BRASIL
EM FOCO
Humberto Dantas
Análises & Comentários
Janeiro 2013
Mensalão no país do futebol: a
cultura política brasileira
fazemos da forma mais apaixonada possí-
1 - Introdução
vel. No final do ano passado, por exemplo,
O mundo parece aceitar com bastante natu-
a grande discussão em São Paulo tratava da
ralidade que o Brasil é o país do futebol.
conquista mundial do Corinthians e da po-
Pode não viver seu melhor momento no ce-
lêmica final da Copa Sul Americana. Os a-
nário internacional, mas ainda somos capa-
paixonados pelo atual campeão mundial
zes de respirar cotidianamente o esporte. A
desdenhavam de conquistas anteriores de
realização da Copa do Mundo de 2014 car-
outros clubes e do “meio jogo” que decidiu
rega
administrativas,
o secundário torneio continental vencido
mas a inauguração dos novos estádios tem
pelo rival São Paulo Futebol Clube. Os são-
causado entusiasmo, assim como os jogos e
paulinos tratavam de desqualificar o bicam-
títulos conquistados por clubes de grandes
peonato do rival, alegando que o mundial
torcidas. Ainda passa pela cabeça de quan-
de clubes realizado no Brasil era um torneio
tidade expressiva de crianças o sonho de se
embrionário.
consigo
polêmicas
tornar atleta profissional. O futebol é parte
da cultura brasileira.
O modo como discutimos futebol, infelizmente, é transferido para a política. O ritmo
No início de dezembro encontrei um amigo
apaixonado, talvez, seja um pouco menos
holandês que vive no Rio de Janeiro faz al-
intenso nas massas, mas trata-se de algo
guns anos. Perguntei a ele o que estava a-
nosso, uma característica cultural. É verda-
chando da presença do veterano Clarence
de que é mais raro ver gente dizendo que
Seedorf, seu conterrâneo, no Botafogo. Eis
odeia política do que pessoas nutrindo tal
a resposta: “interessante! Mas me impres-
sentimento pelo esporte nacional. Mas ainda
siona como o futebol brasileiro é ruim, é
assim o ódio contra a política é tão visceral
mal jogado. Futebol é um jogo coletivo, es-
quanto o sentimento alimentado pelo time
tratégico, e aqui o que mais se aplaude é a
adversário. É isso mesmo: sentimos que a
malandragem de quem ludibriou a arbitra-
classe política é adversária do povo. Em
gem ou o improviso individual que nada
uma democracia isso é tão trágico quanto a
combina com um esporte plural. As últimas
falta de estratégia esportiva destacada por
copas que vocês venceram (1994 e 2002)
meu amigo holandês. Mesmo porque, na
foram as que mais demonstraram espírito
política brasileira os projetos também car-
de equipe”. É claro que a declaração é po-
regam um egocentrismo assustador, capaz
lêmica, e parte expressiva dos brasileiros se
de levantar, apenas, uma torcida cega e afi-
sentiria obrigada a entrar no debate. Na
cionada por ídolos pontuais.
verdade, muitos estariam prontos para a
guerra de argumentos. Mas por quê? Simples: porque adoramos discutir futebol, e o
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Assim, o individualismo criticado pelo colega
pático ao partido do governo federal. Na
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europeu, por exemplo, é traço marcante de
verdade, o termo mensalão se transformou
nossos homens públicos, bem como a forma
em algo que denigre, existindo aos olhos de
apaixonada como tratamos de candidaturas
parcelas da sociedade o Mensalão do DEM
e partidos. Em setembro, numa pequena
do Distrito Federal, o Mensalão do PSDB
cidade do interior de Minas Gerais, notei
mineiro etc. No campo da divisão de torci-
que muitas casas tinham em seus jardins
das, algo muito parecido ocorre quando nos
bandeiras rubro-negras hasteadas. O Fla-
referimos à Dilma Rousseff. Os governistas
mengo lutava contra o rebaixamento no
costumam chama-la de presidenta, a oposi-
Campeonato Brasileiro de futebol e logo
ção tem o hábito de utilizar a palavra presi-
perguntei para um amigo local: “vocês mi-
dente precedida pelo artigo feminino ‘a’.
