Televisão: simulação em tempo real e sedução em
tempo integral
Nísia Martins do Rosário1
Se, por um lado, escolher o tema media para uma discussão voltada à cientificidade leva, por
vezes, a cair no comum, ou, pelo menos, esbarrar nele, por outro lado, esse tema parece sempre
inesgotável. A media e sua inextricável relação com a cultura de massa é tema de diversos estudos,
tanto mais quando o recorte é feito sobre a televisão. Se tanto se fala e estuda, em contrapartida,
pouco se tem como definitivo nesse campo, principalmente pelo fato de que a evolução dos media,
em termos de linguagem e de tecnologia, é muito mais rápida do que a construção de um pensamento
científico sobre eles.
A tentativa desse artigo é, na passagem por alguns aspectos já discutidos no que se refere a
televisão e cultura de massa, fazer um aporte no domínio da sedução. A partir de uma incursão pelos
meandros do encantamento, da aparência, do desejo, da fantasia, do imaginário, busca-se desvendar
algumas das estratégias e mecanismos da sedução utilizados pela televisão para mediar suas
mensagens, persuadir, sobrepor máscaras sobre a informação, encantar os telespectadores, ativar
mecanismos emocionais-afetivos. Como se poderá observar no decorrer do texto, não se busca
apresentar a sedução apenas na sua forma mais aparente - ligada ao erotismo e a sensualidade -, mas
em seus mais intrincados aspectos.
Antes, porém, de dar início a essa incursão será necessário que se desnudem outros
elementos importantes como o próprio conceito de sedução e a estrutura de sustentação da
cultura de massa e da comunicação na contemporaneidade.
Os sentidos atribuídos a sedução manifestam-se, muitas vezes, de forma imprecisa,
confusa e contraditória. Por isso, talvez, o mais conveniente seja, inicialmente, reportar-se às
suas origens etimológicas. Sedução vem do latim seduco (se, duco). O radical duco (ducere),
em sua acepção mais geral significa conduzir, comandar, ir a frente2. O prefixo 'se' indica
separação, afastamento, divisão, partilha, desvio. Assim, sedução, inicialmente, designa a
divisão ou a partilha de comando, de condução. A sedução é domínio do universo simbólico, é
jogo, é desafio de vida e de morte, construído sobre aparências. A sedução oferece gozo,
fantasia, poder e, em troca, captura o discurso que se torna cúmplice desse encantamento.
Buscando despir a sedução de sentimos moralistas ou profanos a ela atribuídos através
dos tempos, apresenta-se uma definição enciclopédica que se aproxima da forma como o termo
vai ser tratado:
Acción sugestiva ejercida por una persona en el ánimo de otra, para determinar su conducta
en la dirección que se propone. La seducción, por conseguiente, dice Bernaldo de Quirós, es
un método de conducta aplicado a cada momento en todos los órdenes de la vida, unas veces
con plena sinceridad en el proposito y en el fin, outra, adulterada por el engaño.3
Por seu lado, a comunicação é, originalmente, comum ação, comunhão, participação,
processo de troca e de partilha, intercâmbio simbólico, portanto. No contexto dos media,
entretanto, o termo comunicação assume outro perfil, tendo por objetivos, fundamentalmente
informar, persuadir, entreter e educar. A sedução, por conter elementos da gênese da
comunicação, consegue perpassar essas quatro esferas de ação dos media, adequando seus
mecanismos e estratégias de acordo com as necessidade que se apresentam. Assim, pode tanto
partilhar, argumentar, entreter, ensinar, quanto manipular, ludibriar e enganar, desde que a
manisfestação desses modos de ação não se constitua em uma forma clara de controle e/ou
imposição, mas, sim, como convencimento.
Baseada na estrutura do jogo4, a sedução funda sua forma de convencimento na paixão, no
1
Mestre em Ciências da Comunicação pela UNISINOS. Doutoranda em Comunicação Social pela PUCRS.
FERREIRA, Antonio Gomes. Dicionário de latim português. Porto: Porto Edltora, p 404.
