POLÍTICA ARQUIVÍSTICA E HISTORIOGRAFIA NO JUDICIÁRIO: PALESTRA PROFERIDA
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DO I SEMINÁRIO DE POLÍTICA DE MEMÓRIA INSTITUCIONAL E HISTORIGRAFIA
JUDICIARY’S ARCHIVES AND HISTORY POLICITICS: LECTURE DELIVERED DURING
THE FIRST CONCLAVE ON INSTITUTIONAL AND HISTORY MEMORY
ANA MARIA CAMARGO**
Antes de mais nada, os agradecimentos por este convite e pela oportunidade de
participar de evento tão importante na área do patrimônio documental brasileiro. O
Seminário de Política de Memória Institucional e Historiografia, promovido pelo
Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, certamente será uma referência para todos
aqueles que pretendem preservar a memória das instituições públicas e privadas brasileiras,
em nome dos ideais mencionados há pouco pelo Desembargador Pedro Henrique: nossa
identidade cultural e a própria estabilidade das instituições.
Ao falar de “Política Arquivística e Historiografia no Judiciário”, gostaria de
chamar a atenção, em primeiro lugar, para a dicotomia implícita no tema que me coube: de
um lado, a prática dos arquivos, base de uma política arquivística; de outro lado, a
produção do conhecimento científico, a historiografia. A relação entre o arquivo e o uso
que dele se faz para a pesquisa histórica, relação que para muitos é natural e óbvia, carrega
consigo uma série de ambigüidades. E tais ambigüidades nos remetem para alguns teóricos
da arquivística, sobretudo da arquivística norte-americana, que teve uma grande influência
entre nós. Refiro-me especialmente ao professor Schellenberg, cuja obra foi traduzida para
o português e publicada no Brasil em 1960, se não me engano.
Schellenberg incorporou ao seu conceito de arquivo o duplo uso que dele se pode
fazer: o primário ou imediato, próximo das razões pelas quais os documentos se
originaram, e o secundário, que é o do pesquisador. De acordo com o chamado ciclo vital
dos documentos, há uma fase corrente, em que predominam os valores primários; uma
fase intermediária, em que os documentos cumprem prazos de destinação; e um patamar
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Antiga Sala do Tribunal Pleno, Palácio da Justiça, Porto Alegre, 12 de setembro de 2002.
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Universidade de São Paulo (USP).
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atingido por aqueles que têm valor histórico, que passam a ter guarda permanente (ou,
como preferem dizer alguns arquivistas, duradoura). Para Schellenberg, o documento de
arquivo é aquele que, tendo cumprido as funções que lhe deram origem e tendo esgotado
seu valor primário, recebe um outro valor, decorrente do interesse que pode apresentar
para a investigação científica, sobretudo para a História. Como parte integrante do próprio
conceito de arquivo, essa duplicidade tem inúmeras conseqüências.
Uma delas – e acho que o Estado do Rio Grande do Sul vivenciou ou vivencia
este problema – diz respeito à filiação dos arquivos, do ponto de vista institucional. Os
arquivos públicos estaduais oscilam entre uma vinculação a órgãos de natureza
administrativa (Secretaria do Governo, Secretaria de Administração) e a órgãos voltados
para as diferentes atividades culturais (Secretaria de Cultura), havendo Estados onde existe
uma dupla subordinação.
Na verdade, toda tentativa de estabelecer reciprocidade entre esses dois universos,
o universo do arquivo e o universo dos sentidos que podem ser atribuídos aos
documentos do arquivo (os sentidos que lhe emprestam seus usuários terminais, os
historiadores), é bastante problemática.
Por mais que os historiadores considerem o resultado do seu trabalho como
tributário dos arquivos, o inverso não é verdadeiro. Ou seja, os arquivos, para que
continuem a ser arquivos, não podem se ajustar nem se amoldar aos interesses de uma
demanda de pesquisa que, como todos sabem – acho que o público aqui presente em
grande parte é formado por estudantes ou egressos dos cursos de História –, não cessa de
criar diferenças, de se repor, de se alargar. Qualquer intervenção que se faça na
configuração original de um arquivo, em nome da pesquisa histórica, é muito mais
mutiladora do que podemos imaginar.
Que interesse tem essa questão para a abordagem do tema?
Na verdade, todos nós reconhecemos – parece que até seria um truísmo falar isso
aqui, já que é pressuposto do próprio Seminário – a importância que têm os arquivos do
Poder Judiciário para a História. Há exemplos interessantíssimos não só na literatura
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estrangeira como também na literatura nacional de um uso criativo, fecundo e instigante
desses arquivos para a pesquisa histórica.
