas de titularidade
(perspectiva que necessariamente exclui os não titulares de direitos), mas
como forma de emancipação existencial e social, atinente a toda e qualquer pessoa humana, segundo os ditames da solidariedade social. 29.
*
O presente trabalho, acrescido das notas bibliográficas, reproduz
substancialmente o texto apresentado à XVIII Conferência Nacional dos
Advogados, em 13 de novembro de 2002.
Basta observar que o mesmo Governo Federal que patrocinou
politicamente a promulgação no Código Civil de 2002 convocou,
contemporaneamente, sob seus auspícios, Comissão de Juristas, presidida
pelo ilustre Professor SILVIO RODRIGUES, para a Consolidação das Leis
vigentes em matéria de Família e Sucessões. A Consolidação foi levada a
cabo em março de 2000, ao mesmo tempo em que o Governo Federal
estimulava a tramitação no Congresso de Projeto de Lei, encomendado a
outra ilustre Comissão, constituída no DOU de 2.10.1996, sob a relatoria
do Professor ARNOLDO WALD, em matéria de União Estável. Tais iniciativas pareceriam indicar a determinação do Poder Executivo no sentido
de não fazer aprovar um novo Código Civil.
2
Contrapondo-se à conveniência de um novo Código, FRANCISCO
AMARAL, A Descodificação do Direito Civil Brasileiro, in Revista do Tribunal Regional Federal da 1° Região, Vol. 8, out.-dez. 1996, p. 635 e ss.
3
O exemplo mais eloqüente de unidade ideológica de um corpo
codificado tem-se no Código Napoleão, por isso mesmo chamado de
Code des Français, em relação ao qual “si può parlare quasi di un fatale incontro
con la storia”, conforme assinala STEFANO RODOTÀ, Un Codice per L’Europa
? Diritti nazionali, diritto europeo, diritto globale, in P. CAPPELLINI e B. SORDI (a
cura di), Codici – una riflessione di fine millennio, Milano, Giuffrè, 2002 p. 541
e ss.
4
Para uma contundente demonstração da inconstitucionalidade
do Projeto, LUIZ EDSON FACHIN e CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK,
Um Projeto de Código Civil na Contramão da Constituição, in Revista Trimestral de
Direito Civil, 2000, vol. 4, p. 243 e ss. V., ainda, o Editorial da Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, Editora Padma, 2001, vol. 7, intitulado
O Novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira.
5
Para a identificação no Texto Constitucional de uma cláusula
1
geral de tutela da personalidade seja consentido remeter a GUSTAVO
TEPEDINO, Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001,
2° ed., p. 23 e ss.
6
GUSTAVO TEPEDINO, Temas, cit, p. 23 e ss. Sobre o tema, PIETRO
PERLINGIERI , La personalità umana nell’ordinamento giuridico, cit., passim.V. também, do mesmo autor: La tutela giuridica della ‘integrità psichica’ (a proposito
delle psicoterapie), in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1972, p. 763 e
ss.; Il diritto alla salute quale diritto della personalità, in Rassegna di diritto civile,
1982, p. 1021 e ss; Perfis do Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p.
153 e ss.
7
PIETRO PERLINGIERI , La personalità umana nell’ordinamento giuridico,
cit., esp. p. 174 e ss.
8
Atente-se para a palavra precursora de JOSÉ LAMARTINE CORREA
DE OLIVEIRA e FRANCISCO J OSÉ FERREIRA M UNIZ, O Estado de Direito e os
Direitos da Personalidade, cit., p. 14, que propuseram (em 1980!) uma cláusula geral de tutela da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro,
aos moldes da experiência alemã, relatada pelos autores, os quais destacam: “A tipologia que se pretende exaustiva não exaure a realidade e
camufla o sentido único de toda a problemática”.
9
Para uma crítica aguda às técnicas tradicionais dos direitos da
personalidade, v. EZIO CAPIZZANO, Vita e integrità fisica, cit., p. 1003,
segundo o qual “o direito à integridade física, como especificação de um
mais amplo direito à saúde, reflete o interesse público à eliminação das
condições de fato (ambientais, etc.) que, possibilitando a agressão a tal
bem, constituem, em razão do seu próprio valor instrumental, um obstáculo de natureza social à atuação e ao desenvolvimento da personalidade”; e M ASSIMO DOGLIOTTI , I diritti della personalità: questioni e prospettive, in
Rassegna di diritto civile, 1982, p. 657 e ss.
10
PIETRO PERLINGIERI , Profili del diritto civile, Napoli, Esi, 1994, 3a
ed., p. 32
11
ERIK JAYME , Cour général de droit international privé, in Recueil des
Cours, Académie de Droit International, The Hague-Boston-London,
Martinus Nijhoff Publishers, 1997, t. 251, 1996, p. 36-37 e ss, que enumera, ao lado da narrativa, o pluralismo, a comunicação e o retorno aos
sentimentos (retomada dos direitos humanos). Mais adiante, op. cit., p.
259, o autor ressalta o liame entre as diversas expressões da cultura pósmoderna nas quais se manifesta a narrativa : “Les beaux-arts sont retournés à
la peinture figurative. L’architecture ne se limite plus à démontrer la fonction de la
construction technique; elle cherche à signaler des valeurs humaines. Les édifices font
allusion à l’histoire, ils contiennent des parties descriptives qui racontent les faits de la
vie humaine. Le porteur de la narration est de nouveau la façade du bâtiment à
laquelle les architectes ont restitué la tâche traditionnelle de décrire, au public, la
fonction sociale et humaine des édifices. En ce qui concerne le droit, nous notons un
phénomène particulier: l’émergence des ‘normes narratives’. Ces normes n’obligent pas,
elles décrivent des valeurs”.
12
V., a propósito, GUSTAVO TEPEDINO, Direitos Humanos e Relações
Jurídicas Privadas, in Temas de Direito Civil, cit, p. 55 e ss , onde são examinados diversas hipóteses da jurisprudência. No primeiro deles ( p. 58 e ss.),
o Prefeito de Morsang-sur-Orge, valendo-se do seu poder de polícia, interditou o espetáculo, em cartaz numa certa discoteca, constituído pelo arremesso de um homem de pequena estatura - um anão - pelos clientes, de
um lado a outro do recinto, em certame com objetivos de entretenimento.
A decisão da Prefeitura, que pretendia debelar a visível humilhação a que
era submetido o anão, teve fundamento no art. 3º da Convenção Européia de Salvaguardas dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, cujo texto consagra o princípio da dignidade da pessoa humana.
O problema é que o próprio anão, litisconsorciado com a empresa interessada, recorreu ao Tribunal Administrativo, obtendo êxito em primeira
instância, ao argumento de que aquela atividade não perturbava “a boa
ordem, a tranqüilidade ou a salubridade públicas”, aspectos em que se
circunscreve o poder de polícia municipal. Em outras palavras, a tutela da
dignidade humana, só por si, segundo a jurisprudência francesa até então
vigente, não integrava o conceito de ordem pública. O pedido fundamentava-se, ainda, no fato de que a atividade econômica privada e o direito
ao trabalho representam garantias fundamentais do ordenamento jurídico francês. O caso acabou sendo submetido, em grau de recurso, ao Conselho de Estado, órgão de cúpula da jurisdição administrativa que, alterando o entendimento dominante, reformou a decisão do Tribunal de
Versailles, assentando que “o respeito à dignidade da pessoa humana é
um dos componentes da (noção de) ordem pública; (e que) a autoridade
investida do poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de
circunstâncias locais específicas, interditar um espetáculo atentatório à
dignidade da pessoa humana” Observou-se, ainda no exame da mesma
hipótese, que o Conselho de Estado, ao se valer de princípio insculpido na
Convenção européia, adotou orientação em sentido análogo à tendência
do Conselho Constitucional da França, o qual, na ausência de norma
expressa, decidiu, em 1994, “ao examinar a argüição de
inconstitucionalidade de uma lei versando sobre doação e utilização de
elementos e partes do corpo humano, ‘elevar’ o princípio da dignidade da
pessoa humana ao status de ‘principe à valeur constitutionelle’. E o fez utilizarse não de uma disposição da Constituição em vigor (de 1958) mas de
uma declaração de princípios inserida na Constituição do pós-guerra
(1946)” .
13
Sent. N. 2315/99 Cassazione – Sezione Prima Civile – Relatore
G. Graziadei.
14
O caso mais notório parece ser o de Luís Roberto Gambine
Moreira, conhecido como Roberta Close, submetido à cirurgia de alteração de sexo em Londres, em 1989. Em 1992, através de substanciosa
sentença de 58 laudas, cuidadosamente proferida pela Juíza Dra. Conceição Mousnier, da 4ª Circunscrição de Registro Civil, após perícia médica,
foi-lhe autorizada a alteração de nome e alteração de sexo, nos termos do
pedido, para que passasse a se chamar Roberta, com indicação do sexo
feminino. O Ministério Público recorreu, tendo então a 8ª Câmara do
Tribunal de Justiça, por unanimidade, através dos Desembargadores Geraldo Batista, Luís Carlos Guimarães e Carpena Amorim, reformado a
sentença, para manter o nome e o sexo masculino na Certidão de Nascimento de Roberta Close. O Recurso Extraordinário que se seguiu foi
inadmitido, assim como improvido foi o agravo de instrumento interposto contra a sua inadmissão, deixando assim a Suprema Corte de examinar
a matéria. Conforme amplamente divulgado pela imprensa, a referida
artista mudou-se para a Suíça, onde constituiu família, casando-se e assumindo integralmente a sua condição de mulher.
15
Os elementos acima apresentados constam da apelação criminal
n. 92.18299-0/RJ, julgada em 8 de março de 1993, tendo sido Relatora a
Dra. Tânia Heine e vencido o Dr. Clélio Erthal.
16
Eis o teor dos preceitos invocados: art. 231. Aquele que se nega
a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de
sua recusa; art. 232. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá
suprir a prova que se pretendia obter com o exame.
17
ZENO VELOSO, Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade, São Paulo,
Malheiros, 1997, p. 110.
18
Ac. S.T.F., n. 71373-4-RS, de 10.11.94 (D.J.U., 22.11.94, p.
45.686), com a seguinte ementa: Investigação de Paternidade - Exame
DNA - Condução do Réu “Debaixo de Vara”. Discrepa, a mais não po-
der, de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da
dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano,
do império da lei e da inexecução específica e direta da obrigação de fazer
- provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade,
implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório
“debaixo de vara” para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde
das questões ligadas à prova dos fatos
19
M ARIA CELINA BODIN DE M ORAES, Recusa à Realização do Exame
de D.N.A. na Investigação de Paternidade e Direitos da Personalidade, in A Nova
Família: Problemas e Perspectivas (Org. Vicente Barretto), Rio de Janeiro,
Renovar, 1997, p. 169 e ss. A necessidade de superação das técnicas setoriais
é suscitada pela autora, segundo a qual a solução entre o “conflito de
valores constitucionais: direito à (real) identidade pessoal versus direito à
integridade física”, seja dirimido em favor do primeiro, considerando a
recusa abusiva. “A perícia compulsória se, em princípio, repugna aqueles
que, com razão, vêem o corpo humano como bem jurídico intangível e
inviolável, parece ser providência necessária e legítima, a ser adotada pelo
juiz, quando tem por objetivo impedir que o exercício contrário à finalidade de sua tutela prejudique, como ocorre no caso do reconhecimento
do estado de filiação, direito de terceiro, correspondente à dignidade de
pessoa em desenvolvimento, interesse este que é, a um só tempo, público e individual
(grifou-se). E conclui (p. 194): “o princípio da dignidade da pessoa humana estabelece sempre os limites intransponíveis, para além dos quais há
apenas ilicitude”. Parece aliás sintomático que, nos manuais italianos, a
matéria já comece a ser enfrentada em perspectiva unitária. Além da
escola doutrinária analisada no texto ( v. o manual de PIETRO PERLINGIERI ,
Il diritto civile nella legalità costituzionale, Napoli, ESI, 1984, p. 347 e ss.),
fazem-se estimulantes as páginas de C. M ASSIMO BIANCA , Diritto civile, vol.
I, La norma giuridica - I soggetti, Roma, Giuffrè, 1990 (rist.), p. 143 e ss., em
que o autor trata do tema como “Os direitos fundamentais do homem ou
direitos da personalidade”( literalmente, I diritti fondamentali dell’uomo o diritti
della personalità), esclarecendo que “os direitos fundamentais do homem,
ditos também direitos da personalidade, são aqueles direitos que tutelam
a pessoa nos seus valores essenciais” (...) inserindo-se na categoria mais
ampla dos direitos pessoais, como direitos que tutelam os interesses ine20
rentes à pessoa, isto é, os seus diretos interesses materiais e morais”, em
contraposição aos “direitos patrimoniais, os direitos que tutelam interesses econômicos”. Em perspectiva metodológica unitária apresenta-se também PIETRO RESCIGNO, Manuale del diritto privato italiano, Napoli, Jovene,
1994, p. 223 e ss., que se refere ao tema em capítulo sugestivamente
intitulado “Tutela civile della persona”, no qual aborda simultaneamente as
garantias constitucionais, a Convenção européia dos direitos do homem e
os direitos da personalidade previstos na legislação infraconstitucional.
21
As decisões encontram-se publicadas na Revista do Consumidor,
vol. 4, p. 260 e vol. 17, p. 179
22
Agravo de Instrumento n. 599075496, julgado pela 8a Câmara
Cível do TJRS, em 17.06.99. A decisão foi objeto de comentário de GUI LHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA , A união civil entre pessoas do mesmo
sexo, no prelo da Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 2, 2000.
23
Resp n. 102.819-RJ, decido por unanimidade pela 4a Turma do
STJ, in DJ de 12.04.99. O acórdão mereceu a análise de M ARIA CHISTINA
DE ALMEIDA, Em sede de Especial, a sensível abertura de olhar, no prelo da
Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 1, 2000
24
A análise crítica do art. 52, exposta no texto, reproduz fundamentalmente a contribuição encaminhada pelos Profs. BRUNO LEWICKI e
D ANIL O DO N E DA , juntamente com o signatário, como proposta
interpretativa à Jornada de Direito Civil organizada no Superior Tribunal de
Justiça pelo Conselho de Justiça Federal, nos dias 11 a 13 de setembro de
2002. A sugestão foi apresentada sob o seguinte enunciado: A diversidade
de valores informadores da tutela da pessoa humana e da pessoa jurídica impede a
aplicação apriorística e automática dos direitos da personalidade no âmbito empresarial. A ofensa à imagem ou à chamada honra objetiva da pessoa jurídica, em regra,
tem repercussão exclusivamente patrimonial, atingindo seus resultados econômicos.
Não se trata de direitos da personalidade propriamente ditos, nem sua ofensa acarreta
danos morais. Sendo os danos morais próprios da pessoa humana, o art. 52 poderá
ser utilizado para a fixação de danos institucionais que atingem a credibilidade das
pessoas jurídicas sem finalidade lucrativa.
25
Eis a lição insuspeita de ANTÓNIO M ENEZES CORDEIRO, Tratado
de Direito Civil Português, Coimbra, Almedina, vol. I, Parte Geral, Tomo I,
2000, 2a ed., p. 201 e ss.
26
O entendimento foi consagrado no recente enunciado da Súmula
n. 227 daquela Corte: “As pessoas jurídicas podem sofrer danos morais”.
27
Cfr. o Prefácio a ALEXANDRE ASSUMPÇÃO, A Pessoa Jurídica e os
Direitos da Personalidade, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 1998.
28
Segundo a Súmula n. 227 do STJ “A pessoa jurídica pode sofrer
dano moral”.
29
Veja-se M ARIA CELINA BODIN DE M ORAES, O Princípio da Solidariedade, in M. M. PEIXINHO , I. F. GUERRA E F. NASCIMENTO FILHO (orgs.),
Os Princípios da Constituição de 1988, Rio de Janeiro, Lumen Iuris, 2001, p.
167 e ss.
O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AS AÇÕES COLETIVAS PARA
A TUTELA DE DIREITOS OU INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
William Santos Ferreira, Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Professor Concursado de Direito Processual Civil e
Prática Forense da PUC-SP. Professor Palestrante
da Pós-Graduação Lato Sensu da PUC-COGEAESP. Professor de Direito Processual Civil da UNIB
e UNICID. Advogado em SP
RESUMO:
O tratamento legislativo dos direitos ou interesses individuais homogêneos, sem sombra de dúvida, foi uma das maiores inovações do
nosso ordenamento jurídico neste século, mas trata-se de instituto ainda
pouco difundido. Foram, principalmente, estas características que estimularam este estudo. Abre-se o trabalho com a busca de uma exata definição
do que vem a ser “direito individual homogêneo”, bem como identificando-se
as peculiaridades que o diferenciam dos direitos “coletivos” (stricto sensu) e
“difusos”. Há uma breve análise de institutos similiares: do Direito norteamericano (“class action”) e do Direito francês (Lei Royer, de 27/12/73);
mereceram, ainda, tratamento específico: a legitimação e os problemas
em torno do acordo judicial, a atuação do Ministério Público, a competência, a execução, as questões processuais que surgiram com a aplicação
do instituto e um especial destaque para a recente Lei nº 9.494/97.
ÍNDICE: 1. Natureza Jurídica; 2. Class Action; 3. Abrangência da
ação coletiva para a defesa de direitos ou interesses individuais homogêneos; 4. Questões em torno da legitimação e do acordo judicial; 5. Atuação do Ministério Público; 6. Ineficácia do veto ao parágrafo único do
art. 92; 7. As gravíssimas consequências da “nova” redação do art. 16 da
Lei 7.347/85 e uma proposta de solução; 8. Jurisdição e competência; 9.
Ajuizamento da ação e sua publicidade; 10. Sentença, 10.1. Abrangência e
efeitos, 10.2. Publicidade; 11. Habilitação e liquidação da sentença; 12.
Execução, 12.1. Execução coletiva e competência, 12.2. Execução promovida pelos próprios consumidores ou seus sucessores e a competência,
12.3. Concurso de créditos, 12.4. A fluid recovery prevista no art. 100 do
CDC; 13. Últimas reflexões; 14. Bibliografia.
1. NATUREZA JURÍDICA
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) veio por extirpar dúvidas inerentes a exata definição dos interesses e direitos: DIFUSOS,
COLETIVOS (“stricto sensu”) e INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS.
Para tanto no artigo 81 definiu-os.
Serão interesses ou direitos difusos os metaindividuais ou
transindividuais que atinjam pessoas indeterminadas que se encontram
ligadas por uma circunstância de fato e cujos interesses ou direitos sejam
indivisíveis.
Serão interesses ou direitos coletivos (stricto sensu) os transindividuais
que atinjam um grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou
determináveis que encontram-se ligadas entre si ou com a parte contrária
por uma relação jurídica base e cujos direitos ou interesses sejam indivisíveis.
Por estas duas classificações já nos é possível colecionar as características, em síntese apertada, diferenciadoras, bem como a de igualdade.
O traço comum é a indivisibilidade do objeto.
O traço diferenciador é a indeterminação dos titulares nos direitos
ou interesses difusos, diversamente ocorrendo nos coletivos propriamente ditos nos quais verifica-se serem seus titulares determinados ou no
mínimo determináveis, seja esta determinação através dos titulares ligados entre si por uma relação jurídica base ou então por vínculo jurídico
que os une a parte contrária.
Estes dois institutos já eram conhecidos em nosso ordenamento
jurídico pátrio, especialmente na Ação Popular (Lei 4.717/65) e na Ação
Civil Pública (7.347/85), embora não estivessem tão definidos como
atualmente pela promulgação do CDC, bem como seu espectro de atuação era muito restrito.
No entanto, o terceiro instituto, dos direitos ou interesses individuais homogêneos, só recentemente veio por surgir no ordenamento jurídi-
co brasileiro. Surgiu com a Lei nº 7.913, de 7 de dezembro de 1989 e
trata do âmbito da ação civil pública para reparação pelos danos causados
aos investidores no mercado de valores mobiliários, legitimou-se o Ministério Público a adotar as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento dos danos causados aos titulares de valores
mobiliários e aos investidores do mercado. O disposto no art. 2º da citada
lei determina que a importância determinada na condenação deverá reverter em favor dos investidores lesados, “na proporção dos seus prejuízos”;
no § 1º do mesmo artigo regulou-se sobre a habilitação dos beneficiários;
e por sua vez no § 2º foi previsto que não havendo habilitação ou dela
decaindo os beneficiários, a quantia equivalente a estes será recolhida
como receita da União1.
Portanto, não foi o CDC a primeira normatização a respeito dos
interesses Individuais Homogêneos, mas foi sim através dele que não só
estabeleceu-se sua definição, como também, ampliou-se sobremaneira sua
incidência.
A definição exposta no Inciso III do artigo 81 do CDC é singela:
“interesses ou direitos individuais homogêneos assim entendidos os decorrentes de origem comum”.
Ao que nos parece o legislador sintetizou a conceituação frente a
não só existência de tratamento já na doutrina, como também pela própria compreensão que a denominação do instituto nos propicia. Senão
vejamos:
Fala-se em direito individual, a primeira característica que se observa é a divisibilidade do objeto, em segundo lugar, homogêneo segundo
Aurélio Buarque de Holanda: “cujas partes todas são da mesma natureza” ou
“cujas partes ou unidades não apresentam ou quase não apresentam desigualdades” 2
3
.
Em nossa opinião a adoção da palavra homogêneos foi uma postura muito feliz, pois sintetiza a mens legis do instituto, qual seja, são direitos ou interesses que apesar de poderem ser reclamados individualmente,
são de tal forma ligados, enfeixados, que podem e devem ter um tratamento especial, mais consentâneo com sua natureza. Trata-se
inquestionavelmente da resposta do legislador a ineficácia dos institutos
processuais ortodoxos, diante das alterações constantes da sociedade
moderna, em especial após as “Grandes Guerras”.
Na década de vinte, na Europa já era detectável o fenômeno da
ascensão das massas, decorrente especialmente da revolução industrial4.
Na América Latina, em especial no Brasil, este fenômeno ocorreu uma
ou duas décadas após a Segunda Guerra Mundial quando ao lado do
fenômeno da ascensão de massas, ocorreu um grande fluxo migratório
para os grandes centros, criando-se as megalópolis e consequentemente
reduzindo-se a qualidade de vida nestes bolsões populacionais. Desta crise gerou-se outra que pode ser detectada pelas sérias dificuldades de acesso à justiça, que portanto passou a ter sua eficiência questionada5.
Constata-se que da mesma forma que a sociedade passou da produção artesanal para a produção em série, no processo civil concluiu-se
pela imperiosa mutabilidade da ótica meramente individualista para a coletiva, e da fusão destas, surgiu o instituto dos interesses individuais homogêneos.
Arruda Alvim, com a maestria que lhe é peculiar, aponta que “o
Código do Consumidor, em verdade, procurou estabelecer uma correlação ou articulação entre o direito processual e o material (modificando profundamente o direito privado = comercial) preexistente.”6.
Os interesses ou direitos individuais homogêneos definidos por
Barbosa Moreira como “acidentalmente coletivos”, apesar de acidentalmente,
não deixam de receber tratamento de um Direito Coletivo, não sendo por
outro motivo que no CDC encontra-se no Título III, Capítulo II - “Das
Ações Coletivas para a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos”. Em primeiro momento o binômio coletivo-individual pode parecer uma antinomia, no
entanto, um dos grandes avanços do Direito Processual moderno foi justamente esta compatibilização, que trouxe consigo uma série de inovações necessárias à adaptação do nosso ordenamento jurídico. Esta
compatibilização propiciada pelo CDC tem como base a palavra homogêneos, isto porque só da união de direitos ou interesses individuais que
tenham como base uma origem comum é que poderemos dizer que estaremos diante de um direito individual homogêneo.
Como dizíamos, origem comum é o traço qualificador, identificador
da homogeneidade destes direitos. Waldemar Mariz de Oliveira Jr. constata que “esses direitos e interesses não são mais de caráter simplesmente individual,
mas, pelo contrário, apresentam-se como de natureza coletiva, gerando, se desrespeitados ou violados, danos igualmente coletivos”7; e conclui o doutrinador que “os
direitos mencionados não podem mais ser tutelados individualmente, de acordo com a
orientação tradicional, em face de ser outra a sua própria natureza jurídica, isto é,
porque são eles de caráter coletivo”8.
Constata Vincenzo Vigoriti que “la class action è uno strumento forgiato
per la tutela di situazioni individuali a dimensioni collettiva, situazioni che, isolatamente
considerate, no avrebbero acceso alla giustizia, per cui davvero l’imposizione di una
pesante bardatura garantistica servirebbe solo a comprometterne le aspirazioni di
tutela” 9.
A diferenciação marcante entre os direitos ou interesses difusos e
coletivos e o individual homogêneo reside na DIVISIBILIDADE DO
OBJETO, v. g., nada impede que um titular “x” de um direito individual,
apesar da existência de uma ação proposta pelo Ministério Público em
que se discute direito individual homogêneo (que a “x” também se refere,
como a outros titulares do respectivo direito individual), promova individualmente a ação.
Como adverte Nelson Nery Jr.: “a pedra de toque do método classificatório
é o tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a competente ação
judicial”10
A advertência do Doutrinador é de todo procedente, porque de
um mesmo FATO podem surgir pretensões que reclamam tutelas diversas. Exemplificando:
Uma indústria que despeja dejetos químicos em um rio, pode originar: a) Uma pretensão a reclamar uma tutela jurisdicional a direitos ou
interesses difusos -> dano a toda a coletividade pelo prejuízo causado ao
meio ambiente, pleiteando-se reparação pecuniária e a ordem para cessar
o ato danoso; b) Uma pretensão a reclamar uma tutela jurisdicional a
direito ou interesse coletivo (stricto sensu) -> associação dos agricultores
locais que requer a suspensão imediata do ato prejudicial à qualidade da
água que é pelos agricultores utilizada para irrigação; c) Uma pretensão a
reclamar uma tutela jurisdicional a direitos ou interesses individuais homogêneos -> pela mesma associação dos agricultores pleiteando condenação genérica da indústria (para posterior habilitação) frente aos prejuízos sofridos decorrentes da perda das plantações que foram contaminadas; d) E porque não dizer, uma pretensão a reclamar uma tutela
jurisdicional a direitos ou interesses individuais -> pleiteada a indenização
diretamente pelo próprio agricultor lesado, individualmente considerado.
Nesta análise não podemos deixar de comentar parecer elaborado
antes da vigência do CDC, por Luíz Antonio de Andrade no qual discutiase a legitimidade ad causam do Ministério Público para a tutela jurisdicional
de interesses individuais de consumidores, mas especificamente, para discussão a respeito da ilegalidade dos aumentos praticados por empresas de
seguro de saúde. O parecerista após análise dos limites impostos pelo
ordenamento jurídico brasileiro, em especial da Lei da Ação Civil Pública,
conclui pela ilegitimidade ad causam do Ministério Público, demonstrando,
citando Ada Pellegrini Grinover, que no Direito brasileiro não havia, como
no Direito norte-americano a class action, “sob âmbito da qual seria de fato
possível a proteção judicial de uma pluralidade de interesses individuais semelhantes,
por iniciativa de um ou de alguns dos integrantes da classe, investidos de
‘representatividade adequada’, ou de um órgão público” 11. Conclui Luíz Andrade
que: “... qualquer tentativa que se empreendesse no sentido de destacar o adjetivo
‘coletivos’ para atribuir-lhe significado equivalente à adoção do instituto semelhante à
‘class action’ estaria, quando menos, nas dificuldades acima apontadas só superáveis
por obra do legislador.”12.
O legislador agora previu respectivo tratamento, a “class action brasileira”13.
2. CLASS ACTION
Ada Pellegrini Grinover14 leciona que a tutela dos direitos ou interesses individuais homogêneos é uma adaptação brasileira da class action
for damages americana. Os Estados Unidos trataram a primeira vez do
tema, apesar de contornos imprecisos, no Bill of Peace do século XVII,
tendo sido disciplinada pelas Federal Rules of Civil Procedure de 1938, com
readaptações pela Federal Rules de 1966 (Rule nº 23). A tutela judicial naquele ordenamento compreende os interesses e direitos coletivamente
tratados, quer se trate de bens indivisivelmente considerados, quer se
trate de bens divisíveis e individualizáveis, pertencentes pessoalmente a
cada membro da class. Desde que reconhecida pelo juiz a adequacy of
representation, entende-se que a legitimação do autor coletivo é ordinária,
agindo no interesse próprio e representando os demais membros da class,
a denominação utilizada é real party in interest 15.
Exemplo clássico citado por Ada Pellegrini Grinover é o Caso Eisen,
julgado em 1974 pela Corte Suprema, na qual 3.500.000 operadores da
Bolsa de Nova York acionaram por intermédio do Sr. Eisen, agentes que
haviam lesado pessoalmente cerca de 6.000.000 de pessoas, impondolhes uma sobretaxa ilegal. Invocando as características constitucionais da
defesa, considerou-se necessária a citação pessoal dos réus, o que acarretou a desistência do processo. Mas apesar disto - e do rude golpe que a
decisão significou para esse tipo de class action - o juiz e a Suprema Corte
nenhuma dúvida tiveram em reconhecer a admissibilidade da ação como
ação de classe16.
Na França a Lei Royer, de 27 de dezembro de 1973, destinada à
proteção dos consumidores, permite que as associações de défense do consumidor pleiteiem a reparação coletiva do dano comum, conferindo-lhe a
necessária legitimação. Interessante se notar alguns requisitos desta lei
para que se garanta a representatividade das associações: existência jurídica e concreta operatividade por pelo menos um ano, seus objetivos
institucionais, um número mínimo de 10.000 associados para fins nacionais e um número suficiente de membros para fins locais. Estes requisitos são
avaliados pelo Ministério Público e são condições prévias e necessárias
para aferir-se a capacidade e legitimação processuais17. Interessante se
notar que os requisitos de legitimação são muito semelhantes aos do artigo 82, inciso IV do CDC que trata justamente da legitimação das associações.
3. ABRANGÊNCIA DA AÇÃO COLETIVA PARA A DEFESA
DE DIREITOS OU INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Parece claro que a ação de que tratam os artigos 91 a 100 do CDC
refere-se apenas aos casos em que a sentença, apesar de genérica, dará
margem a uma condenação pecuniária. Inúmeros são os argumentos favoráveis a esta conclusão:
a) no artigo 91 menciona-se “vítimas”, “ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos”;
b) no artigo 95 fala-se em “caso de procedência do pedido a condenação
será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados”;
c) no artigo 96, que foi vetado, previa-se “a sentença condenatória”;
d) no artigo 97 taxativamente previu-se a “liquidação”;
e) no parágrafo único do artigo 97 que foi vetado falava-se em
“liquidação por artigos” e “nexo de causalidade, o dano e seu montante”;
f) no artigo 98 preconizou-se “indenizações”;
g) no inciso II do § 2º do artigo 98 classificou-se o tipo de ação
como “ação condenatória”;
h) no artigo 99 fica claro que o tipo de tutela jurisdicional pleiteada
será pecuniária, até pela própria menção a “concurso de créditos”;
i) no artigo 100 constata-se claramente que a solução jurisdicional
será pecuniária.
Ao que nos parece, as pretensões das ações em estudo cingir-se-ão
a uma pretensão condenatória, isto é, no escopo de possibilitar aos consumidores lesados a obtenção de uma indenização pecuniária. Não se admi-
tirá que nas ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos existam pretensões de índole constitutiva, meramente declaratória
ou mandamental18.
Como ressalta Ada Pellegrini Grinover: “A pretensão processual do
autor coletivo, na ação de que trata o presente Capítulo, é de natureza condenatória
e condenatória será a sentença que acolher o pedido.” 19. E também: “objetivam tais
ações a reparação, por ações coletivas, dos danos pessoalmente sofridos pelos consumidores...” 20
Há apenas um ponto que deve ser aclarado, trata-se do disposto
no Inciso I do artigo 93 que trata da competência, porque neste dispositivo verifica-se uma previsão para competência levando-se em conta o
foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano. Ora, em análise
precipitada poder-se-ia argumentar que não se tratará apenas de demandas em que o dano tenha ocorrido, e portanto poderia ter caído por terra
as argumentações retro-realizadas. Todavia, não é o que ocorre. Analisando-se mais profundamente o dispositivo dele podemos inferir que o escopo é de evitar-se questionamentos a respeito da competência porque como
a ação tratará de um número, a princípio, apenas determinável de consumidores, verificar-se-á que poderão estes consumidores no momento exatamente anterior à propositura da ação já terem sofrido o dano ou então
estarem na iminência de sofrê-lo, devendo ser levado em conta que a
intervenção destes ou de seus sucessores poderá ocorrer em momento
muito posterior ao da demanda, no momento da Liquidação (Habilitação). Cumprindo salientar também que se ainda alguma dúvida poderia
existir, o que não acreditamos, cingir-se-ia apenas a este dispositivo, frente
a que todos os demais, conforme já analisamos, levam a uma conclusão
de que a pretensão das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos será de natureza condenatória, em outras palavras,
objetiva-se um ressarcimento pecuniário pelos danos auferidos pelos consumidores que, após o trânsito em julgado da sentença condenatória genérica, serão individualmente verificados.
Resta-nos apontar mais uma questão: já que a pretensão será
condenatória, só haverá a condenação em obrigação de dar (pecuniária)
ou é possível também condenação em obrigação de dar (lato sensu) e nas
de fazer e não fazer?
Em princípio, por haver capítulo que trata expressamente das ações
coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos (Capítulo
II), da interpretação de seus dispositivos não nos parece ser possível esta
abrangência. Mas devemos levar em conta que o artigo 84 do Capítulo I,
das disposições gerais, traz, sem excepcionar, regulamentações para as
ações que tenham por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou
não fazer e estas também decorrem de uma pretensão condenatória.
Ada Pellegrini Grinover em comentário à Lei 7.347/85 afirmava
que “a defesa dos consumidores, coletivamente considerada, ficará portanto naturalmente limitada, pela nova lei (Lei 7.347/85), às ações preventivas, que visem à
tutela inibitória, mediante a condenação a uma obrigação de fazer ou não fazer.”21
(parêntesis nosso).
4. QUESTÕES EM TORNO DA LEGITIMAÇÃO E DO ACORDO JUDICIAL
Serão legitimados para propor a ação coletiva para defesa de interesses individuais homogêneos os legitimados do artigo 82 do CDC.
A legitimação ativa de que trata o art. 91 é extraordinária, pois os
legitimados atuam em nome próprio, todavia no interesse alheio. Esta
legitimação só é possível porque decorre de expressa disposição legal, já
que reza o disposto no artigo 6º do CPC que: “ninguém poderá pleitear, em
nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.”
Celso Agrícola Barbi preleciona que a legitimação extraordinária
recebeu desde Kohler o nome de substituição processual, utilizada também por Chiovenda e pela maioria dos autores modernos22.
Ada Pellegrini Grinover ao comentar o art. 91 do CDC sustenta
enfaticamente que o dispositivo trata de legitimação extraordinária a título de substituição processual.
Não nos opomos à correta classificação da doutrinadora de tratarse de hipótese de legitimação extraordinária, no entanto ousamos divergir
no tocante a ser a título de substituição processual. Na substituição processual como a própria denominação do instituto nos explicita há a “troca”, processualmente falando, do titular do direito pelo legitimado extraordinário. Como adverte Donaldo Armelin “... ontologicamente, é impossível a
coexistência de substituição, compreendida no sentido supra (efetiva substituição
do legitimado ordinário pelo extraordinário), e litisconsórcio com o substituto.”23, sendo da mesma opinião Waldemar Mariz de Oliveira e Pontes de
Miranda24. Como na ação em estudo o artigo 94 admite este litisconsórcio
acreditamos ser imprópria a utilização da terminologia “substituição processual”.
A legitimação conferida pelo art. 91 do CDC é concorrente e
disjuntiva. Destas características nos é possível inferir que os legitimados
do artigo 82 podem encontrar-se no pólo ativo sozinhos ou conjuntamente.
Como se trata de legitimidade concorrente, como vimos, os demais legitimados extraordinários do artigo 82 que não ingressaram no
processo como litisconsortes (art. 94 e art. 5º, § 2º da Lei 7.347), estarão
sujeitos à eficácia da decisão judicial25.
Na ocorrência do litisconsórcio entre os legitimados do artigo 82,
bem como dos consumidores ou seus sucessores que integrarem o pólo
ativo na forma do artigo 94 do CDC, este litisconsórcio será facultativo e
unitário, facultativo porque a legitimação é concorrente e disjuntiva, ou
seja, podem (e não devem) encontrar-se no pólo ativo; e é unitário porque a
origem do direito individual homogêneo é comum, sendo sua decisão
qualitativa uniforme26. Não é impossível que se verifique a propositura
de duas ações possuindo a mesma causa pedir, o mesmo pedido e o
mesmo pólo passivo, todavia, não havendo identidade física dos integrantes do pólo ativo destas demandas; nesta hipótese apesar de não ocorrer
esta identidade física, os legitimados possuem identidade de função jurídica, sendo que a situação deverá ser solucionada como hipótese de litispendência 27
ou continência (se o objeto de uma ação for mais amplo que o da outra),
em suma, nestas hipóteses a diferenciação nominal do pólo ativo não
impede o reconhecimento da litispendência ou da continência uma vez
que os legitimados ativos, na terminologia proposta por Arruda Alvim,
possuem identidade de função jurídica.
Uma questão surge do aprofundamento da matéria: Há viabilidade
legal de acordo entre o integrante ou integrantes do pólo passivo e os legitimados do
artigo 82?, em outras palavras: a legitimação extraordinária conferida pelo art.
91 c/c o art. 82 autoriza que os legitimados acordem com os integrantes do pólo
passivo?
Cremos que a resposta negativa se impõe, principalmente se verificarmos que a pretensão deduzida em juízo é genérica e que na verdade
os legitimados apenas e tão somente podem pretender a condenação genérica, já que o direito individual de cada consumidor permanecerá intacto,
sendo apenas atingidos: a) se a sentença transitada em julgado lhe for
favorável (art. 103, III); b) se o consumidor ou seus sucessores houverem integrado a lide (§ 2º do art. 103); e c) a hipótese do art. 104, in fine.
Logo, pela própria DIVISIBILIDADE DO OBJETO que é carac-
terística marcante nos interesses e direitos individuais homogêneos, impossível conferir-se validade ao acordo. Cumprindo salientar que a
legitimação extraordinária é única e exclusivamente para deduzir em juízo
uma pretensão clamando por uma sentença condenatória genérica e na
hipótese de um acordo esta sentença jamais existirá. Como leciona Ada
Pellegrini Grinover ao tratar da legitimação e representação para liquidação: “Tanto num como noutro caso, porém, a liquidação e a execução serão necessariamente personalizadas e divisíveis.” 28.
A legitimação extraordinária não alcança a esfera individual, ou
seja, o direito individual de cada um dos consumidores ou seus sucessores. Os acordos, portanto, só poderão verificar-se na esfera individual e
personalizada de cada consumidor lesado ou seus sucessores, sendo que
só a estes caberá o ato. A transação é negócio jurídico bilateral em que se
tem por escopo pôr fim a um litígio ou então para evitar que ocorra;
materializa-se através de concessões recíprocas, logo só atingido-se a esfera individual de cada consumidor é que se torna possível a transação,
justamente pela divisibilidade do objeto. Não há, frente às características
peculiaríssimas da hipótese tratada, possibilidade de transação pelo legitimado extraordinário, já que, em síntese, sua legitimação apenas atinge a
esfera processual29 (e assim mesmo apenas no primeiro momento), não
se estendendo, em hipótese nenhuma, a esfera do direito material de cada
consumidor.
A impossibilidade da transação pelos legitimados extraordinários
envolvendo direitos individuais homogêneos é muito mais clara do que
nos direitos difusos e coletivos, já que nos primeiros existem a divisibilidade
e a determinação dos titulares do direito material.
Portanto, acreditamos que não é possível ao legitimado extraordinário a realização de acordo30. Pelos seguintes motivos: duas constatações
basilares originarão fundamentações que inviabilizam a ocorrência do
acordo tratado:
a) Enquanto tratado como direito individual homogêneo o bem é
DIVISÍVEL, PORÉM NÃO ESTÁ DIVIDIDO, tanto que Ada explicita
que: a defesa processual dos interesses (ou direitos) individuais homogêneos é feita de
forma indivisível no processo de conhecimento, levando a uma sentença condenatória
genérica que reconhece a existência do dano geral e fixa o dever de indenizar” 31;
b) O titular da ação para defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos NÃO É O TITULAR DO DIREITO MATERIAL.
Destas decorrem:
a) O direito é INDISPONÍVEL porque até a sentença
condenatória genérica este direito é tratado de forma indivisível, não
sendo possível a ocorrência de sua divisão por ato do legitimado
extraordinário e MUITO MENOS SUA ATUAÇÃO COMO TITULAR DO DIREITOMATERIAL;
b) Não se reconhece ao legitimado extraordinário o direito a
transacionar, porque este ato é exclusivo do titular do direito individualmente considerado já que a transação implica em renúncia parcial ao
direito (art. 1027 do CC);
c) Ao legitimado nada mais é possível a não ser a dedução em juízo
de uma pretensão condenatória genérica, o que no caso do acordo não
ocorreria, pois haveria não só a divisão, como também a extinção do
processo com julgamento de mérito porém, sem apreciação da dita pretensão condenatória genérica;
d) a transação produz entre as partes o efeito da coisa julgada (art.
1030) e a irradiação destes efeitos aos titulares do Direito é impossível já
que a transação não aproveita nem prejudica senão aqueles que nela intervieram (art. 1031);
e) Qualquer acordo que verse sobre direito individual homogêneo
obrigatoriamente teria que atingir os consumidores ou seus sucessores e
isto não é possível já que como titulares do direito material estes tem que
estar presentes ao ato de acordo, pois sua ausência impede que os efeitos
do acordo os atinjam, tanto que mesmo no caso de improcedência ou
carência da ação coletiva estes poderão promover ações individuais se
não participaram da demanda; e por último,
f) entender-se o contrário é admitir-se a ingerência externa no
Direito material de cada consumidor lesado, da qual mesmo que a lei o
admitisse esta seria inconstitucional, já que se vinculativa, impediria o
detentor do Direito material transacionado acesso ao Poder Judiciário,
em afronta ao disposto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição
Federal.
A coisa julgada secundum eventum litis (art. 103, III do CDC), ratifica
a conclusão a que chegamos, pois como assevera Ada Pellegrini Grinover
“coaduna-se com a natureza da pretensão indenizatória a título individual, não se
podendo ocorrer o risco de prejudicar terceiros, que não tiveram oportunidade de integrar o contraditório, mediante sentença que iria afetá-los em seus direitos subjetivos
personalíssimos” 32.
Uma posição conciliadora e pragmática pode ser defendida: o acor-
do é feito com a expressa ressalva que cada consumidor (isto nos direitos
individuais homogêneos) poderá postular individualmente seu direito, ou
estão optar por “aderir” aos termos do acordo coletivo.
5. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público é um dos legitimados para promover ações
coletivas para defesa de interesses individuais homogêneos33, quando este
não integrar o pólo ativo deverá atuar SEMPRE como fiscal da lei, ex vi
do disposto no art. 92 do CDC. O objetivo é claramente conferir lisura
ao processo, evitando, com sua participação, a adoção de quaisquer medidas, de boa ou má-fé, que venham a prejudicar os consumidores ou ofender a lei.
Ada Pellegrini Grinover reconhece que as ações coletivas reguladas pelos arts. 91 usque 100 do CDC: “são indiscutivelmente de natureza privada; mas existe, assim mesmo um interesse público à correta condução do processo de
índole meta-individual, que aconselha a técnica ora utilizada”34.
A redação do dispositivo não enseja dúvidas, ou o Ministério Público ajuizará a ação ou atuará como fiscal da lei; inadmissível portanto a
duplicidade de atuações. Pela literalidade do artigo (“atuará sempre...” norma cogente) podemos concluir que ao Ministério Público é vedada a
integração posterior ao ajuizamento da ação como litisconsorte ativo, neste caso atuará, porém como fiscal da lei.
Frente a independência no exercício de suas funções, nada há que
impeça ao Ministério Público, atuando como fiscal da lei, segundo sua
liberdade para formação de sua convicção acerca da ação posta em juízo,
opor-se a esta, através de razões fundamentadas no interesse público e
nos interesses indisponíveis35, seria no mínimo incongruente o M.P. verificando algum aspecto contrário a lei ter que silenciar-se apoiando o pólo
ativo a todo custo. Repete-se, atuará nesta hipótese como fiscal da lei e o
cumprimento desta deve estar embasado em elementos de convicção
concretos, lícitos e não em postura denotadora de parcialidade, sustentarse o contrário é opor-se a mandamento constitucional expresso, inserto
no artigo 127, caput.
6. INEFICÁCIA DO VETO AO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART.
92
Inobstante o veto do parágrafo único do artigo 92, suas disposições permaneceram intactas já que o artigo 113 acrescentou os §§ 4º, 5º
e 6º ao artigo 5º da Lei 7.347/85 e por sua vez o artigo 90 que restou
incólume aos vetos presidenciais reza: “Aplicam-se às ações previstas neste
Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei nº 7.347, de 24 de julho de
1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas
disposições”. Como salienta Couture “um dispositivo legal só adquire sentido em
função de todo o conjunto sistemático do direito.”36. Trata-se aqui de evidente
aplicação subsidiária, devendo ser observadas, em caráter complementar,
as disposições do Código de Processo Civil e da Lei da Ação Civil Pública.
7. AS GRAVÍSSIMAS CONSEQUÊNCIAS DA “NOVA” REDAÇÃO DO ART. 16 DA LEI 7.347/85 E UMA PROPOSTA DE SOLUÇÃO
A antiga redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública era: “a
sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada
improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se
de nova prova.”
Porém, a Lei 9.494 de 10.09.1997 alterou o art. 16, acrescentando
a seguinte restrição: “A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos
limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em
que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.”
Como se vê, limitou-se a atividade jurisdicional do julgador da ação
civil pública “aos limites de sua competência territorial”.
A intenção nefasta é clara: pulverizar as ações coletivas, pois, por
exemplo, a decisão de um juiz de Campinas só atingirá aqueles que se
encontrem nos limites de sua competência territorial.
Um primeiro problema seria: a dita competência territorial seria
vista pela “competência do julgador” (logo, no exemplo, só a Comarca de
Campinas) ou pelo órgão que representa (Justiça Estadual, todo Estado
de São Paulo)?
Pela literalidade do dispositivo a resposta seria a adoção mais
restritiva pois o artigo fala da competência do “órgão prolator”.
Na doutrina fervorosas críticas surgiram à nova redação do artigo
16, vão desde preocupações com decisões conflitantes (pois vários serão
os julgadores a analisar a mesma matéria), podendo ser ainda elencadas as
seguintes críticas: total desvirtuamento das ações coletivas (cujo elemento
essencial é a força da unificação de um número enorme de discussões em
um único feito), prejuízo ao Poder Judiciário (pelo maior número de processos tratando do mesmo tema), tratamento tecnicamente inadequado
das ações coletivas; e o que é pior: inconstitucionalidade desta nova redação do artigo 1637.
Mas vamos concentrar nossa análise no reflexo do art. 16 na ações
envolvendo direitos ou interesses individuais homogêneos;
Concordamos com a inconstitucionalidade do dispositivo conforme sustentam os doutrinadores citados, mas ainda para aqueles que defendem a constitucionalidade do dispositivo, procuraremos comprovar
sua inaplicabilidade as ações que versem sobre direitos individuais homogêneos com
base no Código de Defesa do Consumidor.
Como já se viu, a intenção do legislador foi claramente limitar,
com questionável técnica, os efeitos das decisões em ações civis públicas.
Porém o artigo 16 rege a ação civil pública, mas a regulamentação específica dos direitos individuais homogêneos, especialmente relacionados ao
consumidor, encontra-se nos artigos 91 a 100 do Código de Defesa do
Consumidor, e nenhum destes artigos foi alterado.
Ora, ao tratar da competência o artigo 93 reza que ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a Justiça local: “I –
no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local; II – no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal,
para os danos de âmbito nacional ou regional...”
Como se comprova, há uma aparente contradição entre o artigo 93
(que estabelece a competência de UM JULGADOR para questões até de
âmbito nacional!) e do art. 16 (que trata de uma restrição de competência). Ocorre que a norma específica (93, CDC) não pode ser alterada por
regulamentação genérica (art. 16, Lei da Ação Civil Pública) daí e porque
o artigo aplicável é o 93 do CDC, pois este preconiza que um juiz do foro
da Capital do Estado ou do Distrito Federal é competente para questões
de âmbito regional e até nacional38, não se podendo olvidar que não haveria razão para o previsto no inciso II do artigo 93 se a decisão do julgador
não pudesse ter alcance até nacional, já que é regra básica de interpretação que: a lei não contém disposições inúteis.
Diante disto: nas ações envolvendo relações jurídicas reguladas
pelo CDC, mais especificamente sobre direitos individuais homogêneos,
mesmo que a nova redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública não
seja considerada inconstitucional, ainda assim, será, para o caso, inaplicável
por colidir com o disposto no artigo 93 do CDC, que pelos motivos
expostos deve prevalecer.
Como se sabe, quando a relação jurídica for regulada pelo CDC –
um microssistema na lição de Nelson Nery Jr. – a Lei da Ação Civil
Pública tem aplicação subsidiária, o que significa que SUAS NORMAS SÓ
SERÃO APLICÁVEIS SE NÃO CONTRARIAREM AS DISPOSIÇÕES
DO CDC, conforme expressamente previsto no artigo 90 do próprio
Código de Defesa do Consumidor.
Por sorte (e por descuido legislativo!), mais uma vez pode-se consertar o que seria um gravíssimo retrocesso no tratamento dos direitos
individuais homogêneos.
Resta agora apenas torcer para que não reincida o legislador.
8. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA
A interpretação do disposto no artigo 93 do CDC traz importantes
consequências. Antes de procedermos a sua análise é muito importante
que diferenciemos competência e jurisdição.
A palavra jurisdição deriva do latim juris e dicere, em tradução literal, dizer o direito, trata-se, portanto, do “Poder encarregado da aplicação das
leis aos casos concretos, onde haja lide (jurisdição contenciosa) ou não (jurisdição
voluntária)”39. A concretização da jurisdição se dá através das regras de
competência 40, portanto, “chama-se competência essa quantidade de jurisdição
cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos” 41. Todo órgão (ou
órgãos) do Poder Judiciário possui jurisdição, exercendo-a nos limites de
sua competência.
O caput do artigo 93 do CDC, que trata do processo de conhecimento da ação coletiva para a defesa de direitos ou interesses individuais
homogêneos tendo como legitimados extraordinários para sua propositura
os mencionados no artigo 82 do CDC, estabelece que é competente para
a causa a Justiça local (Estadual), ressalvada a competência da Justiça
Federal. Esta divisão estabelece uma regra de competência, resta-nos esclarecer qual é o critério de competência. Esta ressalva do dispositivo em
análise é mera ratificação do disposto no artigo 109 da Constituição Federal que define como de competência da Justiça Federal as causas em que
a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes. Para Ada Pellegrini
Grinover42 esta competência é objetiva, assim também entendendo Celso
Agrícola Barbi43, mas para a processualista é objetiva em razão da matéria, enquanto que para o doutrinador é objetiva em razão da qualidade
das pessoas. Esta divergência não gera maiores consequências já que adotada uma ou outra a competência será objetiva e portanto absoluta,
improrrogável.
Concluímos, que a competência estabelecida no caput do artigo 93
é absoluta.
Uma vez definida a competência segundo os ditames constitucionais mencionados, devemos averiguar uma outra regra de competência
que está prevista nos incisos I e II do art. 93 do CDC. A análise da
competência tem dois momentos, o primeiro que irá definir a competência da Justiça Federal ou da Justiça Estadual e o segundo momento que é
o que vamos tratar.
O segundo momento de definição de competência é o que determina a competência territorial uma vez que o elemento definidor é o da
extensão do dano44 porque se este for: a) de âmbito local será competente o
foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano (Inciso I do art. 93);
b) se os danos forem de âmbito regional ou nacional será competente o foro
da Capital do Estado ou do Distrito Federal (aplicando-se as regras dos
artigos 106 e 205 do CPC nos casos de competência concorrente) (Inciso
II do art. 93). A lei não explicita o que vem a ser âmbito local, regional e
nacional. Mas podemos partir do sistema adotado pela Constituição que é
o Federativo formado pela “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal” (caput do art. 1º da C.F.) do que decorre que “a organização
político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios...” (caput do art. 18 da C.F.). Apreciada esta divisão, podemos concluir que o dano ou sua iminência será de
âmbito local quando não ultrapassar a esfera de um Município, tanto que a
própria Constituição define que o Município é competente para legislar
sobre assuntos de interesse local (art. 30, I); será de âmbito regional quando
ultrapassar os limites de um Município, mas não ultrapassar os limites de
um Estado; e, por fim, será de âmbito nacional quando ocorrerem danos
em mais de um Estado da Federação45.
A competência aqui é relativa, admitindo-se a prorrogação se não
for proposta a exceção declinatória de foro, ex vi do disposto no artigo
114 do CPC46.
Um equívoco que parcela da doutrina e da jurisprudência têm
incorrido nas hipóteses de dano nacional é entender que se um juiz estadual embora possua competência para julgar uma ação coletiva, suas decisões não podem ultrapassar os limites do Estado ao qual pertence47.
Este equívoco deriva justamente da exata compreensão de jurisdição e
competência, uma vez que competente o juiz, suas decisões poderão irradiar-se por todo o território nacional, visto que a jurisdição é una48. A
exata compreensão da competência e da jurisdição estão diretamente relacionadas com o sistema Federativo adotado pela Constituição Federal;
prova disto é que o foro do domicílio do autor da herança, no Brasil, é
competente para o inventário, partilha... (caput do art. 96 do CPC), sendo
que, v.g., no formal de partilha que se encontre determinado bem situado
no Rio de Janeiro-RJ, nesta cidade deverá se proceder a transcrição no
Registro de Imóveis local, sendo que o inventário teve curso em Porto
Alegre-RS por ser o domicílio do autor da herança. Seguindo-se o entendimento equivocado anteriormente exposto, conduzir-se-ia a conclusão
de que deveriam ser ajuizados diversos inventários tantos fossem os Estados em que se encontrassem os bens do de cujus, o que evidentemente o
Código de Processo Civil expressamente afasta.
9. AJUIZAMENTO DA AÇÃO E SUA PUBLICIDADE
A determinação do artigo 94 do CDC de que proposta a ação
deverá ser publicado edital no órgão oficial tem direta correlação com os
efeitos da coisa julgada, porque em caso de procedência haverá um condenação genérica para beneficiar todas as vítimas ou seus sucessores (art.
103, III do CDC), a eficácia do julgado se faz secundum eventum litis.
Quanto aos requisitos desta citação-edital devem ser aplicados, desde
que compatíveis com o CDC, as regras do artigo 232 do Código de Processo Civil49; como corretamente aponta Camargo Mancuso serão aplicáveis as normas relativas a afixação de edital na sede do juízo, e os prazos
- Incisos II, III e IV do art. 232 do CPC, todavia não serão aplicáveis os
dispositivos relativos à advertência quanto à revelia (a eficácia do julgado
é secundum eventum litis) - Inciso V do art. 232 ou à parte beneficiária da
Assistência Judiciária (§ 2º do art. 232)50. Esta comunicação por edital não
impede a ampla divulgação por outros meios por parte dos órgãos de
defesa do consumidor, apenas esta divulgação suplementar não é exigida
pelo artigo 94 do CDC.
Esta admissão dos interessados de intervirem no processo, segundo
o art. 94, se dará na forma de litisconsórcio. Ada Pellegrini Grinover ressalva que esta intervenção “a título de litisconsórcio, não autoriza os litisconsortes a
formularem pretensão indenizatória pessoal, pois isso desvirtuaria o objeto do processo
coletivo e a natureza da sentença” 51. De todo procedente a ressalva da
processualista, uma vez que o processo de conhecimento nesta ação coletiva possui contornos peculiaríssimos, inclusive a sentença (e portanto o
pedido deduzido pelo legitimado extraordinário), se procedente, será
condenatória genérica (art. 95 do CDC), o que por si só já impede maiores questões sobre a impossibilidade do interessado deduzir pretensão
indenizatória pessoal. Esta intervenção como litisconsorte gera para este
interessado a consequência de que será atingido pelos efeitos da coisa
julgada, favorável ou não, não podendo posteriormente ajuizar ação a
título individual52.
Um ponto a doutrina não trata: que o interessado não poderá atuar
no processo formulando pretensão indenizatória pessoal não há dúvidas,
mas e no tocante a aferição da legitimidade deste, em tese, interessado?
Com certeza o problema surgirá, pois só intervirá no processo como
litisconsorte se tiver interesse em que a sentença seja procedente, logo, só
se poderá admitir sua integração ao pólo ativo se demonstrar este interesse, em outras palavras, se demonstrar que a sentença condenatória genérica lhe será útil.
Esta exigência de comunicação aos interessados (art. 94 do CDC)
foi adaptada para o ordenamento jurídico brasileiro tomando por base o
sistema da class action norte-americana que tem por regra a exigência de
que todos os membros da class recebam uma fair notice do processo, pois a
coisa julgada valerá para todos eles53. No entanto, no sistema norte-americano esta notícia deriva de uma consequência diversa da que ocorre no
Brasil, porque na class action o membro da class que não desejar ser atingido pelos efeitos da sentença deve requerer expressamente (right to opt out);
a regra é que todos os membros sejam atingidos, qualquer que seja a
decisão, daí a necessidade de ciência aos interessados.
No procedimento do CDC, o interessado que desejar integrar o pólo
ativo da demanda deve provar o seu interesse (do que, para o caso, decorrerá a sua legitimidade), porque não se pode admitir que qualquer um
que alegue ter interesse seja admitido como litisconsorte. Mas, sem dúvida, esta necessidade de comprovação combinada com os direitos
inafastáveis do integrante do pólo passivo ao contraditório e a ampla
defesa podem gerar um verdadeiro caos no processo, inviabilizando o seu
andamento. Melhor seria o legislador ter impedido a atuação dos interessados do que não decorria nenhuma inconstitucionalidade porque não só
poderiam ajuizar ações individuais, como também a coisa julgada será
secundum eventum litis e in utilibus 54.
10. SENTENÇA
10.1. Abrangência e Efeitos
Preconiza o artigo 95: “Em caso de procedência do pedido, a condenação
será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados”.
A pretensão que deve ser externada pelo legitimado extraordinário
que propõe a ação coletiva para a defesa de direitos ou interesses individuais homogêneos só pode ser almejando uma condenação genérica, porque o artigo 95 do CDC estabelece que em caso de procedência a sentença será condenatória genérica, é porque o pedido formulado por um dos
legitimados do artigo 82 será genérico, consequentemente a causa de
pedir também deverá ser genérica, embora evidentemente respaldada
em elementos que permitam o reconhecimento judicial de sua procedência; esclarece Ada Pellegrini Grinover que os danos deverão ser apurados, todavia por amostragem e perícia 55.
Como se infere, não haverá um processo cognitivo que apure individualmente todos os danos, o que ocorrerá é inicialmente uma apuração genérica na qual a defesa processual dos direitos individuais homogêneos é feita de forma indivisível, ocasionando um sentença condenatória
genérica que reconhece a existência de um dano geral56; posteriormente
haverá a habilitação dos consumidores ou seus sucessores57, momento no
qual deverão ser provados a existência do dano individual, o nexo de
causalidade com o dano genérico apontado na sentença e o montante
deste dano. Nesta fase processual, prevista no artigo 97 do CDC, não
mais se cuidará de um direito individual homogêneo, mas sim de um
direito individual que será apurado não em um mero processo de liquidação nos moldes tradicionais, mas sim em um autêntico processo cognitivo
(de habilitação).
Há estreita correlação entre o pedido e a sentença (artigo 440 do
CPC), no Código de Defesa do Consumidor ao invés de se determinar
que o pedido seria necessariamente de uma condenação genérica, o que
em caso de procedência conduziria a uma sentença condenatória genérica (conforme artigo 460 do CPC), preferiu-se trazer as mesmas
consequências só que de forma invertida, isto é, determinou-se que em caso de
procedência, a sentença será condenatória genérica, logo no pedido só poderá se almejar
esta condenação genérica. Chiovenda aponta que “entre la demanda y la sentencia
que la estima, existe una relación de correspondencia, la cual da lugar a una serie de
fenómenos que se llaman comúnmente efectos sustantivos de la demanda judicial, o,
con más exatitud, efectos del proceso.” 58.
O que se pretende demonstrar é que o processo de conhecimento
deverá ser julgado sobre este prisma, até mesmo porque a sentença
condenatória genérica só será útil àqueles que demonstrarem terem sofrido individualmente o dano, neste momento sim em processo cognitivo
exauriente.
O dano efetivamente auferido não será comprovado na execução,
mas sim em processo imediatamente precedente que nada mais é do que
a dilação probatória exauriente, para que cada consumidor venha a demonstrar a ocorrência de seu prejuízo.
Não podemos deixar de verificar um relevante equívoco
terminológico que a jurisprudência vêm incidindo, em acórdão da sexta
câmara cível do Tribunal de Justiça de São Paulo59 afirmou-se, embasando
o indeferimento do pedido de condenação, que o “dano hipotético não pode
justificar indenização”, quando tratamos, no processo de conhecimento, de
direitos individuais homogêneos, o que se apura é o dano ocasionado no
plano genérico (coletivo) e não sobre “dano hipotético”.
Se o dano ocasionado no plano genérico (coletivo) não for comprovado, evidentemente não caberá a procedência do pedido de indenização; não bastará a alegação, o legitimado que ajuíza a ação coletiva deve,
no mínimo, realizar prova dos prejuízos por amostragem. O que é importante é se afastar as regras insertas no Código de Processo Civil que não
se coadunam com o microssistema do CDC60. Cândido Rangel Dinamarco
reconhece que a sentença condenatória genérica prevista no artigo 95 do
CDC declara que houve lesão a direitos individuais homogêneos, mas,
como toda sentença coletiva, não individualizará os sujeitos lesados61. A
sentença condenatória genérica, sob o prisma individual, tem uma certeza
condicionada ao processo de liquidação que será cognitivo exauriente, uma
vez que é neste que o consumidor ou seus sucessores demonstrarão se
inserirem, a título individual, como lesados na forma da sentença.
Portanto, a título individual, a certeza será definitivamente demons-
trada na liquidação e a liquidez e a exigibilidade se formarão no processo
de liquidação.
A sentença que condena genericamente o pólo passivo “fixando a
responsabilidade do réu pelos danos causados” (art. 95 do CDC) não significa,
como apontado anteriormente, que todos os consumidores fariam jus a
indenização, já que só aqueles que lograssem êxito na comprovação do
dano, do nexo causal entre o ato do réu e a ocorrência deste dano, e,
também, seu montante é que poderiam obter uma sentença condenatória
(digamos, específica), e a partir desta promover a execução. Isto tudo sem
se falar nas excludentes de responsabilidades, desde que admissíveis, que
poderiam ser suscitadas pelo réu.
A sentença condenatória genérica prevista no artigo 95 está condicionada a um procedimento individual no qual sejam cabalmente comprovados todos os requisitos acima tratados, sem o que, sequer pode se
argumentar, em última análise e sob a ótica do dano individual, que estaria a sentença dotada de certeza, liquidez e exigibilidade. Cândido Rangel
Dinamarco reconhece que a sentença condenatória genérica prevista no
artigo 95 do CDC declara que houve lesão a direitos individuais homogêneos, mas, como toda sentença coletiva, não individualizará os sujeitos
lesados. Finaliza o doutrinador: “No tocante a cada um destes (consumidores), portanto, ela (sentença) não contém mais do que a declaração de mera
potencialidade lesiva (...) Ao conteúdo mais restrito dessa sentença corresponde o
objeto ampliado da liquidação que se lhe segue.”62.
10.2. Publicidade
A publicidade da sentença condenatória genérica é imprescindível
para viabilizarem-se as liquidações-habilitações que serão promovidas pelas
vítimas ou seus sucessores (art. 97 do CDC). O artigo 96 do CDC que
tratava justamente da publicidade da sentença transitada em julgado, foi
vetado sob a justificativa de que fazia referência errônea ao artigo 93,
quando o correto seria o 9463. Melhor tivesse mantido o equívoco.
Esta lacuna da lei não pode evidentemente impedir a publicidade
da sentença, o que além de se inviabilizar o procedimento, estar-se-ia
ofendendo o princípio da publicidade dos atos processuais estampado no
art. 5º, inciso LX e no art. 94, Inciso IX da Constituição Federal.
A questão da publicidade da sentença condenatória genérica transitada em julgado é imprescindível na análise do dies a quo do prazo de um
ano para o recolhimento da fluid recovery a que menciona o artigo 100 do
CDC. Por este motivo vamos abordar com mais profundidade a questão
da publicidade da sentença no item 11.4.
11. HABILITAÇÃO E LIQUIDAÇÃO DA SENTENÇA
Em regra, o processo de liquidação previsto no Código de Processo Civil, o an debeatur deve ser comprovado no processo de conhecimento
e em processo de liquidação só se discute sobre o quantum debeatur. Não se
pode interpretar a literalidade do disposto no artigo 97 do CDC que traz
a denominação “liquidação”, sem proceder-se a uma interpretação sistemática.
O disposto neste artigo deve ser interpretado
em combinação com a integralidade do Capítulo II do Título III do
CDC, do que se conclui que a liquidação tratada será
mais abrangente que a liquidação por artigos tradicionalmente conhecida64, porque “cada liquidante em processo de liquidação, deverá provar, em contraditório pleno e com cognição exauriente, a existência do seu dano pessoal e o nexo
etiológico com o dano globalmente causado (ou seja, o “an”), além de quantificá-la (ou
seja, o “quantum”).”65.
O artigo 97 admite que a liquidação e execução da sentença sejam
promovidas pelos legitimados do art. 82. Mesmo nesta hipótese a liquidação e execução se dará de forma individualizada, sendo que os entes e
pessoas enumeradas no art. 92 irão agir em nome das vítimas ou seus
sucessores, sendo esta atuação a título de representação e não mais
legitimação extraordinária 66.
Mas após a publicação do edital existe um prazo preclusivo para
esta habilitação?
O CDC é omisso quanto a este prazo. Em razão disto, ao que
parece, a solução apontada por Ada Pellegrini Grinover de que o prazo
preclusivo não pode ser inferior ao prazo previsto para prescrição da
pretensão, é a única capaz de responder ao questionamento supra. Mas
esta solução gera sérias consequências no que se refere a fluid recovery
como adiante trataremos.
Em razão do veto ao parágrafo único do artigo 97 do CDC, não
há previsão do foro competente para os processos de liquidação e execução.
Para Ada Pellegrini Grinover deve ser aplicado subsidiariamente o
art. 101, I do CDC que reza: “a ação de responsabilidade civil do fornecedor de
produtos e serviços pode ser proposta no domicílio do autor.” 67. Admitindo-se a
propositura da liquidação no domicílio do consumidor.
Bem embasado, Camargo Mancuso aponta que a competência para
o processo de liquidação é absoluta e não admite a dissociação entre o
processo de conhecimento coletivo e a liquidação individual. Embora
reconheça o processualista que a matéria é suscetível de controvérsia 68.
Não se pode olvidar de que após o ajuizamento do processo de
liquidação (habilitação), no qual haverá processo cognitivo exauriente,
deverá haver a citação pessoal do demandado, uma vez que pela
especificidade do processo formar-se-á uma nova relação processual, o
que para sua existência é imprescindível a citação (artigo 214 c/c artigo
215 do Código de Processo Civil).
12. EXECUÇÃO
Nesta fase já foi ultrapassada a habilitação e liquidação individual;
sendo que é possível cada credor executar seu crédito ou poderá ser
promovida a execução coletiva.
12.1. Execução coletiva e competência
A qualificação coletiva deve ser adequadamente compreendida;
coletiva no sentido de que os legitimados do artigo 82 poderão executar
os títulos executivos judiciais conjuntamente, todavia serão individualizados69 e os credores serão os consumidores ou seus sucessores, não deve
ser confundida a execução coletiva do artigo 98 com a fluid recovery do
artigo 100, ambos do CDC.
No caso de execução coletiva o foro competente é o da ação
condenatória, conforme expressamente determina o Inciso II do § 2º do
artigo 98 do CDC, devendo ser ação condenatória entendida como sinônimo do processo de conhecimento coletivo. A competência aqui não gera
maiores dúvidas.
A execução coletiva poderá ser provisória, isto é, sem que tenha
ocorrido o trânsito em julgado das sentenças dos processos de liquidação.
Esta interpretação decorre da interpretação do § 1º do artigo 98 que
determina que a execução coletiva será feita “com base em certidão das sentenças de liquidação, da qual deverá constar a ocorrência ou não do trânsito
em julgado”70. Se a execução deverá ser instruída com certidão que declare a ocorrência ou não do trânsito em julgado é porque será possível a
execução provisória na execução coletiva. Camargo Mancuso ressalva
que se o executado é o Poder Público, a sentença não poderá ser executa-
da, antes de ser revista em segundo grau, no denominado reexame necessário71.
12.2. Execução promovida pelos próprios consumidores ou
seus sucessores e a competência
A competência na execução promovida pelos próprios consumidores ou seus sucessores pode ser ou do juízo em que teve curso a liquidação ou do juízo em que tramitou a ação condenatória (coletiva). Como
se vê, a primeira hipótese fica esvaziada em razão do veto ao parágrafo
único do artigo 8772, já que segundo Camargo Mancuso há competência
funcional por conexão sucessiva entre os foros da ação e da execução
(art. 575, II do CPC)73. A não ser que se entenda, como Ada Pellegrini
Grinover, que é possível que o processo de liquidação seja ajuizado no
domicílio do consumidor.
Resta-nos concluir se é possível ou não a execução provisória da
sentença no caso desta ser proposta pelo próprio credor, uma vez que
para a ação coletiva a lei foi clara. A execução provisória está atrelada à
inexistência do efeito suspensivo quando interposta apelação. A regra é
que a apelação tem efeito suspensivo, ressalvadas as enumerações constantes dos incisos do art. 520 do Código de Processo Civil (ou de legislação especial). É verdade que o inciso III do artigo 520 do CPC não
confere efeito suspensivo à apelação interposta de sentença que julga a
liquidação, porém a liquidação a que se refere o CPC é a liquidação que
este próprio diploma legal se refere e que não se coaduna, como já demonstramos, à liquidação do artigo 97 do CDC. Esta liquidação é um
autêntico processo cognitivo, em que até as partes são diversas do processo coletivo. Da inaplicabilidade do inciso III do artigo 520 do CPC combinada com a omissão do CDC podemos concluir que não poderá haver
execução provisória na hipótese de execução promovida pelo próprio
credor do título executivo judicial. Prova disto é que o parágrafo único do
artigo 99 do CDC determina que a importância recolhida ao Fundo (art.
13 da LACP) ficará sustada enquanto pendentes de decisão em segundo
grau as ações de indenização pelos danos individualmente sofridos.
12.3. Concurso de Créditos
O art. 99 do CDC com toda clareza declara a preferência dos
créditos decorrentes de indenizações individuais frente aos créditos que
se destinam ao Fundo a que menciona o art. 13 da Lei 7.347/85. Todavia, esta preferência se dará nos casos em que se verificar cumulativamente que: a) ambas as “indenizações” tiverem como ponto de igualdade
“o mesmo evento danoso”, ou seja, se entre as indenizações da Lei 7.347 e as
individuais verificar-se a conexão pela causa de pedir 74; b) como se fala
“em créditos” obrigatoriamente deverão os credores (ou legitimados para
cobrança do crédito), devido a esta qualificação, estarem com seu crédito
embasado em um título executivo judicial, que como vimos, só poderá
ser executado após o trânsito em julgado da sentença que o constituiu ou
após o julgamento da apelação nos casos em que os recursos contra esta
decisão não sejam dotados de efeito suspensivo, e só a partir de um destes
momentos é que se poderá falar em concurso de créditos.
O parágrafo único do art. 99 determina que a importância recolhida ao Fundo (art. 13 da LACP) ficará sustada enquanto pendentes de
decisão em segundo grau as ações de indenização pelos danos individualmente sofridos, a exceção a esta regra veremos a seguir.
Deste dispositivo podemos concluir que sua aplicação ocorrerá
quando verificados concomitantemente os seguintes requisitos: a) já existir um crédito satisfeito na ação que trata do bem indivisível; b) existirem
em andamento ações de indenização a danos individuais que ainda não
possuam decisões em segundo grau. Estas ações são: ou as denominadas
liquidações (habilitações) do art. 97, ou as ações propostas individualmente pelos consumidores ou seus sucessores, nos moldes tradicionais do
Código de Processo Civil. Esta análise é decorrente da literalidade do
parágrafo único do art. 99 que trata das ações pelos “danos individuais”,
portanto, pessoalmente sofridos, individualizados; c) verificar-se a conexão das ações pela identidade da causa petendi; d) constatar-se, de maneira
inequívoca, que o patrimônio do devedor é invariavelmente suficiente
para responder pela integralidade das dívidas.
Todas estas exigências se coadunam com o espírito do CDC de
privilegiar o dano individual do consumidor. Cumprindo salientar-se que
a mera existência de uma ação coletiva para a defesa de interesses ou
direitos individuais homogêneos, enquanto processo de conhecimento,
não tem incidência o disposto no art. 99, já que este incide nos casos de
existência de processo de conhecimento de danos já individualmente considerados.
Uma questão de índole eminentemente pragmática: Em um país
de dimensões continentais como o Brasil, sem um sistema de centralização de informações do Poder Judiciário, como se constatar a existência
de ditas ações individuais quando o dano for de âmbito nacional?
Poderia se imaginar, em análise precipitada, que basta a comprova-
ção que o patrimônio do devedor é suficiente para responder pela
integralidade das dívidas, o que por si só possibilitaria a não incidência do
regramento estampado no parágrafo único do art. 99. Mas o problema
continua, ou até mais agravado, já que se a mera constatação das ações
individuais é praticamente impossível (principalmente se o dano extravasar o âmbito regional), o que se dirá dos valores nelas pleiteados. A única
forma de propiciar-se a não incidência do regramento é a prova negativa,
ou seja, a não ocorrência de um dos requisitos acima previstos.
12.4. A Fluid Recovery prevista no art. 100 do CDC
Segundo o artigo 100 do CDC: “Decorrido o prazo de um ano sem
habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão
os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.
Parágrafo único - O produto da indenização reverterá para o Fundo criado pela Lei
nº 7.347, de 24 de julho de 1985.”. Algumas importantes questões surgem
da análise do dispositivo.
A primeira é no tocante ao início do prazo de 1 (um) ano preconizado no art. 100. Na realidade a interpretação tornou-se complexa porque o art. 96 foi vetado e este estabelecia que transitada em julgado a
sentença condenatória genérica seria publicado um edital. Inobstante o
veto, inafastável a imprescindível comunicação da decisão condenatória
genérica e esta deverá observar uma interpretação sistemática do CDC
combinada com atividade de interpretação analógica dos dispositivos do
Código de Processo Civil (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Segundo Ada Pellegrini Grinover75 e Camargo Mancuso76 a solução seria a adoção da notícia via edital. Embora ambos os doutrinadores
concordem com a forma de publicidade (edital), estes discordam na forma pela qual esta será realizada.
a) Para Ada deve-se aplicar por analogia o art. 94 do CDC e o art.
5º, LX e 94, IX ambos da CF77.
b) Para Mancuso78 deve se aplicar os artigos 652 e seguintes do
CPC (edital em execução) e prazo de 30 dias (ou 60 art. 15 da Lei 4.347/
85), finda a dilação assinada pelo juiz no prazo (art. 241, III e 184, § 2º do
CPC) iniciar-se-ia o prazo do art. 100 de um ano.
Ao que nos parece, o correto seria uma conjugação das duas soluções, vejamos: a) No tocante a opção por edital razão assiste a doutrinadora,
já que o art. 94 do CDC aclara o que este diploma entende como meio
hábil para a comunicação aos consumidores ou seus sucessores, logo, a
princípio, aplicável ao caso, o edital, sob o emprego de analogia do art. 94,
já que a utilização desta decorre de encontrar-se para o caso de omissão
legal um dispositivo do ordenamento jurídico que mais se coaduna com o
necessário suprimento da lacuna, sendo que o meio mais adequado de
obtê-la, sendo possível, é o emprego da analogia dos dispositivos insertos
no próprio diploma em se encontra a omissão79; b) No tocante à questão
dos prazos para incidência do dies a quo do art. 100, acreditamos adequada a solução preconizada por Mancuso, que consiste na previsão pelo juiz
de um prazo após a publicação do edital (arts. 241, III e 184, § 2º do
CPC), findo este iniciar-se-ia o prazo de um ano do art. 100; c) Não
conseguimos vislumbrar no presente caso a necessidade do prazo de 30
ou 60 dias proposto por Mancuso entre a sentença e a realização dos
editais. Acreditamos, porém, plenamente aplicável, por analogia, as disposições do art. 232 do CPC que rege a citação por edital, evidentemente
com as adequações necessárias; d) por último, não podemos olvidar a
ressalva de Ada sobre a orientação constitucional inserta nos arts. 5º, LX
e 94, IX de que cabe ao juiz dar efetiva aplicação ao princípio da publicidade dos atos processuais.
Na class action norte-americana, exige-se, desde que possível (mesmo que difícil), a comunicação direta a todos os membros da class, em
casos especiais a comunicação é admitida por correio, e raramente por
editais, tudo embasado no princípio do due process of law 80. É claro que a
comunicação se deve às especificidades deste sistema, por exemplo, o
membro da class se avisado e não pedir seu desligamento (opt out) ele será
atingido pelos efeitos da decisão da ação coletiva. Em que pese a
especificidade do sistema, conclui-se, no mínimo, necessária uma reflexão
sobre a eficiência da comunicação por edital, bem como sua possibilidade
de aplicação frente à ausência de regramento específico do CDC e também sobre os princípios constitucionais, principalmente se levarmos em
conta que a comunicação por edital é uma “ficção jurídica” e como tal
pode eventualmente ser aceita apenas nos casos em que a lei expressamente a autoriza, o que não ocorreria no caso do disposto no art. 100 do
CDC81.
Outra disposição a ser analisada é qual a compreensão do que vem
a ser “sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do
dano”. Sem dúvida, caberá ao magistrado a verificação que poderá decorrer de pedido fundamentado de um dos legitimados do art. 82, sendo que
somente após a decisão judicial que reconheça a ocorrência da hipótese
preconizada no caput do art. 100 do CDC é que se procederá a liquidação
e a execução da “indenização devida”.
Sobre este tema Ada, com a maestria que lhe é peculiar, aponta:
“Assim o juiz deverá proceder à avaliação e quantificação dos danos causados, e não
dos prejuízos sofridos. Avulta aqui, sua “defining function” e seus poderes se tornam
mais amplos” 82.
José Geraldo Brito Filomeno traz ilustrativo exemplo: Uma fábrica vendia latas que deveriam possuir 1 litro de oléo, mas que só possuiam
900 ml. Não havendo um número de interessados compatível, haverá
uma aferição de quantas latas foram produzidas, e portanto desta
constatação proceder-se-á a cálculos aritméticos de qual o valor total dos
danos causados, deste abater-se-á as indenizações individualmente pagas,
e o que remanescer será revertido ao Fundo83.
Waldemar Mariz de Oliveira Júnior84 cita exemplo de uma class
action sobre um posto de gasolina que praticava um preço superior ao de
tabela. Um dos lesados intentou uma ação contra o posto, ao final julgada
procedente, mas houve uma condenação totalmente inusitada, o posto
foi compelido a fornecer gasolina gratuitamente, até atingir a exata quantia que vendera acima da tabela.
Neste caso, acreditamos que é inaplicável o exemplo retro ao sistema brasileiro, já que por se tratar de reconhecida hipótese de pretensão
que exterioriza a proteção a interesses ou direitos individuais homogêneos o CDC é taxativo em determinar que na inexistência da habilitação dos
interessados “em número compatível com a gravidade do dano” a fluid recovery
“reverterá” (norma cogente) ao Fundo criado pela Lei 7.347/85. Portanto,
a determinação é obrigatória, não admitindo qualquer grau de
discricionariedade.
13. ÚLTIMAS REFLEXÕES
O tratamento legislativo dos direitos ou interesses individuais homogêneos sem sombra de dúvida foi uma das maiores inovações do nosso ordenamento jurídico. Trata-se de instituto ainda pouco difundido entre os profissionais do Direito, que dirá entre toda a população. Se a exata
compreensão dos direitos difusos e coletivos apresenta-se ainda distante
do ideal, o que apressadamente se almejar em relação a um instituto que
foi criado pelo binômio coletivo-individual?
Mas o fenômeno mais importante foi sua criação, rompendo-se
sérias barreiras à sua positivação. Os percalços que surgiram e que ainda
certamente surgirão para aplicação dos postulados relacionados aos direitos individuais homogêneos não poderão ser vistos como empecilho a sua
efetiva aplicação, mas sim como o caminho para sua adequada compreensão, que só seu tratamento diuturno será capaz de propiciar.
Ao se propalar a coragem na aplicação do novo, não devemos nos
cegar, como orienta o eminente jurista Mauro Cappelletti: “Ao saudar o
surgimento de novas e ousadas reformas, não podemos ignorar seus riscos e limitações...
É preciso que se reconheça, que as reformas judiciais e processuais não são substitutos
suficientes para as reformas políticas e sociais.” 85.
Todavia, apesar de dever ser observada a ressalva de Cappelletti,
os aplicadores do Direito não podem se acomodar em aplicações preconcebidas que não guardam correlação com este vanguardista instituto; não
podem, pois, se utilizar de preceitos seculares construídos com base na
inspiração individualista radical86.
O novo em um primeiro momento gera temor, dúvidas em sua
aplicação, mas estes devem ser extirpados do espírito do aplicador do
Direito e em seu lugar deve-se inserir a paixão pelo novo, assimilado-se
todo o entusiasmo que pode originar a vontade de se romper barreiras.
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2
Dicionário Aurélio Eletrônico.
3
Esta fundamentação etimológica também é realizada por Maria
Antonieta Zanardo Donato, Proteção ao Consumidor, pp. 180/181.
4
Arruda Alvim “Anotações Sobre as perplexidades e os caminhos do pro1
cesso civil contemporâneo - sua evolução ao lado do direito material”, in Revista de
Direito do Consumidor nº 2, pp. 78/79.
5
Arruda Alvim, op. cit., pp. 79/83.
6
Op. cit., p. 85.
7
“Tutela Jurisdicional dos Interesses Coletivos”, in Tutela dos Interesses Difusos,
p. 10.
8
Idem, Ibidem, p. 11.
9
Interessi Collettivi e Processo - la legitimazione ad agire, p. 276.
10
“Aspectos do processo civil no Código de Defesa do Consumidor”, in Revista de Direito do Consumidor nº 1, p. 202.
11
“Interesses Difusos ou Coletivos - Ação Civil Pública - Lei 7.347/
85 - Proteção a Consumidores”, in RT 648/11.
12
Op. cit., p. 12.
13
A denominação é apenas ilustrativa já que o sistema brasileiro é
muito diferente do sistema norte-americano.
14
Op. cit., pp. 538/543.
15
Vigoriti, “Interessi collettivi e processo”, apud Ada Pellegrini Grinover,
“A Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos no Direito Comparado”, in
A Tutela dos Interesses Difusos, p. 80.
16
Op. cit., pp. 540.
17
Ada Pellegrini Grinover, “A Tutela Jurisdicional dos Interesses
Difusos no Direito Comparado”, in A Tutela dos Interesses Difusos, p. 82.
18
Mas não se pode olvidar que tais pretensões desde que tratem
de direitos difusos e coletivos (“stricto sensu”) poderão ser deduzidas em
juízo pelos legitimados do art. 82. Aproveitamos também para ressaltar
que embora nossa posição atual é a veiculada na conclusão acima, continuamos estudando o assunto especialmente em face do disposto no art.
83 do CDC.
19
Cód. Bras. de Defesa do Consumidor Comentado, p. 552.
20
Idem, Ibidem, p. 543. Todavia, Ada Pellegrini Grinover não afirma categoricamente que a única pretensão dedutível em juízo nas ações
coletivas para a defesa de direitos individuais homogêneos poderá ser a
de condenação pecuniária.
21
A Defesa dos interesses Difusos em Juízo, apud Rodolfo de
Camargo Mancuso; Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, p. 288.
22
Comentários ao Código de Processo Civil; Vol I; pp. 64/65.
23
Legitimação para Agir no Direito Processual Civil Brasileiro, pp. 132/
133.
Apud, Donaldo Armelin, Legitimidade para Agir no Direito Processual Civil Brasileiro, p. 133.
25
Para um estudo pormenorizado, Donaldo Armelin, op. cit., p. 123 e
seguintes.
26
Rodolfo de Camargo Mancuso, op. cit., p. 318.
27
Arruda Alvim, Tratado de Direito Processual Civil, Vol. 1, p. 516.
28
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 557.
29
Arruda Alvim ao tratar do legitimado extraordinário (sob a denominação de substituto processual) reconhece que o rol de direitos processuais fica afeto ao substituto processual, todavia, certos direitos “são
insuscetíveis de transferência ... assim, os atos que impliquem disposição de direito, ou
que a possam acarretar como a transação, exemplificativamente, não poderão ser
praticados pelo substituto, sem a manifestação da vontade do substituído...”. Tratado
de Direito Processual Civil, Vol. 1, p. 518.
