Sobre a dificuldade de aprendizagem dos adultos em compreender a dificuldade das crianças Vitória Bonaldi – Fonoaudióloga, especialista em Educação, Psicomotricista, Psicoterapeuta Corporal e membro fundador do Anthropos. A base do meu percurso para chegar a ser uma psicomotricista (psicoterapeuta) foi a educação e não por acaso uma educação com especialidade no pensamento da médica e educadora, Maria Montessori. Por tanto, alguém que já se interessava pela questão da criança e seu desenvolvimento mental, a partir de seus estudos de medicina e de seu trabalho na clinica de neuropsiquiatria onde já se destacava por examinar a relação entre as estruturas corpóreas e as funções mentais em crianças com deficiências. Embora, Montessori tenha partilhado do pensamento dos intelectuais que atuavam no registro da cultura científica do século XIX, não se converteu inteiramente a elas; ela se interessava por áreas de conhecimento do homem, estabelecidas no século XVIII como a antropologia e a etnologia e tinha uma prática delicada de observação do comportamento das crianças e não, ao uso de testes ou aparelhos para investigá‐las. Em 1907, ela cria a primeira “Casa dei Bambini” substituindo a instituição escolar clássica. “Se compararmos a criança a um relógio, podemos dizer que, no ensino tradicional, era como se prendêssemos o maquinismo do relógio e movêssemos nós os ponteiros, a nosso bel‐prazer. O mesmo acontece com uma forma de ensino em que o papel ativo é dado ao professor. O novo método, ao contrário, pode ser comparado a um mecanismo que tem em si a força motora”. (Montessori, Maria 1971) Foi com base neste pensamento filosófico que eu segui meu percurso profissional compreendendo que para acompanhar o desenvolvimento de uma criança era preciso muita compreensão, humildade e respeito, pois era necessário saber falar à sua alma. Desta forma faço minha reflexão sobre, o que é, nos dias de hoje, século XXI, pensarmos em dificuldades de aprendizagem? Ainda estaremos pensando sobre se a criança acompanha ou não o conteúdo pedagógico daquela série em que ela está? 1 Compreendendo a importância de que a criança possa estar inserida e adaptada ao seu grupo social e que para isto um dos pré‐requisitos é que ela esteja acompanhando o grupo escolar adequado a sua faixa etária. Porém, este é apenas um aspecto em todo o espectro do desenvolvimento de uma criança, torna‐se muito relevante pela importância que a sociedade dá ao conhecimento formal, em prol do conhecimento de si próprio: das suas emoções, sensações, do movimento do seu próprio corpo, das imagens e pensamentos que a invadem e da qualidade das suas relações sociais. É notório, que a criança está muito “à disposição” do adulto. Como citou Alice Miller (1997): “ela é completamente dependente de seus pais, ela fará tudo para não perdê‐los. Usará de todos os recursos, desde o primeiro dia de vida, como uma plantinha que se vira ao sol para sobreviver”. De acordo com este pensamento, verificamos que a criança se afasta da expressão mais espontânea da essência do seu ser para se tornar aquilo em que os adultos a sua volta julgam ser o melhor para ela e, por conseguinte, determinando o que ela deveria ser. Ao não alcançarem as expectativas desses adultos, as dificuldades surgem da seguinte forma: dificuldade de aprendizagem escolar, dificuldade de relacionamento e adoecimentos freqüentes (há algo de errado em seu padrão de funcionamento). Verificamos assim que ela tenta comunicar que algo não vai bem com ela e que ela precisa de ajuda. “Todo o drama que você sofre em sua vida pessoal é o resultado da crença em mentiras, principalmente a respeito de si mesmo. E a primeira mentira em que acredita é que você não é: não é como deveria ser, não é competente, não é perfeito. Com isso você começa a buscar uma imagem de perfeição na qual nunca poderá se converter. É mentira, mas você investe sua fé naquela mentira e depois constrói toda uma infra‐ estrutura de mentiras para sustentá‐las”. (Ruiz, Dom Miguel 1952) Trabalhando com crianças há mais de trinta anos, tive a oportunidade de acompanhar, em diversas idades, diferentes maneiras de expressarem seu sofrimento e às vezes, o próprio desespero, por não se sentirem adequadas aquele meio e às expectativas dos adultos a sua volta. Mesmo depois de tantos anos, talvez por isso, eu me emocione cada vez mais com elas. Inicialmente ,aprendi com Maria Montessori e mais tarde com Françoise Dolto a falar e a escutar a alma da criança, que fala por si, mas se expressa, principalmente ,daquilo que a família ainda não pode escutar e falar. 