Afirmando a saúde da população negra na agenda
das políticas públicas
Afirmando a saúde da população negra na
agenda das políticas públicas
Maria Inês da Silva Barbosa
Valcler Rangel Fernandes
“Para chegar a lugares onde ainda não estivemos,
É preciso passar por caminhos pelos quais ainda não passamos.”
Mahatma Ghandhi
O reconhecimento da necessidade de instituir uma política de
saúde para a população negra nos obriga a reflexões várias, umas
afeitas ao campo das relações raciais existentes no contexto histórico
brasileiro, pautadas no racismo, outras relativas à superação dos
limites do princípio da universalidade para o alcance do direito de
cidadania em saúde, conforme preconizado no texto constitucional
enquanto dever de Estado.
Uma política de saúde voltada para a população negra se assenta,
contudo, em bases constitucionais, uma vez que pela Lei 8.080/90 o
estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação
programática têm a epidemiologia por baliza.
O perfil epidemiológico da população negra é marcado por
singularidades, tanto do ponto de vista genético, como das condições
de vida que geram diferenças no processo de adoecimento, cura e
morte. Esse perfil é marcado pela mortalidade precoce, discrimina-
Maria Inês da Silva Barbosa é Secretária Adjunta da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR. Assistente social, Mestre em Serviço Social (PUC/
SP) e Doutora em Saúde Pública (USP). Professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso.
Valcler Rangel Fernandes é médico, Subsecretário de Planejamento e Orçamento da
Secretária Executiva do Ministério da Saúde no período de 2002 a 2004. Atualmente é Secretário Municipal da Saúde de Nova Iguaçu- RJ.
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ção na assistência e pela qualidade dessa assistência, de acordo com
diferentes estudos que atestam, incontestavelmente, a existência de
desigualdades raciais em saúde.
Há que se considerar o racismo como categoria analítica para
que se compreenda o porquê de uma política de saúde para a população negra. Ao fazê-lo, algumas questões precisam ser equacionadas:
vivemos em um país de ideologia racista, que se alicerça no conceito
falacioso de raça, que tem historicidade e base material de subordinação, calcada em pretensa superioridade racial dos povos brancos
sobre os demais povos que constituem a humanidade.
O campo da saúde da população negra traz em si diversos desafios, de diferentes ordens, Oliveira(2002)1 considera que enveredar
pelas teorizações do campo da saúde da população negra é ter certeza
de que há necessidade de responder a muitas perguntas pertinentes e
impertinentes sobre, por exemplo, raça e etnia, ideologia, práticas
racistas e ciências biológicas, opressão racial/étnica, direito à diferença e à igualdade, assimetrias econômicas, exclusões e vulnerabilidades, ao que acrescentaríamos alteração do “status quo”, abolição
da “branquitude”, o que implica a eliminação de privilégios sociais,
econômicos e culturais por parte da população branca e o reconhecimento da capacidade e possibilidade de o outro ocupar o meu lugar,
numa perspectiva que considere e respeite as diferenças.
A inserção da questão racial, na agenda da história das políticas
públicas de saúde no Brasil, afirmativamente, é recente, posto que a
ausência de atenção específica, apesar da necessidade, configurou-se
como uma política de omissão, de não-responsabilidade do Estado
para com cerca de 50% da população brasileira.
As primeiras inserções do tema nas ações governamentais, no
âmbito estadual e municipal, são da década de 80 e foram formuladas
por ativistas do Movimento Negro e pesquisadores. Só, em 1995, o
governo federal se ocupou do assunto, em resposta à Marcha Zumbi
dos Palmares, cujas reivindicações resultaram na criação do Grupo
de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra/
1
OLIVEIRA, Fátima. Saúde da População Negra. Brasília: Organização Pan-Americana da
Saúde, 2002.