3
Enciclopédia Universal Ilustrada. 1927, p.1414.
4
A estrutura de jogo aqui mencionada baseia-se em Greimas e Baudrillard. O jogo, segundo Greimas, evoca
um modelo de processo comunicativo ao colocar em ação dois sujeitos interagentes que buscam construir um
diálogo intersubjetivo e exercem a liberdade de entrar ou não no jogo. A opção pelo ingresso pressupõe a
concordância com as regras e a aceitação de que não se é mais livre para sair do jogo a não ser no seu limite: a
2
interesse, no ímpeto, apresentando como finalidade o prazer, pressupondo a interação entre os
sujeitos, bem como um discurso dialógico Dessa forma, a sedução se constrói na comunicação tendo
a função de encantar. Através do simbólico, do artificial, da reversibilidade, do ritual, do desafio, do
jogo de vida e morte, a sedução empresta a função encantatória à comunicação, conseguindo
envolver as demais funções da media, empregando, para isso, diversas estratégias e mecanismos.
Baudrillard5 defende que a sedução opõe-se à produção na sua capacidade de reversibilidade,
de inversão de posição, de reconstrução de sentidos. É, também, característica marcante da sedução
oferecer, inicialmente, igualdade de condições aos sujeitos - inserindo-se, assim, perfeitamente no
sistema do jogo - e, só dessa forma, aceitar a sujeição num processo de auto-sujeição e/ou
reciprocidade. A sedução joga com a identificação e a projeção e requer, portanto, reflexividade e
reciprocidade, permitindo que o sujeito se reflita no outro, encontrando nele partes de si mesmo.
Nessa via, convive com o narcisismo. A sedução se constrói, também, pelas diferenças, considerando a identidade impossível para não se esvanecer. Mas é na fantasia que se realiza o modo de ser da
sedução, por aquela estar em oposição à razão e permitir que a fronteira da realidade seja
ultrapassada. A fantasia consegue preencher certos vazios do sujeito. Por fim, a sedução é da ordem
do feminino, porque é o domínio do universo da aparência, espaço de simulação, de reversibilidade
e de ambigüidade. O levantamento dessas características da sedução parece estar remetendo sempre
à televisão.
Compreender o espaço ocupado pela sedução no contexto dos media contemporâneos requer,
também, uma incursão em alguns dos aspectos da cultura de massa. O primeiro deles remete a uma
questão histórica. O advento da industrialização induziu o ser humano a um atrelamento à técnica e à
tecnologia. O homem moderno depositou a verdade e, conseqüentemente, a felicidade na busca do
progresso. A ascensão do capitalismo trouxe consigo um ser humano mais autônomo, mas, ainda,
transitando entre a liberdade e a coação; um ser colocado a serviço da economia e da produção.
Vividos os primeiros sabores e dissabores do progresso, começa um novo questionamento
sobre a verdade e a felicidade, e, portanto, a se processar um novo momento histórico. Apesar de
ainda utilizar-se de mecanismos da produção, a sociedade contemporânea começa a assumir outra
configuração. Aplica a regra da liberação do fluxo do desejo para atingir o consumo e a felicidade. O
espaço social contemporâneo estrutura-se sobre um pensamento voltado para o imaginário, tendo no
simbólico sua principal fonte de significação. A ideia de busca da felicidade toma corpo, torna-se
importante, e encontra seu núcleo de funcionamento no imaginário. Morin observa, que: “A
felicidade é, efetivamente, a religião do indivíduo moderno, tão ilusória quanto todas as religiões”6.
Nesse contexto, o racional perde espaço. O imaginário, o mítico, o afetual começam a brotar e dão
frutos. Prato cheio para o domínio da sedução.
A ciência, tão voltada para o racional - gerador da produção por excelência -, parece ter tido
certa resistência de admitir, no seu domínio, elementos do domínio da sedução. Contribuições
importantes foram dadas à comunicação por aqueles pensadores que deixaram de subestimar a
importância do imaginário, do mitológico, do afetual, do lúdico na cultura contemporânea. Entre os
teóricos que abriram espaço em seus estudos para esses elementos estão Morin, Maffesoli e
Baudrillard.