30
Comunga desta conclusão Hugo Nigro Mazzilli, embora aclare
que na prática não é o que se tem constatado. A Defesa dos Interesses Difusos
em Juízo, pp. 156/160.
31
“A Ação Civil Pública e a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos”,
in Revista de Direito do Consumidor nº 5, p. 216.
32
“Ações Coletivas para a Tutela do Ambiente e dos Consumidores”, in
COAD - 1986 - p. 9, apud Rodolfo de Camargo Mancuso, Coment..., p.
323.
33
Hugo Nigro Mazzilli entende que não é atribuição constitucional
do Ministério Público (arts. 127, caput e 129, III) a defesa dos interesses
individuais homogêneos, mas sim apenas e tão somente os direitos coletivos e difusos. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, pp. 70/72. De
opinião contrária, Nelson Nery Jr. sustenta a legitimidade constitucional
do Ministério Público para defeder direitos individuais homogêneos,
embasando-se nos arts. 127, caput e 129, IX conbinados com o art. 1º do
CDC. “Aspectos do Processo Civil no Código de Defesa do Consumidor”, in Revista
de Direito do Consumidor nº 1, pp. 202/203.
Admitindo a tese exposta por Nelson Nery Jr., inclusive tratando
do questionamento de taxa de iluminação acórdão do Superior Tribunal
de Justiça, no Recurso Especial nº 49.272-RS, 1a Turma, Relator: Ministro Democrito Reinaldo, v.u.: e m e n t a
Processual civil. ação civil publica para defesa de interesses e direitos individuais homogêneos. taxa de iluminação publica. Possibilidade.
A Lei n. 7.345, de 1985, e de natureza essencialmente processual, limitan24
do-se a disciplinar o procedimento da ação coletiva e não se entremostra
incompatível com qualquer norma inserida no titulo iii do código de defesa do consumidor (Lei n. 8.078/90). É principio de hermenêutica que,
quando uma lei faz remissão a dispositivos de outra lei de mesma hierarquia, estes se incluem na compreensão daquela, passando a constituir
parte integrante do seu contexto. O artigo 21 da Lei n. 7.345, de 1985
(inserido pelo artigo 117 da Lei n. 8.078/90) estendeu, de forma expressa, o alcance da ação civil publica a defesa dos interesses e “direitos individuais homogêneos”, legitimando o ministério publico, extraordinariamente e como substituto processual, para exercita-la (artigo 81, parágrafo
único, iii, da Lei 8.078/90). Os interesses individuais, “in casu”, (suspensão do indevido pagamento de taxa de iluminação publica), embora pertinentes a pessoas naturais, se visualizados em seu conjunto, em forma
coletiva e impessoal, transcendem a esfera de interesses puramente individuais e passam a constituir interesses da coletividade como um
todo,impondo-se a proteção por via de um instrumento processual único
e de eficácia imediata - “a ação coletiva”. O incabimento da ação direta
de declaração de inconstitucionalidade, eis que, as leis municipais nos. 25/
77 e 272/85 são anteriores a constituição do estado, justifica, também, o
uso da ação civil publica, para evitar as inumeráveis demandas judiciais
(economia processual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas
questões jurídicas. recurso conhecido e provido para afastar a inadequação,
no caso, da ação civil publica e determinar a baixa dos autos ao tribunal
de origem para o julgamento do mérito da causa. decisão unânime. “ (In
JUIS – Jurisprudência Informatizada Saraiva, Saraiva Data, CD-ROM nº 13)
34
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado, p. 547.
35
Rodolfo de Camargo Mancuso, Comentário..., pp. 317/318.
36
Interpretação das Leis Processuais, p. 29.
37
Para uma análise mais profícua: Francisco Antonio de Oliveira,
“Da Ação Civil Pública: Instrumento de Cidadania – Inconstitucionalidade da Lei 9.494, de 10.09.1997.”, in RT 744, pp. 31 e seguintes; José
Marcelo Menezes Vigliar, “A Lei 9.494, de 10 de setembro de 1997, e a
nova disciplina da coisa julgada nas ações coletivas: inconstitucionalidade.”, in RT 745, pp. 67 e seguintes; Luiz Eduardo Guimarães Bojart,
“Ação Civil Pública: Limitação ou Controle Constitucional? Limitação”, in
CD-ROM – Revista Jurídica Consulex 97 – jan/dez.
38
Alguns argumentos completamentares serão lançados no capítulo seguinte.
Rodolfo de Camargo Mancuso, Comentários ..., p. 319.
Arruda Alvim, Manual de Direito Processual Civil, Vol. I, p. 128.
41
Ada, Araújo Cintra e Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 226.
42
Cód. Bras. de Defesa do Consumidor Comentado, p. 548.
43
Coment..., pp. 246/247.
44
Ada Pellegrini Grinover, Cód. Bras. de Def. do Cons. Coment., pp.
548/549.
45
Tupinambá Miguel Castro do Nascimento tem o mesmo
posicionamento, todavia não empregando os fundamentos constitucionais expostos. Comentários ao Código do Consumidor, pp. 108/109.
46
Ada, op. cit., p. 550. Rodolfo de Camargo Mancuso após uma
profunda análise dos institutos da jurisdição e competência, conclui , pelo
que entendemos, que no caso dos incisos I e II esta competência é de
natureza absoluta (Coment..., pp. 319/322), todavia ousamos divergir do
doutrinador, com base nos argumentos anteriormente expostos. Um argumento muito utilizado é o de que no art. 2º da lei 7347/85, inobstante
o critério de competência ser o do local do dano, estabeleceu expressamente que a competência é funcional. Primeiramente, o CDC não repetiu a expressão competência funcional da LACP, e em segundo lugar o
fato local do dano é expressão inequívoca de competência territorial, como
salienta Celso Agrícola Barbi “as causas são, então, atribuídas aos juízes, não
pela sua natureza, mas pela circunstância de coincidir algum elemento dela com a
circunscrição territorial em que o juiz tem competência.” (Coment..., p. 254).
47
Equívoco agravado pela nova redação do artigo 16 da Lei da
Ação Civil Pública, já tratado no capítulo anterior.
48
Ada, Araújo Cintra e Dinamarco, Teoria Geral do Processo, p. 226.
49
Ada Pellegrini Grinover, Cód. Bras. de Def. do Cons. Coment., p.
551.
50
Coment..., p. 326.
51
Cód. Bras. de Def. do Cons. Coment., p. 552.
52
Idem, ibidem, p. 552.
53
José Rogério Cruz e Tucci, “Class Action” e Mandado de Segurança
Coletivo.
54
Rodolfo de Camargo Mancuso, Coment..., p. 323.
55
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 553.
56
Ada Pellegrini Grinover, “Ação Civil Pública e a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos”, in Direito do Consumidor, Vol. 5, p. 216.
57
Ou a hipótese prevista no artigo 100 do CDC; para um estudo
39
40
sobre a “fluid recovy” prevista no artigo citado - Ada Pellegrini Grinover,
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, pp. 562/565 e Rodolfo de Carmargo
Mancuso, Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, pp. 345/349.
58
Instituciones de Derecho Procesal Civil, Vol. I, p. 185.
59
Apelação Cível nº 138.862/1, in Repertório IOB de Jurisprudência nº
13/91, pp. 273/276.
60 Salienta Nelson Nery Jr. que o CDC é um microssistema próprio que não pode ser contaminado por princípios fundamentais de outros ordenamentos jurídicos - op. cit., p. 211.
61
Execução Civil, p. 553.
62. Op.cit., pp. 553/554.
63 Ada Pellegrini Grinover, Cód. Bras. de Def. do Cons. Coment., p.
554.
64 O que levou Cândido Rangel Dinamarco a reconhecê-la como
“especialíssimo processo de liquidação por artigos”, mais amplo que a autêntica e
tradicional liquidação do Código de Processo Civil. - Execução Civil, p.
553.
65 Ada Pellegrini Grinover, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor,
p. 556.
66
Ada Pellegrini Grinover, Cód. Bras. de Def. do Cons. Coment., p.
557. Contrariamente, Camargo Mancuso entende que é caso de legitimação
extraordinária, op. cit., pp. 336/337.
67
Idem, ibidem, p. 559.
68
Coment..., p. 334/3355.
69
Ada Pellegrini Grinover, Op. cit., p. 560.
70
Negrito nosso.
71
Coment..., p. 339.
72
Conforme já tratamos anteriormente.
73
Coment..., p. 339.
74
Rodolfo de Camargo Mancuso, Coment..., p. 344.
75
Cód. Bra. de Def. do Cons. Coment., pp. 562/565.
76
Coment..., pp. 345/346.
77
Op. cit., pp. 563/564
78
Coment..., pp. 345/346.
79
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, pp. 209/
211.
80
José Rogério Cruz e Tucci, “Class Actio” e Mandado de Segurança
Coletivo, pp. 23/26.
Nos Estados Unidos esta questão ainda é muito debatida: no
caso Eisen v. Carlisle & Jacquelin exigiu-se a notificação pessoal dos membros da class; no caso Richland v. Cheatham exigiu-se a notificação pessoal, mas pelo correio e no caso Both v. General Dynamics Corp. no qual o
demandante demonstrou a desproporcional despesa que seria necessária
para a notificação de todos os contribuintes, admitiu-se a feitura por edital,
por entender a Corte que a notificação pessoal se constituiria em mais do
que “razoável esforço”. Apud José Rogério Cruz e Tucci, op. cit., p. 25.
82
Cód. Bras. de Def. do Cons. Coment., p. 565.
83
Apud Rodolfo de Camargo Mancuso, Coment..., p. 349.
84
“Tutela Jurisdicional dos Interesses Coletivos”, in A Tutela dos
Interesses Difusos, p. 23.
85
Acesso à Justiça, p. 161.
86
Termo utilizado por Arruda Alvim, “Anotações Sobre as Perplexidades e os Caminhos do Processo Civil Contemporâneo - Sua Evolução ao Lado do
Direito Material, in Revista de Direito do Consumidor, p. 76.
81
DIREITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Rômulo de Andrade Moreira - Promotor de Justiça e Assessor Especial do Procurador-Geral de
Justiça. Ex-Coordenador do Centro de Apoio
Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de
Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS na graduação e na pós-graduação.
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de
Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal).
Especialista em Processo pela UNIFACS (Curso
coordenado pelo Professor Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit
Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de
Ciências Penais - ABPCP. Associado ao Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao
Movimento Ministério Público Democrático.
I - INTRODUÇÃO
O direito ao devido processo legal vem consagrado pela Constituição Federal no art. 5º, LIV e LV, ao estabelecer que ninguém será privado
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e ao garantir a
qualquer acusado em processo judicial o contraditório e a ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes.
Além destes dois incisos outros há que também compõem o leque
de garantias judiciais estabelecidas na Carta Magna, a saber: “ninguém será
submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, “inviolabilidade da
intimidade, da vida privada, da honra, da casa, da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas e da imagem das pessoas”,
“não haverá juízo ou tribunal de exceção”, “não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal”, “a lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu”, “nenhuma pena passará da pessoa do acusado”, “individualização
da pena”, “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, “inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meio ilícitos”, “não culpabilidade até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, “publicidade dos
atos processuais”, “direito ao silêncio”, etc.
Todas estas garantias estão estabelecidas taxativamente no texto
constitucional, algumas com ressalvas, evidentemente.
Assim, do ponto de vista da Constituição Federal, o devido processo legal pressupõe o contraditório (paridade de armas, a defesa se pronunciar sempre depois da acusação, etc), a garantia da ampla defesa (defesa técnica e autodefesa), o duplo grau de jurisdição, a proibição das
provas ilícitas, etc., etc., etc.
II – O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Por sua vez, o nosso velho Código de Processo Penal, em que pese
estar absolutamente ultrapassado, mesmo porque concebido sob uma ótica não democrática e com sérios resquícios de inquisitoriedade, de toda
maneira, ali e acolá, traz algo garantidor, por assim dizer. A propósito, os
arts. 233 (“as cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos, não
serão admitidas em juízo”), 261 (“nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido,
será processado ou julgado sem defensor”), 194/262 (“curador ao réu menor”), 310
(“liberdade provisória”), 366 (“impossibilidade de julgamento à revelia de réu citado
por edital”), 381 (“motivação das sentenças”, em conformidade com o art. 93,
IX da Constituição), etc.
Aliás, não se pode mesmo esperar algo melhor do nosso Código de
Processo Penal, pois sendo do ano de 1941, e tendo sofrido ao longo
desse período poucas alterações, não acompanhou as mudanças sociais
ocorridas no País, bem como a nova ordem constitucional vigente.
O seu surgimento, em pleno Estado-Novo2 , traduziu de certa forma a ideologia de então, mesmo porque “las leyes son e deben ser la expresión
más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto
de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo
nosso).3
À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de
Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da
Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além
da sua organização judiciária.
Como notara o mestre Frederico Marques, “o golpe dado na unidade
processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de
sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.”4
Até que em 03 de outubro de 1941 promulgou-se o Decreto-Lei
nº. 3.689, que entraria em vigor a partir de 1º. de janeiro do ano seguinte;
para resolver principalmente questões de natureza de direito intertemporal,
promulgou-se, também, o Decreto-Lei nº. 3.931/41, a Lei de Introdução
ao Código de Processo Penal.
Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto
moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia
Frederico Marques. Segundo o genial mestre paulista, “continuamos presos,
na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema
escrito (...) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise
tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros.
(...) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do
papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por
cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável
confusionismo e absoluta falta de técnica.”5
Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de
proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de
motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige
com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de
um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os
direitos e garantias individuais.”
É bem verdade que ao longo dos seus 60 anos de existência, algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva obrigatória com a edição das Leis de nºs.
5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67; a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº.
9.271/96); a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada
não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido,
salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se
dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de
recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos
atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), etc.
Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso
sistema processual penal, podendo citar as que instituíram os Juizados
Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem,
indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 10.054/00); a proteção a vítimas e
testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99); a que possibilitou a utilização
de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei
nº. 9.800/99); a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96); a Lei
nº 8.038/90, que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade.
Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja
no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada
mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo
após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta
Política de 1988.
E, assim, o atual código continua com os vícios de 60 anos atrás,
maculando em muitos dos seus dispositivos o sistema acusatório, o devido processo legal, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado (vide o seu art. 594, a título de exemplo), olvidando-se da vítima, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar
o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus
títulos e capítulos (bastando citar a disciplina das nulidades6 ).
Atento a esta realidade, o então Ministro da Justiça, Dr. José Carlos
Dias, ao assumir o Ministério, editou o Aviso nº. 1.151/99, convidando o
Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, do qual somos membros, a apresentar uma proposta de reforma do nosso Código de Processo Penal. Este mesmo Ministro, agora por via da Portaria nº. 61/00 constituiu uma Comissão para o trabalho de reforma, tendo como membros
os juristas Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho
(Secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance
Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro
Leão, René Ariel Dotti (que mais tarde saiu, sendo substituído por Rui
Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti.
Com a inesperada e lamentável saída do Ministro Dias o novo
titular da Pasta, Dr. José Gregori, pela Portaria nº. 371/00 confirmou a
Comissão anteriormente formada, com a substituição já referida.
Ao final dos trabalhos, a Comissão de juristas entregou ao Ministério da Justiça, no dia 06 de dezembro de 2000, sete anteprojetos (todos
acompanhados de uma exposição de motivos) que, por sua vez, originaram os seguintes projetos de lei:
1º.) Projeto de Lei nº. 4.209/01: investigação criminal;
2º.) Projeto de Lei nº. 4.207/01: suspensão do processo/procedimentos;
3º.) Projeto de Lei nº. 4.205/01: provas;
4º.) Projeto de Lei nº. 4.204/01: interrogatório/defesa legítima;
5º.) Projeto de Lei nº. 4.208/01: prisão/medidas cautelares e liberdade;
6º.) Projeto de Lei nº. 4.203/01: júri;
7º.) Projeto de Lei nº. 4.206/01: recursos e ações de impugnação.
Estes projetos originários da referida Comissão (pois já há outros,
absolutamente inaceitáveis e retrógrados) têm como finalidades precípuas
a modernização do velho código e a sua adaptação ao modelo acusatório,
com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o
julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, o contraditório, etc.
Sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu:
“Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations
méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans
le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale.
“Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se
caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré.
“Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète
égalité entre l’accusation et la défense.”7
Para Afrânio Silva Jardim, “o devido processo legal está vinculado diretamente à depuração do sistema acusatório, mormente quando conjugado com a regra do
art. 129, I do novo texto constitucional, bem como com as demais normas que
sistematizam e asseguram a independência do Poder Judiciário, em prol de sua imparcialidade e neutralidade na prestação jurisdicional e aquelas outras que, igualmente,
tutelam a autonomia e independência funcional dos órgãos do Ministério Público.”8
Esta reforma está mais ou menos consentânea com os princípios
estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero
América. Neste Código-Modelo há alguns princípios básicos, a saber:
1) “O julgamento e decisão das causas penais será feito por juízes imparciais
e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei.” (art. 2º.).
2) “O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de
segurança.” (art. 3º.).
3) “A dúvida favorece o imputado”. (idem).
4) “É inviolável a defesa no procedimento.” (art. 5º.).
Tais idéias serviram também de base para outras reformas feitas
(ou por serem realizadas) em outros países, como a Argentina, Guatemala,
Costa Rica, El Salvador, Chile, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Honduras,
Equador, Itália e Portugal.9
Aliás, “el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado
como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales,
que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el
Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así,
de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario,
de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito
sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los
códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida
con la conquista y la colonización del continente -, para sancionar, en más o en menos,
leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en
ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.”10
Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já
levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos
outros, são frutos, na verdade, de modificações no sistema político destes
países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para
regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o
sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é
inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um
país e o seu sistema político. Um país democrático11 evidentemente deve
possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um Código de
Processo Penal que adote o sistema acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço
do Poder, olvida os direitos e garantias individuais básicos, privilegiando o
sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli,
por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad
de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad
sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.12
Assim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração
de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes
homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. (...)
“Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma
‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego
aos rituais antigos; As fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem
curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das
funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural
já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em
todo o continente.”13
É evidente que o ideal seria uma reforma total, completa, que
propiciasse uma harmonia absoluta no sistema processual penal, com a
garantia absoluta do devido processo legal, mas, como sabemos, se assim
o fosse as dificuldades que já existem hoje, seriam ainda maiores. Preferiu-se, de outro modo, uma reforma que, se não chega a ser total (o que
seria de difícil aprovação, à vista das evidentes dificuldades de natureza
legislativa que todos nós conhecemos), também não chega a ser simplesmente pontual, até porque, como esclarece Ada, não incide “apenas sobre
alguns dispositivos, mas toma por base institutos processuais inteiros, de forma a
remodelá-los completamente, em harmonia com os outros.” Não é, portanto, uma
reforma isolada, mas “tópica”.14
Este movimento reformista não se limita à América Latina. Na
Europa também se encontram em franco desenvolvimento reformas no
sistema processual penal. A título de exemplo, podemos referir a Alemanha, onde “también el Derecho procesal penal há sido modificado en varias ocasiones
entre 1997-2000”15 , a Itália 16 e a Polônia, país que “desde hace 12 años se
realizan reformas en la legislación, relacionadas con el cambio de régimen político,
económico y social, que tuvo lugar en 1989 y también con la necesidad de adaptar las
soluciones jurídicas polacas a las soluciones aceptadas en la Unión Europea. (...) Las
reformas de la legislación penal e procesal penal constituyen una parte esencial del
‘movimiento legislativo reformador’, segundo nos informa a Drª. Barbara KunickaMichalska, do Instituto de Ciências Jurídicas da Academia de Ciências da
Polônia, em Varsóvia.17
III – OS PACTOS INTERNACIONAIS
Por outro lado, além do texto constitucional e do Código de Processo Penal, devemos nos referir aos pactos internacionais subscritos e
adotados pelo nosso Direito Positivo.
Assim, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova York, em 19 de dezembro de 1966 e promulgado pelo
Governo brasileiro através do Decreto nº. 592/92, estabelece em suas
cláusulas alguns preceitos garantidores e reveladores de um devido processo legal, assim como o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de
novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92.
Nestes documentos, verbi gratia, encontramos o direito à não
auto-incriminação, à “presunção de inocência”, a um julgamento sem
dilações indevidas (ver adiante), à ampla defesa (idem), à publicidade do
processo, dentre outras.
IV – A AMPLA DEFESA
A ampla defesa compõe-se da defesa técnica e da autodefesa. O
defensor exerce a defesa técnica, específica, profissional ou processual,
que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado,
por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas,
juntas, compõem a ampla defesa.
A propósito, veja-se a definição do jurista espanhol Miguel Fenech:
“Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la propia parte por
sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar
o a impedir que prospere la actuación de la pretensión.. No se halla regulada por el
derecho con normas cogentes, sino con la concesión de determinados derechos inspirados
en el conocimiento de la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de
medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte acusada – y
cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad
del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya”.
Para ele, diferencia-se esta autodefesa da defesa técnica, por ele
chamada de específica, processual ou profissional, “que se lleva a cabo no ya
por la parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de
esta función técnico-jurídica de defensa de las partes que actuán en el processo penal
para poner de relieve sus derechos y contribuir con su conocimiento a la orientación y
dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el proceso y,
en definitiva, facilitar los fines del mismo”.18
Ressalte-se que o defensor não é parte, nem sujeito processual,
nem, tampouco, substituto processual, agindo apenas como um representante técnico da parte; neste mister, parece-nos que cabe a este profissional exercitar a sua defesa mesmo contra a vontade do réu, até porque o
direito de defesa é indisponível: “En interés del hallazgo de la verdad y de una
defensa efectiva, puede, sin duda, actuar también en contra de la voluntad del inculpado, por ejemplo, interponer una solicitud para que se examine su estado mental”.19
Admite-se, por exemplo, a interposição de recurso mesmo contra a
vontade do réu, pois “deve, como regra geral, prevalecer a vontade de recorrer, só se
admitindo solução diversa quando, por ausência do interesse-utilidade, não seja possível vislumbrar, em face de circunstâncias do caso, vantagem prática para o acusado.”
Isto ocorre por que a regra da disponibilidade dos recursos “sofre exceções
no processo penal, em que a relação jurídica de direito material controvertida é de
natureza indisponível, havendo limitações à disponibilidade dos recursos quando estejam em jogo os direitos de acusar e de defender.” Assim, “havendo conflito de vontades
entre o réu e o advogado, a opinião mais coerente com as garantias da defesa é a de que
deve prevalecer a vontade do defensor, que recorreu, não só em razão de seus conhecimentos técnicos, mas sobretudo para melhor garantia do direito de defesa.” 20
A respeito deste tema, recentemente decidiu o STJ no sentido do
texto:
“Em homenagem ao princípio constitucional da ampla defesa, na hipótese de
conflito entre o réu, que renunciou ao direito de recorrer da sentença condenatória, e seu
defensor, prevalece a vontade da defesa técnica, com idoneidade para avaliar as conseqüências da não impugnação da decisão condenatória.” (STJ, HC 18.400-SP, Rel.:
Min. VICENTE LEAL, DJU de 06/05/2002, p. 321).
Consta do voto do Relator:
“Examinando-se a hipótese «sub examen», é de se reconhecer a procedência do
pedido. Ora, em homenagem ao princípio constitucional da ampla defesa, na hipótese
de conflito entre o réu, que renunciou ao direito de recorrer da sentença condenatória, e
seu defensor, prevalece a vontade da defesa técnica, com idoneidade e conhecimento
para avaliar as conseqüências da não impugnação da decisão condenatória. É o que
bem ressalta a ilustre Subprocuradora-Geral da República em seu parecer, «verbis»:
«De fato, embora o réu seja o legítimo titular do direito de recorrer, a defesa técnica há
de preponderar sobre a autodefesa, no que tange ao recurso, tendo em vista que o
profissional especializado possui melhores condições de avaliar a conveniência ou não
das medidas legais a serem utilizadas, para um patrocínio o mais eficaz possível, dos
interesses do outorgante. Para reforçar ainda mais a tese da ilustre Procuradora de
Estado impetrante - que, ressalte-se, apesar de toda a sobrecarga notoriamente conhecida no âmbito das Defensorias Públicas, vem, «in casu» zelar firmemente pelos interesses de um paciente que renunciou ao seu direito -, vê-se que, apesar de o Termo de
Renúncia ao Direito de Recurso haver sido assinado por Ademilton Messias Rosa (fl.
14), não existe, mesmo, naquele ato, qualquer indício de haver sido o paciente assistido por um defensor.” (fls. 93/94).
Vejamos outros julgados do mesmo STJ a respeito da matéria,
citados, inclusive, nesta decisão unânime:
“Processual penal. «Habeas corpus». Extorsão. Apelação. Divergência entre réu e defensor. Havendo conflito entre o réu, que renunciou
ao direito de recorrer da sentença condenatória, e o seu defensor, que
interpôs apelação, deve prevalecer a manifestação deste, tendo em vista
que, por ter conhecimentos técnicos, em tese, está em melhores condições
para
avaliar
a
necessidade
da
impugnação.
«Habeas corpus» deferido.” (HC 15.983, Quinta Turma, Rel. em. Min. Félix
Fischer, DJ 20/08/2001).
“Criminal. HC. Roubo tentado. Recurso de apelação. Conflito entre as vontades do réu e de seu defensor. Preponderância da vontade do
defensor. Conhecimento técnico. Apelo em liberdade. Demora não-razoável no julgamento do recurso. Constrangimento ilegal. Ordemconcedida.
I. Na hipótese de conflito entre a vontade do réu e a de seu defensor, no que se refere à interposição de recurso, tendo em vista a renúncia
do acusado ao direito de recorrer, prevalece a vontade do defensor, constituído ou nomeado, em razão do conhecimento técnico para avaliar as
conseqüências da não impugnação da decisão penal condenatória.
II.(...)
III. Ordem concedida para determinar que o e. Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo proceda ao julgamento do mérito do
recurso de apelação interposto em favor de Edgar Santos Pereira, permitindo-se-lhe aguardar em liberdade tal desfecho.” (HC 15.693/SP, Quinta
Turma, rel. em. Min. Gilson Dipp, DJ 27/08/2001).
“Processo penal. Direito irrenunciável do réu de recorrer. 1. Pode
o defensor interpor recurso, embora o réu tenha se manifestado em sentido contrário, posto que irrenunciável o seu direito de recorrer, em face
do princípio da ampla defesa, devendo aquele decidir sobre a conveniência ou não do exercício da faculdade de apelar.
2. Recurso do MP não conhecido.” (REsp 120.170/DF, Sexta Turma, Rel.
em. Min. Fernando Gonçalves, DJ 30/06/97).
É evidente que todo acusado deve obrigatoriamente ser defendido
por um profissional do Direito, a fim de que se estabeleça íntegra a ampla
defesa, sendo imperioso destacar que o direito de defesa no Processo
Penal deve ser rigorosamente obedecido, sob pena de nulidade:
“Para que haya un proceso penal propio de un Estado de Derecho es irrenunciable
que el inculpado pueda tomar posición frente a los reproches formulados en su contra,
y que se considere en la obtención de la sentencia los puntos de vista sometidos a
discusión”.21
Mesmo para o réu ausente ou foragido é indispensável, sob pena
de nulidade absoluta, que se lhe nomeie um defensor; se menor de 21
anos, além do defensor, necessário se faz a presença também de um
curador, ressalvando a Súmula 352 do STF.
O defensor nomeado ou dativo será obrigado a aceitar a defesa,
sob pena de responder por infração disciplinar (art. 34, XII, do Estatuto
da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil). Se, porém, o acusado para o qual o juiz nomeou um defensor na realidade não for pobre,
será obrigado a pagar os honorários advocatícios arbitrados pelo juiz (art.
263, parágrafo único, CPP).
A constituição de advogado no processo penal pode ser feita por
procuração ou por indicação verbal quando da realização do interrogatório, dispensando-se, neste último caso, a juntada do instrumento
procuratório. Ainda que inicialmente tenha sido nomeado um defensor
dativo, pode o acusado a qualquer momento constituir um profissional de
sua confiança (art. 263, caput).
Aliás, em razão de entendermos que a ampla defesa pressupõe
necessariamente a autodefesa e a defesa técnica é que pugnamos pela
necessidade da presença do advogado no interrogatório, sob pena de se
ferir o devido processo legal.
É bem verdade que se discute na doutrina se, nesta fase, é necessária a presença de advogado. Boa parte entende que sim tendo em vista o disposto nos arts. 261 e
263 do CPP. Neste sentido, Tourinho Filho, Frederico Marques e Espínola Filho.
Há quem entenda, porém, a sua desnecessidade por se tratar de um momento processual típico da autodefesa (e não defesa técnica), podendo, ademais, haver retratação a
qualquer instante. A jurisprudência claramente se inclina neste segundo sentido, a
ponto do próprio Tourinho Filho observar que “nunca se anulou qualquer processo pelo não-comparecimento do Advogado ao ato do interrogatório”.22
Mirabete, por exemplo, acompanhando esta corrente jurispruden-
cial majoritária, sustenta que “a presença do defensor no interrogatório é apenas
facultativa, já que não pode normalmente intervir nesse ato processual, razão por que
a sua ausência não constitui nulidade no processo (RT 600/369, 610/407, JTACrSP
59/340)”.
Em posição contrária, defende Ferrajoli “el derecho del imputado a la
asistencia y, en todo caso, a la presencia de su defensor en el interrogatorio, para
impedir abusos o cualesquiera violaciones de las garantias procesales”.23
Recentemente, porém, a Suprema Corte, através de um dos seus
mais destacados Ministros, Celso de Mello, através de liminar concedida
em Mandado de Segurança (acima referido) deixou assentado que “cabe
reconhecer, por isso mesmo, que a presença do advogado em qualquer procedimento
estatal, independentemente do domínio institucional em que esse mesmo procedimento
tenha sido instaurado, constitui fator inequívoco de certeza de que os órgãos do Poder
Público (Legislativo, Judiciário e Executivo) não transgredirão os limites delineados
pelo ordenamento positivo da República, respeitando-se, em conseqüência, como se
impõe aos membros e aos agentes do aparelho estatal, o regime das liberdades públicas
e os direitos subjetivos constitucionalmente assegurados às pessoas em geral, inclusive
àquelas eventualmente sujeitas, qualquer que seja o motivo, a investigação parlamentar, ou a inquérito policial, ou, ainda, a processo judicial”. Esperamos que tal
decisão seja confirmada no mérito, assentando-se definitivamente em nossa
práxis forense a necessidade do defensor no ato de interrogatório do réu,
como ocorreu no julgamento a seguir descrito:
“NULIDADE. INTERROGATÓRIO. AUSÊNCIA DE ADVOGADO. Nulo é o processo em que o acusado é interrogado sem a presença de advogado defensor. Agressão aos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º.,
LV, da Constituição Federal). Nulidade decretada a partir, inclusive, do interrogatório.” (Apelação Criminal nº. 70001997402 – TJRGS – 5ª. Câmara Criminal – Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho – j. 14/02/01).
A propósito, observamos que o acima referido Projeto de Lei nº.
4.204/01 estabelece a obrigatoriedade da presença de advogado, nomeado ou constituído, quando do interrogatório do acusado, pois a nova redação do art. 185 assim prescreve: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença
de seu defensor, constituído ou nomeado.”
V – O CONTRADITÓRIO
Não há devido processo legal sem o contraditório, que vem a ser,
em linhas gerais, a garantia de que para toda ação haja uma correspondente reação, garantindo-se, assim, a plena igualdade de oportunidades
processuais.
O contraditório, por exemplo, obriga que a defesa fale sempre
depois da acusação. Assim, no Processo Penal as testemunhas arroladas
na peça acusatória são inquiridas em primeiro lugar (art. 396, CPP), as
alegações finais do réu são oferecidas também anteriormente as do acusador (art. 500), e assim por diante...
Questão que se mostra polêmica é o parecer do Ministério Público
na segunda instância.
Como se sabe, na segunda instância o Ministério Público, por intermédio de um Procurador de Justiça, exara um parecer escrito antes do
respectivo processo criminal ser encaminhado para julgamento. É um
privilégio que parece ferir alguns princípios basilares e algumas regras
orientadoras do processo penal, como tentaremos mostrar a seguir.
Com efeito, sempre nos pareceu que este pronunciamento
do Procurador de Justiça na segunda instância, ainda que na condição de custos legis, soava estranho, mesmo porque fiscal da lei
também é o Promotor de Justiça atuante junto à primeira instância
e, no entanto, nunca se dispensou a ouvida da defesa... Para nós,
este privilégio fere o contraditório (ação versus reação), a isonomia
(paridade de armas), o devido processo legal (a defesa fala por
último) e a ampla defesa (direito do acusado de ser informado
também por último).
A propósito, ouçamos a boa doutrina, capitaneada por Frederico
Marques:
“Bem de ver é, porém, que na Justiça criminal, se apresenta algo esdrúxula
essa função consultiva do procurador-geral, uma vez que o Ministério Público está
constituído, precipuamente, como órgão da ação penal e da pretensão punitiva do
Estado. Além disso, não se compadece muito com a estrutura contraditória do processo penal pátrio, e com as garantias de defesa plena do réu, que fale em último lugar um
órgão investido de funções nitidamente persecutórias. Daí se nos afigurar errônea e
infeliz a disposição contida no art. 610 do CPP, sobre a abertura de vista ao procurador-geral.”24
Vejamos agora outro grande processualista, Tourinho Filho:
“Mal saídos de uma fatigante atividade combativa, assumem função completamente imparcial, própria dos fiscais da lei e, muitas vezes, com várias e honrosas
exceções, o custos legis é traído pelo Acusador, quebrando, assim, uma regra decor-
rente do devido processo legal, segundo a qual a Defesa fala por último... Ademais, o
Procurador de Justiça, membro que é do Ministério Público, não pode ficar eqüidistante
das partes. Entranhada e psicologicamente tem laços com uma delas. É difícil o corte
desse cordão umbilical. E, para evitar essas traições, a nosso ver, deveria o Ministério
Público, na segunda instância, limitar-se à análise dos processos sob o aspecto formal,
deixando a apreciação do mérito aos Tribunais.”25
Então, pergunta-se: “no processo penal, quando o processo atinge o grau
recursal qual das partes fala por último? O réu ou o Ministério Público? Os arts. 610
e 613 do Código de Processo Penal nos dão a resposta: o Ministério Público manifesta-se depois da defesa e, ordinariamente, a defesa sequer tem vista do que foi oficiado
pelo MP – a não ser que requeira vista dos autos e se lhe for concedida. Alguns
autores fundamentam tais incompreensíveis dispositivos legais com a função de fiscal
da lei que o MP desempenharia nos recursos criminais. Ora, não se pode confundir a
função de parte com a de fiscal da lei. No processo criminal por ação de iniciativa
pública é o MP, uno e indivisível, quem oferece denúncia; é ele quem postula a aplicação da sanção penal; e é ele quem, mesmo em grau de recurso, tem legitimidade para
sustentar oralmente o recurso do promotor, visando, até, à majoração da pena. Então,
não se pode falar que o mesmo órgão público, o mesmo órgão do Estado, possa ser, ao
mesmo tempo, fiscal da lei e parte, ao ponto de, na instância recursal, desaparecer a
parte, permanecendo apenas o fiscal da lei, em uma estranha ação penal sem autor.”26
Veja-se este recente julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“Ministério Público. Atuação. Parte. A Turma, por maioria, concedeu a
ordem para anular o processo a partir do julgamento, por entender que, na hipótese, o
Ministério Público, além de atuar como fiscal da lei, era também parte, e como tal, à
luz da Constituição vigente, não pode proferir sustentação oral depois da defesa. (HC
18.166-SP, Rel. originário Min. Fernando Gonçalves, Rel. para o acórdão
Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 19/02/2002).
Observa-se que é possível, ainda que em grau de recurso, haja a
feitura de diligências ordenadas pelo relator, por força do art. 616 do
Código de Processo Penal. Nesta hipótese, perguntamos quem estaria
representando o Ministério Público nesta nova instrução. Evidentemente
que se a diligência (uma acareação, por exemplo) fosse realizada no próprio Tribunal somente um Procurador de Justiça poderia atuar, o que
vem a corroborar o fato de que, além de fiscal da lei, continua ele como
representante da parte acusadora. Neste aspecto, veja-se a lição de Ada,
Scarance e Gomes Filho: “o tribunal poderá livremente apreciar, no recurso,
aspectos que não foram suscitados pelas partes. Se o entender conveniente, converterá o
julgamento em diligência para a produção de novas provas, destinadas à formação do
convencimento de seus membros e poderá excluir as que considerar ilícitas do material
probatório; se o considerar oportuno, poderá reinquirir o réu e será livre para levantar
novas teses jurídicas. Apenas, deverá garantir que tudo isso seja feito em contraditório,
na presença das partes, dando a estas a oportunidade de contradizer, inclusive provando. O contraditório, na melhor doutrina, não se limita às questões de fato, devendo
abranger as questões de direito que o juiz levantar de ofício (Tarzia).”27
Por outro lado, simplesmente suprimir o parecer ministerial não é
possível, sob pena de se incorrer em nulidade absoluta, tendo em vista o
disposto no art. 564, III, d do Código de Processo Penal.28
VI – O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
O devido processo legal deve igualmente garantir a possibilidade
de revisão dos julgados. A falibilidade humana e o natural inconformismo
de quem perde estão a exigir o reexame de uma matéria decidida em
primeira instância, a ser feito por juízes coletivos e magistrados mais experientes.
A Constituição Federal prevê o duplo grau de jurisdição, não somente no já referido art. 5º., LV, como também no seu art. 93, III (“acesso
aos tribunais de segundo grau”) e pressupõe, evidentemente, uma decisão
judicial e a sucumbência (prejuízo). Ademais, para recorrer deve-se atentar para pressupostos de natureza subjetiva, a saber: o interesse e a legitimidade.
Há mais de 20 anos, o jurista baiano Calmon de Passos mostrava
a sua preocupação com “a tendência, bem visível entre nós, em virtude da grave
crise que atinge o Judiciário, de se restringir a admissibilidade de recursos, de modo
assistemático e simplório, em detrimento do que entendemos como garantia do devido
processo legal, incluída entre as que são asseguradas pela nossa Constituição.”
Neste mesmo trabalho, nota o eminente Mestre que “o estudo do
duplo grau como garantia constitucional desmereceu, da parte dos estudiosos, em nosso
meio, considerações maiores. Ou ele é simplesmente negado como tal ou, embora considerado como ínsito ao sistema, fica sem fundamentação mais acurada, em que pese ao
alto saber dos que o afirmam, certamente por força da larga admissibilidade dos
recursos em nosso sistema processual, tradicionalmente, sem esquecer sua
multiplicidade.”29
Tal garantia se encontra também estabelecida na Convenção América de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), no seu art.
8º., 2, “h”.
VII – O JUIZ E O PROMOTOR NATURAL
Questão importante, e que se prende intimamente ao devido processo legal, é o princípio do Promotor Natural30 que pressupõe a independência funcional do membro do Ministério Público (art. 127, § 1º.,
CF), a sua inamovibilidade (art. 128, § 5º., I, b), a investidura por concurso público e a determinação legal e anterior de suas atribuições.
A independência e a autonomia funcionais, ambas consagradas no
art. 127, §§ 1º. e 2º. da Constituição Federal, são princípios que compõem
a figura do Promotor Natural, advertindo-se, desde logo, que a “autonomia
funcional atinge o Ministério Público enquanto instituição, e a cada um dos seus
membros, enquanto agentes políticos.”31
Sobre o assunto, o velho Bento de Faria já escrevia:
“O Ministério Público, como fiel fiscal da lei, não poderia ficar constrangido a
abdicar das suas convicções, quando devidamente justificadas. Do contrário seria um
instrumento servil da vontade alheia.”32
O grande Roberto Lyra já afirmava que “nem o Procurador-Geral,
investido de ascendência hierárquica, tem o direito de violentar, por qualquer forma, a
consciência do Promotor Público, impondo os seus pontos de vista e as suas opiniões,
além do terreno técnico ou administrativo.”
Para este autor (que dedicou toda a sua vida ao estudo do Direito
Criminal e ao Ministério Público, a ponto de ser chamado por Evandro
Lins e Silva de o “Príncipe dos Promotores Públicos brasileiros”) “quanto ao elemento intrínseco, subjetivo, dos atos oficiais, na complexidade, na sutileza, na variedade de seus desdobramentos, como a apreciação da prova, para a denúncia, a pronúncia, o pedido de condenação, a apelação, a liberdade provisória ou a prisão preventiva, é na sua consciência livre e esclarecida, elevada a um plano inacessível a quaisquer
injunções ou tendências, que o Promotor Público encontra inspiração”, concluindo
“que a disciplina do Ministério Público está afeta ao Procurador-Geral. No entanto,
esse não intervem na consciência do subordinado.”33
O saudoso Esmeraldino Bandeira já escrevia que o Promotor de
Justiça na “sua palavra é absolutamente livre e independente, e em suas requisições
não atende senão à sua consciência.”34
Ainda a propósito, certa vez um antigo Promotor de Justiça do
Distrito Federal, Dr. Murillo Fontainha, ao recusar determinação do Procurador-Geral de oferecer denúncia em um caso, escreveu:
“No exercício das suas elevadas funções, o Ministério Público ‘só recebe instruções da sua consciência e da lei’ (Sentença do saudoso Magistrado Raul Martins, D.
Oficial de 10 de outubro de 1914, p. 10.844) e ‘as ordens que o Chefe do Ministério Público tem o direito de impor aos seus inferiores são ordens que não afetem à
consciência dos mesmos. E o Promotor, que fugindo aos impulsos da sua convicção,
deixar-se sugestionar pelas imposições extrínsecas, é um que homem ultraja à sua
consciência e um Magistrado que prostitui a lei. Vê, pois, V. Exª., que nas funções
em que entra a convicção do Promotor, como elemento principal, a ordem do Chefe do
Ministério Público não pode ter o caráter de preceito imperativo obrigatório’ (Auto
Fontes, Questões Criminais p. 75-6).”
E continua adiante:
“Todas essas explanações evidenciam que nas hipóteses em que o Ministério
Público tem que opinar da sua conduta no caso que lhe for concluso, quer de oportunidade ou cabimento de recurso legal a interpor, quer de apreciação sobre elementos
para denúncias ou arquivamento de processos, só deve receber instruções da sua íntima
convicção, de sua consciência. Nessa esfera, as instruções do Chefe do Ministério Público não podem penetrar, porque é a própria lei em vigor que o diz quando terminantemente dispõe que incumbe aos Promotores Públicos oferecer denúncia quando se convençam da existência de crimes de sua competência.” (grifo nosso).35
Em resposta, eis o que decidiu o Procurador-Geral de Justiça:
“Entende o Procurador-Geral que, na espécie, existem fartos elementos para
instauração da ação penal, e, não podendo determinar ao Dr. 1º Promotor Público
que ofereça denúncia, sujeitando-se às sanções legais, em caso de recusa, por haver
cessado a sua competência no juízo da 4ª Vara Criminal, recomendo ao seu substituto
ofereça denúncia contra aqueles indiciados.”36 (grifo nosso).
Encerremos, então, com mais esta lição do grande Lyra:
“Decairia de sua própria independência moral o Promotor Público se ficasse
sujeito, em matéria opinativa, às injunções, quer dos juízes, quer dos chefes, esses
funcionários da confiança do Governo. Ocorreria ainda o perigo de, indiretamente,
submeter-se o Promotor Público ao arbítrio oficial no desempenho de uma tarefa de
sutilíssima subjetividade.” (p. 176).
Ao lado do Promotor Natural, fundamental que tenhamos, também, o Juiz Natural, figura consagrada no art. 5º., XXXVII e LIII da
Constituição, bem como nos arts. 8º. e 10º. da Declaração Universal dos
Direitos do Homem.
O Juiz Natural é aquele constitucional, legal e previamente competente para julgar determinada causa criminal, imparcial e independente,
garantindo-se-lhe a inamovibilidade (arts. 95, II e 93, VIII, CF/88), a
irredutibilidade de vencimentos (art. 95, III, CF/88) e a vitaliciedade (art.
95, I, CF/88).
VIII – O DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE
Compõe também o devido processo legal a possibilidade de se
aguardar em liberdade o recurso interposto contra uma sentença
condenatória penal.
É bem verdade que pela regra imposta no art. 594 do Código de
Processo Penal, “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar
fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença
condenatória, ou condenado por crime que se livre solto.”
Assim, em relação ao condenado que não seja primário e não tenha bons antecedentes, dois ônus a ele se impõem por força de lei: a
prisão automática decorrente da sentença condenatória (salvo se se livrar
solto ou prestar fiança, sendo esta cabível) e a impossibilidade de recorrer
se não for recolhido à prisão.
Na verdade, se nos limitarmos a interpretar literalmente este artigo chegaremos forçosamente à conclusão que ele afronta a Constituição
(e, portanto, é inválido) em pelo menos duas oportunidades: 1ª.) quando o
texto constitucional garante a presunção de inocência 37 ) e 2ª.) quando
assegura a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.
Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é de
todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado,
salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar,
independentemente de primariedade e de bons antecedentes. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois,
ainda não foi condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o processo, seja para a aplicação da lei penal. Mais estranho se nos afigura ao atentarmos que aquela
presunção foi declarada constitucionalmente.
Desta forma, esta prisão provisória, anterior a uma decisão transitada em julgado, só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente
fundamentada (art. 5º., LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade (periculum libertatis38 ).
No mesmo passo, há a segunda questão: se a Constituição também
assegura aos acusados em geral a ampla defesa com os recursos a ela
inerentes, parece-nos também claro que uma lei infraconstitucional não
poderia condicionar este direito de recorrer àquele que não tem bons
antecedentes e não é primário, ao recolhimento à prisão. Observa-se que
esta regra legal está complementada no artigo seguinte, segundo o qual “se
o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.”
(art. 595, CPP).
Da mesma forma, agora igualmente soa estranho para nós não se
permitir ao acusado o acesso ao duplo grau de jurisdição, quando não seja
primário e não tenha bons antecedentes.
Não esqueçamos que a “adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser
uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante,
uma opção política do legislador.”39
Apesar do texto constitucional não conter expressamente a garantia do duplo grau de jurisdição (como ocorre com a presunção de inocência), é indiscutível o seu caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8º., 2,
h, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para juiz ou
tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da
CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ratificamos,
também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova
Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por
um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.”
É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição
hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional.
Parte dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2º.
Fábio Comparato, por exemplo, informa que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos
humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão
acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...) Seja como for, vai-se afirmando
hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e
internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais
favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a
finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico”40 : é o chamado
princípio da prevalência da norma mais favorável.41
Ada, Dinamarco e Araújo Cintra, após admitirem a indiscutível
natureza política do princípio do duplo grau de jurisdição (“nenhum ato
estatal pode ficar imune aos necessários controles”) e que ele “não é garantido
constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República”, lembram, no
entanto, que a atual Constituição “incumbe-se de atribuir a competência recursal
a vários órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), prevendo
expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau
(v.g., art. 93, III).”42
Resta-nos, então, já que legem habemus, interpretar este dispositivo legal (infraconstitucional e fruto de uma lei de 1973) à luz da Constituição Federal, a fim de que possamos entendê-lo ainda como válido,
fazendo, porém, uma leitura efetivamente garantidora.
Ora, se temos a garantia constitucional da presunção de inocência,
é evidente que não pode ser efeito de uma sentença condenatória recorrível,
pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à
necessidade do encarceramento.
Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre
que se tratar de garantir a ordem pública, a ordem econômica, ou por
conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei
penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portanto, representam
a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma
medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em
última análise, a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei
penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no
presente estudo).
Se assim o é, fácil é interpretar este artigo 594 da seguinte forma e
nos seguintes termos: a prisão será uma decorrência de uma sentença
condenatória recorrível sempre que, in casu, fosse cabível a prisão preventiva contra o réu, independentemente de sua condição pessoal de primário e de ter bons antecedentes; ou seja, o que definirá se o acusado
aguardará preso ou em liberdade o julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos.
Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém
aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição
garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
Por outro lado, como a ampla defesa (e no seu bojo a garantia do
duplo grau de jurisdição) também está absolutamente tutelada pela Carta
Magna, o artigo ora analisado não pode ser interpretado literalmente,
porém, mais uma vez, em conformidade com aquele Diploma, lendo-o
da seguinte forma: não se pode condicionar a admissibilidade da apelação
ao recolhimento do réu à prisão, mesmo que ele não seja primário e não
tenha bons antecedentes. Aqui, vamos, inclusive, mais além: mesmo que a
prisão seja necessária (e se revista, portanto, da cautelaridade típica da
prisão provisória), ainda assim, admitir-se-á o recurso, mesmo que não
tenha sido preso o acusado, ou que, após ser preso, venha a fugir.
Observa-se que, agora, mesmo sendo cabível o encarceramento
provisório (por ser, repita-se, necessário), o não recolhimento do acusado
não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso da defesa, e se
recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento
(não pode ser considerado deserto).
Não concordamos, outrossim, que a exigência da prisão para recorrer seja uma “regra procedimental condicionante do processamento da apelação”, como pensa Mirabete43 , pois, como contrapõe Luiz Flávio Gomes,
“se não ofende a presunção de inocência ou a ampla defesa, indiscutivelmente ofende o
princípio da necessidade de fundamentação da prisão, inscrito no art. 5º., LXI.”44
Vê-se que não optamos pela interpretação literal do art. 594, o que
seria desastroso, tendo em vista as garantias constitucionais acima vistas.
Por outro lado, utilizamo-nos do critério da interpretação conforme a
Constituição, procurando adequar o texto legal com o Texto Maior e
evitando negar vigência ao dispositivo, mas, antes, admitindo-o válido a
partir de uma interpretação garantidora e em consonância com a Constituição.
Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei
com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.”45
Devemos atentar que o presente artigo foi inserido em nosso código processual penal pela Lei nº 5.941/73, época em que vigiam em nosso
País a Constituição anterior a 1988 (que não trazia o princípio da presunção de inocência) e um regime político não democrático.
Naquele contexto histórico, portanto, fácil era entender que uma
lei ordinária viesse a dificultar o direito ao recurso e a prever a prisão
automática decorrente de sentença condenatória recorrível. Bastava a
sentença condenatória e a prisão impunha-se automaticamente, por força
de lei, presumindo-se a culpabilidade ou a periculosidade do réu.46
Ocorre que desde 1988 temos outra Constituição, com outros princípios, muitos dos quais expressamente previstos (o que não impede a
existência de princípios constitucionais implícitos, como, v.g., o da
proporcionalidade). A lei anterior, então, tem que ser interpretada segundo este critério, ou seja, em conformidade com a nova ordem constitucional (sob pena de ser considerada não recepcionada e, logo, inválida),
evidentemente sem ultrapassar o seu sentido literal, apenas conformando-a com a Constituição.
Como dissemos, no tempo em que foi inserida em nosso sistema
jurídico, a lei traduzia, em verdade, o momento histórico em que vivia o
país, cabendo, por isso mesmo, atentarmos, agora, para o elemento histórico-teleológico (concepção subjetivista da interpretação, ou teoria da vontade), segundo o qual a lei obedece ao tempo em que foi intencionalmente (finalisticamente) concebida, devendo ser interpretada preferencialmente
em conformidade com aquela realidade.
James Goldshimidt já afirmava no clássico “Problemas Jurídicos e
Políticos del Proceso Penal” que a estrutura do processo penal de um país
indica a força de seus elementos autoritários e liberais. 47
Devemos, então, buscar abrigo neste elemento histórico, acomodando a lei às “novas circunstâncias não previstas pelo legislador”, especialmente
aos “princípios elevados a nível constitucional”.48
Só poderíamos interpretar este artigo literalmente se este modo
interpretativo fosse possível à luz da Constituição. Por outro lado, não
entendemos ser o caso de, simplesmente, reconhecer inválida a norma
insculpida naquele artigo de lei. A nós nos parece ser possível interpretála em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare
inválido e sem “ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto
significativo da lei.”49
Se verdade é que “por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara”, também é certo que “uma lei, logo que seja aplicada,
irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha
intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o
legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não
tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que
uma vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores.” (grifo nosso):
teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei.50
Portanto, não se pode ler o artigo 594 e inferir, hoje, o que se
traduz gramaticalmente desta leitura. A interpretação literal efetivamente
deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente.51
Em reforço à tese ora esboçada, ilustra-se dizendo que o projeto
de lei de reforma do Código de Processo Penal, expressamente, revoga
os arts. 594 e 595 do atual CPP. Na respectiva exposição de motivos,
justifica-se a revogação afirmando que teve “como objetivo definir que toda
prisão antes do trânsito em julgado final somente pode ter o caráter cautelar. A
execução ‘antecipada’ não se coaduna com os princípios e garantias do Estado Constitucional e Democrático de Direito.” São os novos tempos...
Vê-se que “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades
actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas,
en medio de las cuales fueron promulgadas.” (grifo nosso)52
Ademais, atentando-se, outrossim, para o sistema jurídico e fazendo uma interpretação sistemática do dispositivo53 , assinalamos que, posteriormente a ele, surgiu no cenário jurídico brasileiro a Lei nº. 8.072/90
(Crimes Hediondos), dispondo que “em caso de sentença condenatória, o juiz
decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.” (art. 2º., § 2º.,
com grifo nosso).54
Atenta-se, com Maximiliano, que o “Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto
harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada
cada uma no seu lugar próprio.”55
Veja-se a propósito a seguinte decisão do STJ:
HABEAS CORPUS Nº 11.738 – PE (1999/0120892-0) (DJU
24.09.01, SEÇÃO 1, P. 346, J. 23.05.01)
RELATOR : MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO
IMPETRANTE:
C.A.A.
IMPETRADO : PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DE PERNAMBUCO
PACIENTE : V.N.A. (PRESO)
EMENTA
DIREITO PROCESSUAL Penal. TRÁFICO DE ENTORPECENTE. CONDENAÇÃO. DENEGAÇÃO DO APELO EM LIBERDADE.
CONSTRANGIMENTO
ILEGAL.
1. Permanece o entendimento anterior da 6ª Turma do Superior Tribunal
de Justiça, quanto à exigência de fundamentação da negativa do apelo em
liberdade de réu condenado por tráfico de entorpecente, em processo a
que respondeu solto, não bastando a simples referência ao artigo 35 da
Lei de Tóxicos (parágrafo 2° do artigo 2° da Lei 8.072/90).
2. Ordem concedida.
Para finalizar, recorremos, mais uma vez, a Larenz:
“Mediante a interpretação ‘faz-se falar’ o sentido disposto no texto, quer
dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais claro e preciso, e
tornado comunicável. A esse propósito, o que caracteriza o processo de interpretação é
que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que
seja. Evidentemente que nós sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo
puramente passivo.”56
IX – O EXCESSO PRAZAL
O devido processo legal pressupõe, outrossim, um procedimento
sem dilações indevidas. O excesso prazal macula o processo e obriga a
soltura do réu preso, ainda que presentes os requisitos da prisão cautelar.
É lição antiga da doutrina que tal situação processual é absolutamente inadmissível, ainda mais se tratando de acusado preso.
Ary Franco, por exemplo, já pontificava há tempos:
“A questão relativa ao prazo de encerramento da instrução criminal sempre
foi preocupação máxima dos poderes públicos, por isso mesmo que é mister acautelar os
interesses do réu, que não pode nem deve, como elemento da sociedade, ficar indefinidamente à espera de que os órgãos da sociedade que integram o Poder Judiciário ultimem
a sua situação de acusado, para declará-lo inocente, ou não.”57
Outro antigo processualista, Câmara Leal, já indicava como causa
justificadora para a concessão de habeas corpus “quando, estando o réu
preso em flagrante ou preventivamente, não é o processo julgado dentro do prazo legal,
exceto se ocorrer legítimo impedimento.”58
Vicente de Azevedo, outro saudoso jurista, enfrentando esta mesma questão, alertava que acaso não concedido, em tais hipóteses, o habeas
corpus acabaria “o réu cumprindo a pena cominada em abstrato na lei penal antes
de julgado”59 ...
A doutrina mais recente, por sua vez, é uníssona, bastando ser
citados, por todos, Frederico Marques e Tourinho Filho, respectivamente:
“A manutenção do réu sob carcer ad custodiam não pode, em regra,
exceder o prazo legal. (...) No Direito inglês é observado, com sumo rigor, o preceito
que veda manter-se preso o réu, demoradamente, sem julgamento definitivo. Entre nós,
isso nem sempre acontece, o que é injusto e iníquo.”60 É o que vimos neste processo.
“Se o réu não pode ser culpado pela inobservância do prazo, é o habeas
corpus o meio idôneo para pôr cobro à coação cautelar, por não se conter esta nos
limites temporais em que a lei permite a vulneração da incoercibilidade no âmbito da
liberdade de ir e vir.”61
Não esqueçamos que há entendimento jurisprudencial solidamente firmado no sentido de que a instrução criminal no processo de rito
ordinário deve se encerrar em um prazo máximo de 81 dias se o réu
estiver preso (se solto, não necessariamente). Este prazo é contado
individuadamente e não conglobadamente, não se podendo compensar o
atraso em uma fase com a agilização em uma posterior (há quem prefira
a contagem global). Ex.: as testemunhas arroladas pela acusação devem
ser ouvidas em 20 dias se o réu estiver preso; se este prazo não for
obedecido, não se compensa o atraso com um posterior adiantamento da
fase seguinte e assim por diante... O constrangimento ilegal pela demora
no término do respectivo ato processual surge imediatamente, independentemente do ato subseqüente.
Acompanhando este entendimento pretoriano, a Lei nº 9.034/95,
que disciplina o combate às ações praticadas por organizações criminosas, estabeleceu expressamente o prazo de 81 dias para o encerramento
da instrução criminal em caso de réu preso e de 120 dias se solto ele
estiver (art. 8º.).
De toda forma, a injustificada demora processual acarreta constrangimento ilegal a ser remediado via habeas corpus, salvo se o atraso
foi causado exclusivamente pela defesa. Nesse sentido, a Súmula 64, do
STJ, in verbis: “Não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela defesa”. Este mesmo Tribunal Superior também sumulou
que “encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por
excesso de prazo” (Súmula 52). Vê-se que nenhuma das duas súmulas pode
ser aplicada a este caso.
É verdade que alguns motivos às vezes justificam o atraso e impedem a alegação de constrangimento ilegal. Cita-os, exemplificando,
Mirabete: processo em que há vários réus envolvidos, necessidade de
instauração de incidente de insanidade mental, citação editalícia, etc.62 A
doença do réu ou do seu defensor, a complexidade da causa ou outro
motivo de força maior também justificam a demora (art. 403, CPP).
Nada disto, porém, aconteceu na presente hipótese, tudo a corroborar o
evidente constrangimento ilegal ora suportado, e desde há muito, pelo
acusado.
Esta questão da demora no julgamento de um processo criminal,
mormente quando se trata de réu preso, é causa de preocupações inclusive na doutrina alienígena, a ponto de estar expressamente consignado no
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova
York, em 19 de dezembro de 1966 a seguinte cláusula:
“3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo
menos, as seguintes garantias:
(...)
“c) De ser julgado sem dilações indevidas” (art. 14, 3, c).
Igualmente lê-se no Pacto de São José da Costa Rica:
“Art. 8º. – Garantias Judiciais
“1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de
um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente...” (grifo nosso).
No mesmo sentido, confira-se a Convenção européia para salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, art. 6º., 1.
Na atual Carta Magna espanhola, art. 24, 2, temos:
“Asimismo, todos tienen derecho (...) a un proceso público sin dilaciones indebidas
y con todas las garantías...” (grifo nosso)
Do mesmo modo a VI Emenda à Constituição americana:
“Em todas as causas criminais, o acusado gozará do direito a um juízo
rápido e público...” É o direito ao speedy trial.
Aliás, determina o nosso Código de Processo Penal dever o juiz
consignar nos autos sempre que a instrução terminar fora do prazo (art.
402).
Muito a propósito deste processo, vejamos três julgados do STJ:
“Configura-se o excesso de prazo, autorizável do habeas corpus, quando
constatada a desídia do Juízo.” (STJ – RHC – Rel. Pedro Acioli – RSTJ 51/
370).
“Configurando o excesso de prazo a que não deu causa a defesa, configurado
está o constrangimento ilegal. Foi a receita do legislador para que o Estado não ficasse
indefinidamente com um acusado sob sua custódia, privado de liberdade, seu bem mais
sagrado, sem o devido processo legal. É a maneira da Lei, denunciando a desídia dos
agentes do poder público, estancar a coação ilegal que vez por outra se perpetra em
nome do Estado.” (STJ – 5ª. Turma – HC 5284 – Rel. Min. Edson Vidigal
– j. 04/03/97 – DJU 05/05/97, p. 17.062).
“Comprovado excesso de prazo ensejador da impetração, e restando claro que
a demora na instrução criminal ocorre por culpa do Juízo processante, há que ser
concedido o benefício requerido.” (STJ – RHC – Rel. Min. Edson Vidigal –
RSTJ 12/138 e RT 668/345).
X – A PEÇA ACUSATÓRIA
O devido processo legal também pressupõe uma imputação
acusatória certa e determinada, permitindo que o réu, conhecendo perfeita e detalhadamente a acusação que se lhe pesa, possa exercitar a sua
defesa plena.
Por isso, inadmissível a aceitação da denúncia genérica no Processo Penal, bem como da chamada imputação alternativa, assim definida e
aceita por Afrânio Silva Jardim: “diz-se imputação alternativa quando a peça
acusatória vestibular atribui ao réu mais de uma conduta penalmente relevante, asseverando que apenas uma delas efetivamente terá sido praticada pelo imputado, embora todas se apresentem como prováveis, em face da prova do inquérito. Desta forma,
fica expresso, na denúncia ou queixa, que a pretensão punitiva se lastreia nesta ou
naquela ação narrada.
“Por outro lado, como veremos mais adiante, a alternatividade também pode
referir-se ao sujeito ativo da infração penal, acarretando um litisconsórcio no pólo
passivo da relação processual penal.”63
Para o autor carioca, a imputação alternativa, portanto, poderá ser
real (objetiva) quando por mais de um fato delituoso é acusado alguém;
ou pessoal (subjetiva) quando mais de uma pessoa é acusada, alternativamente. É a chamada cumulação imprópria de pedidos. 64
Entre nós poucos doutrinadores enfrentaram esta questão.
Frederico Marques, ainda que sem muita fundamentação, admite-a, afirmando que não há nada que a impeça, “pois que em face de uma situação
concreta, que se apresenta equívoca, pode o acusador atribuir um ou outro fato ao réu.
Não será motivo de escândalo – diz Pasquale Saraceno – a citação ‘de Tício como
acusado de furto ou de receptação’.
“Também Luigi Sansò admite la imputazione alternativa, uma vez
que se traduza em acusação explícita, dizendo, por isso, que é perfeitamente ‘concebível
a imputação alternativa do fato delituoso’. E isto quer se trate de alternativa entre
um aliud e um aliud, e de alternativa entre um majus e um minus, visto que em
ambos os casos há fatos diversos imputados ao réu.”65
Não admitimos qualquer imputação alternativa, pois estamos convencidos que toda acusação, seja pública, seja de iniciativa privada, deverá sempre ser determinada, especificando-se, inclusive, o mais possível,
em que consistiu a conduta delituosa e a participação de cada um dos
autores do fato, salvo absoluta impossibilidade.66
Se o “quadro probatório relativamente incerto constante do inquérito polici-
al”67 não permite uma imputação certa, que sejam devolvidos os autos
para novas e esclarecedoras diligências.
O que não podemos admitir é que o réu tenha que se defender
não se sabe exatamente de que, ou que alguém tenha que enfrentar todos
os percalços de um processo criminal sem que tenha sido imputado a ele,
de uma maneira mais ou menos certa (a denúncia exige, no mínimo, indícios da autoria) um fato delituoso.
Ademais, nos moldes em que se dá a imputação alternativa, não
poderá o acusado defender-se satisfatoriamente, já que dois fatos lhe
foram imputados não cumulativamente. O réu precisa (e tem o direito)
de saber qual a infração penal que se lhe atribuem, a fim de que possa,
com o seu advogado, exercer a defesa em sua plenitude (defesa técnica +
autodefesa).
Por tudo quanto exposto, não entendemos possível, à luz do devido processo legal, a imputação alternativa, seja a real (ou objetiva) seja a
pessoal (ou subjetiva).
XI - CONCLUSÃO
Estes são, em linhas gerais, os aspectos mais importantes que envolvem o direito ao devido processo legal. É evidente que há outros e
muito mais poderíamos escrever. Não esquecemos, evidentemente, das
provas ilícitas, do ne procedat judex ex officio, do princípio da correlação entre acusação e sentença, e tantos outros.
De toda maneira, importante extrairmos esta lição de Bobbio e o
faremos a título de conclusão:
“Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no
momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a não portar armas contra a
própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos
homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que
parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.”68
Período que abrange parte do governo de Getúlio Vargas (1937
– 1945) que encomendou ao jurista Francisco Campos uma nova Constituição, extraparlamentar, revogando a então Constituição legitimamente
2
outorgada ao país por uma Assembléia Nacional Constituinte (1934).
3
Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes,
Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).
4
Marques, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol.
I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 104.
5
Ob. cit. p. 108.
6
Comentando a respeito do Título que trata das nulidades no processo penal, o saudoso Frederico Marques adverte que “não primou pela
clareza o legislador pátrio, ao disciplinar o problema das nulidades processuais penais,
pois os respectivos artigos estão prenhes de incongruências, repetições e regras obscuras,
que tornam difícil a sistematização coerente de tão importante instituto. (...) Ainda
aqui, dá-nos mostra o CPP dos grandes defeitos de técnica e falta de sistematização
que pululam em todos os seus diversos preceitos e normas, tornando bem patente a sua
tremenda mediocridade como diploma legislativo” (ob. cit., Vol. II, p. 366/367).
7
Vitu, André, Procédure Pánale, Paris: Presses Universitaires de
France, 1957, p. 13/14.
8
Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 10ª. ed., 2001, p.
318.
9
Grinover, Ada Pallegrini, “A reforma do Processo Penal”, in
www.direitocriminal.com.br, 15.01.2001.
10
Maier, Julio B. J.. e Struensee, Eberhard, Las Reformas Procesales
Penales en América Latina, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 17.
11
Norberto Bobbio assinala, muito a propósito, que “Direitos do
homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em
outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam
cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais” , in A Era dos
Direitos, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 1.
12
Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed.,
1998, p. 604.
13
Exposição de Motivos do Projeto de Código Processual PenalTipo para Ibero-América, com a colaboração dos Professores Ada Pellegrini
Grinover e José Carlos Barbosa Moreira, in Revista de Processo, nº. 61,
p. 111.
14
Grinover, Ada Pallegrini, “A reforma do Processo Penal”, in
www.direitocriminal.com.br, 15.01.2001.
Walter, Tonio, Professor da Universidade de Friburgo, in Revista
Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 133.
16
Segundo Daniele Negri, da Universidade de Ferrara, “quizá nunca como en estos últimos cinco años había sufrido el procedimiento penal italiano
transformaciones tan amplias, numerosas y frecuentes. (...) La finalidad de dotar de
eficiencia a la Justicia se ha presentado como la auténtica meta de las innovaciones
normativas que se han llevado a cabo en los últimos años (1997-2001).”, in Revista
Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 157.
17
Revista Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La
Ley, p. 164.
18
Miguel Fenech, Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona:
Editorial Labor, S. A., 1952, p. 457.
19
Klaus Tiedemann, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal
Procesal, Barcelona: Ariel, 1989, p. 185.
20
Ada Pellegrini Grinover e outros, Recursos no Processo Penal, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3a. ed., 2001, págs. 42 e 130. Nesta
matéria trava-se séria divergência jurisprudencial (veja-se na obra citada a
página 79). Conferir também excelentes trabalhos de Sergio Demoro
Hamilton, publicado na Revista Consulex, nº. 18, junho/1998, Afrânio Silva Jardim, Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº. 07,
1998 e de Ana Sofia Schmidt de Oliveira, Boletim do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais – IBCCrim, nº. 48, junho/1996.
21
Klaus Tiedemann, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal
Procesal, Barcelona: Ariel, 1989, p. 184.
22
Ob. cit., p. 273.
23
Ob. cit., p. 608.
24
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. IV, 1ª. ed., 2ª. tiragem,
Campinas: Bookseller, 1998, p. 213.
25
Código de Processo Penal comentado, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 4a.
ed., 1998, p. 351.
26
Castanho de Carvalho, Luis Gustavo Grandinetti, O Processo Penal em face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 2ª. ed., 1998, p. 85.
Nesta obra, em carta dirigida ao autor, Tourinho Filho reafirma a sua
posição acima transcrita, nos seguintes termos: “Todos sabemos que os Procuradores eram Promotores. Como podem eles, da noite para o dia, perder a agressividade
acusatória para adquirir a serenidade da toga? Com raríssimas exceções, os Procuradores quando se manifestam nas apelações e nos recursos em sentido estrito deixam
entrever, com clareza, que o cordão umbilical que os liga à parte acusadora não foi
15
cortado... Sendo assim, como podem atuar com imparcialidade? Ademais, como a
defesa deve falar por último, a rigor, os autos deveriam sair da Procuradoria e ser
encaminhados à OAB...” (p. 1).
27
Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª., ed, 2001, p. 52.
28
Sobre o assunto, conferir Dóro, Tereza Nascimento Rocha /
Grecco, Leonardo. O parecer acusatório do Procurador de Justiça nos
autos da apelação criminal (Da notória desigualdade de armas no duelo
entre promotor de Justiça e advogado). Disponível na internet: http://
direitocriminal.com.br , 05/10/2001.
29
Estudos Jurídicos em Homenagem à Faculdade de Direito da Bahia, São
Paulo: Saraiva, 1981, p. 88.
30
A propósito, veja-se no STF o HC nº. 67.759, rel. Min. Celso de
Mello.
31
Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 3ª. ed., 1996, p. 94.
32
Código de Processo Penal, Vol. I, Rio de Janeiro: Record, 2ª. ed.,
1960, 120.
33
Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 2ª. ed., 1989, p. 158.
34
Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 160.
35
Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 164.
36
Idem, p. 165.
37
Tucci, respaldado pelas lições de Guglielmo Sabatini, prefere a
expressão não-consideração prévia de culpabilidade, pois “l’imputato è sempre e
solo imputato ai fini dello svolgimento del processo. Quindi non va considerato nè come
innocente, nè come colpevole.” (in Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal
Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 401). Outros autores falam em
princípio da não-culpabilidade e, como Dotti, em princípio da
incensurabilidade.
38
Expressão preferida pelos italianos, ao invés do periculum in
mora (cfr. Delmanto Junior, Roberto, in As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 67).
39
Moraes, Maurício Zanoide de, Interesse e Legitimação para Recorrer
no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29.
40
Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.
“Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente
defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente,
expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do
depositário infiel.” (Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito
Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116). O STF, reiteradamente,
combate-o.
42
Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros Editores, 1999, 15ª.
ed., p. 74.
43
Processo Penal, São Paulo: Atlas, 10ª. ed., 2000, p. 649.
44
Direito de Apelar em Liberdade, São Paulo: Revista dos Tribunais,
2ª. ed., p. 32.
45
Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual
Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.
46
Ocorre que “nenhuma presunção emanada do legislador infraconstitucional
pode prevalecer sobre a presunção constitucional”, como diz Luiz Flávio Gomes,
ob. cit., p. 26.
47
Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual
Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.
48
“Estes são, sobretudo, os princípios e decisões valorativas que encontram
expressão na parte dos direitos fundamentais da Constituição, quer dizer, a prevalência
da ‘dignidade da pessoa humana’ (...), a tutela geral do espaço de liberdade pessoal,
com as suas concretizações (...) da Lei Fundamental.” (Larenz, Karl, Metodologia
da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997,
p. 479).
49
Idem, p. 481
50
idem, ibidem, p. 446.
51
“Toda a interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal”
(idem, p. 450).
52
Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes,
Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).
53
“Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese,
com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”,
segundo nos ensina Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito,
Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1961, 7ª. ed., p. 164.
54
Infelizmente já houve um retrocesso, pois a nova lei de tóxicos
(Lei nº. 10.409/02, art. 46, § 12), estabelece que terão apenas efeito
devolutivo os recursos interpostos contra as decisões proferidas no curso
41
do respectivo procedimento, o que é lamentável.
55
Idem, p. 165.
56
Ob. cit., p. 441.
Código de Processo Penal, Vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 7ª. ed.,
1960, p. 157.
58
Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, Vol. IV, 1943, p.
178.
59
Curso de Direito Judiciário Penal, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1958,
p. 377.
60
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. IV, Campinas: Bookseller,
1ª. ed., 1998, págs. 370/371.
61
Código de Processo Penal Comentado, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 6ª.
ed., 2001, p. 460.
62
Ob. cit., p. 476.
63
Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 10ª. Ed., 2001,
149.
64
A cumulação própria existe normalmente no Direito Processual
Penal, seja nos casos de co-autoria, seja na hipótese de concurso de crimes.
65
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II, Campinas: Bookseller,
1998, p. 153/154.
66
Admitimos a chamada denúncia genérica, excepcionalmente, no
caso, por exemplo, de um roubo praticado por várias pessoas, em concurso, sem que se possa estabelecer exatamente que Fulano se dirigiu ao
caixa, Sicrano imobilizou o vigilante, Beltrano subtraiu o dinheiro dos
caixas, etc.
67
Afrânio, idem.
68
A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 18.
57
RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA DO PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO
PELA INFRAÇÃO DE TRÂNSITO E
DEVIDO PROCESSO LEGAL
Eusebio de Oliveira Carvalho Filho, Advogado
– Bahia, Professor do curso de especialização em
Direito Civil e Processual Civil da pós-graduação
da Fundação Cairu, Professor visitante da ESMESE
– Escola Superior da Magistratura do Estado de
Sergipe.
SUMÁRIO.
1. Introdução e delimitação do tema; 2. Noções propedêuticas da
responsabilidade do proprietário do veículo pelas infrações de trânsito; 3.
Procedimento para aplicação de penalidade de trânsito segundo o CTB;
4. Consequência jurídica da falta de notificação da autuação; 5. Sistematização do procedimento de aplicação de penalidade segundo o CTB; 6.
Conclusão; 7. Bibliografia.
1 . INTRODUÇÃO
Uma das características do Código de Trânsito Brasileiro que tem
recebido maior destaque nos comentários que lhe são feitos, diz respeito
ao rigor das penalidades, não só pelo valor pecuniário das multas, mas
também no que concerne a anotação de pontos na CNH, os quais podem
implicar na suspensão do direito de dirigir.
Assim, na mesma proporção que há rigorosidade, deve-se assegurar o direito de defesa do cidadão, entendido este em seu sentido mais
amplo.
Sendo uma forma de limitação ao direito de ir e vir, o Direito de
Trânsito deve ser analisado e interpretado sempre sob o aspecto constitucional, a fim de que sejam respeitados e sopesados os princípios garantidores do interesse coletivo e da dignidade da pessoa humana.
Neste breve estudo, será analisada a garantia do devido processo
legal nos processos administrativos de aplicação de penalidade por infra-
ção de trânsito ao proprietário do veículo.
2. NOÇÕES PROPEDÊUTICAS DA RESPONSABILIDADE DO
PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO PELAS INFRAÇÕES DE TRÂNSITO
Preliminarmente, deve-se esclarecer como a Lei 9.503/97 (CTB)
manifesta-se a respeito da responsabilidade pelas infrações de trânsito.
Especificamente em relação ao proprietário do veículo e ao transportador da carga o art. 257, §§§ 1, 2º e 5º do CTB determina:
“ 257 – As penalidades serão impostas ao condutor, ao proprietário do
veículo, ao embarcador e ao transportador, ...
§ 1º - Aos proprietários e condutores de veículos serão impostas
concomitantemente as penalidades de que trata este código toda vez que houver responsabilidade solidária em infração dos preceitos que lhes couber observar, respondendo
cada um de “per si” pela falta em comum que lhes for atribuída.
§ 2º - “ Ao proprietário caberá sempre a responsabilidade pela infração
referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas
para o trânsito do veículo na via terrestre, conservação e inalterabilidade de suas
características, componentes e agregados, habilitação legal e compatível com seus
condutores, quando esta for exigida, e outras exigências que deva observar.
§ 5º - O transportador é o responsável pela infração relativa ao transporte de
carga com excesso de peso nos eixos ou quando a carga proveniente de mais de um
embarcador ultrapassar o peso bruto total. ”
Tal artigo é claro e importantíssimo, pois no caso de aplicação de
uma multa de trânsito, fica definido quem é o responsável pelas
consequências advindas da penalidade (multa e anotação de pontos).
Desta forma, sempre que infrações forem cometidas pelo proprietário, embarcador ou transportador, o condutor não tem legitimidade
para ser notificado da autuação.
A lei é clara quando diferencia condutor de infrator, não cabendo
interpretação em sentido contrário. Confundir os conceitos de condutor,
proprietário e infrator é reflexo do esquecimento da lição de Bobbio no
sentido de dar a cada coisa o seu nome não é mera preocupação formalista,
porém necessidade para construção de uma ciência.1
Assim, toda vez que o infrator for o transportador de uma carga
ou o proprietário de um veículo, são estes que devem ser notificados da
infração. O condutor do veículo não tem legitimidade para ser notificado,
posto que pessoa estranha à relação jurídica obrigacional.
3. PROCEDIMENTO DE APLICAÇÃO DE PENALIDADE SEGUNDO O CTB
Diz o art. 280 da CTB:
Art. 280 – “ Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito,
lavrar-se-á auto de infração, do qual constará:
VI – assinatura do infrator, sempre que possível, valendo esta como
notificação do cometimento da infração.”
No § 3º do mesmo artigo fica expresso:
“§ 3º - Não sendo possível a autuação em flagrante, o agente de
trânsito relatará o fato à autoridade no próprio auto de infração, informando os dados a respeito do veículo, além dos constantes nos incisos I,
II, e III, para procedimento no artigo seguinte.”
Assim, é lógico que se o infrator não tiver ciência da infração no
ato da fiscalização, tornar-se-á peremptório que o mesmo seja notificado
nos moldes do artigo 281.
Tal procedimento é exigido, pois o agente fiscalizador apenas tem
competência para lavrar o auto de infração informando ao possível infrator que este poderá ser penalizado, abrindo-se prazo para defesa. Se o
notificado é outrem, que não o responsável pela infração, não é de se
esperar que seja do seu interesse apresentar a defesa, vez que não será ele
que eventualmente sofrerá a penalidade.
Com efeito, tanto o auto de infração como a decisão que aplica a
penalidade de trânsito são atos administrativos, o primeiro efetuado pelo
agente fiscalizador, no momento em que ocorreu a infração, e o segundo
pela própria autoridade de trânsito, quando julgada subsistente a autuação. Segundo o escólio de Celso Antônio Bandeira de Melo o ato administrativo, para existir no mundo jurídico, precisa ser perfeito, válido e eficaz,
senão vejamos:
“ 12. O ato administrativo é perfeito quando esgotadas as fases
necessárias à sua produção. Portanto, ato perfeito é o que completou o
ciclo necessário a sua formação. Perfeição, pois, é a situação do ato cujo
processo está concluído.
13. O ato administrativo é válido quando foi expedido em absoluta
conformidade com as exigências do sistema normativo. Vale dizer, quando se encontra adequado aos requisitos estabelecidos pela ordem jurídica.
Validade, por isto, é a adequação dos atos às exigências normativas.
14. O ato administrativo é eficaz quando está disponível para a
produção de seus efeitos próprios; ou seja, quando o desencadear de seus
efeitos típicos não se encontra dependente de qualquer evento posterior,
como uma condição suspensiva, termo inicial ou ato controlador a cargo
de outra autoridade.
Eficácia, então, e a situação atual de disponibilidade para produção dos
efeitos típicos, próprios, do ato.”2
Não é por outro motivo que a Lei Federal n.º 9.503/97 (CTB)
estabelece no seu capítulo XVII, de forma cristalina, o processo administrativo que a Administração Pública deve seguir a fim de que o ato
administrativo de aplicação de penalidade de trânsito seja perfeito, válido
e eficaz.
Entretanto, data vênia, o que vem ocorrendo é que a Administração Pública, após cincos anos de vigência da Lei 9.503/97 (CTB), ainda
não obedece aos princípios norteadores do devido processo legal, e, ao
arrepio da lei, “rasga a Constituição”, transformando o processo de aplicação de penalidade de trânsito num espetáculo teratológico a dar inveja
aos inquisitores medievais.
4. CONSEQUÊNCIA JURÍDICA DA FALTA DE NOTIFICAÇÃO
DA AUTUAÇÃO
Neste diapasão, após constatada a infração, o auto deve ser encaminhado à autoridade de trânsito. Esta, na esfera da competência
estabelecida pelo CTB e dentro da sua circunscrição, julgará a consistência do auto de infração e aplicará a penalidade cabível, art. 281 do CTB.
Para alguém “julgar” é fundamental que seja oportunizado o contraditório às partes envolvidas. Se o agente autuou, é sintomático que o
infrator possa contestar essa autuação para que o “julgamento” sobre a
consistência do Auto de Infração seja pleno, cabendo logicamente a contestação tanto técnica quanto de mérito.
Ressalte-se, assim, que, caso a autoridade não expeça a notificação
para o infrator dentro do prazo de 30 dias, o auto de infração será arquivado e o registro julgado insubsistente.
“Art. 281 - ...
Parágrafo único – O auto de infração será arquivado e seu registro
julgado insubsistente:
I – se considerado insubsistente ou irregular;
II – se, no prazo máximo de trinta dias, não for expedida a notificação da
autuação.” ( redação alterada pela Lei n.º 9.602/98 )
Da legislação mencionada no presente trabalho, fica claro que o
respeito à ampla defesa e ao contraditório (art. 5º CF, LV) induz logicamente
que a infração de trânsito não poderá ser aplicada se o infrator não for
notificado, posto que este tem o direito de tomar conhecimento da acusação, para, destarte, exercitar sua defesa.
O princípio da legalidade impõe a administração pública fazer o
que a lei determina. Na lição do eterno mestre Hely Lopes Meirelles:
“ A legalidade, como princípio da administração (CF, art. 37, caput),
significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e
deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e
expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.
A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao
atendimento da lei.
Na administração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração
Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa
“pode fazer assim”; para o administrador público significa “ deve fazer assim”. 3
Destarte, demonstrou-se que a imposição legal dos artigos 257,
280 e 281 deve ser respeitada e, em nenhum momento pode a Administração dela se afastar, sob pena de estar cometendo abuso de autoridade.
O respeito ao princípio da eficiência (art. 37, CF) impõe que a
Administração adote todas as medidas necessárias para dar o máximo de
efetividade aos seus atos.
Neste sentido, o presente estudo demonstra que a Administração,
ao considerar válida a notificação de autuação de trânsito feita na pessoa
do condutor do veículo, quando este não é o infrator, fere o princípio da
eficiência, tendo em vista que este procedimento faz com que os atos
administrativos possam ser anulados. Este fato é muito grave, pois desvirtua o ato do agente fiscalizador (muitas vezes correto) e causa graves
prejuízos ao erário.
Sobre o princípio da eficiência, assim discorre Alexandre de Moraes:
“ Assim, princípio da eficiência é aquele que impõe à administração pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial,
neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em
busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais
necessários para melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira
a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social. Notese que não se trata da consagração da tecnocracia, muito pelo contrário, o
princípio da eficiência dirige-se para a razão e fim maior do Estado, a
prestação dos serviços sociais essenciais à população, visando a adoção
de todos os meios legais e morais possíveis para satisfação do bem comum.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina que o princípio da eficiência “ impõe
ao agente público um modo de atuar que produza resultados favoráveis a consecução
dos fins que cabem ao estado alcançar”, advertindo, porém, que “ eficiência é princípio
que se soma aos demais princípios impostos à administração, não podendo sobrepor-se
a nenhum deles, especialmente ao da legalidade sob pena sérios riscos à segurança
jurídica e ao próprio Estado de Direito.” 4
Não é por outro motivo, que a jurisprudência dos Tribunais tem
abraçado a tese que ora sustentamos, senão vejamos:
“ ADMINISTRATIVO. LICENCIAMENTO. INFRAÇÃO DE
TRÂNSITO. MULTA. EXIGÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA. NECESSIDADE DE PRÉVIA NOTIFICAÇÃO. DIREITO DE
DEFESA. CTN, ARTIGOS 110, 115 E 194. DECRETO 62.127/68,
(ARTS. 125, 210 E 217). SÚMULA 127/STJ.
1. Como condição para o licenciamento, é ilegal a exigência do pagamento de
multa imposta sem prévia notificação do infrator para defender-se em processo administrativo.
2. Precedentes jurisprudenciais. Súmula 127/STJ.
3. Recurso Improvido.
Por unanimidade, negar provimento ao recurso.”
RESP 184554/SC; DJ 29/03/1999, Rel. Min. MILTON LUIZ
PEREIRA 03/11/1998, PRIMEIRA TURMA
“ ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. RENOVAÇÃO DE LICENÇA DE VEÍCULO. PAGAMENTO DE
MULTA. NOTIFICAÇÃO DO INFRATOR. DIREITO DE DEFESA. IRREGULARIDADE DA CONSTITUIÇÃO DO DÉBITO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
I – Não se pode renovar licenciamento de veículo em débito de multas. Para
que seja resguardado o Direito de Defesa do suposto infrator, legalmente assegurado,
contudo, é necessário que ele (infrator) seja devidamente notificado, conforme determinam os artigos 194 e 210 do Decreto n. 62.127, de 1968, alterado pelo Decreto n.
98.933/90.