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GTI e do subgrupo Saúde. Cabe destacar, nesse período, a introdução do quesito raça/cor nos sistemas de informação de mortalidade e
de nascidos vivos; a elaboração da Resolução nº. 196/96, que introduz, entre outros, o recorte racial em toda e qualquer pesquisa
envolvendo seres humanos e a primeira iniciativa oficial do Ministério da Saúde na definição de uma área específica para a saúde da
população negra, resultado dos trabalhos desenvolvidos durante a
Mesa Redonda sobre Saúde da População Negra, realizada em abril
de 1996, em parceria com o GTI, cuja principal recomendação foi a
implantação de uma política nacional para a anemia falciforme.
Outras propostas foram elaboradas nesse período, como: investimento governamental e privado em pesquisas clínicas e
epidemiológicas; reciclagem dos(as) profissionais da área da saúde;
nova concepção da problemática específica da população negra;
direito à informação para os(as) afro-brasileiros(as) sobre sua
situação de saúde. Seguiram-se a isso ações como:
• apoio financeiro/projeto de pesquisa clínica sobre Anemia
Falciforme em quatro comunidades remanescentes de quilombo
(Bahia e Sergipe);
• implantação de dois sistemas simplificados de abastecimento de
água na Comunidade Kalunga;
• elaboração e publicação (Funasa) do “Estudo da Mortalidade
por Anemia Falciforme” Informe Epidemiológico do SUS;
• convênio com a Universidade de Brasília para a elaboração do
Manual Técnico de Diagnóstico e Tratamento das Doenças da População Negra Brasileira;
• contratação (Secretaria de Saúde de Goiás) de membros da
Comunidade Kalunga para atuarem como Agentes Comunitários de
Saúde.
Entretanto o que caracteriza essa fase é a descontinuidade das
ações, o descompromisso, a não-efetivação da política, o “feito por
fazer”, parafraseando o lema da 10ª Conferência Nacional de Saúde.
Novos pactos de rompimento do silêncio são estabelecidos, desta
feita lembrando Luther King, que dizia termos de “nos arrepender
nesta geração, nem tanto pelas más ações de pessoas más, mas pelo
silêncio assustador de pessoas boas”. Esses pactos se configuram na
proposição de uma política de promoção da igualdade racial na área
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da saúde, em meio a compromissos firmados entre o Ministério da
Saúde (MS) e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir).
O Termo de Compromisso estabelecido entre Seppir e o MS
implica a adoção de uma Política Nacional de Saúde da População
Negra inserida no Sistema Único de Saúde, gestão, programação e
ação, tendo por base as formulações advindas de pesquisadores(as)
negros(as) expressas no documento “Subsídios para o Debate –
Política Nacional de Saúde da População Negra: uma Questão de
Eqüidade”2, de que se extraem quatro componentes interdependentes, interligados e complementares, para a conformação dessa
política, a saber:
• produção do conhecimento científico – organização do saber
disponível e produção de conhecimentos novos, de modo a responder a dúvidas persistentes e dar conseqüência à tomada de decisões no
campo da saúde da população negra;
• capacitação dos profissionais de saúde – promoção de mudanças
de comportamento de todos (as) profissionais da área de saúde, por
meio de formação e treinamento adequados para operar nos cenários
da diversidade da sociedade brasileira e das peculiaridades do processo saúde, doença da população negra;
• informação da população – disseminação de informações e
conhecimentos sobre potencialidades e suscetibilidades da saúde, de
modo a capacitar a população negra a conhecer os riscos de adoecer e
morrer e facilitar a adoção de hábitos de vida saudável e de prevenção de doença;
• atenção à saúde – inclusão de práticas de promoção e educação
em saúde da população negra nas rotinas assistenciais e facilitação do
acesso a todos os níveis do sistema de saúde.
Para a gestão dessa política foi criado no âmbito do Ministério da
Saúde o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, composto
por representação de todas as áreas técnicas, e um Comitê Consultivo, em fase de constituição, formado pelo comitê técnico,
pesquisadores(as), ativistas da luta anti-racista no campo da saúde
da população negra e representantes da Seppir.
2
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OPAS e PNUD, 2002.