Como ser social, o homem cria, recria, insere-se e adapta-se ao seu meio, encontra uma forma
de encaixar-se, de vivenciar e de unir-se ao social e ao que ele lhe oferece. O social, hoje, é
dominado pelo imaginal (Maffesoli), existindo numa relação de sustentação bipolar ligada ao real.
Segundo Baudrillard7, o real, para ser real, tem que estar envolto no imaginário.
Ora, o discurso sedutor busca sua inspiração no imaginário para atuar no real e vice-versa. O
que faz a media senão buscar, na fonte da sedução, a inspiração para os seus discursos? Observe-se
que o discurso sedutor opera sobre o reverso, sobre o mascaramento do sentido e é cúmplice de um
encantamento próprio: da aparência no reverso da autenticidade, da forma no reverso do conteúdo,
da estética no reverso da ética. Esse é também o material do discurso televisivo - a priori em todos
os seus gêneros - que toma o signo como meio de concretizar-se. Os signos, afinal, estão ligados à
aparência, à sedução Os signos só se constituem ao separarem-se do objeto, ao se separarem do
original - só assim é signo de alguma coisa. Dessa maneira, ele pode seduzir porque, na verdade, ele
é a aparência daquilo que representa; desviou-se do objeto original para constituir-se como signo e,
nesse processo, se reconstruiu, permitindo a abertura do leque de sentidos.
A partir desse aporte nos domínios da cultura de massa e no reino da sedução, é possível
descrever algumas das estratégias utilizadas pelo discurso televisivo.
De forma geral, a televisão começa a seduzir através de um convite. Um convite para ser vista,
vitória ou a derrota. Em síntese, a estrutura do jogo e a do convencimento, pressupõe a transitividade e a
lateralidade nas relações, a aceitação de regras e a igualdade inicial de condições para os parceiros. GREIMAS,
Actes Semióticus. Paris, documento II, n 13, 1980 e BAUDRILLARD.
5
BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991.
6
MORIN, E. Cultura de massa no século XX – necrose. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.129.
7
BAUDRILLARD, Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.
observada, apreciada, aplaudida, até mesmo criticada. E, como quem convida tem algo a oferecer, é
preciso que ela se utilize dos recursos da tentação, da exibição, da aposta, do prazer, do desejo. O
êxito do convite vale-se muito do fascínio do telespectador pelo jogo televisivo, bem como da
capacidade de convencimento do emissor-media. O primeiro passo para manter o telespectador nesse
estado de encantamento é não mostrar claramente suas intenções, blefando quando necessário,
permitindo que, de certa forma, ele construa as significações que lhe aprouverem.
Assim, é possível afirmar que a televisão constrói o seu discurso num processo de significação
engendrado ao imaginário do espectador, utilizando-se de todos os componentes desse imaginário:
fantasia, encantamento, desejos, subjetividade, anseios, medos, .... Através desse mecanismo é
possível criar uma relação de encantamento com o telespectador, uma relação tão estreita que a
televisão perpassa a vida e a vida perpassa a televisão. Um se dissolve no outro e ambos se
reconstroem.
Uma forte estratégia de sedução utilizada pelos textos televisivos é a simulação,
consubstanciada não como representação, mas como simulacro, como aparência sem realidade. Essa
estratégia encanta e presenteia o espectador com o sonho e com a fantasia. A simulação permite
tudo, ou quase tudo. Através da violação da fronteira da realidade é possível mais do que
representar, do que "fazer-de-conta", é possível quase vivenciar aquilo que não tem existência e,
dessa maneira, estimular o espectador a recorrer à sua capacidade de fantasiar, de preencher vazios
de sentidos com prazeres; de preencher os tristes vazios do mundo com sonhos encantados.