Quase todos os historiadores que se valeram de processos judiciários, por
exemplo, neles encontraram informações que não foram previstas pelas instituições
produtoras da documentação. É o caso de trabalhos clássicos da História da Cultura, que
utilizam os processos-crime para caracterizar idéias, valores e comportamentos de toda
uma sociedade. Em lugar do crime, razão pela qual foram elaborados os processos, são
outros os fatores que, de forma natural e espontânea, transparecem nos autos. Vale
lembrar, entre nós, o livro de Maria Silvia de Carvalho Franco sobre homens livres na
ordem escravocrata, baseado em processos criminais da comarca de Guaratinguetá (São
Paulo). Trata-se de importante exemplo de utilização dessa fonte para o estudo, não do
crime, mas das relações comunitárias.
Poderíamos afirmar também que uma instituição como a Justiça, pela amplitude de
seu poder de intervenção na ordem social, é capaz de espelhar, de maneira indireta, boa
parte das características dessa mesma sociedade, daí o interesse dos historiadores na
consulta da documentação por ela produzida. Em outras palavras, os arquivos do Poder
Judiciário constituem um manancial inesgotável para a pesquisa retrospectiva, fazendo jus
plenamente às declarações da francesa Arlette Farge no livro Le goût de l’archive,
inspirado nos documentos dos tribunais que lhe serviram de fonte; o livro traduz o forte
poder de sedução que tais arquivos exercem sobre os historiadores, por seu potencial
informativo ou pelo que costumo chamar de “reserva de sentido” dos documentos.
Sabemos que os arquivos se diferenciam dos documentos reunidos por outras
instituições por aspectos que lhes são peculiares. É importante mencioná-los aqui. Os
documentos de arquivo nascem com estatuto probatório, em decorrência das necessidades
de uma instituição: comprovar e instrumentar os atos por ela praticados. Eles não são
produzidos em razão dos eventuais interesses da pesquisa histórica, no futuro, nem estão
atentos a qualquer tipo de uso secundário que deles se possa fazer. Ao contrário, são as
necessidades de funcionamento da instituição, seja ela pública ou privada, que determinam
seu nascimento.
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Essa naturalidade com que nascem os documentos de arquivo lhes dão qualidades
bastante especiais também, que já foram apontadas pelos teóricos da área.
Como historiadores, podemos transformar qualquer coisa em documento, para
efeitos de investigação. Uma inscrição na parede, feita por “pichadores” urbanos para
demarcar territórios, pode transformar-se, numa atividade de investigação, em prova
documental de determinados comportamentos. Os arquivos, ao contrário, não resultam
dessa atribuição de sentido que faz parte do métier do historiador.
Têm função
documental congênita em relação à entidade ou organização que lhes deu origem. Essa
função probatória originária é que faz com que os documentos de arquivo sejam dotados
de autenticidade e que tenham, para o historiador, uma importância enorme.
Se os documentos de arquivo, pela sua própria natureza e constituição, são
autênticos, isso não significa que seu conteúdo seja verdadeiro. O historiador, por sua vez,
embora reconhecendo a impossibilidade de atingi-la, tem como horizonte a veracidade, a
verdade dos fatos, aquilo que aconteceu, o que o aproxima da atividade do juiz.
Deixando de lado os elementos que permitem comparar as características da
História, do arquivo e da Justiça, há que enfrentar o problema de estabelecer, no âmbito
de uma política arquivística, a seleção dos documentos que devemos conservar da grande
massa acumulada pelo Poder Judiciário no desempenho das suas atribuições.
Venho de um Estado onde há pouco tempo foi concluída a identificação de cerca
de um milhão de processos da Justiça Federal de Primeira Instância. O arquivo da Seção
Judiciária de São Paulo, como o das demais regiões brasileiras, não cessa de crescer, e não
temos um parâmetro para promover, de maneira prática e imediata, o enxugamento dessa
grande massa documental.
Segundo Schellenberg e seus seguidores, é preciso conservar os documentos
dotados de interesse para a pesquisa histórica. Como fazer a distinção entre o que é
histórico e o que não é? O problema é bastante complexo.
A solução encontrada pelos norte-americanos para resolver ou, pelo menos,
amenizar um pouco o problema foi a de criar comissões de avaliação, da qual devem fazer
parte, junto com administradores ou com pessoas ligadas ao funcionamento da instituição,
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representantes da área dos futuros usuários do arquivo, ou seja, dos historiadores,
sociólogos e outros cientistas. As comissões devem ser integradas também por pessoas da
área jurídica, capazes de analisar os efeitos legais dos documentos e os direitos que
asseguram, a fim de que a destruição eventual de determinados conjuntos não afete ou
prejudique as partes interessadas.
A avaliação vem sendo praticada entre nós, em alguns setores da administração
pública e também nas empresas privadas, com base na teoria norte-americana. Enfrenta-se
aqui, como de resto ocorre em outros países, a dificuldade de estabelecer temporalidades e
de distinguir, dentre os documentos de um arquivo, aqueles que terão vida eterna, que
serão guardados para sempre, e aqueles condenados ao desaparecimento. Não nos
esqueçamos que os documentos de arquivo, ao contrário dos documentos de biblioteca,
são únicos: sua destruição significa que as informações ali contidas deixarão de existir, não
poderão mais ser recuperadas.