II – A jurisprudência desta Corte pacificou-se no sentido de que, não havendo
prévia notificação do infrator, para exercitar seu Direito de Defesa, é ilegal a exigência
do pagamento de multas de trânsito, para a renovação de licenciamento de veículo.
Súmula 127 – STJ.
III – Recurso provido, sem discrepância.” (STJ, 1ª Turma, RESP 89265/
SP, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, j. 03/06/1996, DJU 01/07/1996).
Este também é o entendimento do STF:
“ ... renovação de licença de veículo. Exigência de pagamento de Multa.
Notificação do Infrator.
Acórdão que concedeu a segurança sob o argumento que é ilegal o ato da
autoridade que exige, para renovação do licenciamento do veículo, o pagamento de
multa imposta sem prévia notificação do infrator para defender-se em processo administrativo.
Inocorrência de negativa de vigência do art. 110 do Código Nacional de
Trânsito.
Dissídio jurisprudencial, não demonstrado. Recurso extraordinário de que não
se conhece”( RE. 100.246 –PR – Rel. Min. Francisco Rezek, in RTJ 107/1.306
)
Sinaliza-se que na fundamentação do voto foram acolhidas as seguintes razões:
“... 5. Em caso de infração, não sendo possível a notificação no ato (210 do
Decreto n.º 62.127/68) deverá esta ser procedida a posteriori, pelos meios usuais,
inclusive através da publicação em órgão oficial, como se prevê, aliás, na hipótese do
art. 217 do Regulamento do Código Nacional de Trânsito. Deve ser lembrado que
somente com a notificação se formaliza a exigência. Antes dela, a multa é inexigível
do proprietário.
6. A antiga praxe de não notificar o infrator, aguardando a época da renovação da licença para compeli-lo ao pagamento (CNT, art. 110), implica em última
análise, em recusar-lhe o direito de defesa, assegurado pela própria legislação do Trânsito (artigos 112 a 116 do Código e artigos 21 a 221 do regulamento)” in RTJ
107/130.
Nesse sentido, relatando o RE 89.072/SP, o eminente Ministro
Thompson Flores, no pertencente à indispensabilidade da notificação ao
infrator, comentou:
“... O que assegurou é que , por exigi-las , é mister a prévia notificação pessoal do infrator, eis que conhecida sua residência, ressalvando,
todavia, à recorrida proceder a sua cobrança.
Deu exegese, pois, ao artigo 217 do Decreto n.º 62.127/68 e de
forma mais razoável. Restam os artigos 125 e 110 do referido decreto. O
primeiro conjuga-se com o já citado artigo 110 da Lei 5.108/68. Apenas
admite ele, que a renovação se faça quando da imposição da multa tenha
havido recurso não julgado. Não é o caso, pois, sequer o prazo passou a
fluir para o recurso que exige depósito e pela ausência de notificação” in
RTJ 92/316.
Sobrepaira, ficando à deriva de específico exame da ocorrência,
ou não, de infração, é que faltante a notificação, consubstancia-se a ilegalidade, obstacularizando a regular constituição do débito, por afronta à
legislação vigente, qual seja, o CTB, Lei n.º 9.503/97.
Desta forma, ressalta que no caso da falta de expedição da notificação ao infrator em tempo hábil, o auto de infração será arquivado e o
seu registro julgado insubsistente (art. 281, § único, II, do CTB).
5 . SISTEMATIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE APLICAÇÃO
DE PENALIDADE SEGUNDO O CTB
Com a finalidade de ilustrar-se o correto procedimento de aplicação de infração e penalidade, de acordo com o CTB, pede-se “venia”
para exibir o diagrama a seguir:
INFRAÇÃO
ART. 280 DO CTB
LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO NA
PRESENÇA DO INFRATOR (FLAGRANTE)
ART. 280, INC. VI DO CTB
LAVRATURA DO AUTO
DE INFRAÇÃO SEM A
PRESENÇA DO INFRATOR
ART. 280, § 3º DO CTB
NOTIFICAÇÃO
DO
COMETIMENTO
DA
RECUSA DO INFRATOR
APOSIÇÃO
DA
IN FRAÇÃO NO PRAZO MÁXIMO DE 30
EM
ASSINATURA
DO
(TRINTA) DIAS A CONTAR DA DATA DA
ASSINATURA NO AUTO
APOR
SUA
INFRATOR NO AUTO
LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO, caso
DE INFRAÇÃO
DE INFRAÇÃO
contrário aplica-se - ART. 281, § ÚNICO,
INC. II DO CTB
APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA
NO PRAZO DE 30 (TRINTA) DIAS A
CONTAR DO 1º DIA ÚTIL
SUBSEQUENTE AO DO RECEBIMENTO
DA NOTIFICAÇÃO DO COMETIMENTO
DA INFRAÇÃO
ART. 1º DA RES. 829/97 CONTRAN
APRESENTAÇÃO DE DEFESA PRÉVIA NO
PRAZO DE 30 (TRINTA) DIAS A CONTAR
DO 1º DIA ÚTIL SUBSEQUENTE AO DA
LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO
JULGAMENTO DA CONSISTÊNCIA E HOMOLOGAÇÃO
DO AUTO DE INFRAÇÃO
ART. 281, “CAPUT” DO CTB
APLICAÇÃO DA PENALIDADE
IDEM
NOTIFICAÇÃO
PENALIDADE
DA
AO
IMPOSIÇÃO
PROPRIETÁRIO
DA
DO
VEÍCULO, ONDE CONSTE PRAZO PARA:
•
•
•
•
PAGAMENTO DA MULTA;
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO À JARI;
30 (TRINTA) DIAS A CONTAR DO 1º DIA
ÚTIL SUBSEQUENTE AO DO RECEBIMENTO
DA NOTIFI
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO À JARI SEM
PAGAMENTO DA MULTA
ART. 286 DO CTB
6. CONCLUSÃO
O tema é por demais instigante e deve ser estudado com atenção,
pois da mesma forma que há rigorosidade na aplicação da penalidade,
deve haver respeito aos dispositivos que garantem ao cidadão coibir os
abusos de agentes e autoridades arbitrárias.
O que se deseja demonstrar é a exigência de um procedimento que
respeite o direito de defesa e garanta a dignidade do ser humano (art. 1º,
III, CF), sem atingir o interesse da coletividade, posto que, uma vez
consubstanciado o procedimento ilegal aqui apontado, a invalidade do ato
administrativo de aplicação de penalidade de multa por infração de trânsito é providência que se impõe.
Em virtude da nulidade do ato administrativo, a coletividade é
prejudicada como um todo, posto que o infrator continua impune e o
erário fica prejudicado (desperdício de tempo, material e dinheiro). Desta
maneira, o processo administrativo de aplicação de penalidade de infração de trânsito deve ser respeitado para não restar configurado o mito
Sísifo. 5
6 . BIBLIOGRAFIA.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico: Editora Universidade de Brasília.
FERREIRA, Pinto. Comentários à nova Constituição.
MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo,
8ª ed., Malheiros Editores.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 21ª ed.,
Malheiros Editores.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 5ª ed., Atlas.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 13ª
ed., São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 1997.
WITTER e LAZZARI, Ilton Roberto da Rosa e Carlos Flores.
Nova Coletânea de Legislação de Trânsito, 17ª ed., Porto Algre, Sagra Luzzato.
Teoria della Scienza Giuridica, p. 217.
Curso de Direito Administrativo, 8ª ed., pag. 216, Malheiros
3
Direito Administrativo Brasileiro, 21ª ed. , p. 82, Malheiros Editores.
4
Direito Constitucional, 5ª ed., pág. 294, Atlas.
5
El mito de Sísifo, por Albert Camus. Segundo a mitologia grega,
os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em
conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não
há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
1
2
AÇÃO POPULAR CONSTITUCIONAL
Carlos Augusto Alcântara Machado, Promotor
de Justiça e Professor de Direito Constitucional
da Universidade Federal de Sergipe (UFS), da
Universidade Tiradentes (UNIT) e da Escola Superior da Magistratura de Sergipe (ESMESE), em
Aracaju. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade Federal do Ceará (UFS) e autor do
livro Mandado de Injunção – Um Instrumento de
Efetividade da Constituição, publicado pela Editora Atlas em São Paulo. PALESTRA PROFERIDA
NO SENEJ (Seminário Nacional de Estudos Jurídicos), no dia 10.10.02, promovido pelo Centro Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe, em Aracaju (SE).
1. CONSIDERAÇÕES PROPEDÊUTICAS E BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO:
A utilização do nomem juris ação popular deriva, como recorda
José Afonso da Silva1 em clássica obra, do fato de atribuir-se ao povo,
ou parcela dele, legitimidade para pleitear a tutela jurisdicional de interesses que não lhe pertencem, ut singulis, mas à coletividade. O autor popular, deste modo, faz valer um interesse que só lhe cabe, ut universis, como
membro de uma comunidade. Dessa forma, age pro populo.
Registra a doutrina que a ação popular remonta ao clássico Direito
Romano. Os estudiosos do Direito da antigüidade clássica legaram para o
futuro a idéia de que as actiones populares constituíram fenômenos especiais no direito processual de ação. Isto porque a ação em geral é informada pelo princípio de que ninguém pode pleitear em nome próprio
direito alheio. Não é o que ocorre, rigorosamente, com a ação popular.
Se por ação se definia ordinariamente o direito de pleitear a tutela
jurisdicional para a proteção daquilo que nos é devido, não seria lícito agir
em nome de outro, isto é, perseguindo direito alheio, salvo em defesa da
coletividade, do povo. Daí a expressão pro populo. Constituindo-se em
exceção a regra geral do direito de ação, as chamadas actiones populares
seriam aquelas ações confiadas a um representante do povo para defender o direito do próprio povo.
Com esse fundamento, diziam-se populares as ações que podiam
ser intentadas por qualquer pessoa do povo, para a conservação das coisas públicas, nas precisas palavras de José Homem Corrêa Telles2 .
Teriam a função de possibilitar a defesa do interesse coletivo e os
cidadãos, fazendo uso da ação popular, exerciam uma espécie de poder
de polícia em forma jurisdicional, como refere Bielsa3 .
Observa-se, no entanto, que no Direito Romano as ações populares tinham um vasto campo de incidência e aplicabilidade.
Procurando ilustrar a afirmação, de forma meramente
exemplificativa, destacam-se algumas das ações qualificadas pelos romanos como populares: ação de sepulchro violato (violação de sepulcro,
coisa santa ou religiosa); ação de positis et suspensis (qualificada também de popular penal, cabível contra quem mantivesse objetos na sacada
ou na aba do telhado); interdictum de homine libero exbibendo (poderia ser interposto por qualquer um, em defesa da liberdade) e ação de
collusione detergenda (cabível quando escravos ou libertos eram declarados nascidos livres).
O que se percebe é que as ações populares poderiam ter um conteúdo de defesa da res pública, com caráter patrimonial, às vezes até penal, ou buscar a proteção de interesses individualizados. Lembra Paulo
Lúcio Nogueira4 , que figurava o autor popular como sujeito de um
direito subjetivo ou mero agente da coletividade na defesa de interesses
coletivos.
No Direito comparado, especificamente a partir do séc. XIX, encontramos, também, a utilização desse instrumento processual.
Na Itália, a ação popular não tem nascedouro na Constituição.
Pode ser utilizada na área civil como na penal, classificação essa de acordo com a modalidade da pretensão. A legislação prevê a possibilidade
expressa de utilizada visando tutelar o direito patrimonial das instituições
de beneficência, corrigir irregularidades e apurar eventuais responsabilidades dos seus administradores.
Também na Alemanha há referências à ação popular como forma de defesa dos direitos fundamentais e instrumento de controle da
constitucionalidade confiado a qualquer pessoa, mediante recurso ao Tribunal Constitucional.
Na França é utilizada como um recurso contra o excesso de poder. Em Portugal encontramos a ação popular para defesa de coisa de
uso comum do povo. Verificamos registros da utilização do instrumento
também na Bélgica, Espanha, Argentina e na Inglaterra, evidentemente, sempre, cada uma, guardando características particulares. Algumas com caráter civil ou administrativo; outras até com caráter penal.
A Constituição Portuguesa de 1976, no seu art. 52, reconhece o
direito de ação popular, nos casos e nos termos previstos em lei. A Constituição da Espanha de 1978, da mesma forma, estabelece (art. 125) que
os cidadãos poderão exercer a ação popular. Os dispositivos constitucionais são genéricos, não se observando a definição do campo material da
ação.
No Direito brasileiro, cuja origem advém do velho Direito lusitano, já encontramos, desde as antigas ordenações portuguesas, a possibilidade de utilização da ação popular. Poderia ser intentada por qualquer do
povo para a conservação e defesa das coisas públicas. Desde a sua origem a ação popular brasileira foi compreendida como um instrumento de
defesa da sociedade em geral, da coisa pública, não sendo possível a sua
utilização para a tutela ou proteção de direitos subjetivos. Essa a razão
pela qual, anos mais tarde, o Supremo Tribunal Federal delimitou o campo de atuação da ação popular, afirmando, com a Súmula Nº 101, editada em 16 de dezembro de 1963, que o mandado de segurança não
substitui a ação popular5 .
Durante o período do império, é de se destacar o conteúdo do art.
157 da Constituição de 1824. Dizia ele: “por suborno, peita, peculato
e concussão, haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do
povo, guardada a ordem do processo estabelecido em lei” (grifos nossos).
A primeira Constituição Republicana não acolheu a ação popular,
nem mesmo a de aspecto penal prevista na Constituição do Império.
Entretanto manteve-se o entendimento da possibilidade de sua utilização
na defesa de logradouros públicos.
Com a Constituição de 1934, promulgada em 16 de julho, é que
houve a introdução verdadeira da ação popular no Direito brasileiro, como
forma de defesa do patrimônio público, de caráter eminentemente civil.
Previa o texto constitucional no inciso 38 do art. 113: “Qualquer
cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade e
a anulação dos atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados ou
dos Municípios”. Considerando que esta Constituição não teve vida duradoura, o instituto não foi utilizado.
Abolida na Constituição de 1937, explicável em face do seu caráter autoritário, ressurgiu ação popular com a Carta Constitucional de
1946, desta feita um pouco mais ampliada.
Estabelecia o seu art. 141, § 38: “Qualquer cidadão será parte
legítima para pleitear a declaração de nulidade e a anulação dos atos
lesivos ao patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios, das
entidades autárquicas e das sociedades de economia mista”. O grifo
destaca o acréscimo.
A Constituição de 1967 manteve o instituto, com uma ligeira
alteração na redação do dispositivo. Referia-se, genericamente, ao
patrimônio de entidades públicas (art. 153, § 31). De idêntico conteúdo
a disposição constante da Emenda Constitucional Nº 01/69, que funcionou, materialmente, como uma verdadeira Constituição.
Foi no período compreendido entre a Constituição de 1946 e a de
1967, logo após o golpe militar de 1964 que surgiu a regulamentação legal
do remédio constitucional: a Lei Federal Nº 4.717, de 29 de junho de
1965. Tal legislação permanece até os dias atuais com modificações levadas a efeito pela Lei Federal Nº 6.014, de 27 de dezembro de 1973 e pela
Lei Nº 6.513, de 20 de dezembro de 1977..
A Constituição de 05 de outubro de 1988, chamada de Constituição-cidadã, foi responsável não só pela permanência do instrumento
processual, como também pela ampliação do seu objeto de incidência.
Preceitua o atual texto magno (art, 5º, LXXIII): “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato
lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento
de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
Inaugura-se, com a nova Carta Magna, uma nova fase do instituto.
2. OBJETO E FINALIDADE DA AÇÃO POPULAR:
Desde a promulgação da Lei Nº 4.717/65, acusada de casuísmos
e com defeitos de técnica, como acentua Hely Lopes Meirelles6 , que
se definiu o objeto de incidência da ação popular: buscou-se proteger o
patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia, conforme já estabelecia a Constituição de 1946, como também o de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o
tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de 50% do
patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao
patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos (art. 1º, caput).
A lei em foco indica o significado de patrimônio público como
sendo os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico (§ 1º do art. 1º).
Tais dispositivos, sucessivamente recepcionados pelas Constituições posteriores, deverão, evidentemente, ser interpretados na esteira do
mandamento constitucional vigente, consubstanciado no art. 5º, LXXIII.
No atual texto constitucional a ação popular foi elevada à categoria de direito fundamental, além de prever a possibilidade de ser utilizada também para buscar a anulação de ato lesivo à moralidade administrativa e ao meio ambiente. Um grande avanço.
É um instrumento de proteção especial do patrimônio público especificamente ou de entidade de que o Estado participe, não importando
se pessoa jurídica de Direito público ou privado.
Conclusivamente, é de se dizer, com José Cretella Júnior7 , que a
ação popular visa impugnar não só os atos praticados por órgãos da
Administração direta, ou centralizada, como também os praticados por
empresas públicas, sociedades de economia mista, serviços sociais autônomos e entes de cooperação.
Assim, havendo ilegalidade do ato ou ilegitimidade, associada
a sua conseqüente lesividade em relação aos bens tutelados e anteriormente mencionados, autoriza-se o manejo da ação popular. Evidentemente, considerando a sua definição constitucional, a ação popular não se
presta exclusivamente para ser ajuizada em casos de violação à lei (ilegalidade), mas também quando se detectar a hipótese de imoralidade administrativa.
A lesividade poderá, ainda, ser presumida, quando presentes as
hipóteses previstas no art. 4º da Lei Nº 4.171/65.
Busca-se com o remédio heróico anular o ato lesivo, possuindo
uma natureza tipicamente repressiva, sem no entanto vedar-se o seu possível caráter preventivo. É de se destacar, conforme dispõe a lei
regulamentadora do instituto, mais precisamente no § 4º do art. 5º, que
na defesa do patrimônio público caberá suspensão liminar do ato
lesivo.
A legislação de regência condiciona a declaração de nulidade dos
atos administrativos à conjugação de dois requisitos: a irregularidade e
a lesão ao erário (RSTJ 34/143).
Nessa oportunidade é de se indagar se quaisquer atos podem ser
impugnados por meio da ação popular. Em regra, somente os atos administrativos são passíveis de questionamento. Entretanto, algumas observações merecem ser destacadas.
Tem-se compreendido que os atos de índole jurisdicional, ordinariamente, não estão incluídos no objeto da ação popular, porquanto
contra eles há todo um sistema processual (recursal) para a impugnação
respectiva e mesmo após o trânsito em julgado, é possível valer-se da
ação rescisória.
Como se percebe, com amplo respaldo doutrinário e jurisprudencial (J. M. Othon Sidou 8 ; Hely Lopes Meirelles9 e STF10 ) nem todos
os atos estatais estão sujeitos a contestação mediante ação popular. Contra lei em tese e contra atos tipicamentes judiciais11 é incabível a ação
popular.
Sobre o tema, conclui o Min. Celso de Mello, quando apreciou o
RMS-23.657, decisão publicada em 01 de agosto de 2000: “Tratando-se de
ato de índole jurisdicional, cumpre considerar a seguinte dilemática: ou o ato em
questão ainda não se tornou definitivo – podendo, em tal situação, ser contestado
mediante utilização dos recursos previstos na legislação processual -, ou, então, já
transitou em julgado, hipótese em que, havendo decisão sobre o mérito da causa,
expor-se-á à possibilidade de rescisão”.
Isto não quer dizer, no entanto, que qualquer ato proveniente do
Poder Legislativo ou do Poder Judiciário estão imunes à ação popular. As
leis de efeito concreto e os atos e resoluções do Poder Judiciário,
de conteúdo materialmente administrativo, são perfeitamente passíveis de impugnação através da ação popular.
Por lei de efeito concreto entende-se aquela que se exaure no momento da sua aplicação ou, como explicita Hely Lopes Meirelles12 , é
aquela que já traz em si as conseqüências imediatas de sua atuação13 . São
leis, atos normativos somente no sentido formal, pois originárias do Poder Legislativo. São leis lato sensu e não stricto sensu, visto que as verdadeiras leis são aquelas em sentido formal e material, conjuntamente.
Cumpre destacar, nesse passo, que, como antes afirmado, contra
os atos e resoluções judiciais, de conteúdo materialmente administrativo,
afetados pelo vício da ilegalidade e agravados pela nota da lesividade
patrimonial, é possível a utilização da ação popular. A conclusão encontra
lastro no entendimento do Supremo Tribunal Federal14 .
Rigorosamente, a ação popular presta-se à impugnação de atos ou
omissões no plano puramente administrativo, sendo indiferente a
origem (se do Poder Executivo – o que é o mais comum -, se do Poder
Legislativo ou mesmo do Poder Judiciário).
Por último, é de se destacar que com a ação popular persegue-se a
anulação do ato lesivo, ilegal ou imoral. Essa é a razão pela qual o autor
popular não pode pretender se substituir ao administrador público quanto à opção política por ele praticada na escolha de prioridades na gestão
da coisa pública. Nesse caso a hipótese estaria imune, em regra, ao controle judicial15 .
Além da declaração de nulidade do ato impugnado, com o resultado final da ação poderá haver também, a depender da situação, a condenação em perdas e danos.
A ação popular, como legítimo meio processual de controle dos
atos dos administradores públicos em geral ou de quem gerencia verbas
públicas é um verdadeiro instrumento de defesa dos interesses da
coletividade. E para tanto, como afirmou o eminente Min. Celso de
Mello16 , em lapidar decisão monocrática, o autor popular tem direito,
ação e pretensão à desconstituição judicial de quaisquer atos cuja validade
ético jurídica esteja em desarmonia com os princípios e paradigmas de
legitimação referidos no art. 5º, LXXIII, da Carta da República. E diz
mais: a ação popular tem uma eficácia neutralizadora do estado de
lesividade.
3. O AUTOR POPULAR:
Desde a instituição constitucional da ação popular, nos idos de
1934, que se firmou entendimento no sentido de que é o cidadão quem
dispõe de legitimatio ad causam para ingressar em juízo com o remédio
processual, visando a anulação de ato lesivo ao patrimônio público.
A matéria amplamente discutida na doutrina e na jurisprudência
foi devidamente pacificada no entendimento dos tribunais, mantendo uma
interpretação autêntica, ao firmar o entendimento de que o manejo da
ação popular foi confiado, com exclusividade ao brasileiro no exercício
dos seus direitos políticos. Com essa definição de elementos encontrase o conceito clássico de cidadão. É dizer: considera-se cidadão para fins
de ação popular somente a pessoa natural, física, desde que nacional e
portador do título de eleitor ou documento que comprove o seu alistamento junto à Justiça Eleitoral (§ 3º do art. 1º da Lei Nº 4.717/65)17 . E
tudo isso no fundamento de que se cabe ao eleitor escolher os governantes
no processo eleitoral, caberá também, ao mesmo eleitor (cidadão), fiscalizar os atos dos governantes escolhidos democraticamente pelo povo18 .
Alguns, considerando a amplitude do conceito de cidadania consagrado na Lei Maior vigente, procuraram elastecer o sentido do vocábulo
cidadão constante no inciso LXXIII do art. 5º, buscando uma exegese
ampliativa de seu conteúdo. Entretanto, a nova compreensão não ganhou
corpo e manteve-se a tradicional posição.
Registre-se que já há muito, em face inclusive da elaboração da
Súmula do STF Nº 365, firmada em 16 de dezembro de 1963 – e ainda
válida – que a nossa mais alta Corte de Justiça entende que pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular, pelos argumentos
anteriormente aduzidos.
Os Tribunais brasileiros, vez por outra, enfrentam a matéria e têm
se posicionado nesse mesmo sentido. Assim, a possibilidade, a aptidão
para o gozo dos direitos políticos é condição inafastável para que uma
pessoa possa figurar como autor popular, provando, documentalmente, a
sua qualidade de eleitor. Somente desta maneira poderá figurar no pólo
ativo da demanda.
Uma questão relevante a ser discutida diz respeito à possibilidade
de o menor de 21 anos figurar no pólo ativo da demanda sem assistência,
como se exige nos demais casos do processo.
O questionamento terá que ser respondido afirmativamente, porquanto foi a própria Constituição Federal que estabeleceu a situação singular de autor popular. Se a cidadania, no direito brasileiro, é comprovada
com o título de eleitor ou documento equivalente, mesmo o menor de 18
anos e maior de 16, caso já seja eleitor, poderá ingressar com a ação
popular sem necessidade alguma de assistência 19 . Diante do exposto, é de
se concluir que no vocábulo cidadão, constante do art. 5º, LXXIII da
Lei das leis, encontra-se presente tanto a legitimatio ad causam, como a
legitimatio ad processum. Como a Lex Legum conferiu ao maior de dezesseis
anos a possibilitar de votar, de ser eleitor, como expressão de um direito
político, não poderíamos partir para uma interpretação restritiva, negando seu direito de, livremente, estar em juízo, na defesa da coletividade.
Não há necessidade alguma de assistência 20 .
Evidentemente que não estamos nos referindo ao jus postulandi,
pois essa condição pressupõe uma habilidade técnica, a condição de advogado. O autor popular ingressará em juízo, através de advogado legalmente constituído.
Em face de tudo que foi argumentado no presente item, estariam
excluídos da condição de autor popular, portanto:
a) Os estrangeiros;
b) Os nacionais não eleitores;
c) As pessoas jurídicas em geral, inclusive os partidos políticos,
sindicatos ou associações civis; e
d) Os nacionais que estejam privados temporária ou definitivamente do exercício dos direitos políticos.
4. O MINISTÉRIO PÚBLICO E O PROCESSO DA AÇÃO POPULAR:
Com a promulgação da Carta Magna de 1988, o Ministério Público foi erigido à condição de defensor da ordem jurídica, essencial à função jurisdicional do Estado, cabendo-lhe também a defesa do regime democrático.
O órgão ministerial, antes mesmo do advento da vigente Lei Maior, já funcionava no processo judicial na qualidade de órgão agente ou
órgão interveniente (custos legis). Em determinadas ações, como o mandado de segurança, verbi gratia, por determinação legal, funcionava obrigatoriamente, sob pena de nulidade de todo o processo.
A lei que regula a ação popular, desde a sua promulgação nos idos
de 1965, já estabelecia a necessária participação do Ministério Público. A
intervenção do órgão promotorial passou a ser obrigatória e o seu não
chamamento à ação traria um vício insanável21 ao processo.
Com a nova Constituição – e elevado o Ministério Público ao
patamar de guardião do regime democrático – com muito mais sentido a sua participação no processo da ação popular, porquanto tal ação se
constitui em instrumento de controle dos atos administrativos particularmente, quando lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
Os bens tutelados pela Lei da Ação Popular guardam uma certa
identificação com aqueles previstos na Lei da Ação Civil Pública (Lei nº
7.447, de 24 de junho de 1985 - meio ambiente e patrimônio histórico),
cuja utilização foi confiada ao Ministério Público, sem no entanto ser-lhe
atribuída legitimidade ativa privativa.
É de se averbar que, conforme preceitua Lei Orgânica Nacional
do Ministério Público (Lei nº 8.625, de 12 de março de 1993), incumbe,
também, ao Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil
pública para a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao
patrimônio público ou à moralidade administrativa do Estado ou do
Município, de suas administrações indiretas ou fundacionais ou de entidades privadas de que participem (art. 25, IV, “b”). A presente atribuição é
decorrência do mandamento constitucional que confere ao Ministério
Público a função institucional de promover o inquérito civil e a ação civil
pública para a proteção do patrimônio público e social (art. 129, III –
CF).
Recorde-se, ainda, que a Lei Nº 8.429, de 02 de junho de 1992
(Lei de Improbidade Administrativa) visa proteger o patrimônio público
(lesão ao erário) e consagra legitimidade ativa ad causam ao Ministério
Público para promover a ação principal e medidas cautelares respectivas.
Assim, em face das disposições jurídicas indigitadas, dispõe o Ministério Público de atribuição para, na qualidade de órgão agente, promover ações buscando proteger o patrimônio público e social, o meio
ambiente e o patrimônio histórico, numa verdadeira identidade de
objeto com o que pretende tutelar a Ação Popular.
Diversa, no entanto, é a posição processual do órgão ministerial no
processo da Ação Popular. Considerando a legitimidade ativa específica
para quem possui a condição de cidadão, o Ministério Público não está
autorizado a ingressar com o instrumento processual em estudo.
Deverá participar como órgão interveniente, exercendo a função, como preceituam alguns, de parte pública autônoma22 .
Conforme os ensinamentos de José Afonso da Silva23 , as atividades ou funções do Ministério Público serão de dois tipos: obrigatórias e
facultativas. Em relação às atividades obrigatórias, a Lei de regência
atribui ao Ministério Público deveres; no que pertine às facultativas,
consagra direitos, faculdades.
Ingressa o Ministério Público no processo da ação popular logo na
fase inicial, visto que ao despachar a inicial o juiz ordenará, além da citação dos réus, a intimação do representante do Ministério Público (art.
7º, I, “a” da Lei nº 4.717/65). Com tal ato processual toma conhecimento da ação e tem o dever constitucional e legal, como custos legis (defensor
da ordem jurídica) e, notadamente, como curador do patrimônio público e social, de verificar a regularidade do processo, argüindo eventuais falhas detectadas.
Pela dicção do § 4º da Lei nº 4.717/65 é dever do Ministério
Público acompanhar todas as fases do processo, cabendo-lhe:
a) Apressar a produção da prova; e
b) Promover a responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela
incidirem.
Desincumbindo-se da função constante do item “a”, deverá, ainda, providenciar para que as requisições determinadas pela autoridade
judiciária sejam atendidas no prazo consignado.
Um outro aspecto importante é a condição que poderá ser assumida pelo membro do Ministério Público: sucessor do autor popular.
Logo, se o autor desistir da ação ou não promover o seu adequado andamento por desídia, serão publicados editais, ficando assegurado a qualquer cidadão, bem como ao representante do Ministério Público promover o prosseguimento da ação (art. 9º, da Lei nº 4.717/65)24 . Na
hipótese, entendemos ser faculdade e não dever.
Evidentemente que, sem embargo da vedação constante da parte
final do art. 6º, § 4º, da multi-referida lei, onde preceituou o legislador
ordinário que é defeso ao Ministério Público assumir a defesa do ato
impugnado ou de seus autores, isso não quer dizer que não possa se
manifestar, quando do seu parecer final, pela improcedência da ação.
Por fim duas últimas observações:
1ª) Das sentenças e decisões proferidas contra o autor da ação
suscetíveis de recurso, poderá recorrer qualquer cidadão e o Ministério
Público (art. 19, § 1º - Lei nº 4.717/65); e
2ª) Caberá, ainda, ao Ministério Público promover a execução da
sentença condenatória, caso o autor popular assim não proceda no
prazo de 60 (sessenta) dias da publicação da sentença de segunda instância (art. 16 – Lei nº 4.717/65).
Resumindo, diríamos, na linha da jurisprudência 25 que o parquet, na
ação popular, tem funções múltiplas: fiscal da lei; parte principal
(promoção da responsabilidade civil ou penal quando for o caso); substituto do autor ou seu sucessor.
5. OUTRAS QUESTÕES POLÊMICAS:
Ao final desse trabalho, elegemos duas outras questões que reputamos relevantes para o estudo da matéria.
A primeira diz respeito ao foro competente para o processamento
da ação e a segunda se relaciona à possibilidade do controle difuso da
constitucionalidade.
A Lei nº 4.717/65, no seu art. 5º, consagra uma nítida regra de
competência: “conforme origem do ato impugnado, é competente para
conhecer da ação, processá-la e julgá-la o juiz que, de acordo com a organização judiciária de cada Estado, o for para as causas que interessem à
União, ao Distrito Federal, ao Estado ou ao Município”.
Como na ação popular, na parte passiva (réus ou requeridos), poderemos ter pessoas públicas ou privadas e todos, enfim, aqueles referidos no art. 1º da Lei nº 4.717/6526 , o foro competente para processar e
julgar a ação popular será a Justiça Estadual ou a Justiça Federal.
Dependerá, portanto, da presença ou não, no pólo passivo da demanda
da União, entidade autárquica ou empresa pública federal. Em caso positivo, nos termos do art. 109, I da Constituição Federal, a competência
será da Justiça Federal. Não sendo detectado o interesse da pessoa jurídica de direito público federal ou de entes federais, competente será a
Justiça Estadual. Havendo, no entanto, interesses conjugados (União e
Estado), a competência também será da Justiça Federal (§ 2º do art. 5º Lei nº 4.717/65).
Firmada a competência, estadual ou federal, a ação será processada sempre no primeiro grau de jurisdição, mesmo que estejam
envolvidas autoridades que, em ações outras, como por exemplo no
Mandado de Segurança, teriam foro privilegiado por prerrogativa de função. A matéria já foi apreciada sucessivas vezes pelo Supremo Tribunal
Federal27 e, em todas as oportunidades, decidiu nesse sentido, inclusive na
hipótese de ser o ato impugnado de autoria do Presidente da República.
Mesmo nessa situação firmou-se o entendimento de que o juízo competente é o do primeiro grau de jurisdição.
É interessante destacar, como acréscimo, que o Supremo Tribunal
Federal, apreciando a matéria, deliberou que a competência deve ser aferida
não pela origem do ato a ser anulado, mas pelo fim a que ela visa.
Assim, julgando caso específico sob a sua apreciação, que envolvia matéria eleitoral, definiu a competência para a Justiça Eleitoral, fazendo-nos
concluir que não é somente a Justiça Comum que está autorizada a processar e julgar ações populares.
Após o desenvolvimento de todos os aspectos abordados, apresentaremos uma última observação, concluindo o presente trabalho, que não
teve a pretensão de esgotar a matéria e sim suscitar alguns questionamentos
relevantes sobre o tema.
Muito se discute se na ação popular seria possível o controle difuso
da constitucionalidade.
O controle da constitucionalidade, no Brasil, poderá ser levado a
efeito por via de Ação Direta ou por via de exceção ou defesa. O primeiro caminho ficou conhecido como controle concentrado e o segundo,
como controle difuso.
O controle concentrado, operacionalizado pela Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIn), visa o controle abstrato de leis e atos
normativos editados em incompatibilidade com a Constituição Federal. É
o controle da lei em tese, de competência privativa e originária do Supremo Tribunal Federal. A decisão reconhecerá a nulidade da norma impugnada, com eficácia erga omnes, vinculante e ex tunc.
O controle difuso ou incidental é confiado a qualquer órgão do
Poder Judiciário: juízes e tribunais. Tal modalidade de controle ocorre
sempre no caso concreto, como forma de defesa de direitos individuais
ou coletivos. Funciona como uma questão prejudicial ao mérito da demanda, e a decisão operará efeitos inter partes.
O controle incidenter tantum poderá ser suscitado em qualquer ação
e em qualquer grau de jurisdição.
Há quem sustente a impossibilidade de se efetuar o controle difuso
na ação popular, alegando que haveria usurpação da competência do
Supremo Tribunal Federal.
Não é o que pensamos.
Na Ação Popular, como já explicitado, se impugna um determinado ato, individualmente considerado, levando em conta a lesividade aos
bens por ela tutelados. Se esse ato está fundamentado em uma norma
que padece do vício da inconstitucionalidade, tal situação será aferida
como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio prin-
cipal. Esse já é o atual entendimento da nossa mais alta Corte de Justiça28 .
Objetivando deixar bem claro a possibilidade processual aqui defendida, permitimo-nos transcrever ementa de decisão do Supremo Tribunal Federal que, apreciando a questão, concluiu, cristalinamente, pela
viabilidade do controle difuso em sede de ação popular:
“A instauração do processo de ação popular constitui meio instrumentalmente
adequado para a realização, pela via difusa, da fiscalização concreta de
constitucionalidade, em ordem a permitir a qualquer magistrado a resolução da controvérsia cujo fundamento imponha, a esse órgão do Poder Judiciário, para efeito de
acertamento do litígio, a necessidade de prévio reconhecimento da incompatibilidade
vertical dos atos do Poder Público com o texto da Constituição da República” (STF
– RCL 721-0/AL, DJU de 19.02.98, p. 08).
O entendimento encontra amparo também na doutrina, expressa,
por exemplo, nas lições de Guilherme Amorim Campos Silva e André
Ramos Tavares29 .
6. SÍNTESE CONCLUSIVA:
De tudo que foi exposto, é de se concluir:
1º) A ação popular é um instrumento processual apto para se buscar a anulação de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, e ao patrimônio histórico e cultural;
2º) O cidadão, isto é, aquele que é eleitor, no gozo de seus direitos
políticos, é o único que dispõe de legitimidade ativa ad causam para ajuizar
ação popular;
3º) O manejo da ação popular somente será possível desde que
presente o binômio ilegalidade-lesividade;
4º) No processo da ação popular poderá ser impugnado, quando
lesivo, o ato administrativo, stricto sensu ou o que lhe faça as vezes, originário de quaisquer dos poderes estatais;
5º) O Ministério Público funcionará no processo da ação popular
tanto na qualidade de custos legis, como na condição de órgão agente, visando promover a responsabilidade penal e civil dos que nela incidirem.
Deverá apressar a produção probatória, podendo funcionar como sucessor do autor popular;
6º) Para o regular processamento da ação popular o foro competente será sempre o do lugar do dano (Justiça Federal ou Estadual), no
primeiro grau de jurisdição;
7º) É perfeitamente possível o controle difuso da constitucionalidade
na ação popular, pois decisão prejudicial ao mérito da demanda.
Essas as considerações que reputamos pertinentes para o estudo
da Ação Popular Constitucional.
Ação Popular Constitucional. São Paulo: RT, 1968, p. 02.
Apud José da Silva Pacheco. O Mandado de Segurança e outras
Ações Constitucionais Típicas, 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1998, p. 518.
3
Apud José Afonso da Silva. Op. cit. , p. 15.
4
Instrumentos de Tutela e Direitos Constitucionais. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 94.
5
Em decisão mais recente o STF (MS-23.182/PI – DJU
03.03.2000) ratificou a jurisprudência da Suprema Corte e manteve o
entendimento.
6
Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de
Injunção, Habeas Data, 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1992, p. 94.
7
Os Writs na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 1989, p. 140.
8
Habeas Corpus, Mandado de Segurança, Mandado de Injunção, Habeas
Data, Ação Popular - As Garantias Ativas dos Direitos Coletivos, 5. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1998, p. 346.
9
Ob. cit., p. 96.
10
RMS-23.657, noticiado no Informativo STF nº 195 e publicado
no DJU de 01.08.2000.
11
O Supremo Tribunal Federal, expressamente, reconhece que
contra atos de conteúdo jurisdicional revela-se inadmissível o ajuizamento
de ação popular pelos argumentos antes declinados. Só é possível contra
atos de conteúdo eminentemente administrativo. Registra, também, a jurisprudência que é incabível ação popular para modificar decisão judicial
com força de coisa julgada (TRF – 3ª Turma, REO 106.916-RJ, DJU de
01.1087, p. 21.010).
12
Ob. cit, pp. 95/96.
13
Como exemplos de leis de efeito concreto poderíamos citar aquela
que considerada de utilidade pública uma determinada associação de
moradores; a que dá nome a uma rua; a que desapropria bens; a que
concede isenções; aspectos específicos das leis orçamentárias anuais, etc..
1
2
RMS-23.657, noticiado no Informativo STF nº 195 e publicada
no DJU de 01.08.2000. Manifestando-se pela impossibilidade de utilização da ação popular contra ato tipicamente jurisdicional José Afonso da
Silva, ob. cit., p.130; Hely Lopes Meirelles, ob. cit., pp.122/123; José
Cretella Junior, ob. cit., p. 128 e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 10 ed. São Paulo: Atlas, p. 540).
15
Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Apelação Cível
19990110762267APC DF, decisão em 27.05.2002, DJU de 21.08.2002.
16
ADPF-17, noticiada no Informativo STF nº 243 e publicada no
DJU de 28.09.2001.
17
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, julgando a Remessa
de Ofício 20000110431685RMO no dia 09.05.2002 (DJU de 12.06.2002),
definiu a legitimidade do autor popular (cidadão – nacional no gozo dos
direitos políticos), como também o documento comprobatório necessário: título de eleitor, não bastando a Carteira de Identidade ou do CPF
para suprir eventual falha.
18
Hely Lopes Meirelles. Ob. cit., p. 88.
19
O art. 14, §1º, II, “c” da Constituição de 1988 estabelece que os
maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos podem se alistar
como eleitores, facultativamente.
20
Ver nesse sentido as lúcidas lições de José Afonso da Silva, ob.
cit., pp. 181/182.
21
Consoante registro da nota 2a. ao art. 6º da Lei de Ação Popular
no Código de Processo Civil e legislação processual em vigor de Theotônio Negrão,
32 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 1035, “anula-se o processo desde o
momento em que deixou de ser intimado o MP (RJTJESP 114/188)”.
22
Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 98, leciona que “o Ministério
Público tem posição singular na ação popular: é parte pública autônoma”.
23
Ob. cit., pp. 199/200.
24
Eis o texto expresso da Lei: “Se o autor desistir da ação ou der
motivo à absolvição de instância, serão publicados editais nos prazos e
condições previstos no art. 7º, II, ficando assegurado a qualquer cidadão,
bem como ao representante do Ministério Público, dentro do prazo de 90
dias da última publicação feita, promover o prosseguimento da ação”.
25
Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Apelação Cível
20010150053118APC DF, decisão em 27.05.2002, DJU de 21.08.2002.
26
Ver item 2 do presente trabalho.
27
AO-772, noticiado no Informativo STF nº 215, decisão em
14
19.12.2000. Em diversos acórdãos o STF decidiu que o STF não dispõe
de competência para julgar ação popular (PET-2018, Informativo STF nº
199; PET-2239, Informativo STF nº 216; AGRPER-2018/SP, DJU de
16.02.01; RMS-23.657 e Informativo STF nº 195)
28
RCL-664, noticiada no Informativo STF nº 269, decisão em
25.04.2002; RE-100.354/SC, DJU de 01.02.85; ADPF-17, noticiada no
Informativo STF nº 243, DJU de 28.09.2001.
29
Extensão da Ação Popular enquanto direito político de berço constitucional elencado no título dos direitos e garantias fundamentais dentro de um sistema de
democracia participativa, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Político, nº 11/118-119. São Paulo: Revista dos Tribunais, citado por Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo: Atlas,
2002, p. 431.
AS CONSEQUÊNCIAS DA SUSPENSÃO DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO
E JULGAMENTO NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
Rosa Maria Mattos Alves de Santana Britto,
Juíza de Direito do 2º Juizado Especial Cível da
Comarca de Aracaju/SE
Art. 51. Extingue-se o processo, além dos casos previstos em lei:
I- QUANDO O AUTOR DEIXAR DE COMPARECER A QUALQUER DAS AUDIÊNCIAS DO PROCESSO;
Aparentemente, o texto legal acima transcrito não traz qualquer
dúvida acerca do momento da sua aplicação, entretanto, na prática, tal
dispositivo está sendo utilizado, data maxima venia, de modo inadequado.
A Lei nº 9.099/95 dispõe sobre o trâmite do processo cível de sua
competência, disciplinando, em síntese, quatro fases processuais distintas:
- fase postulatória ;
- fase conciliatória;
- fase instrutória;
- fase decisória.
Inexistindo êxito na sessão de conciliação, imediatamente será realizada a audiência de instrução e julgamento, desde que não resulte prejuízo para a defesa (art.27). Caso não possa ser realizada imediatamente a
instrução do feito, será designada nova data, intimando-se as partes, seus
patronos e eventuais testemunhas.
De logo, observa-se que a Lei dispõe acerca da existência de duas
audiências distintas: uma a audiência de conciliação (sessão de conciliação) e a outra a audiência de instrução e julgamento.
Caso o autor deixe de comparecer a qualquer uma das duas audiências, sem motivo justificado, o processo será extinto, sem a apreciação
do mérito, nos termos do art.51, inciso I da Lei n.9.099/95.
A polêmica surge a partir do momento em que a audiência de
instrução e julgamento, já iniciada, inclusive com a apresentação da con-
testação, é suspensa, sendo designada nova data para a sua continuação.
Neste momento cabe um adendo, no sentido de que, em regra, a
audiência de instrução e julgamento tem o seu início e o seu encerramento no mesmo dia, ou seja, é proposta nova conciliação, não obtido o êxito,
é colhida a contestação, ouvidos os depoimentos das partes e de suas
testemunhas, encerrada a instrução , e prolatada a sentença.
Excepcionalmente, acontecem situações em que a audiência tem
que ser suspensa, seja pela existência de pedido contraposto (art.31, parágrafo único), seja por excesso de documentos apresentados pela defesa
que impossibilite a manifestação imediata do pleiteante, seja pela ausência
de testemunhas devidamente intimadas ou por qualquer outro motivo
relevante.
Na data e horário designados para a continuação da audiência de
instrução e julgamento, o autor não comparece, sem apresentar qualquer
justificativa, qual a solução para esta situação?
A questão aparenta ser de facílima solução, aplica-se, no caso, o
disposto no art.51, inciso I do diploma legal multicitado, ou seja, o processo será extinto , sem apreciação do mérito, em virtude do autor ter deixado de comparecer a uma das audiências do processo.
A questão é mais complexa do que aparenta, não sendo essa a
solução mais acertada, uma vez que contraria as lições básicas de processo civil.
A priori , a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, quanto ao
procedimento cível, prevê apenas a realização de duas audiências distintas: a audiência de conciliação e a de instrução e julgamento, as duas
realizadas na mesma data, ou em datas distintas, entretanto de modo
único, sem qualquer previsão de o ato ser desdobrado ou partilhado.
Em face dos dispositivos legais contidos na legislação específica,
têm-se entendido que a audiência de instrução e julgamento quando
suspensa , dando ensejo à designação de nova data para a sua continuação
, dá origem a uma nova audiência de instrução e julgamento , ou seja, um
processo em sede de Juizados Especiais Cíveis poderia ter duas , três ,
cinco , ou mais audiências da mesma natureza, sem que jamais tivesse
continuação e a ausência do autor, a qualquer das “audiências de instrução”, causaria a extinção do feito.
Tal entendimento é processualmente equivocado uma vez que não
há como se falar em múltiplas audiências de instrução e julgamento em
um mesmo processo. Existe, sim, apenas uma única audiência que pode
ser suspensa, partilhada, desdobrada, para ser continuada em datas e horários distintos, até o seu efetivo encerramento.
Segundo o que dispõe o art.455 do CPC:
Art.455. A audiência é una e contínua. Não sendo possível
concluir, num só dia, a instrução, o debate e o julgamento, o juiz marcará o seu
prosseguimento para dia próximo. – grifos nosso.
Comentando acerca da audiência de instrução e julgamento, os
Professores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, in Manual
do Processo de Conhecimento – A tutela jurisdicional através do processo de conhecimento – Editora Revista dos Tribunais, 2001, fls.417 e 418, dissertam in
verbis:
13.2 A unidade da audiência de instrução e julgamento e a possibilidade de seu desdobramento.
A audiência de instrução e julgamento é una e contínua. Apenas
quando não é possível concluir, num só dia, a instrução, o debate e o
julgamento, é que o juiz marcará o seu prosseguimento para o dia próximo (art.455 do CPC).
Note-se que a continuação da audiência não pode ser confundida com uma segunda audiência. Assim, se o interessado não
apresentou, no prazo de cinco dias antes da audiência, o rol de testemunhas, precisando-lhes o nome , a profissão e a residência (art.407 do
CPC), não se abre , apenas porque a audiência foi desdobrada, novo
prazo para a indicação, ou a livre substituição, das testemunhas. Desta
forma, se o interessado deixa de arrolar dez testemunhas na oportunidade em que pode fazê-lo (art.407, parágrafo único, do CPC), arrolando,
por exemplo, apenas cinco, ele não poderá arrolar mais cinco testemunhas apenas porque a audiência foi desdobrada para nova data.
Porém, cabe realizar a diferença entre a audiência que começou e foi desdobrada e a audiência designada para determinada data,
mas que sequer teve o seu início. Nesse caso, ao contrário do outro, em que a
audiência deve continuar, abre-se nova oportunidade para a parte apresentar rol de
testemunhas. – grifos nosso.
Saliente-se que, em sede de Juizados Especiais Cíveis, a situação de
arrolar testemunhas é totalmente diversa da prevista no CPC, devendo
ser ressaltado que o texto acima foi transcrito com o intuito de frisar a
inexistência de audiências de instrução estanques no mesmo processo,
sendo a mesma sempre contínua.
Nesta mesma linha de raciocínio disserta o insigne Vicente Greco
Filho, in Direito Processual Civil Brasileiro, 2º Volume, 10ª edição, 1995, às
fls.231:
A audiência é una e contínua. Não sendo possível concluir num só dia a
instrução, o debate e o julgamento , o juiz marcará o seu prosseguimento para dia
próximo, mas não se tratará de nova audiência , mas sim da mesma
audiência em continuação. – grifo nosso.
O professor Humberto Theodoro Júnior, no seu Curso de Direito
Processual Civil, 4ª edição, Editora Forense, às fls.529, analisando o desdobramento da audiência de instrução e julgamento, ensina:
Una, na expressão do Código, quer dizer que, embora
fracionada em mais de uma sessão, a audiência é tratada como uma
unidade, um todo. Há, assim, uma continuidade entre os atos
fracionados, e não uma multiplicidade de audiências, quando não é
possível iniciar e encerrar os trabalhos numa só sessão. – grifo nosso.
Corolário desta regra é que, se houver motivo para nulidade da
primeira sessão, todas as demais posteriormente realizadas estarão afetadas, pois o vício atingirá a audiência como um todo.
Desse modo, existe apenas uma única audiência de instrução e
julgamento que, embora seja una, pode ser desdobrada, por consequência,
equivocado o entendimento de que , ausente o autor no prosseguimento da
audiência de instrução e julgamento, o feito deva ser extinto com fundamento do art.51, inciso I.
Assim, tecnicamente, o correto é, mesmo ausente o autor à continuação da audiência de instrução, sem motivo justificado, o ato deve ser
praticado normalmente, com a colheita da prova a ser produzida pela
defesa, com o posterior encerramento da instrução e a prolação da sentença, inclusive com a apreciação do mérito.
Caso , nem o autor, nem o requerido, compareçam à continuação
da audiência de instrução e julgamento, a mesma deverá ser aberta, constar as ausências, ser encerrada e o processo será julgado no estado em
que se encontrar, com as provas que já tiverem sido produzidas até aquele momento.
Qualquer decisão em sentido contrário à realização da audiência,
no sentido da extinção do feito, com base no multimencionado art.51,
inciso I, ao que parece, além de tecnicamente incorreta, é injusta, pois dá
ensejo ao processo ficar ao livre e total arbítrio do demandante, ou seja,
ele apresenta a reclamação, tem conhecimento do inteiro teor da contestação, das provas apresentadas por seu oponente, observa que as mesmas
lhe são desfavoráveis, consequentemente poderá ter inacolhida a sua
pretensão e , para evitar a apreciação do mérito, provoca a extinção do
processo sem o seu julgamento meritório.
A Lei nº 9099/95 dispõe de dois momentos distintos, independentemente do requerimento de desistência, para o autor provocar a extinção
do feito sem a apreciação do mérito, quais sejam: a audiência ou sessão de
conciliação e a audiência de instrução e julgamento, entretanto esta iniciada, não pode mais o autor dar causa à extinção do processo por sua
ausência, deve o mesmo obter a prestação jurisdicional. Tal posicionamento
tem que ser adotado não apenas em respeito ao órgão jurisdicional , como,
e principalmente , em respeito ao requerido que produziu a sua defesa,
tendo direito à apreciação da mesma com a solução do litígio pelo Poder
Judiciário.
Assim, iniciada a instrução, designada data para a continuação da
mesma, independentemente do comparecimento do demandante, o ato
deverá ser praticado, sendo proferida a sentença a posteriori.
Ultrapassada a situação de o autor não comparecer à continuação
da audiência de instrução e julgamento, chega o momento da análise da
situação de o requerente comparecer à continuação do ato e o requerido
não, apesar de ofertada a contestação. Aplica-se à revelia ou não?
O art.20 da Lei nº 9.099/95 dispõe:
Art.20. Não comparecendo o demandado à sessão de conciliação
ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros os
fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção
do juiz.
Pelos mesmos argumentos já lançados, caso o demandado não
compareça à audiência de conciliação, de logo é decretada a sua revelia,
ressalvada a hipótese legal da convicção contrária do juiz, o mesmo ocorrerá quando o demandado , mesmo tendo comparecido à sessão de conciliação, deixar de comparecer à audiência de instrução e julgamento.
Caso tenha sido apresentada a contestação, e a audiência de instrução e julgamento tenha sido suspensa, a ausência do demandado na continuação do ato não pode ensejar a decretação da sua revelia, mas sim a
audiência deve ocorrer normalmente, sendo colhida a prova do autor ,
apenas, com o consequente julgamento do processo com a apreciação
do mérito.
Em conclusão ao tema objeto deste diminuto estudo, tem-se que,
na continuação da audiência de instrução e julgamento, não cabe a incidência dos arts. 20 e 51, inciso I , ambos da Lei nº 9.099/95.
CRIMINALIDADE VIRTUAL
José Anselmo de Oliveira, Juiz de Direito do
TJSE,professor da Universidade Tiradentes e da
Escola Superior da Magistratura de Sergipe.
Resumo: A importância do Brasil legislar sobre os crimes virtuais
ou cibercrimes está na adequada prevenção e punição desses delitos que
cada vez mais se aperfeiçoam diante da rapidez das mudanças tecnológicas.
Palavras-chaves: crimes virtuais – direito penal – informática e
direito penal.
INTRODUÇÃO
O Brasil necessita urgentemente de uma legislação penal para os
crimes praticados através da rede mundial de computadores.
A importância da informática no final do século passado e neste
início de milênio é indiscutível, tanto para o avanço do conhecimento
humano como das demais conquistas tecnológicas.
Ao mesmo tempo, a criminalidade também com acesso às novas
tecnologias passou a praticar delitos usando os recursos da informática.
O Brasil tem um Código Penal de 1940 e que entrou em vigor em
1941, escrito sob as idéias e as realidades da década de 30 do século
passado, portanto totalmente inadequado para o enfrentamento das questões como os crimes virtuais.
Todavia, alguns delitos onde os resultados ilícitos são encontrados
pela experiência da política-criminal, como é o caso do dano ao patrimônio,
a violação da privacidade, a obtenção de lucros com o trabalho de outrem, só para citar estes, podem ser tratados com a lei penal existente.
Mas, nem todas as condutas estão albergadas pela legislação penal
codificada, e nem mesmo pela legislação penal especial, deixando um
campo livre para a prática de crimes inabituais e que podem permanecer
impunes.
Impõe-se ao Estado, que tem o poder legiferante, a solução. Solução que passa pela discussão na sociedade civil e no Legislativo, para
garantir um resultado digno de um Estado Democrático de Direito.
1. A TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO E A INTERNET
Desde o ano de 1979 quando a IBM lançou o computador pessoal
PC-XT até novembro de 1998 quando foi lançado o Pentium III, capaz
de executar mais de 400 milhões de operações por segundo a uma velocidade superior a 500 MHZ, podendo hoje superar a casa de 1 GHZ,
definitivamente entramos na era da informação.
O desenvolvimento de tecnologias voltadas para interligação dos
computadores, as poderosas redes, propiciaram a existência de quase (sic)
um mundo paralelo, virtual, a coexistir com o mundo físico literalmente
vagaroso, hermético, dividido por fronteiras (físicas, culturais, ideológicas, políticas, econômicas e tributárias).
A rapidez da coleta, análise e disseminação de dados pelas
corporações e pelo Estado têm proporcionado benefícios e, na mesma
proporção, malefícios para a sociedade, como afirma GUSTAVO TESTA CORRÊA1.
O conceito técnico de internet nos será útil para a compreensão do
fenômeno de comunicação. Nos Estados Unidos, Flórida, o Procurador
Geral do Estado definiu como “ A Internet é uma rede mundial, não
regulamentada, de sistemas de computadores, conectados por comunicações de fio de alta velocidade e compartilhando um protocolo comum
que lhes permite comunicar-se”2.
Importante que se lembre aqui o fato de a World Wide Web, também conhecida como WWW não ser a Internet, esta é o meio pelo qual se
torna possível a comunicação entre os computadores.
Do ponto de vista econômico, a rede mundial movimentará um
crescente mercado superior a 50 bilhões de dólares americanos até o ano
de 2005, interligando no mundo inteiro cerca de 200 milhões de pessoas,
número que deverá alcançar até 2010 a casa dos 700 milhões. Esses
expressivos números revelam o potencial de relações econômicas e jurídicas que prescindem a sua operacionalização, empresas de hardware e de
software, provedores de acesso, empresas de comércio virtuais entre outras.
Paralelamente ao fantástico mundo da telemática, surgiu nos anos
70, através de Ted Nelson3, a idéia do hipertexto, cujo princípio, simples,
era a de através de um documento cujas palavras selecionadas
direcionassem o usuário para outro documento em que houvesse uma
relação com aqueles vocábulos. A idéia era conectar toda a informação
mundial em um sistema gigante de hipertexto.
Ensina GUSTAVO TESTA CORRÊA que a web ou WWW é um
conjunto de padrões e tecnologias que possibilitam a utilização da Internet
por meio dos programas navegadores.
Em março de 1989, no Laboratório de Física de Genebra, foi
proposto por Tim Bernes-Lee o desenvolvimento de “sistema de
hipertexto” que possibilitasse a troca de informações entre grupos de
pesquisadores em diferentes locais, sendo apresentado o projeto um ano
depois, em outubro de 1990. Em 1991 já era anunciada pelo Laboratório
de Física de Genebra a disponibilidade do programa WWW para toda a
comunidade científica que pesquisava física e energia. Mas, é em 1993 o
marco do período de desenvolvimento contínuo da WWW, atualmente
possibilitando a comunicação sem fios de imagens e sons, e a já anunciada
comunicação tridimensional.
Este crescimento vertiginoso fez com que os Estados nacionais
cuidassem de ordenar as novas relações jurídicas e institutos como os
domínios ou endereços eletrônicos e seus respectivos registros, entre outras. No Brasil os Ministérios das Comunicações e da Ciência e Tecnologia
constituíram em 1995 o Comitê Gestor Internet com a finalidade, entre
outras, de tornar efetiva a participação da sociedade nas decisões sobre a
implantação, administração e uso da internet.
Neste ponto, começam a surgir questões ligadas ao direito autoral,
criminal e tributário, entre outras relativas às garantias fundamentais previstas na Constituição da República Federativa Brasileira.
Neste trabalho, a ênfase será especificamente para as questões do
Direito Penal.
2.INFORMÁTICA E DIREITO PENAL
O surgimento da tecnologia da informação como evolução da cultura ocidental dos átomos, hoje assentada na cultura dos bits, a uma velocidade cada vez maior, tem sido um desafio para o direito de um modo
geral.
É que de meio físico das relações jurídicas no caso da cultura dos
átomos, sua evolução insurgiu-se contra este simples “meio” para se cons-
tituir numa específica relação jurídica nova.
Rompem-se com a tecnologia da informática as variáveis de tempo e espaço que permitiam uma definição clássica do Direito e sua aplicação. Não há mais fronteiras. Os limites físicos que limitavam as ações
humanas foram desfeitos. Não há submissão sequer a uma ordem jurídica determinada posto que inexistem limites espaciais.
De certo modo, o direito tradicional encontra dificuldades de ordem teórica e pragmática para enfrentar novas condutas e novas relações
que surgiram com a tecnologia da informação, especialmente com a
internet.
No campo do Direito Penal o problema é muito mais grave ainda.
Os cânones do Direito Penal se apresentam caducos e insuficientes para
enfrentarem as condutas que lesionam bens juridicamente protegidos por
falta de uma adequação legal.
Esse não é um problema do Brasil. No mundo inteiro enquanto se
tenta adequar a legislação penal para solucionar as novas exigências da
criminalidade eletrônica, a rapidez com que os programas e processos
eletrônicos se modificam, evoluem, impedem pela doutrina clássica de se
alcançar determinadas condutas.
Os problemas que de modo unívoco vem causando indignação e
perplexidade pela virtualidade do meio, são as condutas que abusam sexualmente das crianças e adolescentes, a chamada pedofilia; os crimes de
invasão de privacidade; os furtos pelos meios eletrônicos; os crimes contra os direitos fundamentais, especialmente os que difundem posturas e
idéias neonazistas que divulgam a intolerância racial e social, a violência
genocida sem fronteiras e ainda por cima anônimas.
Portanto, os crimes virtuais ou de informática, merecem por parte
dos estudiosos tanto da informática como do Direito uma reflexão. Há
necessidade de se conduzir a moderna tecnologia dentro de uma postura
ética condizente com os valores universais.
O desafio está lançado. A busca da conciliação da superação dos
limites tecnológicos de informação e a garantia do Estado Democrático
de Direito.
Quem sabe, o desafio maior mesmo não seja o de harmonizar a
transnacionalidade da internet com os ordenamentos penais locais e regionais?
Como o Direito é uma ciência cultural, com toda a certeza a perspectiva é que a esses novos fatos, que se modificam a uma velocidade até
pouco tempo impossível de se imaginar, informem a produção de novos
conceitos e normas jurídicas penais.
A grande discussão atual é se os legisladores estariam preparados
para darem corpo às normas nesta área tão volátil como a da informação. Da mesma forma, esta discussão pode, e deve, ser estendida aos
operadores do Direito de um modo geral, e em especial, aos juízes que
tem o poder da aplicação do Direito no caso concreto.
Indiscutivelmente é necessário mais que nunca discutir o tema nas
faculdades de Direito, na graduação e na pós-graduação, nas escolas superiores das carreiras jurídicas e nas próprias instituições, no Judiciário,
Ministério Público e na Ordem dos Advogados.
A informação num Estado Democrático de Direito deve servir
aos princípios democráticos. A discussão sobre computadores e redes,
que de algum modo afeta a vida de todos os cidadãos, do mais abastado
ao miserável, nem que seja para as estatísticas governamentais, ou mesmo para trivialidades como usar o telefone público deve ser de interesse
e com a participação de todos.
Ao contrário dos que vêm no avanço da tecnologia da informação
uma ameaça aos valores da sociedade estabelecida dogmaticamente nos
princípios da era industrial e do liberalismo econômico e social, é de se
perceber que existe um ganho com a democratização das informações.
A globalização já existe através do computador e que as fronteiras
ainda existem por uma questão de tempo e que tudo isso é um ensaio
para uma nova sociedade alicerçada em novos paradigmas, inclusive de
ordem criminal.
3. A TEORIA DO DELITO E OS CHAMADOS CRIMES VIRTUAIS
A sociedade da era da informação descobriu com a popularização
do uso do computador e da internet o inevitável conflito de interesses
emergentes a exigir uma posição do Direito. Em especial, do Direito Penal. Não foi por outro motivo que em 1994, no período de 4 a 10 de
setembro no Rio de Janeiro, foi tema no XV Congresso Internacional de
Direito Penal da A.I.D.P. 4, tratando dos crimes de computador e dos
outros crimes contra a tecnologia da informação.
Informações são riquezas, e onde houver riquezas haverá crime.
Sendo a internet um meio novo, rápido e frágil, por onde somas vultosas
transitam em operações digitais, abriram-se frentes para o chamado crime digital, interceptando e “furtando”, fraudando assinaturas digitais, cartões de crédito, além do uso da rede para alimentar a exploração da prostituição e da pornografia, inclusive infantis, da pirataria eletrônica de
software, da lavagem eletrônica de dinheiro e crime de hacking.
A preocupação com o avanço e a ousadia dos chamados crimes
virtuais ou de informática tem levado os países de todo o mundo a tentar
encontrar soluções jurídico-penais, o que não vem sendo muito fácil, tanto pelo desconhecimento e despreparo dos legisladores para discutirem
essa nova realidade e normarem a conduta dos envolvidos, como pelo
dogmatismo que marca o Direito Penal, em especial quanto à teoria do
delito.
O Direito Penal moderno tem por fundamento princípios próprios do Estado de Direito democrático, destacando-se entre eles, o da legalidade dos delitos e das penas, da reserva legal ou da intervenção legalizada5.
“O delito é uma construção fundamentalmente jurídico-penal”,
como afirma LUIZ REGIS PRADO6, apesar de ser objeto de exame por
outras ciências, a exemplo da criminologia, política-criminal, sociologia,
medicina legal.
LIZT ensinava que o “delito é o fato ao qual a ordem jurídica
associa a pena como legítima conseqüência”7, estabelecendo assim uma
relação de contrariedade entre o fato e a lei penal.
Substancialmente o delito representa uma lesão ou perigo de lesão
a um bem jurídico, de caráter individual, coletivo ou difuso. A ação ou
omissão quando se constituir de caráter danoso ou desvalor social, verificados num dado momento histórico, colhidos da experiência da vida social onde tais condutas venha tornar a vida comunitária instável e insegura.
Dogmaticamente o delito é toda ação ou omissão típica, ilícita ou
antijurídica e culpável.
Observando-se que a teoria do delito é também garantidora contra o abuso do próprio Estado, não se podendo deixar à discricionariedade
do Estado-Juiz a criminalização das condutas, por isso o princípio do
nullun crimem, nulla poena, sine lege.
Assim é que se impõe uma legislação penal adequada, no tocante à
informática, tipificando-se condutas para atender o postulado do nullun
crimen, especialmente quando estas são frutos da especialíssima atividade.
Não existe no Brasil legislação penal que conceitue os dados do
computador, e aí a possibilidade de se aplicar no caso de “hacking” a
figura típica do crime de dano, por exemplo, já se torna impossível.
Nesse tipo de crime podem existir mais de uma conduta distintas:
uma, onde o hacker destrói os dados do computador; em outras, usa o
computador para causar lesão ao patrimônio alheio, ou também copia os
dados para auferir lucros em seu benefício ou de outrem.
As condutas decorrentes do uso ou abuso dos computadores e da
internet independentemente de lei nova, dependendo da ação, poderá ser
aplicada a legislação vigente, a exemplo do que possa constituir fraude,
posto que a figura típica do art. 171, caput, CP, aplica-se sem qualquer
discussão. Outro exemplo está no caso da exploração sexual de crianças,
com a aplicação do art. 241, do ECA, que pune aquele que fotografar e
publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente, com pena de reclusão de 1 a 4 anos.
Podemos ainda elencar as disposições penais relativas aos direitos
autorais e a patentes, como exemplos de que a lei que existe é suficiente
para algumas das condutas danosas no campo da informática.
É fato incontroverso que há novidades de condutas, e que não
imaginava e nem poderia supor o legislador, e por isso, tornou-se imperioso que o mais rápido possível se tipifique estas condutas que possam
lesionar bens juridicamente tutelados.
A Itália enfrentou este problema juntamente com toda a comunidade européia, e já no período de 29 de dezembro de 1992 a 23 de
dezembro de 1993, a lei de informática italiana sofreu algumas modificações para preencher as lacunas existentes8.
Os Estados Unidos também vêm enfrentando problemas da mesma natureza, em 1986 foi promulgada a lei mais importante, chamada de
Computer Fraud and Abuse Act - Lei de Fraudes e Abusos por Computador,
na qual a tipificação das condutas delitógenas fôra dividida em categorias:
a) acessar sistemas sem autorização, com o objetivo de obter informação
governamental restrita; b) acessar sistemas sem autorização, com o objetivo de obter informação financeira restrita; c) ter a intenção de acessar,
sem autorização, qualquer computador do governo, ou qualquer computador utilizado pelo governo; e, d) transmissão de dados através de computador objetivando fins ilícitos.
Em 1996 foi promulgada a Communication Decency Act - Lei de
Decência nas Comunicações que objetiva controlar o aumento da pornografia e informações terroristas dentro da internet, responsabilizando os
provedores de acesso pelo controle, mas que por decisão judicial foi declarada inconstitucional por ferir a liberdade de expressão, princípio fundamental da Constituição norte-americana.
No Brasil a liberdade de expressão também é um direito fundamental garantido na Constituição da República Federativa brasileira, e
enfrentaremos com certeza muitas discussões todas as vezes que tivermos que tratar de questões que envolvam direitos fundamentais de um
lado e do outro a busca do controle para evitar o abuso na internet.
Um problema concreto, embora não ligado diretamente ao Direito
Penal, mas ao processo penal, é a jurisdição. Na internet os crimes podem
ser praticados à distância, de um país para outro, estabelecendo dificuldades face às questões de soberania dos Estados, quanto a competência
para julgar o infrator. Mais do que nunca é necessário se pensar em um
tratado internacional como forma de permitir, como no Pacto de San
José da Costa Rica, que o autor do crime possa ser processado por qualquer signatário independente de sua nacionalidade.
Não é desarrazoada a crítica do despreparo dos legisladores para
fazer leis contra cibercrimes. É preciso abrir o debate com a comunidade
e seus segmentos para que não nasça uma lei incapaz de ser útil à sociedade.
4.AS PROPOSTAS DISCUTIDAS NO LEGISLATIVO BRASILEIRO
No Brasil, não é diferente, só que os projetos de lei tramitam de
forma muito lenta para a importância e a rapidez com que as condutas
são alteradas. O primeiro Projeto de Lei n.º 1.713, de 1996, de autoria do
deputado federal, Cássio Cunha Lima, e até o momento nada foi definido. Arrasta-se no Senado o projeto de lei de imprensa em que também se
criminaliza algumas condutas, e também tramita na Câmara o Projeto de
Lei 84/1999 do deputado federal Luiz Piauhylino que trata também de
crimes de informática.
No Projeto de Lei 84/99 são criadas algumas figuras típicas a
exemplo do crime de dano a dado ou programa de computador (art. 8.º),
seguindo de um modo geral a experiência italiana.
Pune o acesso indevido ou não autorizado (art. 9.º), a alteração de
senha ou mecanismo de acesso a programa de computador ou dados (
art. 10), a obtenção indevida ou não autorizada de dado ou instrução de
computador ( art. 11), a violação de segredo armazenado em computador, meio magnético, de natureza magnética, óptica ou similar (art. 12), a
criação, desenvolvimento ou inserção em computador de dados ou programa de computador com fins nocivos (art. 13), e a veiculação de pornografia através de rede de computadores (art. 14).
O Projeto n.º 1.713/96 ,do deputado Cássio Cunha, trata dos
mesmo delitos do Projeto n.º 84/99.
Observando a importância da matéria, tendo em vista que todos
estamos à mercê dos crimes virtuais, inclusive o governo cujas informações e dados já foram vitimados por hackers, e o particular de maneira
geral face à automação bancária e aos serviços postos na rede mundial de
computadores, as compras pela internet e o uso dos cartões de crédito,
entre outros, o processamento além de lento não vem sendo objeto de
discussão com a sociedade civil.
Para não dizer que não existe nenhuma lei brasileira que puna
algum crime de informática, a Lei n.º 7.646, de 18 de dezembro de 1987,
que dispõe sobre os direitos autorais de programas de computador e sua
comercialização no país, em seus arts. 35 e 37, cria tipos penais específicos para punir a violação dos direitos do autor de programas de computador e a importação, exposição, depósito, para fins de comercialização de
programas de computador não cadastrados.
Estamos longe ainda do enfrentamento das questões criminais da
informática, a exemplo da investigação desses crimes. Num país onde os
crimes comuns não conseguem ser desvendados por faltar apuro técnico
na maioria das vezes, é de se preocupar quando o crime objeto da investigação é o da fina tecnologia envolvendo conhecimentos técnicos de
elevado nível.
Como se não bastasse o problema da investigação, outro deve ser
discutido em nível de elaboração legislativa, o da competência: será um
crime federal ou crime comum? O que determinará se a competência
será da Justiça federal ou da estadual?
E mais, como ficam os crimes de informática conexos com outros
como o narcotráfico, lavagem de dinheiro, crimes do colarinho branco,
entre outros? A solução será dada com a aplicação da parte geral do
Código Penal, ou terá uma regra especial?
Essas dúvidas bem que poderiam fazer parte da discussão da comissão de reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal brasileiros.
CONCLUSÃO
A título de conclusão podemos afirmar que as questões criminais
da informática são relevantes para a sociedade e os governos, se não
houver uma legislação que possa punir e assim tentar evitar a prática
dessas condutas, o risco é muito grande para os governos, os administrados e a sociedade em geral.
As informações e os dados que estão disponibilizados nos computadores no mundo inteiro podem gerar de uma catástrofe a guerras. O
perigo de essas informações caírem em mãos inescrupulosas não é virtual, é potencial.
Impotentes estão os governos e os Estados diante da rapidez e da
fluidez das comunicações na rede mundial de computadores, num
contraponto em relação à lentidão burocrática do Legislativo e da falta de
discussão ampla dos problemas com a sociedade civil, essencial quando
se busca coroar o Estado Democrático de Direito.
No Brasil, estamos atrasados. E isto pode comprometer o esforço
da sociedade brasileira no sentido de alcançar o mesmo nível na área da
informação dos países mais desenvolvidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livros
AMÊNDOLA NETO, Vicente. Direito Penal Princípio da Legalidade. Campinas: Julex, 1997.
CORRÊA, Testa Gustavo. Aspectos jurídicos da internet. São Paulo:
Saraiva, 2000.
GRECO, Marco Aurélio. Internet e Direito. São Paulo: Dialética,
2000.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
REALE JR., Miguel. Teoria do delito .São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2ª ed., 2000.
ROXIM, Clauss. Tradução de Luís Greco. Política Criminal e Siste-
ma Jurídico-Penal. Rio de Janeiro: Renovar,2000.
Artigos na Internet
ARDIZZONE, Salvatore. A Legislação Penal Italiana em matéria de
crimes de computador. htpp://neofito.direito.com.br/artigos/
DIMANTAS, Hernani. Políticos não estão preparados para fazer leis
contra cibercrimes. www.direito.com.br.
CÉSAR, Ricardo P.. Leis para regulamentar a internet se arrastam no
Congresso www.direito.com.br..
1
In Aspectos Jurídicos da Internet, São Paulo: editora Saraiva, 2000.
Citado por Gustavo Testa Corrêa, op.cit.
3
Pesquisador do MIT, Instituto Tecnológico de Massachusetts.
4
Associação Internacional de Direito Penal
5
Ver o art. 5.º, XXXIX, CF, e o art. 1.º, CP.
6
In Curso de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1999. Pág. 133.
7
VON LIZT, Franz. Tratado de Derecho Penal, II, p. 262.
8
Foram editados o decreto legislativo n.º 518, de 29.12.1992, a lei n.º 547, de
23.12.1993. O primeiro a tutelar o direito do autor dispondo penalmente sobre a
duplicação ou a manipulação abusiva dos programas, e a segunda, modificou o
Código Penal Italiano, acatando sugestões do XV Congresso Internacional de Direito
Penal e a lista mínima contida na recomendação do Conselho da Europa, de n.º 89,
de 13.09.1989.
2
OS PRINCÍPIOS E A IMPORTÂNCIA
PRÁTICA DA REFLEXÃO TEÓRICA
NO CONTEXTO PÓS-POSITIVISTA:
DESCONFIANDO DA SAÍDA FÁCIL
Francisco Alves Junior, Juiz de Direito e Professor da ESMESE
“Constituição é, nesse sentido, um espelho da publicidade e da realidade. Ela
não é, porém, apenas o espelho. Ela é, se se permite uma metáfora, a própria fonte de
luz. Ela tem, portanto, uma função diretiva eminente” (Peter Härbele)
1. Introdução 2. Antítese jusnaturalismo x positivismo jurídico 3.
O pós-positivismo 4. A tópica 5. A tópica “mitigada”: método
hermenêutico-concretizador de Hesse e Müller 6. Härbele e a “sociedade
aberta dos intérpretes da Constituição”: a conexão entre tópica e democracia 7. Os princípios na obra de Dworkin 8. Os princípios na obra de
Alexy 9. A razão comunicativa de Harbemas 10. O paradigma póspositivista 11. Um exemplo concreto: o problema da presunção de violência nos crimes sexuais em razão da idade da vítima 12. Conclusões
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo verificar se os esquemas
clássicos de silogismo, aplicados pelo método positivista de interpretação
jurídica, ainda respondem à demanda social por soluções justas.
Nesta seara, avulta a importância do estudo, identificação e reflexão teórica acerca dos princípios jurídicos, que passam a ocupar posição
de destaque no cenário jurídico.
De fato, “sem aprofundar a investigação acerca da função dos
princípios nos ordenamentos jurídicos não é possível compreender a natureza, a essência e os rumos do constitucionalismo contemporâneo”1. E
forçoso é constatar que, de há muito,
Cada vez mais, juristas vindos de todos os cantos do horizonte recorrem aos
princípios gerais de direito, que poderíamos aproximar do antigo jus gentium e que
encontrariam no consenso da humanidade civilizada seu fundamento efetivo e suficiente. O próprio fato de esses princípios serem reconhecidos, explícita ou implicitamente,
pelos tribunais de diversos países, mesmo que não tenham sido proclamados obrigatórios pelo Poder Legislativo, prova a natureza insuficiente da construção Kelseniana
que faz a validade de toda regra de Direito depender de sua integração num sistema
hierarquizado e dinâmico, cujos elementos tirariam, todos, sua vontade de uma norma
suprema pressuposta2.
Tal reflexão se mostra necessária na medida em que propicia a
crítica do sistema normativo posto, viabilizando a reconstrução da coerência esperada do mesmo, sempre a partir do viés constitucional, com
vistas à construção mais justa para o caso concreto.
O estudo se volta para análise da evolução do pensamento jurídico
contemporâneo, procurando sintetizar suas principais correntes, partindo
da antítese entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico e chegando ao
atual momento de dupla ruptura epistemológica, que se convencionou
chamar pós-positivismo.
A hipótese é de que não é mais possível a aplicação do Direito
positivo com base em pura lógica formal, sendo fundamental para a praxe jurídica a reflexão teórica concatenada com as modernas teorias que
tentam explicar o Direito contemporâneo, em busca da racionalidade prática, sob pena de frustração das expectativas normativas que emergem da
sociedade plural e hipercomplexa em que vivemos.
2. ANTÍTESE JUSNATURALISMO X POSITIVISMO JURÍDICO
O movimento positivista, aflorado a partir da vitória da Escola
Histórica do Direito, surge como antítese ao jusnaturalismo3. Esta reação
se dá a partir do momento em que o mundo ocidental mergulha no extremo desenvolvimento das ciências exatas ou da natureza. O problema do
método se mostra com vigor, exigindo das disciplinas aspirantes ao modelo de cientificidade vigente o distanciamento do sujeito cognoscente para
com o objeto cognoscitivo.
A Escola Histórica do Direito, cujo principal expoente foi Savigny,
inaugura um pensamento marcado pela individualidade e variedade do
homem, irracionalidade das forças históricas, pessimismo antropológico,
amor pelo passado e sentido da tradição4.
O jusnaturalismo, ou doutrina do Direito Natural, apoiado em bases absolutas de validade do Direito, a partir da concepção metafísica de
matriz supra-humana ou supra-legal, de caráter divino, racional ou justo,
não se afeiçoava às exigências de neutralidade e rigor metodológico então
exigidas.
Se o Direito, para o jusnaturalismo, era justificado a partir da natureza divina, da razão ou da idéia de justiça, não se observava nos diversos
ordenamentos uma correspondência de univocidade confirmadora da tese.
A reação imediata a ordenamentos que não comportassem os ideais de
Justiça da mencionada escola não eram reconhecidos como jurídicos. Tal
estado de coisas levou ao questionamento formulado pelo juspositivismo.
O jusnaturalismo, destarte, entra em crise a partir da crítica juspositivista.
Tal doutrina vê na lei formalmente editada a justificativa do Direito. O Direito seria o que é lei. “O positivismo jurídico é aquela doutrina
segundo a qual não existe outro direito senão o positivo”5. Lembra Cláudio Pereira de Souza Neto que:
Tal como ocorria na obra de Hobbes, o bom e o justo são identificados com o legal, não existindo qualquer critério externo para a aferição
da legitimidade da lei positiva. Daí resulta que o juiz deve aplicar a lei de
acordo com a vontade do legislador. De outra forma, o ideal de autonomia estaria maculado. Se o juiz realiza sobre o texto legal uma interpretação construtiva, para esta concepção, está sujeitando o jurisdicionado a
uma norma que não resultou de sua vontade, mas sim da vontade particular do juiz. Isso gera, portanto, uma situação imoral de heteronomia.
Daí resulta também um forte apego ao princípio da segurança jurídica, tão
caro a uma sociedade onde a previsibilidade da atuação estatal, bem como o respeito
aos contratos, é requisito fundamental para o desenvolvimento das atividades produtivas.6
No limite, a idéia de Justiça resultou estranha à ciência do Direito
e a evolução da doutrina apontou para os normativismos de Kelsen e
Hart.
Kelsen formulou a sua Teoria Pura do Direito, afirmando categoricamente ser este um sistema normativo lastreado no pressuposto lógico-hipotético, representado pela norma fundamental, norma que não teria bases metafísicas ou suprajurídicas, mas encontraria a sua raiz dentro
da própria lógica do sistema.
Na concepção positivista, todo o sistema jurídico encontra-se
estratificado, contendo séries de normas escalonadas hierarquicamente,
segundo critérios de supra-infra-ordenação, de modo que cada norma
tem seu fundamento de validade em outra norma que lhe é superior, ao
mesmo tempo em que serve de fundamento para uma terceira norma,
inferior a si própria 7.
As normas de mais alta hierarquia encontram-se na Constituição
do país, a qual encontra seu fundamento de validade em uma outra Constituição anterior, que por sua vez encontra fundamento de validade em
uma outra constituição, ainda mais anterior, num processo regressivo que
atinge a primeira Constituição histórica, resumindo-se a norma fundamental no seguinte enunciado: “devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve”8.
Explicava o mestre de Viena que “A ordem jurídica determina o
que a conduta dos homens deve ser. É um sistema de normas, uma
ordem normativa [...] A sua existência é independente da sua conformidade ou não conformidade com a Justiça ou o Direito ‘natural’”9. E arrematava: “A teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito”10.
Desta forma, a teoria pura kelseniana se coadunava com as aspirações de cientificidade, numa ótica fulcrada no modelo cartesiano de pensamento, sendo marcantes o silogismo e a lógica formal.
Mas Kelsen não desconhecia a possibilidade do seu método esbarrar em conteúdos interpretativos diversos, possíveis diante da análise do
texto positivo. Acontece que, diante destas várias possibilidades, o aplicador
da norma haveria de escolher uma delas, sem qualquer critério ao qual se
reconhecesse a qualidade de jurídico, movendo-se discricionariamente
dentro da chamada “moldura” da norma. A decisão judicial, neste ponto,
seria um ato de vontade, guiado por fatores sociais, políticos, econômicos
e até psicológicos, mas fugindo completamente ao terreno jurídico, de
sorte que se opera a exclusão do conteúdo material das normas do objeto
da ciência do Direito.
O direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da
qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo
ato que se mantenha dentre deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em
qualquer sentido possível [...] Só que, de um ponto de vista orientado pelo Direito
positivo, não há qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscrita na
moldura do Direito a aplicar possa ser preferida à outra. Não há absolutamente
qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito positivo – segundo o
qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada
como ‘correta’ – desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis:
possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica.11
Esta noção de decisão como ato de vontade, balizado apenas pelos
limites textuais da norma posta, a qual possuiria assim uma “textura aber-
ta”, reaparece na obra de Hart, que afirma:
A textura aberta do Direito significa que há, na verdade, áreas de conduta
em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais e ou
pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre
interesses conflituantes que variam em peso, de caso para caso. 12
Tais concepções do Direito entram em crise a partir do momento
em que, ainda que involuntariamente, foram usadas para fundamentar
intelectualmente regimes totalitários de inspiração nazi-facista.
O positivismo se revela, então, insuficiente para dar conta da
hipercomplexidade social contemporânea, marcada pelo pluralismo cultural e econômico, surgindo a necessidade de um novo paradigma13.
3. O PÓS-POSITIVISMO
Com a crise do positivismo jurídico, dá-se a superação dialética da
antítese examinada no item anterior, a qual se convencionou chamar de
pós-positivismo.
As traumáticas experiências levadas a cabo durante o Século XX,
em plena efervescência do movimento positivista, levaram a um breve
ensaio de retorno do jusnaturalismo no pós-guerra, logo sepultado em
função das expectativas de segurança social e jurídica, reclamadas pela
situação de “guerra-fria”.
Daí a necessidade do novo modelo. O jusnaturalismo se revelou
insuficiente, sendo solapado em suas bases pelo positivismo. Este, por seu
turno, também já se mostrava inadequado aos novos anseios sociais14.
Todavia, boa parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras ainda se guia pelo modelo positivista. Interessa saber até que ponto o
positivismo foi (ou é) hegemônico no Brasil, inclusive dentro das faculdades de Direito.
Somente em 1988, com a promulgação da atual Constituição da
República Federativa do Brasil, de índole marcantemente social e continente de textos oxigenados por aspirações libertárias, próprios de uma
sociedade recém-saída de um regime ditatorial que imperou por duas
décadas, é que o movimento jurídico passa a experimentar os influxos
internacionais, no sentido de apontar para a superação dialética que ora
se examina, também identificada como a segunda fase da dupla ruptura
epistemológica na área do direito.
Todavia, ao que parece, os novos rumos do pensamento jurídico
ocidental não são suficientemente conhecidos por todos os que militam
no meio forense, o que potencializa a perda de qualidade do sistema
jurídico, na medida em que soluções orientadas de forma empírica, no
mais das vezes obtidas através do singelo método silogístico clássico, não
respondem adequadamente à demanda de justiça exigida pela sociedade
plural e democraticamente organizada. O perigo de frustração das expectativas sociais neste campo se torna ainda mais visível quando se observa
a maciça produção normativa infraconstitucional, que é aplicada
acriticamente ao lado de um sem número de textos legislativos datados
do século passado e, portanto, gerados sob a égide de um outro paradigma.