A telenovela domina bem essa estratégia ao fingir ter o que não tem a realidade. Ela procura
fazer crer que se sustenta no real, que tira suas estórias da vida cotidiana. O paradoxal é que o
telespectador finge acreditar nisso para não perder a possibilidade de se entregar à simulação. A
regra mais importante, aqui, é não contar a realidade "nua e crua", ninguém quer saber da vida
como ela é, todos querem sonhos, fantasias, desafios e final feliz. Emissor e receptor vivenciam,
dessa forma, os mecanismos do jogo.
Mais do que vencer o jogo, entretanto, é importante mantê-lo em andamento, tendo em
vista, principalmente, que o fim do jogo é a morte da sedução. É por esse mesmo motivo que as
novelas se sujeitam a mudar seu andamento, a matar personagens que não agradam, a alterar o
seu final, a engendrar novas tramas. Nesse sentido, a estória contada em capítulos, dia após dia,
permite que esse jogo tenha continuidade e não se esgote tão rapidamente, ao mesmo tempo que
permite sentir as reações do parceiro de jogo - o telespectador - e efetuar o próximo lance de
acordo com as reações deste.
Na telenovela a estratégia da simulação funciona tão bem porque o espectador, mesmo
sabendo que se trata de ficção, consegue realizar, através da trama, ligações com o real e, assim,
sentindo-se seguro, entrega-se a fantasia que lhe é oferecida. Essa segurança do telespectador
tem, ainda, outro aporte, ele sabe que a ficção televisiva não se caracteriza por apresentar a
tragédia. O imaginário contemporâneo acostumou-se ao happy end8, uma vez que ele é a
representação daquilo que é buscado infinitamente pelo homem: a felicidade que não se
dissolve. O happy end é capaz de completar positivamente os vazios presenteistas do
telespectador. Não importa o quanto sofram os personagens, tem-se o reconforto de que, no
final, tudo acaba bem para aquele que é bom.
Não apenas a telenovela utiliza-se da estratégia da simulação, é possível vislumbrar no
telejornal indícios bem claros dela. Uma análise mais aprofundada do modo como são
construídas as noticias, leva ao entendimento de que o que se apresenta para o telespectador
como realidade dos fatos, em verdade, é uma versão deles e, cada fato, comporta diversas
versões e diversas interpretações. Assim, a notícia se constrói sobre a simulação, mas não pode
perder jamais sua aparência de verdade. Baudrillard diz que:
(...) estamos numa lógica da simulação, que já nada tem a ver com uma lógica dos fatos e
uma ordem das razões (...) Os fatos já não têm trajetória própria, nascem na intersecção dos
modelos, um único fato pode ser engendrado por todos os modelos ao mesmo tempo. Esta
antecipação, esta precessão, este curto-circuito, esta confusão do facto com o seu modelo (...)
é sempre ela que dá lugar a todas as interpretações possíveis, mesmo as mais contraditórias todas verdadeiras, no sentido em que a sua verdade é a de se trocarem, à semelhança dos
modelos dos quais procedem, num ciclo generalizado.9
Por outro lado, o jogo sedutor precisa valer-se de um efeito de realidade capaz de dar à
simulação a possibilidade de existir e, assim, motivar o espectador a entregar-se a ela. A estratégia
do efeito de realidade é sutil, aplica no processo sedutor pequenas ou grandes doses de realismo, de
naturalidade, de lei para compensar as altas doses de aparência, de artificialidade, de fantasia. A
8
9
MORIN, E. Cultura de massa no século XX. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
BAUDRILLARD, Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991, p.26.
tendência é perceber a televisão como fazendo parte da vida real. Ela é assunto do cotidiano, determina muitos dos temas que vão ser debatidos no dia-a-dia; constitui-se, na maior parte da vezes,
no canal que liga o espectador com aquilo que ele entende como real, tendo em vista que esse
mesmo real é conhecido por seu intermédio. Ao mesmo tempo, essa media retoma do cotidiano a
formatação do seu discurso. Sua familiaridade é tanta que se tornou parte da vida. Representa a si
mesma como uma amiga íntima que, todo dia, entra na casa do telespectador, sem pedir licença
porque já legitimada, para contar-lhe os fatos acontecidos, estórias surpreendentes, entreter-lhe, darlhe conselhos e explicar-lhe a vida. É a dissolução da tevê na vida e da vida na tevê. Ela se infiltra
com tanta naturalização que telespectador e televisão se confundem, ambos fazem parte um do outro.