2 “Já se sabe que a criança está no desejo de seus pais, mas o que não se sabe é que a própria criança tem seu próprio desejo que ela quer nos manisfestar, e que a única maneira de reconhecê‐la como sujeito é falar á sua pessoa e deixar‐lhe um tempo de resposta que escutemos com nosso coração, nossa pele,...” (Dolto, Françoise 1986) Ao chegar à clínica ,esta criança vai poder contar e escutar sobre a sua história. Essas refletem acerca dos processos inconscientes e das mediações necessárias para que o sofrimento possa enfim, aparecer e não paralise sua vida, mas sim, que através da compreensão corporal possa ocorrer a superação do sofrimento. Através do trabalho com crianças, fica claro o quão “a flor da pele” está o sofrimento e o quão à superfície do corpo ele se encontra. Percebo, muitas vezes, de que está ao alcance da minha mão, e suavemente, vamos juntas (eu e a criança), retirando o véu, que envolvendo seu corpo, seus movimentos , sensações e imagens, causando um emaranhado confuso, que faz com que ela se perca de si mesma, de sua espontânea alergia de viver. Quando vamos conseguindo pelas palavras que juntas compreendemos, pelo movimento fluido que nossos corpos vão vivendo, a sensação é que o mundo a nossa volta iluminado se abre como uma clareira de luz, a felicidade que ocupa o meu corpo é indescritível porque eu me conecto com a minha criança que sofrida encontra alento e, então, a mais verdadeira alegria de viver. Com isso, ficamos pulsando e ela me pergunta se pode voltar amanhã; ela compreende com 3,4,5 anos a diferença em seu corpo na qualidade do encontro que nos faz sentir vivas, e isso é o que me interessa: que ela saiba. É tranqüilizante, a partir daí, saber que ela possa ter base para ir atrás desta sensação no seu corpo aos 30, 40 e 50 anos. “Se contarmos ´às crianças bem pequenas a sua verdadeira história, nós as curamos.” (Dolto, Françoise 1986) Para Wilhelm Reich existem três camadas que compõem esquematicamente a estrutura humana. A camada primária, mais profunda é o núcleo vital, do qual nascem a espontaneidade, a sexualidade, a racionalidade e a alegria de viver. Na camada secundária se reúnem as tendências destrutivas, todas as emoções, desejos e sentimentos que foram transformações sob o efeito das frustrações, como: ressentimentos, ciúmes, inveja, raiva e elementos que as exigências sociais nos 3 obrigam a reprimir ou camuflar. A camada terciária por sua vez é a mais superficial. Ela reflete os imperativos morais e sociais, constituída pelos agentes estereotipados e pelos comportamentos conscientes, controlados, adaptados, polidos ou impostos pelos papéis sociais. Diante desta reflexão pensemos ,mais uma vez, na criança que chega ao consultório. Normalmente, ela está em contato próximo à vivência da camada secundária e ainda mais próxima à camada primária, através da memória recente do seu corpo. Obviamente, é essencial que a cada encontro toquemos nesta memória de forma espontânea, sexualizada e pulsátil. Na clínica psicomotora somática com o cliente adulto, esta vivência é mais lenta, cuidadosa e trabalhosa. Temos um corpo que já está organizado na terceira camada, das máscaras sociais ,e muito ameaçado e assustado de conhecer uma nova sensação. Isso se deve ao fato do corpo estar distante da sua memória corporal mais primitiva , da sua criança. A transformação do corpo de uma criança, na expressão do seu rosto, no tônus da sua musculatura, na textura de sua pele e na vivacidade de seu olhar, é muito rápida e até mágica quando ela percebe que foi escutada visceralmente. Através do nível tônico –emocional, onde ela reencontra a sensação tátil, o contato com o movimento do outro (primitivamente, a mãe), é o reencontro com a essência do seu ser. “É pelo intermédio da