Observa-se, assim, a necessidade de resgate da racionalidade do
discurso jurídico e da conexão entre jurisdição e democracia, a partir da
reflexão crítica acerca do manancial normativo disponível.
Para tanto, o primeiro passo é visitar as principais idéias que dominam o palco das discussões jurídicas na atualidade.
4. A TÓPICA
Iniciemos analisando o movimento conhecido como tópica jurídica.
Tal corrente aparece como complemento da Teoria Pura do Direito, pois se caracteriza pela busca de uma metodologia para a escolha da
decisão, dentre aquelas que se apresentem possíveis dentro do contexto
da “moldura” normativa kelseniana. Como sintetiza Cláudio Pereira de S.
Neto, “A proposta da teoria é justamente incluir no âmbito da teoria do
Direito uma teoria da decisão judicial, que tome por base como efetivamente se constrói o raciocínio judiciário. Nesse sentido, a teoria pura do
Direito deveria ser necessariamente completada pela tópica”15.
Como num resgate da antiga retórica grega, há uma grande fé na
argumentação e “é através de argumentos razoáveis que a decisão logra
obter a adesão da comunidade à qual se dirige”16.
O pressuposto é a existência dos topoi17, certos “lugares-comuns”,
que vêm a ser idéias ou enunciados compartilhados pelo grupo, os quais
funcionam como pontos de partida do discurso argumentativo, o qual
objetiva a adesão de um “auditório”.
A busca pela melhor solução do problema, com base na busca do
melhor argumento para conquistar a adesão do auditório, é a preocupação da tópica. Neste particular, convém assinalar que
A tópica enfatiza o problema e não a norma ou o sistema. Enquanto o
normativismo concebe o ato jurisdicional como ato de vontade, adstrito a limites
definidos racionalmente, a tópica, ao contrário, nem valoriza a existência de limites
para a decisão judicial estabelecidos prévia e normativamente, e nem, por outro lado,
pensa o ato jurisdicional como mero ato de vontade. A norma é, para a tópica
“pura”, apenas mais um topos a ser levado em consideração no processo argumentativo
que leva à decisão do caso concreto. O que importa é causar a adesão do auditório
composto pela comunidade jurídica e pela comunidade de cidadãos – para o que a
norma pode ser útil, mas não possui, por outro lado, qualquer primazia necessária
[...] Com ênfase nos valores, a tópica chama a atenção para o fato da efetividade do
direito não tomar por base, apenas, a coercitividade que acompanha as decisões judiciais, mas também a adesão voluntária dos jurisdicionados, provocada pela força dos
melhores argumentos18.
E aqui reside o aspecto que mais de perto nos interessa, dada a
proximidade com o tema:
Para a tópica, a idéia de valores é intercambiável com a de princípios. Também os princípios são considerados como topoi aos quais o juiz pode recorrer como
ponto de partida na fundamentação da decisão [...] Os princípios gerais do Direito
são considerados por Perelman justamente como lugares específicos do direito [...] Isso
leva a que o autor não considere os princípios como obrigatórios19.
Não é à toa que o autor citado faz referência a Perelman que, ao
lado de Viehweg, constitui-se num expoente da tópica, também conhecida
como “nova retórica”, sendo ele o responsável pela sistematização da
idéia de “auditório”.
O grande mérito da abordagem tópica, em sua formulação dita
“pura”, parece consistir justamente na viabilidade do “resgate do senso
comum”20, no que acaba por conferir uma conexão entre a jurisdição e a
democracia. Com efeito:
Se argumentação jurídica tem como objetivo promover o convencimento de um
jurista, mas também do homem comum, ela tem que abrir mão de justificar tecnicamente as decisões judiciais. Ela deve lançar mão de argumentos emergentes da realidade social; deve buscar satisfazer as expectativas normativas geradas espontaneamente
no espaço público; deve, portanto, operar também com o senso comum. Ao contrário
do positivismo jurídico, a tópica possui a preocupação fundamental de se coadunar
com a teoria democrática21.
5. A TÓPICA “MITIGADA”: MÉTODO HERMENÊUTICOCONCRETIZADOR DE HESSE E MÜLLER
É possível entrever que a tópica em estado puro, apesar da contribuição de ordem democrática, enseja um certo vazio em termos de segurança jurídica. Nesta linha de pensamento, surge o chamado método
hermenêutico-concretizador, observado nas obras de Konrad Hesse e
Friedrich Müller, como tentativa de preencher esse vazio de segurança.
A proposta é operar correções de ordem normativa na abordagem
tópica, identificando limites normativos dentro dos quais tal abordagem
se dará.
Hesse parte da idéia de força normativa da constituição como
resposta à noção de constituição como “fatores reais de poder”, cunhada
por Ferdinand Lassale22.
Para Hesse, a norma tem força vinculante, não é mero topos, e a
tópica opera balizada pelo texto da norma. Isto confere estabilidade à
Constituição através da admissibilidade de interpretações diferentes, sem
alteração do texto constitucional, em torno de seu eixo ou núcleo duro
(mutação constitucional), onde não é possível a modificação do texto
(emenda). Somente o rompimento constitucional não é admitido, isto é, a
alteração das linhas mestras ou cláusulas pétreas. Mas este núcleo duro se
adapta às exigências sociais ao longo do tempo em função de ser permeável a novas interpretações, sobre uma mesma base textual inalterada e
inalterável.
Müller, por sua vez, expressa maior racionalização metódica em
contraste com Hesse23. Propõe que a interpretação compreende a definição do “programa da norma” expresso no “texto da norma”. Trata-se de
idéia convergente, mas não idêntica, à moldura kelseniana ou à textura
aberta de Hart.
Müller chama de concretização o processo legal que parte da definição do programa da norma até a decisão, passando pela fase intermediária de definição do “âmbito da norma”, onde são utilizados os topoi.
Assim, o programa da norma define os limites da tópica. Ou seja:
Antes de lançar mão da tópica, o magistrado deverá identificar o chamado
programa da norma, que decorre do texto da norma, e pode ser identificado através da
utilização dos elementos tradicionais de interpretação, acrescidos dos princípios de
interpretação especificamente constitucionais. Feito isso, o magistrado chega a um rol
de decisões possíveis. É aí que tem lugar a tópica. Essa deverá atuar no sentido de
permitir que o magistrado justifique razoavelmente sua opção por uma – e não por
outra – das interpretações possíveis. Percebe-se que, para este último ponto de vista, a
norma possui primazia sobre o problema, mas o pensamento problemático não está
descartado, apenas balizado normativa e sistematicamente24.
6. HÄRBELE E A “SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES
DA CONSTITUIÇÃO”: A CONEXÃO ENTRE TÓPICA E DEMOCRACIA
Merece destaque a teoria de Peter Härbele, segundo a qual cada
cidadão é intérprete da Constituição, já que vive sob o manto protetivo
desta, e não apenas os órgãos designados para formular a interpretação
vinculante, geralmente o Judiciário.
Partindo desta premissa, o autor identifica a necessidade de permear
a decisão judicial aos influxos interpretativos emergentes de agentes não
oficiais, fora do Estado. Para tanto, assume relevância o procedimento
para a tomada da decisão, que será tanto mais adequado quanto maior
for a possibilidade de efetiva influência na decisão por parte dos envolvidos.
O autor parte para além da noção de legitimação pelo procedimento, na forma como entendida por Niklas Lhuman.
Também a “Legitimação pelo procedimento” no sentido de Luhman é uma
legitimação mediante participação no procedimento. Todavia, trata-se de algo fundamentalmente diferente: participação no processo não significa aptidão para aceitação
de decisões e preparação para se recuperar de eventuais decepções [...] Legitimação, que
não há de ser entendida apenas em sentido formal, resulta da participação, isto é, da
influência qualitativa e de conteúdo dos participantes sobre a própria decisão. Não se
trata de um “aprendizado” dos participantes, mas de um “aprendizado” por parte
dos Tribunais em face dos diversos participantes25.
Pode-se perceber que a racionalidade é situada no processo comunicativo e não mais no sujeito do magistrado. Todavia, é evidente que se
exige do magistrado, bem como dos demais operadores do sistema jurídico, a racionalidade mínima suficiente para não fechá-lo, boicotando as
interpretações exógenas, especialmente quando se trata de normas constitucionais, tão propensas a uma textura hiperaberta, em razão mesmo da
necessidade de albergar valores e conferir estabilidade ao próprio sistema. Isto leva à necessidade de maior informação e inserção dos operadores no contexto social, fugindo ao isolamento característico que culmina
por formar uma espécie de “tecnocracia judicial”.
7. OS PRINCÍPIOS NA OBRA DE DWORKIN
Ronald Dworkin aparece como um dos mais festejados autores
contemporâneos. Sua compreensão do Direito o enquadra como sistema
de regras e princípios, e não somente como um sistema de regras. Esta
tomada de posição tem amplos reflexos.
Em primeiro lugar, é reconhecida a normatividade dos princípios,
já que estes são espécie superior do gênero norma, o qual também compreende as regras, a outra espécie normativa. Afasta-se, assim, a antiga
crença positivista segundo a qual os princípios teriam uma conotação
fraca, aplicáveis apenas de forma subsidiária, em caráter supletivo e
integrador do sistema, em caso de falta de regra aplicável26.
Ora, sendo os princípios verdadeiras normas, ainda que de especial dignidade e natureza, até porque negar isto significaria não ter como
sustentar o seu caráter vinculante, não é aceitável a dicotomia princípionorma, senão após uma convenção didática no discurso, qual seja, a referência a princípio significaria referência a norma principiológica, enquanto a menção a norma representaria relação à simples regra ou preceito.
A propósito, convém gizar a lição de Bobbio, que vem ao encontro
desta compreensão:
Os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou
generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A princípio leva a engano, tanto
que é velha questão entre os juristas se os princípios gerais são normas. Para mim não
há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras. E esta é também a
tese sustentada por Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os
argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das
quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização
sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie
animal, obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função
para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto
é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna?
Para regular um comportamento não regulamentado: mas então servem ao mesmo
escopo a que servem as normas expressas. E por que não deveriam ser normas?27
Categórico é Paulo Bonavides para quem “fica para trás, já de
todo anacrônica, a dualidade, ou, mais precisamente, o confronto princípio versus norma, uma vez que, pelo novo discurso metodológico, a norma é conceitualmente elevada à categoria de gênero, do qual as espécies
vêm a ser o princípio e a regra. Isto já se acha perfeitamente elucidado,
definido, reconhecido e difundido”28.
Em segundo lugar, há uma forte preocupação em reduzir e até
mesmo eliminar a discrição judicial, utilizando-se os princípios como critérios para decisão, sobretudo nos chamados hard cases29.
A questão que se põe é: como reconhecer os princípios? O autor
propugna um método caracterizado como reconstrutivo. O juiz deve interpretar o ordenamento pressupondo-o um todo coerente. “A função do
magistrado é a de reconstruir racionalmente a ordem jurídica vigente,
identificando os princípios fundamentais que lhe dão sentido [...] Enquanto o legislador constrói a ordem jurídica, o juiz a reconstrói”30.
O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e
deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados
por um único autor – a comunidade personificada —, expressando uma concepção
coerente de justiça e eqüidade31.
Contudo, o que se pretende não é a interpretação histórica no
sentido de buscar pura e simplesmente a “vontade do legislador”. A base
é a moralidade dinâmica que permite a atualização interpretativa.
Mas, para que se possa chegar à decisão correta, através da reconstrução racional do ordenamento, o autor cria a noção monológica do
chamado “juiz Hércules”, o magistrado ideal, dotado de todas as habilidades e munido de todas as informações necessárias à hercúlea tarefa de
descortinar o vasto horizonte jurídico e retirar do ordenamento a solução
justa.
Note-se que a racionalidade se volta novamente para o sujeito,
para o magistrado, que carece da reflexão teórica para iluminar o caminho de Hércules.
8. OS PRINCÍPIOS NA OBRA DE ALEXY
Robert Alexy concebe o Direito como um sistema de regras, princípios e procedimentos, buscando superar a concepção dworkiana.
Observe-se a manutenção dos avanços em termos de reconhecimento da normatividade dos princípios e diferenciação destes para com
as regras.
Segundo Alexy, as regras são “mandatos definitivos”, enquanto os
princípios são “mandatos de otimização”, pois permitem a sua aplicação
em diferentes graus32.
Por conta disto, é fundamental compreender a sistemática adequada à resolução de conflitos normativos quando as normas em choque são
de natureza principiológica, sistemática esta que é diferente da que ocorre
quando as normas conflitantes pertencem à categoria das meras regras.
De plano, Alexy ressalta a necessidade de ponderação para solução
dos conflitos entre princípios, escolhendo-se racionalmente qual princípio
deve prevalecer na solução do caso concreto, sem que se anule o princípio não aplicado, ao contrário do que se passa entre as regras, as quais são
aplicadas ou não, resolvendo-se o conflito na base do tudo ou nada33.
Digna de nota é a diferença abissal entre o pensamento de Alexy
para com Kelsen, na medida em que este afirma não haver “nenhuma
possibilidade de decidir racionalmente entre valores opostos”34.
Por outro canto, Alexy aponta a insuficiência da noção monolítica
do juiz Hércules de Dworkin, e parte para a necessidade de procedimentos adequados, isto é regras procedimentais que garantam a racionalidade
da argumentação, com vistas à satisfação da pretensão de correção da
resposta interpretativa final35.
Note-se bem: deve-se buscar satisfazer a pretensão de correção, já
que seria praticamente inatingível a correção absoluta. Assim, o importante é perseguir uma correção relativa, através de procedimentos adequados.
9. A RAZÃO COMUNICATIVA DE HARBEMAS
Alexy inspirou-se em Habermas, que criou o conceito de razão
comunicativa, para expressar a racionalidade garantida pela discussão
argumentativa.
Na concepção positivista, a forma jurídica pode se adequar a qualquer conteúdo, inclusive aos de grande irracionalismo. Além disso, o positivismo negligencia o fato
importante de que os jurisdicionados possuem expectativas normativas em relação ao
texto legal. Para a efetividade social do direito é importante não somente sua dimensão
de validade (que se define com referência ao direito produzido pelas autoridades estatais), e o aspecto da coerção, que a acompanha. É necessário também que o direito seja
legítimo, e as decisões possam ser aceitas pela comunidade de jurisdicionados. Por isso,
a racionalidade do ordenamento jurídico é fundamental para legitimá-lo, provocando
o assentimento espontâneo do grupo social atingido36.
Com esta preocupação, Habermas constrói a sua concepção de
legitimidade no procedimento, a partir da chamada razão comunicativa, a
qual “somente pode ser entendida como alternativa à chamada razão
centrada no sujeito”37.
Mais uma vez a racionalidade se desloca do sujeito para o proces-
so de argumentação. “O fundamental é que as expectativas normativas
geradas espontaneamente no espaço público possam afetar as decisões
judiciais, rompendo com o caráter antidemocrático inserido no processo
de autonomização do sistema jurídico”38.
O autor tem em vista deslocar a razão do sujeito para o processo comunicativo, fazendo com que a própria razão seja o outro da razão, i. e., com que a autoreflexão crítica se processe através do olhar do outro. [...] O sujeito do conhecimento
pode refletir sobre o conhecimento por ele produzido a partir da perspectiva do outro
sujeito com quem dialoga. A razão comunicativa é, portanto, reflexiva visto que pode
se expor à sua própria luz. [...] Essa perspectiva sinaliza para influência freudiana
(dualidade pulsional) na obra do autor. [...] Daí decorre a exigência de formulação de
regras não só referentes à estrutura dos argumentos, mas também aos aspectos éticos
da interação discursiva: “tais condições procedimentais e pragmáticas garantem de
modo ideal que todos os argumentos e informações relevantes sobre um tema, disponíveis numa determinada época, possam vir completamente à tona, isto é, possam desenvolver a força da motivação racional inerente a eles.” Essa distinção pode ser observada, e. g., na versão habermasiana do imperativo categórico kantiano, que é a seguinte:
“são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o
seu assentimento, na qualidade de participantes do discurso racional.” Essa regra
traduz um princípio de universalização de natureza dialógica, diferente do presente na
obra de Kant, que é resolvido monologicamente39.
10. O PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA
Como observado, as novas exigências sociais forçam a evolução
do pensamento jurídico contemporâneo, ante as insuficiências do
positivismo jurídico. Essa evolução aponta para o resgate da racionalidade
do discurso jurídico, verificando-se a tendência para centralizá-la muito
mais no processo argumentativo do que nos sujeitos da argumentação.
Cláudio Pereira da S. Neto sintetiza o atual momento, identificando as tendências deste novo paradigma emergente, comparando-o com o
paradigma anterior:
Note-se, por exemplo, que o paradigma liberal-positivista contém em si uma
1) teoria da norma constitucional, segundo a qual a) lei e constituição se identificam,
b) a norma constitucional possui uma textura fechada, e c) a constituição é um
sistema coerente e completo; 2) uma teoria da decisão, segundo a qual a) a aplicação
da norma constitucional se identifica com a aplicação da norma infraconstitucional, b)
não há que falar em ato de decisão, mas simplesmente de cognição, já que o ato
jurisdicional se esgota na aplicação de uma vontade pré-construída, c) o magistrado é
capaz de, monologicamente, fazer uma leitura racional do texto normativo, sem a
interferência de seus valores e interesses pessoais; 3) uma teoria da democracia segundo
a qual a) a vontade estatal deve ser formulada pelo órgão que foi legitimado para
tanto através do voto popular, o parlamento, e b) o magistrado deve se ater ao
disposto no texto legal, senão estará usurpando a vontade popular. [...] o paradigma
pós-positivista já sinaliza a consolidação de certas características gerais que se encontram na obra da maioria dos autores. Assim é que o paradigma pós-positivista, 1) no
campo da teoria da norma constitucional, enfatiza, de forma mais ou menos homogênea, a) a presença dos princípios no ordenamento constitucional, e não só das regras
jurídicas, b) a estrutura aberta e fragmentada da Constituição; 2) no campo da teoria
da decisão, investe na a) reinserção da razão prática na metodologia jurídica, rejeitando a perspectiva positivista de que somente a observação pode ser racional, b) propõe
uma racionalidade dialógica, centrada não no sujeito, mas no processo argumentativo,
que c) vincula a correção das decisões judiciais ao teste do debate público; 3) no âmbito
da teoria democrática propugna a) pelo caráter procedimental do processo democrático
e b) pela possibilidade de limitação do princípio majoritário em nome da preservação
da própria democracia 40.
Em suas conclusões, o mesmo autor arremata:
1) No âmbito da teoria da norma, a redução do direito às normas
jurídicas que se manifestam na forma de regras tende a ser abandonada.
Além das regras emergem com toda a força os princípios, que traduzem
a preocupação fundamental de que o direito seja também justo. Os princípios atuam no ordenamento jurídico como reserva de justiça e, portanto, em razão de seu status predominantemente constitucional, servem
como limites à atividade legislativa, além de fornecerem critérios
normativos para a resolução dos casos difíceis. Além disso, caem por
terra os dogmas da coerência e da completude do ordenamento jurídico.
Em especial, a Constituição é considerada como constituição aberta e
fragmentada, contendo muitas vezes dispositivos que apontam em sentidos diversos, de modo que, para concretizá-los, é necessária a utilização,
por parte do magistrado, de recursos mais amplos que a mera lógica
formal.
2) No âmbito da teoria da decisão, opera-se a reabilitação da razão
prática. [...] Somente as proposições normativas que passem pelo teste do
debate público podem ser consideradas racionais. [...]
3) No âmbito da teoria democrática, o caráter dialógico da
racionalidade prática leva a que se valorize a formação do espaço público
autônomo (do aparato burocrático estatal) em que as pretensões
normativas sejam objeto de intenso debate. A democracia é entendida,
portanto, como participação, e não como mera representação. Além disso,
os direitos individuais deixam de ter uma justificação metafísica para se
apresentarem como condições fundamentais da interação comunicativa,
viabilizadoras do processo democrático.
4) A legitimação da jurisdição constitucional será, portanto, obtida por duas
vias combinadas fundamentais – através da conclusão de que o ato jurisdicional não
é um ato de mera vontade, mas sim um ato racionalizado dialogicamente, e através da
conclusão de que o princípio majoritário pode ser limitado pelo próprio procedimento
democrático. Nessa perspectiva, os tribunais constitucionais são considerados como
guardiões do processo deliberativo democrático41.
Convém então frisar a importância da boa interpretação dos direitos e garantias fundamentais para a manutenção da democracia. O Judiciário assume, desta forma, papel de relevo no regime, devendo esforçarse para bem aplicar ditos direitos, atentando para o fato de que, na maior
parte das vezes, justamente porque se trata de princípios, haverá a necessidade de ponderação, mormente nos chamados casos difíceis.
Entretanto, quais são os casos difíceis? Esta indagação pretende
instigar o leitor a raciocinar que a utilização da lógica formal como método interpretativo, enraizada que se encontra no pensamento jurídico nacional e por conduzir à aplicação acrítica das regras positivas, pode culminar numa saída “fácil”, mas totalmente inadequada às exigências sociais
ou expectativas normativas diante do caso concreto. Observar-se-á que o
mais freqüente é o caso não ser difícil, mas o problema situar-se justamente em se adotar a saída “fácil”, porém inadequada.
Evidentemente, não cabe mais discutir amiúde o problema da supremacia da Constituição. Toma-se tal idéia como premissa fundamental,
dentro da teoria constitucional. Dessa maneira, as normas que servem de
fundamento de validade para todo o sistema infraconstitucional encontram-se veiculadas pelo texto da Constituição, implícita ou explicitamente,
não sendo de todo ruim a utilização da formulação kelseniana de “fundamento de validade”.
Dentre as normas constitucionais, como vimos, as mais caras ao
sistema são justamente os princípios, categorias normativas prenhes de
valores porque encerram alta carga axiológica e atuam como “antenas”,
captando os principais valores eleitos pelo grupo social.
É verdade que todas as normas se referem direta ou indiretamen-
te a um ou mais valores, isto é, é bastante possível identificar o valor que
informa determinada regra, a partir do princípio que lhe serve de matriz.
Ocorre que os princípios veiculam essencialmente valores, dado que representam nitidamente estes, são puro conteúdo, essência, ao passo que
as outras categorias de normas representam limites, obedientes sempre
ao conteúdo que bebem diretamente dos princípios, supernormas que lhe
servem de fundamento.
Pois bem. Se os princípios são por excelência o encerramento
normativo de valores, e se a Constituição é a expressão máxima destes
valores eleitos pelo grupo, então é na constituição que iremos encontrar o
habitat dos princípios.
Evidentemente, e aqui recorreremos à clássica distinção entre Constituição em sentido material e Constituição em sentido formal, há no
texto constitucional uma parte que diz respeito às decisões políticas fundamentais: escolha do tipo de Estado, da forma de governo, do regime, a
tripartição do Poder, os direitos e garantias fundamentais. Por outro canto, outras normas não se referem a estes aspectos, sendo consideradas
constitucionais apenas porque formalmente o são, já que inscritas na
Constituição.
Na primeira categoria, encontraremos os verdadeiros princípios
constitucionais, os quais, por isto mesmo, servirão de norte tanto para a
criação como para a interpretação de normas pelo Poder Constituído.
Por óbvio, este mesmo Poder Constituído também deverá interpretar a própria Constituição de forma sistêmica, à luz ou com a “lente”
dos princípios, por ela mesma veiculados.
Neste processo, surgirá com certeza a hipótese de colisão entre
princípios. É que os valores, conteúdo manifesto das normas
principiológicas, são relativos, e freqüentemente colidem uns com os outros.
Como o Direito se pretende completo e de forma ordenada, os
conflitos entre normas têm de ser pressupostos como aparentes. Isto é,
havendo colisão entre normas, deve o intérprete encontrar a solução
segundo a qual somente uma delas se aplique.
Conforme a lição de Alexy, acima examinada, no campo das simples regras, este fenômeno, o da colisão ou conflito aparente de normas,
se resolve na dimensão de validade. O intérprete, recorrendo à
hermenêutica, encontrará a norma verdadeiramente aplicável, afastando
a incidência da não aplicável, podendo chegar à conclusão pela invalidade
total desta (revogação), e não apenas pela inaplicabilidade dela ao caso.
Esta última situação, pela qual se reconhece a “morte” de uma das
normas em conflito, é denominada antinomia (anti nomos).
As coisas não se passam assim quando o conflito envolve normas
principiológicas. Quando dois princípios estão em choque — o que não é
raro, como dito alhures — tal conflito não se resolverá na dimensão de
validade, como sói acontecer no plano das simples regras, mas sim na
dimensão de prevalência.
Realmente, havendo colisão entre princípios, deverá o intérprete
verificar qual destes deverá prevalecer no caso concreto, sem contudo
anular o outro, isto é, sem revogar a norma que veicula o princípio não
prevalente.
Outra solução não é possível. A uma, porque princípios são ou
representam valores e os valores, embora em conflito na sociedade, não
se anulam. A duas, porque, como visto, os princípios são veiculados naturalmente pelo Poder Constituinte e, destarte, não poderia haver incoerência deste a ponto de criar antinomias dentro do próprio texto constitucional42.
Os princípios têm, então, este condão de orientar a criação, a interpretação e a aplicação das demais normas, sejam estas subprincípios ou
simples regras.
Como ensina o jurista Luís Roberto Barroso:
Feita essa sistematização preliminar, é preciso destacar o papel prático dos princípios dentro do ordenamento jurídico constitucional,
enfatizando sua finalidade ou distinção. Cabem-lhes, em primeiro lugar,
embasar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte e
expressar os valores superiores que inspiram a criação ou reorganização
de um dado Estado. Eles fincam os alicerces e traçam as linhas mestras
das instituições, dando-lhes o impulso vital inicial.
Em segundo lugar, aos princípios se reserva a função de ser o fio
condutor dos diferentes segmentos do Texto Constitucional, dando unidade ao sistema normativo. Um documento marcantemente político como
a Constituição, fundado em compromissos entre correntes opostas de
opinião, abriga normas à primeira vista contraditórias. Compete aos princípios compatibilizá-las, integrando-as à harmonia do sistema.
E, por fim, na sua principal dimensão operativa, dirigem-se os princípios ao Executivo, Legislativo e Judiciário, condicionando a atuação dos
poderes públicos e pautando a interpretação e aplicação de todas as nor-
mas jurídicas vigentes 43 .
Portanto, no estudo do caso a ser resolvido, deve o jurista partir do
princípio, estudar o caso com “a lente” do princípio, a fim de alcançar a
finalidade expressa no próprio princípio, num raciocínio que bem poderia
ser representado por um movimento circular, donde se parte do princípio, mantém-se nos “trilhos” do princípio, a fim de se chegar ao princípio
mesmo.
Daí porque compreendemos que o princípio jurídico é princípio,
meio e fim. E daí a importância de ter o aplicador da norma, especialmente o juiz, um cuidado especial em matéria de princípios, segundo
adverte o próprio Luís Roberto Barroso:
Os tribunais têm certa capacitação para lidar com questões de princípio que o
Legislador e o Executivo não possuem. Juízes têm, ou devem ter, a disponibilidade, o
treinamento e o distanciamento para seguir os caminhos da sabedoria e isenção ao
buscar os fins públicos. Isto é crucial quando se trata de determinar os valores permanentes de uma sociedade. Este distanciamento e o mistério maravilhoso do tempo dão
aos tribunais a capacidade de recorrer aos melhores sentimentos humanos, captar as
melhores aspirações, que podem ser esquecidos nos momentos de grande clamor 44.
A noção de supremacia dos princípios enseja, portanto, a maior
cautela e fidelidade ao seu cumprimento, já que, como afirmado por
Celso Antônio Bandeira de Melo, em lição que já se torna clássica:
Princípio ¾ já averbamos alhures — é por definição, mandamento
nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental
que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente
por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo
unitário que há por nome sistema jurídico positivo.
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão
do princípio atingido, porque apresenta insurgência contra todo o sistema,
subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a
estrutura neles esforçada 45.
E não há necessidade de outra conclusão, senão a que chega Paulo
Bonavides:
Em resumo, a teoria dos princípios chega à presente fase do pós-positivismo
com os seguintes resultados já consolidados: a passagem dos princípios da especulação
metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor
de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicistica (seu ingresso nas Constituições); a
suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios
da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua
normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento
definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a
distinção entre regras e princípios como espécie diversificada do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a tal hegemonia e preeminência dos princípios46.
Repassados assim os principais pontos que delineiam a nova forma de pensar o Direito, lembrando que não basta o discurso, antes é
preciso concretizar os resultados da reflexão teórica, verifiquemos um
exemplo concreto onde se poderá perceber a importância desta operação.
11. UM EXEMPLO CONCRETO: O PROBLEMA DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA NOS CRIMES SEXUAIS EM RAZÃO DA IDADE DA VÍTIMA
O art. 224, a), do Código Penal Brasileiro, é assim redigido: “Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos;”. Trata-se do
velho estupro presumido.
Há que se indagar: diante do novo paradigma jurídico, a presunção
de violência em sede penal, estabelecida pelo Poder Constituído, se conforma com a presunção de inocência estabelecida no art. 5o, LVIII, da
Constituição Federal, pelo Poder Constituinte? Ou por outra, os princípios do moderno Direito Penal — direito penal da culpa — em seu repúdio
à responsabilidade objetiva, aceita a presunção normativa de violência,
seja ela qual for?
Inicialmente, cumpre avisar o óbvio tantas vezes negligenciado: o
vetor interpretativo deve se configurar no sentido vertical descendente,
partindo das normas constitucionais, em especial as de natureza
principiológica, em direção às normas infraconstitucionais. O inverso seria subversão à supremacia da Constituição, um rematado absurdo.
Em segundo lugar, deve-se desconfiar da norma em apreço, na
medida em que a mesma foi gerada em nada menos do que início dos
anos 40, quando em plena efervescência o positivismo jurídico no Brasil.
Tal doutrina, não é demais lembrar, apesar das inegáveis conquistas no campo da cientificidade do Direito e superação do jusnaturalismo,
especialmente no que diz com a teoria pura kelseniana, abriu margem
para a fundamentação de regimes nazi-facistas, na medida em que
dissociava legalidade e racionalidade normativas, “legitimando”
ordenamentos jurídicos tão só pela observância de regras formais, relegando ao campo da discricionariedade judicial qualquer análise do conteúdo normativo material.
Por outro canto, também não se pode perder de vista que o
referencial social daquela época era outro. Outros costumes, outra visão
de mundo, outro jovem.
Partindo destas premissas, analisemos a presunção (ou estado) constitucional de inocência e os seus consectários no processo penal.
Convém não deslembrar que a presunção de inocência também se
encontra no art. 8 o, n. 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), vigente no país por força do
Decreto nº 678, de 06.11.92, com especial atenção em função do § 2º do
mesmo art. 5º da Constituição de 1988.
Um dos aspectos que tal presunção assume no processo penal é o
de se desdobrar no campo probatório: quem acusa, deve provar. A distribuição do onus probandi é quase unilateral. Daí a assertiva de que a acusação deve buscar a remoção das dúvidas razoáveis, se não quiser ver
absolvido o acusado o qual, a priori, nada deve provar, bastando negar os
fatos como estratégia básica de defesa. Vale dizer, o órgão acusador deve
provar integralmente os fatos constitutivos do jus puniendi.
Note-se que a presunção legal (infraconstitucional) de violência,
desobriga o acusador de provar um elemento fático do tipo, o que colide
frontalmente com a presunção constitucional de inocência, entendida como
regra probatória.
Neste sentido, invoca-se a lição de Luiz Flávio Gomes, no direção
de que
parte do tipo penal é concretizada pelo acusado (até aqui ele responde pelo que
fez). A outra parte é realizada pelo Legislador (agora o agente responde pelo que o
legislador presumiu). O acusado, em suma, se levarmos o raciocínio ao extremo, acaba
respondendo por algo que foi feito pelo legislador, e não por ele. Seria o caso de se falar,
desde logo, em responsabilidade penal objetiva47.
Ademais, não há crime sem conduta, sem fato. Como adverte o
próprio Gomes, “pune-se o agente por ser o autor de um furto, não
porque é ladrão (...) A culpabilidade no Direito Penal, em suma, é culpabilidade do fato isolado, não culpabilidade de caráter”48. Destarte, a presunção de violência, na medida em que não passa de uma ficção de fato,
e não um fato concreto, viola o princípio nullum crimen sine actio.
O ministro Vicente Cernichiaro, do Superior Tribunal de Justiça,
em voto contido no acórdão no Recurso Especial 12.651, asseverou que
Hoje, notadamente no quadrante do chamado Direito Penal da Culpa, banida a responsabilidade objetiva, o agente responde pelo que efetivamente fez (ou deixou
de fazer). Jamais por aquilo que se possa presumir pudesse ter feito (ou deixado de
fazer) [...] o Direito Penal da Culpa é incompatível com qualquer presunção de fato.
Fato é fenômeno. Aconteceu ou não aconteceu. Não há meio termo49.
Ali, tratou-se do crime de corrupção de menores. Mais recentemente, o ministro tornou a lidar com a matéria, desta feita em relação ao
estupro, como se vê do julgamento do Recurso Especial 46.424, assim
ementado:
REsp - penal - estupro - presunção de violência - o direito penal
moderno é direito penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato
de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinqüente,
deve ajustar-se à conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no
plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe, ou não existe.
O direito penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. Que se
recrudesça a sanção quando a vítima é menor, ou deficiente mental, tudo
bem. Corolário do imperativo da justiça. Não se pode, entretanto, punir
alguém por crime não cometido. O princípio da legalidade fornece a forma, e o princípio da personalidade (sentido atual da doutrina) a substância, da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que
despreze a responsabilidade subjetiva. Na hipótese dos autos, entretanto,
o acórdão fundamentou a condenação na conduta do réu, que teria se
valido de grave ameaça para conseguir o seu intento50.
Para que não se pense, açodadamente, que a tese aqui esposada
desampara vítimas de pedofilia, quando o agente não age com violência
física, argumenta-se, de logo, que há de se distinguir a agressão sexual do
abuso sexual.
Quando há efetiva violência, como no estupro de mulher maior,
capaz e consciente, sem nenhum enquadramento no rol do art. 224,
estamos diante de uma agressão sexual. A liberdade sexual é cerceada
através da violência ou da grave ameaça, que vencem a resistêcia da
vítima.
Já nos casos em que a vítima não tem condições resistir ou de
validamente manifestar o seu consentimento (não consente ou o seu consentimento não é tido por juridicamente válido), quer por idade, quer por
deficiência mental bastante, quer ainda por qualquer outro motivo (rol do
art. 224), estamos diante de um abuso sexual. A liberdade sexual é cerceada através de um abuso. O sujeito se aproveita da vítima, que é incapaz
concretamente de oferecer resistência, em razão justamente da sua incapacidade de consentir 51.
E aqui surge outra questão, relevante para o caso em apreço: quando a vítima não pode consentir validamente? Ou, em termos quiçá mais
apropriados à hipótese sub oculo, em que idade se considera que a vítima
não pode consentir validamente? Qual o limite etário que baliza a validade do consentimento com o ato sexual?
Não se trata aqui de reavivar a tese da presunção relativa de violência, amplamente majoritária na jurisprudência e que fora referendada
pelo famoso voto do ministro Marco Aurélio, hoje presidindo o Supremo
Tribunal Federal, no HC 73662-9-MG 52. É óbvio que, se acatarmos a
impossibilidade de presunção de violência, não podemos sequer entendêla como de natureza relativa.
O que se busca não é a relatividade ou não da presunção de violência, a partir da consciência ética da vítima em relação ao ato sexual. O
objetivo é revelar qual a idade que foi eleita pelo legislador como norte
relativo para aferir se o ofendido é ou não capaz de consentir validamente
com o ato sexual.
Mais uma vez, socorremo-nos da esclarecedora monografia de
Luiz Flávio Gomes, antes citada. O autor, em análise sistemática do
ordenamento nacional vigente, identifica no Estatuto da Criança e do
Adolescente a resposta à crucial indagação.
Parte ele da constatação de que o legislador enxerga no adolescente certa capacidade de compreensão de suas próprias ações, tanto que
sujeito a medidas sócio-educativas, quando pratica conduta tipificada como
crime, entendida no microssistema menoril como ato infracional (ECA,
112). Diferentemente ocorre com a criança, cuja resposta do sistema à
conduta que se subsume em tipo penal são as medidas de proteção, de
natureza substancialmente diversa (ECA, 105).
É o próprio Estatuto quem difere adolescente de criança (art. 2o):
até 12 anos de idade incompletos, criança; daí em diante e até os 18,
adolescente.
Assim, o adolescente em regra teria a chamada consciência ética
de sua liberdade sexual e das conseqüências de seus atos nesta seara, o
que leva à conclusão pela sua capacidade de consentir validamente com o
ato sexual, salvo, evidentemente, circunstâncias que revelem o contrário,
tomado o caso concreto.
Já à criança, não lhe sendo reconhecida pelo legislador um mínimo
de capacidade de discernimento, falta a dita consciência, o que redunda
em incapacidade de validamente consentir, não se negando, entretanto, a
possibilidade de raros casos de crianças mais próximas da idade limite (na
pré-puberdade) que, por experiência, já se mostrem precocemente conhecedoras das coisas do sexo.
Ou seja, tudo depende, no fundo, do caso concreto, servindo a
idade apenas como ponto de partida, indicativo da existência ou não do
grau de consciência exigido para a validade do consentimento.
O referido autor, em passagem eloqüente, ilustra toda a angústia
decorrente do entendimento tradicional:
[...] na hipótese de um menor com treze anos praticar uma relação sexual com
uma menor da mesma idade, não podemos conviver com a anomalia verdadeiramente
aporética de o menor ser sancionado primeiro porque entende, conforme o ECA (embora de acordo com a sua idade), o caráter (ético) sexual do ato e segundo porque a
“vítima”, da mesma idade, por força de uma presunção do CP de 1940, não possui
tal capacidade de compreensão. O menor é punido porque tem capacidade de entender
o ato sexual e, contraditoriamente, também é punido exatamente porque a menor, da
mesma idade, com quem ele manteve a relação sexual, não tem essa capacidade de
compreensão! O menor é punido porque sabe o que faz e, absurdamente, também
porque a menor, da mesma idade, não sabe o que faz! No ordenamento jurídico,
considerado como algo harmônico, não existe espaço para tanta contradição!53.
De tal arte, a “saída fácil”, isto é, a assunção de que a presunção
legal de violência está correta, porque emanada de processo legislativo
formalmente regular, não resiste a um exame mais aprofundado.
É evidente que uma série de fatores, entre eles a comodidade do
raciocínio silogístico, o despreparo, o hermetismo e o desestímulo intelectual por vezes observados nos operadores do sistema judicial, além da
falta de adequada estrutura, sobretudo humana, e do volume crescente
de demanda por Justiça, contribuem decisivamente para a adoção das
“saídas fáceis” da subsunção normativista, em detrimento da trabalhosa
pesquisa e reflexão teórica com vistas a uma interpretação sistêmica, e
por isto mesmo correta ou, pelo menos, mais consentânea com os atuais
anseios sociais.
Não se pode, assim, deixar de concluir que “Os valores estão, sem
dúvida, fora do âmbito da lógica formal e, por conseqüência, adequação
de vários valores entre si e a sua conexão interna não se deixam exprimir
logicamente, mas antes, apenas, axiológica ou teologicamente”54 e que
“Os pensamentos jurídicos verdadeiramente decisivos ocorrem fora do
âmbito da lógica formal”55.
12. CONCLUSÕES
Após as considerações desenvolvidas, é possível concluir que:
1. A antítese entre o jusnaturalismo e o juspositivismo operou uma
ruptura com o modelo normativista, dando lugar a um novo “paradigma
emergente”, que se convencionou chamar pós-positivismo.
2. Neste processo histórico, superada a crise de normatividade, os
princípios saltam dos códigos para as constituições, amplificando a sua
importância e exigindo melhor instrumental intelectual para sua correta
aplicação.
3. Este novo paradigma exige maior reflexão teórica e crítica dos
operadores do sistema, além da adequação do próprio sistema à captação
das diferentes nuances interpretativas que emergem do contexto social, a
fim de legitimar as decisões através da racionalidade procedimental
argumentativa, com o fim último de levar em consideração as expectativas normativas do grupo. Há verdadeira necessidade de permeabilidade
do sistema judiciário no sentido deste ser capaz de captar as expectativas
normativas do grupo social e apreender os mutáveis significados dos princípios, inclusive e principalmente diante de casos concretos.
4. O procedimento racional de tomada de decisão assume dignidade como fator de legitimação, mas não se pode descuidar da humanização
dos operadores do Direito, entendida como aprimoramento técnico permanente e adequado, aliado à inserção cultural.
5. A cultura positivista, a sobrecarga de processos, a demanda social por celeridade judicial e os excessos legiferantes contribuem, no Brasil, para a posição acrítica do sistema judicial diante de casos concretos,
representando fatores de deslegitimação democrática do Judiciário.
6. Responsabilidade legislativa, atribuição de atuais funções judiciais mecanicistas, meramente ordenadoras e administrativas, para staff
auxiliar, formado por técnicos judiciários, maior e permanente investimento no aprimoramento dos juízes, inclusive estimulando o processo
decisional criativo, são passos que podem trazer melhor qualidade e maior agilidade ao sistema, a curto prazo.
Findamos por alertar para a importância prática do que aqui fora
discutido, se não bastar a exemplificação desenvolvida, valendo-nos da
lição de Margarida Lacombe para quem
Este tipo de discussão pode parecer a princípio, para um leitor preocupado
com as prementes necessidades pragmáticas da vida profissional, um exercício excessivamente abstrato de reflexão teórica. No entanto, um olhar mais atento às transformações observadas nos dias de hoje em nosso ordenamento jurídico e ao modo pelo qual
percebemos as regras necessárias à convivência democrática, impõe uma atenção toda
especial à problemática relativa à argumentação nos tribunais56.
REFERÊNCIAS
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Dogmática dos Direitos Fundamentais. Palestra proferida na Fundação Casa
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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 231.
2
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes,
1996, p. 395 e 396.
3
Neste sentido, SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p. 87 e 88: “Em especial – e com razão – se tem destacado o papel da
Escola Histórica do Direito na formação da metodologia positivista. Um dos
maiores méritos da Escola Histórica, do ponto de vista da conformação do
positivismo jurídico, parece ter sido o de minar as bases de sustentação do
jusnaturalismo. Diferentemente do jusnaturalismo, a Escola Histórica
enfatizava a particularidade e a ausência de racionalidade no fenômeno
jurídico. Para ela, o direito não era produto da razão, mas antes produto
da história; variava, portanto, de acordo com o tempo e o lugar”.
4
Neste sentido, BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições
de Filosofia do Direito. São Paulo: Ìcone, 1995, p. 51 a 53.
1
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do
Direito. São Paulo: Ìcone, 1995, p. 26.
6
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 85.
7
Neste sentido: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2. ed. brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
8
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2. ed. brasileira. São Paulo:
Martins Fontes, 1987, p. 213.
9
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo:
Martins Fontes, 1992, p. 2.
10
Idem, p. 3.
11
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2. ed. brasileira. São Paulo:
Martins Fontes, 1987, p. 366 e 367.
12
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s.d., p. 148.
13
Atual e pertinente para a demonstração desta insuficiência é a
observação de Cláudio Pereira de Souza Neto: “No tocante a esse ponto
específico — dos efeitos ex tunc da declaração de inconstitucionalidade no
controle concentrado —, a aplicação formal-silogística da norma constitucional, inobstante sua aparente simplicidade, gera uma série de problemas práticos que se juntam à insuficiência teórica do próprio modelo.
Dentre os problema práticos decorrentes da aplicação mecânica do princípio da hierarquia das normas jurídicas, ou que são em função dela
agravados, podem ser destacados, a título de exemplo, a “inautenticidade
metodológica” e a “inércia” (ou “excessiva cautela”) por parte dos tribunais constitucionais, no julgamento de algumas questões cujos efeitos sejam socialmente negativos ou ponham em risco a governabilidade. A noção de “inautenticidade metodológica” traduz a idéia de que, na ausência
de procedimentos regulares para que as conseqüências sociais da decisão
sejam levadas em conta no processo decisório, torna-se usual, na prática
dos tribunais, que os métodos derivados do modelo juspositivo acabam
servido apenas para justificar, de forma adaptada, decisões anteriormente tomadas com base em critérios extrajurídicos. A escolha da norma
aplicável ao caso, juntamente com a referência à doutrina e à jurisprudência, acabam servindo apenas para dar colorações de cientificidade às conclusões obtidas subjetivas e extrajuridicamente. Todavia, essas soluções
nem sempre são bem sucedidas, principalmente quando a solução obtida
no caso concreto está em frontal contradição com o texto legal. Além
5
disso, essa “inautenticidade metodológica” é posta às claras com a comprovação de que, com argumentos do mesmo tipo, pode-se chegar a soluções até mesmo frontalmente antagônicas. Do mesmo modo, os problemas ligados à ingovernabilidade têm levado algumas cortes constitucionais a serem extremamente reticentes no julgamento de ações de
inconstitucionalidade, principalmente em sede controle concentrado”. Cf.
Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 67 e 68.
14
Neste sentido: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Eficácia
Constitucional: uma questão hermenêutica. Cópia mimeo, p. 6, 7: “A lógica
estritamente formal ignora o conteúdo das premissas. Considerando-se
supostas afirmativas como verdadeiras, temos que: A=B e C=D, então é
correto dizer que A=D. A modernidade, amparada no pensamento de
Descartes, acaba por valorizar a lógica formal, desde que as premissas
que servirão de base ou ponto de partida para o raciocínio apresentem-se
como evidentes, pondo de lado, portanto, premissas sujeitas à dúvida.
Dessa forma, a verdade é aquela que pode ser obtida como resultado de
um processo lógico-dedutivo, de natureza eminentemente formal, em que
se reconhecem como certas as conclusões logicamente extraídas de determinados axiomas, tomando-se como falso tudo aquilo que é provável. [...]
Tal processo, de relativa simplicidade, não se sustenta diante da complexidade democrática, quando o pluralismo de idéias e de interesses deve ser
respeitado. E nesse sentido, o método jurídico positivista, da matriz
kelseniana, que parte da norma dada, e sistematicamente organizada, para
daí deduzir uma solução logicamente correta, não é suficiente às expectativas da justiça e nem aos anseios da democracia. [...] Daí falarmos hoje
em pós-modernidade e pós-positivismo, ao buscarmos as bases de um
novo paradigma. “Pós”, no sentido de que ambos se concentram antes no
reconhecimento das insuficiências do paradigma da modernidade, do que
na sua completa imprestabilidade. Não se trata de um resgate puro e
simples do paradigma da modernidade, nem tampouco sua mera substituição. A idéia é antes aproveitar o que tal referência conquistou de positivo e redimensionar seus fundamentos”.
15
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 138.
16
Idem, p. 140.
17
Do grego, plural de topos.
18
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, De-
mocracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 144, 145
e 149.
19
Idem, p. 150.
20
Idem, p. 154
21
Idem, p. 157.
22
Cf. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris, s.d., e LASSALLE, Ferdinand. A Essência
da Constituição. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1985.
23
Cf. MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Max Limonad, s.d..
24
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 164.
25
HÄRBELE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta
dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista
e “procedimental” da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris,
s.d., p. 31 e 32.
26
Resquício desta concepção são os arts. 4o, da Lei de Introdução
ao Código Civil, e 126 do Código de Processo Civil Brasileiro, embora
possamos interpretar a referência a princípios gerais de direito como topoi
diferentes dos princípios constitucionais, e assim mais próximos de máximas de experiência, regras costumeiras ou senso comum.
27
BOBBIO, Noberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10 ed. Brasília:
UnB, 1999, p. 158.
28
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 248.
29
“Casos difíceis”.
30
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 237 e
238.
31
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 271 e 272.
32
Cf. ALEXY, Robert. Colisão e Ponderação como Problema Fundamental da Dogmática dos Direitos Fundamentais. Palestra proferida na Fundação
Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10.12.98, cópia mimeo, p. 11:
“Segundo a definição básica da teoria dos princípios, princípios são normas que permitem que algo seja realizado, da maneira mais completa
possível, tanto no que diz respeito à possibilidade jurídica quanto à possibilidade fática. Princípios são, nesses termos, mandatos de otimização
(Optimierungsgebote). Assim, eles podem ser satisfeitos em diferentes graus.
A medida adequada de satisfação depende não apenas de possibilidades
fáticas, mas também de possibilidades jurídicas. Essas possibilidades são
determinadas por regras e sobretudo por princípios”.
33
Idem, p. 14 e 15: “O processo para a solução de colisões de
princípios é a ponderação. Princípios e ponderações são dois lados do
mesmo fenômeno. O primeiro refere-se ao aspecto normativo; o outro,
ao aspecto metodológico. Quem empreende ponderação no âmbito jurídico pressupõe que as normas entre as quais se faz uma ponderação são
dotadas da estrutura de princípios e quem classifica as normas como
princípios acaba chegando ao processo de ponderação. A controvérsia
em torno da teoria dos princípios apresenta-se, fundamentalmente, como
uma controvérsia em torno da ponderação. Outra é a dimensão do problema no plano das regras. Regras são normas que são aplicáveis ou nãoaplicáveis. Se uma regra está em vigor, é determinante que se faça exatamente o que ela exige: nem mais e nem menos. Regras contêm, portanto,
determinações no contexto do fático e juridicamente possível. São postulados definitivos (definitive Gebote). A forma de aplicação das regras não é a
ponderação, mas a subsunção. [...] O postulado da ponderação corresponde
ao terceiro subprincípio do postulado da proporcionalidade no direito
constitucional alemão. O primeiro é o postulado da adequação do meio
utilizado para a persecução do fim desejado. O segundo é o postulado da
necessidade desse meio. O meio não é necessário se se dispõe de um mais
suave ou menos restritivo. Constitui um fortíssimo argumento, tanto para
a força teórica quanto prática da teoria do princípio que os três
subprincípios do postulado da proporcionalidade decorram logicamente
da estrutura principiológica das normas de direitos fundamentais e estas
da própria idéia de proporcionalidade. Todavia, isto não poderá ser
aprofundado aqui. Porém, pode-se examinar rapidamente o chamado
postulado da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que ele é um
importante instrumento para a solução de colisões entre direitos. O postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como
uma lei de ponderação, cuja fórmula mais simples voltada para os direitos
fundamentais diz: “quanto mais intensa se revelar a intervenção em um
dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos
justificadores dessa intervenção”. Segundo a lei de ponderação, esta há de
se fazer em três planos. No primeiro plano, há de se definir a intensidade
da intervenção. No segundo, trata-se de saber a importância dos funda-
mentos justificadores da intervenção. No terceiro plano, então se realiza a
ponderação em sentido específico e estrito”.
34
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo:
Martins Fontes, 1992, p. 4.
35
Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional,
Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 259:
“O núcleo da teoria da argumentação de Alexy é um sistema de regras
procedimentais que garantam a racionalidade da argumentação e de seus
resultados”.
36
Idem, p. 272.
37
Idem, p. 275.
38
Idem, p. 297. E ainda é preciso compreender que “O direito não
é capaz de se auto-reproduzir por ele próprio, mas necessita estar aberto,
para ser legítimo, aos impulsos de racionalização emanados do espaço
público. Habermas destaca, em especial, a importância do surgimento de
esferas públicas autônomas do aparato burocrático estatal. Essas esferas
públicas autônomas são tendentes a possibilitar a formação democrática
da vontade coletiva”. Idem, p. 299.
39
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 279, 280,
283 e 284.
40
Idem, p. 12 a 14.
41
Idem, p. 336 a 338.
42
Vide BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais?. (trad.
de COSTA, José Manuel M. Cardoso da.). Coimbra: Livraria Almedina,
1994.
43
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 146.
44
Idem, p. 157.
45
MELO, Celso Antonio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: RT, 1978, p. 299 e 300.
46
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 265.
47
GOMES, Luiz Flávio. Presunção de Violência nos Crimes Sexuais. São
Paulo: RT, 2001, p. 122.
48
Idem, p. 123.
49
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em <http://
www.stj.gov.br>. Acesso em 14 de novembro de 2002.
50
Idem.
51
Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Presunção de Violência nos
Crimes Sexuais. São Paulo: RT, 2001.
52
Assim ementado: “COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Na dicção da ilustrada maioria
(seis votos a favor e cinco contra), em relação à qual guardo reservas,
compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeascorpus impetrado contra ato de tribunal, tenha esse, ou não, qualificação
de superior. ESTUPRO - PROVA - DEPOIMENTO DA VÍTIMA. Nos
crimes contra os costumes, o depoimento da vítima reveste-se de valia
maior, considerado o fato de serem praticados sem a presença de terceiros. ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a
vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e
mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se
a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos
artigos 213 e 224, alínea “a”, do Código Penal”. Cf. BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 14
de novembro de 2002.
53
GOMES, Luiz Flávio. Presunção de Violência nos Crimes Sexuais. São
Paulo: RT, 2001, p. 142.
54
CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1989. p. 30.
55
Idem, p. 32.
56
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 299.
O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO
CONTRATO NO CÓDIGO CIVIL DE
2002
João Hora Neto, Juiz de Direito da Comarca de
Aracaju, Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará, Professor de Direito Civil
da Universidade Federal de Sergipe e da Escola
Superior da Magistratura de Sergipe
“Os juristas devem viver com sua época,
se não querem que esta viva sem eles.”
Louis Josserand
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O Código Civil de 1916: ‘a constituição do direito privado’ – 3. A abertura do sistema jurídico civil: ‘A fragmentação civilística’ – 4. A cláusula geral: ‘uma técnica legislativa’ – 5. A cláusula
geral da função social do contrato: ‘um corolário constitucional’ – 6. O princípio da função social do contrato: ‘um mandado de otimização’ – 7. O princípio da função social do contrato no novo Código Civil: ‘um ideal a trilhar’
– 8. Conclusão - Bibliografia
1. INTRODUÇÃO
O Código Civil de 1916, produto do Estado Liberal, é conhecido
como a ‘Constituição do Direito privado’, cujos postulados básicos(igualdade
e liberdade formais, segurança jurídica, completude e neutralidade) colocaram à disposição do magistrado um prontuário completo a ser aplicado
para cada caso, de maneira infalível.
Na passagem do Estado Liberal para o Estado Social, todavia,
deu-se a chamada ‘fragmentação civilística’, à vista da abertura do sistema
civil, com o advento de diversas leis especiais, que passaram a regular, de
maneira específica, institutos tipicamente civilísticos, surgindo assim os
microsistemas jurídicos.
No processo de modernização do Direito Civil, valeram-se a dou-
trina e a jurisprudência da técnica legislativa conhecida como ‘cláusula
geral’, de origem germânica, muito bem exemplificada pela conhecida função social da propriedade, que tem matriz constitucional expressa. Nesse
sentido, se a livre iniciativa deve ser exercida em consonância com a
função social da propriedade(art. 170 III da CF), o contrato, enquanto
segmento dinâmico da mesma, também se acha afetado, ainda que implicitamente, por essa mesma cláusula geral.
O princípio da função social do contrato, insculpido no artigo 421
do Novo Código Civil, é um ‘mandado de otimização’, sendo certo que a
‘função social’ é um fator limitativo da liberdade de contratar, inclusive no
que se refere ao próprio conteúdo contratual. Na sociedade
hodierna(massificada e globalizada), não é aceitável, sob qualquer ótica
científica, que o contrato leve à ruína total do aderente, do contratante
mais fraco, diante de um policitante ostensivo, economicamente voraz e
no mais das vezes invisível, sob o aspecto fático.
Alfim, no contexto da civilística constitucional, o estudo propugna
alcançar o contrato que efetive a função social, ou seja, que sirva como
instrumento de circulação da riqueza, mas também realize o ideal de
Justiça Social, na medida em que tutele a dignidade da pessoa humana,
por ser este o valor supremo da Constituição Federal.
2. O CÓDIGO CIVIL DE 1916: ‘A CONSTITUIÇÃO DO DIREITO PRIVADO’
Doutrinariamente, diz-se que o Código Civil de 1916 está inserido
em um sistema jurídico fechado, hermético e monolítico. É produto do
Positivismo Jurídico, que tinha por escopo a criação de um sistema jurídico que possibilitasse maior previsibilidade e segurança.
Não obstante em vigor a partir de 1º de janeiro de 1917, o Projeto
do Código Civil foi elaborado por Clóvis Bevilácqua em 1889, tendo
assim adotado os ideais da Escola da Exegese, cujo postulado central foi
a reelaboração do princípio da completude, de antiga tradição romana
medieval, levando ao ápice o mito do monópolio estatal da produção
legislativa.
O juiz era apenas um escravo, um servo da lei, ou, segundo as
palavras de Montesquieu, o juiz deveria ser apenas a “boca da lei”.
Era a época do ‘fetichismo da lei’, uma vez que o Código regulava
toda a vida social, de maneira completa, genérica e neutra, de modo que
não havia Direito fora do Código, na medida em que, segundo Eduardo
Sens dos Santos1 , o “direito civil passa a ser unicamente a interpretação dos termos
do Código Civil e a pertinência das normas passa a ser julgada a partir de critérios
formais, somente, sem qualquer consideração quanto ao conteúdo”.
Gestado no seio de uma sociedade agrária e pré-industrial, o Código de 1916 assim retrata um mundo de estabilidade e segurança, bem em
sintonia com o individualismo oitocentista, onde reinava, por exemplo, os
postulados da liberdade absoluta, da igualdade formal, da abstenção, retratando a ideologia dominante do Estado Burguês ou Liberal
Trata-se da “era da segurança’, em que não se admitia lacunas na lei,
e da qual o juiz era um mero artífice, um instrumento emblemático da
segurança jurídica, um aplicador autômato do Direito posto, do Direito
contido no Código, pois, no dizer de Norberto Bobbio, ‘apud’ Gustavo
Tepedino2 , “o código é para o Juiz um prontuário que lhe deve servir infalivelmente
e do qual não pode se afastar.”
3. A ABERTURA DO SISTEMA JURÍDICO CIVIL: ‘A FRAGMENTAÇÃO CIVILÍSTICA’
Precisamente, a abertura do sistema jurídico civil decorre da passagem do Estado Liberal para o Estado Social, este marcadamente
intervencionista e comprometido com o ideal de Justiça Social.
Na Europa, já a partir da segunda metade do século XIX e, no
Brasil, com a eclosão da Primeira Grande Guerra, diversos acontecimentos históricos e movimentos sociais, de variados matizes, como, por exemplo, a explosão demográfica, a industrialização, a massificação das relações contratuais, a desordenação dos centros urbanos, as doutrinas socialistas, as encíclicas sociais da Igreja, o dirigismo contratual, entre outros,
ocasionaram o declínio dos dogmas do Estado Liberal, e, por conseguinte, a derrocada dos alicerces da civilística clássica, essencialmente individualista, neutra e abstencionista.
Inicia-se assim o fenômeno de superação do Código Civil de 1916,
à vista do descompasso com nova realidade socioeconômica insurgente, a
demandar direitos e garantias.
Nesse cenário, inúmeros institutos civilístos, apesar de já previstos
no Código de 1916, passaram a ser regulados por leis especiais, extravagantes ou emergenciais, dando lugar aos chamados micro-sistemas, para
cuja existência já vaticinava o mestre Orlando Gomes 3 nos idos de 1983.
Tal fenômeno, doutrinariamente conhecido como ‘descodificação ou
fragmentação’ do Direito Civil, importou na perda, pelo Código Civil, do
seu caráter de exclusividade, enquanto centro único e emanador do Direito privado(monossistema), pois, doravante, o Direito Civil também
passou a ser produzido por leis especiais, denominadas de ‘microssistemas
jurídicos’.
A esse talante, e bem ilustrando tal fenômeno, eis o preciso magistério de Adalberto Pasqualotto4 : “A primeira grande migração foi a das leis
trabalhistas, ainda na década de 40. O direito de família refletiu a mudança dos
costumes. A concentração urbana ditou a necessidade de sucessivas leis especiais de
inquilinato. Um sistema foi estruturado para proporcionar acesso à casa própria, com
articulação de diversos negócios jurídicos, desde a incorporação imobiliária até o financiamento aquisitivo por meio de mútuo bancário, além dos seguros com função de
garantia do mutante e de quitação em favor dos beneficiários do mutuário. Tudo isso
levou a um desprestígio do Código Civil como lei básica reguladora da vida do cidadão, abalando a idéia de hegemonia legislativa, dominante no conceito de codificação.”
Uma gama de leis especiais foram editadas a partir da década de
1930, todas de forte cunho social e protetivas da parte contraente mais
fraca, valendo-se ressaltar, por exemplo, a Legislação Trabalhista(CLT), o
Decreto-Lei nº 58/37, a Lei de Condomínios(Lei nº 4.591/64), a Lei do
Parcelamento do Solo Urbano(Lei nº 6.766/79), o Estatuto da Mulher
Casada, dentre outras, chegando-se ao apogeu da ‘fragmentação’ do Direito
Civil com a promulgação da Constituição da República de 1988, que
passou a insculpir, na sua principiologia, institutos civilísticos clássicos, de
tal modo que, ao depois, surgiram diversas leis setoriais, disciplinadoras
de universos legislativos específicos, como, por exemplo, o Estatuto da
Criança e do Adolescente(Lei nº 8.069/90), o Código de Defesa do
Consumidor(Lei nº 8.078/90) e a Lei do Inquilinato(Lei nº 8.245/91).
Nesse contexto histórico, inserido no seio de uma sociedade cada
vez mais massificada e conflituosa, vale ressaltar o importante papel exercido pela jurisprudência na vivificação do Direito Civil, pois, se por um
lado o Código de 1916 se achava em completo descompasso com a realidade do Estado Social, por outro o Projeto do Novo Código Civil, não
obstante remetido ao Congresso em 1975, não logrou progredir a contento, sendo inclusive antecedido pelo Código de Defesa do Consumidor, de
1990, para muitos considerada a lei rejuvenescedora do Direito Civil, em
matéria de obrigações(contratos).
Felizmente, e, finalmente, em 11 de janeiro de 2003 entrará em
vigor no país o Novo Código Civil(Lei nº 10.406/02), que trará em seu
bojo a cláusula geral da função social do contrato(art. 421), entendida
pela novel doutrina como a mais importante inovação do Direito
Contratual comum e, talvez, a de todo o Novo Código Civil.
4. A CLÁUSULA GERAL : ‘UMA TÉCNICA LEGISLATIVA’
Como já assentado, a partir do advento do Estado Social, percebese que o Direito está inserido em um sistema aberto, flexível, dinâmico,
que permite maior discricionariedade do juiz em cada caso, inclusive podendo valer-se de conceitos extrajurídicos ou metajurídicos auferidos da
Economia, Sociologia, Biologia, Engenharia, Ciência Política, enfim, por
todas aquelas ciências que de alguma forma venha a colaborar para uma
decisão mais justa do caso concreto.
A cláusula geral é uma técnica legislativa, muito usada na vivificação
do Direito, na passagem do sistema fechado para o sistema aberto.
Inserida numa sociedade em diuturna mutação, cada dia mais
massificada, plural, despersonalizada, produtora voraz de contratos em
massa, inclusive de contratos eletrônicos(via Internet), da biogenética, da
clonagem, dentre outros fenômenos da sociedade pós-moderna, a cláusula geral tem sido um instrumental hermenêutico poderoso, indispensável
e imprescindível, à disposição do magistrado, na proteção do contratante
vulnerável(aderente) e, por via reflexa, na consecução do ideal de Justiça
Social.
Historicamente, diz-se que a expressão cláusula geral é de origem
germânica, ali conhecida como ‘general Klausel’, significando um dos dois
métodos legislativos, ao lado do método casuístico. Enquanto este comporta uma configuração analítica dos fatos e casos comuns, fazendo-os
incidir em uma hipótese legal(‘fattispecie’), a cláusula geral importa numa
formulação legal de grande generalidade e que abrange largo espectro de
casos.
No Brasil, de início, o vocábulo ‘cláusula’ se referia apenas às disposições de um contrato, de um testamento e ou de um documento similar,
não sendo usada para designar ‘uma norma jurídica’. Atualmente, diante
mesmo da insistência dos estudiosos, a expressão cláusula para designar
uma norma já se acha dicionarizada, conforme se avista no ‘Dicionário
Aurélio eletrônico’ 5 , importando dizer que o termo ‘cláusula geral’ significa
tanto a técnica legislativa quanto os preceitos que ela encerra. Por exem-
plo, ao se referir sobre o artigo 422 do Novo Código Civil, a doutrina
refere-se tanto à técnica de legislar por tipo vagos e abertos, quanto também se refere ao próprio princípio da boa-fé.
Karl Engisch, ‘apud’ Eduardo Sens dos Santos6 , assim a define: “as
cláusulas gerais exprimem a técnica de redação de preceitos legais por meio de formas
vagas e multissignificativas, que abranjam variada gama de hipóteses, em contraposição
ao método casuístico’.
Ao discorrer sobre o conceito de cláusula geral, a insigne jurista
gaúcha, Judith Martins-Costa7 , elucida “que as cláusulas gerais constituem o
meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de
princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards,
máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo”.
Ademais, diga-se que a vagueza semântica da expressão ‘cláusula
geral’, diante da imprecisão e indeterminação do seu conteúdo, é de crucial
importância no processo de abertura do sistema jurídico, pois abre caminho à mutabilidade necessária ao Direito, inserido este num momento
histórico de radical e grave mudança, numa escala de valores globalizada
e mundializada.
Em suma, com tal técnica legislativa, ao magistrado é conferida
uma maior liberdade para solucionar a novel casuística, de maneira responsável e prudente, ficando a seu critério a utilização de conceitos
metajurídicos e multissignificativos, de emprego geral e eficaz.
5. A CLÁUSULA GERAL DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: ‘UM COROLÁRIO CONSTITUCIONAL’
‘Prima facie’, impende registrar que a doutrina hodierna rechaça a
dicotomia Direito Público e Direito Privado, ou melhor, repudia a ‘summa
divisio’ dos romanos, insculpida no Livro da ‘Utilitas’, na sentença do
jurisconsulto Ulpiano, que viveu no século III d. C., quando assim dispunha: o Direito Público dizia respeito às coisas do Estado romano(ius publicum
est quod ad statum rei romanae spectat), enquanto o Direito Privado dizia
respeito ao interesse de cada um(privatum quod singulorum utilitatem).
Nesse sentido, advogando a impertinência de tal dicotomia, eis o
magistério do Professor Silvio Meira8 : “a divisão dicotômica entre direito público e direito privado, de remotas origens romanas, desfigura-se ante a trepidação do
século, em que o interesse individual, o social e o estatal se entrelaçam de tal forma que
nem sempre é fácil estabelecer suas fronteiras e as suas prioridades”.
Indubitavelmente, na sociedade moderna ou, para alguns, pósmoderna, o Direito Civil se acha constitucionalizado, entendido o Direito
Civil Constitucional como sendo “o direito civil materialmente contido na Constituição”, no dizer de Francisco Amaral9 .
Assim, é notório que a função social do contrato, no Estado Liberal, consistia simplesmente em possibilitar o equilíbrio formal e a autonomia da vontade, pois o interesse individual era o valor supremo, apenas
limitado pelo Princípio a Ordem Pública ou dos Bons Costumes, não
cabendo ao Estado e ao Direito fazer considerações sobre o ideal de
Justiça Social. Era o apogeu do Liberalismo, bem resumido pela expressão ‘Qui dit contractuelle, dit juste’, famosa expressão do jurista francês Fouillé,
ou, em português, ‘que diz contratual, diz justo’.
À evidência, tal função do contrato, nitidamente individual, não se
mostra compatível com os ideais do Estado Social, posto que este propugna
que o interesse social deve prevalecer sobre o interesse individual, uma
vez que o Estado Social, segundo Elías Diaz, ‘apud’ José Afonso da Silva10 , “tem o propósito de compatibilizar, em um único sistema, dois elementos: o
capitalismo, como forma de produção e a consecução do bem-estar social geral”. Nesse aspecto, por exemplo, vale lembrar que a própria Constituição Federal,
no seu artigo 170, expressamente estabelece que a livre iniciativa está
submetida à primazia da Justiça social, não bastando apenas a Justiça
comutativa, esta típica do liberalismo jurídico.
Em verdade, se certo é que Carta Magna/88, de forma explícita,
condiciona que a livre iniciativa deve ser exercida em consonância com o
princípio da função social da propriedade(art. 170 inciso III), e, uma vez
entendida que a propriedade representa o segmento estático da atividade
econômica, não é desarrazoado entender que o contrato, enquanto segmento dinâmico, implicitamente também está afetado pela cláusula da
função social da propriedade, pois o contrato é um instrumento poderoso
de circulação da riqueza, ou melhor, da própria propriedade.
Em suma, pois, pode-se concluir, sem vexame, que muito embora
a Constituição Federal não tenha se referido, explicitamente, acerca da
função social do contrato, assim o fez de maneira oblíqua, tangencial ou
implícita, quando em diversas ocasiões se referiu à função social da
propriedade(arts. 5º, XXIII, 186, 182 § 2º e 170 III), o que faz atestar,
em corolário, que a função social do contrato tem matriz constitucional,
ainda que de maneira ínsita ou ingênita.
6. O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO: ‘UM
MANDADO DE OTIMIZAÇÃO’
A nossa Lei Maior é de natureza principiológica e, como tal, seus
princípios têm importância não somente no corpo constitucional, mas
também em todo o ordenamento infraconstitucional.
À luz da doutrina constitucional, o ordenamento jurídico é integrado por princípios e normas, sendo certo que a expressão princípio exprime a noção de mandamento nuclear de um sistema, ou seja, o alicerce de
um sistema.
Na dicção de Robert Alexy e Letizia Gianformaggio, ‘apud’ Carlyle
Popp11 , os princípios constitucionais são ‘mandados de otimização’, insculpidos
no ápice da pirâmide constitucional e, por serem mais difusos do que as
regras, não são incompatíveis entre si, mas apenas concorrentes. Já as
regras são antinômicas.
De forma pragmática, pois, milita entre os princípios uma aparente antinomia, posto que, a depender da casuística, um princípio prevalece
em relação ao outro, por causa de sua maior importância ou pertinência,
sem a necessária exclusão do outro, em virtude da relatividade do valor
que alberga. Em relação às regras, contudo, persiste uma real antinomia e,
por conseguinte, num conflito entre duas regras obrigatoriamente uma
deve ser excluída, à vista do seu caráter absoluto, na medida em que
incidem ou não sobre determinado fato.
Em sede de direito contratual, por exemplo, há dois princípios constitucionais que fomentaram a radical mudança sofrida pela Teoria dos
Contratos: o princípio da dignidade da pessoa humana(art. 1º inciso III) e
o princípio da livre iniciativa(art. 170 caput).
Quanto ao primeiro(dignidade da pessoa humana), por se tratar de
um valor constitucional supremo, que se traduz no respeito ao ser humano, significa dizer ser o ponto central de todo o ordenamento jurídico e
para onde converge todo o espectro de interesses constitucionais. Para
tanto, a Constituição Federal repousa todo o seu manto principiológico na
proteção da dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção de que a
pessoa é o fundamento e o fim da sociedade e do Estado.
Quanto ao segundo(livre iniciativa), não se cinge tão-somente à
liberdade da empresa(comércio e indústria), mas também à liberdade de
contrato, enquanto uma das facetas da livre iniciativa. Nesse aspecto, a
livre iniciativa e, por conseguinte, o lucro, tem respaldo constitucional,
desde que o lucro não seja abusivo ou extorsivo, pois deve estar atrelado
aos ideais de Justiça Social externados nos objetivos fundamentais da
República(art. 3º da CF/88).
A simbiose desses dois princípios constitucionais devem fundar o
contrato hodierno, o contrato constitucionalizado, o contrato que efetive
o princípio da função social, por se tratar de um ‘mandado de otimização’,
consoante previsto no Novo Código Civil.
7. O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO
NOVO CÓDIGO CIVIL: ‘UM IDEAL A TRILHAR’
O artigo 421 do novel Código Civil assim estabelece:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato.
Induvidosamente, o artigo em comento guarnece dois princípios
antagônicos, quais sejam: enquanto a ‘liberdade de contratar’ deriva do princípio clássico da autonomia da vontade, típico do liberalismo individualista do século XIX, a expressão ‘função social’ decorre do ideal de Justiça
Social, consectária do Estado Social.
De que forma, pois, conciliá-los?
Ora, se certo é, como já ficou assentado, que não há incompatibilidade entre os princípios, mas apenas concorrência, é perfeitamente possível a aplicação harmônica de ambos, desde quando se perceba que a
‘função social’ se traduz num limite positivo na moderna liberdade de contratar, inclusive limitando a liberdade contratual em si, ou seja, a própria
possibilidade de fixar o conteúdo contratual.
Nesse sentido, eis a lição do eminente civilista Paulo Luiz Netto
Lôbo12 : “No novo Código Civil a função social surge relacionada à “liberdade de
contratar”, como seu limite fundamental. A liberdade de contratar, ou autonomia
privada, consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida por
muitos como o toque de especificidade do Direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite
externo ou negativo, mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos “exercida em razão e nos
limites da função social do contrato”.(art. 421).”
Na contemporaneidade, no contexto de uma sociedade massificada
e plural ao extremo, não é mais aceitável, sob qualquer ótica a analisar,
que o contrato seja um instrumento de ruína do contratante mais fraco,
levando-o à miséria ou mesmo entregando sua liberdade em razão de
eventual inadimplência contratual, sem qualquer direito de defesa. Vejase, por oportuno, diversos exemplos que infringem os direitos humanos
privados, segundo o magistério do doutrinador Fernando Rodrigues
Martins13 , a saber: a prisão civil em matéria de alienação fiduciária em
garantia; a edição da Resolução 980/84 que, em sede de contrato de
‘leasing’, o desnaturou para compra e venda e, como tal, impossibilitou
que os arrendatários pagassem somente o aluguel, elidindo o direito de
escolha ao final do contrato(art. 6º II do CDC); o leilão extrajudicial do
bem imóvel adquirido nos termos do Dec.-lei 70/66, sem a interferência
do Poder Judiciário; a resolução do contrato de trato sucessivo, ainda que
adimplido em larga escala, dentre outros.
Portanto, tal perfil contratual deve ser repudiado.
Hodiernamente, o que se busca é a realização de um contrato que
detenha a função social, ou seja, de um contrato que além de desenvolver uma função translativa-circulatória das riquezas, também realize um
papel social atinente à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e materiais, segundo os valores e princípios constitucionais.
Busca-se o contrato constitucionalizado, isto é, o contrato que concilie a livre iniciativa à Justiça social, posto que permeado pelos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e o da livre iniciativa.
Para tanto, impõe-se uma ‘mentalidade constitucionalística’...
8. CONCLUSÃO
A abertura do sistema jurídico civil deu-se na passagem do Estado
Liberal para o Estado Social. No Brasil, a partir da década de 1930, à
vista da eclosão de fatores vários, dos mais variados matizes, inúmeras
leis especiais começaram a tutelar ou regrar institutos civilístícos, de forma inédita ou mais amiudada, surgindo assim um Direito Civil
especial(‘microsistemas jurídicos’), ao derredor do Direito Civil comum, este
inserido no Código Civil de 1916.
O descompasso entre a civilística clássica(Código Civil), típica do
liberalismo jurídico, e a realidade insurgente no país, provocou o
esgarçamento ou ‘fragmentação’ do Direito Civil, cujo apogeu deu-se com a
promulgação da Carta Magna/88.
Nesse contexto, o modelo clássico de contrato entrou em crise,
mas apenas uma crise de rejuvenescimento, de vivificação, pois, mediante
a utilização da técnica legislativa conhecida como ‘cláusula geral’, valores
estranhos ao ordenamento jurídico vigente foram, paulatinamente, ingressando no próprio ordenamento, atualizando e remodelando vetustos
institutos, pela via da sistematização, graças à ação corajosa e vanguardista
de uma parcela da doutrina e da jurisprudência, bem como de alguns
diplomas legais.
Como visto, e na esteira da vivificação do contrato, a cláusula geral
da função da propriedade, de matriz constitucional, atinge e afeta também o contrato, entendido este como uma faceta do princípio da livre
iniciativa, o qual, como sabido, também deve obedecer aos ditames da
Justiça social e da função social da propriedade(art. 170 III da CF).
Malgrado a função social do contrato não tenha previsão constitucional
explícita, efetivamente tem uma previsão implícita, pois o contrato, em
sendo um desdobramento da livre iniciativa e, devendo esta respeitar à
função social da propriedade, de maneira tangencial o contrato se acha
afetado pela mesma cláusula da função social.
Destarte, arrematou-se que o princípio da função social do contrato, estampado no art. 421 do Novo Código Civil, é um ‘mandado de otimização’,
sendo que a função social ali prevista é um fator limitador positivo, não
somente da liberdade de contratar, mas também da liberdade contratual,
que diz respeito à fixação do conteúdo contratual.
Por fim, o estudo propugna por um contrato que realize a função
social, na medida em que busque conciliar os princípios constitucionais da
dignidade da pessoa humana(art. 1º inciso III) e o da livre iniciativa(art.
170 caput), servindo ao mesmo tempo como um instrumento de circulação de riquezas e um instrumento realizador do ideal de Justiça Social,
basicamente tutelando a pessoa humana, que é o valor supremo da nossa
Lei Maior.
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2
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1
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4
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5
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. ‘Dicionário Aurélio eletrônico’. vol. 2.0. Verbete ‘cláusula’.
6
Op. cit., p. 16.
7
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: sistema e
tópica no processo obrigacional. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p.274.
8
MEIRA, Silvio. “O Instituto dos Advogados Brasileiros e a Cultura Jurídica Nacional”. In: O Direito Vivo. Goiânia: Universidade Federal
de Goiás, 1984, p. 285.
9
AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. 3ª edição. Rio de
Janeiro-São Paulo: Renovar, 2000, p. 151.
10
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14ª
edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 116.
11
POPP, Carlyle. “Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e a Liberdade Negocial – A Proteção Contratual no Direito
Brasileiro”. In: Direito Civil Constitucional. Cadernos I. Renan
Lotufo(Coordenador). São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 162.
12
LÔBO, Paulo Luiz Netto. “Princípios Sociais dos Contratos no
Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil”. In: Revista de
Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho, 2002,
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13
MARTINS, Fernando Rodrigues. “Direitos Humanos do Devedor”. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais,
julho-setembro, 2001, v. 39, p. 151-152.
3
“COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR
E JULGAR O CRIME DE ABUSO DE
AUTORIDADE EM RAZÃO DA LEI DOS
JUIZADOS FEDERAIS”.
Evânio José de Moura Santos, Procurador do
Estado/SE. Advogado. Pós-Graduado em Direito
Público pela UFS. Professor de Direito Penal e
Processo Penal da Escola Superior da Magistratura/SE e da Escola Superior da Advocacia/SE.
Professor de Processo Penal da UNIT.
I – NOVA DEFINIÇÃO DE INFRAÇÃO PENAL DE PEQUENO
POTENCIAL OFENSIVO
Com a vigência da Lei 10.259/2001 diversas alterações de cunho
processual foram produzidas. Inicialmente referido instrumento normativo
ampliou o conceito de infração penal de ofensividade reduzida, estabelecendo como sendo da alçada dos Juizados Especiais Criminais todas as
contravenções penais e os crimes punidos com sanção abstratamente
cominada de até dois anos, independentemente do crime ter sua competência adstrita à Justiça Comum Estadual ou Federal.1
Além deste alargamento que teve por parâmetro o quantitativo
das penas, referido instrumento normativo em seu art. 2º, parágrafo único não registra qualquer vedação no que pertine a figuras típicas apuráveis
por rito próprio previsto no Código de Processo Penal ou em lei processual extravagante.
Desse modo, conclui-se, também, que as infrações penais com pena
máxima prevista de até dois anos, mesmo que possuindo uma ritualística
estabelecida em Lei (v.g., crimes contra a honra, arts. 519/523), não mais
serão regidas por tais procedimentos e sim pelo que dispõe a Lei 9.099/
95 (arts. 69, 72, 76 e arts. 77/83)2.
Resta cristalino que o legislador infraconstitucional objetivou com
a presente medida acrescer a incidência da Justiça Penal Consensual,
fulcrada na composição, no entendimento, na avenca (plea bargaining),
buscando cada vez mais afastar o homem do contato nefasto com o
cárcere e aplicando os princípios da oralidade, simplicidade, informalidade
e celeridade processual (art. 2º, Lei 9.099/95), que representam a melhor
forma de dar efetividade à prestação jurisdicional, tornando o Judiciário
mais próximo do homem comum do povo e evitando a justiça tardia que
se transmuda em ausência de justiça.
Com efeito, os Juizados Especiais Criminais passam a incidir na
apuração e eventual punição de todas as figuras típicas com as características acima delineadas. Entrementes, impõe-se um questionamento: Existe exceção à regra da competência dos Juizados Especiais para crimes
com sanctio juris igual ou inferior a dois anos? Ou melhor: Todas as modalidades delituosas que prevêem rito próprio estão amalgamadas à
abrangência dos Juizados?
Em meu entender duas situações excepcionam a regra da competência do Juizado Especial Criminal, mesmo a pena in thesi cominada para
o delito sendo igual ou inferior a dois anos: as causas que guardem complexidade de análise ou de conteúdo probatório, gerando grande indagação jurídica, cuja previsão legal de deslocamento de competência encontra-se contida no art. 77, § 2º da Lei 9.099/95 e o delito de abuso de
autoridade, em qualquer uma de suas modalidades (Lei 4.898/65, arts. 3º
e 4º).
Em próximo trecho será melhor esmiuçado este entender no que
tange ao abuso de autoridade, deplorável conduta típica praticada por
agentes públicos que conspurcam direitos dos cidadãos com o arbítrio, o
excesso, o uso indevido do poder.
II – DA INAPLICABILIDADE DA LEI 10.259/01 NAS HIPÓTESES DESCRITAS COMO ABUSO DE AUTORIDADE
Conforme afirmado alhures, posiciono-me no sentido de que os
crimes que anteriormente contavam com rito próprio e delimitado em lei
estão diretamente vinculados aos institutos e à ritualística prevista na Lei
9.099/95 por força do art. 2º, parágrafo único da Lei 10.259/01, com
exceção de um tipo penal específico: abuso de autoridade.
É que retromencionada figura penal, definida na Lei nº 4.898/65,
corporificada em uma das diversas situações alojadas nos arts. 3º e 4º,
possui a previsão de pena privativa de liberdade orçada de forma tacanha
nos limites mínimo de 10 dias e, máximo de 06 meses de detenção e
multa (art. 6º, § 3º, Lei 4.898/65) guardando em seu bojo um óbice
intransponível para que se aplique o rito do Juizado Especial, qual seja: a
probabilidade da perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra
função pública por prazo de até três anos, como sanção penal a ser aplicada
para todo agente que extrapolar os limites de sua atuação pública, para
aqueles que autoritariamente transbordarem suas atribuições funcionais.
Eis a questão crucial a ser analisada.
Ademais, custa-nos acreditar que um crime de extrema gravidade,
que viola a um só tempo o bom andamento da administração pública
(princípios da legalidade, eficiência, moralidade, razoabilidade e
proporcionalidade, dentre outros, encartados de forma explícita ou implícita no caput do art. 37 da Norma Normarum) achincalha e atenta contra o
Estado Democrático de Direito, venha a se constituir em delito de bagatela. Como considerar de pequeno potencial ofensivo a conduta do pernicioso policial que prende outrem fora das situações legais, ou ainda, agride fisicamente um preso ou viola o domicílio alheio?
Com efeito, não obstante ser a pena privativa de liberdade relativamente reduzida para o crime de abuso de autoridade (repise-se, 10 dias a
06 meses) a mais relevante sanção é a que prevê a perda do cargo público
e a impossibilidade de novamente voltar a ser investido em cargo ou
função pública durante um interstício de 03 anos e não a privativa de
liberdade. É dizer: o agente público responsabilizado pelo abuso de autoridade tem a temer muito mais a perda do cargo, inserindo-se no contexto, inclusive, o componente econômico, do que a reprimenda a sua liberdade, passível de ser convertida em multa ou qualquer uma das penas
restritivas de direitos (art. 44, § 2º do Código de Iras).
Imperioso ressaltar que no tocante à supressão do cargo ou inabilitação para o exercício de função pública, por prazo de até três anos,
têm-se o seguinte entendimento: “tais penas, que no Código Penal de 1940
eram consideradas penas acessórias e que, com a reforma de 1984, passaram a
constituir efeitos da condenação e penas restritivas de direito, em face da Lei 4.898, de
09.12.1965, são consideradas penas principais, admitida ainda a sua
aplicação cumulativa com as penas privativas de liberdade e multa”.3
Como bem firmado pelos ilustres autores mencionados, em lapidar obra que comenta o Diploma Legal que encarta a reprimenda penal
ao abuso de autoridade, tratam-se a perda do cargo e a inabilitação para
volver ao serviço público por um triênio, da própria sanção e não dos
efeitos da condenação.
Cumpre-nos demonstrar, ainda que an passant, a diferença entre
efeito da condenação e a própria sanção abstratamente prevista. Calha à
fiveleta o posicionamento de professor de escol, que lecionando sobre a
matéria afirma: “Os efeitos específicos da condenação (art. 92, do CP) não se
confundem com as penas de interdição temporária de direitos, subespécies das restritivas de direitos (art. 47). A diferença substancial consiste em que estas são sanções
penais, conseqüências diretas do crime, e substituem, a pena privativa de liberdade,
pelo mesmo tempo de sua duração (art. 55); aqueles são conseqüências reflexas, de
natureza extrapenal, e são permanentes”.4
Ademais, de acordo com o art. 92 do Código de Iras, os efeitos
específicos da condenação, não automáticos, adstritos à motivação cabal
no decreto condenatório, no que pertine a perda de cargo ou função
pública por parte do servidor se apresenta, empós a Lei 9.268/96 de
duas formas: quando o crime é praticado contra a administração pública
e a condenação supera um ano e quando se trata de delito comum (não
existindo correlação com a administração pública), cuja condenação ultrapasse os quatro anos.