Sua presença é endêmica como diz Baudrillard.
Com certeza, o telejornal não poderia ignorar a estratégia de efeito de real para fazer-se
verdadeiro mostrar a realidade dos fatos ao vivo e a cores. Por isso, repórteres e cinegrafistas vão
para a linha de fogo nas guerras; por isso, os depoimentos de políticos, de cientistas, do povo são tão
necessários. Não importa se falas foram cortadas, se entrevistas sofreram edições que lhes alteram os
sentidos. Por outras palavras, não importa se o telejornal trabalha com o reverso: a estética antes da
ética, a forma antes do conteúdo, a aparência antes da autenticidade. Tudo tem que adquirir ares de
verdadeiro. Até mesmo o cenário e o apresentador precisam passar doses de naturalidade, de realismo, de seriedade. Nesse processo, insere-se um mecanismo fortalecedor do poder de
convencimento: o mundo apresentado em tempo real.
As Pegadinhas - apresentadas em programas como Domingao do Faustão e Domingo Legal trabalham com a simulação numa desordem de sentidos, ao mesmo tempo que se acoplam a ordem
cotidiana que reduz tudo ao real. Unem, portanto, a estratégia da simulação à estratégia do real
para realizar seu encantamento. Assim, se produz, no real, toda uma situação simulada que beira
o irreal e que ultrapassa os limites da racionalidade. Tendo em vista que o ser humano consegue
apenas conceber-se vivendo no real, os indivíduos escolhidos para "pagar o mico", optam por
reduzir aquela vivência ao real, sem considerar a possibilidade da simulação. Por seu lado, o
telespectador engendra-se nesse processo que mistura, simultaneamente, simulação e realidade
e se deixa levar por essa oscilação: ser e não ser real ao mesmo tempo; verdade e mentira
juntas; mostrar o real ao espectador e esconder o real da vítima. Estratégia de envolvimento
ativada pelo mecanismo afetual do telespectador.
O discurso da sedução utilizado pela tevê se constrói também sobre a estratégia da aparência:
refazer-se mais bela para agradar o outro, produzir-se em signos de encanto para conquistar.
Construir-se como excesso ou como falta, como superficialidade, como ritualidade, como estética,
mas nunca como sentido profundo e único. Ao constituir-se como estratégia da aparência a televisão
utiliza-se da ordem do feminino, porque ele é o domínio do universo da aparência. Assim sedutores
e sedutoras são femininos.
Os ídolos criados e articulados através da tela seduzem sobre a estratégia da aparência,
uma vez que seu poder está justamente na imagem que eles conseguem engendrar. Assim, cada
parte do seu corpo não é seu reflexo verdadeiro, mas o reflexo de uma encenação ritualizada.
Baudrillard afirma que os ídolos são “.. a única grande constelação coletiva da sedução que os
tempos modernos produziram”10. Nesse sentido, é possível fazer uma ligação com o estudo de
Morin que remete aos olimpianos. O jogo entre o real e o imaginário, através da utilização da
estratégia da aparência, permite a sustentação e a reprodução dos ídolos, ao mesmo tempo que
uma aproximação simulada das massas. Eles tornam-se "ideais inimitáveis e modelos imitáveis"11. Os ídolos constroem-se nas novelas, nos senados, na publicidade e sustentam-se ao
mostrar e esconder sua vida privada, ao falar e ser falado na televisão e na imprensa.
Contribuem, assim, para alimentar a fome do imaginário.