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A institucionalização da política de saúde da população negra
implicou a inserção do recorte racial no Plano Nacional de Saúde,
pois um Pacto pela Saúde no Brasil requer a compreensão da necessidade de recortes que permitam o estabelecimento de prioridades e a
identificação de lacunas da política de saúde brasileira: do SUS que
temos ao SUS que queremos.
É importante afirmar que a maioria das dificuldades relacionadas
à saúde da população negra não são resultantes de suas características genéticas; mas de suas condições socioeconômicas e educacionais e
das desigualdades históricas relacionadas com a pobreza e imputadas
pelo racismo.
Por isso, as ações que terão maior impacto sobre a saúde da
população negra são aquelas que visam melhorar as condições sociais
e de saúde, reduzindo as doenças ou as condições ligadas a esse
estado, facilitando o acesso aos serviços de saúde para atendimento,
melhorando esses serviços e prestando assistência que acolha e respeite a diversidade.
Entre as diretrizes e metas estabelecidas no Plano Nacional de
Saúde, destacamos as relativas ao incentivo à eqüidade em saúde, que
busca ampliar o acesso à saúde de comunidades quilombolas por
meio da estratégia Saúde da Família, considerando as diversidades
regionais e utilizando uma política de financiamento apoiada no
princípio da eqüidade; bem como a proposição de implantação do
Programa Nacional de Anemia Falciforme em cerca de 50% dos
municípios brasileiros.
No Plano Nacional de Saúde foram consideradas prioridades em
relação à população negra os agravos/problemas de saúde que se
seguem:
• mortalidade materna;
• causas externas (homicídio);
• mortalidade infantil;
• doenças crônico-degenerativas: hipertensão e diabetes mellitus;
• doenças cardiovasculares;
• doenças mentais (depressão, alcoolismo);
• desnutrição (criança, gestante, idoso);
• DST/Aids;
• mortalidade por Aids em mulheres negras.
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A inserção da saúde da população negra no Plano Nacional de
Saúde requer, para sua efetivação, o estabelecimento de estratégias que
envolvam gestores e trabalhadores da saúde dos estados e municípios,
para serem alcançadas as metas consideradas centrais, para a saúde da
população negra, que abrangem: formulação de políticas e definição
de protocolos básicos de ação, atrelando-se ao repasse de verbas
federais; incentivo ao acesso, provendo um plus nos recursos financeiros; criação de uma comissão intersetorial de saúde da população
negra no Conselho Nacional de Saúde; criação, nas estâncias federal,
estaduais e municipais, de uma coordenação técnica de saúde da
população negra, com participação da sociedade civil; divulgação
nacional de pesquisas, experiências e práticas bem sucedidas que
reconheçam as desigualdades raciais em saúde; difusão de informações
sobre o tema por meio de seminários, publicações e palestras.
A Saúde da População Negra no Plano Nacional de Saúde apresenta desafios a serem superados de forma a garantir a promoção da
igualdade racial em saúde, desafios estes que se configuram como os
estatuídos por Mandela quando nos sugere que “depois de escalarmos
um morro, descobrimos apenas que existem outros a escalar”, nossos
outros morros dizem respeito à superação de uma política de formação de recursos humanos inadequada à realidade; à desconstrução do
racismo institucional; à gestão diretiva que respeite as diferenças
socioculturais; ao reconhecimento das ações de saúde prestadas pelos
terreiros de Candomblé; à ausência de incentivos para fixação de
profissionais nas periferias ou nas regiões de exclusão social e econômica; à ausência de fomento para estudos e pesquisas; à distribuição
inadequada dos equipamentos e dos profissionais de saúde; ao
sucateamento e à baixa qualidade dos serviços prestados nas áreas
onde a população negra é majoritária; à ausência de monitoramento
epidemiológico com recorte racial e ao controle social frágil.
A responsabilidade social está posta, cabe-nos a realização da
promoção da igualdade racial na saúde: a instituição do SUS que
queremos.
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