O SER, O TEMPO E O NADA – CARACTERÍSTICAS DO NIILISMO
EM AS LESMAS
Fabiana Coelho de Morais 1 ¯3 ; Maria Raimunda Gomes2 ¯3 .
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Bolsista PBIC/UEG
Pesquisadora – Orientadora
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Curso de Letras – Português/Inglês, Unidade Universitária de Ciências Sócio-Econômicas e
Humanas, UEG
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RESUMO:
É nossa proposta identificar, através deste estudo, a influência da filosofia
existencialista, bem como a presença de traços niilistas e sua interligação com a temporalidade
no romance As lesmas, do escritor goiano Heleno Godoy, para tanto iremos compará- lo ao
romance A náusea, de Jean-Paul Sartre, considerado pai do existencialismo francês. Esta
pesquisa foi realizada basicamente através da análise bibliográfica dos textos literários e
filosóficos relacionados ao tema central. De fato podemos perceber que o romance do escritor
goiano demonstra claramente a influência do pensamento sartreano, de tal forma que chegamos
em alguns momentos a correlacionar o conflito existencial vivido pelos personagens centrais dos
dois romances, ainda que o enredo destas narrativas seja totalmente distinto, portanto, os
resultados obtidos apontam para uma confirmação de nossas expectativas.
Palavras-chave: narrativa; niilismo; temporalidade
Introdução
Os anos sessenta foram palco de diversas mudanças na vida e no pensamento do povo
brasileiro. Marcados, sobretudo, por uma forte repressão política, social e cultural, devido à
Ditadura Militar que teve início com o Golpe de 64. As narrativas ficcionais produzidas nesta
época nos apresentam personagens “problemáticos, com suas vidas amorosas em conflito;
presos a relações neuróticas”, (Gomes, 2005, p. 14). Foi neste contexto que o escritor goiano
Heleno Godoy concebeu o romance As lesmas, o qual teve sua primeira publicação em 1969 e
foi reeditado em 2002. Este romance projetou a literatura goiana no cenário das narrativas
modernas e recebeu elogios de vários críticos, sendo considerado um livro de vanguarda, não
somente por sua linguagem, trabalhada de maneira expressiva e inovadora mas, sobretudo,
pela forma como trabalha a temporalidade; segundo o crítico Carlos Fernando Magalhães
(2002, p. 279), que fez o posfácio do romance de Godoy, “a maior qualidade de As lesmas
mostra-se na continuidade-descontinuidade (relação espaço-tempo) com que é narrado”. No
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entanto, objetivamos neste trabalho ressaltar que é também de grande relevância a
complexidade no relacionamento dos personagens com o mundo e consigo mesmos, a própria
questão da existência, o “ser” e o “não ser”, que aponta para a presença de traços da filosofia
existencialista e niilista, nos impulsionando a compará- lo ao romance A náusea, de Jean-Paul
Sartre.
Material e Métodos
Por tratar-se de uma pesquisa bibliográfica, este estudo foi desenvolvido mediante uma
metodologia basicamente de investigação teórica, para isto nos servimos do acervo da
biblioteca da UEG e UFG e com nossos próprios materiais. Além dos dois romances já
citados, o de Heleno Godoy e o de Jean-Paul Sartre, ainda compõem o corpus da pesquisa os
livros de Gerd Bornhein, Franklin Leopoldo e Silva, e Maria Raimunda Gomes. Quanto ao
método foram feitas as leituras, fichamentos e resumos destas obras de cunho filosóficos e
literários, no intuito de complementar e enriquecer nossa pesquisa.