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neiros gostam mesmo dos times do Rio de
Janeiro, não é? Olha a quantidade de ban-
Assim, tem sido prática comum separarmos
deira do Flamengo nas casas. Que paixão!”
as análises sobre o maior julgamento da
Ele riu sem graça e disse: “isso não é fute-
história da corte suprema do país como se
bol, é política. São as cores de um dos can-
estivéssemos debatendo, numa mesa de
didatos à Prefeitura. Vou te mostrar que em
bar, um apaixonante clássico do mundo do
outros bairros as bandeiras são amarelas e
futebol. Enquanto petistas dizem que o mo-
azuis. Isso é guerra, é briga de torcida elei-
vimento foi político e que tudo não passou
toral”.
de uma tremenda injustiça orquestrada por
uma mídia capaz de alterar a forma de o
Em meio ao que poderíamos então chamar
Judiciário agir, os membros da oposição ga-
de cultura política, ou de uma cultura que
rantem que o maior escândalo de corrupção
se espraia ao longo de nossa política e foi
da história do Brasil foi punido com o míni-
tão bem tratada por diversas obras no cam-
mo de rigor esperado de uma nação que
po da sociologia, da história e da economia,
comumente se vê associada à impunidade e
assistimos ao posicionamento das pessoas.
diz pretender se livrar de tal pecha. Um e-
Exemplo marcante de tal questão está as-
xemplo ilustra a situação. Recentemente o
sociado ao julgamento do escândalo de cor-
suplente de deputado federal José Genoíno
rupção batizado de mensalão. Raras são as
(PT-SP) reacendeu essa divisão de forma
manifestações que carregam um mínimo de
emblemática ao conceder entrevista após
equilíbrio entre o que diz a lei do país e o
sua posse. O parlamentar afirmou “ter a
que se espera da justiça sem ao certo co-
consciência serena dos inocentes”, ao justi-
nhecer as leis vigentes. Até mesmo a im-
ficar sua decisão de, mesmo condenado pe-
prensa parece altamente contaminada por
lo STF na Ação Penal 470 / Mensalão, as-
expressiva dose de ufanismo para defender
sumir uma cadeira no Congresso Nacional.
ou atacar os lados envolvidos. Raras são as
O PT defende a posição, uma vez que não
manifestações que, mesmo buscando ar-
parece fazer sentido que ao acusar o Judici-
gumentos racionais não sejam taxadas sob
ário de agir politica e injustamente o partido
a coloração das bandeiras partidárias.
acenasse de forma distinta e sugerisse que
Genoíno abrisse mão de seu mandato. A
O julgamento da Ação Penal 470 pelo Su-
oposição, por sua vez, entende que a deci-
premo Tribunal Federal (STF) se transfor-
são desmoraliza ainda mais o desgastado
mou, aos olhos de parcela expressiva da
Legislativo brasileiro. Entre seus membros,
opinião pública do país, numa imensa dispu-
inclusive, há quem diga que só o próprio
ta capaz de nos remeter a uma guerra de
parlamento tem a prerrogativa legal de cas-
torcidas apaixonadas. A simples forma de se
sar mandatos. Genoíno, assim, estaria pro-
referir ao processo parece capaz de sugerir
tegido. As torcidas de uma ou outra agre-
a camisa vestida pelo crítico. Quem se refe-
miação partidária entram em campo e pro-
re a ele como Mensalão é contra o PT, quem
tagonizam novo embate empobrecido e a-
se remete ao número da ação é mais sim-
paixonado.
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A verdade é que José Genoíno, eleito em
tido de tal afirmação é necessário analisar-
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2010 com mais de 90 mil votos como se-
mos o termo Mensalão. A palavra foi utiliza-
gundo suplente de uma chapa formada pelo
da pelo então presidente do Partido Traba-
PT, nada mais faz do que utilizar a regra. O
lhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson,
julgamento no qual foi condenado a mais de
para descrever prática atribuída ao partido
seis anos de prisão não terminou, existindo
de Luiz Inácio Lula da Silva que tinha, como
ainda algumas etapas a serem cumpridas
objetivo, comprar o apoio de parlamentares
até que sua condenação seja efetivada e ele
da base de sustentação do governo federal
seja obrigado a cumprir a pena que lhe foi
no Congresso Nacional. De acordo com as
imposta. Seu partido não aceita o julgamen-
declarações, uma quantia mensal era desti-
to, chegando a desafiar a decisão por meio
nada a um grupo de deputados federais. Por
da invocação de passeatas e atos de protes-
isso o nome Mensalão, associado à lógica de
to. Além disso, o presidente da legenda, o
uma mensalidade para o trâmite de projetos
deputado estadual paulista Rui Falcão, afir-
de interesse do Executivo.