Portanto, bastante diversas as situações entre pena principal
(restritiva de direitos) cumulada com privativa de liberdade e multa em
cotejo com os efeitos da condenação. Servindo de arremate é importante
destacar que a previsão de pena restritiva de direito adicionada com a
privativa de liberdade e multa também ocorre nos casos de crimes de
trânsito (arts. 302, 303, 306, 307 e 308 da Lei 9.503/97), não constituindo a situação da Lei de Abuso de Autoridade fato isolado ou ineditismo
normativo.
III - APLICAÇÃO DO RITO PRÓPRIO PREVISTO NA LEI 4.898/
65 PARA AS FIGURAS TÍPICAS CONTIDAS NA DEFINIÇÃO DE
ABUSO DE PODER
Desse modo, como a perda do cargo ou inabilitação para o reingresso
nos quadros do serviço público em qualquer nível (federal, estadual ou
municipal, administração direta ou indireta) encontra-se no espírito da
pena e não sendo um mero desdobramento da mesma, inviabilizada está
a incidência do art. 2º, parágrafo único da Lei 10.259/01, eis que mesmo
em tese existindo uma pena privativa de liberdade de pequena monta, o
fato de se prever esta outra modalidade de sanção penal impossibilita a
incidência dos institutos da Lei 9.099/95.
Ademais, seria o caso de perguntar: como transacionar o cargo
público (art. 76, Lei 9.099/96)? Por óbvio, não existe qualquer possibilidade de se propor um acordo para um agente público que desrespeita os
limites de sua função, até porque, consoante acima demonstrado, referida
conduta não é de pequeno potencial ofensivo, ao contrário, pode resultar
em danos indeléveis e inolvidáveis.
Por estas razões acredito que não seria razoável, escorreito e proporcional aplicar os preceitos da Lei 9.099/95 às situações onde reste
cabalmente demonstrada a existência de abuso de autoridade, devendo os
feitos que apuram tão nefando delito tramitarem pelo rito próprio previsto na Lei 4.898/65, ocorrendo a aplicação subsidiária dos preceitos e
institutos guardados no Código de Processo Penal (art. 28, Lei 4.898/65).
O servidor público que extrapola os limites funcionais e se torna
nocivo para a administração pública não faz jus ao tratamento da Lei
9.099/95 (aplicar composição civil ou transação penal para um policial
ou carcereiro que espanca detentos, aviltando o ser humano, prende e
algema indevidamente, desrespeita garantias de jaez constitucional, é no
mínimo por uma pá de cal no sistema normativo e no querer da Norma
Ápice de 1988, além de incentivar o surgimento de novas práticas delituosas
de teor idêntico). Trilhando a mesma senda avista-se entendimento com
igual sentir 5.
Por outro vértice deve ser sublinhado que existem posicionamentos
doutrinários, emanados da pena de estudiosos de boa cepa, que afirmam
ser possível a depender da situação concreta, a conceituação do delito de
abuso de autoridade como sendo de pequeno potencial ofensivo e, por
conseguinte, devendo-se aplicar os institutos da Lei 9.099/95 conjuminados
com o art. 2º, parágrafo único da Lei 10.259/01, basicamente sustentando o argumento de que “Em fatos graves, gravíssimos, certamente o juiz refutará
a transação penal (nos termos do art. 76, § 2º), por não ser ela suficiente para
reprovar a culpabilidade do agente. Isso ocorrendo, instaura-se o processo criminal e no
final o juiz imporá a ou as sanções cabíveis”6.
Discordo desta forma de pensar. Não existe abuso mais grave e
abuso menos grave. Todos os fatos relacionados com abuso de autoridade são intensos e de grandes proporções, gerando menoscabo ao Estado
Democrático de Direito, razão pela qual não merece prosperar o argumento de que com base na subjetividade do julgador em interpretar a
intensidade da culpabilidade aplicar-se-ia ou não a Lei dos Juizados Fede-
rais. Melhor se apruma a situação caso se obste a aplicação da Lei dos
Juizados Federais que desconsidera o rito próprio para as condutas
permeadas por abuso de autoridade.
V – CONCLUSÃO
Não remanesce o menor laivo de dúvida de que a Lei 10.259/01
operou substancial modificação no ordenamento jurídico brasileiro, sobremaneira no que tange a definição de crime de menor potencial ofensivo, dilatando este conceito que agora passa ser aplicado para todos os
delitos com pena de até dois anos, independentemente de existir ou não
rito delimitado para apuração desta ou daquela conduta típica.
Todavia, somente um delito de forma específica merece ficar afastado da aplicação dos dispositivos das Leis 9.099/95 e 10.259/01: o crime de abuso de autoridade, eis que sobredita conduta típica prevê como
pena in abstracto a perda do cargo ou função pública, discrepando da
hipótese dos efeitos da condenação, consistindo, à toda evidência, a própria condenação, restando impossibilitado o enquadramento de tal infração como sendo de reduzido potencial ofensivo. Efetivamente não o é.
De mais a mais, deve-se reavivar que em se tratando de abuso de poder
violam-se princípios constitucionais caros à organização do Estado e bom
andamento da Administração Pública, além de se fazer tábua rasa da
norma penal e de garantias basilares do cidadão, como a liberdade, integridade física e moral, intimidade e vida privada, dentre outras.
Por essas razões é que não se pode lavrar termo circunstanciado
ao invés de inquérito policial, deixar de prender em flagrante ou se caracterizar a impossibilidade de prisão processual, resta impraticável a composição civil e a transação penal para os delitos de abuso de autoridade
agasalhados na Lei 4.898/65.
É preciso mais rigor na apuração e eventual punição daqueles que
extrapolam suas atribuições legais e funcionais, para, quiçá um dia, possamos estar livres dos agentes públicos, sempre em número reduzido, que
nos coram de vergonha ante seus propósitos e condutas atentatórias ao
Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana e a cidadania. É o que se pretende ver posto em prática em nossas plagas.
V – BIBLIOGRAFIA
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte
Geral. São Paulo: Saraiva, 6ª edição, 2000.
FREITAS, Gilberto Passos de., e FREITAS, Vladimir Passos de.
Abuso de autoridade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 9ª edição, 2001.
GOMES, Luiz Flávio. “Juizados criminais federais, seus reflexos
nos juizados estaduais e outros estudos”. Série As Ciências Criminais no
Século XXI – Vol. 08. São Paulo: RT, 2002.
SANTOS, Evânio José de Moura. “O novo conceito de infração
penal de pequeno potencial ofensivo e a ampliação da competência dos
Juizados Criminais em razão da Lei dos Juizados Federais”. Revista da
ESMESE, nº 02, 2002, pp. 242-256.
SOUSA, Cláudio Calo. “A incidência da Lei nº 10.259/01 no Juizado
Especial Criminal Estadual”. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal,
nº 13, abril/maio 2002.
SANTOS, Evânio José de Moura. O novo conceito de infração penal
de pequeno potencial ofensivo e a ampliação da competência dos Juizados Criminais
em razão da Lei dos Juizados Federais. Revista da ESMESE, nº 02, 2002, pp.
242/256.
1
GOMES, Luiz Flávio. Juizados criminais federais, seus reflexos nos juizados
estaduais e outros estudos. Série As Ciências Criminais no Século XXI – Vol.
08. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 19/22.
3
FREITAS, Gilberto Passos de., e FREITAS, Vladimir Passos de.
Abuso de autoridade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 9ª edição, 2001, p.
104.
4
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte
Geral. São Paulo: Saraiva, 6ª edição, 2000, p. 630.
5
SOUSA, Cláudio Calo. A incidência da Lei nº 10.259/01 no Juizado
Especial Criminal Estadual. Revista Síntese de Direito Penal e Processual
Penal, nº 13, abril/maio 2002, pp. 153/159.
6
GOMES, Luiz Flávio. Ob. cit., p. 28.
2
ARMA DE BRINQUEDO: ARMA OU
BRINQUEDO?
Ana Leila Costa Garcez
Sumário: 1. Introdução. 2. Art. 10, § 1º, inciso II da Lei nº 9.437/
97. 3. Objetividade jurídica. 4. Potencialidade ofensiva da arma de brinquedo. 5. Princípio da legalidade X Analogia. 6. Uso da arma de brinquedo no delito de roubo: cancelamento da Súmula 174 do STJ. 7. Notas
conclusivas.
1 – INTRODUÇÃO
Há menos de uma década, a arma de brinquedo representava apenas uma atividade lúdica, dos entretenimentos de criança inspirados pelas
mais diversas fontes. O cinema, principal destas fontes, em que mocinhos
e bandidos disputavam algo precioso, como o amor de uma dama, um
tesouro etc, servia para estimular os pequenos a reproduzirem tais batalhas em suas brincadeiras. Não se pode dizer que era das diversões a mais
inocente, entretanto, não chegava a ser uma preocupação de que pudesse
transformar-se em tendência à marginalidade.
Hodiernamente, esse cenário sofreu uma grande transformação,
conseqüência da violência que assola as grandes cidades do mundo, originada por variados fatores e que tem feito, paulatinamente, desaparecer
do mundo infantil um objeto que servia de distração para as crianças.
A criminalidade tem-se apresentado de inúmeras formas, utilizando-se da melhor tecnologia e de todos os recursos disponíveis. Dentre as
manifestações mais freqüentes, encontram-se os tipos de armas com
potencialidade ofensiva capazes até mesmo de vencer uma guerra, inclusive aquelas privativas do Exército.
No que se refere à natureza da arma de brinquedo a doutrina
diverge. Parte entende que é arma, visto que o seu uso demonstra uma
maior periculosidade no agente, em comparação àquele que comete o
crime à mão limpa. Parte defende que arma de brinquedo é apenas brinquedo em forma de arma.
A arma finta aparece como um meio eficaz utilizado pelo ofensor
para intimidar, ameaçar, coagir e constranger a vítima a ceder e facilitar a
atividade delituosa. Sendo, por isso, o seu uso objeto de reflexão da sociedade, dos juristas e, principalmente, do legislador que tem a função de
elaborar leis que possam coibir a prática de atos criminosos.
2 – ART. 10, § 1º, INCISO II DA LEI Nº 9.437/97
utilizar arma de brinquedo, simulacro de arma capaz de atemorizar outrem,
para o fim de cometer crimes;
O legislador, no afã de refrear o crescente número de crimes cometidos com o uso de arma de brinquedo, descurou-se no emprego das
palavras utilizadas na redação do inciso ora em análise, impondo ao
aplicador a necessidade de dar uma solução, interpretando-o de forma a
adequar aos fins pretendidos, visto que se trata de incriminação de conduta.
Uma interpretação gramatical apenas, já frustraria qualquer aplicação do dispositivo, pois utilizar significa tornar útil; empregar com utilidade;
aproveitar; fazer uso de; valer-se de; empregar utilmente; ser útil ou proveitoso1, ou
seja, implicaria na necessidade do cometimento de crimes outros, com o
emprego de arma de brinquedo, para a consumação deste delito autonomamente.
O que na verdade o legislador quis tipificar foi o porte de arma de
brinquedo com o fim de cometer crimes, porque a utilização de arma
finta já é punível de forma secundária pela prática do delito-fim que é
geralmente mais grave.
Levantam-se aí duas questões: a primeira, é que é inconciliável a
utilização com o fim específico de cometer crimes, porque aquela (a utilização)
somente é possível no momento em que se inicia a execução destes (crimes). A redação do artigo tenta harmonizar uma conduta presente (utilização), com uma finalidade futura (com o fim de cometer crimes) que,
de fato, se efetivam (ambas as condutas) num único momento.
A segunda questão, é que para o agente ser punido pelo crimemeio, utilização de arma de brinquedo, em concurso com o crime-fim,
estar-se-ia violando frontalmente o princípio da consunção, segundo o
qual um fato mais amplo e mais grave consome, isto é, absorve outros fatos menos
amplos e graves, que funcionam como fase normal de preparação ou execução, ou como
mero exaurimento2. Quando se pune o delito-fim, pune-se também o delitomeio, porque quem atinge o todo, atinge a parte.
3 – OBJETIVIDADE JURÍDICA
A objetividade jurídica dos delitos previstos na Lei nº 9.437/97 é
múltipla, pois há o objeto jurídico principal e imediato que é a incolumidade
pública, a segurança coletiva, e há o objeto jurídico mediato e secundário
que é a vida, a incolumidade física e a saúde da pessoa3. Não se está com
isso sobrepondo a incolumidade pública a direitos fundamentais como a
vida. É que se protegendo o interesse coletivo, automaticamente está sendo conferida
tutela aos bens particulares4. O legislador apenas adianta-se e tipifica a conduta preparatória de outro delito como crime autônomo, na tentativa de
reduzir o cometimento da infração mais grave.
A arma de brinquedo, em circunstância alguma, ofende ou ameaça
de lesão os bens jurídicos ali protegidos. O que o legislador fez foi equiparar a arma de brinquedo à arma de fogo, o que de fato é inconcebível5.
Esta paridade provoca uma grave injustiça, qual seja: um agente que comete um delito portando uma arma verdadeira, responde por um crime
apenas; já o sujeito que pratica infração utilizando-se de arma finta, será
punido pela infração prevista no inciso II, do § 1º do art. 10 da Lei nº
9.437/97, em concurso com o delito cometido, caso seja aceita a interpretação supra.
Pelo temor que impõe à vítima, a tipificação do porte de arma de
brinquedo poderia, quando muito, ter como objetividade jurídica a paz
pública, porque de fato esta é violada quando alguém porta um instrumento que provoca medo na população, causando intranqüilidade ao corpo social. Nenhuma outra lesão a bem jurídico penalmente protegido,
poderia ser ocasionada pela simples conduta de carregar consigo uma
arma finta. É bem verdade que, quando do efetivo cometimento de outros delitos com a utilização de arma de brinquedo, é possível também
que haja lesão ao objeto jurídico liberdade individual.
4 – POTENCIALIDADE OFENSIVA DA ARMA DE BRINQUEDO
Para uma análise coerente da potencialidade delitiva da arma finta,
faz-se necessária uma conceituação do que seja arma. Para a língua portuguesa é instrumento ou engenho de ataque ou de defesa6. A doutrina, tendo em
vista a conceituação restrita, procura ampliar tal significado. Consoante
GALDINO SIQUEIRA infere-se por arma, em falta da definição legal, em
geral, todo instrumento apto para ferir, matar, ameaçar, seja propriamente dita (faca,
revólver, etc.), ou não, como uma pedra, uma pesada chave de porta, etc7.
Diante do conceito, resta claro que a potencialidade ofensiva da
arma é a possibilidade de praticar todas, ou ao menos, a maioria daquelas
condutas com um único instrumento.
Será que uma arma de brinquedo enquadra-se nas definições anteriores? Seria possível atacar ou defender-se com uma arma de brinquedo? Seria possível ferir ou matar com uma arma finta? Parece-me
inverossímil.
A única conduta prevista na conceituação doutrinária que pode ser
atingida com a arma de brinquedo é a ameaça, mas isso não nos autoriza
a qualificá-la como espécie (arma de brinquedo) daquele gênero (arma).
Porque se assim fosse, todos os meios de execução do crime de ameaça,
tais como a palavra, escritos, gestos, etc, seriam considerados armas.
De fato, a potencialidade ofensiva da arma de brinquedo apenas
pode atingir o bem jurídico liberdade individual, pois a mesma é meio
eficaz de intimidar, ameaçar, coagir e constranger pessoas a exprimirem o
que não é o seu querer, a agirem de forma que se estivessem sob sua total
liberdade, seja psíquica, íntima, física, etc, não o fariam, ao menos da
maneira como imposta.
5 – PRINCÍPIO DA LEGALIDADE8 X ANALOGIA
não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal.
É, dos princípios orientadores do Direito Penal, indubitavelmente,
o mais importante. Garantia constitucional, torna-se imprescindível sua
utilização na interpretação de toda e qualquer norma incriminadora.
O princípio da legalidade é expresso na Constituição Federal, art.
5º, XXXIX e no Código Penal, art. 1º. Sendo assim, uma conduta somente é típica se prevista em lei elaborada nos termos da Carta Maior. Não
há no ordenamento jurídico brasileiro, outra fonte para as normas
incriminadoras. Aqui a reserva legal é absoluta. E não poderia ser diferente, visto que não se admitiria restrições a direito fundamental (liberdade
de agir) por outro instrumento senão a lei em sua compreensão formal e
estrita, originada do Poder Legislativo, autorizado pelo próprio princípio.
O direito de punir do Estado, no exercício de sua soberania, está
condicionado a limites impostos pelo princípio da reserva legal. Nem o
Poder Executivo, nem o Poder Judiciário podem, através de seus atos,
criar normas que restrinjam os direitos individuais dos cidadãos no que se
refere ao preceito penal.
Não há incompatibilidade entre o princípio da reserva legal e a
analogia no âmbito penal, apenas o primeiro veda a utilização da segunda
na tipificação de condutas sem lei anterior que as definam. Entretanto, é
possível se verificar a aplicação analógica entre as normas permissivas e
as não incriminadoras.
A analogia consiste em aplicar a uma hipótese, não regulada por lei, disposição relativa a um caso semelhante9, ou seja, não é fonte do Direito Penal, mas
somente forma de auto-integração da lei.
Diante dessa definição, como seria possível interpretar o inciso II,
do § 1º, do art. 10 da Lei nº 9.437/97 no sentido de entender-se portar
onde está escrito utilizar? Não se estaria aí fazendo uso da integração
analógica para incriminar conduta que a lei não previu? E o princípio da
legalidade não estaria violado, originando uma inconstitucionalidade na
interpretação?
Convém aqui citar FERNANDO CAPEZ que de forma sintética
expõe a questão: o tipo não trata do porte de arma de brinquedo, nem pode
incriminar a sua utilização no cometimento de crime. No primeiro caso, estar-se-ia
empregando analogia para alcançar condutas atípicas, ofendendo-se, com isso, o princípio da reserva legal; no segundo, o agente estaria respondendo duas vezes pelo mesmo
fato, violando-se novamente aquele princípio10.
6 – USO DE ARMA DE BRINQUEDO NO DELITO DE ROUBO:
CANCELAMENTO DA SÚMULA 174 DO STJ
As maiores discussões acerca do tema central deste estudo têm
origem nos crimes de roubo, em que a incidência do uso de arma de
brinquedo é mais freqüente. Por esta razão, o Superior Tribunal de Justiça, no ano de 1996, num ato de infelicidade, editou a Súmula 174:
no crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo
autoriza o aumento da pena.
A divergência não foi pacificada, ao contrário, ganhou força, uma
vez que aumentou a certeza dos que já defendiam que a arma de brinquedo era arma e, em contrapartida, exacerbou a indignação dos que
sustentavam o oposto, reforçando a idéia de que a hipótese era tão absurda que se tornou necessário sumulá-la no intuito de impor um entendi-
mento11.
Em 2001, o Superior Tribunal de Justiça, reviu seu posicionamento
acerca da questão e cancelou a polêmica Súmula 174. Já não foi sem
tempo. Aliás, tal entendimento jurisprudencial jamais deveria ter sido
sumulado, face ao absurdo jurídico que representa, consagrando flagrante caso de aplicação analógica à norma incriminadora, apesar da vedação
imposta pelo princípio da legalidade.
Conforme análise retro (item 5), não cabe ao operador do Direito
criar novos tipos penais. Se o legislador não se referiu a arma de brinquedo no inciso I, do § 2º, do art. 157 do Código Penal é porque não teve a
intenção de qualificar o delito com o uso desse tipo de instrumento, sendo
vedado ao aplicador fazê-lo.
Entretanto, não se pode ainda comemorar o cancelamento da
Súmula 174 do STJ, face à projeção que vem ganhando um entendimento que, da mesma forma, afronta todo o ordenamento jurídico brasileiro
por todas as razões expendidas e que é exposto por FERNANDO CAPEZ,
da seguinte forma: Atualmente, com a revogação da Súmula 174 do Superior
Tribunal de Justiça, tende a ganhar força a corrente que sustenta que, na hipótese de
roubo praticado com arma de brinquedo (também simulacro ou arma finta), o agente
responderá por roubo simples, sem a majorante do inc. I do § 2º do art. 157 do
Código Penal, já que a arma de brinquedo não mais constitui causa de aumento, por
não se equiparar à de verdade, em concurso material com a figura do art. 10, § 1º, II,
da Lei n. 9.437/9712.
7 – NOTAS CONCLUSIVAS
Diante do nosso ordenamento jurídico, não é possível incriminar
as condutas de portar e/ou utilizar arma de brinquedo com o fim de
praticar crimes, ou durante o seu cometimento, por todas as diversas
razões já expendidas.
Não cabe ao operador da lei penal buscar meios para dar eficácia
às normas incriminadoras elaboradas de forma defeituosa, qual seja, o
inciso II, do § 1º, do art. 10 da Lei nº 9.437/97. Seu papel é aplicá-la ao
caso concreto, dando-lhe a interpretação que os princípios constitucionais, que norteiam o sistema, autorizam.
Quando o legislador comete um equívoco na tipificação de infrações penais é incumbência sua retificá-lo, pois o intérprete jamais poderá
utilizar-se de qualquer meio que não seja a lei para enquadrar uma conduta ao tipo penal.
Vale evocar a conclusão precisa de FERNANDO CAPEZ que
não deixa nenhuma dúvida acerca de que só nos resta lamentar e considerar o
tipo “natimorto”, ou seja, ineficaz desde a sua entrada em vigor. Contra nossa vontade, somos obrigados a reconhecer a existência de um tipo suicida, no qual as elementares se chocam de tal maneira que o tornam um nada jurídico. Forçoso reconhecer,
portanto, que na lei podem existir, sim palavras inúteis13.
Não sendo possível, diante de nosso ordenamento jurídico,
incriminar as condutas de portar e/ou utilizar arma de brinquedo, esta
continua tendo natureza de brinquedo, entretanto esta natureza vem sendo enfraquecida pela resistência dos pais, educadores, pedagogos, psicólogos etc, em permitir que pessoas em desenvolvimento, como crianças e
adolescentes, façam uso de um brinquedo que possa despertar sentimentos que ainda não saibam como lidar. Mas, isso é outra discussão que
merece um estudo aprofundado.
E para encerrar, não poderia deixar de citar LENIO STRECK
que fazendo referência ao tema, em Seminário, realizado em Gramado
no ano de 2001, lançou a provocante advertência: Se a arma de brinquedo é arma, ursinho de pelúcia é urso14.
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque, Novo Dicionário da
Língua Portuguesa (2ª edição), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.
1745.
2
CAPEZ, Fernando, Direito Penal: Parte Geral, São Paulo: Edições
Paloma, 2000, p. 49.
3
No mesmo sentido HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, Lições de
Direito Penal: Parte Especial, São Paulo, v. 3, p. 767, n. 713 e LUÍS FLÁVIO
GOMES e WILLIAM TERRA DE OLIVEIRA, Lei das Armas de Fogo,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 49.
4
JESUS, Damásio E. de, Porte de Arma de Fogo e Assemelhados, São
Paulo: Saraiva, 1999, p. 16.
5
Daí a brilhante observação de ALBERTO SILVA FRANCO de
que constitui “absurdo sem paralelo na legislação penal brasileira”, in
Arma de Brinquedo, São Paulo,: Revista Brasileira de Ciências Criminais –
Revista dos Tribunais, 1997, p. 71.
6
HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque, Novo Dicionário da
Língua Portuguesa, cit., p. 164.
7
SIQUEIRA, Galdino, Tratado de Direito Penal, Tomo IV.
1
O princípio da legalidade aqui considerado como sinônimo do
princípio da reserva legal, consoante entendimento dominante na doutrina.
9
CAPEZ, Fernando, Direito Penal: Parte Geral, cit, 24.
10
CAPEZ, Fernando, Arma de Fogo: Comentários à Lei n. 9437, de 202-1997, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49.
11
Este argumento nos faz refletir sobre os perigos da adoção da
súmula vinculante.
12
CAPEZ, Fernando, Arma de Fogo, cit., p.51.
13
CAPEZ, Fernando, Arma de Fogo, cit., p. 50.
14
Citado por ILHA SILVA, Ângelo Roberto, “O Cancelamento da
Súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça”, in Boletim IBCCRIM nº
109, 2001,p. 5.
8
A GESTÃO FISCAL E O CRIME DE
CONTRATAÇÃO DE OPERAÇÃO DE
CRÉDITO
Manoel Cabral Machado Neto, Assessor Técnico
1– CONSIDERAÇÕES GERAIS.
A realidade vivida por este país, antes do advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, evidenciava comportamentos e situações de profunda desorganização e falta de seriedade para com os recursos públicos.
Era tradição entre os nossos administradores públicos a realização
de gastos exacerbados, ultrapassando e exorbitando a programação dos
orçamentos. Esta prática pode ser simbolicamente representada por uma
“bola de neve”, que descia do pico da montanha de maneira incontrolável,
despejando toda sua força, muito difícil de ser suportada, sobre os eventuais sucessores.
Havia controles e meios que, concatenando os Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, buscavam barrar os desmandos e buscar o ressarcimento do abalado erário.
Entretanto, os tipos e modalidades de controles que existiam e que
ainda persistem, tais como o Mandado de Segurança, a Ação Popular, o
controle interno exercido por cada Poder Constitucional, o controle externo de legalidade, legitimidade, operacional, o financeiro e o orçamentário, todos feitos pelo Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de Contas, ou
então, a fiscalização feita pelo Ministério Público, por meio de Ações de
Improbidade Administrativa, exigiam um reforço frente à voraz
irresponsabilidade dos administradores.
A irresponsabilidade era tão crescente que até a opinião pública
passou a clamar por uma maior responsabilização e eficiência no controle
do orçamento público. Além disso, autores de escol como Luiz Flávio
Gomes e Alice Bianchini afirmam que o Fundo Monetário Internacional,
principal parceiro do Brasil nas relações econômicas a nível internacional,
passou a exigir o incremento da fiscalização das finanças públicas, inclusi-
ve como condição para empréstimos e ajudas futuras. Tudo com apoio
do Banco Mundial e dos países que integram o G7.
Neste contexto, no dia 4 de maio de 2002, foi sancionada a Lei
Complementar nº 101/2000, a famosa e propalada Lei de Responsabilidade Fiscal que estabelece normas regulamentadoras das finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, dando outras providências. Ela se apóia em quatro alicerces. São eles: planejamento, transparência, controle e responsabilização.
Mais tarde, para enrijecer ainda mais este controle, foi sancionada
a Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, prevendo condutas criminosas relacionadas com as finanças públicas.
Efetivamente, havíamos dado um importante passo na busca de
uma maior responsabilidade no trato do Erário. E isto pôde ser constatado por meio de um fato concreto. A preocupação que surgiu com a novel
lei foi tão intensa, que é notório o levante de grande número de Prefeitos
Municipais, empossados em 1º de janeiro de 2001, rumo a Brasília, para
principalmente reivindicar a alteração do prazo de vigência.
Verifiquemos, então, o crime de contratação de operação de crédito previsto no artigo 359-A do Código Penal.
2 - ARTIGO 359-A. CONTRATAÇÃO DE OPERAÇÃO DE CRÉDITO
2.1 – Descrição
O crime descrito no artigo 359-A possui o nomen iuris “contratação
de operação de crédito”. Há críticas sobre esta denominação, uma vez
que não há delito em se contratar operação de crédito, mas, isto sim, em
fazê-lo sem a autorização legal ou extrapolando os termos de lei existente.
Vejamos a sua redação:
Ordenar, autorizar ou realizar operação
de crédito, interno ou externo, sem prévia autorização legislativa:
Pena – reclusão de um a dois anos.
Parágrafo único. Incide na mesma pena
quem ordena, autoriza ou realiza operação de crédito, interno ou externo:
I – com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei
ou em resolução do Senado Federal.
II – quando o montante da dívida consolidada ultrapassa o limite máximo autorizado por lei.
Desde já, evidencia-se que se trata de uma norma penal em branco, ou seja, trata-se de uma norma que descreve uma conduta carente de
completude. Com efeito, o comportamento delitivo é descrito incompletamente, exigindo-se um complemento legal.
Conclui-se, também, que se trata de um crime de ação múltipla ou
de conteúdo variado, uma vez que o tipo penal descreve várias modalidades de realização do crime. Caso o agente venha a cometer mais de uma
conduta descrita no tipo, ele responderá por delito único, ante a aplicação
do Princípio da Alternatividade.
2.2 – Objetividade Jurídica
O objeto jurídico de um crime é o bem ou o interesse tutelado pela
norma penal.
O crime de contratação de operação de crédito possui duas objetividades jurídicas:
a)O equilíbrio do Orçamento Público;
b)O controle legislativo dos Gastos Públicos.
2.3 – Sujeitos do Delito
O sujeito ativo do delito é o agente público que possui atribuição
para ordenar, autorizar ou realizar a contratação de operação de crédito.
Trata-se, portanto, de um crime próprio, ou seja, só pode ser cometido
por uma categoria de pessoas, pois exige que o agente tenha uma condição ou qualidade pessoal.
Aquele que não é agente público também poderá responder pelo
delito. A qualidade de agente público é uma elementar subjetiva e, por
força do artigo 30 do Código Penal, ela se comunica ao extraneus que age
em co-autoria ou participação, desde quando este conheça a qualidade
aludida em seu parceiro do crime.
Os sujeitos passivos do delito são os entes que possuem orçamento, isto é, a União, Estados, Distrito Federal, autarquias, fundações, sociedades de economia mista, empresa pública, etc.
2.4 – Tipo Objetivo
Três são os núcleos do delito:
a)Ordenar: mandar, determinar;
b)Autorizar: conferir autorização;
c)Realizar: efetuar, pôr em prática.
O conceito de contratação de operação de crédito vem disposto
no inciso III do artigo 29 da Lei de Responsabilidade Fiscal, com a seguinte redação:
É o compromisso financeiro assumido
em razão de mútuo, abertura de crédito,
emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda
a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.
A contratação pode ser interna, ou seja, feita em nosso país, bem
como externa, isto é, realizada com o exterior. Neste último caso, ela
depende de autorização específica do Senado Federal (Lei Complementar
nº 101/00, artigo 32, parágrafo 1º, inciso IV).
Como se observa acima, para que se configure o delito é necessário que as condutas ocorram “sem prévia autorização legislativa”.
Esta expressão é o elemento normativo do tipo, exigindo-se do intérprete
um juízo de valoração. A doutrina costuma classificar os delitos que possuem em seu bojo elementos normativos como tipos anormais. O professor Fernando Capez, em seu Curso de Direito Penal – Parte Geral – Volume
1, 2002, 4ª edição, Saraiva, pág. 173, leciona:
“Os tipos que possuem elementos normativos são considerados anormais: alargam muito o campo de
discricionariedade
do
julgador, perdendo um pouco de sua característica básica de delimitação”.
2.5 – Consumação e Tentativa
A consumação ocorre, quando a conduta é ordenar ou autorizar,
com a mera ordem ou autorização. Representam, portanto, crimes formais. Caso a contratação de operação de crédito ocorra, estaremos diante
de um mero exaurimento do delito.
Já quando se fala no comportamento de realizar, o crime resta
consumado quando efetivamente a contratação de operação de crédito
ocorre. Evidencia-se, portanto um crime material.
A doutrina entende possível a tentativa destes delitos, porém manifesta que é difícil a sua verificação.
2.6 – Tipo Subjetivo
As condutas acima descritas somente são puníveis a título de dolo,
ou seja, o agente tem a vontade livre e consciente de ordenar, autorizar
ou realizar a contratação de operação de crédito, ciente da inexistência de
autorização legislativa.
A modalidade culposa não é admitida.
2.7 – Figuras típicas equiparadas ao caput
No parágrafo único, vislumbram-se condutas que são equiparadas
ao comportamento ilícito constante no caput.
Nas mesmas penas do caput, incorre aquele que ordena, realiza ou
autoriza a contratação de operação de crédito, interno ou externo:
a) com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei ou em resolução do Senado Federal;
b) quando o montante da dívida consolidada ultrapassa o limite
máximo autorizado por lei.
Sobre o conceito de dívida consolidada, ou fundada, entende-se
aquele previsto no artigo 29, inciso I, da Lei de Responsabilidade Fiscal:
Dívida consolidada ou fundada é
o montante total, apurado sem
duplicidade, das obrigações financeiras
do ente da federação, assumidas em
virtude de leis, contratos, convênios ou
tratados e da realização de operações
de crédito, para amortização em prazo
superior de 12 meses.
Assim, a diferença fundamental entre as condutas do caput e as
previstas no parágrafo único é que as primeiras são cometidas quando
não existe prévia autorização legislativa, enquanto as últimas se concretizam violando-se autorização legislativa em vigor.
3 - IMPORTANTES CONSIDERAÇÕES
3.1 - Os crimes descritos são todos apurados por meio de Ação
Penal Pública Incondicionada. Havendo justa causa, isto é, indícios suficientes de autoria e materialidade do delito, o Ministério Público deverá
instaurar a persecutio criminis in judicio, de forma oficial, oficiosa, obrigatória,
indivisível e indisponível.
3.2 - A doutrina, liderada pelo sempre lembrado Prof. Damásio E.
de Jesus (Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal, Saraiva, 2001, pág.
611), evidencia a possibilidade de aplicação, em tese, de uma causa
excludente de ilicitude, qual seja, o estado de necessidade.
Situações como a seca ou inundações criam um alto número de
pessoas flageladas, as quais necessitam, urgentemente, de atendimento e
socorro por parte do Estado.
Em tese, situações semelhantes a estas permitiriam que o administrador público se afastasse dos ditames legais de observância obrigatória
para a contratação de operação de crédito, obtendo recursos para conferir o mínimo de dignidade para as pessoas que viessem a sofrer por conta
de calamidades da natureza.
Não se quer aqui dizer que o administrador poderá agir a seu belprazer. Mas que, diante do confronto entre o bem jurídico tutelado pela
norma penal e as súplicas de grande número de administrados afetados
em sua dignidade humana, é possível flexibilizar a norma jurídico-repressiva para que o administrador não reste “engessado” no seu munus, cuja
finalidade é única, isto é, o bem-estar de seus administrados.
3.3 - Autores como Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes (Crimes de
Responsabilidade Fiscal, 1ª edição, RT, 2001), que cultuam o Princípio da
Ofensividade, manifestam o entendimento de que só há crime se a operação de crédito contratada for de valor expressivo. Do contrário, não haveria lesão ou perigo de lesão concreta ao orçamento público.
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na verdade, não é por meio de leis que o Brasil deixará aquela
imagem que nos vem quando nos reportamos à administração do dinheiro público. O mais eficiente combate aos comportamentos acima mencionados, sem dúvida, é a consciência do gestor da coisa pública. Merecem
ser transcritas as palavras do Desembargador Régis Fernandes de Oliveira, em seu livro Responsabilidade Fiscal, 1ª ed., RT, 2001, pág. 5:
“O administrador público não só
tem que parecer honesto, como tem o
dever de assim se comportar. Independentemente de ser um princípio constitucional previsto no artigo 37 da Constituição da República, há o dever ético
de ter conduta impecável. Não se trata
do fato de confundir princípios morais
com jurídicos. Cuida-se da incorporação de deveres éticos ao ordenamento
normativo. As condutas humanas são
captadas, como ímã, da realidade fática
e trazidas ao mundo jurídico”.
“Ser probo na gestão de cargo
ou função pública deixa de ser seu
pressuposto ou mera obrigação moral
para constituir-se em dever jurídico”.
BIBLIOGRAFIA:
GOMES, Luiz Flávio... et allii. Crimes de responsabilidade fiscal. 1ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001
GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. 1ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002
Oliveira, Régis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001
Capez, Fernando. Curso de direito penal – Parte Geral. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
Delmanto, Celso...et allii. Código penal comentado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
UMA REFLEXÃO SOBRE O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA PARA INSTITUIR A CONTRIBUIÇÃO DE
MELHORIA
Marcelo Jatobá Lôbo
“É insuficiente e injusto o sistema tributário que não reconheça êste instituto
jurídico. Não reconhecê-lo e não explorá-lo importam no mesmo. Insuficiente porque
desprezará preciosa forma de financiamento de obras públicas das quais tanta necessidade tem a sociedade moderna. Injusto porque onerará desigualmente os cidadãos e
não respeitará as elementares exigências de justiça distributiva, abandonando sólidos
indícios científicos de proporcionalidade, asseguradores de um sistema équo de repartição de encargos tributários.”
(Geraldo Ataliba, Natureza jurídica da contribuição de
melhoria)
Sumário: 1. Introdução – 2. Sobre as normas de competência – 3.
O conteúdo do princípio da igualdade – 4. A igualdade na lei e sentido
positivo do princípio isonômico – 5. A mais-valia decorrente de obras
públicas e o princípio da igualdade – 6. Os instrumentos previstos pelo
sistema para corrigir a distorção – 6.1. A contribuição de melhoria – 6.2.
A desapropriação por zona – 7. Breves considerações acerca do princípio
da proporcionalidade - 8. O subprincípio da necessidade e a
inconstitucionalidade da desapropriação por zona – 9. O exercício obrigatório da competência para instituir a contribuição de melhoria - 10.
Inconstitucionalidade por omissão: a medida sancionatória imposta ao
descumprimento do dever de legislar- 11. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Três constatações são encontradas, com certa freqüência, nas obras
dos autores que se ocupam com o estudo da contribuição de melhoria,
quais sejam: a) trata-se de tributo de grande importância socioeconômica;
b) a despeito da sua relevância, não vem sendo implementado na prática;
c) o não exercício da competência corresponde a um problema estritamente político, prevalecendo, nesse particular, a decantada característica
da “facultatividade”.
O desafio deste trabalho consiste em analisar a ausência de tributação por meio do gravame em perspectiva, sob um enfoque exclusivamente jurídico. O interesse perseguido é o de questionar a facultatividade
do exercício da competência, em face da atual Carta Magna. Acredita-se
seja oportuno rediscutir essa temática, conduzindo-se a análise em direção ao princípio da igualdade.
Partiremos, nesta ordem de idéias, das seguintes indagações, a saber: seria possível optar pela não tributação da contribuição de melhoria,
permitindo-se que a mais-valia imobiliária seja absorvida por uns poucos,
em detrimento de toda a coletividade, que arca, ao fim e ao cabo, com os
custos da edificação? A inércia do legislador encontraria respaldo no texto
constitucional?
São questionamentos que não mereceram um desenvolvimento
mais aprofundado por parte da doutrina. Reconhece-se, de uma maneira
geral, que a contribuição de melhoria atende ao primado da igualdade,
mas não se perquire, mais detidamente, acerca da influência desse princípio na composição da regra de competência daquele tributo. Deplora-se a
falta de efetividade, mas não se põe em questão a faculdade de desencadear o exercício da respectiva competência.
Intentar-se-á demonstrar que a exação em tela é instrumento único
e necessário à realização do princípio da igualdade, no que atina com a
problemática da mais-valia imobiliária decorrente de obra pública, e que a
inércia do legislador da União, dos Estados e dos Municípios, nesta vertente, não escapa da pecha de inconstitucionalidade por omissão.
2. SOBRE AS NORMAS DE COMPETÊNCIA
As normas de competência 2 recebem outras denominações na literatura teórico-jurídica. São conhecidas, por exemplo, como normas sobre
produção jurídica, normas de estrutura3 e regras que conferem poderes4.
Riccardo Guastini, criticando o uso da expressão “normas que
conferem poderes” para designar as normas sobre produção jurídica (como
ele prefere chamar), anota que existem, pelo menos, cinco espécies de
regras dessa natureza e que as outorgativas de poderes corresponderiam
apenas a uma delas. Haveria, assim:
1) Normas que atribuem poderes, vale dizer, que “adscriben un poder normativo a un determinado sujeto o, más precisamente, el poder de crear un
determinado tipo de fuente del derecho” [instrumento normativo] ...;
2) Normas procedimentais, que regulam o exercício do poder conferido, referindo-se aos “procedimientos para crear las fuentes del derecho en
cuestión”;
3) Normas que determinam as matérias sobre as quais se pode
versar, ou seja, que “circunscreben el âmbito del poder conferido”;
4) Normas que destinam determinadas matérias a instrumentos
introdutores específicos, “de modo que: a) ninguna outra fuente está habilitada
para regular esa materia; y b) la fuente a favor de la que se estabelece la reserva no
está autorizada para delegar la regulación de la materia en cuestión”;
5) Normas que ordenam ou proibem o legislador de ditar leis sobre determinado conteúdo. “Por ejemplo: las normas constitucionales que prohiben
al legislador el dictado de leyes retroactivas o de leyes discriminatorias ...”
Portanto, na esteira da lição do jurista italiano, a competência não
pode ser reduzida a uma norma apenas. É algo bem mais complexo,
envolvendo um conjunto de regras jurídicas. Procuraremos demonstrar
que a instituição da Contribuição de Melhoria é conteúdo de uma norma
que determina o exercício da competência tributária, significando dizer
que o comportamento do legislador da União, dos Estados e dos Municípios é qualificado pelo modal obrigatório5. Para fazê-lo, é necessário mergulhar no universo da interpretação sistemática, passando-se pelos princípios da igualdade e proporcionalidade, pelo instituto da desapropriação
por zona e, finalmente, pela sanção que o sistema oferece para o
descumprimento do dever constitucional de legislar.
3. O conteúdo do princípio da igualdade
Quando, ao se fazer uma comparação, afirma-se a igualdade ou
dissemelhança entre duas coisas, está-se externando um enunciado de
cunho relacional, regido pela teoria dos predicados poliádicos6. A Igualdade não é, portanto, um atributo, uma propriedade inerente às coisas como
objetos singulares, mas uma relação entre dois termos7.
Por isso é que, como o assinala Garcia Maynez8, reportando-se às
lições de Hans Neft, só há igualdade onde houver diferença, isto é, onde
se apresentarem pelo menos duas pessoas, coisas ou situações distintas
que se colocam em comparação. A isonomia só se caracteriza, com efeito,
porque uma entidade não se reduz à outra (uma não é a outra). Não fosse
assim, e já não se poderia cogitar de isonomia entre dois termos, mas de
identidade.
No que atina com os seres humanos, múltiplas são as diferenças
que podem ser tomadas como base para a discriminação: idade, sexo,
grau de escolaridade, etc9. Mas em que circunstâncias e sob quais condições se justifica e se impõe tratamento desigual entre as pessoas?
A resposta a esse questionamento não é de fácil determinação. Isto
porque a igualdade é um valor e os valores sempre rendem ensejo a
divergências interpretativas, em função dos padrões axiológicos de quem
os avalia. Talvez por essa razão, quase tudo o que já se disse sobre o
princípio da isonomia, como observa José Artur Lima Gonçalves10, pode
ser resumido na clássica lição de Ruy Barbosa que preconiza a equiparação de tratamento aos iguais e a desequiparação aos desiguais, na medida
em que se desigualam.
Alguns autores, todavia, trouxeram contribuições científicas importantes para compreensão desse primado fundamental. No Brasil, merece particular destaque o contributo de Celso Antônio Bandeira de Melo,
em seu Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Nesse livro, que já se
tornou um clássico da literatura jurídica nacional, aponta o referido autor
quatro aspectos que devem ser observados para que a discriminação
possa conviver com o princípio em foco. São eles:
a) A desequiparação não pode ser tão específica, a ponto de alcançar, de forma atual e absoluta, um só indivíduo;
b) O traço diferencial a ser eleito deve ser intrínseco às pessoas,
coisas ou situações objeto do tratamento desigual. Não se pode, dessa
forma, eleger um fator neutro, externo às pessoas, situações ou coisas
discriminadas;
c) Deve-se estabelecer, ainda que implicitamente, o nexo lógico
entre o fator de discrímen e o tratamento diferenciado;
d) Finalmente, o vínculo entre o fator de discriminação e a desigualdade de tratamento deve estar em consonância com os valores constitucionalmente consagrados11.
A contribuição de melhoria mostra-se intimamente ligada ao princípio isonômico. Com efeito, a instituição daquela é imprescindível para a
efetiva realização deste último. É necessário, entretanto, avançar mais
nesse raciocínio, o que se fará nos próximos itens.
4. A IGUALDADE NA LEI E O SENTIDO POSITIVO DO PRINCÍPIO ISONÔMICO
Tornou-se assente na doutrina o entendimento segundo o qual o
destinatário, por excelência, do princípio da igualdade é o legislador, aqui
entendido em sua acepção estrita, isto é, como órgão do Poder Legislativo.
Fala-se, assim, não só em igualdade perante a lei, mas em isonomia na
própria lei. Aliás, se o primado em questão não se dirigisse precipuamente
ao legislador, careceria de um sentido útil, perdendo o seu status constitucional, na exata medida em que seria reduzido, como observa J.J Gomes
Canotilho12, a uma mera refração do princípio da legalidade.
Portanto, não só o aplicador do direito, mas, também – e principalmente-, o legislador deve observar o princípio isonômico. Fá-lo-á sempre
que mantiver a igualdade como conteúdo necessário da lei, de modo que
a obediência ao primado da legalidade implique, ipso facto, a submissão ao
princípio da isonomia 13.
O sentido mais comum da igualdade na lei é negativo, a saber:
vedar a imposição de discriminações arbitrárias. Trata-se de um controle
realizado em face de um diploma legal já existente. O legislador, que é
livre para exercer sua competência, não o pode fazer em desconformidade
com o princípio da isonomia. Se o fizer, estará incorrendo em
inconstitucionalidade por ação.
A igualdade possui, entretanto, um sentido positivo, que se não
dirige diretamente ao controle da lei, mas a exige como meio, como instrumento para a sua realização. Reclama-se, desta feita, uma atuação positiva
do legislador para assegurar a observância a esse primado fundamental14.
Cuidar-se-á, no presente ensaio, de uma hipótese de aplicação do
princípio da isonomia nesse sentido positivo. Com efeito, a atividade
legislativa será vista aqui, não como algo a ser controlado, mas como um
instrumento de realização daquele princípio e sobre cuja ausência recai a
eiva de inconstitucionalidade por omissão15.
5. A mais-valia decorrente de obras públicas e o princípio da igualdade
O Poder Público deve dispensar aos administrados um tratamento
isonômico. Sua atividade, desenvolvida no interesse de todos, não deve
ocasionar privilégios ou detrimentos a certos indivíduos ou a grupos determinados de pessoas. Em algumas oportunidades, todavia, a Administração, no desempenho de suas atribuições, gera, ainda que não o pretenda, benefícios ou prejuízos a terceiros. Para remediar situações tais, o
sistema jurídico oferece os instrumentos adequados.
Não é por outra razão que o fundamento da responsabilidade civil
do Estado repousa no princípio isonômico. Di-lo, com a percuciência que
lhe é peculiar, Celso Antônio Bandeira de Melo16:
“No caso de comportamentos ilícitos, assim como na hipótese de danos ligados a situação criada pelo Poder Público - mesmo que não seja o Estado o
próprio autor do ato danoso- entendemos que o fundamento da responsabilidade estatal é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos
lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de
atividades desempenhadas no interesse de todos. De conseguinte, seu fundamento é o
princípio da igualdade, noção básica do Estado de Direito”.
Prossegue o autor17:
“Se houve conduta estatal lesiva a bem jurídico garantido de terceiro, o princípio da igualdade –inerente ao Estado de Direito- é suficiente para reclamar a
restauração do patrimônio jurídico lesado. Qualquer outra indagação será despicienda,
por já haver configurado situação que reclama em favor do atingido o patrocínio do
preceito da isonomia”.
Se o desempenho das atribuições do Estado não pode gerar prejuízos, não deve, de igual modo, ocasionar privilégios. O fundamento é
rigorosamente o mesmo: o princípio da isonomia. Trata-se do outro lado
da mesma moeda. Não seria crível, com efeito, admitir que uma atividade, custeada por todos e desenvolvida em prol dessa coletividade, pudesse resultar em benefícios particulares a certos e determinados indivíduos.
Examinemos o tema da mais-valia imobiliária. Quando a atuação
do Estado consiste na execução de uma obra pública, duas conseqüências
podem acontecer: a uma, incremento do valor dos imóveis circunvizinhos;
a duas, desvalorização daqueles prédios. Esta última hipótese, menos comum, rende ensejo à reparação econômica; aquela primeira, mais freqüente, reclama a absorção da mais-valia pelo Poder Público.
Se o Estado, por meio do instrumento adequado, não chamar para
si a plus valia, estará desatendendo o princípio da igualdade. Com efeito,
para que os beneficiados fizessem jus ao incremento imobiliário, teriam
de ser diferentes dos demais membros da coletividade. Seria, então, de
indagar-se: qual o traço diferencial, inerente aos proprietários favorecidos
pelo sobrevalor, que os distinguiria das outras pessoas? Só há uma coisa
que, na hipótese em questão, os diferenciaria: a circunstância de residirem
nas proximidades da obra pública. Mas é este um fator neutro, externo
aos beneficiados, que, por isso mesmo, não pode justificar o tratamento
desigualitário. Mais uma vez, convoca-se o magistério seguro de Celso
Antônio Bandeira de Melo18:
“Em outras palavras: um fator neutro em relação às situações, coisas ou
pessoas diferençadas é inidôneo para distingui-las. Então, não pode ser deferido aos
magistrados ou aos advogados ou aos médicos que habitem determinada região do país
– só por isto- um tratamento mais favorável ou mais desfavorável juridicamente.
Em suma, discriminação alguma pode ser feita entre eles, simplesmente em razão da
área espacial em que estejam sediados.”
A desequiparação provocada pela atuação administrativa exige que,
aos olhos do legislador, sejam os proprietários dos imóveis circunvizinhos
considerados desiguais. Reconhece-o Priscilla da Cunha Rodriguez. Para
a autora, o incremento do valor dos imóveis auferido pelos proprietários
que se beneficiaram com a edificação seria fator de discrímen juridicamente relevante para exigir a diferença de tratamento19. Esse benefício especial torná-los-ia desiguais, submetendo-os, por isso mesmo, um tratamento diferenciado: o pagamento da contribuição de melhoria.
Com efeito, se se quiser preservar o princípio da igualdade entre
os administrados, não se pode aceitar a permanência do sobrevalor imobiliário com os proprietários dos imóveis adjacentes à obra pública. E
para isso já advertia Geraldo Ataliba em 196420:
“Que igualdade pode haver num sistema tributário em que uns poucos privilegiados recolhem para si, sem compensação, especiais benefícios decorrentes de obras
públicas? É exigência do princípio da isonomia a recuperação da mais valia imobiliária oriunda de obra pública”.
A mais-valia imobiliária deve ser, portanto, absorvida, total ou parcialmente, pelo Estado. Mas qual (is) o (s) meio (s) que o sistema ofereceria para tanto? É o que se verificará, a seguir.
6. OS INSTRUMENTOS PREVISTOS PELO SISTEMA PARA
CORRIGIR A DISTORÇÃO
6.1 A contribuição de melhoria
A contribuição de melhoria foi introduzida no Brasil pela Constituição de 1934. De lá para cá, todos os textos constitucionais, com exceção da Carta de 193721, previram-na, de forma explícita, em dispositivos
específicos. A Constituição de 1988 consagrou-a, como um tributo comum a todas as pessoas jurídicas de direito público interno, no artigo
145,III . Ei-lo:
ART. 145 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão22 instituir os seguintes tributos:
(...)
III- contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
Apesar da sintética redação desse dispositivo, a maioria da doutrina entende, não sem acerto, que a cobrança da c.m permanece condicionada à realização de obra pública que implique incremento no valor dos
imóveis circunvizinhos. Trata-se de uma relação de causa (obra) e efeito
(valorização imobiliária) necessária à exigência da exação. Para dizê-lo
com outras palavras: consiste, como observa com acuidade Priscilla
Figueiredo da Cunha Rodrigues23, numa relação de causalidade social,
inserida no plano do ser. Como a linguagem que se põem a descrevê-la
está submetida à lógica alética, que governa o plano ôntico, poder-se-á
falar em verdade ou falsidade, de acordo com a verificação empírica24.
Assim, se a feitura da obra pública engendrar a valorização imobiliária, a relação de causa e efeito estará perfeita (será verdadeira) e o
tributo poderá ser cobrado. Se, ao contrário, o nexo causal deixar de se
verificar, não será possível exercer a tributação.
Na primeira hipótese, o relato em linguagem do acontecimento
implica a constituição do respectivo vínculo obrigacional, por força de
uma outra relação de causalidade, mas, desta feita, de natureza jurídica.
Diferentemente do primeiro nexo, essa última relação causal não habita o
plano do ser, é antes decretada pelo fenômeno da imputação normativa,
pertencendo, portanto, aos domínios do dever ser25.
Já que a feitura da obra, só por si, é condição necessária, mas não
suficiente para a incidência da norma tributária, é lícito concluir, como
fê-lo Geraldo Ataliba26, que a contribuição de melhoria consiste num tributo indiretamente vinculado a uma atuação estatal e mediatamente referido ao obrigado. Com efeito, entre a obra e o sujeito passivo da exação,
intercala-se o incremento do valor do imóvel. Nisso distingui-se da taxa,
para cuja cobrança exige-se uma atuação direta do Estado e imediatamente referida ao obrigado.
Um estudo mais completo do tributo em perspectiva pediria a
consideração de cada um dos critérios componentes de sua regra matriz
de incidência, além de outros aspectos. A análise poderia ser desenvolvida
a partir, por exemplo, das seguintes indagações:
a) Seria a c.m uma subespécie de taxa ou um tributo autônomo?
b) Estaria a cobrança do gravame em perspectiva sujeita ao limite
global (o custo da obra) e/ou ao individual (o sobrevalor alcançado pelo
patrimônio)?
c) O princípio da capacidade contributiva aplicar-se-ia à c.m?
d) O Código Tributário, na parte relativa a essa exação, e o Decre-
to nº 195/67 poderiam traçar, na qualidade de veículos introdutores de
normas gerais, a disciplina da contribuição de melhoria, fixando limites e
impondo requisitos?
São questionamentos que, ao lado de outros tantos, poderiam ser
enfrentados num estudo que tenha o tributo em questão por temático.
Não os apreciaremos, todavia, nem cuidaremos dos aspectos da regramatriz de incidência, em atenção à finalidade e, sobretudo, aos limites
desse trabalho.
Fundamental para os nossos propósitos é o registro de que a contribuição de melhoria destina-se à transferência aos cofres estatais do
sobrevalor alcançado pelos imóveis que margeiam a obra pública. É, portanto, um tributo que incide sobre a mais-valia imobiliária 27.
6.2 A desapropriação por zona
A desapropriação por zona, prevista no artigo 4ª do Decreto-lei
n.3365/41, consiste na expropriação de uma área maior do que aquela
que fora declarada de utilidade pública. Com outras palavras: alcança-se,
com ela, a zona contígua ao espaço destinado à realização da obra ou do
serviço28. O instituto destina-se ao implemento de dois objetivos distintos:
um, reservar a área para posterior ampliação da obra; dois, revender o
espaço valorizado com a edificação.
A segunda hipótese seria sucedânea da contribuição de melhoria.
Teria rigorosamente a mesma finalidade: transferir para os cofres estatais
o sobrevalor patrimonial alcançado em virtude da obra pública. Essa
modalidade de desapropriação por zona não resiste, todavia, ao cotejo
com o princípio da proporcionalidade. É o que será demonstrado no
próximo tópico.
7. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE
O princípio da proporcionalidade integra, ainda que implicitamente, o sistema jurídico brasileiro. Para alguns, seria uma decorrência do
primado fundamental do Estado de direito; para outros, um princípio
sustentado na cláusula do devido processo legal, compreendida numa
acepção substantiva. Seja como for, é largamente reconhecido pela doutrina e adotado, com freqüência, pelos juízes e tribunais, inclusive, pelo
Supremo Tribunal Federal.
O referido princípio desdobra-se em três elementos parciais ou
subprincípios: a) adequação, b) necessidade e c) proporcionalidade em
sentido estrito. Luiz Roberto Barroso29 explica, de forma sintética, o sentido de cada uma dessas três vertentes:
“A doutrina- tanto lusitana quanto brasileira- que se abebera no conhecimento jurídico produzido na Alemanha reproduz e endossa essa tríplice caracterização da
proporcionalidade, como é mais comumente referido pelos autores alemães. Assim é que
dele se extraem os requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas
pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impões a verificação da inexistência de meio menos gravoso
para atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é
a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável
a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos .”
Para a compreensão do tema que faz nossos cuidados, interessa a
análise, ainda que sucinta, do princípio da necessidade ou da menor ingerência possível.
8. O SUBPRINCÍPIO DA NECESSIDADE E A INCONSTITUCIONALIDADE DA DESAPROPRIAÇÃO POR ZONA
O subprincípio da necessidade é, por vezes, tratado autonomamente e, não raro, identificado com a proporcionalidade propriamente
dita30. Trata-se de um limite objetivo que exige a obtenção do resultado
pretendido através do meio menos oneroso. Em palavras de J.J. Gomes
Canotilho31:
“Esse requisito, também conhecido como ‘ princípio da necessidade’ ou da
‘menor ingerência possível’ coloca a tônica na idéia de que o cidadão tem direito a
menor desvantagem possível. Assim exigir-se-ia sempre a prova de que, para a
obtenção de determinados fins, não era possível adaptar outro meio menos oneroso
para o cidadão.”
Pois bem, a desapropriação por zona não se compadece com o
princípio em foco, mercê da disponibilidade de um meio menos gravoso
para alcançar idêntico resultado: a contribuição de melhoria. Não faz
sentido impor ao cidadão a perda de sua propriedade, sendo possível
alcançar o mesmo objetivo com o pagamento de um valor pecuniário,
que, sobre ser um instrumento menos oneroso, é a forma que a própria
Constituição Federal concebeu para absorver a mais-valia imobiliária decorrente de obra pública. Essa constatação não escapou à argúcia de
Celso Antônio Bandeira de Melo32:
“Contudo, reputamo-la inconstitucional quando destinada à revenda
das áreas que se valorizarem extraordinariamente em conseqüência da obra.
Pelo menos duas razões assomam para levar a tal entendimento. Uma é a de que a
própria Constituição prevê, em seu art. 145, III, a contribuição de melhoria, concebida para captar a valorização obtida à custa de obra pública. É este, então, o
instituto idôneo a absorvê-la. Outra, a de que, se o Poder Público tem um meio para
atingir o objetivo em causa, não pode se valer de outro que impõe ao administrado
gravames maiores (a perda da propriedade) que os necessários para alcançar o fim que
lhe serve de justificativa (recolher a valorização extraordinária).”
A cobrança da contribuição de melhoria é, portanto, o instituto
idôneo a promover a transferência da mais-valia imobiliária aos cofres
públicos, consistindo, por via de conseqüência, no único33 instrumento de
realização do princípio da igualdade nesse particular.
9. O EXERCÍCIO OBRIGATÓRIO DA COMPETÊNCIA PARA A
INSTITUIÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA
Operamos com a premissa de que as regras jurídicas não estão nos
textos. São, antes sim, construídas pelo intérprete a partir da leitura dos
enunciados veiculados pelos diferentes instrumentos normativos (Constituição, leis, decretos, etc.). Se as normas não estão nos textos do Direito
Positivo, só se pode chegar à regra de competência para a instituição da
c.m percorrendo o trajeto de geração de sentido, numa palavra, interpretando34. Mas qual seria o itinerário mais seguro, o viés conducente a melhores resultados? Reputa-se chegado o ensejo de perscrutar as exigências
do conjunto normativo. É a oportunidade de ver o texto como um “todo
de sentido”. O momento de respeitar a importância capital do princípio e
valorizar a unidade sistemática.
Vimos de ver que a contribuição de melhoria é o meio que o
sistema põe à disposição do Estado para transferir aos seus cofres o
incremento imobiliário resultante de obra pública. É, pois, um instrumento de realização do princípio da igualdade, na exata medida em que evita
que uns poucos privilegiados se locupletem às custas de toda a coletividade.
Portanto, construir a norma de competência para a instituição da
c.m desconsiderando o valor igualdade é tergiversar o itinerário conducente
à interpretação sistemática. É distrair-se da trajetória que contempla o
sistema como um todo unitário, não se contentando com a análise de
enunciados isolados.
O primado da isonomia está a exigir, por tudo o que foi dito, o
modal obrigatório para qualificar a conduta de legislar sobre o tributo em
causa. Se estivéssemos diante de uma simples faculdade, o não exercício
da competência importaria a inobservância permanente a esse princípio
fundamental, legitimando o privilégio de alguns em detrimento do todo.
Não parece ser essa a melhor exegese.
Poder-se-ia objetar que o artigo 145, III, da CF optara pela
facultatividade, referindo-se ao verbo poder (... poderão instituir...). A presença desse verbo denunciaria, sem a necessidade de maiores reflexões,
um preceito permissivo. Essa objeção pode satisfazer aos mais afeitos a
uma exegese estritamente literal, mas deve encontrar resistência entre
aqueles que se não contentam com a análise de orações isoladas, preferindo o texto à frase, o sistema à particularidade35.
É necessário ter presente que, para o direito, o termo “pode” assume, muita vez, como observar Carlos Maximiliano36, as proporções de
“deve”. Seu sentido literal não raro contrasta com a orientação do próprio sistema. Portanto, não o cotejar com o contexto em que está inserido
é equívoco que deve ser evitado. Passe-se a palavra a esse clássico da
hemenêutica jurídica:
“Se, ao invés do processo filológico de exegese, alguém recorre ao sistemático e
ao teleológico, atinge, - às vezes, resultado diferente: desaparece a antinomia verbal,
pode assume as proporções e o efeito de deve (2). Assim acontece quando um
dispositivo, embora redigido de modo que traduz na aparência, o intuito de permitir,
autorizar, possibilitar, envolve a defesa contra males irreparáveis, a prevenção relativa a violações de direitos adquiridos, ou a outorga de atribuições importantes para
proteger o interesse público ou franquia individual (3). Pouco importa que a competência ou autoridade seja conferida, direta ou indiretamente; em forma positiva, ou negativa: o efeito é o mesmo (4); os valores jurídico-sociais conduzem a fazer o poder
redundar em dever, sem embargo do elemento gramatical em contrário.” (Grifo
nosso)
O legislador exprime-se numa linguagem técnica, significa dizer,
numa linguagem essencialmente natural, entremeada, todavia, de algumas
expressões de cunho científico. “Os membros das Casas Legislativas, em países
que se inclinam por um sistema democrático de governo, representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são médicos, outros bancários37...”. Não se pode esperar
dessa linguagem prescritiva a precisão terminológica reclamada pelo discurso científico. Cabe aos intérpretes desapegarem-se do sentido literal
das palavras, para encontrar a disciplina que o sistema impõe para a situ-
ação específica.
Se essas assertivas forem procedentes, o que parece ser uma verdade irrefutável, acredita-se seja possível sustentar a obrigatoriedade do
exercício da competência para a instituição da c.m. Mas para isso é necessário vencer a resistência em admitir que, no campo das competências
legislativas, a Constituição pode, ainda que não seja a regra, impor deveres e não meras faculdades.
10. INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO: A MEDIDA
SANCIONATÓRIA IMPOSTA AO DESCUMPRIMENTO DO DEVER
CONSTITUCIONAL DE LEGISLAR
A omissão constitucional caracteriza-se quando ocorre a
inobservância, por inércia, de um dever de legislar. Para supri-la, a Constituição de 1988 consagrou dois instrumentos: um, a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão; e dois, o mandado de injunção. À finalidade desse trabalho, interessa aquela primeira, já que este último
consubstancia um mecanismo de realização de direitos subjetivos, não se
destinando a suprir objetivamente o vício de omissão, mas a satisfazer
interesses individuais38.
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão está prevista
no artigo 103, §2º da Carta Magna39. Lá está dito que o Supremo Tribunal Federal dará ciência da mora ao respectivo órgão legislativo para que
este tome as providências necessárias. Tal dispositivo é alvo de críticas
por parte da doutrina. Pondera-se, de uma maneira geral, que o legislador,
uma vez cientificado, pode simplesmente deixar de cumprir o dever de
legislar, não estando a sua inércia sujeita a qualquer retaliação.
É bem verdade que o constituinte poderia ter avançado um pouco
mais na disciplina do instituto em perspectiva, para assegurar um cumprimento efetivo dos ditames constitucionais, imprimindo mais força à resposta do sistema jurídico à violação de suas normas por inércia legislativa40.
Semelhante constatação não impede, contudo, seja reconhecida a existência de regras constitucionais que obrigam o exercício da atividade legiferante,
como o afirmam os mais diversos autores41 que se ocupam com o estudo
dessa temática. Paulo Roberto Lyrio Pimenta é, neste sentido, categórico42: “A inércia do legislador importa em inconstitucionalidade quando resultar do
descumprimento da obrigação de legislar. Logo, o pressuposto básico é a existência do
dever constitucional de legislar.” (Destacado no original).
Ainda que de forma tênue, o ordenamento jurídico prevê uma
medida sancionatória para o descumprimento do dever constitucional de
legislar. Por isso, é possível concluir pela obrigatoriedade do exercício da
competência para a instituição da c.m, sem correr o risco de estar sustentando a existência de um dever cujo descumprimento não receberia do
sistema uma resposta sob a forma de sanção.
Não colhe, por outro lado, o argumento de que inexistiria um dever de legislar, mercê da falta de eficácia social da sanção imposta, já que
o legislador poderia não exercer a atividade legislativa, a despeito da
cientificação da mora pelo Supremo Tribunal Federal. Para que se possa
cogitar de um comportamento obrigatório, é bastante a existência de uma
norma sancionando a sua inobservância. Para efeitos jurídicos, não interessa a efetividade dessa última norma ou a força que exerce para
desestimular a conduta ilícita. Essas são considerações metajurídicas que
podem – e devem - caber num estudo de política ou sociologia, mas não
têm lugar numa análise dogmática desse fenômeno complexo que é o
Direito.
11.CONCLUSÃO
Ao cabo desse estudo, pode-se esboçar a norma de competência
para instituição da contribuição de melhoria: Hipótese - dada a existência
do órgão legislativo federal, estadual, distrital ou municipal dever ser Tese:
o vínculo jurídico em que comparece, no pólo ativo, toda a comunidade
do respectivo titular da competência e, na condição de sujeito passivo,
aquela pessoa política, de quem se exige a instituição do tributo em causa.
Para construir essa norma, interpretaram-se vários enunciados –
alguns implícitos outros explícitos. Com efeito, ingressou-se na temática
da mais-valia imobiliária, da desapropriação por zona e dos princípios da
igualdade e proporcionalidade. Tudo isso para chegar a uma só unidade
de manifestação do deôntico.
De acordo com o referencial teórico que adotamos, o texto, em si,
não possui qualquer sentido, vale dizer, não é uma caixa que se possa
abrir e retirar uma significação pronta e acabada43. Trata-se, apenas, de
uma base empírica que veicula enunciados prescritivos, a partir dos quais
se constrói o sentido44. Uma vez que os textos do direito posto não contêm
as significações, tornam-se despropositadas as disputas por uma compreensão unívoca. Haverá tantas possibilidades de interpretação, quantos forem
os intérpretes45.
A leitura de um único enunciado pode gerar, pois, sentidos diversos, em função de quem o interprete. E se o sentido construído a partir
de uma simples sentença dista de ser necessariamente uniforme, o que
dizer de uma construção obtida através da leitura de vários enunciados?
A dificuldade recrudesce quando se tem presente que, para se chegar à
regra jurídica em perspectiva, foi necessário tomar posição diante de um
valor: a isonomia.
A conclusão não poderia ser outra: ao construir-se a norma de
competência para a instituição da c.m, acredita-se haver chegado a uma –
não a – interpretação possível. A homenagem ao princípio da igualdade e
a opção pelo método sistemático são bons motivos para adotá-la. Além
disso, razões metajurídicas a recomendam, ainda que não sejam
determinantes46.
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O autor é procurador do Estado de Sergipe e mestrando em
Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/
SP).
2
Vamos relacionar a expressão “competência tributária” à atividade do Poder Legislativo. Esse esclarecimento é necessário, porquanto a
competência tributária não é algo conferido, com foros de exclusividade,
aos órgãos daquele Poder. Têm-na, como observa Paulo de Barros Carvalho, desde o Presidente da República, ao expedir um decreto sobre o
IR, até o particular que é chamado a produzir a norma individual e concreta relativa à incidência tributária. (Cf. Curso de direito tributário, p.212).
3
Norberto Bobbio faz distinção entre normas de estrutura e normas de conduta. As primeiras regulam diretamente os comportamentos
intersubjetivos. As segundas dirigem-se mediatamente às condutas das
pessoas e imediatamente ao comportamento de produzir novas unidades
do sistema, ou seja, prescrevem “as condições e os procedimentos através dos
quais emanam normas de conduta válidas.” (Teoria do ordenamento jurídico, p. 33).
4
L.A Hart separa as normas jurídicas em duas classes: a) as que
impõem deveres e b) as que não prescrevem diretamente as condutas dos
indivíduos, mas se referem às normas que impõem deveres. Aquelas o
jurista inglês designa por primárias; estas, por secundárias. Haveria três
tipos de normas secundárias, na terminologia de Hart: regras de reconhecimento, de alteração e de julgamento. A primeira destina-se a identificar a
norma primária, tornando possível aferir a sua pertinência ao sistema. Tal
norma determinaria “algum aspecto ou aspectos cuja existência de uma dada
regra é tomada com uma indicação afirmativa e concludente de que é uma regra do
grupo que deve ser apoiada pela pressão social que ele exerce.” A “regra de alteração” disporia sobre a produção normativa, conferindo “poder a um indivíduo ou a um corpo de indivíduos para introduzir novas regras primárias... e para
eliminar as regras antigas.” Permitem, pois, a dinamização do sistema, indi1
cando o modo de alteração das normas primárias. Finalmente, a terceira
regra confere poderes a determinados indivíduos –os juízes- para ditar se
há descumprimento, ou não, de uma norma primária. Estabelecem não
só os poderes judiciais, mas procedimento conducente à sentença. Em
palavras de Hart, seriam “regras secundárias que dão poder aos indivíduos para
proferir determinações dotadas de autoridade respeitante à questão sobre se, numa
ocasião concreta, foi violada uma regra primária. Ainda nas palavras do autor:
Além de identificar os indivíduos que devem julgar, tais regras definirão também o
processo a seguir.” (O conceito de direito, p.103-109)
5
Já se discutiu sobre se o dever-ser inserido no conseqüente das
normas de produção normativa (dever-ser intraproposicional) modalizase, isto é, triparte-se nos modais proibido (V) permitido (P) ou obrigatório
(O).
Acredita-se que o equacionamento desse problema passa pela
constatação de que a norma de competência regula um comportamento
específico: o de produzir regras jurídicas, como o reconheceu Norberto
Bobbio, observando que tais regras “ não regulam o comportamento, mas o
modo de regular um comportamento, ou, mas exatamente, o comportamento que elas
regulam é o de produzir regras [sublinhamos] (Teoria do Ordenamento Jurídico,
p.45). Não poderia ser diferente. Uma norma de produção normativa
não pode atuar sem dispor sobre a conduta que levará a efeito essa atuação. Não se introduz, altera, ou extingui uma norma, sem regular o comportamento que irá promover essa introdução, modificação ou extinção.
Não fosse assim, e o direito movimentar-se-ia sozinho, sem o concurso
do homem e já não seria um direito positivo, uma vez que a “positividade
repousa no fato de ter sido criado e anulado por seres humanos...” (Hans Kelsen,
Teoria geral do direito e do Estado, p.166.)
Pois bem, se a regra de produção jurídica dispõe sobre um comportamento, não o faz para descrevê-lo, senão para qualificá-lo
deonticamente, modalizando-o em um dos três modais interdefiníveis:
proibido (V) permitido (P) e obrigatório (O). Sendo a linguagem do direito positivo prescritiva, sua referência às condutas inter-humanas só pode
ter uma finalidade: a de prescrevê-las, predicando-lhes a permissão, a
proibição ou a obrigatoriedade. Essa constatação reforça a uniformidade
sintática das normas do sistema, que possuirão sempre a mesma arquitetura lógica, independentemente de serem elas de conduta ou de produção
jurídica.
É bem verdade que isso relativiza sobremodo a dicotomia normas
conduta/normas de estrutura ou produção normativa, uma vez que, ao
fim e ao cabo, estas últimas disporiam também sobre condutas. Souto
Maior Borges chega mesmo a falar em normas de conduta lato sensu –
que abrangeriam as de estrutura- e normas de conduta stricto sensu. (Teoria
geral da isenção tributária, p.380).
6
Cf. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.134.
7
Eduardo García Maynez,Filosofia del derecho, p.447.
8
Ibidem, p. 445 e segs.
9
Celso Antônio Bandeira de Melo demonstra que não se deve
afastar, aprioristicamente, o fator de discriminação. Qualquer traço diferencial pode ser eleito se guardar congruência lógica com o tratamento
jurídico diferenciado e se o vínculo for, além disso, compatível com os
valores que o sistema consagra. O autor cita vários exemplos em que
fatores como o sexo, a cor etc. são adequadamente tomados como base
para a discriminação. (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p.15 e segs.)
.
10
Isonomia na norma tributária,p. 41.
11
Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, passim.
12
Constituição dirigente e vinculação do legislador, p.381.
13
Souto Maior Borges chega mesmo a afirmar que a linguagem
da ciência pode unificar esses dois primados fundamentais, reduzindo-os
a um só: o princípio da legalidade isônoma. (Cf. “IPTU: Progressividade”,
Revista de direito tributário nº 59, p.83.)
14
A dimensão positiva do princípio isonômico não mereceu, contudo, maior atenção por parte da doutrina. Nem mesmo Celso Antônio
Bandeira de Melo direcionou seus estudos para essa perspectiva, já que
“não obstante o brilhantismo do tratamento que dispensou à matéria,
também deu-lhe a seguinte abordagem: ‘é vedado ao legislador distinguir’.” (Mizabel Abreu Machado Derzi, Do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, em co-autoria com Sacha Calmon Navarro Coelho,
p. 61-62).
15
Parece-nos mais adequada, para retratar esta última vertente, a
expressão igualdade mediante lei. O termo “mediante”, como preposição,
significa por “meio de”, “com auxílio de”, “com intervenção de” (Cf.
Caudas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, Vol. III, p.2553).
Quer-nos parecer mais apropriado o manejo desse vocábulo, já que a lei
atua, nessa dimensão, justamente como um meio para o implemento do
princípio isonômico. Render-nos-emos, sem embargo, à consagrada ex-
pressão “igualdade na lei”, empregada pela generalidade da doutrina para
denotar, indistintamente, os lados negativo e positivo do princípio da igualdade.
16
Curso de direito administrativo,p. 789.
17
Ibidem, p.793
18
Conteúdo Jurídico do princípio da igualdade, p.30.
19
Contribuição de melhoria, p.88. Confira-se o pensamento da autora,
em suas próprias palavras: “Isto porque se há desigualdade que justifique tratamento diferenciado, ele deve ser levado a efeito por meio de lei. Assim, se os proprietários de imóveis circunvizinhos à obra pública recebem, além do beneficio geral, um
benefício especial consubstanciado na mais-valia imobiliária, é justo que contribuam
para a reposição de, pelo menos, parte dos gastos implicados na execução da obra que
foi custeado pela coletividade”.
20
Natureza jurídica da contribuição de melhoria, p.73
21
Para justificar a contribuição de melhoria em face da ordem
jurídica instaurada por essa última Constituição, juristas de escol configuraram-na como uma espécie de taxa. Geraldo Ataliba noticia que os adeptos dessa corrente eram, em geral, entusiastas da exação em foco, que
procuraram suprir, com tal entendimento, a omissão da Carta de 37.
(Natureza jurídica da contribuição de melhoria, p. 60)
22
Mais adiante será analisada a utilização do verbo “poder” pelo
aludido dispositivo.
23
São palavras da autora: “Como afirmado acima, o antecedente normativo
contempla a atuação não como causa imediata da tributação mas como causa sociológica do fato que se ocorrido faz nascer o tributo: a valorização imobiliária. Entre a
atuação estatal e a mais valia deve haver um nexo causal tal como ocorre nos casos de
responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado por lesão, ao administrado,
em decorrência de conduta comissiva ( lícita ou ilícita).” (Contribuição, cit., p. 122).
24
Cf. Lorival Vilanova, Causalidade relação no direito, p.52.
25
Cf. Paulo de Barros Carvalho Direito tributário, cit, p. 26
26
É de todos conhecida a classificação dos tributos de autoria do
professor Geraldo Ataliba. O saudoso mestre, partindo de uma análise
estritamente normativa, separou os tributos em duas classes: a dos vinculados e a dos não-vinculados a uma atuação estatal.Os primeiros prescindem de qualquer agir do Estado. No critério material da hipótese, confirmado pela base de cálculo, quem realiza a ação expressa pelo verbo é o
contribuinte. Encartam-se entre os não-vinculados os diversos impostos.
Os segundos, a seu turno, pressupõem uma atuosidade estatal. O
verbo do critério material, mais uma vez confirmado pela base de cálculo, é praticado pela pessoa política. Os vinculados dividem-se em: a) tributos diretamente vinculados a uma atuação estatal e imediatamente referidos ao obrigado (taxas); e tributos indiretamente vinculados a uma atuação do Estado e mediatamente referidos ao obrigado (contribuição de
melhoria). (Cf. Hipótese de inicidência tributária, p. 123 e segs. Cf ,também,
Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p.34-44 e Eurico Marcos Diniz de Santi, As classificações no sistema tributário brasileiro. In:
Justiça Tributária: 1º congresso internacional de direito tributário,, p.137-138.)
27
Não se pode aceitar, por conseguinte, a tese segundo a qual a
Carta de 1988 teria inaugurado uma contribuição do tipo-custo, defendida, entre outros, por Sacha Calmon Navarrro Coelho. (Curso de direito
tributário brasileiro, p.412.)
28
Celso Antônio Bandeira de Melo, Curso de direito administrativo,
p.707.
29
Interpretação e aplicação da Constituição,p.209.
30
Cf. Celso Antônio Bandeira de Melo, Curso de direito administrativo,
p. 81. Cf., também, Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p.9798.
31
Direito constitucional, p. 316.
32
Curso de direito administrativo, p.708.
33
É bem verdade que existe, como lembra Geraldo Ataliba, uma
outra forma de transferência da mais-valia que corresponde à “Compensação na indenização por expropriação parcial (só de parte do imóvel), da valorização
causada no remanescente do imóvel, pela obra que justificou a desapropriação. Quer
dizer: pela desapropriação parcial, o estado fica devedor de indenização ao proprietário. Pela valorização da parte remanescente, o proprietário fica devedor ao Estado da
c.m. Prevê a lei , aí, a compensação desses débitos recíprocos” (hipótese de incidência
tributária, p.178). Não parece haver, à primeira vista, inconstitucionalidade
neste encontro de contas. Trata-se, todavia, de um situação pontual, que
só tem lugar quando ocorre a desapropriação parcial do imóvel cuja
parte remanescente experimenta valorização em virtude obra. No restante dos casos, o Poder Público só dispõe da contribuição de melhoria para
transferir aos seus cofres o sobrevalor imobiliário.
34
De acordo com modelo teórico por nós adotado, não se interpretam normas. As regras jurídicas não possuem existência material. Possuem-na os textos. Esses consistem no ponto de partida do processo de
geração de sentido. Aquelas constituem justamente o termo, o resultado
daquele processo, que se não deve concluir sem uma passagem pelos
princípios fundamentais do sistema. Cf. Paulo de Barros Carvalho, Curso
de direito tributário, passim.
35
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p.220.
36
Ibidem, p. 221.
37
Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário, p.4.
38
Jorge Hage resume bem as características do mandado de injunção
que o distinguem da ação direta de inconstitucionalidade por omissão:
“Conforme se percebe com facilidade, as diferenças são patentes. O Mandado de
Injunção não visa à defesa objetiva do ordenamento jurídico, não tem por objeto o vício
omissivo em si, não constitui forma de controle concentrado de constitucionalidade, nem
busca reprimir a omissão do Legislativo, nem muito menos, a omissão de medidas
materiais a cargo do Executivo. Seu objetivo é tão somente a viabilização, pelo órgão
judiciário, por meio da sentença, do exercício de um direito obstado pela ausência de
uma norma regulamentadora.” ( Omissão constitucional e direito subjetivo, p.118).
39
A redação do dispositivo é a seguinte: “ Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo
em trinta dias.”
40
Visando a equacionar esse problema, Flávia Piovesam apresenta
uma interessante proposta de conciliação entre o princípio político da
autonomia do legislador e a exigência de cumprimento das normas constitucionais. Fá-lo nos seguintes termos: “A título de proposição, sustenta-se que
mais conveniente e eficaz seria se o Supremo Tribunal Federal declarasse inconstitucional
a omissão e fixasse prazo para que o legislador omisso suprisse a omissão inconstitucional,
no sentido de conferir efetividade à norma constitucional. O prazo poderia corresponder
ao prazo da apreciação em “regime de urgência”que, nos termos do artigo 64, parágrafo 2º do texto, é de quarenta e cinco dias. Pois bem, finalizado o prazo, sem
qualquer providência adotada, poderia o próprio Supremo, a depender do caso, dispor
normativamente da matéria, a título provisório, até que o legislador viesse a elaborar
a norma faltante. Esta decisão normativa do Supremo Tribunal Federal, de caráter
temporário, viabilizaria, desde logo, a concretização do preceito constitucional.”( Proteção judicial contra omissões legislativas, 108-109.)
41
Cf., a título de exemplo, Jorge Miranda, Manual de direito
constitucional,tomoII,p.507; Clèmerson Merlin Cléve, Fiscalização abstrata
da constitucionalidade no direito brasileiro,p.324; e Flávia C. Piovesan, Proteção
judicial contra omissões legislativas, p.78.
Eficácia e aplicabilidade das normas consitucionais programáticas, p.189.
Cf. Paulo de Barros Caravalho,Enunciados, normas e valores
jurídicos, Revista de direito tributário,nº 69, p.47.
44
Essa constatação, a que a grande maioria da doutrina nacional
ainda resiste, assume foros de premissa fundamental, de postulado básico
entre os teóricos da linguagem que se ocupam com o estudo do texto. É,
neste sentido, enfático o escólio de Ingedore Villaça Koch:“Portanto, à
concepção de texto aqui representada subjaz o postulado básico de que o sentido
não está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação”
[Destacado no original] (O texto e a construção dos sentidos, p. 25.)
45
É interessante notar que, também neste ponto, evidencia-se o
pioneirismo de Hans Kelsen. Com efeito, a inexistência de um sentido
unívoco para os textos do direito positivo não escapou à argúcia do mestre de Viena. São suas as palavras: “A teoria usual da interpretação quer fazer
crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses,
apenas uma única solução correcta ( ajustada) e a “justeza” ( correção) jurídicopositiva dessa decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um acto intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em acção o seu
entendimento ( ração), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura
actividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam,
uma escolha que correspondesse ao direito positivo, uma escolha correcta (justa) no
sentido Direito positivo.” [Os destaques são do próprio autor] (Teoria pura do
direito, p.467).
46
Basta ver que os recursos obtidos com pagamento do tributo em
questão poderiam ser utilizados como uma interessante forma de financiar as obras públicas, como registrou Geraldo Ataliba, na passagem que
corresponde à epígrafe deste trabalho.
42
43
SOLO CRIADO: UM INSTITUTO CONTROVERSO
Gabriela Maia Rebouças, Mestra em Direito pela
UFC/UFS,
Professora
deDireito
da
UNIT,Coordenadora de Monografia e Extensão de
Direito da UNIT, Ex-professora substituta da UFS.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Histórico. 3. Conceito e caracterização. 4. Solo Criado e repercussões no planejamento e funcionamento
urbanos. 5. Solo Criado e repercussões no mundo imobiliário. 6. Aspectos
jurídicos controversos. 7. Crítica ao instituto. 8. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
A preocupação com o Direito Novo e o Novo Direito requer dos
atores jurídicos uma visita a instituto que, embora historicamente não
sejam novos, social e juridicamente ainda não tiveram sua aplicação adequada. Porque o Direito não pode deixar de se preocupar com os aspectos concretos de sua aplicação, no Direito Urbanístico, impõe-se a discussão acerca da qualidade de vida e organização da cidade.
A cidade de Aracaju tem vivenciado na última década um fenômeno perverso comum a quase todas as capitais e cidades grandes: uma
explosão de grandes arranha-céus, sobretudo nas margens leste e sul da
cidade, o que corresponde à formação de um grande paredão, barrando
a ventilação advinda do litoral. Com isso, toda a cidade, com exceção
destas construções, claro, torna-se ainda mais quente, o que diminui a
qualidade de vida da população em geral, sobretudo se aliado este fator às
demais condições climáticas da região.
Um outro fenômeno típico das cidades grandes e em desenvolvimento é a construção de conjuntos, aglomerados ou bairros inteiros apenas com prédios de andar. Em Aracaju, cita-se como exemplo o Bairro
Jardins, construído em torno de um shopping-center e formado exclusivamente por novos prédios de mais de 10 andares, salvo as poucas casas
que já existiam na região e foram anexadas pelo novo bairro.
Estes dois exemplos partem da constatação de que o homem, não
satisfeito com a extensão da superfície terrestre, resolve criar solo,
edificando, em planos empilhados que invadem o espaço atmosférico e o
subsolo, novos espaços de moradia, transação e circulação. Há, no entanto, conseqüências urbanas e ambientais decorrentes de tal invenção.