Resultados e Discussão
As lesmas narra a história de Lúcio, um jovem que nos malogrados tempos do golpe militar
viveu os mais conturbados dias de sua vida; foram os acontecimentos desencadeados por este
período negro, sem perspectivas, que associados à descoberta de um amor que ele julgava
impossível, o amor homossexual por Mário, e a educação repressora que recebia tanto na
escola de padres em que estudava, quanto na família, que o levaram ao suicídio. O romance,
que se inicia in medias res, nos apresenta Lúcio em seus últimos minutos de vida, na capela
do colégio, perdido num grande emaranhado de pensamentos e sem conseguir apreender o
significado das coisas que vê, sente e vivencia, “as cenas criadas pelos milhares de pedaços de
vidros coloridos já perderam o significado, se é que o tiveram, ou se têm, para eles algum
significado, que já não consegue apreender, entender o que dizem ou o que querem dizer, o
que representam” (Godoy, 2002, p. 16), ou seja, é o fim da consciência de si mesmo e do
mundo que o cerca, momento este em que o “eu” deixa de existir; segundo Franklin Leopoldo
e Silva, em Ética e Literatura em Sartre (2004, p. 45), “É angustiante pensar que o que somos
se constitui fora de nós, na contingência das coisas e da história”. Assim como Roquentin,
personagem problemático de A náusea, Lúcio, no decorrer do romance, descobre que sua
existência estava ligada à presença das coisas, dos objetos que o cercavam e do próprio Mário,
objeto de sua paixão. Com a partida de Mário, em razão de Lúcio recusar-se a ter com ele um
relacionamento amoroso, este se sente perdido: “Estou cansado e sem rumo. Não sei o que
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fazer” (Godoy, 2002, p. 77), e também não consegue mais assimilar a significação do mundo
e das coisas; aos poucos descobre que sua vida não faz mais sentido algum: “Não tenho
sentidos, não faço sentido” (Godoy, 2002, p. 94), neste ponto Lúcio sente e reconhece o vazio
do tempo e da existência, é a descoberta do nada, “O nada como fenda que se alastra e toma
conta de tudo e de todos” (Godoy, 2002, p. 88). Também Roquentin (personagem criado por
Sartre para ilustrar esta descoberta do “nada” das coisas) passa por este momento, ao
“descobrir que a presença das coisas é o único modo de existência destas” (Silva, 2004, p.
50), desta forma, ao tentar transpor as aparências das coisas e enxergar um outro modo de
existência destas, ou seja, uma forma que fuja à aparência do presente, descobre que a única
maneira de fazer isto seria imaginar o “nada”, pois as coisas são inteiramente aquilo que
parecem ser e por trás delas não há nada. Antoine Roquentim, o protagonista de A náusea, é
um historiador que se refugia na província de Bouville para escrever a biografia do marquês
de Rollebon, porém é permanentemente tomado pela sensação de náusea que provoca nele
uma ruptura consciente com os outros e com o mundo. Ao desistir de escrever o livro sobre a
vida do marquês de Rollebon, objeto de suas pesquisas e única fonte de inspiração para sua
vivência naquele momento, “Não esquecer que o Sr. De Rollebon representa hoje em dia a
única justificativa de minha existência” (Sartre,1983, p. 110), Roquentin sentiu que este havia
morrido e com ele todo o sentido de sua existência. Essa associação tão singular entre o
marquês e Roquentin é de tal forma complexa que “a consciência de Roquentin visa o
marquês não como um outro, ou como uma criação, mas como um outro si mesmo” (Silva,
2004, p. 52). A existência do marquês mostra ser para o personagem Roquentim, mais real do
que as pessoas que o cercavam, embora sua presença não fosse imposta, pois fora Roquentin
que o invocara, ele desempenhava um papel fundamental em sua vida, “O senhor de Rollebon
era o meu sócio, tinha precisão de mim para ser e eu tinha precisão dele para não sentir o meu
ser” (Sartre, 1983, p.148). Esta mesma associação evidencia-se no relacionamento entre Lúcio
e Mário, a partida de Mário representou para Lúcio, a morte, o fim da existência de tudo
aquilo que só fazia sentido para ele enquanto o outro estava presente, “O que vou fazer ainda
com o que porventura encontrar?” (Godoy, 2002, p. 59). É também interessante perceber que
outras curiosas semelhanças se mostram nas narrativas de Sartre e de Godoy, como o fato de
os personagens terem como única forma para expressar suas angústias e frustrações, um
diário, embora as marcações cronológicas destes diários sejam diferentes, pois Roquentin
registra apenas os dias da semana ou as horas, já o diário de Lúcio está organizado com
indicações de datas e meses; notamos o quanto seus conflitos existenciais os isolavam do
mundo e da convivência com outros seres, assim tanto em As lesmas quanto em A náusea,
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temos personagens problemáticos, cujas relações com a sociedade são puramente metafísicas,
uma vez que mostram-se imersos num reino sem retorno, sem conseguir apreender o sentido
do mundo e das coisas. Para Lúcio a maneira encontrada para lidar com essa consciência
adquirida do “nada” foi o suicídio, uma forma de integrar-se, de tornar-se também parte deste
“nada”. Já Roquentin, embora demonstre em algum momento este mesmo desejo: “Pensava
vagamente em me suprimir, para aniquilar ao menos uma dessas existências supérfluas”
(Sartre, 1983, p. 190), tem a percepção de que tudo que o cerca se lhe apresenta como
“demais”, incluindo sua própria existência, no entanto, mesmo o suicídio resulta para ele
como injustificável, uma vez que, em sua concepção, isto também seria demais, “Mas até
mesmo minha morte teria sido demais... eu era demais para a eternidade” (Sartre, 1983, p.