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mou que o Judiciário é, hoje, um dos órgãos
de oposição do país. Diante de tais argu-
O grande problema é que, infelizmente, em
mentos, o que justificaria Genoíno desistir
nossa recente história democrática é co-
de sua posse? Ele contrariaria a tese do
mum ouvirmos relatos sobre dinheiro utili-
próprio PT? Por sua vez, a justiça brasileira
zado para a compra desse tipo de apoio. A
determinou que parlamentares condenados
eleição indireta de Tancredo Neves para a
em última instância percam seus respecti-
Presidência da República em 1985, derro-
vos mandatos, algo que segundo lideranças
tando Paulo Maluf, foi cercada por suspeitas
do Congresso Nacional contraria a Constitu-
e acusações dessa natureza. A construção
ição Federal. Diante da posição criou-se, no
do Centrão ao longo do processo constituin-
final do ano passado, um impasse entre o
te no final da década de 80 também foi ori-
Legislativo e o Judiciário. Atualmente espe-
entada por concessões, associadas à cor-
ra-se que as decisões da Ação Penal 470
rupção, de canais de televisão e emissoras
sejam publicadas, e sobre elas caberão al-
de rádio. Ao longo do governo de Fernando
guns questionamentos que resultarão, ao
Henrique Cardoso, deputados confirmaram
término dos prazos regimentais, na possível
que receberam recursos ilícitos para que
prisão, pagamento de multas ou cumpri-
votassem favoravelmente à emenda consti-
mento de penas por partes dos condenados.
tucional que permitiu a reeleição.
Estima-se que tais movimentos ocorram em
cerca de um ano. Até lá, a oposição recla-
A própria lógica do presidencialismo de coa-
mará e a situação se organizará para, quem
lizão brasileiro é representada por intensas
sabe, defender seus filiados condenados em
trocas de recursos entre Executivo e Legis-
movimentos que, novamente, nos lembram
lativo. De um lado prefeitos, governadores e
as apaixonadas torcidas de futebol.
o presidente buscando o apoio parlamentar
por meio da distribuição de cargos na má-
Mas o que é o Mensalão, afinal?
quina pública e da liberação de emendas
parlamentares para a consolidação de favo-
Um membro do PSDB afirmou, recentemen-
res paroquiais. Nesses casos, por mais imo-
te, que o presidente do PT, Rui Falcão, foi
ral que possa ser a prática, estamos diante
modesto quando disse que o seu partido
de algo legal. O problema é que o STF en-
apenas imitou os demais. Sob sua visão, “o
tendeu que o Partido dos Trabalhadores, ao
mensalão foi caso legítimo de ‘pela primeira
longo do governo de Lula, desviava dinheiro
vez na história desse país’”, parafraseando
público entregue ilicitamente para engordar
o bordão que acompanha Lula desde seus
os recursos destinados ao apoio necessário
primeiros discursos vangloriosos acerca de
para a aprovação de temáticas de interesse
seus feitos como presidente. Será verdade?
presidencial. O valor do subsídio adicional
Não parece. E para compreendermos o sen-
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era de R$ 30 mil mensais. Isso era o men-
Em termos históricos, inclusive, tal prática
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salão.
está associada à descrição feita por Maurice
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A despeito da complexidade de tais ações,
partidos políticos no século XX. Em sua obra
nossa cultura política tende a sugerir que a
Partidos Políticos, o autor observa que:
Duverger, teórico que escreveu sobre os
rotina é verificada em cidades e estados. A
questão é saber se tais verbas se destinam
a temas pontuais de interesse de grupos
econômicos ou políticos fortes, ou se são
“a corrupção teria ocupado lugar
regularmente distribuídas sob a forma de
assaz importante no desenvolvi-
uma mensalidade1. Um exercício muito sim-
mento dos grupos parlamentares
ples mostra o quanto a sensação de existir
britânicos. Por muito tempo, os
diferentes “mensalões” é verdadeira. Na
ministros ingleses asseguravam a
ferramenta de pesquisas Google, na inter-
si
net, basta que digitemos as palavras ‘men-
compra dos votos, senão da cons-
salinho’ (diminutivo comumente adaptado
ciência dos deputados. A coisa era
às realidades municipais e estaduais) e ‘ve-
oficiosa: havia na própria Câmara
reador’. O buscador nos remete a mais de
um guichê onde os parlamentares
620 mil registros entre processos, denún-
iam receber o prêmio do seu voto
cias, investigações e suspeitas retratados
na ocasião do escrutínio. Em 1714
pela mídia – inclusive, em alguns casos, o
foi criado o posto de secretário po-
uso do termo parece bastante equivocado.