Ao trabalhar com o mecanismo do feminino, a estratégia da aparência serve-se, também,
dos temas dos programas televisivos para realizar a função encantatória. Segundo Morin12, a
ordem do feminino é identificativa e, é nesse sentido que se produzem os programas que dão
dicas de como por em ação tal estratégia. Dizem como parecer mais magra através da indicação
de roupas apropriadas, ensinam como maquiar-se para tornar-se mais bela, mostram como
comportar-se, como andar, para melhor encantar, enfim, para seduzir.
O mecanismo do feminino apóia, também, a estratégia da erotização, construída sobre um
discurso de ambigüidades: mostra e esconde, dá e nega. É preciso oferecer, arrojar, provocar, mas
é preciso, também, rejeitar, insinuar, recear. O discurso da sedução no erótico só funciona nessa
reversão, nessa ambigüidade, que permite ao imaginário do espectador preencher os sentidos
mais sutis do erótico com suas próprias fantasias.
Nesse sentido, recorrendo ao mítico, aos desejos sexuais mais reprimidos - e ao mesmo
tempo latentes - do telespectador, a Feiticeira e a Tiazinha escaparam do imaginário masculino
10
BAUDRILLARD, J. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991, p.108.
MORIM, E. Cultura de massa no século XX. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.106.
12
Idem, ibidem.
11
para a tela. A mulher virtual pode tudo, faz tudo, é capaz de tudo, mas sempre no âmbito do
virtual, e, por isso mesmo, reviram pelo avesso o imaginário masculino. Elas se constroem,
primeiramente, sobre o ideal de beleza e, em seguida, consubstanciam-se no estereótipo da
mulher desejável, da fêmea fatal. Atentas a estratégia do erotismo, não mostram tudo. Deixam
muito a mostra, mas escondem, pelo menos em parte, um dos sistemas de signos mais aparentes
do ser humano a expressão facial - máscara para a Tiazinha e véu para a Feiticeira. Existe
nesses dois personagens uma apreensão tão bem feita dos mecanismos que constroem o erótico
que elas podem tirar tudo, menos a mascara ou o véu. Sem eles a sedução se desfaz.
A televisão utiliza-se, também, da estratégia do escrachamento, ou do hiper-real. O
discurso televisivo pode ser estruturado de tal forma que, utilizando-se de uma produção tão
bem feita do real, seja capaz de "enganar", ou até de consubstanciar-se como real. Na intrincada
rede de signos que compõem o real - considerando sempre sua relação com o imaginário - um
ou alguns são içados e ampliados em tal ordem que ganham um nova configuração, enquanto
outros são excluídos ou minimizados. Nesse processo, o real se perde: torna-se o hiper-real. O
signo, assim, já não tem mais sua referência no real, mas se reconstrói sobre a própria
simulação do real, sustentando o imaginário e auxiliando-o em sua atualização.
O mecanismo de funcionamento dessa estratégia constrói-se sobre o exagero: tudo é mostrado,
enfatizado, exibido, acentuado, intensificado. Os sentidos aparecem de forma tão clara que beiram o
limite da irrealidade. A seduçãoo acontece não pelo que apresenta, mas pelo excesso de realidade
que tenta apagar o próprio real. Um belo modelo disso parece ser encontrado no Programa do
Ratinho através de, por exemplo, os casos conjugais que são retratados e que o apresentador tenta
resolver em público, para o público e com a ampliação de sentimentos e emoções dos indivíduos em
questão e do próprio público. Além do mais, o próprio Ratinho se consubstanciou no hiper-real do
popular.
Claro que não se pode afirmar que tudo na televisão é apenas sedução, mas é inegável que ela
tem o poder de produzir e pôr em circulação discursos eminentemente construídos sobre as
estratégias desse domínio. Se, por um lado, o grande alcance da televisão pode ser considerado como
devastador da sedução porque massifica, por outro, é preciso considerar a possibilidade de que o
discurso sedutor institua uma relação única com o espectador. Essa relação é possível, tendo em vista
que a construção e o percurso do discurso sedutor permite o preenchimento de sentidos de acordo
com as características e as possibilidades de cada receptor.