organização muito arcaica do sistema tônico, que a criança vai estabelecer seus primeiros contatos com o mundo, a um nível pré‐inconsciente. Com isso irá emergir, pouco a pouco, uma consciência difusa daquilo que vivencia em si mesmo ao nível biológico do tônus. Essas percepções são percepções internas, proprioceptivas, a percepção das tensões musculares e das nuances dessas tensões. Elas estão diretamente ligadas ao prazer primitivo do movimento vital, do movimento biológico e daquilo que chamamos movimento celular. Tudo o que pode estar de acordo, entrar em ressonância com esse movimento primitivo, é gerador de prazer: a lentidão, a continuidade, a curva, o deslizamento, o balanço, o embalo, o suave, o macio e etc. Tudo o que quebrar este ritmo vital (...), é gerador de desprazer, porque vivenciado como agressão tônica”. (Lapierre e Aucouturier 1984) Concluo com isso, que o corpo emocional da criança está completamente disponível para aprender sobre o mundo a sua volta e que qualquer expressão de dificuldade, seja cognitiva, relacional ou física, significa um nível maior de sofrimento, 4 de distanciamento do seu padrão funcional saudável e que encontrar o recurso que a faz sobreviver apesar da dor é o papel fundamental do psicomotricista infantil. A responsabilidade de quem aceita o desafio de trabalhar com criança é muito grande pois, se trabalha com todos os adultos a sua volta, quer queiram ou não, com o contexto familiar, escolar e social da criança. Com isso temos a oportunidade única de tocar o futuro, pensando que a humanidade merece que adultos mais saudáveis, mais responsáveis por si e atentos ao outro e a natureza prossigam cuidando da evolução da nossa espécie.Gosto de pensar que as próximas gerações de crianças encontrarão um meio mais receptivo, acolhedor, lúcido e amoroso para recebê‐las. Há vinte anos desenvolvo este trabalho no Anthropos, que é uma clínica de Psicomotricidade. Os quatro fundadores são Vitória Bonaldi (autora deste texto), Marina Sá, Daniel Benchimol e Pedro Honório. Os mesmos iniciaram a carreira de educadores (cada um em sua especialidade) com um trabalho junto às crianças, e através dele, se tornaram psicomotricistas. Além de cuidarmos um do outro, cuidamos também dos filhos uns dos outros. Tempos depois , passamos a trabalhar com adolescentes e adultos, no que denominamos de Psicomotricidade Somática. O trabalho com criança é de grande atenção tanto na nossa clínica pessoal quanto na clínica social (desenvolvida no Anthropos,sob a coordenação de Margareth Hisse).Ao longo desses anos, vários alunos de nossa formação se dedicaram ao trabalho com crianças, e atualmente,existe um grupo de ex‐
alunas e terapeutas psicomotricistas que atendem no Anthropos e coordenam a Oficina de Crianças (Michele Blajchman e Ana Amália Bloes) sob a supervisão minha e da Marina Sá. Temos nelas a certeza da continuidade deste trabalho que como a necessidade das crianças, só se aprende vivenciando. A cada vivência uma nova emoção, sensação, movimento, uma nova aprendizagem, com muita dificuldade, porque é única e a cada novo instante. Fico muito agradecida a elas por emprestarem seu corpo e sua alma para aprenderem e cuidarem das crianças. 5 Reconheço com agradecimento à Marina Sá, Pedro Honório, Daniel Benchimol, Margareth Hisse, Michele Blajchman, Ana Amália Bloes, Paula Galvão, Fernanda Kutwak, Camila Nogueira e a cada aluna que se junte a nós para fazer existir este encontro humano, emocionadamente, humano. 6 Referência Bibliográfica DOLTO, Françoise. Dificuldade de Viver. Artes Médicas, 1986. MILLER, Alice. O Drama da Criança Bem Dotada. Summus Editorial, 1997. MAHLER, Margaret S.. O Nascimento Psicológico da Criança. Artes Médicas, 1975. RUIZ, Dom Miguel. A Voz do Conhecimento. Best Seller, 1952. REICH, Wihlem. Análise do Caráter. Martins Fontes, 1953. BOADELLA, David. Correntes da Vida. Summus Editorial, 1982. LAPIERRE, André; AUCOUTURIER, Bernard. A Simbologia do Movimento. Artes Médicas, 1986. MONTESSORI, Maria. A Mente da Crinça. Portugália, 1971. LAWRENCE, Elizabeth. As origens e a evolução da educação moderna. Ulisseia, 1974. 7 
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