lítico da tesouraria a fim de assu-
Cidades como Uruoca-CE, Sorocaba-SP, Ri-
mir os encargos dessas operações
beirão Bonito-SP, Joinville-SC, Campinas-
financeiras”
sólidas
maiorias
mediante
a
SP, Deadópolis-MS, Guarujá-SP, Presidente
Médici-RO entre tantas outras figuram no
noticiário. A simples substituição de ‘vereador’ por ‘deputado estadual’ nos remete a
De acordo com o autor, distribuindo as be-
mais de 500 mil links que relatam casos
nesses governamentais aos deputados da
suspeitos envolvendo as assembleias legis-
maioria, era possível fiscalizar de perto os
lativas de estados como Bahia, Alagoas,
votos e discursos. Tal situação parece capaz
Rondônia, Amazonas entre outros. Os mais
de explicar, de forma pragmática, a severa
diferentes partidos governam tais locais e o
disciplina no partido majoritário. De acordo
total de legendas beneficiadas por tais es-
com Duverger, por força das circunstâncias,
cândalos é, certamente, ainda maior. Em
seria possível afirmar que a corrupção par-
termos históricos, como a palavra passou a
lamentar resultou num fortalecimento da
ser utilizada a partir das declarações de Ro-
organização interior dos grupos de deputa-
berto Jefferson, provavelmente seria possí-
dos, algo que hoje seria possível de ser vis-
vel encontrar a prática com diferentes no-
to como positivo, apesar do nascimento en-
mes antes de 2005. Ou seja: Mensalão foi
viesado da lógica.
apenas uma forma de se batizar uma prática corriqueira em parcelas de nosso ambi-
Diante de tais observações, o que existe de
ente político.
novo no Mensalão? Aparentemente, no Brasil, a novidade está associada à condenação
por parte da justiça. O Partido dos Traba-
1
Nesse caso a análise tem meramente o
intuito de compreender o termo mensalão,
não havendo como atenuar compras ilícitas
de apoios específicos e acentuar as críticas
sobre os pagamentos regulares. Ambos são
crimes.
lhadores, supostamente o mais prejudicado
pelo julgamento, compreende que diante da
repercussão negativa cabe cobrar que a
mesma justiça avance sobre as ações penais 536 e 606 que, sob relatoria de Joaquim Barbosa – o mesmo da ação 470 –
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aguardam julgamento com entradas em de-
ela tratou de se corrigir. Ao longo do julga-
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zembro de 2009 e abril de 2011, respecti-
mento do mensalão as teses das defesas se
vamente, na corte maior do país. Trata-se
concentraram em afirmar que tudo não ha-
do que parcelas da sociedade têm chamado
via passado de caixa dois. O dinheiro para-
de Mensalão do PSDB Mineiro, um esquema
lelo é culturalmente aceito? Mais do que is-
montado pelo empresário mineiro Marcos
so: os crimes associados ao caixa dois teri-
Valério, condenado a pena superior a 40
am estariam prescritos, mas ainda assim,
anos no julgamento do mensalão. O es-
como podemos aceitar que a defesa de a-
quema teria servido de embrião para aquilo
gentes públicos se utilize de um crime para
que a justiça entende que auxiliou na sus-
construir seus argumentos.
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tentação da base de apoio à Lula no Congresso Nacional.
A ministra Carmen Lúcia, do STF, disse ter
sentido "profundo desconforto" quando um
O problema, nesse caso, é que parece haver
dos réus assumiu diante do STF a prática de
uma distância significativa entre o conceito
caixa dois: "Acho estranho e grave que uma
de mensalão e as acusações que caem so-
pessoa diga 'houve caixa dois'. Ora, caixa
bre Eduardo Azeredo, ex-governador de Mi-
dois é crime, é uma agressão à sociedade
nas Gerais, que seria o beneficiário do es-
brasileira". Tal questão, dessa forma, deve
cândalo que teria ocorrido em 1998 em sua
punir o PT nacional de Lula, o PSDB mineiro
reeleição. As acusações contra si dizem res-
de Eduardo Azeredo e tantos outros grupos.