Embora existente no Brasil desde a década de 70 do século passado, o estudo do Solo Criado passou por um processo de revigoramento
com a imposição constitucional de Plano Diretor para as cidades com
mais de 20.000 habitantes. Não só este instituto, mas tudo que diz respeito ao planejamento urbano da cidade, concepções, mitos, experiências,
possibilidades.
O Solo Criado tem recebido tratamento diferenciado nas legislações municipais1 que o adotam, chegando a descaracterizá-lo. A adoção
do Solo Criado dissociado do coeficiente único tem sido amplamente
rejeitado pelos profissionais comprometidos com o desenvolvimento sustentável das cidades. A urbanista Raquel Rolnik 2 aponta grande utilidade
do Solo Criado, juntamente com o coeficiente único, no processo de desenvolvimento e planejamento da cidade, democratizando os espaços, e
permitindo um melhor aproveitamento dos espaços já estruturados, conjugando com a utilização de incentivos tendo em vista a busca da igualdade social. A citada autora aponta como pontos imprescindíveis no processo de urbanização a luta contra a exclusão e a miséria, assim como pela
construção de um espaço verdadeiramente público, que não se confunde
com o Estado, mas com o coletivo, com a cidadania.
É a partir desta concepção, que trabalha com o delineamento do
instituto sem perder de vista a discussão acerca de sua utilidade, que se
pretende desenvolver esta exposição.
2. HISTÓRICO
O Brasil conhece na década de 70 do séc. XX um surto de discussão sobre o Solo Criado. É, sobretudo, com o Seminário sobre este tema,
que grandes nomes do direito pátrio vão discutir, em São Paulo, tal instituto, analisando as experiências estrangeiras e adaptações necessárias. São
tiradas diretrizes que formarão “A Carta de Embu”, documento que estabelece os contornos básicos do Solo Criado, seguindo-se substancial produção literária a destrinchar as discussões que envolveram os dias de
debate.
No direito alienígena, destacam-se como países que contribuem
para a experiência do Solo Criado os EUA, denominado Space Adrift,
decorrente do chamado Plano de Chicago; a França, com a Plafond Légal.
Nos Estados Unidos, o “espaço flutuante” é utilizado nos casos
em que há limitação do direito de construir do imóvel, sobretudo decorrente de preservação histórica, quando, então, é permitido ao proprietário alienar o seu direito de construir para que este potencial possa ser
utilizado em outro terreno, face à limitação daquele declarado pelo Poder
Público como patrimônio histórico.
A França, por sua vez, conheceu, na década de 70, o Solo Criado
nos seguintes termos: limite legal de densidade 1 e 1,5 para Paris, além do
que o proprietário teria que adquirir, quando possível, da Municipalidade,
o direito de construir. A flexibilização do instituto, chegando a perder
grande parte de sua significação decorreu dos efeitos perversos que a alta
densidade causou.
A Itália também possui experiência interessante em termos de
regulação, sobretudo do direito de construir, separado do direito de propriedade e pertencendo à Municipalidade o poder de vender aos interessados, o direito de criar solo3.
3. CONCEITO E CARACTERIZAÇÕES
O conceito de Solo Criado foi desenvolvido na própria Carta de
Embu: “toda edificação acima do coeficiente único, quer envolva ocupação do espaço aéreo, quer a de subsolo”4. É possível então distinguir o
Solo Criado do solo natural, este último quando a edificação estiver dentro do coeficiente de aproveitamento do terreno.
José Afonso da Silva5 enumera quatro mecanismos básicos do conceito de Solo Criado: 1 - coeficiente de aproveitamento único; 2 - vinculação
a um sistema de zoneamento rigoroso; 3 - transferência do direito de
construir; e 4 - proporcionalidade entre solos públicos e privados.
A imposição de um coeficiente único equivaleria dizer que cada
proprietário tem o direito subjetivo de construir uma vez a área do terreno, para o qual necessitaria apenas da licença da Prefeitura. A sua relevância está em igualar patrimonialmente a valorização dos vários terrenos. Atualmente, este coeficiente de aproveitamento tem sido estabelecido pelas normas de uso e ocupação do solo, que permite tratamento
diferenciado e respectiva valorização para as zonas com um coeficiente
maior. Contribuiria, aqui, para um maior equilíbrio imobiliário. Quem,
onde quer que esteja a sua propriedade, almejasse construir mais que o
coeficiente único necessitaria comprar para isso este direito, até porque, o
seu empreendimento exigiria mais dos aparelhos urbanos.
Aqui, no entanto, reside a questão mais controversa deste instituto:
a quem pertence o direito de construir além do limite? E mais, podendo
pagar, é ilimitável a aquisição de Solo Criado?
As posições têm então se dividido. Um primeiro grupo entendendo
que o Solo Criado é adquirível do Poder Público, da Municipalidade, a
exemplo do direito italiano, responsável, em contrapartida, pelo incremento nos aparelhos urbanos. Um segundo grupo a defender que o Solo
Criado é negociável em bolsa e pertencente ao dono da propriedade,
privada ou pública. Os primeiros vendo no Solo Criado um instituto de
arrecadação de rendas para o Poder Público. Os segundos, combatendo
esta visão argumentando que constitui um bis inidem, já que pagar-se-ia
mais imposto decorrente da valorização do imóvel pela construção agregada.
Quanto ao limite, não há lógica a sua não existência, porque se
planejamento urbano é interesse coletivo, um adensamento infinito com a
extrema verticalização da cidade, pode significar um caos em termos de
possibilidades saudáveis de vida. Além do que, quem tivesse poder aquisitivo, condicionaria, pela escolha das áreas, o rumo do crescimento da
cidade. E a tarefa do Direito Urbanístico é exatamente controlar este
desenvolvimento, equilibrando-o em prol da coletividade.
A limitação reclama então um zoneamento rigoroso, indicando em
cada área, o coeficiente máximo de aproveitamento (2,3,4) além do que é
impossível a edificação.
Para o equilíbrio do crescimento da cidade, é preciso também considerar que uma criação artificial de solo privado reclama a proporcional
criação de espaços públicos na área. Aumento populacional exige aumento de áreas de lazer, escolas, creches, hospitais. Neste sentido, a aquisição
de direito de construir superior ao coeficiente único implicaria na doação
ao Poder Público de uma área, na região, para garantir a proporcionalidade.
Embora a própria Carta de Embu fale em “equivalente em dinheiro”
caso não seja possível a doação de área, fica a indagação se esta abertura
guarda coerência com o desenvolvimento em geral, restando sempre a
dúvida de se estar privilegiando que possui maior poder aquisitivo, em
detrimento do coletivo6.
É preciso registrar ainda que a edificação em pavimentos não significa a priori a criação de solo, ainda mais quando se conjugam ao coeficiente de edificação, outras limitações administrativas como os recuos e
índice de impermeabilização.
No entanto, é exatamente a formatação da utilidade deste instituto
que vai abrigar seus maiores problemas. É possível ordená-los da seguinte
forma:
a) A instituição de Solo Criado prescinde da separação do direito
de construir da propriedade?
b) Pertence ao proprietário ou ao Poder Público o direito sobre o
Solo Criado?
c) De que forma se dá a aquisição do Solo Criado?
4. SOLO CRIADO E REPERCUSSÕES NO PLANEJAMENTO
E FUNCIONAMENTO URBANOS
Fica fácil imaginar como este instituto pode repercutir no planejamento e funcionamento urbanos, tanto em seu benefício, como contra a
cidade. Se bem utilizado, o instituto permite uma melhor utilização dos
espaços, diminuição das distâncias (porque se a exagerada verticalização é
prejudicial, do mesmo modo uma grande dispersão alargando demais a
cidade, requerendo maior suporte viário, transportes, infra-estrutura, etc.).
Permite também um crescimento equilibrado da cidade, já que o Solo
Criado não é simplesmente construir em pavimentos, mas incrementar os
equipamentos urbanos, garantir o equilíbrio entre solo privado/público,
enfim, desenvolver a cidade de acordo com suas necessidades.
O Solo Criado não se presta, no entanto, para simples arrecadação
de receitas pelo Poder Público ou particular. Não se presta para corrigir
distorções urbanas, transferindo dinheiro arrecadado com a venda de
solo de uma área para outra. Para isso, paga-se tributos.
5. SOLO CRIADO E REPERCUSSÕES NO MUNDO IMOBILIÁRIO
Um problema grande é lidar com a especulação imobiliária quando se trata de definir espaços e índices urbanísticos. A propriedade imóvel
ainda é um grande investimento patrimonial. É a base para os demais
empreendimentos, quer comerciais, quer residenciais. A instituição de um
coeficiente único de aproveitamento não haverá de ser implementado
sem resistências. A necessidade de adquirir acima deste coeficiente, para
erguer os grandes prédios, é sem dúvida um ponto largamente combatido
pelos proprietários e especuladores, posto que onera ainda mais o empreendimento.
No entanto, também a instituição do Solo Criado poderá contribuir para o incremento do mercado imobiliário. Tome-se como partida
uma zona cujo coeficiente máximo de edificação, são duas vezes acima
do coeficiente único. Até o coeficiente único, o direito de construir é
subjetivo do proprietário. Acima disto, poderá adquirir até duas vezes o
seu coeficiente (limite permitido pelo zoneamento). Se for o Poder Público o detentor deste direito, comprar-se com a Municipalidade. Se do
particular, é possível de ser negociável em bolsa, ou diretamente: procura-se quem queira vender o seu direito de construir naquela zona (ainda
não utilizado, é claro!). O importante é que a zona nunca tenha um nível
de adensamento superior ao planejado. Quem vender o direito de construir, uma vez querendo, enfim, edificar, haverá de comprar também de
outrem na mesma zona.
Uma outra repercussão no mundo imobiliário diz respeito à necessidade, caso seja regulamentado em lei federal o Solo criado, de registro
imobiliário em cartório, já que as transferências terão caráter constitutivo
de direito sob o imóvel, exigindo título documental contendo: coeficiente
de aproveitamento, construções já realizadas e transferências7.
6. ASPECTOS JURÍDICOS CONTROVERSOS
São aspectos jurídicos controversos, enfrentados ao longo deste
trabalho: a titularidade do direito de construir e, portanto, quem poderá
alienar Solo Criado, se o particular ou se o Poder Público; a necessidade
de separação do direito de construir da propriedade e enfim, de quem é a
competência para estabelecer normas desta natureza, questões que estão,
de certo, interligadas.
José Afonso da Silva8 posiciona-se pela não separação do direito
de construir da propriedade, afirmando que o coeficiente único está plenamente afinado com o art.572 do Código Civil, segundo o qual o proprietário poderá levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver,
salvo os direitos de vizinhança e os regulamentos administrativos. Neste
sentido, o estabelecimento de coeficientes de edificação corresponde a
«regulamento administrativo» e, portanto, de competência municipal. Acrescenta ainda o autor que tanto não é preciso separar o direito de construir
da propriedade, e o coeficiente único representa direito pleno e subjetivo
a ela ligado, que se um regulamento administrativo estabelecer coeficiente
de aproveitamento inferior ao único para determinada área, há que garantir indenização, compensação pela restrição imposta, francamente desigual aos demais proprietários.
A questão não é simples. Se o direito de construir for de titularidade
do particular, se a aquisição deste direito não pode ser entendida como
um contrato administrativo, então se está no campo das relações civis e
comerciais, de competência privativa da União. Portanto, somente lei federal poderá estabelecer o instituto do Solo Criado e o coeficiente único.
Neste sentido, Toshio Mukai é enfático: “a separação do direito de construir do direito de propriedade é ponto central do conceito de solo criado,
se é que se pretende falar nele. E, neste sentido, o impulso inicial da
instituição desta figura jurídica, entre nós, depende primariamente de lei
federal”9.
A Profª. Magnólia Lima Guerra, analisando o instituto, comenta as
posições existentes: a primeira, em que o direito ao solo criado pertence à
Municipalidade e, a segunda, onde pertenceria ao proprietário (inerente à
propriedade). Esta última, a depender do posicionamento, pode-se chegar
a soluções diferentes: “a primeira delas, nada satisfatória aos interesses da
cidade (...) reconhece ao proprietário do solo o direito de criar a quantidade de solo que lhe aprouver, caso não conflite com as limitações administrativas estabelecidas pela Prefeitura. Já uma outra solução reconhece o
direito de construir como pertencente ao proprietário do terreno, mas
somente dentro de um coeficiente de aproveitamento estabelecido previamente”10.
Assim, para Magnólia Guerra, juridicamente o solo criado pertencendo ao Município é medida altamente questionável, já que o direito de
criar solo precisará ser desvinculado do direito de propriedade. Como o
Código Civil disciplinou o direito de construir vinculado à propriedade,
necessita de uma lei de igual hierarquia para modificá-lo.
Separando as competências, firma-se: 1) Cabe à lei federal estabelecer o instituto do Solo Criado, o coeficiente único geral e sua forma de
negociação; 2) Cabe à lei federal também dispor sobre separação do direito de construir do direito de propriedade; 3) Cabe à lei municipal estabelecer através do zoneamento, o coeficiente máximo de edificação de cada
zona, além das demais limitações administrativas.
7. CRÍTICA AO INSTITUTO
Em fase conclusiva, é preciso ressaltar que o Solo Criado não é
um instituto simples de ser constituído. Se não estiver bem amarrado,
tecnicamente adequado, certamente servirá para distorções no crescimento
da urbe. Criticável por parte do Poder Público a perspectiva simples e
pura de arrecadação financeira, sem que esta verba esteja vinculada ao
investimento na área em termos de equipamentos públicos.
Igualmente, se for utilizada com a finalidade de corrigir distorções
de crescimento, como vender solo numa área valorizada e investir na
periferia. Embora a princípio o argumento seja social, esta postura contribuirá para criar graves problemas em outras áreas, muito adensadas e
sem infra-estrutura compatível, importando um ônus talvez maior para
os cofres públicos. Não é o Solo Criado um instituto adequado para esta
finalidade, ainda que seja correta a preocupação e o investimento público
em área mais carente.
“A Carta de Embu” ainda é um documento que fornece um
parâmetro básico para a configuração do Solo Criado: instituição do coeficiente único, vinculação ao zoneamento que estipulará coeficiente de
edificação máxima, além de outras limitações administrativas, a
proporcionalidade entre terrenos públicos e privados a ser garantida pelo
particular que queira edificar além do coeficiente único (criticável neste
ponto a possibilidade de substituição pelo equivalente econômico11).
Recentemente discutido o Plano Diretor de Curitiba12, foram apresentadas algumas considerações a respeito do Solo Criado, sendo apontado como um instrumento que tem dois objetivos: a) Custear as desapropriações e melhorias nas áreas de reurbanização, onde os benefícios pagam aos que forem prejudicados; b) Evitar a especulação imobiliária,
especificamente evitando que os proprietários que não contribuem na
valorização da área, feita com recursos públicos, sejam os verdadeiros
beneficiados. Acrescente-se a advertência de que no Brasil, a prática de
desviar recursos advindos de uma área para outra e a modificação constante nas leis e no zoneamento, no mínimo, tendem a descaracterizar o
conceito original do “Solo Criado” e descambar para a ineficiência, o
desvio e finalmente oferecendo a oportunidade para a prática da corrupção.
Esta realidade denunciada traz como principais desacertos do tra-
tamento equivocado conferido ao instituto do Solo Criado uma visão
funcionalista da lei de zoneamento e uso do solo, que promoveu a concentração urbana, e que vai exigir agora investimentos pesados para dar
eficiência ao sistema de circulação. As obras necessárias para sustentar o
volume de tráfego no futuro próximo transformarão a cidade no “paraíso das empreiteiras”.
Também a adoção equivocada da política de Solo Criado, que ajudou a agravar a concentração urbana, possibilitando o adensamento de
regiões já saturadas em termos de ocupação. O Solo Criado deveria ter
sido adotado tendo como princípio o coeficiente único, acompanhado de
uma planta genérica com valores em consonância com as diretrizes do
Plano Diretor e o Plano de Desenvolvimento Integrado.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS
CORRÊA, Antônio Celso de Munno. “Planejamento Urbano: competência para legislar dos Estados e Municípios”. Revista de Direito Público,
nº 98, Ano 24, São Paulo: RT, abril/junho de 1991. p 257-262
DALLARI, Adílson., FAGUNDES, Seabra. Et all. Conferências e
debates . Revista de Direito Público, nº 98, Ano 24, São Paulo: RT, abril/
junho de 1991. p 173-189
GUERRA, Maria Magnólia Lima. Direito de Propriedade, nota de
aula proferida em Mestrado da UFC, Fortaleza: impresso, s/d.
GREGO, Marco Aurélio. “O solo criado e a questão fundiária”.
In: PESSOA, Álvaro (org.) Direito do Urbanismo: uma visão socio jurídica. Rio
de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora: IBAM, 1981.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro, 7
ed., São Paulo: Malheiros, 1999.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico: instrumentos jurídicos para um futuro melhor. 2 ed.,
Rio de janeiro: Forense, 1977.
MUKAI, Toshio. Direito e Legislação Urbanística no Brasil. São Paulo:
Saraiva,1988.
SAMEK. Home Page. <http://www.samek.com.br> (15.09.1999)
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2 ed., São Paulo: Malheiros, 1995.
Não há ainda legislação federal a tratar do assunto, face, inclusive, ao fato de não estar claro nos meios doutrinários, de quem é a competência neste assunto, o que depende, por conseguinte, de um consenso
na caracterização deste instituto, até então, inexistente.
2
Cf. site www.samek.com.br onde é possível encontrar uma entrevista com a citada autora do Livro “A cidade é a Lei”.
3
GUERRA, Magnólia Lima. Direito de Propriedade, nota de aula
proferida no Mestrado da UFC, p.25
4
Cf. Carta de Embu, item 1.2., em O solo Criado/Carta de Embu,
p.169. Apud. José A. da Silva, ob. cit., p236.
5
Ob. cit., p 233.
6
Seabra Fagundes posicionou-se contra este ponto da Carta de
Embu, embora tenha também sido seu signatário. No seu entender, não
caberia abrir a possibilidade para compensar com o equivalente em dinheiro. Cf. artigo Aspectos Jurídicos do Solo Criado, RDA, 129;9.
7
Cf. Guerra, Magnólia Lima. Direito de Propriedade, p.26.
8
Ob. cit, p. 236
9
Toshio Mukai, Direito e Legislação Urbanística no Brasil, 1988. p 266.
10
Guerra, Direito de Propriedade, ob. cit., p. 25
11
Cf. nota 24
12
informações no site www.samek.com.br
1
TEORIA DA INCONSTITUCIONALIDADE DO PROVIMENTO EM COMISSÃO
PARA DESVINCULADOS DO SERVIÇO PÚBLICO
Marcos Roberto Gentil Monteiro, Mestre em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do
Ceará, professor da Universidade Tiradentes, oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado
de Sergipe.
Estes escritos possuem o escopo de interpretar o provimento em
comissão à luz do sistema constitucional pátrio, que, conforme PAULO
BONAVIDES, engloba a dimensão formal, integrada pelas normas que
se encontram positivadas no ápice do ordenamento jurídico nacional, aliada à dimensão material, formada pelos valores suprapositivos que fundamentam a ordem jurídica constitucional brasileira.
Provimento em comissão, consoante o art. 37, II, da CF, é o ato
de designação de alguém para titularizar cargo público, não dependente
de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e
títulos, declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
(*) Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/
06/98:
”Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”
(*) Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/
06/98:
”II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma
prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;”
A hipótese que norteou a elaboração deste trabalho foi a de que, o
provimento em comissão, destina-se, após o advento da Emenda Consti-
tucional n. 19, de 4-6-1998, que alterou a redação do inciso V, dentre
outros, do art. 37, da Carta Magna, nas suas duas modalidades, funções
de confiança e cargos em comissão, a servidores ocupantes de cargo
efetivo e servidores de carreira, respectivamente, relacionados, às funções de chefia, assessoramento e direção, à exceção dos cargos ocupados
por agentes políticos, em homenagem ao princípio democrático.
(*) Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 04/
06/98:
”V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais
mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção,
chefia e assessoramento;”
Quanto à ocupação de funções de confiança, a possibilidade daquele cujo provimento não se efetuou em razão de aprovação em concurso público é afastada, diante da interpretação simplesmente literal do
dispositivo retromencionado, que exige do ocupante, expressamente, a
condição de servidor ocupante de cargo efetivo.
Já uma interpretação sistêmica da Constituição, que exige uma interpretação não apenas formal de seus dispositivos, mas sobretudo, a
integração dos valores que a fundamentam, tais como, Justiça e legitimidade, realizados pelos princípios normativos da Justiça social, democrático e os que disciplinam a atividade administrativa, qualifica como
inconstitucional a designação de alguém para ocupar cargo em comissão,
que não integre carreira administrativa.
O provimento em comissão no Brasil tem seu primeiro registro
histórico na Carta do escrivão da frota de Cabral, desenvolve-se no período colonial, com a finalidade, inclusive, de povoamento do território,
caiu nas graças da nobreza imperial, constitucionalizou-se na República,
e, quando utilizado para escapar ao concurso público, envergonha a pátria, cotidianamente.
Não há mesmo como entender qualquer instituto jurídico, como
leciona MICHEL MIAILLE, senão informado pela sua origem e evolução histórica.
A relação que se instaura entre autoridade nomeante e comissionado
pouco evoluiu, e possui matriz histórica na relação entre metrópole e
colônia dos tempos de antanho.
Com vistas à concretização do princípio da unidade da Constitui-
ção, dotando-a de coerência e sentido, imperativo é que as nomeações
para a ocupação de cargos em comissão recaiam sobre aqueles que já
titularizam cargo na Administração Pública, ressalvadas as exceções constitucionais relativas aos agentes políticos, não administrativos, portanto.
Desta forma, atender-se-ia um plexo de dispositivos insertos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tais como o artigo XXI. 2. “Toda
pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público de seu país.”, que
pela norma de integração constante no § 2º, do art. 5º, da CF, encontrase compondo a Carta Política, bem como cumprir-se-ia, efetivamente,
um texto constitucional que se autoproclama “Democrático de Direito”.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte.
A nomeação para ocupação de cargo em comissão, daquele não
aprovado em concurso público, colide frontalmente com os princípios
constitucionais que devem presidir a Administração Pública de qualquer
dos poderes de qualquer ente federativo, incertos no caput do art. 37 do
texto constitucional.
Com efeito, é preciso levar em conta a carga axiológica que fundamenta a vigente Constituição. Como preleciona GIORGIO DEL
VECCHIO, Direito é a coordenação objetiva das várias condutas possíveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ético que as determina.
Vê-se, portanto, que a nomeação discriminatória daquele que escapou ao
concurso público apresenta-se oposta ao princípio da moralidade.
De igual forma, o princípio da impessoalidade é desobedecido
quando se instaura entre autoridade nomeante e demissível ad nutum vínculo de natureza subjetiva, pessoal.
O princípio da eficiência também é desrespeitado, diante de tais
nomeações, visto que se encontram colidindo com seus objetivos de racionalização e profissionalização do serviço público, máxime nesta conjuntura de escassez de recursos financeiros que assola o Estado brasileiro.
No caso particular dos cargos portadores de fé pública, os que têm
por função certificar situações dos administrados perante a Administra-
ção Pública, a inconstitucionalidade é ainda mais danosa ao corpo social,
diante da responsabilidade civil objetiva do Estado, art. 37, § 6º, bem
como do direito individual de obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse
pessoal, consoante o art. 5º, XXXIV, b).
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de
direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
A nomeação de parentes e apadrinhados políticos para o exercício
de cargos em comissão, unicamente pelo critério da confiança da autoridade nomeante, colide frontalmente com vários dispositivos constitucionais pátrios, fundamentados no princípio da igualdade: preâmbulo, art. 3º,
IV, art. 5º, caput, art. 19, III.
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
III - CRIAR DISTINÇÕES ENTRE BRASILEIROS OU PREFE-
RÊNCIAS ENTRE SI.
De fato, a única razão de ser da instituição estatal, conforme
ARISTÓTELES, é a promoção social dos mais carentes, é a redução das
desigualdades sociais através das políticas públicas de educação, saúde,
emprego, habitação. A nomeação para ocupação de cargos em comissão
daqueles que escapam ao concurso público age de modo inverso, acentua
as desigualdades sociais, agravando o desastroso quadro relativo à injustiça social no Brasil.
A previsão constitucional de provimento em comissão, à exceção
dos agentes políticos, resulta da não realização das “condições ideais de
comunicação” habermasianas, de que resulta, sinteticamente, o direito de
participação no processo de elaboração das normas jurídicas por todos
aqueles que serão afetados pelas disposições normativas.
Com efeito, somente assim se pode qualificar uma norma jurídica
de legítima. Ora, numa pátria onde a quantidade de analfabetos e semialfabetizados, acrescidos aqueles desprovidos de qualquer consciência
política, dificulta enormemente a construção de uma cidadania participativa,
historicamente, o princípio democrático é sobremaneira prejudicado.
Nas Constituições das nações cujo estágio da ciência constitucional
afasta-se do formalismo esvaziador, aproximando-se da efetiva
concretização da dignidade da pessoa humana, tais como a portuguesa e
a alemã, obedece-se rigidamente o acesso igualitário ao serviço público,
excetuadas as discriminações que resultem do princípio democrático.
A verdadeira “reforma administrativa”, rumo à racionalização do
serviço público, seria a despoluição da Administração Pública desse mar
de nepotismo, corrupção e ineficiência, o que poderia resultar, sem dúvida, em melhor remuneração para os servidores ocupantes de cargo efetivo, que receberiam gratificação por ocupar funções de “chefia,
assessoramento ou direção”. Será que, realmente, não é possível aos
agentes políticos encontrarem, dentre os servidores de carreira, quem
seja de sua confiança para prover os cargos em comissão, ou são de outra
natureza os interesses inconfessáveis?
Urge o momento em que o Brasil necessita deixar de ser “o país do
futuro”, assumindo a tarefa de transformar-se, posto que as gerações
futuras apenas poderão desfrutar melhores dias a depender das modificações introduzidas no presente. É preciso, de há muito, concretizar as
garantias incertas na Constituição, migrando esse país, definitivamente,
do ideal para o real.
Esses escritos objetivam a reflexão por parte de autoridades
nomeantes, ocupantes de cargo em comissão que não ocupam cargo efetivo, em uma ponta, e desempregados, que possuem a porta constitucional do concurso público fechada, de certa forma, em virtude de um sem
número de nomeações de servidores que dificultam o acesso igualitário
ao serviço público da maioria, bem como por parte dos órgãos responsáveis pela defesa da ordem jurídica e das instituições democráticas, da
sociedade como um todo, enfim. Se tal reflexão puder encontrar algum
fundamento nesse trabalho, tal já restará completamente recompensado.
Sob o ponto de vista pedagógico há um outro ângulo de observação. As novas gerações de discentes devem pautar-se pelo árduo caminho do conhecimento, a fim de galgar posições no cada vez mais competitivo mercado de trabalho, através da aprovação nos cada vez mais concorridos concursos públicos, ou devem os que não possuem parentesco
com autoridades das esferas de governo, aproximar-se desses, com vistas
a uma futura nomeação para o exercício de um cargo em comissão? As
conseqüências dessa escolha poderão determinar o futuro da Administração Pública no Brasil, e bem poderão contribuir para a realização dos
objetivos da República de diminuição das desigualdades sociais, bem como
da promoção do bem de todos, vedadas discriminações de qualquer natureza, que não as previstas no texto constitucional.
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco em “Os Pensadores”. V. 4. 1.
ed. São Paulo: Abril, 1973.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São
Paulo: Malheiros, 2001.
Constituição da República Federativa do Brasil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. 5. ed. Coimbra:
Armênio Amado, 1979.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade.
vol. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
A “VERTICALIZAÇÃO” DAS COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS NAS ELEIÇÕES
GERAIS DE 2002
Maurício Gentil Monteiro é professor de Direito
Constitucional da Universidade Tiradentes, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará
e advogado.
Introdução; 1. A fundamentação jurídica da resolução nº 21.002/
2002 do TSE; 2. A regra do art. 16 da Constituição Federal; 3. Do
caráter nacional dos partidos políticos; 4. Do princípio federativo e da sua
necessária extensão à organização partidária e ao processo eleitoral; Conclusões.
INTRODUÇÃO
Em 26 de fevereiro de 2002, o Tribunal Superior Eleitoral apreciou consulta formulada pelos Deputados Federais Miro Teixeira, José
Roberto Batochio, Fernando Coruja e Pompeo de Mattos, todos integrantes do PDT – Partido Democrático Trabalhista (Consulta nº 715 - Classe
5ª - Distrito Federal), para respondê-la negativamente, emitindo a Resolução nº 21.002, que dispôs:
“Consulta. Coligações.
Os partidos políticos que ajustarem coligação para eleição de presidente da República não poderão formar coligações para eleição de governador de Estado ou do Distrito Federal, senador, deputado federal e
deputado estadual ou distrital com outros partidos políticos que tenham,
isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato à eleição presidencial”.
Essa decisão causou enorme celeuma no mundo político nacional,
sendo motivo das mais fortes polêmicas e controvérsias, eis que a interpretação oficial dada pelo TSE à Lei 9.504/97 divergiu da sistemática de
sua aplicação nas eleições gerais de 1998, e, a menos de 8 (oito) meses da
data da eleição no primeiro turno, modificou o processo político de formação de alianças partidárias em todo o país.
Diversas foram as críticas inicialmente levantadas contra esse entendimento do TSE, sendo também diversas as alternativas tentadas para
impedir que essa interpretação prevalecesse no processo eleitoral em curso.
Assim, já no dia 27 de fevereiro de 2002, um dia após a deliberação tomada pelo TSE e antes mesmo da sua publicação oficial (15/03/
2002), 70 senadores subscreveram a proposta de emenda à Constituição
nº 548/2002, que altera a redação do parágrafo primeiro do art. 17 da
Constituição Federal, para deixar explícito que o partido político pode
ajustar coligação na eleição estadual mesmo com partido político adversário na eleição presidencial, em nome da sua autonomia interna. No entanto, as indignadas reações contrárias, no meio político, à Resolução 21.002TSE, não se concretizaram, e a PEC 548/2002 não obteve no Parlamento a tramitação célere que era inicialmente esperada, de forma que somente em junho de 2002 foi aprovada em plenário e, no dia 12 de junho,
encaminhada à Câmara dos Deputados, onde atualmente se encontra na
Comissão de Constituição e Justiça para análise prévia.
Outra alternativa tentada foi a interposição, por diversos partidos
políticos, de Ação Direta de Inconstitucionalidade da mencionada resolução junto ao Supremo Tribunal Federal (ADIN 2628-3 – PFL; ADIN
2626-7 – PCdoB, PL, PT, PSB e PPS); porém, o STF, em sessão realizada
no dia 18 de abril de 2002, julgou a ação, para sequer conhecê-la (não
adentrou no mérito), contra o voto apenas dos Ministros Marco Aurélio,
Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão e Sidney Sanches.
Assim, em setembro de 2002, momento em que esse trabalho é
escrito, pode-se afirmar que prevaleceu, pelo menos no âmbito formal, a
decisão do TSE, que ficou conhecida como “verticalização” das coligações partidárias, e o processo eleitoral em curso observou tal entendimento. Não se tem conhecimento de nenhum partido político ou coligação que tenha “arriscado” descumprir os seus termos e aguardar os pedidos de impugnação e decisão final da Justiça eleitoral.1
Analisar a Resolução nº 21.002 do Tribunal Superior Eleitoral, sob
o ângulo predominantemente constitucional, é objetivo do presente artigo, que procura demonstrar – abstraindo eventuais acusações formuladas de que o TSE agiu de forma a beneficiar determinadas candidaturas
e prejudicar outras – que não foram observados, no caso, diversos princípios fundamentais e regras jurídicas do ordenamento jurídico-constitucional, a exemplo da organização federativa do Estado brasileiro, da auto-
nomia dos partidos políticos, da regra da anterioridade das mudanças na
legislação eleitoral, dentre outros, como tratado adiante.
1. A FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA DA RESOLUÇÃO Nº
21.002/2002 DO TSE
A consulta no contexto da qual foi editada a Resolução nº 21.002/
2002 do TSE foi formulada pelos parlamentares referidos nos seguintes
termos:
“Pode um determinado partido político (partido A) celebrar coligação, para eleição de Presidente da República, com alguns outros partidos
(partido B, C e D) e, ao mesmo tempo, celebrar coligação com terceiros
partidos (E, F e G, que também possuem candidato à Presidência da
República) visando à eleição de Governador de Estado da Federação?”.
Tratava-se de dúvida quanto à correta interpretação do art. 6º,
caput, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (“É facultado aos
partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações para
eleição majoritária, proporcional, ou para ambas, podendo, neste último
caso, formar-se mais de uma coligação para a eleição proporcional dentre
os partidos que integram a coligação para o pleito majoritário”), que regulamenta o processo eleitoral, e que já havia sido aplicada às eleições gerais
de 1998, sem que, à época, tivesse havido qualquer questionamento nesse sentido. Naquele pleito eleitoral, também abrangente de eleições para
Presidente e Vice-Presidente da República (eleições nacionais) e Governador de Estado, Senador da República e Deputados Federais, Estaduais
e Distritais (eleições estaduais), prevaleceu o entendimento de que não
havia qualquer impedimento a que partidos políticos fossem aliados formalmente nas eleições nacionais e adversários nas eleições estaduais.
Surgida a dúvida, valeram-se os consulentes do processo de consulta, que foi apreciada pelo TSE de forma negativa aos termos dos
questionamentos efetuados em tese. Os principais fundamentos para
essa decisão foram os seguintes: a) o caráter nacional dos partidos políticos, conforme exigência do art. 17, inciso I da Constituição Federal; b) a
consistência política das coligações partidárias, exigida pela legislação, porque a coligação nacional é paradigma da coligação estadual, já que, segundo a teoria dos conjuntos, a União inclui os Estados e o Distrito Federal,
e os Estados incluem os Municípios de seu território.
2. A REGRA DO ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Apesar de os argumentos acima mencionados também serem passíveis de fortes observações críticas, como adiante se fará, é importante
de logo registrar aquilo que diversos juristas, políticos dos mais diversos
partidos e amplos setores da imprensa já apontaram: a mencionada decisão do TSE violou flagrantemente a regra do artigo 16 da Constituição
Federal, que dispõe claramente que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando
à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência”.
Trata-se de norma que possui o claro objetivo de garantir segurança jurídica ao processo político-eleitoral, evitando a ocorrência de casuísmos
eleitorais, realizáveis conjunturalmente por maiorias eventuais em proveito próprio. Assim, as regras das eleições deverão estar definidas e serem
do conhecimento de todos os envolvidos no processo com antecedência
mínima de um ano, para que tenham tempo suficiente para as necessárias
adaptações e preparações políticas, jurídicas, técnicas e operacionais. A
norma do artigo 16 da Carta Magna é verdadeiro corolário do princípio
da segurança jurídica, assegurado como direito fundamental (artigo 5º,
caput), e que se coaduna com a defesa do Estado Democrático de Direito
(artigo 1º, caput) e da soberania popular (artigo 1º, parágrafo único), princípios fundamentais da organização política nacional.
Não deve valer, aqui, o argumento utilizado em defesa da decisão
do TSE no sentido de que o artigo 16 da Constituição se refere à lei em
sentido formal – espécie jurídica emanada do Poder Legislativo, segundo
o processo legislativo estabelecido na seção VIII do capítulo I do título IV
do texto constitucional – e, portanto, não impede que o TSE exerça sua
função de interpretar o texto legal existente. Mais ainda, que o TSE não
modificou as regras do processo eleitoral, apenas interpretou a regra existente, e que se não o fez anteriormente foi tão apenas porque não havia
sido provocado. E que, ainda, a decisão tomada pelo TSE foi em tempo
oportuno, que não inviabilizou qualquer formação de coligações partidárias. Nessa linha o voto do Ministro Nelson Jobim:
“Tem-se afirmado que não se deveria decidir sobre esta questão,
porque o processo eleitoral estaria já em adiantado estágio – que o momento seria inoportuno.
Lembro que as convenções partidárias para escolha de candidatos
e deliberações sobre coligações deverão somente se realizar no período
de 10 a 30 de junho (Lei nº 9.504/97, art. 8º).
Por outro lado, o pedido de registro de coligações e de candidatos
deverá ser encaminhado à Justiça Eleitoral até 05 de julho (Lei nº 9.504/
97).
O momento para apreciar a questão posta na consulta é exatamente o presente.
Isso porque os partidos terão a sinalização para suas decisões, por
ocasião das convenções de junho.”.
Ora, no presente caso, a lugar nenhum levam as enormes controvérsias teóricas que envolvem a exata caracterização da norma jurídica, e
se a decisão do TSE teria ou não cunho normativo, inovador da ordem
jurídica ou se apenas teria cunho interpretativo e orientador de norma já
existente. O dado concreto é que a decisão do TSE operou significativa
mudança nas regras do jogo, tal como compreendidas pelos atores envolvidos no processo, e tal como aplicada nas eleições gerais de 1998. A lei
eleitoral não mudou, continuou a mesma. Logo, o TSE, ao emitir a resolução objeto de exame – seja ato normativo ou meramente interpretativo
- alterou as regras que até então eram vigentes, a menos de ano das
eleições de 2002, ofendendo a teleologia da norma do artigo 16 da Constituição Federal.
Esse aspecto não passou despercebido no julgamento da questão,
tendo o Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto, afirmado que
“Por fim, uma consideração final de prudência.
A L. 9.504 é de 1997 e já regeu, portanto, as eleições gerais de
1998.
Nessas, o art. 6º foi interpretado e aplicado no sentido de
desvinculação entre as coligações federais e as estaduais.
Recordo, a título de exemplo, que o PSDB e o PT, aos quais filiados
os dois candidatos mais votados para Presidente da República, não obstante,
formaram a coligação que elegeu o Governador do Estado do Acre.
A lei não sofreu alterações. E a que hoje acaso viesse a ser editada
não mais incidiria, no processo eleitoral do corrente ano, por força do art.
16 da Constituição, inovação salutar inspirada na preocupação da qualificada estabilidade e lealdade do devido processo eleitoral: nele a preocupação é especialmente de evitar que se mudem as regras do jogo que já
começou, como era freqüente, com os sucessivos “casuísmos”, no regime autoritário.
A norma constitucional – malgrado dirigida ao legislador – contém
princípio que deve levar a Justiça Eleitoral a moderar eventuais impulsos
de viradas jurisprudenciais súbitas, no ano eleitoral, acerca de regras legais de densas implicações na estratégia para o pleito das forças partidárias.”.
Nesse sentido também o voto do Ministro Sálvio de Figueiredo:
“Com efeito, se é certo que se fazem presentes os pressupostos da
consulta hábil e da inegável competência jurisdicional da Corte, tenho por
não menos certo:
Primeiro – que o processo eleitoral de 2002, a sete meses das
eleições, já está efetivamente em curso, com candidaturas visualizadas
nos Estados e no País, presentes diuturnamente na mídia, nos institutos
de pesquisa, no Congresso e na sociedade, com composições bem adiantadas, algumas delas celebradas e divulgadas,sendo manifesto que o prejuízo, o tumulto e a surpresa que o referido art. 16 da Constituição busca
evitar, se farão presentes com essa mudança de rumos já no curso da
competição, alterando-lhe as regras,sabido mais que a consulta de que se
trata há meses se encontrava protocolada, somente agora vindo à apreciação e decisão.
Segundo – que o comando do art. 16 da Constituição, muito mais
que uma regra, reflete e expressa um princípio que, na hierarquia dos
valores normativos, segundo a melhor doutrina, é superior à própria lei,
do qual normalmente essa decorre, nasce e frutifica, o que ganha destaque quando promana da própria Constituição, a lei fundamental de uma
Nação.”.
Ao responder negativamente à consulta formulada e editar a Resolução 21.002, alterando o regramento do processo eleitoral a se realizar
em menos de um ano, o TSE fez aquilo que a Constituição, em seu artigo
16, vedou até mesmo à lei, em ato que ofendeu o regime democrático e
a própria segurança jurídica desejada pela Carta Política.
3. DO CARÁTER NACIONAL DOS PARTIDOS POLÍTICOS
Um dos principais fundamentos para o julgamento do TSE foi a
norma do artigo 17, inciso I da Constituição, que prevê o “caráter nacional” dos partidos políticos como preceito de observância obrigatória para
a organização partidária nacional.
Por conta desse princípio, as coligações eleitorais entre partidos
políticos, admitida pela legislação infraconstitucional, deveria observar a
necessária congruência, de forma a evitar que partidos políticos adversários na eleição nacional pudessem ser aliados formalmente (coligados) na
eleição estadual.
Assim o voto do Relator, o Ministro Garcia Vieira:
“Não podemos nos esquecer de que, como o legislador constitucional exige (art. 17, I), tenham os partidos políticos caráter nacional, e não
estaduais ou municipais e isso ocorreria se permitíssemos que um partido
(A), após celebrar coligação para eleição de presidente da República com
outros partidos (B, C e D) e, ao mesmo tempo, celebrasse coligação com
terceiros partidos (E, F e G) que também possuem candidatos a presidente da República. É claro que os candidatos a presidente podem ser diversos e, então, ocorreria o absurdo de termos uma coligação com diversos
candidatos a presidente da República.”.
Também assim o voto do Ministro Nelson Jobim:
“Admitir coligações estaduais assimétricas com a decisão nacional
é se opor ao “CARÁTER NACIONAL” e à “AÇÃO DE CARÁTER
NACIONAL”, que a Constituição e a lei impõem aos partidos.
A condição do “CARÁTER NACIONAL”, tanto da Constituição
como da lei, é incompatível com coligações híbridas, que não respeitem o
paradigma nacional.
Esse é o caminho para o fortalecimento dos partidos, como instrumentos nacionais da democracia brasileira.
É essa a opção do sistema legal brasileiro, que luta contra os vícios
regionalistas que vêm do início da República.
A celebração de coligações assimétricas estaduais vai nessa linha
de regionalização das decisões políticas, que é contrária à exigência constitucional.
Devemos nos curvar ao modelo constitucional.”.
Não é simples perceber a essência da opinião da maioria dos Ministros do TSE que sufragaram esse entendimento. O fato de a Constituição Federal prever, em seu artigo 17, inciso I, o caráter nacional dos
partidos políticos, não aponta necessariamente para a obrigatória reprodução das coligações nacionais nas eleições estaduais, ou para a vedação
de partidos políticos serem adversários nas eleições nacionais e coligados
nas eleições estaduais.
É que o caráter nacional dos partidos políticos indica apenas princípio de organização, de estruturação, de molde a impedir a existência de
partidos de caráter tão somente estadual, como em outras épocas da
história republicana, em que existiam partidos organizados apenas no Estado
de São Paulo e outros organizados apenas no Estado de Minas Gerais,
sem ramificações em outros Estados-membros da Federação brasileira.
A norma do artigo 17, inciso I, determina apenas que “a criação, fusão,
incorporação e extinção de partidos políticos” deve observar, dentre outros preceitos, o necessário “caráter nacional”; ou seja, não pode um partido político ser criado com delimitação regional, de forma a existir em
apenas um único Estado-membro; não podem dois ou mais partidos políticos se fundirem, criando outro partido político organizado em apenas
um Estado-membro; não pode haver incorporação de partido político
por outro de âmbito tão-somente estadual.
Ou seja: o artigo 17, inciso I da Carta Magna apenas determina
que os partidos políticos tenham cunho nacional, e, ao se organizarem,
observem o modelo federativo estatuído para o próprio Estado brasileiro, e possuam diretório nacional, diretórios estaduais e diretórios municipais, abrangendo a um só tempo toda a Nação, não podendo determinado partido político funcionar em âmbito apenas estadual ou municipal.
Isso se deve, inclusive, ao princípio federativo estabelecido pela
Constituição de 1988, que representa o princípio mais gravemente afetado e vilipendiado pela decisão do TSE, como se verá no item 4.
Vale registrar que o próprio TSE caiu em contradição, quando da
apreciação de outra consulta, agora formulada pelo Diretório Nacional
do Partido dos Trabalhadores (Consulta nº 766), em que se decidiu que
“1. O partido político que não esteja disputando a eleição presidencial poderá
participar de diferentes coligações formadas para as eleições estaduais em cada Estado
e no Distrito Federal.
2. Os partidos políticos que não disputarem a eleição presidencial podem
celebrar coligações para disputar eleições estaduais com partidos que tenham candidato
à eleição presidencial ou não.
3. Os partidos que não estejam disputando a eleição presidencial poderão
celebrar coligações nos Estados e no Distrito Federal com partidos que tenham, isoladamente ou em coligação, lançado candidato à eleição presidencial.
...”.2
Ao entender que partidos políticos que não participem formalmente do processo eleitoral na esfera federal – ou seja, que não tenham
lançado candidato a Presidente da República e que não estejam participando de nenhuma coligação federal que tenha lançado candidatura a
Presidente da República - possam livremente estabelecer coligações parti-
dárias nas eleições estaduais, porém diversas de Estado a Estado, o TSE
liquidou a sua própria concepção de “caráter nacional” dos partidos políticos, que foi utilizada como fundamentação para a Resolução nº 21.002,
e que, nos termos do voto do Ministro Nelson Jobim, transcrito acima,
estaria a impedir “coligações assimétricas estaduais” e “coligações híbridas” e a exigir “o fortalecimento dos partidos, como instrumentos nacionais da democracia brasileira”. É que, dessa forma, o partido político que
não participe formalmente da eleição na esfera federal estará livre para,
Estado por Estado, estabelecer as coligações as mais diversas, fazendo
ruir a defesa da “coerência partidária” que permeou o polêmico julgamento da consulta formulada pelos deputados federais do Partido Democrático Trabalhista.3
4. DO PRINCÍPIO FEDERATIVO E DA SUA NECESSÁRIA
EXTENSÃO À ORGANIZAÇÃO PARTIDÁRIA E AO PROCESSO ELEITORAL
A decisão do TSE representa uma grave ofensa ao princípio federativo estatuído na Carta Magna como um princípio fundamental (artigo 1º), valor que norteia e orienta a interpretação e aplicação das regras
constitucionais, e que fornece coerência e unidade ao ordenamento jurídico-constitucional, no tocante à organização do Estado brasileiro.
O regime federativo, enquanto forma de organização estrutural de
Estado, caracteriza-se por representar a união indissolúvel de coletividades regionais dotadas de autonomia, que se manifesta em diversos aspectos, dentre os quais o poder de autoconstituição e auto-organização, a
autonomia política e capacidade legislativa própria, nos termos da Constituição, com autogoverno e auto-administração e eleição própria dos seus
representantes políticos. Todas as características mencionadas encontramse acolhidas pelo texto constitucional (artigos 1º, 18, 25, 29, 32).
Numa Federação, vislumbra-se a diversidade regional que caracteriza a união nacional. Num Estado Federal, ao contrário do Estado Unitário, diversas populações com diferenças sociais, econômicas, culturais,
encontram o seu elo em comum originador da nação, mas preservam as
suas diferenças e as suas peculiaridades regionais.
Numa Federação, o cidadão é ao mesmo tempo membro da união
federativa e da sua região. No caso da federação brasileira, o cidadão é
ao mesmo tempo membro da união federativa, da região (Estado-mem-
bro) e da cidade (município), e, em cada uma dessas esferas, insere-se de
acordo com as peculiaridades que caracterizam esses âmbitos de convivência coletiva.
O regime federativo – criação dos constituintes de Filadélfia e
grande contribuição para o constitucionalismo em seu desiderato de limitação do poder político – é o mais adequado para a organização de um
Estado de dimensões territoriais continentais, como o Brasil, e que recebeu, em seu processo histórico de formação, as contribuições das mais
diferentes culturas e dos mais diferentes povos, porque se apresenta como
o mais eficaz meio de proporcionar o desenvolvimento nacional sem
olvidar as diferenças regionais.
Assim, os “vícios regionalistas que vêm do início da República”,
nas palavras do Ministro Nelson Jobim, citadas anteriormente, não constituem propriamente vícios, mas virtudes, que estão presentes na história
nacional antes mesmo da adoção do regime federativo pela Constituição
da República de 1891.
Esses regionalismos estão devidamente recepcionados pelo texto
constitucional em vigor, inclusive projetando-se sobre a organização dos
partidos políticos. Assim, a Constituição Federal de 1988 é a primeira a
incluir o Município como ente federativo – o que é apontado por Paulo
Bonavides como inovação mundial (2001:314, a) – alargando o seu campo de atribuições e competências, sua autonomia e sua esfera de
intangibilidade, reconhecendo a força da organização política municipal, a
par da estadual e federal.
Assim é que os processos político-eleitorais que envolvem os entes
federativos são diferenciados e autônomos entre si. O princípio federativo, no que se relaciona à autonomia política dos seus entes, autonomia
que se manifesta também na capacidade de escolha própria dos seus
representantes legislativos e executivos, projeta-se sobre o processo eleitoral e, por conseguinte, nas estruturas partidárias e nas coligações entre
partidos políticos. Para as eleições nacionais, os partidos políticos possuem os seus diretórios nacionais, para as eleições estaduais os diretórios
estaduais e para as eleições municipais os diretórios municipais. São pleitos eleitorais diferenciados, pautados por diversidades regionais, e que
não se confundem necessariamente – o que induz à inexistência de
vinculação jurídica entre eles – embora possam ter zonas de contato.
Essa realidade não é desconhecida de membros do Parlamento
Brasileiro. Em discurso proferido no Senado Federal, no dia 28 de feve-
reiro de 2002, o Senador José Eduardo Dutra (PT-SE) afirmou:
“Seria ideal, sim, que tivéssemos alianças nacionais e iguais em todos os
Estados, em todo o País. Aliás, isso seria justificável se tivéssemos eleições para presidente da República, deputado federal e senador num ano - portanto eleições nacionais;
e aí se poderia estabelecer a necessidade de uma mesma aliança, já que estaríamos
elegendo presidente e a sua bancada, a bancada de aceitação ou não no Congresso
Nacional –, e em outro ano eleições estaduais. Vivemos em uma Federação, e as
relações de poder nos Estados muitas vezes são diferenciadas em relação à União até
porque se existem na própria estrutura de partidos diretórios nacional e estaduais é
porque se reconhece que há especificidades em cada Estado que devem ser levadas em
consideração pelos diversos diretórios.”.
Em aparte, nessa mesma sessão, o Senador Roberto Freire (PPSPE) endossou essa concepção:
“A liberdade dos partidos, a liberdade das forças políticas, a liberdade da
sociedade civil fica manietada por uma decisão de sete juízes que interpretam a lei
equivocadamente porque não há Senador em circunscrição nacional; os Deputados
Federais também são de circunscrição estadual, não há Deputado Federal nacional.
As definições se dão na circunscrição eleitoral que são os Estados. E é isto que a lei
determina: a vinculação, na majoritária, deverá ter coerência com a proporcional. Não
há uma eleição nacional nem para Deputado, nem para Senador, mas há a dos
Estados. Trata-se de uma extrapolação. É evidente que o Tribunal invadiu uma
seara que não era sua. Competência de regular uma eleição ele tem, mas de criar uma
nova norma, uma nova lei, é claro que não tem. Estamos com dificuldades. O
autoritarismo está tão presente que é fácil encontrar na sociedade aqueles que dizem:
“Vamos dar coerência aos partidos” ... O Brasil não é homogêneo. Não se pode
pensar que um Estado industrial, urbano como São Paulo tem a mesma realidade
política de um Estado agrícola do Norte do País. Forças políticas que lá estão juntas
muitas vezes estão separadas num Estado industrial mais avançado. É normal que
isso ocorra. Deve haver tolerância democrática pelo pluralismo e pela realidade, que é
muito mais complexa do que alguém imaginar que, num esquema, impor de cima
para baixo o que o Brasil tem que pensar é o que está correto. Não! Não seria
importante termos a rebeldia de dizer que não podemos engessar este País, que é muito
mais complexo do que pensa a vã filosofia de sete juízes de um Tribunal qualquer de
Brasília?”.
Tais considerações voltaram a ser formuladas pelo Senador José
Eduardo Dutra, em discurso proferido no Senado Federal, em sessão
realizada no dia 12 de março de 2002:
“Essa resolução fere o princípio federativo. Não se pode dizer que as eleições
para a escolha de Presidente da República, Governadores, Deputados Federais e
Senadores se processam em circunscrição nacional. No nosso entendimento, é um absurdo. Deputados e Senadores não são eleitos em circunscrição nacional. A única
eleição em que o voto é nacional é o pleito para Presidente da República. Em todos os
outros casos - para Governadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Senadores - o voto obedece a uma circunscrição regional, até porque os Senadores são
candidatos em seus respectivos Estados e são eleitos em seus respectivos Estados. O
mesmo vale para os Deputados Federais”.
Têm razão os mencionados parlamentares, e suas opiniões encontram respaldo no texto constitucional e em interpretações doutrinárias.
Paulo Bonavides aponta que a compreensão comum de que a Câmara
dos Deputados representa o povo, e o Senado Federal, os Estados-membros, é incompleta, porque a Câmara dos Deputados também representa
os Estados-membros, e nela também se encontram os traços do princípio
federativo (1996:237, b):
“Com respeito ao Brasil, afigura-se-nos que a Câmara dos Deputados em
todas as Constituições, nunca foi exclusivamente a Câmara do povo; foi também, em
parte, como demonstrou Cláudio Pacheco, a Câmara dos Estados. Jamais perdeu,
portanto, um certo traço federativo, gravado em conteúdos essenciais e intangíveis,
como vem a ser o próprio limite mínimo da deputação estadual àquela Casa. Limite
estabelecido pelo Constituinte originário e que nenhum poder constituinte de segundo
grau, a nosso ver, terá legitimidade bastante para remover ou reduzir. É rodeado de
uma garantia federativa qualificada (art. 60, §4º, da Constituição).
...
São esses os elementos principais referidos por Cláudio Pacheco:
a) a composição da Câmara é tão circunscricional como a do Senado, tanto
que não se elegem os seus membros por votação geral;
b) as eleições para a Câmara não se apuram por quocientes nacionais;
c) essas eleições só se processam no âmbito das votações estaduais;
d) um vínculo de ordem espiritual faz os eleitos se sentirem representantes dos
Estados particulares (atente-se, aqui – e este é o nosso comentário -, sobretudo, para
as chamadas bancadas estaduais, sem estatuto formal, bem como para o peso da
influência que sobre elas exercem os governadores; bancadas não raro identificadas e
caracterizadas menos por laço partidário do que pelos interesses estaduais e regionais;
é o caso da chamada bancada da SUDENE, germe político de uma nova consciência
federativa onde avulta em primeiro lugar o interesse da Região);
e) e, finalmente, para manter as bases do equilíbrio federativo, a atribuição de
um número mínimo de deputados por Estado: a “representação indiminuível”, assim
qualificada por Pontes de Miranda.”.
Disso se conclui que o processo eleitoral no âmbito da federação
brasileira é também autônomo no interior de cada ente federativo, significando que as eleições nacionais diferem das eleições estaduais e também das municipais. E que a única eleição que se processa em âmbito
nacional, no Brasil, é a eleição para os cargos de Presidente e de VicePresidente da República. As eleições para Governador de Estado e Distrito Federal, Senador, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Deputados Distritais se processam todas elas em âmbito estadual. Assim,
por expressa determinação constitucional, que recepciona também no
processo eleitoral o princípio federativo, são diferentes as circunscrições
eleitorais nacional, estadual e municipal.
A essa mesma conclusão chegou o Ministro Sepúlveda Pertence –
embora com fundamentação um pouco diversa:
“A cláusula “dentro da mesma circunscrição” traçou o limite intransponível
do âmbito material de regência de tudo quanto no preceito se dispõe.
O conceito de circunscrição eleitoral é inequívoco no Código:
“Art. 86. Nas eleições presidenciais, a circunscrição será o país, nas eleições
federais e estaduais, o Estado; e nas municipais, o respectivo Município.”
“Circunscrição”, aí, não é uma entidade geográfica: é jurídica. A cada esfera
de eleição – e só para o efeito dela – corresponde uma circunscrição.
A circunstância de a eleição presidencial – que tem por circunscrição todo o
País – realizar-se na mesma data das eleições federais e estaduais na circunscrição de
cada Estado (L. 9.504, art. 1º, parágrafo único) – é acidental e não afeta a
recíproca independência jurídica das respectivas circunscrições, nem dá margem ao
raciocínio, de sabor geográfico, de que o território do País compreende os territórios das
unidades federadas.
...
Ora, no sistema brasileiro, só há uma eleição de âmbito nacional – aquela
para Presidente da República, que implica a do candidato a Vice-Presidente, registrado com o vencedor; do que resulta que, com relação a ela, o art. 6º da L. 9.504/97
só contém uma regra, a da liberdade de formação de coligações para disputá-la, da
composição das quais não advém restrição alguma a que os partidos respectivos venham a disputar em outra circunscrição – vale dizer, normalmente, na de cada um
dos Estados e do Distrito Federal – as eleições locais, isoladamente ou coligados a
partidos diversos dos seus aliados nacionais.”.
Assim, interpretando a questão levando-se em conta também a
legislação infraconstitucional específica – o Código Eleitoral, no que atine
à definição do conceito de “circunscrição eleitoral”, para a exata compreensão do art. 6º, caput da Lei nº 9.504/97 – chega-se à mesma conclusão:
as eleições, como instrumento do regime democrático e do sistema representativo da soberania popular, processam-se diferenciadamente entre os
entes federativos; é a projeção do princípio federativo sobre o processo
de escolha dos governantes e dos parlamentares, garantida a independência e autonomia jurídica entre as diversas esferas.
Vale ainda reportar-se a um trecho do voto do Ministro Sepúlveda
Pertence, transcrito acima, no sentido de que o fato de as eleições nacionais e estaduais realizarem-se na mesma data trata-se de uma “circunstância”, ou seja, de uma mera coincidência temporal, e não de uma
obrigatoriedade jurídica. Aliás, das emanações do poder constituinte “originário” observa-se tratar-se apenas de coincidência temporal mesmo,
pois a Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988 preservou os
mandatos dos governadores, senadores, deputados federais e estaduais
eleitos em 1986 e a duração dos seus mandatos em quatro anos – salvo
os senadores eleitos em 1986, com mandatos de oito anos. Assim, em
1990 deveriam ser – e foram – realizadas novas eleições para governadores, senadores (das vagas preenchidas em 1982), deputados federais e
distritais, mas não se realizaram eleições para Presidente e Vice-Presidente da República, porque já tinham ocorrido em 1989 (conforme determinação do art. 4º, § 1º do ADCT), e a eles se atribuiu originalmente o
mandato de 5 (cinco) anos (art. 82, em sua redação original). Logo, haveria apenas coincidência das eleições nacionais e estaduais em 1994, mas já
em 1998 haveria eleições estaduais e só em 1999 haveria eleições nacionais, segundo determinação da Assembléia Nacional Constituinte. O fato
de ter havido eleições gerais em 1994, 1998 e 2002 decorre de aprovação, pelo Congresso Nacional, da Emenda Constitucional de revisão nº 5,
de 07 de junho de 1994, que alterou o mandato presidencial previsto no
artigo 82 de cinco para quatro anos. Portanto, só se realizam eleições
nacionais na mesma data das estaduais por uma circunstância, uma coincidência temporal, não se podendo então falar em necessária vinculação
jurídica entre elas, até porque não concebidas dessa forma pelo Poder
Constituinte originário.
Concluindo esse tópico, verifica-se então que a Resolução nº
21.002/02, do Tribunal Superior Eleitoral, representa uma flagrante inconstitucionalidade material, ao violar o princípio federativo de organização do Estado Brasileiro, que é um princípio fundamental, o que torna
ainda mais grave a violação a que se procedeu, acarretando, em conseqüência, ofensas ao Estado Democrático de Direito e à soberania popular,
por frustrar o direito fundamental do povo ao livre processo de escolha
dos seus representantes, de acordo com as especificidades dos entes federativos.
CONCLUSÕES
O processo de construção da democracia no Brasil avança nos
últimos anos, mas encontrou na decisão do Tribunal Superior Eleitoral,
objeto de exame no presente artigo, um considerável obstáculo.
A modificação das regras jurídicas norteadoras do processo eleitoral, em prazo inferior a um ano da realização do pleito de outubro de
2002 (eleições gerais), abalou a segurança jurídica preconizada pela Constituição Federal em seu artigo 5º, enquanto direito fundamental inviolável
dos brasileiros e estrangeiros residentes no país e no artigo 16, aproximando-se dos casuísmos próprios do regime militar já superado e violando o exercício da soberania popular no processo de escolha de seus representantes parlamentares e executivos (artigo 1º, parágrafo único e artigo
14 – o voto como manifestação da soberania popular).
Pior, a determinação da proibição de partidos políticos que sejam
adversários nas eleições presidenciais serem aliados nas eleições estaduais
viola profundamente o princípio federativo estatuído como fundamental
para a organização política da sociedade brasileira - que leva em conta as
diversidades socioeconômicas e culturais das diversas regiões do país,
conferindo autonomia aos diversos entes federativos – e que se projeta
sobre a organização político-partidária, evidenciando que as eleições federais e estaduais são diversas juridicamente, e, portanto, não se lhe devem estabelecer vínculos jurídicos que ofendam a capacidade autônoma
de cada ente produzir as coligações partidárias de acordo com as realidades locais.
Mais ainda: a determinação de uma “verticalização” das coligações partidárias – que não se fez por completo, pois o TSE permitiu em
outra decisão, igualmente polêmica, que os partidos políticos que não
possuam candidatos à eleição presidencial ficam livres para estabelecer
quaisquer tipos de coligações nos Estados, inclusive as mais diversas –
não produziu, ao contrário do que pregava o TSE, uma maior “coerência” ideológica às coligações partidárias, sendo do conhecimento da nação
a formação de diversas coligações “brancas” entre partidos políticos nas
eleições estaduais que são adversários nas eleições nacionais.
Assim, se alguém há de exigir coerência ideológica nas coligações
político-partidárias que se formam para as eleições gerais, mesmo considerando as diversidades políticas e jurídicas das esferas dessas coligações,
esse alguém é o povo, a quem compete, no exercício de sua soberania,
através do voto, derrotar aquilo que considere nefasto aos interesses nacionais. Não se pode querer, porém, que essa “coerência” seja imposta
por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, mas sim que seja construída
pelo povo no cotidiano das atividades políticas, respeitadas as diferenças
regionais que caracterizam o regime federativo.
BIBLIOGRAFIA
BONAVIDES, Paulo.
A - Curso de Direito Constitucional, 11ª edição, São Paulo: Malheiros,
2001.
B - A Constituição Aberta, 2ª edição, São Paulo: Malheiros, 1996.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 11ª edição, São Paulo:
Atlas, 2002.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 2ª
edição, São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
ROCHA, Carmem Lucia Antunes. República e Federação no Brasil:
traços constitucionais da organização política brasileira, Belo Horizonte: Del Rey,
1997.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 16ª edição, São Paulo: Malheiros, 1999.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 17ª edição, São
Paulo: Malheiros, 2001.
www.camara.gov.br
www.senado.gov.br
www.stf.gov.br
www.tse.gov.br
É que a resposta dada pela Justiça Eleitoral em sede de consulta
não a vincula quando do julgamento de um caso concreto, de modo que
1
poderiam os partidos políticos efetuar coligações em desacordo com a
resolução mencionada, e aguardar o julgamento dos possíveis pedidos de
impugnação.
2
Resolução nº 21.049, de 26 de março de 2002.
3
Importante considerar que o Ministro Relator da Consulta formulada pelo Diretório Nacional do PT, Fernando Naves, deixou claro o
seu próprio desconforto diante da situação gerada pela nova decisão:
“Confesso, Sr. Presidente, que a possibilidade de um determinado partido
celebrar coligação em um Estado com um partido que esteja disputando
a eleição presidencial e em outro Estado com outro partido que também
esteja disputando a eleição presidencial pode e deve causar grande espanto no espírito do eleitor. Como será possível que uma agremiação partidária apóie um programa em um Estado e outro, antagônico, em outro
Estado? Isso não contribui para o fortalecimento dos partidos, nem da
democracia”.
É também importante assinalar que o Ministro Sepúlveda Pertence, no novo julgamento, abdicando de sua posição pessoal contrária à
“verticalização” das coligações partidárias, em face da decisão do colegiado,
entendeu que, para ser coerente com a decisão anterior, o TSE deveria
responder à consulta de modo a determinar a necessária reprodução das
coligações para as eleições federais nos Estados, vedando-se a possibilidade de partido político que não participe da eleição federal ficar livre para
coligar-se nos Estados.
POSITIVISMO JURÍDICO: O CÍRCULO
DE VIENA E A CIÊNCIA DO DIREITO
EM KELSEN.
Sidney Amaral Cardoso
I. Considerações iniciais. II. O positivismo jurídico. 2.1. A origem
do positivo. 2.2. Três acepções do positivismo jurídico. III. O Círculo de
Viena e o positivismo jurídico na perspectiva kelseniana. 3.1. O Círculo
de Viena. 3.2. Positivismo jurídico e condição de verdade. IV. Considerações finais. V. Referências.
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A concepção da ciência do Direito como uma ciência normativa é
fruto da evolução da doutrina do positivismo jurídico. A credibilidade que
tal doutrina ganhou e sua disseminação nos meios acadêmicos ocidentais
certamente permite a afirmação de ser esta uma das mais influentes teorias explicativas do fenômeno jurídico. Este estudo visa, nas breves linhas
que se seguem, a determinar quais as bases teóricas do positivismo jurídico e suas principais limitações.
Neste sentido, dividiu-se o trabalho em duas partes. Na primeira,
ocupa-se a pesquisa do positivismo jurídico em sua vertente primeira.
Serão trabalhadas as idéias de direito positivo e natural além das premissas que identificam o positivismo na acepção já amadurecida da famosa
escola francesa da exegese. Ainda na primeira parte do trabalho, serão
apresentadas três concepções do positivismo jurídico clássico, quais sejam: positivismo enquanto método, teoria e ideologia. Na segunda parte,
tratar-se-á do positivismo lógico e da influência que o Círculo de Viena
teve na teoria de Hans Kelsen. Além da exposição das principais categorias construídas pelo positivismo lógico, este estudo abordará a influência
que estas categorias tiveram na concepção de ciência normativa construída
por Kelsen em sua teoria pura do Direito.
II. POSITIVISMO JURÍDICO
2.1. A origem do termo positivo
Positivismo jurídico consiste na doutrina segundo a qual não existe
direito que não seja positivo, ou seja, posto pelo poder soberano estatal
através de normas gerais e abstratas. A ascensão desta corrente do pensamento começa com o impulso para a legislação, um movimento histórico
diretamente ligado à própria formação e desenvolvimento do Estado
moderno. Esta identificação entre direito e lei, ou mais precisamente, a
identificação da lei como a fonte de irradiação jurídica por excelência,
não só põe fim ao pluralismo do direito primitivo e medieval, mas também fornece ao Estado um eficaz instrumento para intervenção na ordem social (Bobbio, 1995:119-129).
Apesar de o positivismo jurídico se identificar em muitos aspectos
com o positivismo sociológico ambos têm origens distintas e não surgem
simultaneamente. Positivismo em sentido jurídico tem suas raízes na expressão direito positivo largamente usada e conhecida pela sua contraposição
à expressão direito natural. Segundo Bobbio (1995:239), foi Hugo de São
Vitor que primeiramente usou o termo iustitia positiva, o que ocorreu na
obra Didascalion escrita por volta do ano 1130. A expressão também é
prematuramente encontrada em Abelardo que, ainda no século XII, usou
o termo ius positivum.
A distinção entre direito positivo e direito natural é, por isso, bastante antiga. Ela é encontrada em textos gregos e latinos, amplamente
usada por todos os escritores medievais (teólogos, filósofos e canonistas)
–, e, portanto, antecede o positivismo sociológico que somente se iniciará
no século XIX, a partir dos estudos de Augusto Comte (Bobbio, 1995:15).
A contraposição entre direito natural e positivo servia então para
indicar momentos normativos simultâneos embora com fontes distintas.
O direito natural era entendido como um direito posto por Deus e apreendido pela razão humana. A lei dos homens, positiva, era entendida
como uma decorrência da lei natural; enquanto esta era imutável no tempo e revelada pelo Criador, aquela podia ser mudada seja pelo costume
seja por outra lei posterior. É importante notar, entretanto, que a concepção do positivismo jurídico, como corrente que identifica o direito à lei,
estará estruturada e será posta em prática alguns séculos mais tarde, o
que se dá a partir do aparelhamento orgânico e ideológico do Estado para
o desempenho do mister legislativo. Como informa Ferraz Jr (2001:72),
“um dado importante da experiência jurídica entre os séculos XVI e XVIII
é o fato de o direito ter se tornado cada vez mais escrito, o que ocorreu
pelo quer pelo rápido crescimento da quantidade de leis emanadas do
poder constituído, quer pela redação oficial e decretação da maioria das
regras costumeiras”. O aperfeiçoamento das doutrinas positivistas cumpriram, assim, o papel de gradativamente furtar do jus naturalismo sua
credibilidade e aceitação enquanto teoria explicativa do fenômeno jurídico.
O impulso para a legislação se espalhou pela Europa o que termina por redundar, em na maioria dos países, na compilação das leis em
códigos que deviam ser rigorosamente aplicados. Foi a Escola da Exegese,
na França, que apurou aquela concepção de positivismo. Como informa
Bobbio (1995:83), a escola da exegese deve seu nome à técnica defendida
e adotada pelos seus doutrinadores no sentido de assumir um tratamento
teórico do Direito de acordo com o mesmo sistema de distribuição da
matéria seguida pelo legislador, reduzindo tal tratamento a um comentário artigo por artigo do código.
São características essenciais do positivismo construído pela escola da
exegese (Bobbio, 1995:84-89):
(i) inversão das relações entre Direito natural e Direito positivo
Os estudiosos ainda não negavam a existência de um direito natural, mas minimizavam sua importância para o jurista. Construiu-se a idéia
segundo a qual, embora existisse o direito natural, distinto do positivo, ele
era irrelevante para o jurista enquanto não incorporado à lei. O que ocorre, pois, é uma inversão no critério de validade porque o Direito natural
passa a ser mensurado segundo sua conformidade ao Direito positivo.
(ii) concepção do direito como sendo rigidamente estatal
Daí a expressão dura lex, sed lex significando a exaltação máxima
das escolhas normativas feitas pelo legislador onipotente.
(iii) a interpretação da lei fundada na intenção do legislador
Como o Direito se identifica com a lei emanada do Estado, a interpretação desta lei deve se dar em consonância com a vontade ou o propósito do legislador. Paulatinamente a interpretação que busca a vontade
do sujeito legislador (concepção subjetiva) é substituída pela vontade da
lei enquanto conteúdo normativo dotado de sentido em si mesmo (concepção objetiva).
(iv) o culto ao texto da lei
A função do intérprete é a de rigorosamente repetir as disposições
do código vigente.
(v) o respeito ao princípio da autoridade
A verdade de uma proposição, não era demonstrada mediante critérios objetivos, ao contrário, recorria-se à palavra de uma pessoa (os
argumentos de autoridade) cujo sentido e alcance não podia ser colocado
em discussão.
Quadro 1 – características do positivismo jurídico na escola da
exegese
2.2. Três acepções do positivismo jurídico
É importante verificar, porém, que a recusa do positivismo jurídico de reconhecer qualquer fenômeno jurídico não estatal, esta concepção
da ciência a partir da delimitação exata de um objeto de conhecimento,
afina-se com o rigor metodológico concebido pelo positivismo sociológico.
O positivismo, doutrina que forte influência exerceu para a delimitação do objeto das ciências humanas, tem seu início no século XIX, com
Augusto Comte, transformando-se em uma das correntes mais influentes
das ciências humanas em todo o século XX. Como ensina Chauí (1999:272),
“Comte enfatiza a idéia do homem como um ser social e propõe o estudo
científico da sociedade: assim como há uma física da natureza, deve haver uma física do social, a sociologia, que deve estudar os fatos humanos
usando procedimentos, métodos e técnicas empregados pelas ciências da
Natureza”.
Da mesma forma que o positivismo transforma o fato social em
uma coisa (objeto) cientificamente observável, através de rigorosos passos metodológicos, o positivismo jurídico vai transformar a norma jurídica em seu objeto de observação. Assim, a norma jurídica está para o
positivismo jurídico como o fato social está para o positivismo sociológico.
Bobbio (1995:234) ressalta três aspectos do positivismo jurídico
(Quadro 2): (i) como método para o estudo do Direito; (ii) como teoria
do Direito; (iii) como ideologia do direito. Como informa o autor, a importância da distinção repousa no fato de que a assunção do método
juspositivista não implica na adoção da teoria juspositivista, da mesma
forma que a adoção da teoria e do método também não significam necessariamente a adesão à ideologia do positivismo jurídico. Isto não se dá,
porém, no caminho inverso, já que a adoção da ideologia jus positivista
implica na adoção tanto da teoria quanto do método do positivismo jurídico:
(i) Positivismo jurídico como método
Como a ciência se faz a partir de proposições sobre um objeto
(que podem ser verdadeiras ou falsas), o método positivista coincide com
o método científico. Consiste no modo de agir do sujeito em relação ao
objeto cognoscente. Neste caso, o positivismo jurídico como método, coincide com o positivismo sociológico estudado acima.
(ii) Positivismo jurídico como teoria
Neste sentido, baseia-se o positivismo em seis concepções fundamentais: (a) teoria coativa do Direito; (b) teoria legislativa do Direito; (c)
teoria imperativa do Direito; (d) teoria da coerência do ordenamento
jurídico; (e) teoria da completude do ordenamento jurídico; (f) teoria da
interpretação lógica ou mecanicista do Direito.
(iii) Positivismo jurídico como ideologia
Somente alguns juspositivistas alemães da segunda metade do século XIX levaram ao extremo a defesa do dever de obediência absoluta
às leis (positivismo ético extremista), o que conduzia à estatolatria e ao
autoritarismo. A visão mais moderada do positivismo, ao considerar como
valores do Direito a ordem, a igualdade formal e a certeza, aproximou-se
muito mais do Estado liberal que do Estado autoritário.
Quadro 2 – acepções do positivismo jurídico
São características essenciais do positivismo jurídico (Vilanova,
1997:320): (i) racionalismo filosófico transposto para a ordem da razão
prática jurídica; (ii) sistematização e unificação do Direito; (iii) redução do
pluralismo das fontes materiais ou não-formais à fonte formal como
centro único de irradiação normativa (fonte estatal de produção ou outra
fonte pelo Estado convalidada); (iv) primado da lei como expressão da
vontade geral (primado político do legislativo); (v) função judicial concebida como mera aplicação da regra geral ao caso concreto, tradução de
um silogismo normativo; (vi) interpretação do Direito concebida ou como
a busca do sentido histórico da linguagem posta na norma pelo legislador
(teoria subjetiva) ou do sentido efetivamente posto nos textos (teoria objetiva).
A doutrina do positivismo jurídico reserva para ciência do Direito
uma tarefa pouco ambiciosa e nada criativa. O rigor na observância do
objeto deixa para ele, o cientista, pouca ou nenhuma margem de observação crítica. O cientista é um servo, sem vontade própria, um observador
cego. Serve a uma lei que julga neutra. O culto ao Direito positivo, pois,
está indissociavelmente ligado ao culto ao Estado e à idéia de que ele
representa e se constitui na vontade da maioria. Esta estatolatria esconde
(ou não enxerga) todas as ideologias que as normas jurídicas podem trazer. O positivista não só é indiferente a tais ideologias mas também serve
a um objeto efêmero. O esforço da descrição da norma sempre sucumbe
perante o surgimento de outra, mais recente e que revoga a anterior.
III. O CÍRCULO DE VIENA E O POSITIVISMO JURÍDICO NA
PERSPECTIVA KELSENIANA
3.1. O Círculo de Viena
O Círculo de Viena surgiu nos anos de 1920 e teve como seus
membros mais destacados Schlick e Carnap. O movimento recebeu diversas designações, dentre as quais, destacam-se positivismo lógico,
empirismo contemporâneo e empirismo lógico (Warat, 1984:37). No Direito, como se verá, o positivismo lógico encontrou em Hans Kelsen sua
máxima expressão. Segundo Chauí (1999:143), o positivismo lógico nasce
a partir da distinção entre linguagem natural e linguagem lógica, entendida
a segunda como uma linguagem purificada, formal, inspirada tanto na
matemática quanto na física, que deveria obedecer a princípios e regras
lógicas precisas.
Como informa Stegmüller (1977:276), a atitude do Círculo de Viena foi, em princípio, fortemente polêmica. Tal atitude, muitas vezes agressiva, contribuiu para que se viesse a identificar a preocupação com questões teórico-científicas com a defesa de uma postura filosófica radicalmente positivista.
Os positivistas lógicos sustentavam a idéia de que o conhecimento
poderia ser obscurecido por certas falhas de natureza exclusivamente
lingüísticas. A busca de uma linguagem pura, significava, pois, erigir o
rigor discursivo como novo paradigma da ciência. A ciência, destarte, não
somente se fazia com linguagem, mas era, em última instância, ela mesma
linguagem (Warat, 1984:37-38).
São categorias essenciais para o entendimento do positivismo lógico (Warat, 1984:38-40):
Signo
É a unidade de qualquer sistema lingüístico. Compõe-se de dois
elementos que se relacionam:
· indicador: plano da expressão (som, grafia, gesto). ·indicado: situação significativa (fenômeno, fato).
O signo tem três tipos de vinculação:
·com outros signos (sintaxe). com os objetos que designa (semântica)
·com os homens que os usam (pragmática)
Estes três elementos formam a semiótica, ou seja, a teoria geral
dos signos e dos sistemas de comunicação (semiótica ou metalinguagem).
Linguagem
São todos os sistemas de hábitos produzidos com o intuito de servir de comunicação entre as pessoas, ou seja, influenciar seus atos, decisões e pensamentos.
Quadro 3 – categorias essenciais do positivismo lógico
É a análise semântica, que vincula as afirmações do discurso com
o campo objetivo a que se refere, que se mostra mais relevante para o
Direito. O problema central da semântica é o da verdade. Para o
positivismo lógico a verdade opera como uma condição de sentido. Um
enunciado é semanticamente verificável se for empiricamente verificável,
ou seja, a condição semântica de sentido expressa as condições pelas quais
um enunciado tem correspondência com os fatos e, por tal motivo, pode
adquirir o estatuto de científico (Warat, 1984:40-41).
Assim, só têm sentido os enunciados que possuem referência
empírica, ou seja, contêm conceitos que se referem a fatos e podem, por
isso, ser classificados como verdadeiros ou falsos. Destarte, a seqüência
de signos “o mar é azul” é um predicado verdadeiro porque se refere a
um fato cuja existência é admissível. A condição de verdade, através da
qual a um enunciado são adjudicados os valores verdadeiro ou falso,
influenciou significativamente a teoria pura de Kelsen. Como explica Warat,
o critério de determinação das normas – a teoria da validade – descansa
em uma teoria análoga à teoria da verdade (Warat, 1984: 45).
3.2. Positivismo jurídico e condição de verdade
Enquanto corrente de explicação do fenômeno jurídico, o
positivismo encontra em Hans Kelsen seu maior expoente. Como informa Marques Neto (2001:163), Kelsen não só incorporou radicalmente o
normativismo da Escola da Exegese, mas também renovou os procedimentos hermenêuticos por ela construídos conferindo à norma o papel
de ser a realidade jurídica por excelência.
Kelsen, assim, não só identifica o jurídico a uma norma juridicamente válida (Direito é norma) mas delineia uma ciência em função da
norma, construindo, portanto, uma ciência normativa do Direito. Por isso,
segundo o autor, “na firmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as
normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é
na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto
ou conseqüência” (Kelsen, 1998: 79). Não se trata de uma ciência
prescritiva, que estabeleça normas da conduta humana, mas, tão-somente, uma ciência que descreve tais normas e as relações entre os homens
através delas criadas.
A pureza almejada pela teoria kelseniana não só delimitou o universo jurídico, mas ao fazê-lo almejou livrar a ciência de todos os elementos estranhos a tal universo. O princípio metodológico fundamental, como
o próprio Kelsen (1998:1) expõe, consiste em direcionar os esforços de
conhecimento científico apenas ao Direito, excluindo deste conhecimento
tudo o quanto não pertença ao seu objeto. A grande preocupação de
Kelsen era, pois, a de construir uma ciência livre de qualquer contaminação ideológica, política, social ou econômica (Marques Neto, 2001:163).
Daí caber a distinção entre as funções da ciência e da autoridade
jurídica: enquanto esta prescreve condutas (no sentido de permitir, conferir poder ou competência) a ciência apenas descreve o Direito (Kelsen,
1998:82). A proposição científica não é um imperativo; é apenas um
juízo, a afirmação sobre um objeto de conhecimento que é a norma.
Uma proposição jurídica diferencia-se de uma norma jurídica também pelo aspecto de que a primeira, enquanto juízo hipotético que descreve uma realidade, será verídica ou inverídica na medida em que a
descrição esteja conforme a ordem jurídica descrita. A norma, ao contrário, não consiste num enunciado sobre um fato, não é a descrição de um
objeto, não podendo, por tal motivo, ser classificada como verídica ou
inverídica. Normas jurídicas são, assim, válidas ou inválidas conquanto
estejam, respectivamente, conforme ou desconforme determinada ordem jurídica (Kelsen, 1998:83).
Ao classificar as normas como válidas ou inválidas e os juízos
sobre as normas como verídicos ou inverídicos, Kelsen adota uma condição de verdade exatamente como defendido no positivismo lógico. A
proposição jurídica, como afirma Kelsen, permanece descrição objetiva,
a descrição de um objeto alheia a valores metajurídicos e sem qualquer
aprovação ou desaprovação emocional (Kelsen, 1998:89). Kelsen considera, portanto, a possibilidade de estipulação da verdade de uma proposição jurídica quando o conteúdo desta proposição corresponder ao conteúdo da norma.
Como explica Warat (1984:44), os enunciados da ciência do Direito teriam um sentido semântico – sujeitos às condições de verdade – na
medida em que afirmem ou neguem a validade de uma norma. Existe,
pois, um critério compulsório relativo àquilo que é sustentável ou que
deva ser abandonado.
A teoria pura, ou seja, a ciência jurídica na ótica kelseniana, recusase valorar o Direito positivo. Como ciência, explica Kelsen (1998:118),
“ela não se considera obrigada senão a conceber o Direito positivo de
acordo com sua própria essência e a compreendê-lo através da sua estrutura. Recusa-se, particularmente, a servir a quaisquer interesses políticos,
fornecendo-lhes as ‘ideologias’ por intermédio das quais a ordem social
vigente é legitimada ou desqualificada”.
São idéias subjacentes à concepção da ciência normativa do Direito: (i) a crença na determinação da ciência a partir da delimitação de um
objeto; (ii) distinção entre sujeito e objeto, o que permite, estabelecer a
idéia de objetividade; (iii) a importância conferida ao método como um
conjunto de regras, normas e procedimentos gerais que existem com objetivo de definir e construir um objeto e de determinar um autocontrole
do pensamento durante a investigação e, destarte, confirmar ou falsificar
os resultados; (v) a crença na ciência como uma instituição neutra e desinteressada.
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ciência normativa de Kelsen representa a maturidade e o rigor
que o escritor alemão empregou em seus estudos. A busca da pureza da
teoria denuncia a forte influência de Kelsen teve do Círculo de Viena e do
positivismo lógico. Ele constrói um modelo de ciência jurídica a partir de
postulados empiricamente verificáveis, verídicos ou inverídicos, de juízos
hipotéticos que nada prescrevem.
A modelo de Kelsen é descritivo e, por isso, como nos postulados
do empirismo lógico, a estipulação da verdade de uma proposição jurídica
dar-se-á quando o conteúdo desta proposição corresponder ao conteúdo
da norma. Ao sentido semântico das proposições científicas, assim, podem-se adjudicar os valores verdade ou falsidade na medida em que,
afirmando ou negando a validade de uma norma, tal afirmação seja
empiricamente verificável. E os enunciados empiricamente verificáveis
ganham o esperado atributo de conhecimento científico.
O salto do positivismo jurídico clássico para o positivismo lógico
kelseniano reside, principalmente, no método. Enquanto no primeiro, a
cientificidade se dá por uma função secundária do cientista (quase um
copista da lei) ou pelo seu argumento de autoridade, no segundo, dá-se
por uma relação lógica de atribuição de sentido de verdade. Kelsen apura
o positivismo clássico levando seus postulados ao mais alto grau de rigor
científico.
Entretanto, não são necessários grandes esforços teóricos para
demonstrar que esta concepção normativista transforma o Direito em
um dogma e situa a ciência dentro de uma perspectiva acrítica. A delimitação do universo jurídico à norma juridicamente válida, e da ciência à
simples descrição lógica desta norma, termina revestindo a teoria de
marcante caráter ideológico. Destarte, apesar de um objeto delimitado e
de um método específico, o positivismo é incapaz de explicar o jogo de
forças na base do ordenamento jurídico, o caráter essencialmente político
deste ordenamento. Trata-se de um cômodo corte epistemológico: a ciência só deve observar normas juridicamente válidas. Neste sentido, tanto
o positivismo jurídico clássico quanto o lógico são iguais: servem para
observar qualquer coisa que ganhe o status de Direito.
V. REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito.
São Paulo: Ícone, 1995.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1999.
FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3. ed.
São Paulo: Atlas, 2001.
KELSEN, Hans. A teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
STEGMÜLLER, Wolfgang. A filosofia contemporânea: introdução crítica. São Paulo: Pedagógica e Universitária, 1977.