A televisão pode assumir uma sedução mais branda13 ou mais automática14, com signos,
portanto, mais codificados, mais rituais, que não visam a subverter os códigos e, sim, remexer seus
significantes. Os signos televisivos, afinal, estão cada vez mais codificados, beirando a obscenidade
e tendem a iluminar por demais os meandros secretos dos signos-artifícios. Como diz Baudrillard15,
talvez vivamos numa época em que a sedução alcance minimamente sua intensidade. De outro ponto
de vista, é preciso considerar a capacidade da sedução de recriar-se, incrementar-se, transformar-se,
enfim, de reconstruir seus signos, de lhes restituir novas aparências, de se inserir em vias ainda não
exploradas. A sedução é destino, porque única forma de contrabalançar o real, porque única resposta
aos vazios do mundo.
Ainda há que considerar que a televisão é vista por muitos como a parte "maldita" da media,
no sentido de que ao atingir um grande número de indivíduos, massifica sua programação, esquecese das funções edificantes da media, trabalha essencialmente com a persuasão, não é democrática,
..... Não é possível discordar por inteiro desse ponto de vista. É bom lembrar, entretanto, que essa
"parente" dos meios de mais elevado padrão cultural e intelectual - como o cinema e o teatro -, bem
como de meios mais democratizantes - como a internet – é, juntamente com o radio - igualmente
discriminado -, o meio mais popular, que, ainda hoje, fala a linguagem das maiorias - para o bem ou
para o mal. Um meio que se consegue fazer entender e que elimina a necessidade de alfabetização,
de conhecimentos escolares, históricos, artísticos. Um meio ao qual, hoje, a grande maioria tem
acesso - felizmente ou infelizmente. Além do mais, não parece que suas estratégias de
comunicação e de sedução estejam tão diferenciadas das utilizadas pelos demais meios. A
questão não se estrutura sobre o meio, mas sabre a posicionamento. Não adianta, portanto,
trocar de media sem trocar de paradigma.
Talvez a resposta para alguns desses dilemas tenha início em Morin16 quando ele propõe
um pensamento complexo, que reconhece o global e o individual e que, essencialmente,
busque uma relação dial6ógica. Essa relação dialógica é, ainda, a transitividade e proposta da
sedução, e esses dois elementos só se perdem quando os discursos sedutores são articulados
com a finalidade de atingir o poder e o seu modo de ação é a manipulação.
13
Conforme Baudrillard.
Conforme Sibony.
15
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991.
16
MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. IN: MARTINS, F. M. & SILVA, J. M. (org.).
Para navegar no século XXI. Porto Alegre: Sulina/Edipucrs, 1999.
14
Sem dúvida, é preciso reformar a maneira de construir as discursos televisivos e
mediáticos, passando, necessariamente, pela reforma do pensar e do posicionar-se humano.
Passar da forma simplista à forma complexa, caminhando, necessariamente, pela desordem. É
assim que se poderá aspirar mudanças dos paradigmas que, atualmente, regem a cultura de
massa e a cultura mediática.
Essas últimas considerações, entretanto, são apenas questões para futuras reflexões.
Referências
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991.
____. Tela total - mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1997.
____. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d'Água, 1991.
GREIMAS, A. J. Actes Semióticus. - Tradução Elizabeth Duarte. Paris, documento II, n13,
1980.
MAFFESOLl, Michel. A transfiguração do político - a tribalização do mundo. Porto Alegre:
Sulina, 1997.
MORIN, Edgar. O Método 3 - O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999
____. Cultura de massa no século XX - neurose. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
____. Da necessidade de um pensamento complexo. IN: MARTINS, F.M. & SILVA, J. M.
(org.). Para navegar no século XXI. Porto Alegre: Sulina/Edipucrs, 1999.
SIBONY, Daniel. Sedução - O amor inconsciente. São Paulo: Brasiliense, 1991.
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Televisão: simulação em tempo real e sedução em