peito à arrecadação de recursos para a rea-
Voltando ao nosso futebol, a sensação da
lização de sua campanha. Ele se defende
ministra se equivale àquela do torcedor bra-
afirmando que não tinha qualquer controle
sileiro que afirma após a vitória contestável
sobre tal questão. O julgamento está pre-
de seu time do coração em um clássico:
visto para ocorrer ainda em 2013, mas não
“ganhar do arquirrival é sempre muito gos-
há indícios no processo que indiquem que o
toso, e quando é roubado é ainda melhor”.
governo mineiro, eleito em 1994, e que go-
Esse é o sentimento de quem considera um
vernou o estado entre 1995 e 1998, tenha
crime algo absolutamente natural?
subsidiado de forma regular um conjunto de
deputados estaduais, o que caracterizaria
Conclusão
de fato um mensalão mineiro. Assim, parece que houve o que nossa classe política
Diante do que sabemos sobre o Mensalão
considera algo normal: o caixa dois.
pairam sobre a sociedade brasileira uma
série de dúvidas. A primeira delas está as-
Em meio aos escândalos políticos envolven-
sociada, efetivamente, ao caráter político do
do o governo federal em 2005, Lula lançou
julgamento. Não faltaram interferências ao
frase lapidar associada à cultura política
longo do processo. A oposição se manifes-
brasileira: “deixemos de ser hipócritas, não
tou de forma assídua. A imprensa fez signi-
existe campanha sem caixa dois no Brasil”.
ficativa pressão, mas devemos considerar
Ninguém atentou para o fato de o então
que a justiça é, e deve se manter, cega a
presidente ter participado, até aquele mo-
ponto de não sofrer influências dessa natu-
mento, de quatro campanhas presidenciais.
reza. O julgamento, amplamente mostrado
Ninguém se incomodou com o fato de ele
nos meios de comunicação, também sofreu
ter presidido um partido e de ter generali-
interferência dos réus e de suas estratégias
zado em suas observações, envolvendo a
de defesa. O ex-presidente Lula foi, inclusi-
classe política em algo criminoso. Em 2010,
ve, acusado de interferir junto ao Congresso
em debate ao longo da campanha presiden-
Nacional para a abertura da Comissão Par-
cial, Dilma Rousseff foi provocada sobre ar-
lamentar de Inquérito (CPI) que associava o
recadações ilícitas. Disse que “todo dinheiro
criminoso
lícito de sua campanha estava devidamente
senador cassado Demóstenes Torres (DEM-
registrado”. A plateia se manifestou rindo, e
GO) e ao governador de Goiás Marconi Pe-
Carlinhos
Cachoeira
ao
ex-
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rillo (PSDB). O tiro quase saiu pela culatra:
ser manchado por denúncias dessa nature-
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Cachoeira já havia se envolvido em suspei-
za. Estaria Lula acima da lei? Seria uma es-
tas que o relacionavam ao governo Lula em
pécie de ídolo, de craque poupado pela tor-
2004. Além disso, parecia representar os
cida mesmo sob a insatisfação com o time?
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interesses de uma das empreiteiras mais
contratada pelo Brasil em 2011, a Delta
Adicionalmente resta uma questão derradei-
Construções – que doou mais de um milhão
ra: o mensalão, se existiu, de fato funcio-
de reais à campanha de Dilma Rousseff em
nou para angariar apoio dos partidos no
2010. Por fim, guardava relação com go-
Congresso Nacional? Como já afirmamos, a
vernadores da base governista: Sergio Ca-
Ciência Política tem nos mostrado que nosso
bral (PMDB-RJ) e Agnelo Queiroz (PT-DF). A
presidencialismo tem a capacidade de aglu-
CPI envolveu gente de diferentes partidos e
tinar apoio legislativo em torno dos temas
posições frente ao governo federal, do PT
de interesse do Executivo. A adesão aos go-
ao PSDB, e o resultado foi um relatório va-
vernos, no entanto, pode se dar por moti-
zio, sem qualquer punição aos políticos en-
vos mais pragmáticos e menos programáti-
volvidos. No caso do governador do Rio de
cos. No caso do primeiro mandato de Lula,
Janeiro, um importante deputado do PT de
período em que surgiu o escândalo do men-
São Paulo foi flagrado pelas câmeras de
salão, a ferramenta batizada de Basômetro,
uma emissora de TV lhe enviando uma
lançada no portal do jornal O Estado de S.
mensagem SMS garantindo que, apesar do
Paulo, mostra alto apoio das bancadas da
clima negativo da CPI, os parceiros estariam
base governista.
a salvo.