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.
WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1984.
POR UMA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO ARTIGO 557 DO CPC
Pedro Dias de Araújo Júnior, Procurador do
Estado de Sergipe, Pós- graduado em Direito Constitucional e Processual Civil pela UFS.
1 – UMA RÁPIDA INTRODUÇÃO
Dentre os tópicos das últimas reformas legislativas, um nos merece maior atenção: trata-se da reforma do artigo 557, do CPC, que dá
maiores poderes ao relator do recurso para solucioná-lo, desde que obedecidas as normas insculpidas pela reforma.
Pelo imperativo de lógica jurídica, um ponto deverá necessariamente ser mais debatido pelos tribunais: qual o elastério que o artigo 557,
e seus §§ 1º-A e §1º do CPC impõem à jurisprudência erigida como
paradigma - quais sejam as jurisprudências dominantes do respectivo Tribunal, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça para o provimento ou improvimento do recurso interposto em decisão
monocrática pelos seus respectivos relatores.
Sem objetivo de esgotar o tema, o presente trabalho se propõe a
trazer uma nova reflexão ao assunto ora exposto.
2 – DA REDAÇÃO DO ARTIGO 557 DO CPC
Assim giza o artigo consolidado, verbis:
“Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente
inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula
ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.
§ 1º - A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto
com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.
§ 1º Da decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão
competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o
relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto: provido o agravo, o recurso terá seguimento.
§ 2° Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo,
o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre um e
dez por cento do valor corrigido da causa, ficando a interposição de
qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor.”
O tema em questão, por ser relativamente novo no Direito Processual, merece uma análise mais acurada por parte dos aplicadores do
Direito.
Verifica-se que o objetivo da reforma de 1998 foi o de abreviar a
duração dos processos através da aproximação de entendimentos dos
tribunais locais com os tribunais superiores.
A reforma trouxe à tona alguns termos e situações novas, que
adiante serão destrinchadas.
2.1 – Da nomenclatura utilizada no artigo reformado
O artigo 557, caput, erige como paradigmas válidos para fundamentar a negativa de seguimento de recurso a jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal
Superior.
Em primeiro lugar, urge investigar qual o alcance da expressão
negativa de seguimento de recurso.
Pela análise do dispositivo, verifica-se que:
a) haverá negativa de seguimento, com ênfase na negativa de conhecimento do recurso quando este for manifestamente inadmissível ou prejudicado;
b) por outro lado, a negativa de seguimento terá contornos de
conhecimento com improvimento do recurso quando este for manifestamente
improcedente ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do próprio tribunal, do STF ou de outro tribunal superior.
Esta divisão pode parecer meramente acadêmica, mas terá contornos mais sérios nos efeitos substitutivos da decisão do Relator.
Haverá efeito substitutivo e, portanto, ter-se-á uma nova decisão, se
houver a negativa de seguimento com contornos de improvimento.
Por outro lado, não haverá a possibilidade de efeito substitutivo
quando o relator negar seguimento ao recurso com base nos moldes de negativa
de conhecimento.
Já a hipótese prevista no § 1°-A é de que o relator poderá dar
provimento a recurso naquelas situações específicas. Esta previsão corresponde
a conhecer e prover o recurso, o que traz, por conseqüência, o efeito
substitutivo na decisão monocrática.
Em eventual ação rescisória, a indicação da correta decisão judicial
será imprescindível para o julgamento válido sob a ótica do jus rescindens, e
aí reside a importância do correto entendimento do poder que o relator
possui face ao processo.
2.2– Da hipótese de negativa de seguimento de recurso por
estar a decisão a quo em conformidade com a jurisprudência do
respectivo tribunal
Este artigo tem como um de seus primeiros fundamentos a
pertinência temática da decisão a quo guerreada com a jurisprudência
dominante do tribunal ad quem (primeira hipótese legal de jurisprudência
paradigmática do 557, caput).
2.2.1 – Análise interna da jurisprudência paradigmática – sentido
quantitativo e qualitativo
Para se ter uma idéia da validade da jurisprudência paradigmática,
é necessário fazermos uma avaliação apriorística sobre o seu conteúdo.
Por pertinência temática entende-se a identidade de tese jurídica apreciada em juízo. Por razões praxeológicas, esta identidade de tese pode ser
considerada em sentido qualitativo e quantitativo.
Tem-se identidade de tese jurídica no sentido qualitativo quando
ocorre a vinculação de fundamentações jurídicas no mesmo sentido. Tome-se
como exemplo uma ação de anulação de cláusula contratual. A sentença
de primeiro grau declararia a nulidade da cláusula com base nas disposições do Código de Defesa do Consumidor.
Para que a decisão paradigmática do tribunal ad quem pudesse ser
considerada para fins do artigo 557 do CPC, seria necessário que a fundamentação fosse qualitativamente idêntica, ou seja, que também declarasse a
nulidade de acordo com as prescrições do CDC.
A identidade de tese no sentido quantitativo ocorreria sempre que
a decisão do respectivo tribunal chegasse à mesma conclusão, ainda que
por razões diferentes. Assim, no mesmo exemplo, teríamos o juiz de primeiro
grau declarando a nulidade da cláusula contratual de acordo com as prescrições do CDC, mas a jurisprudência dominante do TJ, de modo diverso, entende que tal cláusula é nula, só que se fundamentando no Código
Civil.
E aí vem a pergunta: pode o desembargador parametrizar-se com
decisões de tribunais que aplicam uma norma quando o mesmo
desembargador deseja aplicar outra, julgando pelo 557?
Ao meu ver, a questão deverá guardar atinência com o respectivo
julgamento. Explique-se melhor: se o desembargador relator, ao receber
um recurso de apelação donde se discute que a cláusula contratual é nula
de acordo com o Código Civil, e se tem vários julgados do próprio tribunal ou de tribunal superior indicando que tal cláusula é nula, só que pelo
CDC, poderá o relator julgar a apelação monocraticamente, se entender de
acordo estrito com as decisões paradigmáticas.
No entanto, se os julgados infirmam o entendimento de que tais
cláusulas contratuais são nulas de acordo com o CDC e o relator entende
que as mesmas seriam nulas com fundamento no CC, não pode buscar
tais decisões como sendo paradigmáticas para julgar monocraticamente de
acordo com seu entendimento pessoal, porque o 557 dá poderes ao relator
para julgar sozinho mas de acordo com as decisões do STF ou de Tribunal Superior.
Se o relator entende que a causa deverá ser julgada com fundamentação diferenciada das decisões paradigmáticas, então é porque as decisões deixam de guardar identidade de situação jurídica.
2.2.2 – Análise externa da jurisprudência paradigmática – limites
objetivos
A possibilidade de pertinência da matéria tratada no decisium a quo
com a jurisprudência dominante do respectivo tribunal de 2º grau é universal (ou seja, caberia em qualquer matéria apreciada no processo civil,
como a cível, a administrativa, a constitucional etc.), haja vista que o
efeito devolutivo do recurso de apelação devolve toda a lide, nos limites
das prescrições dos artigos 515 e 516 do CPC. Abrangeria todas as matérias de direito e de fato.
No que se refere a recurso endereçado a Tribunal Superior, o
raciocínio anterior também é válido, observando-se, contudo, o efeito
devolutivo peculiar de cada recurso.
Em suma: de acordo com a exegese do supracitado artigo, um
desembargador relator não poderia invocar como jurisprudência
paradigmática para decidir monocraticamente as decisões de outra corte
estadual, por ter o caput do artigo referido erigido as decisões de sua
própria corte.
2.3 – Os escólios dos tribunais superiores para fins de julgamento
monocrático – a necessidade de um paradigma válido
A relação da jurisprudência dominante do STF e dos Tribunais
Superiores – que o legislador optou por estar presente tanto no caso de
acolhimento como de negativa de seguimento de recurso – teria que
acolher um elemento necessário, de acordo com o espírito de celeridade
processual encampado pela reforma de 1998 e por uma questão de
lógica jurídica.
Não só a pertinência da matéria de direito tratada (o que seria o
óbvio) seria importante para uma aplicação válida do artigo 557 do CPC,
mas também a pertinência com acórdãos validamente paradigmáticos.
Explique-se melhor os fundamentos da pertinência recursal. Suponha-se que um grupo de servidores públicos decidiu ingressar com
ação requerendo horas extras da Administração. O juiz de primeiro grau,
analisando os dispositivos constitucionais da matéria, julgou procedente o
pleito. Após o recurso de Apelação por parte da Administração, o julgado
é revertido, mas a decisão do tribunal buscou fundamento em decisões
do Tribunal Superior do Trabalho (que não possui competência para dirimir qualquer recurso emanado dos Tribunais de Justiça), que possui linha
de raciocínio distinta (e passível de revisão) daquela adotada pelo Supremo Tribunal Federal, que é o último tribunal superior em matéria constitucional (o que, no caso, trataria do direito à percepção das horas extras).
Os apelados-vencidos ingressam, então, com recurso de agravo,
esgotando o tribunal local, para depois interporem recurso extraordinário
para o STF (haja vista que o TST teria incompetência recursal para analisar a quaestio), e lá obtêm guarida para sua pretensão.
Perdeu-se tempo desnecessário no desate da questão, posto que o
tribunal erigido como paradigma não era da cadeia recursal das decisões
do Tribunal de Justiça e suas decisões não tinham guarida no seio do
Supremo Tribunal Federal. Logo, não era um paradigma válido para
fins de julgamento monocrático.
Verifica-se, dessa forma, que o espírito da reforma processual de
1998 estaria indubitavelmente ferido, pois um de seus objetivos é demonstrar à parte que teve uma decisão monocrática (ditada pelo binômio
celeridade e segurança), desfavorável do tribunal local, que o tribunal
imediatamente superior – a que ela iria ou irá recorrer – está com jurisprudência dominante contrária à sua pretensão.
O objetivo da reforma de 1998 é, pois, duplo: de um lado, impera
a celeridade processual; do outro, demonstra à parte vencida que seu
pleito não terá qualquer possibilidade de êxito no tribunal ao qual irá
recorrer. Assim, procura-se convencer a parte vencida de que seu recurso
não tem a mínima possibilidade de êxito.
Outro bom exemplo é o de um desembargador estadual decidir
matéria constitucional, na forma monocrática do 557, § 1-A, exclusivamente com jurisprudência do STJ.
Ora, o STJ não tem competência para, neste caso, apreciar a
matéria constitucional suscitada em grau de recurso, posto que a competência recursal para esta matéria é do STF, através do recurso extraordinário (salvo quanto às ações de competência originária do Tribunal local e quando denegatória a decisão – artigo 105, II, “a” e “b”, onde o
recurso cabível será o ordinário para o STJ, mesmo se envolver questão
constitucional).
Saliente-se o fato de que o STF, em matéria constitucional, tem
pertinência recursal universal nos processos civis em que se discute a
aplicabilidade das normas contidas na Carta Magna.
Esta tese de pertinência recursal temática foi defendida no REsp.
286.767-SE, onde idêntico caso ocorrera em julgamento no Tribunal de
Justiça do Estado de Sergipe. No tribunal local, fora julgada apelação
cível em matéria constitucional com espeque no 557 do CPC, erigindo-se
como paradigmas decisões do STJ em matéria constitucional.
A Colenda Corte Federal assim decidiu, verbis:
“O § 1º do art. 557 do CPC encerra uma alternativa, no sentido de que o
relator, para dar provimento a um recurso, pode escolher entre a jurisprudência do
STF e a de qualquer um dos Tribunais Superiores que tenha decidido a matéria. Não
há, pois, se falar em ‘pertinência temática’, ou seja, inexiste obrigação de que, tratando-se de matéria constitucional, somente os julgados da Suprema Corte poderiam dar
supedâneo àquela decisão monocrática”1
Por outro lado, em outro julgamento o STJ asseverou, verbis:
“O relator pode negar seguimento a recurso que contrarie jurisprudência pacífica do respectivo Tribunal; a reforma dessa decisão depende ou da prova de que a
jurisprudência do Tribunal não é aquela afirmada pelo relator ou da demonstração de
que essa jurisprudência contraria a orientação, no particular, de Tribunais Superiores”2
Realizando a síntese das duas decisões do STJ, temos o seguinte
quadro sobre a interpretação do 557:
a) pode o tribunal local erigir a decisão de qualquer tribunal superior como paradigmática para fins de julgamento monocrático, nos termos do § 1-A;
b) a decisão paradigmática do tribunal local, para fins do caput do
557, tem que refletir o entendimento dos tribunais superiores, sob pena
de se considerar paradigma inválido.
Ora, se a decisão do tribunal local para servir de paradigma tem
que refletir o entendimento dos tribunais superiores, as decisões das cortes superiores, por sua vez, precisam refletir também a de hierarquia mais
alta, sob pena de se recair, novamente, no problema do paradigma inválido.
Assim sendo, pode uma decisão do Superior Tribunal de Justiça
servir de paradigma em matéria constitucional no julgamento de uma
apelação pelo tribunal local; entretanto, para que este paradigma seja válido, é necessário que reflita, de forma indiscrepante, a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal.
Aliás, o próprio STJ, analisando o artigo 557, aduziu que “A expressão ‘jurisprudência dominante do respectivo tribunal’, contida no caput
do artigo 557 do Código de Processo Civil, somente poderá servir de
base para negar seguimento a recurso, quando o entendimento adotado
estiver de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e
do Supremo Tribunal Federal, sob pena de negar às partes o direito constitucional de acesso às vias recursais extraordinárias.”3
Não se está, todavia, negando-se a possibilidade da jurisprudência
do STJ em matéria constitucional ou de qualquer outro Tribunal Superior
servir de fundamento para as decisões de tribunal local. Inexistindo
pertinência recursal, as decisões do Tribunal Superior poderão, sim, servir de paradigma e fundamentarem o julgamento do respectivo órgão
colegiado, mas não da decisão monocrática do relator.
2.4 – O alcance do dispositivo no julgamento dos recursos e do
reexame necessário
Assim que adveio a reforma, uma discussão foi criada na doutrina
e na jurisprudência: pode o julgamento monocrático atingir o reexame
necessário?
Embora se saiba que o reexame necessário não seja considerado
um recurso, ele possui vários aspectos de semelhança.
O Superior Tribunal de Justiça, apreciando a tese, declarou seu
entendimento na Súmula 253, que assim giza: “O artigo 557 do CPC, que
autoriza o relator a decidir o recurso, alcança o reexame necessário”.
Assim, cabe a aplicação do artigo 557:
a) no julgamento da apelação cível e no reexame necessário;
b) no recurso especial e extraordinário;
c) nos embargos de declaração4.
No caso dos embargos infringentes, como há uma necessidade
intrínseca de julgamento por novo órgão colegiado, resta incompatível
com este recurso a aplicação do 557. Ou seja, não podem os embargos
infringentes serem julgados monocraticamente.
No caso do agravo de instrumento, com a reforma advinda da Lei
10.352, verifica-se que o inciso I do art. 527 traz a prescrição de que
pode o relator negar seguimento liminarmente, ou seja, na forma monocrática.
E fica a pergunta: poderia o relator dar provimento ao agravo pelo
557?
Ao meu ver, a reforma do art. 527 trouxe algumas inovações, mas
a mais importante foi o encadeamento lógico do julgamento do agravo. Percebese claramente que os incisos são sucessivos. O inciso I trata do indeferimento
liminar, se for o caso; o II traz a conversão do instrumento em retido; se
passar pelos incisos anteriores, o III autoriza a concessão do efeito
suspensivo; o IV, por sua vez, autoriza a requisição de informações ao
juiz da causa; o V determina a intimação do agravado para apresentar
contra-razões; o VI manda ouvir o MP, se for o caso. Com a ultimação
destas providências, o agravo estará pronto para ser julgado.
Combinando-se o artigo 527, I, com o artigo 528 (“... o relator
pedirá dia para julgamento”), entende-se que no caso do agravo de instrumento não é possível o julgamento monocrático para conhecimento e provimento do recurso. Seu provimento dependerá, sempre, do órgão colegiado.
STJ-6ª Turma, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 17.04.01, não
conheceram, v.u., DJU 4.6.01, p. 270.
2
STJ-2ª Turma, Ag. 222.951-AgRg., rel. Min. Ari Pargandler, j.
6.4.99, negaram provimento, v.u., DJU 31.5.99.
3
RESP 396308/PR, 2ª Turma, relator Ministro FRANCIULLI
NETTO, DJ 30/09/2002, pg. 243.
4
STJ-1ª Turma, REsp. 325.672-AL, rel. Min. Garcia Vieira, j.
14.08.01, negaram provimento, v.u., DJU 24.09.01, p. 248.
1
A FAMÍLIA NO NOVO CÓDIGO CIVIL
Luciana Martins de Faro
SUMÁRIO : 1- Introdução; 2- Tutela Constitucional; 3-Casamento; 4- Impedimentos; 5- União de homossexuais; 6 – Conclusão.
1 - INTRODUÇÃO
O Código Civil de 1916, editado numa época com estreita visão da
entidade família, limitando-a ao grupo originário do casamento, impedindo sua dissolução, distinguindo seus membros e apondo qualificações
desabonadoras às pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos
dessa relação, já deu a sua contribuição, era preciso inovar o ordenamento.
Assim, reuniu-se grupo de jurista a fim de “ preservar, sempre que possível”1, a lei do início do século, modificando-a para atender aos novos
tempos.
A obra de Clóvis Beviláqua foi, é importante observar, alterada
pelo legislador, nos seus mais de 80 anos de vigência, atendendo as exigências do tempo, por leis que deram significativa melhora para a figura e
posição da mulher casada ( Lei 4.121/62), instituiu o divórcio (Emenda
nº 09/77 e Lei 6.515/77), culminando a Constituição da República do
Brasil, promulgada em 1988 que trouxe inovações com relação à
conceituação e à proteção jurídica da família, imprimindo mudanças nas
relações íntimas, com a evolução dos costumes mas, ainda assim, era
preciso incluir num só diploma todas as matérias pertinentes a vida privada.
Apesar das alterações já implantadas, foi preciso uma renovação
mais substancial das relações familiares e acelerou-se o Projeto do Novo
Código Civil de 1975, que teve como principais modificações, a fim de
adaptar a ordem jurídica civil ao conteúdo da Constituição de 1988, a
igualdade entre os cônjuges e filhos, o reconhecimento da união estável
como entidade familiar, incluindo no bojo do Código temas constantes de
legislação especial, tais como o registro do casamento religioso, a união
estável, o divórcio, a separação, reconhecimento de filhos havidos fora do
casamento, entre outros.
No entanto, não trouxe o novo Código normatização suficiente
para resolver todas as questões relativas às novas formas de filiação “que
exigem uma análise da bioética no campo do Direito”2, assim tratou da
fertilização homóloga e da hetoróloga, deixando de apreciar a fertilização
in vitro e tema em crescente desenvolvimento como o da clonagem humana, noticiada pelos cientistas italianos como certa para o ano 20033.
2 – TUTELA CONSTITUCIONAL DO CASAMENTO
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
Ao não incluir no caput art. 226 da CF a locução “constituída pelo
casamento”, inovou o constituinte de 88, dando tutela constitucional a
família de qualquer tipo, entendendo uma parte da doutrina que como a
cláusula de exclusão desapareceu não há de subsistir tipos determinados,
encontrados nos parágrafos do referido dispositivo constitucional e outra
parte da doutrina sendo pela superação da tese do numerus clausus, eis que
os parágrafos do art. 226 não encerram todas as possibilidades de constituição de relações familiares.
Fica ainda mais claro que a melhor interpretação é a da segunda
tese da doutrina, quando se vê no § 4º do art. 226 da CF o termo –
também -. Assim, na lição de Paulo Luiz Netto Lôbo, esse parágrafo
contém cláusula geral de inclusão, significando o “também” a inclusão
daquele tipo de família, sem exclusão de outros4.
Desta forma, no entender do insigne professor, “ os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição
são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns,
por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo
conceito indeterminado depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade.”5
A proteção constitucional da família não deve ser entendida como
simplesmente à família, mas ao local onde as relações baseadas no valor
da afetividade se desenvolvem, criando ambiente indispensável para a
realização da pessoa humana, sobrelevando o princípio também constitucionalmente garantido o da dignidade da pessoa humana
3 – CASAMENTO: NOVO CONCEITO. FAMÍLIA. IDADE NÚBIL.
DEVERES.
O tema casamento no novo Código Civil sofreu inovações, acompanhando a evolução dos costumes de uma sociedade que teve ao longo
dos anos de vigência do Código de 1916 mudado sua feição, com o ingresso da mulher no mercado de trabalho e a conseqüente participação
desta nas decisões do casal e com a quebra do mito da indissolubilidade
do matrimônio, entre outros.
O casamento hoje não tem o mesmo conceito patriarcal, reconhece-se hodiernamente a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, igualdade material, já reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência de há
muito, quando dizia que o sistema que rege as relações entre os cônjuges
é o de co-gestão, ou seja, é de responsabilidade de ambos a tomada de
decisões, devendo o juiz solucionar as divergências.
Os dispositivos do novo diploma civil, apreendendo as lições
vivenciadas durante a vigência do código de 16 tratam o casamento de
forma mais democrática, quando dispõem:
Art. 1511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com
base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
Art. 1565. Pelo casamento homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos
da família
§ 1º Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o
sobrenome do outro.
Art.1567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos
filhos.
Ao lado do modelo tradicional de família, “como condição indispensável para gerar filhos”6, o da união oficial e legitimada pelo casamento, protege e normatiza a nova Lei Civil a união estável entre homem e
mulher, já reconhecida pela jurisprudência e depois pelo legislador com a
previsão na Carta de 1988 e a edição das Leis nº 8.971 de 29 de dezembro de 1994 e 9.278 de 10 de maio de 1996 estabelecendo, inclusive,
aquela lei, o juízo da Vara de Família como competente para dirimir os
conflitos. Deixa de incluir, no entanto, a família monoparental, constituída
por qualquer dos descendentes e seus filhos.
A idade núbil foi unificada em 16 anos para ambos os sexos, o que
mais uma vez revela a igualdade entres os cônjuges como norte do constituinte de 88 e direção sempre a perseguir do intérprete do Direito.
4 – IMPEDIMENTOS
Veiculou-se na imprensa que o novo Código Civil retirava do
ordenamento jurídico o adultério, o que não é verdade, e nem seria possível, matéria afeta ao Direito Penal fosse tratada num diploma cível,
restando esta interpretação apenas para os leigos em ciências jurídicas. O
que na realidade ocorreu foi a sua não inclusão como impedimento dirimente público, que faz parte do rol do art. 183, inciso VII do Código de
16. Assim, com a entrada em vigor da nova lei o cônjuge adúltero e, por
tal condenado, aquele que violar o dever de fidelidade do casamento,
poderá se casar com o seu co-réu.
No que se refere aos impedimentos impedientes o novo Código
Civil passou a chamá-los de causas suspensivas da celebração do casamento e os dirimentes privados passaram a ser causa de anulabilidade.
Ao lado das já existentes causas de anulabilidade do casamento foi
acrescida a revogação do mandato, sem conhecimento do mandatário ou
do outro contraente, não sobrevindo coabitação entre os cônjuges.
Rompe-se a cultura machista já execrada pela jurisprudência e socialmente ridicularizada, em admitir a possibilidade de anular o casamento por erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge, por defloramento
da mulher com desconhecimento do cônjuge enganado.
Foi acrescido aos três deveres dos cônjuges, já discriminados no
Código de 16, o de respeito e consideração mútuos.
5 - União de Homossexuais. Entidade familiar à luz da CF?
É certo que a união homossexual não poderá convolar em casamento, em virtude do conceito legal de união entre homem e mulher. No
entanto, é justo que se afaste o caráter de relação familiar das sociedades
afetivas formadas por pessoas do mesmo sexo?
É tese ainda pouco aceita entre os tribunais a união homossexual
como família, apesar dos doutrinadores se dividirem sobre a possibilidade
de novos tipos de família, número bem menos significativo entende que a
união entre pessoas do mesmo sexo não dá ensejo a formação de entidade familiar.
Essa minoria fundamenta seu entendimento uma porque é impossível dessa união gerar filhos e duas porque se o casamento só existe entre
pessoas de sexos diversos como seria possível que essa união não oficializada viesse a ter proteção do Estado, enquanto família, quando o próprio Estado tutela a conversão em casamento ?
São argumentos falhos eis que não é pela impossibilidade de gerar
filhos que não se protege a família, pois para o Direito, além da procriação não ser a única finalidade da família sendo, inclusive, institucionalizada
a adoção, independentemente do estado civil, ainda são protegidas as famílias formadas por homens e/ou mulheres que não possam, por razões
diversas, gerar filhos.
E, também, não é porque o casamento oficial só pode se dar entre
indivíduos de sexos diferentes que não se vai reconhecer uma realidade,
qual seja, a formação de união homossexual, construída com base nos
requisitos da afetividade, estabilidade e ostentabilidade7.
É inegável o valor “afetividade” da convivência em qualquer tipo
de união entre pessoas, construída com o amor entre seus participantes,
com vínculos tão fortes quanto os de uma relação entre indivíduos de
sexos diversos.
Ademais, excluir da proteção constitucional a união homossexual é
discriminatório, pois a opção sexual diferente da maioria não implica em
excluir as garantias constitucionais.
6 – CONCLUSÃO
Restou em parte atendida a incumbência dos autores do novo Código
Civil. É certo que avanços existem, principalmente no âmbito das relações entre os cônjuges. Inobstante, falta muito para a lei civil realmente
proteger todas as formas de relações familiares.
Viola os princípios da dignidade da pessoa humana e o da igualdade e não discriminação qualquer interpretação que restrinja o conceito de
família. A Constituição protege a família e não um tipo específico. Não há
de ser excluída da tutela qualquer forma de relação familiar, eis que o
texto da Constituição-Cidadã em nenhum momento assim fez.
O que deve prevalecer como único requisito para constituição da
família é o laço de afetividade entre seus membros, não importando quaisquer outras circunstâncias, sendo essa tão somente a interpretação que se
deve dar aos princípios e normas estabelecidos na Constituição de 1988
Exposição de Motivos do Novo Código Civil
OLIVEIRA, Euclides de, HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes
Novaes. Direito de Família e o Novo Código Civil, Editora Delrey, Belo Horizonte, 2001.
3
Notícia divulgada no Jornal Nacional do dia 26/11/02.
4
BARROS, Sérgio Resende. Ideologia da Família e Vacatio Legis,
Revista Brasileira de Direito de Família nº 11, Editora Síntese, 2001.
5
LÔBO, Paulo Luiz Netto. “Entidades Familiares
Constitucionalizadas : Para Além do Numerus Clausus”, Revista Brasileira de
Direito de Família nº 12, 2002.
6
BARROS, Sérgio Resende Barros. “Ideologia da Família e Vacatio
Legis”. Revista Brasileira de Direito de Família, nº 11, Editora Síntese. p. 9.
7
As legislações infraconstitucionais estrangeiras que têm regulado
as uniões homossexuais referem a “ relação duradoura de afeição mútua”, como enuncia a Lei de União do Estado de Vermont, Estados Unidos, de abril de 2000. Cf. Walter Wadlinton e Raymond C. O’brien (org.),
Family Law Satutes, Internacional Conventionsand Uniformlaw, New York,
Foundation Press, 2000.
1
2
DIREITO CONSTITUCIONAL À FAMÍLIA (OU FAMÍLIAS SOCIOLÓGICAS
‘VERSUS’ FAMÍLIAS RECONHECIDAS
PELO DIREITO: UM BOSQUEJO P ARA
UMA APROXIMAÇÃO CONCEITUAL À
LUZ DA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL)
Cristiano Chaves de Farias. Promotor de Justiça – BAHIA, Mestrando em Ciências da Família
pela UCSal – , Universidade Católica do Salvador.
Professor do curso de Direito da UNIFACS – Universidade Salvador , (graduação e pós-graduação
em Direito Civil); da Faculdade de Direito da UCSal.
– Universidade Católica do Salvador; do curso de
Direito das Faculdades Jorge Amado (graduação
e pós-graduação); do JusPODIVM – Centro Preparatório para as carreiras jurídicas; e da FESMIP
– Fundação Escola Superior do MP/BA. Professor convidado da ESMESE – Escola Superior da
Magistratura de Sergipe e da FADISP – Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Membro do
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
e do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Sumário: 1. Prolegômenos: uma visão contemporânea do fenômeno familiar. 2. Transformações sociais no novo milênio: reflexos na
vida familiar 3. A família na visão jurídica: o tratamento dispensado pela
Constituição da República. 4. Miradas sobre os novos paradigmas da
família. 5. Notas conclusivas. Bibliografia.
“O que gostaria de conservar na família no terceiro milênio são seus aspectos
mais positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e o
amor. Belo sonho”.
(Michelle Perrot)
1. PROLEGÔMENOS: UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA DO
FENÔMENO FAMILIAR
É certo e incontroverso que o ser humano nasce inserto no seio
familiar – estrutura básica social – de onde se inicia a moldagem de suas
potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca
de sua realização pessoal.
Não existe, efetivamente, outra instituição tão próxima da natureza do homem como a família. Sociedade simples ou complexa, assente do
modo mais imediato em instintos primordiais, a família nasce espontaneamente pelo simples desenvolvimento da vida humana1.
O impulso natural do instinto sexual, do amor materno, a tendência do homem para que outros o continuem, dão, sem dúvida, vazão à
família de modo imediato.
Não se olvide, nessa esteira, que na família se sucederão os fatos
elementares da vida do ser humano, desde o nascimento até a morte. No
entanto, além de atividades de cunho natural, biológico, também é a família o terreno fecundo para fenômenos culturais, tais como as escolhas
profissionais e afetivas, além da vivência dos problemas e sucessos. Notase, assim, que é nesta ambientação primária que o homem se distingue
dos demais animais, pela susceptibilidade de escolha de seus caminhos e
orientações, formando grupos onde desenvolverá sua personalidade, na
busca da felicidade2 – aliás, não só pela fisiologia, como, igualmente, pela
psicologia, pode-se afirmar que o homem nasce para ser feliz.
Extrapola-se, nesse passo, a tradicional concepção biológica de família para visualizar-se uma concepção mais ampla. Neste sentido, “a
família deixa de ser um fenômeno natural, assumindo antes um caráter
de fenômeno cultural”, na lição precisa do mestre CAIO MÁRIO DA
SILVA PEREIRA3.
Disso não discrepa RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, para
quem “somente após a passagem do homem da natureza para a cultura
que se torna possível estruturar a família. Esta, como já se demonstrou, é
uma estrutura psíquica e que possibilita ao ser humano estabelecer-se
como sujeito e desenvolver relações na polis”4.
Ora, sem dúvida, a família traz consigo uma dimensão biológica,
espiritual e social, afigurando-se mister, por conseguinte, sua compreensão a partir de uma feição ampla, considerando suas idiossincrasias e
peculiaridades, o que exige a participação de diferentes ramos do conhe-
cimento, tais como a sociologia, a antropologia, a filosofia, a teologia, a
biologia (e, por igual, da biotecnologia e a bioética) e, ainda, da ciência do
direito. Tentar compreendê-la de forma sectária, isolando a compreensão
em alguma das ciências, é enxergá-la de forma míope, deturpada de sua
verdadeira feição.
Nesse caminho, sobreleva apontar dois motivos essenciais para a
formação do núcleo familiar na sociedade, dos quais um é, antes, o fim
imediato visado pelo outro: o desenvolvimento da personalidade humana
e a concretização do projeto de felicidade. A família, pois, não se localiza
dentro de um conjunto de muros ou num campo, mas em atitudes mentais, no terreno fecundo da cultura.
2. TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NO NOVO MILÊNIO: REFLEXOS NA VIDA FAMILIAR
Entre as incontáveis mudanças que se dão no mundo contemporâneo, nenhuma é mais importante, nem sentida de forma tão intensa, quanto
aquelas que se desenvolvem nas vidas pessoais dos seres humanos (na
sexualidade, no casamento, nas formas de expressão de afetividade, etc.)5.
Com o mesmo pensar, a psicóloga e terapeuta familiar CRISTINA
DE OLIVEIRA ZAMBERLAM dispara que “nunca antes as coisas haviam mudado tão rapidamente para uma parte tão grande da humanidade.
Tudo é afetado: arte, ciência, religião, moralidade, educação, política, economia, vida familiar, até mesmo os aspectos mais íntimos da vida – nada
escapa”6.
A pluralidade, dinâmica e complexidade dos movimentos sociais
(multifacetários) contemporâneos trazem consigo, por óbvio, a necessidade de renovação dos modelos familiares até então existentes. Os casamentos, divórcios, recasamentos, adoções, inseminações artificiais, fertilização in vitro, clonagem, etc., impõem especulações sobre o surgimento de
novos status familiares, novos papéis, novas relações sociais, jurídicas e
afetivas.
Haveria um processo de normatização social dessas novas relações familiares? A resposta, forte na Profa. ELISABETE DÓRIA BILAC,
é no sentido de que é “necessário revisitar os papéis sociais e o parentesco, incorporando, porém, nesta revisitação, a perspectiva das relações de
gênero... É preciso um reexame dos papéis sexuais na família que incorpore, também, sentimentos, vivências e percepções masculinas”7.
Fácil perceber, destarte, que das múltiplas modificações sociais
perpetradas pelas descobertas científicas, pelo avanço tecnológico, pela
biotecnologia, etc., decorrem, naturalmente, alterações nas concepções
jurídico-sociais vigentes no sistema, deixando uma passagem aberta para
outra dimensão, na qual a família deve ser um elemento de garantia do
homem na força de sua propulsão ao futuro.
Nesse passo, antevisto esse avanço tecnológico, científico e cultural, dele decorre, inexoravelmente, a eliminação de fronteiras arquitetadas pelo
sistema jurídico-social clássico, abrindo espaço para uma família contemporânea,
susceptível às influências da nova sociedade, que traz consigo necessidades universais, independentemente de línguas ou territórios.
Impõe-se, pois, necessariamente traçar novo eixo fundamental para
a família, não apenas consentâneo com a pós-modernidade, mas, igualmente, afinado com os ideais de coerência filosófica da vida humana.
A transição da família como unidade econômica para uma compreensão igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no
afeto e no amor. Seu novo balizamento evidencia um espaço privilegiado
para que os seres humanos se complementem e se completem.
3. A família na visão jurídica: o tratamento dispensado pela Constituição da República.
O Código Civil de 1916, considerados os valores predominantes
naquela época, afirmava a família como unidade de produção, pela qual se
buscava a soma de patrimônio e sua posterior transmissão à prole.
Naquele ambiente familiar – hierarquizado, patriarcal,
matrimonializado, impessoal e, necessariamente, heterossexual – os interesses individuais cediam espaço à manutenção do vínculo conjugal, pois
a desestruturação familiar significava, em última análise, a desestruturação
da própria sociedade. Sacrificava-se a felicidade pessoal em nome da
manutenção da “família estatal”, ainda que com prejuízo à formação das
crianças e adolescentes e da violação da dignidade dos cônjuges.
O outono daquela estruturação clássica da família era evidente.
Com as mudanças sociais e todo avanço da contemporaneidade, a família
passou a ser encarada com nova feição.
Sem dúvida, hoje a família é núcleo descentralizado, igualitário,
democrático e, não necessariamente heterossexual. Trata-se de entidade de
afeto e entre-ajuda, fundada em relações de índole pessoal, voltadas para o desenvolvimento da pessoa humana, que tem como diploma legal regulamentador a
Constituição da República de 1988.
Invocando as sempre esclarecedoras lições do genial GUSTAVO
TEPEDINO, “verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230 da Constituição
Federal, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento
para as relações familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes; e
que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção
e reprodução de valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada, à dignidade de seus membros”8.
Ora, elegendo como princípio fundamental a dignidade da pessoa
humana, de forma revolucionária, a Lex Fundamentallis alargou o conceito
de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros e descendentes, sejam estes fruto de casamento ou não.
Deste modo, a entidade familiar deve, efetivamente, promover a
dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando
sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental
para o alcance da felicidade.
De fato, o legislador constituinte apenas normatizou o que já representava a realidade de milhares de famílias brasileiras, reconhecendo
que a família é um fato natural e o casamento uma solenidade, uma
convenção social, adaptando, assim, o Direito aos anseios e necessidades
da sociedade. Assim, passou a receber proteção estatal, como reza o art.
226, da Constituição Federal, a família originada através do casamento,
bem como a decorrente de união estável e, ainda, a família monoparental,
isto é, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
O ponto nodal da questão sobre entidades familiares está na enumeração do artigo 226. Seria ela exemplicativa (numerus apertus) ou se trata
de rol taxativo (numerus clausus)?
Antes de penetrar efetivamente na seara da questão proposta, é
mister, de antemão, esclarecer a importância do preâmbulo no texto constitucional. É ele um compromisso antecipado e solene, que junto com os
princípios fundamentais, formam as cláusulas pétreas da Constituição. A
Magna Charta estabelece em seu preâmbulo que instituído o Estado Democrático, este destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Fica claro, portanto, que a interpretação de todo o texto constitucional deve ser fincada nos princípios da liberdade e igualdade, e despida de
qualquer preconceito, porque tem como “pano de fundo” o macroprincípio
da dignidade da pessoa humana, assegurado logo pelo art. 1º, III, como princípio fundamental da República.
Sem dúvida, então, a única conclusão que atende aos reclamos
constitucionais é no sentido de que o rol não – e não pode ser nunca! –
taxativo, por deixar sem proteção inúmeros agrupamentos familiares não
previstos no Texto Constitucional, até mesmo por absoluta impossibilidade.
Não fosse só isso, ao se observar a realidade social premente, verificando-se a enorme variedade de arranjos familiares existentes, apresentaria-se outro questionamento: seria justo que os modelos familiares
não previstos na lei não tenham proteção legal?
Ora, como sinaliza TEPEDINO, “é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal,
para cuja realização devem convergir todas as normas de Direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o Direito de Família, regulando
as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social”9.
Vale dizer, a exclusão das outras formas de entidades familiares
não está na Constituição, mas na interpretação10, porque realizada recoberta
de absoluto preconceito.
É o que se infere da simples – e ainda que perfunctória – leitura do
Texto Constitucional. Senão vejamos:
Art.226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
[...]
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
[...]
§8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de
cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (grifos nossos).
Se comparado o texto atual que traz, claramente, uma tipicidade
aberta, ao das Constituições brasileiras anteriores, nota-se uma transformação radical, pois durante muito tempo, a família legitimamente protegida somente poderia ser constituída através da instituição do casamento.
O conceito trazido no caput do artigo 226 é amplo e indeterminado,
é cláusula geral de inclusão, o que é confirmado pelo §4º, no qual a
expressão “também” reforça essa idéia.
É o dia-a-dia que se encarrega da concretização dos tipos, mere-
cendo todas as entidades familiares, igualmente, proteção legal. Esta é a
principal conseqüência do §8º deste artigo, porque entrevê o importantíssimo papel na promoção da dignidade humana.
Como percebe PAULO LUIZ NETTO LÔBO, “não é a família
per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de
realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do
melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades
familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas
que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana”11.
Ademais, deve-se levar em consideração que uma norma constitucional deve ser interpretada de forma a ter a maior eficácia possível, ou
seja, se da leitura do artigo multicitado podem ser extraídos dois sentidos,
exclusão ou inclusão, é o último que deve prevalecer, uma vez que é este
quem confere maior eficácia ao princípio da dignidade “de cada um dos
que a integram” (§8º, do art. 226, CR).
Está confirmado, portanto, que o entendimento equivocado que
conclui pela exclusão de outras formas de entidades familiares não expressamente previstas é fruto de um problema de hermenêutica, pois da
interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais, decorre, indubitavelmente, a idéia de inclusão.
O não reconhecimento de qualquer comunidade afetiva como
entidade familiar, porque não explicitamente prevista no art. 226 da CR/
88, viola o macroprincípio da dignidade da pessoa humana, não cabendo
discriminação de qualquer espécie, porque se a Constituição não discriminou expressamente, não cabe ao intérprete fazê-lo.
4. Miradas sobre os novos paradigmas da família
São diversas as inquietantes questões que se apresentam no ambiente familiar moderno, gerando perplexidades. A sociedade contemporânea aberta, plural, dinâmica, multifacetária e globalizada não permite mais
a afirmação de um modelo fechado de estruturação familiar.
Não é crível, nem admissível, que, em meio às múltiplas mudanças
axiológicas, ainda se tente afirmar que existiria um “modelo oficial” para
as organizações familiares, uma espécie de “família estatal”, forjada no
interesse público, em detrimento, muita vez, do desenvolvimento da
personalidade de seus membros e violando suas dignidades.
Como dispara, com proficiência, o mestre paranaense LUIZ EDSON FACHIN, “numa sociedade de identidades múltiplas, da fragmenta-
ção do corpo no limite entre o sujeito e o objeto, o reconhecimento da
complexidade se abre para a idéia de reforma como processo incessante
de construção e reconstrução. O presente plural, exemplificado na ausência de modelo jurídico único para as relações familiares, se coaduna com
o respeito à diversidade, e não se fecha em torno da visão monolítica da
unidade”12.
Vê-se, portanto, a inadmissibilidade de um sistema familiar fechado, eis que, a um só tempo, atenta contra a dignidade humana (assegurada
constitucionalmente), a realidade social viva e presente da vida (tornando
obsoleta e inócua a norma legal, uma verdadeira letra morta) e os avanços
da contemporaneidade (que ficariam tolhidos, emoldurados numa
ambientação previamente delimitada).
A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social
fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão
não se pode chegar à luz do texto constitucional, especialmente do art.1º,
III, que preconiza a dignidade da pessoa humana como princípio vetor da
República Federativa do Brasil.
“Mais que fotos nas paredes, quadros de sentido, possibilidades de
convivência”, como desfecha com sensibilidade aguçada FACHIN. 13
Nesta linha de intelecção, fácil detectar que a família da pósmodernidade é forjada em laços de afetividade, sendo estes sua causa
originária e final, com o propósito de servir de motor de impulsão para a
afirmação da dignidade das pessoas de seus componentes. Prestigia-se a
família como instrumento, como “meio para a realização pessoal de seus
membros. Um ideal ainda em construção”, como assinala ROSANA
FACHIN14.
E a radiografia do presente é o descortino do porvir: as mudanças
que se operam – e continuarão a se operar – no âmbito da família evidenciam que só se justifica a estruturação da sociedade em núcleos familiares
se, e somente se, for encarada como refúgio para a realização da pessoa
humana, como centro para a implementação de projetos de felicidade pessoal e para
a concretização do amor.
5. Notas conclusivas
Assim, composta por seres humanos, decorre, por conseguinte,
uma mutabilidade inexorável, apresentando-se sob tantas e diversas formas, quantas forem as possibilidades de se relacionar, ou melhor, de expressar o amor.
Desde que a família deixou de ser o núcleo econômico e de repro-
dução para ser espaço de afeto e de amor, surgiram novas representações
sociais.
Enxergar essa nova e grandiosa realidade foi e continua sendo, o
grande mérito de nosso texto constitucional. Formada por pessoas dotadas de anseios, necessidades e ideais que se alteram, significativamente,
no transcorrer dos tempos, mas com um sentimento comum, a família
enquanto “ninho” deve ser compreendida, como assinala TEPEDINO,
“como ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser
substituída por qualquer outra forma de convivência social.15”
A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado,
essencialmente, por laços de afetividade, pois à outra conclusão não se pode chegar à
luz do texto constitucional.
A CF/88 igualou todos os filhos, independentemente, de sua origem, sejam eles biológicos ou adotivos, privilegiando, indubitavelmente, o
afeto. E o mais importante, o casamento deixou de ser o modelo oficial
de família, havendo clara opção pelo amor, prestigiando a afetividade.
Veja-se, inclusive, que é a porta aberta para o reconhecimento das
uniões homoafetivas como entidades familiares, protegidas pela Constituição da República. Aliás, não apenas as uniões homoafetivas, como
todo e qualquer modelo de família forjado pelos indivíduos no cotidiano
plural.
Não se pode perder de vista que o nosso país se constitui em
Estado Democrático de Direito, sendo proibida toda e qualquer discriminação em razão de raça, credo religioso, convicções políticas e sexo. Isso
sem contar, com a afirmação necessária do princípio da dignidade de pessoa
humana, que restaria afrontado com uma interpretação restritiva.
Com razão, pois, MARCOS COLARES ao disparar: “creio que há
algo de novo no Direito de Família: a vontade de vencer os limites ridículos da acomodação intelectual. Porém, tudo será em vão sem a assunção
pela sociedade – enquanto Estado, comunidade acadêmica, organizações
não governamentais – de uma postura responsável em relação à família –
lato sensu. Transformando o texto da Constituição Federal em letra viva.16”
Violam o princípio da dignidade da pessoa humana e os demais
preceitos constitucionais qualquer interpretação que exclua da proteção
legal qualquer entidade familiar, seja fundada no casamento, na união
estável, em modelos monoparentais, em uniões homoafetivas e no que
mais o homem escolha para se organizar em núcleos elementares.
Nesta linha de raciocínio, impõe-se reconhecer todas as formas de
entidade familiar como protegidas, tuteladas, pelo Direito, sob pena de
grave violência constitucional.
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TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
Nesse sentido, LECLERCQ, Jacques, cf. A família, cit., p.9.
É, portanto, a inserção definitiva da família no terreno da cultura,
desprendendo de velhos conceitos biológicos. A respeito do tema,
CLAUDE LEVY-STRAUSS, com rara sensibilidade, já percebia o fenômeno de desnaturalização da família, retirando-a do campo biológico, para
encartá-la na seara cultural, a partir da compreensão do parentesco a
partir de um laço social, desatrelado do fato biológico, cf. Les structures
élémentaires de la parenté, Paris: Mouton, 1967.
3
Cf. Direito Civil – Alguns aspectos de sua evolução, cit., p.172.
4
Cf. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica, cit., p.35.
5
Com idêntico raciocínio, ANTHONY GIDDENS, cf. Mundo em
descontrole – o que a globalização está fazendo de nós, cit., p.61.
6
Cf. Os novos paradigmas da família contemporânea, cit., p.11.
7
Cf. “Família: algumas inquietações”, cit., p.36.
8
Cf. Temas de Direito Civil, cit., p.349.
9
Cf. Temas de Direito Civil, cit., p.328.
10
Nesse sentido, PAULO LUIZ NETTO LÔBO percebe que não
há no Texto Constitucional qualquer distinção limitadora, mas sim na
interpretação que lhe é dada, cf. “Entidades familiares constitucionalizadas:
para além do numerus clausus”, cit., p.44.
11
Cf. “Entidades familiares constitucionalizadas: para além do
numerus clausus”, cit., p.46.
12
Apud FACHIN, Rosana Amara Girardi, cf. Em busca da família do
novo milênio, cit., p.147.
13
Cf. Elementos críticos de Direito de Família, cit., p.14.
14
Cf. Em busca da família do novo milênio, cit., p.141.
15
Cf. Temas de Direito Civil, cit., p.326.
16
Cf. “O que há de novo em Direito de Família?”, cit., p.46.
1
2
O DIREITO À ASSISTÊNCIA JURÍDICA
INTEGRAL – ENFOQUE CRÍTICO
QUANT O À IMPLEMENTAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE FORMAL
NO ESTADO DE SERGIPE
Fernando Clemente da Rocha. Juiz da 1ª Vara
Cível da Comarca da Capital
Exercendo a judicatura em área exclusivamente cível da comarca
da capital (comum), tenho constatado o aforamento de demandas por
pessoas que postulam o benefício da gratuidade processual. Vindica(m)
o(s) postulante(s), naturalmente, direito estabelecido em lei, precisamente
a Lei nº 1.060/50, o que implica afirmar enquadramento na condição de
hipossuficiente econômico.
Assim, antes de ingressar no exame da questão segundo a perspectiva deste despretensioso artigo, convém de logo consignar preceito legal
organizacional local, o qual vaticina: “Aos Juízes de Direito das Varas Privativas de Assistência Judiciária compete, privativamente, processar e julgar os feitos cíveis
em que tenha sido concedido ao autor o benefício da Assistência Judiciária” (art. 75
da Lei nº 2.246/79 – Código de Organização Judiciária de Sergipe).
Pois bem. Dir-se-á que o preceito não seria excludente, ou melhor,
não seria afirmativo da exclusividade da propositura de ações cíveis nas
referidas unidades judiciárias, posto que, segundo princípio maior projetado da CF, vale dizer, a igualdade de todos perante a lei (art. 5º, caput e inciso
I), legitimaria o aforamento em qualquer juízo cível comum. A esse respeito, tem-se que algumas decisões judiciais foram proferidas debaixo de
tal argumento, a meu juízo, datissima venia, equivocadas.
Com efeito, percebo nesta discussão incidir, não raro, raciocínios
formulados com expressa confusão entre os conceitos constitucionais de
igualdade formal e igualdade material. Ambos são de formulação constitucional, mas jamais se confundem, ao revés, devem se harmonizar. O
primeiro deles (igualdade formal) resulta do princípio da igualdade perante a lei, enquanto que o segundo (igualdade material), projeta-se do princípio da redução das desigualdades.
Sendo assim, temos que a Lei Maior traça um e outro em preceitos expressos, a exemplo dos arts. 3º, IV, 5º, I e 266, par. 5º (igualdade
formal) e arts. 3º, III, 5º, XLI, XLII e LXXIV, bem como 170, VII
(igualdade material), dentre outros. O destaque anterior foi para o inciso
que importa ora reproduzir como eixo desta reflexão: “o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”
(transitória ou permanente). Aqui, vale lembrar, segundo a melhor doutrina, o conceito de “assistência jurídica integral” vai muito além do simples conceito de assistência judiciária. Se bem que quanto ao âmbito reduzido desta última, noticia o mestre Cândido R. Dinamarco que ela “...o
ideário do Armenrecht,que em sentido global é um sistema destinado a minimizar
as dificuldades dos pobres perante o direito e para o exercício de seus direitos...” (in
Instituições de Direito Processual Civil, Malheiros Editores, SP, 2002,
vol. II, 2ª edição, pág. 674).
Dentro deste panorama, conclui-se facilmente que a CF tratou dos
dois princípios (igualdade formal/igualdade material) no mesmo plano de
hierarquia. E como tal, o primeiro jamais exclui o segundo, ao contrário,
como acima já advertido, deve haver uma conciliação. Mais ainda, mesmo que se tenha como programáticas tais normas, é certo que no
ordenamento jurídico brasileiro e até no plano das ações administrativas,
diversas providências foram implementadas para a concretude de tais
direitos. É dizer, não ficamos aqui, ao menos em nosso modesto Estado
de Sergipe e particularmente no setor da assistência judiciária integral (frise-se) na indignada angústia de Bobbio, verbis: “O campo dos direitos do
homem - ou mais precisamente, das normas que declaram, reconhecem, definem, atribuem direitos ao homem – aparece, certamente, como aquele onde é maior a defasagem
entre a posição da norma e sua efetiva aplicação. E essa defasagem é ainda mais
intensa precisamente no campo dos direitos sociais. Tanto assim que, na Constituição
italiana, as normas que se referem a direitos sociais forma chamadas pudicamente de
‘programáticas’. Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são
essas que não ordenam, proíbem ou permitem hic et nunc, mas ordenam, proíbem e
permitem num futuro indefinido e sem um prazo de carência delimitado? E sobretudo,
já nos perguntamos alguma vez que gênero de direitos são esses que tais normas
definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção adiadas sine die,
além de confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é
apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamada de
‘direito’?” (in A Era dos Direitos – “Direitos do Homem e da Sociedade”,
p. 77/78).
Em outras palavras, cuidamos aqui de implementar (inclusive em
franca aderência ao movimento conhecido como affirmative action, iniciado na década de 60 nos EUA) uma política de concreta efetivação da
igualdade material, até para que de fato a igualdade formal também se
afirmasse, diga-se, se fizesse “nos termos desta Constituição” (parte final do
inciso I do art. 5º da CF). E fizemos exatamente com a iniciativa pioneira
(do então presidente do TJ/SE, o preclaro e atual ministro do STJ Luiz
Carlos Fontes de Alencar) de criação e instalação das Varas de Assistência
Judiciária, distribuídas em pontos estratégicos da capital, bairros densamente ocupados por pessoas de baixa renda. Veja-se que somente na
capital já são 4 unidades em pleno e satisfatório funcionamento, sem
contar outras operando em municípios vizinhos componentes da grande
Aracaju.
Portanto, somente ao mais desavisado passa pela cabeça enxergar
discriminação em tais iniciativas. Refiro-me ao que consta do termo “discriminação” levado no sentido ordinário de negação de direitos, constituindo erro crasso de interpretação constitucional. Assim, quando muito
temos a incidir a chamada “discriminação positiva”, vale dizer, o abandono
da equivocada noção da igualdade formal como absoluta e com isso afirmar a sentença do mestre Rui Barbosa: tratar os desiguais na medida de
suas desigualdades. Ou como Manoel Gonçalves Ferreira Filho, referindo-se ao plano de implementação pela via legislativa com a edição de leis
especiais, que protejam determinadas categorias (Comentários à Constituição
Brasileira de 1988, Saraiva, SP, vol. I, págs. 26/27). Em uma palavra,
“ações afirmativas” em muitos casos são concretizadas por meio da reconhecida e legítima “discriminação positiva”.
Não custa repetir, é a própria Constituição Federal quem assim
estabelece (“nos termos desta constituição” – inciso I, p. final/art. 5º), e no
plano da assistência jurídica integral não se pode negar o pleno funcionamento do mecanismo estatal criado para este especial fim (varas privati-
vas para aqueles a quem se defere o benefício da assistência judiciária –
art. 75 do COJ/SE). Ou seja, o que se tem como direito impostergável é
poder requerer o benefício nos termos da legislação incidente (Lei nº
1.060/50), seja a afirmada hipossuficiência econômica permanente seja
transitória, contentando-se o legislador com a singela declaração do
postulante. E cabe ao juiz ou tribunal, frise-se, qualquer deles (independentemente de vara, comarca, juizado, órgão fracionário, Pleno etc) deferir nos termos da lei. Portanto, qualquer um magistrado de vara cível
comum desta capital tem por obrigação legal deferir o benefício. Mas, ao
fazê-lo, cumpre-lhe sem sombra de dúvida atender ao contido no art. 75
do COJ/SE (após o deferimento, imediata remessa dos autos a uma das
varas de assistência), pois somente assim estaria cumprindo a CF. As únicas exceções incidem quando parte o pleito do demandado, ou em sede
penal, a hipótese do art. 32 do CPP (c/c art. 806), assim mesmo nas
chamadas APO’s, pois se a queixa-crime tiver de tramitar na instância
inferior, o órgão competente seria o JECrim. Seria despiciendo advertir
para o primeiro e mais importante dos deveres no exercício da magistratura, vale dizer, tornar efetivos os princípios (e também sub-princípios e
preceitos) da Lei Maior, aqui no particular da implementação da igualdade material, o que, segundo a mais avisada doutrina, consiste exatamente
na redução das desigualdades.
Nem se diga poder o postulante ao benefício, eventualmente, exercer o que seria uma ilusória opção de aforar sua demanda em qualquer
juízo cível da capital. Absolutamente não. E isto não apenas pelo argumento simplório de que estando com advogado constituído, demonstraria
em princípio capacidade financeira, não valendo a argüição, considerando
a lotação atual de defensores públicos nos diversos juízos. O problema é
de ordem institucional, portanto prevalecendo os superiores interesses
públicos que são a fonte das diversas normas constitucionais asseguradoras
da igualdade material pela redução de outras desigualdades e com isso
também se concretizar a igualdade formal. Ninguém duvida que mulher
alguma neste país possa se opor à norma constitucional que estabelece
sua aposentadoria com idade inferior aos dos homens (art. 202, III). Ou
que os deficientes físicos devem receber tratamento diferenciado em vários setores, constituindo uma legítima proteção de minorias. Advirta-se
que com isso não se concebe que qualquer minoria deva ser destinatária
de ações afirmativas diferenciadas, posto que muitas delas, ao contrário,
são ordinariamente privilegiadas. Certamente não, mas somente aquelas
que reclamam ações em razão das carências materialmente identificadas,
como o hipossuficiente econômico que não pode arcar com despesas
processuais, honorários de profissionais, deslocamentos para fóruns centrais e outras dificuldades.
Por outro lado, tais varas como dito em número de 4 somente na
capital, sendo que apenas 10 cíveis comuns remanescem para os demais
jurisdicionados, contam com serviços adicionais, a exemplo de assistência
social, sem contar no expressivo contingente de defensores públicos lotados.
Portanto, nada mais se busca com tais providências senão atingir o nível
de assistência integral de que trata a CF (art. 5º, LXXIV). E nada disso
é disponível nas demais, por desnecessário, posto que os que ali postulam,
detendo capacidade financeira, foram regularmente contemplados com a
igualdade formal. Se se admite a litigar no juízo comum o hipossuficiente
econômico, dentro deste quadro comparativo traçado entre as disponibilidades materiais, aí sim estaria ele sendo vítima de uma manifesta condição desigual, o que é inadmissível e nem ele próprio teria a faculdade de
se “autodispensar” da norma protetiva.
Imagine-se a seguinte situação hipotética: Um indivíduo, ainda que
se declarando dispor de condições financeiras para arcar com despesas
processuais e de advogado, compareça perante uma das varas privativas
de assistência judiciária e afirme expressamente esta condição. Mesmo
assim, postula o direito de ali aforar sua demanda. O juiz, certamente,
não irá deferir tal pretensão. Poderia este indivíduo invocar sua condição
de igual a qualquer um perante a lei? Francamente, ninguém enxergaria
na hipótese qualquer inconstitucionalidade. Ora, se assim é, o que dizer
do outro, aquele declaradamente hipossuficiente econômico (transitório/
permanente), a se permitir o livre ajuizamento em qualquer sede, passando agora a ostentar uma condição de “privilegiado”. Neste caso, pode-se
afirmar sem receio de erro, incide uma manifesta inconstitucionalidade.
Portanto, que espécie de igualdade jurídica seria esta que estaríamos a
afirmar, chancelando, aqui sim, o injusto quadro divisado por último neste plano hipotético? É dizer, não é jamais a tarefa institucional do Poder
Judiciário.
A propósito, tome-se a preciosa lição de Florisa Verucci sobre o
tema: “A fórmula tradicional – todos são iguais perante a lei - significa como princípio que a lei, o Poder Legislativo constituído não pode editar leis discriminatórias, o
que não afeta a liberdade das pessoas, grupos, instituições e comunidades de um modo
geral para discriminar segundo seus interesses e seus sentimentos. Mesmo proibições
expressas nos textos constitucionais, como, por exemplo, aquela referente à proibição
de diferença salarial entre homens e mulheres exercendo uma mesma função laboral
tem sido de duvidosa eficácia. A negação da discriminação por meios punitivos não é
suficiente para assegurar formalmente a igualdade. O princípio da isonomia, na sua
concepção formal, sem instrumentos de promoção da igualdade material, ou seja, da
igualdade jurídica, tornou-se obsoleto pela ineficácia, embora tenha sido a plataforma
a partir da qual a doutrina, apoiada em seu princípio de negação do preconceito e da
discriminação, construiu um princípio maior, que visa à igualdade jurídica efetiva,
promotora da igualação. Os desiguais, excluídos do Direito Aplicado, embora sujeitos
do Direito Formal, passariam a contar com instrumentos próprios para promover sua
inclusão no ‘privilégio’ da igualdade” ( Ensaios Jurídicos – O Direito em Revista,
IBAJ, RJ, 1998, vol. 6, pág.369).
Averbe-se: a igualdade formal não passa de ilusão sem que possa
se traduzir em igualdade jurídica, exatamente alcançada com a redução
das desigualdades. Em uma palavra, implementando a igualdade material.
E quando o Poder Público procede neste objetivo (frise-se, constitucional
– art. 3º, III, p. final da CF), ninguém a ele pode se opor (nem mesmo o
destinatário específico/casual da norma ou ação), salvo se de alguma
maneira, sob a falsa roupagem deste objetivo, haja violação de outros
princípios superiores, agora norteadores da ação administrativa (art. 37
da CF). Neste particular, não consta qualquer inconstitucionalidade na
criação e implantação das referidas varas de assistências, porquanto os
instrumentos legais percorreram todo o caminho legislativo formal que
lhes conferiu o selo da legitimidade.
Fernão Borba Franco de igual sorte aborda com brilhantismo o
tema, valendo-se, dentre outros do escólio do mestre José Afonso da
Silva para quem a igualdade seria o “signo fundamental da democracia”.
E o eminente constitucionalista bem esclarece compreender ela (a igualdade) não somente perante a lei, mas também na lei. E neste particular de
igualdade “na lei”, ou seja, conquanto o primeiro seja conceito dirigido às
pessoas, o segundo é dirigido ao legislador. O ilustre articulista aqui lembra o magistério de Celso Antônio Bandeira de Melo nos seguintes termos: “Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda
que as pessoas compreendidas em um ou em outras vêm a ser colhidas por regimes
diferentes. A lei faz isso estabelecendo discrímens. A dificuldade está em verificar a
conformação desse discrímen com o princípio da igualdade, ou seja, a legitimidade do
discrímen” (apud. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 2, nº 5,
julho/dezembro-1998, págs. 35/36). Sem dúvida, entre nós, não há quem
duvide da legitimidade e, sobretudo da eficácia das varas de assistência
judiciária como instrumentos de afirmação da igualdade jurídica.
Portanto, urge uma outra reflexão sobre a questão, especialmente
calcada no chamado “efeito vinculante” da interpretação constitucional,
única autorizada. Isto porque, somente assim tem-se que “o privilégio do
hipossuficiente” a que se reporta o Provimento nº 10/2001 da CGJ (em
seus considerando...) legitima-se se for entendido como o “privilégio da
igualação”, segundo a oportuna advertência de Florisa Verucci. Do contrário, admitindo que seja a “opção” nos iguais termos do normativo
correicional, o caso seria de superafetação de direitos, vulnerando todo o
esforço estatal em suas ações de afirmação da igualdade material. Em
uma palavra, a chancela ainda que involuntária de uma
inconstitucionalidade, considerando os propósitos bem intencionados de
política jurisdicional encampada em decisões da Corte Superior local.
Concluindo, ainda a palavra abalizada do insigne Cândido Rangel
Dinamarco, ao advertir que a assistência jurídica integral aos necessitados
constitui uma das três ondas renovatórias do direito processual, seguindo a corrente da doutrina internacional. E como tal, componente indispensável a
afirmar que “todas as garantias da tutela constitucional do processo convergem a essa promessa-síntese que é a garantia do acesso à justiça assim
compreendido”(ob. cit, vol. I, págs. 112 e 115). Como dito, vale no mínimo a
reflexão sobre o importante tema que não se pretende esgotado sob nenhuma de suas vertentes.
PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE,
ÔNUS DA PROVA E AUTOTUTELA : O
QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO ?
José Sérgio Monte Alegre. Professor de Direito
Administrativo na UNIT; Professor da ESMESE e
ex-Professor da UFS. Procurador-Geral do Ministério Público Especial Junto ao Tribunal de Contas do Estado de Sergipe.
O Estado, pelos seus órgãos administrativos e no tocante à imposição das leis administrativas, estaria na mesma posição perante os tribunais que os indivíduos no tocante à imposição das leis civis e das leis
penais? Bastaria ao Estado-Administração argüir o comprometimento da
estética urbana para, no exercício do Poder de Polícia, interditar construção particular e, em caso de resistência do proprietário, executar a sua
decisão independentemente de intervenção prévia do Poder Judiciário,
restando àquele buscar a invalidação do ato em juízo para, somente assim, livrar-se da interdição? Estabelecido em lei que a produção e venda
de fogos de artifício somente pudessem ser realizadas mediante prévia
manifestação aquiescente da autoridade administrativa, e constatado que
determinado indivíduo leva adiante empreendimento de produção e venda desses fogos independentemente da aquiescência, estaria a autoridade
administrativa habilitada a ordenar-lhe a interrupção da atividade, por ela
qualificada de ilícita, e a seguir executar a correspondente sanção, sem o
concurso do juiz? Acudiria em favor daquela a presunção de veracidade
e legitimidade do ato administrativo? O ônus de provar o contrário caberia aos administrados? O encargo de desmentir a Administração ficaria
com o inconformado, tudo sem prejuízo da plena eficácia ou exeqüibilidade
do ato? Ou para que a ocorrência do delito fosse averiguada e a sanção
infligida, haveria necessidade de a autoridade administrativa socorrer-se
da assistência do juiz?
Sem dúvida, não careceria a autoridade de socorrer-se previamente da jurisdição, é o que diz a doutrina dos especialistas ( do contrário não
haveria tal presunção nem o correspectivo dever de provar o reverso ).
Leia-se: “ Outra conseqüência da presunção de legitimidade é a transferência do ônus da prova de invalidade do ato administrativo para quem o
invoca. Cuide-se de argüição de nulidade do ato, por vício formal ou
ideológico, a prova do defeito apontado ficará sempre a cargo do
impugnante, e até sua anulação o ato terá plena eficácia “. ( Hely Lopes
Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, págs.141/142, 22º edição, sem o
destaque em negrito ).
Aqui, a unanimidade impressiona. E muito.
Todavia, bem observadas as coisas, e aceita que seja a doutrina,
um primeiro reparo haveria logo de ser feito: tecnicamente, não é de
deslocamento da obrigação de prova, de inversão do encargo de provar,
que se cuida, mas da transferência do ônus de acionar, isso sim. E até
aqui nada de novo estaria acontecendo, a merecer registro em separado.
Sim, porque a iniciativa da ação traz para o autor o ônus de provar o fato
constitutivo do seu direito, salvo se é de fato notório que se cuida ou
acobertado por presunção legal de existência ou de veracidade ( art. 333,
inciso I, c/c o art. 334, inciso IV do CPC ). Essa é a regra prevalecente,
não excepcionada sequer para a Administração Pública quando lhe ocorra a provocação judicial, como no caso da desapropriação.
Porém, ainda não seria esta a vexata quaestio e sim aquela de saber
exatamente se existe essa transferência da obrigação de acionar e que
acaba aproveitando a Administração Pública diante do administrado, pois
em sua decorrência é que este vem a ocupar na relação processual a
desconfortável posição de autor.
Deveras, ninguém ignora que onde esteja excluída, ao menos relativamente, a autodefesa, quando um indivíduo pretende fazer valer diante de outro o que considera ser o seu direito e nele encontra resistência, o
que lhe cumpre, diante do conflito instaurado - alguém afirmando e alguém negando a existência de um direito -, é socorrer-se do Estado para
ver reconhecida a legitimidade da sua pretensão e depois poder efetivá-la
inclusive, se a recalcitrância persistir, com o uso da força física, quando
for o caso. Não lhe é dado, salvo situações de vincada excepcionalidade,
valer-se de seus próprios meios para tutelar a própria situação jurídica em
que se encontra. E o Estado o acode pela via da jurisdição, exercida com
privatividade pelos órgãos do Judiciário( art.5º, inciso XXXV, c/c com o
art. 92, incisos I a VII, da CF ), de acordo com o delicado esquema de
separação de Poderes, entre nós de prestígio constitucional ( art. 2º, idem
). Ou, na fórmula do Código de Processo Civil: “A jurisdição civil,
contenciosa e voluntária, é exercida pelos juízes, em todo o território
nacional, conforme as disposições que este Código estabelece.” ( art.1º ).
Daí se segue que a obrigação de acionar é de quem pretende fazer valer
a pretensão e não de quem a deva suportar, e a sua posição no processo
que se instaure será a de autor, a quem corre o ônus de provar o fato
constitutivo do seu direito, salvo as exceções legais ( art.333, I, c/c o
art.334, IV, do CPC ). Resumindo: a imposição da lei civil e da lei penal
faz-se mediante o concurso antecipado dos tribunais. Haveria o mesmo
na imposição das leis administrativas?
Aliás, vale a pena o registro, nada obstante o ostracismo atual do
autor: “Quando a ordem jurídica determina os pressupostos sob os quais
a coação, como força física, deve ser exercida, protege os indivíduos que
lhe estão submetidos contra o emprego da força por parte dos outros
indivíduos. Quando esta proteção alcança um determinado mínimo, falase de segurança coletiva. ...Mas também podemos conceber uma noção
mais restrita de segurança coletiva, falando de segurança coletiva somente quando o monopólio da coerção por parte da comunidade jurídica
atinja um mínimo de centralização, por forma a que a autodefesa seja,
pelo menos em princípio, excluída. É o que acontece quando se subtrai
aos indivíduos diretamente implicados no conflito pelo menos a decisão
da questão de saber se, num caso concreto, houve uma ofensa do Direito
e quem é por ela responsável, para a deferir a um órgão que funcione
segundo o princípio da divisão de trabalho, a um tribunal independente. “
( Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, Terceira Edição, Coimbra,
1974 ).
Esta é a regra geral, dominante, até mesmo em respeitoso obséquio à monopolização da coação pelo Estado. Não foi por outra razão
que o sempre lembrado Miguel Seabra Fagundes definiu julgar como
aplicar a lei contenciosamente, por oposição a administrar que consistiria
na aplicação da lei de ofício. A contenda, o embaraço na realização do
Direito, a oposição de interesses, o litígio, seriam pressupostos necessários
desta peculiar função do Estado, a jurisdição, marcada pela isenção, pela
independência e pela força definitiva dos atos que a expressam, formalizados sob a forma de sentenças ou acórdãos. Confira-se:
“ De passagem, já dissemos que os órgãos do Poder Judiciário têm
por função compor conflitos de interesses em cada caso concreto. Isto é
o que se chama função jurisdicional, ou simplesmente jurisdição, que se
realiza por meio de um processo judicial, dito, por isso mesmo, sistema de
composição de conflitos de interesses ou sistema de composição de lides”. ( José Afonso da Silva, no seu Curso de Direito Constitucional Positivo, 8º
edição revista, Malheiros, pág. 480 ). E mais à frente, na página seguinte:
“A jurisdição é hoje monopólio do Poder Judiciário do Estado ( art.5º,
XXXV ).”
Contudo, é a regra geral para quem? Para todos os sujeitos jurídicos? Para os particulares entre si, apenas? Para a Administração Pública,
também? Ou a orgânica administrativa receberia da ordem jurídica favor
não deferido aos indivíduos enquanto tais? Enfim, qual a posição da Administração Pública frente ao Direito e à Justiça?
Vejamo-la.
Consagrado o princípio da separação dos Poderes como uma das
traves-mestras do Estado Democrático de Direito em que se constitui a
República Federativa do Brasil ( art.1º da CF ), uma questão desponta e
reclama adequado equacionamento: qual a posição da Administração relativamente ao Direito e ao Judiciário ?
Quanto ao Direito, nenhuma dúvida séria existe. Diferentemente
da função legislativa que o produz sob a forma de lei, com o caráter de
norma geral, abstrata e impessoal, originariamente inovadora da ordem
jurídica, expressão do querer coletivo em que radica a soberania, a Administração, quer como organismo que atua, quer como específica atividade
estatal, na qual dominam as notas do dever e da finalidade, lhe é inteiramente submetida. Mais ainda: é dependente de uma habilitação legal anterior como condição para a sua válida manifestação, assentado que para
ela não existe uma situação básica de liberdade originária, a partir da qual
a lei compareceria como limite externo de atuação, à semelhança do que
acontece com os indivíduos. Daí se segue o princípio da legalidade enunciado em termos de que , para a orgânica administrativa, o que não está
permitido está, só por isso, proibido, com o que seria tecnicamente supérfluo prescrever-lhe proibições. Realmente, são significativas, até pelas suas
repetidas citações, as seguintes averbações:
“Administrar é aplicar a lei de ofício “ ( M. Seabra Fagundes ). Ou
então: “Administração legal é aquela posta em movimento pela lei e exercida
nos limites das suas disposições”( Fritz Fleiner ). Mais: “Jaz, conseqüentemente, a Administração debaixo da legislação que deve enunciar a regra
de Direito. “( Cirne Lima ). Ainda: “No Estado de Direito, a Administração só pode agir em obediência à lei, esforçada nela e tendo em mira o
fiel cumprimento das finalidades assinadas na ordenação normativa.”(
Celso Antônio Bandeira de Mello, em seu Curso de Direito Administrativo,
Décima Primeira Edição, pág. 631, a quem pertencem os excertos transcritos ). Enfim: “ O princípio da legalidade atrás referido será aqui entendido no sentido que actualmente dá a doutrina a tal princípio. Isto significa que a administração está vinculada à lei não apenas num sentido negativo ( a administração pode fazer não apenas aquilo que a lei expressamente autorize, mas tudo aquilo que a lei não proíbe ), mas num sentido
positivo ( a administração só pode atuar com base na lei, não havendo
qualquer espaço livre da lei onde a administração possa atuar como um
poder jurídico livre)”, segundo lições recolhidas em J.J.Gomes Canotilho,
no seu Direito Constitucional, Almedina, Novembro 1993, pág.909.
Todavia, no tocante ao Judiciário, qual a posição reservada à Administração? Até agora, é de excepcional prestígio no Brasil a teoria de
uma Administração com aspiração a alguma auto-suficiência, construída
sobre o fundamento da autotutela, da auto-executoriedade e da presunção de legitimidade do ato administrativo, retiradas do modelo francês de
dupla jurisdição e no qual a Administração Pública é tradicionalmente
beneficiada com a proibição de o Judiciário turbar por qualquer forma o
funcionamento dos corpos administrativos, do que nos ocuparemos mais
adiante. Houve até quem doutrinasse no sentido de que a interpretação
de todo o Direito Administrativo assentava neste último pressuposto presunção de legitimidade), acrescido da discricionariedade e da desigualdade jurídica da Administração perante os administrados. Por apego à fidelidade do texto, leia-se:
“A nosso ver, a interpretação do Direito Administrativo, além da
utilização analógica das regras do Direito Privado que lhe forem aplicáveis, há de considerar, necessariamente, esses três pressupostos: 1º) a
desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados; 2º) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; 3º) a necessidade de
poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público.” ( Hely Lopes Meirelles, em seu Direito Administrativo Brasileiro, 22º
edição, pág. 38 ).
Autotutela essa que se desgarra daquela dos sujeitos privados, posto que individualizada por traços que a singularizam. Vai-se mesmo ao
ponto de sustentar que os interditos possessórios são meramente facultativos para a Administração, armada que se acha de meios coativos próprios para resguardar-se patrimonialmente. Em apertada síntese: a Adminis-
tração estaria favorecida por predicado excepcional, qual seja o de ser
sujeito capacitado para defender a si mesmo, desvencilhado de ingerência
judicial prévia e que não se deteria diante de eventual impugnação de
terceiros, pois a presunção de validade somente cede ao final, com o
trânsito em julgado da decisão, e enquanto esta não sobrevém, segue-se
executando a decisão administrativa. Noutras palavras: a insurgência do
administrado não tolheria a atuação administrativa com a só interposição
do pedido de impugnação perante o Judiciário. São expressivas a tal propósito as referências à autotutela como um princípio e à autoexecutoriedade e à presunção de validade como atributos do ato administrativo, com toda a carga de significado que isso implica. Com efeito,
“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre as diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servido de critério para a sua
exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
o sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a
intelecção das diferentes partes do todo unitário que há por nome sistema
jurídico positivo. “( Celso Antônio, ob, cit., págs. 629/630 ).
Contudo, será assim mesmo? Haverá entre nós um princípio geral
da presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo, no qual
se possam justificar o regime da autotutela e a auto-executoriedade do ato
administrativo? O que se pode extrair da Constituição a respeito? Sobremodo de uma Constituição que entrega ao Judiciário o controle não apenas das medidas administrativas individuais ou gerais, senão também da
própria legislação, em caráter abstrato ou no caso concreto? Deveras, não
se tem como descurar que, neste ponto, a Constituição brasileira deixouse educar na finíssima e bem inspirada tradição inglesa de que os direitos
individuais só encontram bom resguardo no ramo judiciário do Estado. O
sistema pátrio reúne as características inclusive do judicialismo perfeito,
apontadas por Marcelo Caetano em sua obra princípios Fundamentais do
Direito Administrativo :
“Nesse sistema, os tribunais com poder de proferirem sentenças
com força de coisa julgada estão todos integrados no Poder Judiciário,
submetidos à jurisdição de um Supremo Tribunal Federal que é o órgão
máximo desse Poder. O judicialismo perfeito apresenta duas características fundamentais. A primeira está em pertencer ao Poder Judiciário a
competência para conhecer e julgar as questões administrativas
contenciosas, muito embora o sistema seja compatível com a especializa-
ção de tribunais administrativos, no mesmo plano em que admite tribunais cíveis, criminais, de família, do trabalho...Mas há uma segunda característica mais importante: no judicialismo perfeito, os órgãos administrativos ficam dependentes a todo momento da apreciação da juridicidade
dos seus atos pelos tribunais que, a solicitação dos interessados e mediante processo sumário, podem emitir ordens ou mandados que os órgãos da
Administração são forçados a acatar.” ( págs.483/484,Forense, 1977 ).
Bem, logo a um primeiro momento, veja-se o exagero de reclamar
para o Direito Administrativo, todo ele, como pressupostos de interpretação, critérios que somente favorecem a Administração, reforçando-a com
cláusulas de exorbitâncias depressoras do indivíduo como centro
subjetivado de direitos e obrigações. Com efeito, esse ramo do Direito,
como disciplina peculiar da orgânica administrativa, não se define unicamente pelo ângulo da prerrogativa de autoridade, senão também, e até
principalmente, pela perspectiva da garantia dos administrados, isso segundo depoimento insuspeito da História. Aliás, é o que consta da mensagem endereçada ao Governador do Estado de Sergipe pela comissão
elaboradora do Código de Organização e de Procedimento da Administração Pública ( lei pioneira no país, conforme bem anotado por Celso
Antônio Bandeira de Mello, no seu Curso de Direito Administrativo, décima
segunda edição, pág. 417), verbis: “ Diga-se ainda da que, ao instituir o
regime jurídico da orgânica administrativa e dispor sobre a sua atividade
funcional, o Anteprojeto levou em conta não apenas a primeira inspiração histórica do Direito Administrativo, residente na necessidade de acautelar os indivíduos contra eventuais descomedimentos no exercício da
função administrativa,...”.Daí decorre que não há apenas princípios que
inauguram e robustecem os formidáveis privilégios administrativos. Há,
pari passu, aqueles que resguardam, do mesmo modo e com idêntica intensidade, a esfera jurídica dos cidadãos. Da conjugação equilibrada de
uns e outros pode-se falar da construção de uma verdadeira equação
jurídica prerrogativas/garantias, em atenção sempre desperta a que a atuação administrativa coloca frente a frente dois adversários que se olham
de soslaio e se atribuem as piores desconfianças: liberdade de um lado e
autoridade de outro. Assim, e só para ilustrar, a) se reconhece à Administração o atributo da executoriedade do ato administrativo, porém,
correlatamente, acode-se o indivíduo com a exigência do devido processo
legal; b) admite-se a discrição administrativa e, contudo, controla-se o seu
legítimo exercício com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
ou proibição de todo excesso; c) concede-se a desapropriação, mas exigese como condição de sua validade a indenização, regra geral, prévia e em
dinheiro. Aliás, desse quadro comparativo fez José Roberto Dromi
oportuníssima síntese ao escrever sobre Autoridade e Liberdade no Direito Administrativo, na Revista de Direito Público, vol. 59/60, págs. 171/
177 ).
Não é então insignificante o silêncio dessa doutrina sobre a
contraface da submissão do indivíduo à Administração, como um dos
termos da relação jurídica administrativa. Não é irrelevante a ausência de
menção a princípio, um só que fosse, vocacionado para a tutela do indivíduo contra desvios ou abusos de uma estrutura e de uma função que
somente encontram justificativa no propósito de servi-lo, e em seu regime de vida compartilhada. Evidencia-se aí uma velha e sugestiva tentação
de encarar o Direito Administrativo pela perspectiva da autoridade, do
mando, antes que da sujeição, e que tem contaminado inclusive muitas
das melhores páginas de doutrina. Essa tendência impressiona tanto mais
quanto se tem em conta a História Política desse Direito, sem cuja consideração tudo será absurdamente falso. A propósito, vale a pena lembrar:
“... até que ponto teorias jurídicas equivocadas são raras vezes inócuas;
todas conduzem a efeitos graves e injustos “. ( Eduardo García de Enterría
e Tomás-Ramón Fernández, in Curso de Direito Administrativo, Ed. Revista
dos Tribunais, 1991, pág. 373 ) .
Deveras, em tempos de exaltação do absolutismo, o que se tinha
como boa, firme e valiosa, era uma concepção do Direito ajustada ao
espírito do tempo, fosse no tocante à origem, à forma de expressão, fosse
no relativo à sua finalidade. Originário do Monarca e expressado quer em
normas gerais quer em atos de sua particularização, que não o obrigavam, o Direito servia ao propósito de glorificar o Estado personificado
no Soberano, a quem se chegava a atribuir a singular posição de representante de Deus na Terra, o que explicava as contemporâneamente desusadas fórmulas da onisciência do governante, de quem se dizia não podia
errar ou querer mal aos súditos. Sabe-se que desde os revolucionários
franceses a concepção absolutista veio a ser substituída, e de tal modo,
que a origem de todo o poder deslocou-se para o povo, cuja vontade geral
era expressada em forma de lei, obrigatória assim para governados como
para governantes e, enfim, que o fim almejado não estava senão na intransigente defesa da pessoa humana, elevada da sua condição de submissa para a de cidadã, que nascia e morria livre e igual em direitos. O
princípio era não só diferente, senão contrário, o contraponto exato daquele do regime decaído, na medida certa. A liberdade adquiriu compostura de regra geral e só admitia os temperamentos confortados na lei
como expressão do querer coletivo. Leia-se:
“ I- Os homens nascem e ficam livres e iguais em direitos. As
distinções sociais só podem ser fundamentadas na utilidade comum.
II-O fim de toda associação política é a conservação dos direitos
naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência do homem à opressão.
III- O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação;
nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane diretamente
dela.
IV- A liberdade consiste em fazer tudo quanto não incomode o
próximo; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem
limites senão nos que asseguram o gozo desses direitos aos demais. Esses
limites não podem ser determinados senão pela lei.
V- A lei só tem o direito de proibir as ações prejudiciais à sociedade. Tudo quanto não é proibido pela lei não pode ser impedido e ninguém
pode ser obrigado a fazer o que ela não ordena.
VI- A lei é expressão da vontade geral... “ (Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão).
Ora, essas formulações acantonam-se inclusive na Constituição
brasileira atual, que lhes confere cerimônias apenas reservadas a hóspedes de excepcional linhagem. Quem as ignora? Todo o poder emana do
povo que o exerce por seus representantes eleitos ou diretamente, nos
termos constitucionais. Ou então: ninguém é obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. São Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Por derradeiro, a Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. Neste inspirado esquema de relações, a exceção
reside na autoridade, com a sua inevitável carga de limitações a uma
situação de liberdade básica ostentada somente pelos indivíduos. Como
tal, de compreensão e aplicabilidade estritas, na exata carência do bem
comum. Como aceitar, na seqüência, que o acento tônico haja se deslocado da regra geral para a exceção, por forma a imprimir maior realce à
função que a sua razão de ser - o indivíduo? Qual foi esse encadeamento
de prodígios responsável por tão dramática transformação? Custa aceitar
que essa profissão de fé na Administração Pública, organismo serviçal e
subalterno, freqüente com desembaraço o gabinete de homens de leis e
ocupe posição sobranceira diante do que lhe confere legitimidade e utilidade, que são os valores fundamentais albergados no constitucionalismo
brasileiro e personificados nos indivíduos, sem os quais não há nem sociedade, nem Direito.
Custa, porque historicamente inexata.
No Brasil, bem ao contrário da França, o modelo que preside as
relações entre a Administração e o Judiciário foi recortado sobre moldes
emprestados pelo figurino anglo-saxão, de predomínio dos juízes sobre os
administradores, tendo estes que se valerem daqueles para a imposição
das leis administrativas. Na França, a teoria da separação dos Poderes foi
interpretada de modo a proibir o Judiciário de interferir nos assuntos
administrativos, com o que se revitalizava surpreendentemente o aforisma
de raiz absolutista, segundo o qual julgar a Administração continuava
sendo administrar. O que se desejava, no ideário revolucionário, era uma
separação entre a Administração e o Judiciário, inspirada no propósito de
fazê-la operar com autonomia, sem os condicionamentos de uma intervenção judicial prévia, os órgãos administrativos não tendo que recorrer
aos tribunais para a imposição das leis administrativas. No antigo regime,
a lógica era impecável, posto que assim a Administração como a Jurisdição eram emanações de uma mesma soberania, personificada no monarca, inexistindo razões, pois, para a subalternidade da primeira à segunda.
Ambas desfrutavam da mesma autoridade, em vista da sua matriz comum. Todavia, com a Revolução, a concepção jurídica alterou-se radicalmente. E, no entanto, o que se teve foi um retorno ao antigo estado de
coisas: uma Administração fora do alcance do Judiciário. No mundo anglosaxão, não aconteceu assim, apesar de paradoxalmente ter inspirado
Montesquieu. Nestes domínios, a separação se fez para garantia da liberdade, que se acreditava unicamente resguardada nos juízes. O que se
buscou foi livrar os juízes da influência do monarca, assegurando-se-lhes
a necessária independência e autoridade, de modo que lhes fosse possível
controlar a atividade dos agentes da Coroa. O que se afirmou foi, pois, a
supremacia judicial, o sistema do judicial control. Dois modelos opostos, a
formarem duas famílias jurídicas com fisionomias inconfundíveis. Um, o
francês, conhecido como regime administrativo, ou do contencioso-administrativo, ou de dupla jurisdição, a administrativa e a judicial; e o outro, o
anglo-saxão, chamado judicialista, ou judiciarista, ou de jurisdição única,
com uma só ordem de tribunais para o conhecimento e a decisão de
todos os conflitos, quer envolvendo particulares entre si, que particulares
e a Administração Pública. Vem a calhar o seguinte excerto: “ ...no
judicialismo perfeito, os órgãos administrativos ficam dependentes a todo
o momento da apreciação da juridicidade dos seus atos pelos tribunais
que, a solicitação dos interessados e mediante processo sumário, podem
emitir ordens ou mandados que os órgãos da Administração são forçados
a acatar. “ ( Marcelo Caetano, na obra Princípios Fundamentais do Direito
Administrativo, pág. 484 ).