No âmbito do Poder Judiciário, muitas pessoas estão hoje empenhadas na solução
desse grande problema: que valores históricos têm tais documentos, para que parte deles
seja definitivamente conservada? Que documentos podem ser eliminados?
Há um embate teórico entre os arquivistas, hoje, a respeito da avaliação. De um
lado há aqueles que fazem repousar seu sucesso no bom funcionamento das comissões e
no adequado escalonamento dos valores que justificam a montagem das tabelas de
temporalidade. Outros, no entanto, procurando reviver as teorias preconizadas pelos
clássicos da Arquivística, consideram a seleção, sobretudo quando evoca os chamados
valores históricos, uma verdadeira anomalia, responsável pela própria destruição do
arquivo.
Os documentos de uma instituição, na verdade, constituem um arquivo na medida
em que, reunidos e em conjunto, são capazes de representá-la. Um arquivo naturalmente
acumulado, sem qualquer intervenção que retire dele suas características essenciais, é uma
espécie de duplo da instituição. Dessa condição decorre, aliás, sua natureza instrumental.
Os arquivos são produzidos para viabilizar o funcionamento de uma instituição e oferecer
as necessárias provas de sua existência e funcionamento. A acumulação de documentos
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reveste-se, por isso mesmo, de extrema naturalidade. O arquivo é tão natural que só nos
damos conta de que existe quando ocupa muito espaço, quando nos incomoda, quando
não conseguimos encontrar nele a informação desejada. Mas essa qualidade essencial do
arquivo, qual seja, a de representar a instituição que o gerou, refletindo-a como um
espelho, depende muito mais do conjunto dos documentos do que de cada parte
isoladamente. É por isso que a teoria arquivística formulou princípios e conceitos que
enfatizam diferentes modalidades de conjuntos (séries, grupos, fundos), procurando
assegurar a organicidade dos arquivos como condição mesma de sua existência. Nessa
direção, há que fazer referência à idéia, extremamente fértil, de que o arquivo não se
define pelo conteúdo dos documentos que o integram, mas pelas ações que presidiram sua
produção. Muito embora tenhamos excelentes trabalhos de reconstituição do passado
elaborados a partir de um único processo (há exemplos de micro-história que viraram bestsellers), a regra entre os historiadores é a da utilização de séries homogêneas e de
documentos múltiplos, como ocorre, na verdade, com o processo judicial (cujo caráter
discursivo se presta a tal tipo de abordagem).
Enxugar o arquivo, diminuir o seu tamanho e distinguir dentro da massa
acumulada de processos aqueles que têm um sentido para a historiografia é tarefa bastante
árdua. Por mais que possamos exercitar nossa imaginação e antecipar que daqui a dez anos
os historiadores vão se interessar por determinados aspectos da realidade, e não por
outros, os riscos que corremos de mutilar o arquivo são imensos. O mais provável é
transformar o arquivo num centro de documentação, concebido em torno de conteúdos e
de assuntos supostamente de interesse da comunidade dos investigadores. Sem sua
qualidade orgânica, o arquivo deixa de ser arquivo, isto é, deixa de representar a instituição
produtora.
O famoso arquivista argentino Manuel Vázquez costuma usar uma metáfora ao se
referir ao processo de seleção. Compara os arquivos abarrotados com corpos obesos. Nós
precisamos fazer com que tais corpos emagreçam. Mas temos que cuidar para que, nessa
operação, a perda de peso não resulte da amputação de partes do corpo, e sim de um
emagrecimento proporcional. Em nome, muitas vezes, dos interesses da pesquisa, a
seleção de documentos faz com que o conjunto deixe de refletir a instituição de origem.
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É preciso encontrar uma fórmula, e essa fórmula, sem dúvida alguma, é
matemática, para que os arquivos passem por uma operação redutora sem perder sua
identidade. Para tanto os arquivos têm que dispor de uma bem cuidada classificação. Não
nos referimos à classificação temática, típica dos centros de documentação e de memória,
mas àquela que reflete as atividades e funções do órgão ao longo do tempo. Tal
classificação, pautada em elementos não-verbais, é a chave para o exercício de uma política
conseqüente de avaliação, permitindo a redução proporcional do arquivo.
Por mais contraditório que possa parecer, para que o arquivo conserve sua
polissemia máxima e continue a ser o celeiro onde o historiador vai colher as informações
de que necessita, é preciso mantê-lo afastado das operações seletivas feitas em nome de
supostos e prováveis “valores históricos”. O importante é garantir seu caráter orgânico,
preservando a capacidade que os documentos de arquivo têm de refletir, de forma
permanente e estável, a instituição que lhes deu origem. Os interesses da pesquisa histórica
estarão, dessa forma, plenamente assegurados.
Muito obrigada.
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