Assim, se o esquema de compra de apoio
Lula ainda foi acusado de pedir que o ex-
parlamentar existiu da forma como a justiça
ministro da Defesa, Nelson Jobim, organi-
entendeu, é possível medir sua eficiência?
zasse uma reunião com o ministro Gilmar
Em caso afirmativo, devemos considerar
Mendes, do STF. Mendes tornou o suposto
que nem só de mensalão vive o apoio a um
teor da conversa público. De acordo com
governo. A distribuição de cargos e a libera-
ele, o ex-presidente, já na condição de um
ção de emendas orçamentárias são medidas
cidadão comum, lhe pediu para retardar o
facilmente associadas ao sucesso do Execu-
julgamento do mensalão para depois das
tivo em sua relação com o Legislativo. Além
eleições municipais de 2012. Em troca ofe-
disso, não podemos desconsiderar que a-
receu-lhe proteção em questões suspeitas
poio ao trabalho da Presidência pode se dar
associadas aos conteúdos da CPI do Cacho-
por crença ao que se está propondo. Por
eira. Por fim, passado o turbilhão da CPI no
fim, é necessário apontar que nada impede
Congresso Nacional, o noticiário afirma que
que outros esquemas de corrupção continu-
o governador goiano Marconi Perillo, que
em alimentando a prática conhecida como
conta com ampla maioria de deputados es-
mensalão. A despeito de tais observações, e
taduais, planeja se vingar do PT e do PMDB
de olho no Basômetro, os três partidos mais
instalando uma CPI para investigar o envol-
envolvidos no suposto esquema operado
vimento de prefeitos de cidades goianas
pelo PT merecem atenção: PPB-PP, PL (hoje
desses partidos com empresas ligadas à
PR) e PTB.
Delta Construções. Ademais, sob os argumentos utilizados pela justiça para condenar
Até a metade do primeiro ano do governo
José Dirceu (ex-ministro-chefe da Casa Civil
Lula (2003), PL (95%) e PTB (91%) aderi-
de Lula) e José Genoíno (ex-presidente do
am fortemente ao Planalto, lembrando que
PT) parcelas da sociedade se perguntam:
os liberais ocupavam a vice-presidência,
Lula não é culpado? Não deve ser igualmen-
com razões de sobra para agirem assim. O
te processado e condenado? Seu partido se
PP, que foi PPB até maio daquele ano, regis-
defende dizendo que seu líder maior está
trava apoio de 61% sob a velha sigla, su-
sendo atacado, e que seu legado não pode
bindo para 91% até o fim de junho sob a
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nova denominação, que nascia governista.
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A partir do segundo semestre, PL e PTB
mantêm índices superiores a 90% e o PP
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88%. Em 2004, quando surgem rumores da
crise, liberais, trabalhistas e progressistas
ofertam apoio superior a 80%. Na primeira
metade de 2005, quando o escândalo vem à
tona, os números ficam próximos de dois
terços de adesão - num momento em que
até o PT ficou na casa dos 70%. Mas nesse
período, as seis votações sobre a criação da
CPI do Mensalão registram posições governistas defensivas: PL (95%), PP (89%) e a
legenda do acusador PTB (90%). A situação
volta “ao normal” no segundo semestre,
quando o menor índice de adesão do grupo
ao governo fica em 79% (PP). Em 2006,
AUTOR:
Humberto Dantas
Doutor em ciência política pela
Universidade de São Paulo,
professor universitário e parceiro da KAS em ações de educação política e análises conjunturais desde 2004.
com o país avançando e sob o hit eleitoral
“deixa o homem trabalhar”, PL (90%), PTB
(87%) e PP (84%) estão firmes na base.
Diante dos números, ou o governo manteve-se firme na distribuição de recursos, ou
tal variável, se existiu, foi apenas um incentivo ao tradicional governismo.
Diante de tamanha complexidade dos fatos,
resta saber o que efetivamente representou
o gesto da justiça brasileira contra a corrupção na política. Seria algo isolado para vitimar um partido e seu governo? Ou representa uma nova tendência na tentativa de o
Brasil fortalecer suas instituições? Devemos
esperar que as penas sejam efetivamente
impostas àqueles que foram considerados
criminosos, e que culturalmente o brasileiro
deixe de associar, de maneira tão automática, os fatos de nosso cotidiano político às
paixões associadas ao futebol. Tal aspecto
parece difícil de ser resolvido, mas o fortalecimento do rigor legal pode ser o pontapé
inicial.
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