190). Por este prisma, Lúcio supera Roquentin, pois se este sonha a morte, aquele a realiza;
mas qual foi então a forma encontrada pelo personagem de Sartre para lidar com a náusea? Há
uma sugestão de que a literatura em si seria a forma encontrada por Sartre para subjugar a
náusea, “algo que não existe, que estaria acima da existência. Uma história, por exemplo,
como as que não podem acontecer, uma aventura” (Sartre, 1983, p. 258), segundo Gerd
Bornhein, esta solução é apenas momentânea pois a arte seria apenas um artifício que não
chegaria a figurar uma saída para a cond ição humana, pois esta saída, se é que ela existe,
deveria coincidir com a assunção do homem, “A rigor, porém, o problema fica em suspenso, e
o livro termina com um talvez” (Bornhein, 2003, p. 25). Há ainda em ambos os romances um
forte questionamento sobre a temporalidade existencial, metaforizada no romance de Godoy
pelo ato repetitivo e infindável de acasalamento das lesmas sob um círculo, com as quais
Lúcio sonha continuamente. Essa percepção do tempo, que se escoa lentamente, é também
simbolizada pela náusea, no entanto a música funciona para Roquentin como uma espécie de
remédio momentâneo que integra o passado ao presente, fazendo com que a náusea
desapareça, “tão forte é a necessidade desta música: nada pode interrompê- la, nada desse
tempo em que o mundo se afundou; a música cessará por si própria no momento preciso”
(Sartre, 1983, p. 42). A existência ou a inexistência do ser e das coisas é definida unicamente
através do tempo, pois se o passado já não existe, o futuro ainda não existe e o presente é a
simples transição entre ambos, apreendê- lo seria impossível, é desta forma que Lúcio define
enigmaticamente o nada: “Se uno o princípio e o fim, nada começa, nada termina. Nem
existe” (Godoy, 2002, p. 98).
Conclusão
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Mediante a tudo que já foi exposto anteriormente, inferimos ter atingido o objetivo
proposto neste trabalho. Podemos perceber que o romance do escritor goiano demonstra
claramente a influência do pensamento sartreano, de tal forma que chegamos em alguns
momentos a correlacionar o conflito existencial vivido pelos personagens centrais dos dois
romances, ainda que o enredo destas narrativas seja totalmente distinto . Nesta perspectiva
compreendemos ser inegável a influência do pensamento existencialista e a abordagem das
questões relacionadas à filosofia niilista na construção do romance As lesmas. É preciso
ressaltar, no entanto que não pretendemos aqui esgotar as possibilidades de análise desta obra,
mas apenas contribuir para o crescimento e valorização da pesquisa no meio acadêmico.
Referências Bibliográficas
.
1. Bornhein, Gerd. 2003. Sartre . São Paulo: Perspectiva.
2. Godoy, Heleno. 2002. As lesmas. Goiânia: Asa Editora.
3. Gomes, M. Raimunda. 2005. A ficção brasileira pós- 64. Goiânia: Ed. da UCG.
4. Sartre, Jean-Paul. 1983. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
5. Silva, Franklin Leopoldo. 2004. Ética e literatura em Sartre . São Paulo: UNESP.
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O ser, O tempo e o nada - Características do niilismo em As