Portanto, a interpretação que aqui se deu à teoria da separação dos
Poderes não teve a inspiração francesa. Nada houve entre nós que se
assemelhasse à Lei de 22.12.1789, sob cujos termos as funções judiciais
ficariam separadas das funções administrativas, não podendo os juízes,
sob pena de prevaricação, perturbar de qualquer maneira as operações
dos corpos administrativos. É oportuna, neste ponto, a seguinte transcrição:
“Os constituintes tinham vivido essa experiência de um desviado
governo dos juízes e quiseram resolutamente exclui-la adiante, tanto porque não respondia a um sistema viável nem objetivo de governo, quanto
porque para eles se identifica de fato o estamentalismo nobiliário, como,
enfim, porque naquele momento o poder era deles e não admitiam de
bom grado que tivessem que facilitar o seu condicionamento ou limitar as
possibilidades de conformação revolucionária que com o seu exercício
abria-se para eles. No ditame da Assembléia de onde saiu a lei de separação que transcrevemos, declara-se: “A nação não tem esquecido o que se
deve aos parlamentos; eles só têm resistido à tirania... A nossa magistratura estava justamente constituída para resistir ao despotismo; mas este já
não existirá desde agora. Esta forma de magistratura não é, pois, necessária. “Como se vê, é explícita a intenção dos revolucionários de liberar o
Poder Executivo, uma vez nas suas mãos, dos condicionamentos judiciais.
“ ( Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, no seu Curso
de Direito Administrativo, Ed. Revista dos Tribunais, 1991, págs.431/432 ).
Nenhum artificialismo, então, na existência de um contencioso administrativo ao lado de um contencioso judicial, de um processo administrativo em paralelo com um processo judiciário, de uma jurisdição administrativa de par com uma jurisdição judicial, de uma tutela administrativa
convivendo com uma tutela judiciária. O sistema é logicamente coerente
e assentado em uma Administração encaminhada para “ uma atuação
autônoma e juridicamente suficiente”, articulado sobre as bases de um
recurso contencioso administrativo que assume ares de um pedido de
impugnação de um ato ou regulamento já expedidos e cuja execução não
suspende, o que acentua o caráter revisor dessa jurisdição que, ademais,
não exerce sobre a Administração Pública os poderes da jurisdição comum sobre os demais sujeitos.
O que revela a História Política, na França, é uma trajetória que
vai da identidade subjetiva entre Administração e a Jurisdição até o princípio da separação dos Poderes, interpretado este, porém, de modo substancialmente contrário ao que ocorreu na cultura jurídica anglo-saxã. Parece certo que o sentido originário desse princípio foi inteiramente subvertido no país europeu, onde “ O Poder Judiciário, cuja missão natural é
dirimir os litígios declarando o direito, saía enfraquecido e diminuído desta prova” ( Prosper Weil, no seu Direito Administrativo, Livraria Almedina,
Coimbra, 1977, pág.12 ). A tal propósito, é particularmente interessante
todo o Capítulo VIII, do livro de Eduardo García de Enterría e TomásRamón Fernández, Curso de Direito Administrativo, traduzido para o Brasil
em 1991, Ed. Revista dos Tribunais, que inspirou algumas das idéias até
aqui expendidas.
Ora, essa experiência histórica em nada nos aproveita e, assim, é
absolutamente inadequada para explicar as relações travadas entre a Administração e o Judiciário, no Brasil.
Não deixa, então, de ter um certo ar de mistério, ainda hoje, que,
havendo optado pelo modelo anglo-saxão de jurisdição única, de predomínio dos juízes sobre os administradores, de monopólio da jurisdição
pelo Judiciário, que desconhece a presunção de validade e a autotutela, ao
menos como regra geral, o Brasil seja, no mais, profundamente influenciado pela doutrina francesa de Direito Administrativo, que passa a ser o
nosso modelo de Direito comparado, ao qual recorremos até com exagero, quando se sabe que são duas experiências radicalmente contrárias!
Rigorosamente, só com redobradas e aturadíssimas cautelas se poderia
recorrer ao sistema francês como método de interpretação, exatamente
dada a dessemelhança dos modelos. Ou sequer se possa fazê-lo, a ter
como razoável a opinião de Marcelo Caetano ( expendida tendo em conta especialmente a realidade portuguesa, mas que bem se aplicaria ao
Brasil, pela semelhança), para quem a legitimidade do recurso à doutrina
estrangeira está condicionada ao concurso das seguintes condições : a)
identidade de sistemas administrativos; b) compatibilidade dos princípios
estrangeiros com o sistema jurídico nacional; c) analogia entre as circunstâncias do caso omisso a resolver e as condições sociais em que se produziram os fatos a que se aplicam os princípios formulados pelos autores
estrangeiros. Tudo, sem esquecer que esses recursos só se justifica após
esgotadas as pesquisas na literatura nacional (Manual de Direito Administrativo, Forense, 1º edição brasileira, pág.122/123, sem o destaque do negrito).
Ademais dessa explicação histórica, que ( já vimos ) não nos serve,
haveria alguma outra que pudesse levar a concluir em favor da transferência do ônus de acionar, ou mais genericamente de um tratamento do
Estado em termos absolutamente contrários, e mais favoráveis, ao que se
dispensa ao indivíduo perante os tribunais? Uma explicação dogmática?
Qual ? A teoria da separação dos Poderes? O princípio da eficiência da
Administração Pública? O princípio da legalidade ? Aqui, as coisas não
são mais claras porque a doutrina é surpreendentemente lacônica, mesmo considerando a importância capital do tema.
Entretanto, parece evidente à razão que o princípio da separação
dos Poderes depõe contra e não a favor da tese atualmente prestigiada,
como agora se buscará demonstrar. Deveras. A Constituição brasileira de
1988, e isso não é segredo, inspirou-se sobremodo na Constituição portuguesa e na Constituição espanhola da atualidade, esta última especialmente clara e incisiva ao sonorizar que “O exercício do poder jurisdicional,
em qualquer tipo de causa, julgando e fazendo executar as decisões, compete exclusivamente aos julgados e tribunais determinados pelas leis, segundo as normas de competência e de processo que lhes estabeleçam (
art.107, 3º ). Aí, não há inquietação razoável: o exercício da jurisdição, o
que significa que a atuação do Direito objetivo preordenada à composição de litígios, com o caráter de definitividade, dizendo o que, nos casos
questionados, pois, é de justiça, esta função lhes é exclusiva, dos juízes e
tribunais. Reforça-o o art.24,1, segundo o qual “ Todas as pessoas têm o
direito de obter a tutela efetiva dos seus direitos e interesses legítimos
pelos juízes e tribunais, não podendo em nenhum caso ser denegada justiça.
Não custaria que a Carta republicana nacional contivesse algo assim, da máxima explicitude. Infelizmente, não contém, o que surpreende,
porquanto ao tratar da função legislativa, diz expressamente que esta
cabe ao Congresso Nacional ( 44 ) e, da executiva, que cumpre ao Presidente da República ( art.76 ). Contudo, deslizes do tipo são freqüentes na
Constituição atual*, comprometendo a qualidade do texto e muitas vezes
enevoando-lhe a acertada apreensão ( * Desenvolvidamente, no meu ar-
tigo “ Ação Civil Pública, Constituição Federal e Legitimidade Para Agir,
na RTDP n. 14/67 a 77 ). Daí não se conclua, entretanto, que há lacuna,
omissão, silêncio embaraçoso, o que seria precipitado e grave. Realmente,
em primeiro lugar, a Constituição faz profissão de fé no credo da separação dos Poderes ( art.2º) , o que já é significativo, nada obstante não tenha
repetido a Constituição de 1824 que, em tom solene, proclamava que “A
divisão e a harmonia dos Poderes Políticos é o princípio conservador dos
direitos dos cidadãos e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias
que a Constituição oferece ( art.9 ); em segundo, estatui sem meias palavras que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito ( art. 5º, XXXV ). A combinação dos dois dispositivos é
suficiente para definir a lógica interna do regime, imprimindo-lhe
racionalidade. Não se tem como separar Poderes sem que se separem (
ou distribuam ) funções, funcionando a Constituição como “ um instrumento eminentíssimo de partilha de atribuições “, muito embora sem
caráter de exclusivismo, de tal modo que a cada Poder correspondesse
uma função da qual os demais estivessem radicalmente excluídos. Por via
de consequência, e em reverente obséquio à razão, a regra constitucional
que assegura o acesso ao Judiciário e a submissão ao seu controle ( art. 5º,
XXXV ) é a mesma que atribui a jurisdição a seus órgãos, os juízes e
tribunais ( art. 109, incisos I a VII ). E a exemplo do que aconteceu com
o Mandado de Segurança, cujo âmbito de cabimento veio a ser delineado
por exclusão daquele do Habeas Corpus e do Habeas Data ( art. 5º, LXIX
), a Constituição serviu-se da mesma técnica para conectar jurisdição a
Judiciário. Aliás, também na distribuição de competências entre a União e
os Estados fez uso de igual critério de atribuir por exclusão: “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta
Constituição “( art.25, §1). Por último, atente-se a que “ ...a competência
vem rigorosamente determinada no Direito Positivo como condição de
ordem para o desenvolvimento das atividades estatais e, também, como
meio de garantia para o indivíduo que tem na sua discriminação o amparo contra os excessos de qualquer agente do Estado. “ ( Miguel Seabra
Fagundes, sem o negrito no original ).
O esquema é portanto de simplicidade franciscana. Identificados
os dois momentos da atividade jurídica do Estado - o da formação do
Direito e o da sua realização -, reservou-se ao Judiciário a atividade básica de julgar, entendida na conhecida fórmula de “aplicar a lei
contenciosamente “. Não se está dizendo com isso que à função adminis-
trativa seja estranha, totalmente estranha, a participação no processo de
realização do Direito. Em absoluto. O que se está dizendo é que a jurisdição é exclusiva do Judiciário desde que é neste individualizada com as
características do momento de exercício ( contenda ) do modo com que
se exercita ( interpretação definitiva da lei ) e, por derradeiro, do fim
visado ( o trancamento de uma situação jurídica litigiosa, restaurando-se a
normalidade jurídica ), conforme doutrina recolhida em Miguel Seabra
Fagundes e que entre nós fez fortuna ( O Controle dos Atos Administrativos
pelo Poder Judiciário, Forense, 5º edição, págs. 14/15 ). Sem dúvida, a Administração decide, incidindo sobre situações jurídicas de terceiros, mas nunca
com as características da jurisdição, ou se preferirem, da jurisdição judicial. Nem os seus poderes, quaisquer deles, lhe são configurados para esse
fim, pois que não lhe cumpre restaurar a paz jurídica, a prevalência do
direito objetivo, que isso é atribuição do Judiciário; o que lhe toca é “servir com objetividade os interesses gerais “ ( fórmula usada pela Constituição espanhola ). Leia-se:
“Quando qualquer um, na coletividade, se opõe ao cumprimento
da regra jurídica, obstinando-se em lhe recusar obediência, cria, com isso,
um embaraço ao regular funcionamento do organismo estatal. O Estado
vence essa anormalidade restaurando a ordem legal através da coação,
que exerce sobre a vontade insubmissa, impondo-lhe obediência ao cânone
legislativo, cuja inteligência fixa definitivamente. Tais situações podem
originar-se seja de atitude do indivíduo recusando obedecer à lei, impugnando-a por injusta, por irregular, ou por entender não abrangido por
suas disposições, seja de procedimento dos próprios órgãos estatais (
Legislativo e Executivo ), violando os limites prefixados no Direito Positivo à sua atividade. Num caso como no outro, se resolvem pelo exercício
da função jurisdicional, que restaura a legalidade, clima normal na vida
do Estado. O seu exercício pressupõe, assim, um conflito, uma controvérsia, ou um obstáculo em torno da realização do Direito e visa removê-lo
pela definitiva e obrigatória interpretação da lei.” ( Miguel Seabra Fagundes,
ob. cit. págs. 9,10 e 11 ).
Segue-se daí, e mais não é necessário, o erro de querer-se, à guisa
de princípio geral, conformar o ato administrativo à imagem e à semelhança da sentença, predicando-lhe atributos estranhos à função que especifica.
Nem se argumente, como a gosto de alguma doutrina, com
implicitudes ou inerências, ressuscitando um esoterismo só acessível a
iniciados, para dizer ora que está implícito no ordenamento jurídico o
sistema de autotutela fundado na presunção de validade, ora que é inerente à Administração, uma qualidade que lhe é conatural. Em primeiro
lugar, porque não se há de admitir implicitudes e inerências onde há preceito expresso em contrário ( art.5º, XXV ) que não distingue entre os
sujeitos que ameaçam ou lesam efetivamente direitos, para incluir uns e
excluir outros, sobremais quando topograficamente localizado em capítulo assecuratório de direitos subjetivos públicos, oponíveis ao Estado, no
seu sentido mais amplo. Em segundo, porque princípios implícitos à Constituição só tolera quando decorrentes da índole do regime ou de outros
princípios que consagra, como se extrai da leitura do seu §2º do art.2º. Ao
depois, o princípio da separação dos Poderes vem sendo invocado exatamente para uma submissão cada vez mais estrita da Administração aos
juízes e tribunais, no qual se acha comportado o controle prévio e não só
a impugnação deduzida ex post facto. Enfim, em um Estado Democrático
de Direito, fundado na soberania popular e no esquema de separação de
Poderes, a Administração não tem poderes inerentes, consubstanciais,
conaturais, resultantes da sua própria autoridade, mas tão somente os que
a lei, como expressão do querer coletivo, lhe outorga. Nada mais.
A separação de Poderes, portanto, testemunha em detrimento e
não em proveito da doutrina tradicional. Melhor resultado seria obtido
com a invocação do princípio da eficiência? Nada sugere que sim. Em
primeiro lugar, porque a eficiência não se pode sobrepor à separação de
Poderes na ordem de importância dos princípios. Salta à vista que este
último é princípio estruturante do Estado brasileiro, cláusula de eternidade exatamente porque insuscetível de supressão por emenda constitucional, atributos ausentes naquele. Em segundo, porque conectar a eficiência
à autotutela seria o mesmo que reconhecer ineficiência ou ineficácia a
administrações do tipo anglo-saxão, o que desborda e muito da
razoabilidade. Deveras, o Direito tem meios de assegurar a prevalência
ordinária do interesse público sobre o privado sem que necessariamente
isso envolva no geral tratamento mais benigno à Administração. Processos sumários ou sumaríssimos resolveriam a maioria dos casos, sem que
se afastasse a assistência prévia do juiz.
Sentença de 9 de dezembro de 1955, do ilustre juiz Dínio de Santis
Garcia, confirmada, embora com menor amplitude, por unanimidade de
votos do Tribunal de Justiça de São Paulo, destacou em apurada síntese ,
já àquela época, que ao Município, e de resto às outras pessoas de direito
público nenhuma lei conferia o poder de promover, ex autoritate propria, a
execução forçada dos atos administrativos dele emanados, especialmente
a demolição de prédio particular. E ainda quando houvesse, teria sido
editada ultra vires e, pois, sem nenhum valor, isso porque o monopólio da
jurisdição no Brasil é do Poder Judiciário e o único processo legal para a
demolição de prédios que contravenham à lei é o previsto no Código de
Processo Civil para a ação cominatória. Nem mesmo socorreria o Município o devido processo administrativo, pois “...não pode ser legal um
processo que começa por usurpar funções exclusivas, privativas do Poder Judiciário. Pois é princípio básico do moderno Direito Constitucional
o da unidade de jurisdição... As exceções devem vir consignadas na lei
constitucional “. ( sem o negrito, no original, na Revista de Direito Administrativo, 48/306 ).
O princípio da legalidade também não socorreria o que se vem
combatendo. Se mais não fora, pela simples razão de que atualmente
significa que a Administração pode fazer apenas o que lhe é legalmente
permitido, excluída assim a antiga idéia de raiz absolutista da vinculação
negativa pela vinculação positiva à lei. E já foi demonstrado que lei alguma lhe dispensa ordinariamente regime jurídico mais favorecido, até porque a tanto se opõe a Constituição Federal.
Considere-se mais em desfavor da tese ora dominante. Considerese que entre os valores assumidos como dignos de proteção jurídica pelo
ordenamento, a partir da Constituição Federal, está a segurança. É de
valor reforçado que se cuida, de valor supremo, acima do qual não existe
qualquer outro. Este perfil lhe resulta do preâmbulo constitucional, ao
qual não se há de negar virtude normativa, ou privar de conteúdo juridicamente estimável, reduzindo-se-lhe a dignidade ao de um rosário de
promessas sem nenhum préstimo aos olhos do Direito. Entretanto, ainda
quando não fosse assim, o art.5º, caput, garante a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
segurança e à propriedade, nos termos que enuncia ( e aí a segurança
reaparece, desta feita como direito fundamental da pessoa humana, imune mesmo à emenda constitucional ), abstraída a nacionalidade, alcançando inclusive o apátrida. Direito da pessoa humana por declaração ainda
mais explícita do art. 4, II, e do art. 34, VII, alínea b.
Parece evidente que segurança, nos versículos constitucionais é
sobremodo ausência do emprego descentralizado da força física na composição dos eventuais conflitos de interesses, entregues à responsabilidade de órgãos estatais que para tanto receberam especial habilitação da
ordem jurídica. Segurança, portanto, que é mais do que aquela assegurada
ao preso, como direito à integridade física e moral ( art.5º, XLIX ). Esses
órgãos são os do Poder Judiciário, enumerados exaustivamente no art. 92,
incisos I a VII. Isso significa que, no Brasil, é assegurado a todos, sem
exceção de nenhum, que a função de dizer se em dada situação houve ou
não ofensa ao direito é retirada dos envolvidos diretamente no conflito e
entregue ao Estado, atuando por esses qualificados círculos abstratos de
competência, os órgãos judiciais. Atividade de jurisdição, pois, que não se
confunde com qualquer das formas de Administração: ativa, consultiva,
verificadora, de controle ou contenciosa. E, como ficou dito linhas atrás,
a Constituição não distingue entre conflitos de interesses públicos e privados. Todos caem na vala comum do art. 5º, XXXV. Se é a Administração
que se sente lesada ou ameaçada em seu direito de atuar em proveito do
interesse público, diante de resistência que lhe opõe o particular, com ou
sem razão, o que lhe toca, para remover a objeção, é trilhar os caminhos
que levam ao Judiciário e não interferir impositivamente na esfera jurídica alheia, constrangendo o administrado a mudar de posição no processo
e agravando-o com a transferência do ônus de acionar. Nada, rigorosamente nada a autoriza, de modo geral, a resolver unilateralmente sobre a
legitimidade do seu título e a fazê-lo cumprir por seus próprios meios,
diante do conflito instaurado, pois esse é papel reservado ao Judiciário.
Não é escusável, neste ponto, recordar que sobre o esquema da separação de Poderes a Constituição deixou clara a possibilidade de o Judiciário
exercer legislação, função de editar normas gerais, quer quando pronuncia a inconstitucionalidade das leis em abstrato, quer quando, em ação
direta de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
federal, decide com força obrigatória para todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo,
sem excluir a competência para a elaboração de regimentos internos. Vejase que, compondo hipóteses de exceção à atividade típica do Legislativo,
receberam menção explícita da Constituição, o que em momento nenhum
ocorreu com o reconhecimento da transferência do ônus de acionar,
evocativo de uma autotutela administrativa ao lado de uma tutela judicial.
Nenhum tratamento mais benigno foi dispensado ao Estado, quando
no exercício da função administrativa, pelo que, ao deparar-se com resistência do administrado acerca de uma sua pretensão, cumprir-lhe-á de
ordinário afastá-la pelos meios normais e, pois, com recurso ao Poder
Judiciário, ao qual caberá aferir a legitimidade do título que a fundamenta. Conquanto óbvio, lembre-se que ninguém é obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. E não há lei, nem pode
haver, excepcionando a tutela judicial prévia, heterotutela, em proveito
da autotutela administrativa, como suposto princípio geral, fundado em
presunção de validade do ato administrativo. Agregue-se que a Constituição Federal elege a dignidade da pessoa humana como fundamento da
República Federativa do Brasil, qualificando-a como princípio fundamental, incompatível com uma presunção que o deprime ao invés de exaltá-lo
perante o Poder Público. Mais ainda: o princípio da dignidade da pessoa
humana tem a compostura de superlativo dos princípios, abstração feita
obviamente ao da inviolabilidade do direito à vida. E como se acha
indissoluvelmente ligado à forma de Estado ( nele declaradamente esforçado ) e aos direitos e garantias individuais, posto que seria aberrante
conceder dignidade a quem vida não possuísse, ou então vida indigna,
está a salvo inclusive de emendas constitucionais ( art.60, §4º, I e IV ). É
também de valor supremo que se cuida, conforme resulta do Preâmbulo
do qual já se disse possuir valor normativo. A respeito, na França, a musa
inspiradora de acreditados administrativistas nacionais, nada obstante a
excepcionalidade da decisão do Conselho Constitucional, chegou-se a declarar, por iniciativa do presidente do Senado, “não conformes à Constituição, por serem contrárias aos princípios fundamentais reconhecidos
pelas leis da República e solenemente reafirmados pelo Preâmbulo da
Constituição, determinadas disposições de uma lei relativa à liberdade de
associação ( decisão de 16 de julho de 1971 ) “, consoante notícia trazida
por Prosper Weil, no seu Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra,
1977, págs. 20/21, sem o destaque do negrito, no original. Mais ainda:
“Dentre as fontes de legalidade, algumas estão fora da Administração e
impõem-se a todas as autoridades administrativas, sem que nenhuma delas tenha o poder de as revogar, modificar ou derrogar. É o caso de a) ...;
b) A Constituição e o seu Preâmbulo “ ( mesmo autor, ob. Cit., págs. 117/
118 ).
Resulta daí que a proibição de tratamento desumano ou degradante ( art.5º, III ); da prática do racismo ( art.5º, inciso XLII); da imposição
de penas cruéis ( art.5º, inciso XLVII, alínea e ); e a imposição de respeito
à integridade física e moral do preso ( art.5º, inciso XLIX ), nada mais são
além de emanações pontuais, avulsas, desse princípio de linhagem nobre,
de capa e espada. É o que acontece também com a presunção de inocência ou de não-culpabilidade, na conhecida fórmula de que ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória “( art. 5º, LVII ). Mesmo o acusado de crime hediondo,
insuscetível de fiança, graça ou anistia, mesmo esse, não está excluído da
presunção, que somente cede mediante sentença penal condenatória transitada em julgado. E nem se descuide de observar que os direitos e garantias fundamentais são assegurados a brasileiros e estrangeiros residentes
no país, e não à Administração Pública. Vale a pena a seguinte transcrição:
“Ora, se a lei estadual determinou sua aplicação a servidores públicos desde o momento anterior ao de sua entrada em vigor, não pode a
Administração Pública pretender não aplicá-la sob a alegação de ofensa a
direito adquirido seu ( art.5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal ),
porquanto, integrando ela o Estado, não tem ela direito a uma garantia
fundamental que é oponível ao Estado e não, - como ocorre em geral
com as garantias dessa natureza, a ponto de em face dado direito alemão,
SCHLAICH (... ) dizer que as pessoas jurídicas de direito público não são
capazes de ter direitos fundamentais - a ele outorgada. “ ( Supremo Tribunal Federal, Primeira Turma, unânime, em 24. 03.98, Diário de Justiça
da União de 8/5/98, Rel. Min. Moreira Alves, sem o negrito ).
Sendo assim, como inverter os termos do formulário constitucional para reconhecer à Administração a formidável prerrogativa da transferência do encargo de acionar, que a deixa em situação de vantagem
perante o indivíduo ? Especialmente quando se constata que em nenhuma cláusula constitucional vem explícita tal deferência em proveito dela?
Tem cheiro e sabor de contra-senso dos mais acintosos dispensar-se ao
acusado de crime, qualquer crime, o deslocamento para ao Estado do
ônus de provar-lhe a materialidade e a autoria e, de revés, gravar-se o
indivíduo, sobre quem não pesa o estigma de semelhante e desonrosa
increpação, a incômoda e difícil incumbência da prova contra a Administração. Coisa estranha, essa: nas relações jurídico-administrativas, quem é
presumidamente inocente é o Estado e os seus desmembramentos. Inocente da mentira, inocente do erro, inocente da ilegalidade, cumprindo ao
indivíduo fazer prova contrária. E prova robusta, acima e além de toda
dúvida razoável. Doutrina bizarra na sua inspiração e gravosa nas suas
conseqüências, posto que degrada o cidadão de conduta irrepreensível,
ao passo que dispensa tratamento de maior benignidade ao indigitado de
crime, inclusive o hediondo...Ora, é evidente que se o acusado de crime
goza da presunção de inocência por respeitosa reverência ao princípio da
dignidade humana, com maior carga de razões há de reconhecê-la também a quem de crime nunca foi acusado. O contrário seria ir a conseqüências nunca desejadas, mercê de uma compreensão distorcida do fenô-
meno jurídico, decorrente de séria negligência ao aconselhamento de
Demolombe, citado por Carlos Maximiliano: “A interpretação das leis é obra
de raciocínio e lógica, mas também de discernimento e bom senso, de sabedoria e de
experiência. “ ( Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, nona edição,
pág.100 ).
Realmente, e bem refletidas as coisas, sem compromissos com
idéias de raízes absolutistas ainda fincadas no solo da Europa Continental,
não é aceitável que se mantenha o privilégio administrativo, se a dignidade não é direito oponível ao indivíduo e sim, bem ao contrário, ao Estado,
inclusive quando no desempenho da função administrativa. Na
tradicionalíssima doutrina, que ora se questiona, há vestígios claros da
sobrevivência de esquemas autoritários de um regime decaído, inspirados
na máxima “em favor do ato régio milita presunção de validade “, desconhecida do Direito anglo-saxão ao menos como princípio geral. Aqui,
vem à lembrança o gênio de Ruy Barbosa: “Essa presunção de terem ( os
Poderes Públicos ), de ordinário razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ao Estado ( Oração aos Moços,pág.76 ). E também
a cortante afirmação do Ministro Vítor Nunes Leal: “Parece que estamos
necessitando, nessa matéria, de uma construção doutrinária que não
institucionalize o arbítrio”, feita ao propósito do elementar direito de defesa perante a Administração Pública, inclusive no desfazimento unilateral de concessões ( Revista de Direito Público /281 ). Sobremais desse vestígio autoritário, acrescente-se outro: o injustificado esquecimento de que
se têm como excepcionais, quer inseridas no Direito Comum, quer no
Direito Especial, as disposições hospedeiras de normas limitativas da liberdade bem como da vida, da segurança e da propriedade, que são os
bens jurídicos tutelados no art.5º, caput, da Constituição Federal ), das
quais não se excluem nem aquelas inspiradas na higiene, no bem geral ou
local ( Carlos Maximiliano, ob. cit. págs. 229 e 231 ). E quem ignora que
toda disposição excepcional se interpreta estritamente? Resulta na seqüência
que, quando se pudesse falar de regime mais favorecido à Administração
Pública, a mais valia teria que ser interpretada sem ampliações ou generosidades, e, pois, sem o caráter de princípio geral ou de atributo do ato
administrativo.
Sob nova perspectiva, considere-se a liberdade assegurada ao indivíduo como direito subjetivo público oponível ao Estado. Sabe-se que a
regra geral é a tutela da liberdade, de tal modo que, na dúvida, é em seu
favor que se decide. Com efeito, prevaleça a doutrina do direito natural,
perante a qual os homens nascem livres e iguais em direitos, prevaleça o
positivismo jurídico, que a recusa, haverá sempre uma esfera livre de
toda a ingerência, uma ausência de prescrições que obriguem a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, configurando-se com isso o mínimo de
liberdade a que aludia Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito . É conhecido o
seguinte trecho: “ ... Na medida em que a conduta de um indivíduo é permitida no sentido negativo - pela ordem jurídica, porque esta a não proíbe, o indivíduo é
juridicamente livre” ( Armênio Amado, Editor, Sucessor Coimbra, 3º edição,
pág.72). Em essência, esse é o princípio enunciado no art.5º, inciso II da
Constituição Federal. No caso, bem se admite que esse direito de liberdade signifique que o indivíduo está livre do uso da coação por outra pessoa, qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, que não o
Estado.
Ou seja: nenhuma norma válida impõe ao indivíduo o dever de
suportar que a Administração Pública incida unilateralmente sobre a sua
esfera jurídica, constrangendo-o com o deslocamento do ônus de acionar.
De sorte que a sua segurança, em que se exprime tal liberdade, apenas
admite exceções fundadas em menção explícita de alguma situação cujo
resguardo seja incompatível com o recurso prévio às vias judiciais, desde
que cumpridamente demonstrado, como no caso do uso administrativo
de bens da propriedade privada para atender a iminente perigo público (
art.5º, XXV ). Em casos desse jaez, a iminência do perigo afastaria
irremissivelmente a assistência judicial antecipada. Pelo que a ordem jurídica tolera situações em que cada um possa defender pelos seus próprios
meios a sua esfera de interesses, desde evidentemente que o faça com
moderação, com o que consente a autotutela , ou autodefesa. Nada porém que signifique uma presunção de validade dos atos administrativos, determinante da transferência do ônus de acionar. Aqui,
não se defere mais à Administração do que ao indivíduo. Na verdade,
nenhum mal haveria em dizer que a ordem jurídica busca dispensar tratamento igual a situações idênticas. Do contrário, o que restaria seria a
discriminação injustificada, desarrazoada e censurável. Se o bem ou o
valor está em situação de risco que não pode ser evitado ou impedido de
propagar-se salvo por uma atuação imediata e autônoma do seu titular ou
de quem o administre, então, não teria o menor cabimento liberar-se o
indivíduo e tolher-se o Estado-Administração. O fundamento é, portanto,
outro que não a presunção de validade. Algo assim como uma atuação
necessitada, ou em estado de necessidade, ou em legítima defesa ou no
exercício regular de um direito, a única capaz de evitar a irrupção ou a
propagação de danos à coletividade. Insisto: a ordem jurídica compõe um
esquema de proteção e defesa de direitos, subjetivos privados ou públicos, não importa.
Desse esquema fazem parte, ordinariamente, a invocação de proteção ao Estado, que a deve prestar por órgãos próprios e meios específicos, e, extraordinariamente, a defesa pessoal ou autodefesa. Esta, por ser
excepcional, por configurar situações de exceção ao regime normal, tem
expressa previsão legal e suas manifestações mais conhecidas são a legítima defesa, o estado de necessidade (este cai como luva encomendada,
porque implicando em fazer prevalecer um interesse de maior valor sobre um de menor, na impossibilidade da sua coexistência, garante a supremacia do interesse público sobre o meramente individual ) e o exercício
regular de um direito, com o que retira-se o caráter antijurídico da atuação que, sob diversas circunstâncias, seria ilícita. Assim, por exemplo, o
desforço imediato, atribuído por lei ao possuidor turbado ou esbulhado.
Contudo, vale a repetição, a proteção dos direitos se dá comumente por
via de um processo instaurado mediante a propositura de ação adequada,
um pedido de tutela judicial ao Estado para obrigar outro a um comportamento conforme ao Direito. É de direito de ação que se trata, pois. E
esta ação é apresentada a órgãos do Poder Judiciário aos quais a Constituição reserva competência para a solução dos litígios ( art. 5º, inciso
XXXV ). Quem a deve propor é o titular do direito resistido e não aquele
que resiste a pretensão. A partir daí, onde se encaixa o regime da autodefesa, com a transferência do ônus de acionar para o administrado, que se
pretende atribuído como regra geral à Administração? Que dispositivo
agasalha um regime diferenciado à Administração? Afinal, não é certo
que ( embora a propósito da iniciativa reservada do processo legislativo )
o Supremo Tribunal Federal já assentou que matéria constitucional de
direito estrito “não se presume, nem comporta interpretação ampliativa,
na medida em que...deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” ( sem o destaque em negrito, ADIN 724-6, no
DJU de 27/4/20011 )?
Sob diversa ótica, criam, observam e aplicam a ordem jurídica
assim a Administração como os administrados. Em havendo uma presunção de validade para a Administração, isso significaria que para os indivíduos a presunção seria contrária? Sim, porque não é de privilégio ou
prerrogativa que se trata? Estes estariam presumidamente praticando atos
inválidos? Teria cabimento tal presunção diante de Constituição que tem
como primeiro artigo de fé a dignidade da pessoa humana?
Agora, resumindo: a) a Constituição Federal enfatiza a separação
de Poderes como elemento característico do Estado Democrático de Direito; b) atribui ao Poder Judiciário o exercício da jurisdição em cujo
âmbito se acha comportado, simultaneamente, o controle da legislação e
da Administração; c) o exercício da jurisdição pelos órgãos judiciários
demarca para os indivíduos uma zona de liberdade, expressiva de segurança, que os torna de ordinário livres de qualquer outra tutela diversa da
judiciária; d) ao garantir o indivíduo com o exercício da jurisdição, a Constituição Federal o resguarda contra qualquer tentativa de a Administração
fazer valer pelos seus próprios meios as suas razões, cuidando de defender-se por si mesma quando naquele encontre resistência; e) entretanto,
como nunca é possível excluir totalmente a autodefesa, a Administração
pode tutelar os seus próprios interesses sempre que seja este o único
modo de satisfazer adequadamente os valores albergados na ordem jurídica como dignos de acatamento e resguardo; f ) enfim, essa autotutela
deverá estar expressa em lei, a exemplo do que sucede no Direito Civil e
no Direito Penal com os indivíduos, tolerando-se que à falta de norma
expressa se faça uso da analogia, como processo de integração do Direito.
Portanto, longe de ensejar aceitação pacífica, a presunção de validade ( ou mais rigorosamente o deslocamento do encargo de acionar ), e
os seus consectários, inclusive o ônus da prova e a autotutela, hão de ser
revistos e desqualificados como princípios gerais do Direito Administrativo brasileiro, ou atributo do ato administrativo, sobretudo quanto se tratar de impor sanções aos administrados. O mais que se pode condescender é com a sua aplicação em caráter excepcional e, ainda assim, quando
previstas em lei e diante de situações comprovadamente incompatíveis
com a natural demora dos trâmites judiciais, assim como ocorre com a
requisição de bens de propriedade privada, diante de perigo público iminente, que é o caso do art. 5º , inciso XXV, da Constituição Federal.
JURISPRUDÊNCIA
Escola Superior da Magistratura de Sergipe
ESTADO DE SERGIPE
9ª VARA CRIMINAL
Processo nº 982090256-1
Autora: Justiça Pública
Réu: Cristiano Alves Santos
Vítimas: Jackson Paixão Santos
Gildo Tavares de Souza
Incursão: art. 157, § 2º, inciso I, c/c o art. 14, inciso II, ambos do Código Penal.
CRIME DE ROUBO QUALIFICADO PELA CIRCUNSTÂNCIA DO EMPREGO DE ARMA NA SUA MODALIDADE TENTADA - Art. 157, § 2º, inciso I, c/c o art. 14, inciso II, ambos do Código
Penal - CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA - Art. 10, “caput”, da
Lei 9.437/97 - Conflito aparente de normas apontadas pela doutrina Aplicabilidade do Princípio da Subsidiariedade - Ne bis in idem - Lex
primaria derrogat legi subsidiariae - Impossibilidade de se conjugar simultaneamente o art. 10, “caput”, da Lei 9.437/97 com aqueloutro previsto
no § 2º, inciso I do art. 157 do Código Penal - Ação física presente que
consiste na tentativa de subtração de coisa móvel por meio de violência
ou grave ameaça - Sumário sob rígido contraditório, que elegeu somente
a prática de crime de roubo qualificado - Existência nos autos de elementos convincentes da culpabilidade do denunciado por via de prova completa, plena e induvidosa - Denúncia a que se dá procedência em parte,
para fins de condenação.
Vistos e bem examinados.
O Ministério Público do Estado de Sergipe, por intermédio de sua
representante com exercício e titularidade nesta Vara Criminal, instaurou
a presente Ação Penal Pública Incondicionada, com escopo nos argumentos fáticos e jurídicos delineados no procedimento administrativo
inquisitorial, em face de CRISTIANO ALVES SANTOS, já identificado
na peça exordial, pela prática de fato típico definido no art. 157, § 2º,
inciso I, do Código Penal, e art. 10, caput, da Lei nº 9.437/97, combinados com o art. 69 do Codex Repressivo.
Irroga-lhe a persecutio criminis de fls 02 ut 04 dos autos, a prática
dos delitos sob os nomem juris de roubo qualificado e porte ilegal de
arma, tendo como sujeitos passivos, com relação ao primeiro delito, as
vítimas Jackson Paixão Santos e Gildo Tavares de Souza, e quanto ao
segundo delito, a coletividade.
Aduz a proemial que na madrugada do dia 29-11-1998, nas cercanias da Rua Serafim Bonfim, Bairro Santos Dumont, nesta Capital, o
denunciado Cristiano Alves Santos “tentando assaltar o motorista e o
cobrador da Empresa Graça, apontou um revólver para Jackson Paixão
Santos, dizendo-lhe que era um assalto e tomando-lhe a bolsa, quando,
aproveitando que o denunciado desviara os olhos para a vítima Gildo
Tavares de Souza, a primeira vítima entrou em luta corporal com o assaltante, tomando-lhe a arma, momento em que vários populares acudiram,
segurando o denunciado, sendo o mesmo preso em flagrante delito, não
conseguindo, destarte, consumar seu intento”(sic).
Afirma ainda a denúncia que o denunciado era fugitivo da Penitenciária de Aracaju - PEA, fuga ocorrida em julho do ano transato, uma
vez que já se encontrava processado pela Comarca de Nossa Senhora do
Socorro/SE, chegando o mesmo a confessar que no ato do assalto encontrava-se drogado.
Alega mais que a arma que ilegalmente portava o denunciado era
um revólver cal. 32, adquirido pelo mesmo na feira das trocas da Praça
da Cruz Vermelha, nesta Capital.
A proemial foi recebida em 02-03-1999, oportunidade em que foi
designada audiência de qualificação e interrogatório do denunciado
Cristiano Alves Santos para o dia 10-03-1999, às 13:30 horas.
Em sede de qualificação e interrogatório, o denunciado negou a
autoria do delito, alegando que tudo não passou de uma discussão travada
entre o mesmo e a vítima.
No tríduo legal que se seguiu, foram apresentadas as alegações
preliminares subscritas pelo ilustre Defensor Público com assento nesta
Vara Criminal, na pessoa do Dr. Raimundo José Oliveira Veiga, oportunidade em que protestou pela ouvida das vítimas e das testemunhas arroladas na denúncia.
Na instrução criminal, em uma única assentada foi auscultada apenas uma testemunha requerida por ambas as partes, bem como tomadas
por termo as declarações das duas vítimas.
No prazo diligencial enunciado no art. 499 do Código de Processo
Penal, Ministério Público e Defesa Técnica nada requereram, dando-se
por satisfeitos com a dilação probatória já colhida.
Em alegações finais, a ilustre representante do Ministério Público
requereu a procedência da ação penal, por entender que os autos trazem
provas suficientes à condenação do réu como incurso nas sanções do art.
157, § 2º, inciso I, do Código Penal, c/c art. 14, II, do mesmo diploma,
em concurso com o art. 10 da Lei 9.437/97. A defesa, por seu turno, em
detalhado arrazoado, pugnou pela absolvição do denunciado.
Os autos volveram-me conclusos para sentença.
Em apertada síntese é o relatório.
DECIDO
Visam os presentes autos de Ação Penal Pública Incondicionada,
na qual se procura apurar a responsabilidade penal do indigitado
CRISTIANO ALVES SANTOS, pela prática delitiva de roubo qualificado pelo emprego de arma em concurso material com o porte ilegal de
arma, por ter infringido o que dispõe o art. 157, § 2º, inciso I, do Código
Penal e art. 10, “caput” da Lei 9.437/97, c/c o art. 69, do Código Penal.
FUNDAMENTOS
REITO DO ROUBO
DE
FATO E
DE
D I-
Sobre o tema, com muita percuciência e em luminosa interpretação, elucidativa é a lição do Professor Weber Martins Batista:
“Roubo é a subtração de coisa móvel alheia, mediante violência,
grave ameaça, ou qualquer meio capaz de anular a capacidade de resistência da vítima”.
É um delito complexo, em que o Código Penal protege a posse,
propriedade, integridade física, vida, saúde, liberdade individual e o
patrimônio, e para a sua configuração exige-se o elemento subjetivo do
tipo, que é o dolo específico, consumando-se somente quando a res furtiva sai da esfera de vigilância da vítima.
Ressalte-se que para caracterizar o delito de roubo, o sujeito deve
executar o fato mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois
de havê-la, por qualquer outro meio, reduzido à impossibilidade de resistência. A violência que caracteriza o roubo pode ser própria, quando há
o emprego de força física, consistente em lesão corporal ou vias de fato,
ou imprópria, quando há o emprego de qualquer outro meio descrito na
norma incriminadora, abstraída a grave ameaça.
O roubo qualificado, previsto no § 2º, inciso I do preceptivo 157,
do Código Penal, ou seja, o emprego de arma, denota não só a maior
periculosidade do agente, como uma ameaça maior a incolumidade física
da vítima. Arma, no sentido jurídico, é todo o instrumento que serve
para o ataque ou defesa, hábil a vulnerar a integridade física de alguém.
DO PORTE ILEGAL DE ARMA
Com o advento da Lei Federal nº. 9.437, de 20 de fevereiro de
1997, que dentre outras coisas instituiu o Sistema Nacional de Armas e
estabeleceu condições para o registro e para o porte de arma de fogo,
erigiu a antiga contravenção penal do porte de arma para a categoria
propriamente de crime, com penas balizadas, para a figura mais simples,
de 01 (um) a 02 (dois) anos de detenção, além da previsão da pena de
multa.
O tipo penal de porte ilegal de arma contém dezoito figuras diferentes, consistentes em possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender,
alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar,
ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter
sob a guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização
e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. É, na verdade,
um tipo misto alternativo, no qual a realização de mais de um comportamento pelo mesmo agente implicará sempre um único delito, por aplicação, como é obvio, do princípio da alternatividade.
O objeto jurídico tutelado pelo Estado, no criem em tela, é, em
termos mais abrangentes, a incolumidade pública, expressão que traz em
seu bojo a garantia e preservação do estado de segurança, a integridade
corporal, vida, saúde e patrimônio da coletividade em geral contra os
possíveis atos que a exponha a perigo.
Trata-se de crime de ação múltipla ou conteúdo variado, comum,
formal, de perigo coletivo (comum) e abstrato (perigo presumido). É
formal, e não de mera conduta, porque na prática é possível que ocorra
o perigo concreto, ou seja, pode ser que em uma dada situação fática a
conduta do agente venha a efetivamente colocar em real perigo a vida, a
integridade corporal ou o patrimônio de outrem. Ao contrário, no crime
de mera conduta, não se admite em hipótese alguma um resultado
naturalístico.
É de perigo abstrato porque a própria lei faz uma presunção de
forma absoluta quanto à existência do perigo, sem admitir prova em contrário (presunção juris et de jure). No perigo concreto, ao reverso, exigise a sua demonstração efetiva no mundo dos fatos, ou seja, é preciso que
o comportamento do agente gere uma possibilidade concreta de destrui-
ção do bem jurídico tutelado.
É crime comum porquanto pode ser praticado por qualquer pessoa, e tem como sujeito passivo a coletividade, ou melhor, os cidadãos
indeterminadamente.
Tem por elemento subjetivo o dolo, consistente na vontade livre e
espontânea de possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar,
expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder,
ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob a
guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem licença da autoridade.
Por fim, o crime de porte ilegal de arma tem por objeto material a
arma de fogo de uso permitido, conceituada, nas palavras do Prof.
Fernando Capez, como “aquele engenho mecânico que cumpre a função
de lançar à distância com grande velocidade corpos pesados, chamados
projéteis, utilizando a energia explosiva da pólvora (carga de lançamento
ou projeção)”.
Do crime de roubo qualificado pelo emprego de arma - Do crime
de porte ilegal de arma - Conflito aparente de normas
BREVE
RELATO
SUBSIDIARIEDADE:
DO
PRINCÍPIO
DA
Nas bem lançadas palavras do insigne Professor Damásio
Evangelista de Jesus, “Há relação de primariedade e subsidiariedade entre normas quando descrevem graus de violação do mesmo bem jurídico,
de forma que a infração definida pela subsidiária, de menor gravidade
que a da principal, é absorvida por esta: Lex primaria derogat legi
subsidiariae.”
Assim, a figura típica subsidiária esta contida na principal, como
acontece, in exemplis, com o tipo penal do crime de ameaça, previsto no
art. 147 do CP, que está incluída, como se vê, na figura típica do crime de
constrangimento ilegal, previsto no artigo antecedente.
Dividem os autores em dois tipos de subsidiariedade: a explícita e
a implícita. A primeira, também denominada expressa, ocorre quando a
própria norma, explicitamente, subordina a sua aplicação à não-aplicação
de outra, punida com maior severidade. Podemos citar como primeiro
exemplo, encontrado na própria Lei 9.437/97, o crime de disparo de
arma de fogo, previsto no art. 10, § 1º, inciso III, anteriormente definido
como contravenção penal na LCP. A parte final desse dispositivo ressalva expressamente que a configuração dessa infração depende de o fato
não constituir outro crime mais grave.
“III - disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que
o fato não constitua crime mais grave.” (grifo nosso)
Assim sendo, com a transformação da contravenção penal do disparo de arma em crime, punido com detenção de 01 (um) a 02 (dois)
anos e multa, este passou a ter maior gravidade do que as lesões corporais
de natureza leve e a periclitação à vida ou à saúde de outrem, previstos
respectivamente nos arts. 129 e 132 do Código Penal, passando a constituir norma primária em relação às lesões e à periclitação, normas subsidiárias, e por conseguinte absorvendo-as.
Outros exemplos poderiam aqui serem enumerados, a exemplo do
que ocorre com os artigos 21, 29 e 46 da Lei das Contravenções Penais,
e artigos 238, 239, 240 e 307, todos do Código Penal.
A subsidiariedade implícita, e aqui importa ao caso sub judice, também denominada tácita, por seu turno, ocorre quando uma figura típica
funciona como elementar ou circunstância legal específica de outra, de
maior gravidade punitiva, de forma que esta exclui a simultânea punição
da primeira: ubi major minor cessat.
Como preleciona Damásio E. de Jesus, na subsidiariedade implícita, as elementares de um tipo penal estão contidas em outro, como essentialia
ou circunstâncias qualificadoras. Denomina-se implícita porque a norma
dita subsidiária não determina, expressamente, a sua aplicação à não ocorrência da infração principal.
O crime de dano, por exemplo, é norma subsidiária em relação ao
delito de furto qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo à
subtração da coisa, uma vez que os elementos típicos do dano funcionam
como circunstância qualificadora do furto. O mesmo acontece com o
crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal, cujos elementos
típicos funcionam como elementares do crime de constrangimento ilegal,
previsto no art. 146 do mesmo Codex.
Essa mesma relação de primariedade e subsidiariedade acontece
com o crime de roubo agravado pela circunstância do uso de arma de
fogo e o delito do porte ilegal de arma. Este último ilícito funciona, na
verdade, como uma circunstância legal específica do primeiro, de forma
que, segundo o princípio invocado, o crime de menor gravidade é absor-
vido pelo de maior gravidade.
Os bens jurídicos tutelados pelo nosso direito são os mesmos para
os crimes de roubo qualificado pelo emprego de arma e porte ilegal de
arma, quais sejam: a integridade física, vida, saúde, liberdade individual,
patrimônio, posse, etc., havendo por conseguinte um conflito aparente de
normas, somente solucionado através da aplicação dos princípios da especialidade, subsidiariedade e consunção. Por estas razões é que não se
pode reconhecer a configuração do crime de roubo qualificado pelo uso
de arma em concurso material com o porte ilegal de arma, porque este já
faz parte daquele como circunstância legal específica.
Outrossim, não é dado atacarmos um só fato com a aplicação de
duas normas penais incriminadoras, pois se assim procedêssemos estaríamos a contrariar frontalmente o princípio maior do “ne bis in idem”.
No mérito, da análise aprofundada dos autos infere-se que não
sobejam dúvidas a cerca da participação do denunciado Cristiano Alves
Santos no delito de roubo perpetrado mediante o emprego de arma de
fogo em face das vítimas Jackson Paixão Santos e Gildo Tavares de Souza. É o que se extrai do próprio auto de prisão em flagrante delito, no
qual o denunciado confessa a prática delitógena, bem como das declarações das vítimas às fls. 109 usque ad 115.
Anotem-se as declarações do réu Cristiano Alves Santos quando
inquirido na cercania policial, às fls. 05, disse:
“... que, comprou a arma nas troca da Praça Cruz Vermelha, para
se defender, so que no dia de ontem pela primeira vez praticou o assalto
contra o cobrador e o motorista, ao chegar próximo as vitima disse que se
tratava de um assalto, dizendo ainda que se as vitima não quisesse entregar o que foi pedido, ia embora sem praticar o delito, satisfeito se tivesse
acontecido o delito ou não.(...) PERGUNTADO: Se escolhia as suas vítimas para praticar o assalto. RESPONDEU: Diz que não, pois viu as
vitimas trafegando, e foi ao encontro da mesma para aborda-las e roubar...”
Apesar de confessado a autoria do delito quando autuado em flagrante delito, o acusado Cristiano Alves Santos, em sede de qualificação e
interrogatório realizado neste Juízo, negou a participação no delito, fato
aliás que se tem observado como regra no processo penal, onde o acusado confessa o crime perante a Autoridade Policial e nega quando do
interrogatório judicial.
Não obstante a retratação feita, em nenhum momento relatou o
denunciado acerca de eventual coação sofrida na fase administrativa, o
que de logo e por conseqüência afasta a hipótese de aceitabilidade da
retratação. Neste sentido já se pronunciou o Egrégio Tribunal de Justiça
deste Estado, como adiante se vê:
“ Apelo da Justiça Pública. Furto. Confissão espontânea na polícia. Retratação em juízo. Prova. Reforma da decisão. A confissão espontânea na fase inquisitorial só não deve ser aceita quando retratada em
Juízo se restar demonstrado que tal confissão se deu por coação. Em
Juízo, apesar da retratação, afirmaram os réus que não sofreram nenhuma espécie de coação na polícia. Sendo as provas constantes dos autos
suficientes, o decreto condenatório se impõe. Apelo provido. Denúncia
procedente em parte. Decisão unânime.” (TJSE, Ac. unan. nº. 0794/93,
Rel. Des. Fernando Ribeiro Franco)
Igual entendimento é acolhido pelo Pretório Excelso, senão vejamos:
“De acordo com a orientação do STF, a confissão feita no inquérito policial, embora retratada em juízo tem valia, desde que não elidida
por quaisquer indícios ponderáveis, mas ao contrário, perfeitamente ajustável aos fatos apurados” (R.Crim. 1261 - FJU 2-4-76 pág.225)
Anotem-se, por constituírem verdadeira prova no processo penal,
as declarações da vítima Jackson Paixão Santos, às fls. 109, disse:
“...Disse que no dia do fato por volta da meio noite, após prestar
contas como cobrador da viação Graça, saiu do escritório na companhia
de se colega motorista de nome Gildo em direção a um ponto de ônibus
próximo. Disse que no percurso presenciou o denunciado passar em
sentido contrário lhe olhando para em seguida olhar para atras e mais
uma vez presenciar o denunciado retornar na sua direção passando normalmente pelo declarante para em seguida ele chegar na esquina parar e
após olhar para os lados com o intuito de ver se vinha alguma pessoa e
em seguida vir em sua direção quando pressentindo a iminência de um
assalto disse ao seu colega Gildo “Gildo vamos ser assaltado agora” para
em seguida o denunciado de revolver em punho anunciar o assalto pedindo ao declarante a sua bolsa. Disse que entregou normalmente esperando o denunciado lhe pedir outros objetos mas não pediu e como Gildo
fez algum movimento o denunciado ao olhar para Gildo foi surpreendido
pelo declarante que travou luta corporal com o denunciado inclusive ajudado por Gildo conseguindo tomar o revólver bem como a sua bolsa de
volta para em seguida o denunciado sair caminhando. Neste momento
com a presença de policiais civis e após informar ocorrido o policiais
saíram em perseguição culminando com a prisão do denunciado. Disse
que reconhecer o denunciado presente como sendo o autor do assalto.
Disse que não houve nenhum prejuízo patrimonial e que o fato não se
consumou porque reagiu ao assalto (...) Disse que a arma apreendida na
mão do denunciado era um revólver calibre 32...”
A vítima Gildo Tavares de Souza, às fls. 111, disse:
“...Disse que no dia do fato por volta da meia noite ao saírem do
escritório da Viação Graça em direção a um ponto de ônibus próximo,
foram surpreendidos pelo denunciado que passava nas imediações em
uma bicicleta quando o denunciado sacou de um revolver anunciando
que se tratava de um assalto pedindo ao seu colega cobrador Jackson a
bolsa do mesmo. Disse que no momento em que o denunciado pagava a
bolsa, olhou para trás tentando localizar o declarante para neste momento Jackson se agarrar com mesmo travando-lhe luta corporal enquanto o
declarante interviu ajudando Jackson conseguindo desarmar o denunciado para em seguida o mesmo evadir-se do local deixando a bicicleta quando o denunciado fugiu do local para logo em seguida ser preso por policiais civis. Disse que a arma utilizada pelo denunciado era um revolver
calibre 32. Disse que reconhece o denunciado presente como sendo o
assaltante...”
Não restam mais dúvidas a cerca do valor probante das palavras
do ofendido. Constituem elas prova como quaisquer daquelas outras
capituladas no Título VII do Código de Processo Penal, não havendo
também que se falar em hierarquia, devendo serem valoradas como são
as demais. Com mais razão, tem firmado a jurisprudência pátria que nos
crimes de roubo as palavras do ofendido constitui prova extremamente
valiosa, como bem diz o seguinte aresto:
“No campo probatório a palavra da vítima de um assalto é sumamente valiosa, pois, incidindo sobre proceder de desconhecidos, seu único interesse é apontar os verdadeiros culpados e narrar-lhes a atuação e
não acusar inocentes” (RT 484/320)
Por fim, em análise à prova dos autos, anote-se o depoimento da
testemunha Robson Feitosa Andrade, às fls. 113:
“Disse que no dia do fato encontrava-se de plantão quando foi
acionado pelo Copom através do ramal 190 para comparecer nas imediações da rua Serafim Bonfim no bairro Santos Dumont sob a alegação de
que ali teria ocorrido uma tentativa de assalto e que o assaltante já se
encontrava detido no local por populares. Disse que ao chegar no local
encontrou o denunciado detido para em seguida conduzir-lhe ate a Delegacia de Plantão onde ali foi lavrado auto de prisão em flagrante. Disse
que a confecção do flagrante de iniciou por volta da 1 hora da manhã e
só terminou por volta do meio dia tendo em vista o denunciado dificultar
a sua identificação(...) Disse que a arma foi entregue ao delegado plantonista...”
Como é cediço, no crime de roubo próprio a consumação se dá
tão somente quando a res furtiva é retirada da esfera de disponibilidade
do ofendido e fica em poder tranqüilo, ainda que passageiro, do agressor,
o que não ocorreu no caso em apreço, porquanto quando iniciada a execução do crime as vítimas, aproveitando-se de uma pequena distração do
denunciado, insurgiram-se contra o mesmo e tomaram-lhe de volta o
bem violentamente apoderado.
Inobstante não ter-se consumado o delito, no caso sub oculum,
extraindo-se a interpretação dos elementos contidos nos autos, e submetidos à acurado exame, confrontando fatos e contrastando circunstâncias,
daí converge a convicção de que o denunciado agiu com animus dolandi,
que no entender de Ada Pelegrini Grinover “... é a vontade livre e consciente de se praticar um ato que se sabe contrário a lei”.
Não constitui ser tarefa gravosa afirmar que na instrução criminal
a acusação intentada contra o denunciado ficou clara, dando suporte
satisfatório à prova coligida nos autos.
O conjunto probatório é uniforme em apontar como sendo o denunciado o responsável pela prática delitiva de roubo qualificado pelo
emprego de arma na sua modalidade tentada, vez que a prova colhida na
instrução criminal é escorreita e indene de dúvidas.
É cediço que para uma condenação é indispensável que as provas
se mostrem, nos autos, com nitidez e firmeza sem qualquer tergiversação, como faz espelhar o caso dos autos.
Ademais, registre-se, in oportuno tempore, os péssimos antecedentes do denunciado Cristiano Alves Santos, ora processado perante o Juízo
de Direito da 2ª Vara da Comarca de Nossa Senhora do Socorro/SE pelo
cometimento do crime de homicídio qualificado, já pronunciado para ser
submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, indivíduo dotado de um
alto grau de periculosidade, revelado, dentre outros tantos motivos, pela
frieza e normalidade com que pratica atos “anti-sociais” geradores quase
sempre de imensa repercussão e clamor público, abalando os alicerces da
segurança e tranqüilidade da nossa comunidade.
Frise-se ainda que o acusado possui uma má índole, com personalidade predisposta e voltada para o crime, cujos limites para por cobro às
suas condutas criminosas somente podem ser encontrados nas grandes
edificações dos cárceres.
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Ao lume do expositado, e por tudo mais do que dos autos consta,
sou por JULGAR PROCEDENTE, EM PARTE, a Pretensão Punitiva
Estatal para CONDENAR o denunciado CRISTIANO ALVES SANTOS, devidamente qualificado na peça de intróito, ao teor do que estabelece o contemplado no art. 157, § 2º, inciso I, do Código Penal, e em
consonância com o art. 387 do Código de Ritos, à pena-base de 07 (sete)
anos de reclusão, que reduzo de 06 (seis) meses face a circunstância atenuante prevista no art. 65, inciso I do Código Penal, ou seja, ser o denunciado menor de vinte e um anos na data do fato, perfazendo um total de
06 (seis) anos e 06 (seis) meses de reclusão; considerando ainda ter o
imputado confessado espontaneamente a autoria delitiva perante a autoridade policial, reconheço a atenuante genérica prevista no art. 65, inciso
III, alínea “d” do Código Penal, reduzo de 06 (seis) meses, perfazendo
um total de 06 (seis) anos de reclusão, que reduzo de 1/3 (um terço) em
virtude da causa geral de diminuição da pena previsto no parágrafo único
do art. 14 do Código Penal, perfazendo um total de 04 (quatro) anos de
reclusão, que acresço de um terço (1/3) face a circunstância especial de
aumento de pena prevista no inciso I, § 2º do art. 157 do Codex Repressivo, perfazendo um total de 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de
reclusão, que torno-a em definitiva por não existirem outras circunstâncias atenuantes ou agravantes, bem como de outras causas especiais de
diminuição ou aumento da pena, e 15 (quinze) dias multa, que fixo o
valor unitário em um trigésimo (1/30) do salário mínimo devidamente
atualizado, a ser cumprida em regime inicial semi-aberto, tudo em atenção
ao contemplado no art. 33, § 2o, alínea “b” do Código Penal, sopesadas as
apreciações dos artigos 49, 59 e 68, todos do mesmo Codex.
Deixo de proceder a substituição da pena privativa de liberdade
ora aplicada em restritivas de direito por encontrar óbice no que dispõe o
art. 44, incisos I e III do Código Penal.
Deixo ainda de expedir Mandado de Prisão contra o réu Cristiano
Alves Santos, tendo em vista o mesmo encontrar-se em estado de flagrância
delitiva desde 29-11-1998, ora recolhido à Casa de Detenção de Aracaju.
Proceda-se a detração da pena, em cumprimento ao disposto no
art. 42 do Código Penal.
Isento-o das custas processuais, por o réu encontrar-se sob o pallio
da lei.
Adscreva com trânsito em julgado o seu nome no Livro de Rol dos
Culpados, observando-se as cautelas do art. 5o, inciso LVII da Constituição Federal.
Expeçam-se informações estatísticas, e quando oportuno encaminhem-se os autos ao Juízo das Execuções Criminais, para o que dispõe a
Lei 7.210 de 11 de julho de 1984.
P.R.I.C.
Aracaju, 06 de outubro de 2001.
RUY PINHEIRO DA SILVA ,
Juiz de Direito
* Sentença mantida em grau de recurso.
ESTADO DE SERGIPE
9ª VARA CRIMINAL
Processo nº 047/99
Autora: Justiça Pública
Vítima: Andreza Silva dos Santos
Réu: Marcelino Augusto da Silva
Incursão: Art. 213, caput, c/c os arts. 224, alínea “a” e 71,
caput, todos do Código Penal, com a redação da Lei 8.072/90
Estupro Fícto - Inadmissibilidade de innocentia consilii - Presunção juris tantum - Flexibilidade na interpretação de norma legal - Ficção
jurídica conflitante com os padrões sociais e morais da atualidade - Interpretação casuística do art. 224, alínea “a”, do Código Penal - Inocorrência
de culpabilidade - Absolvição que se impõe -Aplicabilidade do perceptivo
386, inciso IV do Código de Ritos.
Vistos etc.
O Ministério Público, através de seu representante com exercício e
titularidade nesta Vara Criminal, instaurou a presente Ação Penal Pública
Incondicionada, com escopo nos argumentos fáticos e jurídicos delineados no procedimento administrativo de caráter inquisitório, contra
MARCELINO AUGUSTO DA SILVA, devidamente qualificado no in
fóllio, pela prática de fato típico definido no artigo 213, caput, do Código
Penal.
Irroga-lhe a persecutio criminis de fls. 02 ut 03 dos autos, a prática
do delito sob nomem juris de estupro, praticado contra a vítima Andreza
Silva dos Santos, ocorrido em abril de 1992.
Narra a peça denunciatória, que denunciado e vítima namoravam
na porta desta última com o consentimento da sua mãe, quando foram
flagrados dentro do veículo do denunciado, em posição suspeita, com as
vestes baixas.
A proemial foi recebida em 24.11.92, sendo designado o dia
03.12.92, para se proceder a audiência de qualificação e interrogatório.
Vieram aos autos no tríduo que se seguiu, as alegações preliminares subscritas pelo Bel. Everaldo Lopes Júnior, conforme se infere documento de fls. 70 ut 71 dos autos.
Na instrução criminal, em 05 (cinco) assentadas, foram ausculta-
das 07 (sete) testemunhas e 04 (quatro) declarantes, sendo 03 (três)
requeridas pelo elenco ministerial e 04 (quatro) requeridas pela defesa.
O prazo diligencial, enunciado no art. 499 do Código de Ritos,
transcorreu in albis.
Em alegações finais, entendeu o Dr. Promotor de Justiça, não ficarem comprovadas a tipicidade e via de conseqüência prejudicadas a
materialidade e autoria, concluindo pela absolvição do denunciado, face a
prova carreada aos autos não fornecer suporte satisfatório para uma condenação.
A ilustrada defesa, comungando com o pensamento do Dr. Promotor de Justiça, requer a absolvição do denunciado.
Os autos volveram-me conclusos para sentença.
Eis no essencial o relatório.
D
E
C
I
D
O
Visam os presentes autos de Ação Penal Pública Incondicionada,
na qual procura-se apurar a prática delitiva de estupro, praticado por
Marcelino Augusto da Silva, por ter infringido o que dispõe o art. 213,
caput, combinado com os arts. 224, alínea “a” e 71, caput, todos do
Código Penal, e com redação da Lei 8.072/90.
F U N D A M E N T O S D E F A T O E DE D I R E ITO
No caso sub ocullum, extraindo-se da interpretação dos elementos
contidos nos autos, e submetidos à acurado exame, confrontando fatos,
contrastando circunstâncias, daí converge a convicção de que o denunciado não agiu com animus dolandi.
No contraditório penal, ficou demonstrado ser a vítima, jovem
portadora de uma vida sexual ativa e experiente, afeita a lazer inadequado
para pessoa da sua idade.
No obstante, nada além destes fatos noticiam os autos, prova cabal, indispensável, para se presumir verdadeiras as informações trazidas
no bojo dos autos.
Na verdade ao término da instrução criminal, a acusação intentada contra o denunciado, ficou nebulosa, embaçada e sem suporte
satisfatório para uma condenação.
É cediço que para uma condenação é indispensável que a acusa-
ção se mostre nos autos com nitidez e firmeza, sem qualquer tergiversação. Por indícios, presunções ou suspeitas, ninguém pode ser condenado
em nosso sistema jurídico penal.
Perlustremos os elementos probatórios: prova direta, indícios e
circunstâncias.
Anote-se as declarações de Nelma Maria da Silva Santos, às fls. 91
dos autos, disse:
“... que conheceu a vítima e que esta estava acompanhada de sua
mãe, quando foi conversar com a mãe do denunciado, e que estavam
presentes a esta conversa um irmão do denunciado e uma empregada
doméstica de nome Gilza, quando a mãe da vítima foi dar ciência dos
fatos a mãe do denunciado...que a mãe do denunciado perguntou a vítima
Andreza, se antes de namorar seu filho já teria sido desvirginada por
outro namorado e que na época este era noivo de outra moça...quando a
vítima Andreza confirmou para a mãe do denunciado dizendo que na
verdade teria sido desvirginada por outro namorado de nome Ricardo...que
a mãe da vítima ficou surpresa, retirando-se da casa do denunciado e
batendo na sua filha, que entraram no fusca, continuando a mãe da vítima a agredi-la...disse ainda que as últimas palavras do companheiro da
mãe da vítima foram: “Vamos embora, que aqui não temos mais nada
para acertar...”.
Gilza Pereira Santos, disse às fls. 99 dos autos:
“...era faxineira na casa da mãe do denunciado, quando certa feita,
a vítima acompanhada de sua mãe, e o companheiro desta, compareceram àquela residência para informar a dona Marili que o seu filho
Marcelino teria tirado a sua filha Andreza...disse que dona Marili interrogou a vítima , para que Andreza dissesse a verdade e esta respondeu
dizendo que na verdade não foi Marcelino quem a desvirginou e sim teria
sido Ricardo quem a desvirginou...disse ainda que o companheiro da mãe
da vítima pediu desculpas a Marcelino e aos presentes, chamando a sua
companheira, mãe da vítima, e esta, pare irem embora, quando a mãe da
vítima retrucando disse para Andreza - “Vamos embora vagabunda, puta
safada.”...disse que o fato ocorreu na sala da casa do denunciado...disse
que neste momento a vítima se fazia acompanhar de sua mãe e o companheiro desta...disse que Marcelino nunca propôs casamento para a vítima...”.
Karina Muhler Drummond Pinto, às fls. 104 dos autos, disse:
“...conhece denunciado e vítima, e sabe que Marcelino namorava
com Andreza e que depois de um certo tempo soube pela própria vítima,
que teriam terminado o namoro...que por várias vezes Andreza ia a casa
da depoente, que fica próxima ao super mercado, onde trabalha o denunciado, para marcar encontro com o mesmo, e que depois de determinado
tempo o denunciado já não demonstrava mais interesse em se encontrar
com Andreza, mas por insistência dela ainda se encontravam...alega que
Andreza se queixou de que Marcelino não mais lhe procurava e que a
depoente lhe disse que isto estava acontecendo pelo seu comportamento
vulgar...disse ainda que Andreza lhe confessou que antes de namorar
Marcelino já teria sido desvirginada por um rapaz de nome Ricardo, que
era quem organizava uma quadrilha de São João, e que Ricardo depois
veio a ser proprietário de um colégio de nome Bom Pastor, situado no
Bairro 18 do Forte...disse que Andreza apesar da idade era uma moça
experiente e quando manteve relação sexual com Marcelino foi por sua
própria vontade e nunca iludida...que o comportamento de Marcelino
como homem, em relação às moças era normal e que a fama de Andreza
no Bairro era de namoradeira...que Andreza, quando estava namorando
com Marcelino, certa feita, próximo a Lavanderia Chineza, no Bairro
onde moram, flagrou Andreza se beijando com um rapaz em uma bicicleta, e que no dia seguinte perguntou a Andreza porque ela namorando
com Marcelino estava fazendo aquilo quando ela respondeu que estava
fazendo aquilo com aquele rapaz para esquecer Marcelino...disse que este
fato ocorreu por volta das 20:00 horas e que o local é calmo e pouco
iluminado...que Andreza se encontrava com Ricardo quando ia buscar o
seu irmão no colégio...disse que certa feita, por questão de ciúme e em
uma festa, Marcelino foi embora querendo levar Andreza para casa, e
esta não quis ir e com a ausência de Marcelino a mãe de Andreza lhe
orientou para que procurasse esquecer Marcelino e conhecesse outros
namorados e que nesta noite, Andreza se fez acompanhar de outro homem na festa e que dançaram a noite toda para muitas vezes Andreza e
este homem se ausentarem e voltarem para a festa...”
CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS
Preleciona o mestre Heleno Cláudio Fragoso, que: “estupro é a
posse por força ou grave ameaça, supondo dissenso sincero e positivo da
vítima, não bastando recusa meramente verbal ou oposição passiva e
inerte. É o constrangimento à cópula normal. Para que se configure o
crime de estupro há de manifestar-se o dissenso, que é a oposição da
vítima e deve ser sincera e positiva, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta a oposição meramente simbólica, por simples gritos ou
passiva e inerte. A grave ameaça deve referir-se a determinado dano
material ou moral, considerável, capaz de inibir a vontade da vítima. A
ameaça e a violência precisam ser reais e graves não apenas presumidas”.
Se a vítima alega, sem qualquer lesão, ter sido estuprada por um só
homem, que se utilizou apenas de força física, suas declarações devem
ser recebidas com reserva.
No caso de violência ficta, tanto a doutrina como na jurisprudência, a tentativa é emprestar valor relativo e não absoluto à presunção.
Assim a presunção pode ceder, por exemplo, se a vítima já era corrompida, aparentava idade superior pelo seu desenvolvimento.
Portanto a presunção legal, contida no art. 224 do Código Penal
não é absoluta, mas relativa.
Segundo o magistério de Carnelutti, “o Magistrado não é obrigado
em todo e qualquer caso aplicar as conseqüências jurídicas do fato presumido, pela simples verificação do fato indiciante, e estabelecer assim uma
equivalência processual entre a prova do fato, sobre a qual a presunção se
baseia, e o fato presumido, mas pode admitir, no caso particular, o uso de
todo o meio de prova, para verificar a ausência de vinculação entre os
dois fatos. Assim, a validade de presunção está condicionada à falta de
prova contrária”.
Num mundo de contínuas, profundas e radicais transformações,
não se poderia, realmente, esperar que o Direito Penal, em matéria sexual, permanecesse numa postura de total indiferença e que continuasse a
adotar conceitos (ou preconceitos?) já esgotados de significado. Teve,
como é obvio, de adotar novas posições, de passar por um processo de
recomposição e de reavaliação.
Nos dias hodiernos, o Juiz, tem a obrigação de atentar e observar
o que acontece em termos de mudanças e transformações da realidade
social, e a partir daí, conjugar fatos e lei.
No campo da liberdade sexual, é de evidência solar, que muita
coisa mudou, pois o mundo e a sociedade mudaram.
Entre os anos de 1940 (Publicação do Código Penal) e 1991 (primeira década final do século), muita coisa mudou. Vários acontecimentos transformaram o mundo. Guerras e conflitos localizados, mísseis,
satélites, computadores de alta definição, etc.
No campo das ciências humanas, a medicina avançou rapidamente, até a fecundação in vitro.
A mulher, a duras penas, conseguiu crescer na sociedade,
dimensionando o seu espaço.
Ante tantas mudanças, o tema sexo, evidentemente não poderia
continuar sendo tratado da mesma forma: um assunto proibido.
Sexo, que para alguns, ainda continua um assunto proibido, é hoje
uma realidade presente na sociedade, presente na vida das pessoas assunto que de um tempo para cá, passou a ser tratado com a maior e mais
ampla liberdade, porque, é claro, se tudo muda, a visão das pessoas sobre
tal tema também mudou. De tabu, tornou-se matéria curricular em algumas escolas. A família refere-se ao assunto sem tanto receio. Na mídia é
objeto de amplas discussões.
Verifica-se que é neste mundo transformado que se aplica ainda o
mesmo Direito Penal de 50 (cinqüenta) anos atrás, sob o pretexto de
proteger a liberdade sexual das pessoas.
Determinar o conceito do que seja liberdade sexual das pessoas,
não constitui tarefa gravosa. A dificuldade apresenta-se, em verdade, no
momento de fixar à época do fato em que a auto-determinação sexual
pode ser exercitada livremente.
A conquista da liberdade sexual é um processo dinâmico, que pode
sem dúvida, perfazer-se bem antes do limitar etário estabelecido pelo
legislador.
As leis brasileiras filiaram-se à corrente que relaciona a capacidade
de auto-determinação sexual à verificação de um determinado marco
etário. Superado o limite da idade, a pessoa tem a possibilidade de, livremente, exercer a sua sexualidade. Antes de tal faixa, mesmo tendo conhecimento a respeito de sua sexualidade, a vítima, não tem disponibilidade
alguma sobre o próprio corpo, nem condições pessoais para repelir propostas ou agressões que lhe são endereçadas nesta esfera.
Neste caso, seu crescimento para a prática sexual, é inválido, e se
presume, por lei, que o agente atuou com violência.
O Código Penal de 1890, em seu art. 772, presumiu em relação ao
crime de natureza sexual, o cometimento com violência, “sempre que a
pessoa ofendida for menor de 16 anos”. Cinqüenta anos depois, o Código Penal de 1940, reduziu este limite etário, estatuindo a presunção de
violência só teria cabimento nos crimes sexuais, se a vítima tivesse idade
inferior a 14 anos (art. 224, alínea “a” do Código Penal).
É de se indagar sobre o que teria considerado o legislador de 1940,
para efetivar a redução do limite etário da ofendida, passando a fixá-lo
em 14 anos de idade, para a partir daí considerar que ela poderia dispor
livremente de seu corpo para exercer a sua capacidade sexual?
A resposta para estes limites ou redução, vamos encontrar na Exposição de Motivos ao Projeto de 1940, no seu item 70, de forma explícita: “com a redução do limite de idade, o projeto atende à evidência de
um fato social contemporâneo, ou seja, a precocidade no conhecimento
dos fatos sociais. O fundamento da ficção legal da violência no caso dos
adolescentes é a innocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais de modo que não se pode
dar valor algum ao seu conhecimento”.
Por estas razões o estupro por via de violência presumida, não tem
caráter absoluto, ou seja, juris et de jure, admite portanto prova em contrário, ou seja, juris tantum, contudo cabe ao denunciado o ônus de provar que a menor vítima tinha discernimento e vida pregressa corrompida
o bastante para elidi-la.
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A vítima dizendo-se apaixonada pelo denunciado, alegou ter mantido relações sexuais com o mesmo, de livre e espontânea vontade, mas
informa que quem a teria desvirginado não teria sido o denunciado
Marcelino e sim Ricardo, fato este ocorrido muito antes de conhecer
Marcelino.
O que a lei penal tutela é a inocência, a ingenuidade, a inexperiência
da menor, que não lhe permite conhecer a importância do ato para a qual
é solicitada. Sem este conhecimento, não é lícito admitir um consentimento válido que estes pressupostos de qualidade não são encontrados
como norma de conduta na pessoa da vítima.
Andreza não é ingênua, é como todas as jovens da sua idade, sabem sobre sexo, vida conjugal elegendo os valores com os quais convivem, é fora de dúvida a ânsia de libertar-se da autoridade dos pais, as
sujeição às normas comportamentais ditadas em casa, o desejo de autoafirmação, a busca de experiências, aventuras, tudo isso fruto de um
crescimento acelerado que se nota nos adolescentes de hoje.
“ O casamento tradicional já não fascina, e o meio social tolera e
aceita as uniões de fato. Assim ocorre com os artistas das novelas, hoje
com um amanhã com outro. Caem tabus, desaparecem fronteiras, é
proibido proibir, o desafio, o risco, a aventura, tudo em escala vertiginosa.” in verbis: Ac da 3ª C Cr do TJRS - Acr 692.138.258 - Rel: Des.
Moacir Danilo Rodrigues - j em 16.03.93.
Em decorrência destes fatos, constatou-se que partiu da vítima a
iniciativa ou a provocação do ato sexual, e que ela aderiu prontamente ao
convite de caráter sexual; constitui um verdadeiro contra-senso entender
que sofreu uma violência.
Considera-se, portanto, a presunção de violência mais uma vez
relativa e não lesiona o texto legal e permite colocar o Juiz em sintonia
com a realidade em que está inserido.
O Direito Penal é uma ciência dinâmica que evolui no tempo e no
espaço e não opera por via de conjecturas.
Ispo facto, sou por JULGAR IMPROCEDENTE a Pretensão
Punitiva Estatal, e ABSOLVER o denunciado Marcelino Augusto da Silva, alhures qualificado nos autos, com escopo no art. 386, inciso IV, do
Código de Processo Penal.
Dê-se baixa na distribuição.
P.R.I.C.
Aracaju, 15 de setembro de 2001.
RUY PINHEIRO DA SILVA ,
Juiz de Direito
* Sentença mantida em grau de recurso.
ESTADO DE SERGIPE
9ª VARA CRIMINAL
PROCESSO Nº 200220900144
REQUERENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
REPRESENTADOS: ANDRÉ DE MELO BARROS
COSME DOS SANTOS ANDRADE
EDVÂNIO DOS SANTOS ANDRADE
REPRESENTAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA
Vistos e bem examinados.
O Ministério Público, através do Promotor de Justiça do Patrimônio
Público, instaurou Ação Penal Pública Incondicionada, com escopo nos
argumentos fáticos e jurídicos delineados no Inquérito Civil e Ação Civil
Pública, em face dos denunciados André de Melo Barros, José Balbino
dos Santos Neto, Nailton dos Santos Andrade, Cosme dos Santos Andrade,
Edvânio dos Santos Andrade, Sérgio de Paula Amaral, Neilton Costa da
Silva e Hugo Amaral Freitas, todos devidamente qualificados na peça de
intróito, pela prática de fatos típicos definidos na legislação penal e constantes da denúncia, requerendo as Custódias Provisórias somente dos
denunciados André de Melo Barros, Cosme dos Santos Andrade e Edvânio
dos Santos Andrade, sob a alegação de que os representados encontramse envolvidos em atos de improbidade administrativa junto à SECOM Secretária da Comunicação Social - em benefício de empresas privadas
constituídas de forma fraudulenta pelo representado André de Melo Barros, tendo como sujeito passivo o Estado de Sergipe. Fundamenta ainda a
pretensão requerida para garantir a aplicação da lei penal, tendo em vista
que os representados estão fora da Comarca de Aracaju, em local incerto
e não sabido.
Colaciona à denúncia os documentos avistáveis às fls. 18 ad usque
466.
Da Prisão Preventiva
Para a concessão de pedido de Prisão Preventiva, mister se faz a
ocorrência dos pressupostos e fundamentos necessários à aplicação desta
Medida Cautelar, quais sejam, fumus boni juris e o periculum in mora.
Quanto ao primeiro verifica-se a sua ocorrência quando há prova de
existência do crime e indícios suficientes da autoria. Com relação ao segundo há de se verificar a garantia da ordem pública, da ordem econômi-
ca, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei
penal, de modo que, existindo apenas um deles, opera-se a existência do
periculum in mora.
A prisão preventiva, strictu sensu, é a medida cautelar, constituída
da privação de liberdade do acusado e decretada pelo juiz durante o
inquérito policial ou instrução criminal diante da existência dos pressupostos legais, a fim de assegurar os interesses sociais de segurança. É
considerada um mal necessário, pois suprime a liberdade do acusado antes de uma sentença condenatória transitada em julgado, mas tem por
objetivo a garantia da ordem pública e preservação da instrução criminal
e a fiel execução da pena. A prisão cautelar é uma exceção ao Princípio
do Estado da Inocência e só se justifica em situações específicas, em
casos especiais em que a custódia provisória seja indispensável. Por estas
razões, o ordenamento processual penal deixou de prever como obrigatória a prisão em determinadas situações, para ser uma medida facultativa,
devendo ser aplicada apenas quando necessária, segundo os requisitos
estabelecidos nas normas processuais.
A prisão preventiva tem características rebus sic stantibus e poderá ser decretada em qualquer fase da persecuto criminis, desde que encontrem-se presentes os requisitos autorizadores elencados no art. 312
do Código de Ritos.
Do Princípio do Estado da Inocência
A Carta Magna em vigor e promulgada em 05 de outubro de
1988, traz em seu Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais,
entre outros, os direitos e deveres individuais e coletivos elencados no art.
5º, incisos I a LXXVII e os parágrafos 1º e 2º, mais precisamente no
inciso LVII, onde assegura que ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória, que repousa como
direito-garantia fundamental o Princípio do Estado da Inocência.
A ordem constitucional ao privilegiar o Estado da Inocência, busca
proteger um dos bens tutelados mais caros: a liberdade, em especial a
física, que é alcançada pela tutela penal como necessidade justificada somente por via de sentença penal condenatória.
Da garantia da aplicação da lei penal
No caso sob exame, extraindo-se da análise dos elementos contidos nos autos e submetidos a acurado exame, o ilustre Representante do
Parquet, fundamenta a representação das Custódias Provisórias dos denunciados André de Melo Barros, Cosme dos Santos Andrade e Edvânio
dos Santos Andrade, no tocante apenas a garantia da aplicação lei penal,
sob a alegação de que os representados estão fora da Comarca de Aracaju,
em local incerto e não sabido.
In oportuno tempore, não é o que reflete os autos, e que quando
da instauração do Inquérito Civil Público, o representante do Ministério
Público expediu Notificação tombada sob o nº 83/2001, com a finalidade de convocar o representado André de Melo Barros, para prestar esclarecimentos, designando a audiência para o dia 28.11.2001, tendo o mesmo comparecido e prestado as declarações insertas às fls. 461 ut 464,
declinando, inclusive, o seu endereço residencial. Ademais, verifica-se
que o ora representado, através de advogado, informou em Juízo o seu
atual endereço conforme o contido na petição de fls. 468, subscrita pelo
Dr. Evaldo Fernandes Campos.
De referência a Notificação tombada sob o nº 040/2002, notificando o representado Cosme dos Santos Andrade, com a finalidade suso
mencionada, constata-se na certidão aposta, que o irmão do ora representado informa por telefone que o mesmo atualmente está residindo no
Estado da Bahia, sem, contudo informar o endereço do mesmo.
Por último, quanto a notificação tombada sob o nº 040-A/2002,
notificando o representado Edvânio dos Santos Andrade, prima facie,
verifica-se que pela ausência de certidão de quem competente, a mesma
não foi regularmente processada, vez que não informa se o representado
foi ou não notificado para atender o chamamento do Órgão Promotorial.
Por estas razões e não outras, e à luz dos elementos contidos na
representação increpada na denúncia, observa-se que quanto aos motivos que permeiam a Custódia Provisória não se subsumem as condições
previstas no art. 312, do Código de Processo Penal, haja vista que o
representado André de Melo Barros possui endereço conhecido, e nunca
se furtou ao distrito da culpa, inclusive, atendendo a Notificação n.º 83/
2001 expedida pelo Órgão Promotorial, na fase do Inquérito Civil Público, e na presente Ação Civil Pública, encontra-se regularmente representado por advogado legalmente constituído, declinando o seu novo endereço. Quanto aos demais representados, as notificações, por si só, não autorizam o decreto das Custódias Provisórias dos representados Cosme dos
Santos Andrade e Edvânio dos Santos Andrade, vez que as devidas notificações não foram regularmente processadas, face a ausência de diligências e certidões.
Ao lume do expositado, e em atenção ao comando do art. 5º, incisos
LIV e LV, da Constituição Federal, que incorporou o princípio do Devido
Processo Legal - due process of law - o qual configura dupla proteção ao
indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de
liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de
condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa, consagrando o
direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção
ampla de prova de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos
recursos, à decisão imutável e à revelia criminal.
O devido processo legal tem como corolários os princípios da
Ampla Defesa e o do Contraditório, que deverão ser assegurados aos
litigantes, em processo judicial, bem como aos acusados em geral, conforme texto constitucional esculpido na inteligência do art. 5º, inciso LV, da
Constituição Federal.
Quanto a ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado
ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os
elementos a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se se
entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização
da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo - par conditio
- pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito pela defesa
de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente.
Preleciona Nelson Nery Júnior, que o princípio do Contraditório,
além de fundamentalmente constituir-se em manifestação ao princípio do
Estado de Direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e do
direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o
contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de
ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do Contraditório.
Ipso facto, indefiro o pedido das Custódias Provisórias requeridas,
face a ausência de substrato legal no tocante a garantia da aplicação da lei
penal.
Recebo a denúncia por preencher os requisitos técnicos legais e via
de conseqüência defiro as diligências requeridas constantes na exordial.
Intime-se. Cumpra-se.
Aracaju, 05 de junho de 2002.
RUY PINHEIRO DA SILVA ,
Juiz de Direito
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Revista da Esmese 3 - Diário da Justiça de Sergipe