A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E LITERATURA: o caso da ficção
romanesca em Caminhos da Liberdade de Jean-Paul Sartre
Anderson Alves Esteves∗
RESUMO: A relação entre a ética e o objeto de arte, tão cara na tradição filosófica,
foi pensada neste artigo a partir da personagem Mathieu em Caminhos da
Liberdade, de Jean-Paul Sartre. A exemplo da tradição filosófica, Sartre também
teve de resolver como a escrita não embargaria a reflexão acerca dos problemas
que se remetiam à realidade e as propostas para resolvê-los; na época de Sartre, os
problemas eram os antecedentes da Segunda Guerra e ela propriamente dita. Para
realizar este empreendimento, foi preciso formular chaves estéticas que estavam em
compasso com a proposta ética do autor.
Palavras-Chave: Literatura – Ética – Romance – Totalização.
ABSTRACT: The relationship between ethic and the object of art, so highly
cherished when it comes to philosophical tradition, was considered in this article
based on Mathieu, a character in Les Chemins de la liberté, by Jean-Paul Sartre. As
in philosophical tradition, Sartre also had to figure out a way not to let written
language create an impediment to reflection on the problems that led to reality and to
the propositions that could solve those problems. In Sartre´s times, the issues were
those previous to World War II and the war itself.To achieve this goal, it was
necessary to come up with esthetic keys that were in agreement with the author´s
ethical proposition.
Keywords: Literature - Ethics - Romance - Totalization
Filiado à categoria da prosa por Sartre, o romance tem as peculiaridades que o
demarcam como um gênero que se serve das palavras para designar1 objetos,
comunicá-los, colocá-los em atividade. O romance não é poesia; nesta, a palavra é o
próprio objeto do escritor. Com efeito, a atitude do espírito, na prosa, não se limita à
contemplação ou a criação poética de objetos, a sua empresa é de outro alcance:
trata-se de desvendar o mundo – ao narrar e nomear a conduta de um indivíduo (a
∗
Mestrando em Filosofia (PUC-SP), especialista em Sociologia (Escola de Sociologia e Política de
São Paulo), bacharel em Filosofia (USP) e em Ciências Sociais (Fundação Santo André), professor
da Faculdade Interação Americana e autor de livros didáticos de Filosofia.
1
“(...) A prosa é utilitária por excelência; eu definiria de bom grado o prosador como um homem que
se serve das palavras. (...) O escritor é um falador; designa, demonstra, ordena, recusa, interpela,
suplica, insulta, persuade, insinua”. SARTRE, Jean-Paul. O que é a literatura? Tradução de Carlos
Felipe Moisés, São Paulo:Editora Ática, 2° edição, 1993, p. 18.
personagem), o escritor revela-a a ele, demonstra sua objetivação e, assim, oferece
a este indivíduo a possibilidade de posicionar-se acerca de sua própria conduta, de
desvendar a si mesmo e ao mundo, tornando-o responsável pelos dois2.
Porém, Sartre é cuidadoso em evitar uma visão unilateral do desvendamento;
não é apenas o escritor que desvenda, o leitor também é agente em tal desvendar;
ademais, ele também cria:
“A qualidade de maravilhoso de Le grand Meaulnes, o babilonismo de
Armance, o grau de realismo e verdade na mitologia de Kafka – nada disso
jamais é dado; é preciso que o leitor invente tudo, num perpétuo ir além da
escrita. Sem dúvida, o autor, o guia, mas somente isso; as balizas que
colocou estão separadas por espaços vazios, é preciso interligá-las, é
3
preciso ir além delas. Em resumo, a leitura é criação dirigida.”
A existência do objeto literário é conferida também pela subjetividade do leitor.
Portanto, como o objeto literário depende de uma dialética autor-leitor, de um pacto
de generosidade entre ambos, a simples leitura mecânica não significa um
desvendamento do mundo; isto é, trata-se também de um “apelo à liberdade do
leitor”4 e a dependência desta liberdade5. Pelo fato de a liberdade do autor assumir a
leitura do romance, o objeto literário ganha um valor enquanto o leitor lhe confere um
significado. O que Sartre argumenta é que o leitor pode notar a sua totalidade (ou o
quão ela é ausente em determinada realidade) enquanto ser na medida em que lê –
eis o objetivo da arte.
Designar, desvendar e reconhecer nossa totalidade: faz-se mister uma chave
estética para que o mundo romanesco opere tais empresas. Nos três romances da
conhecida trilogia Caminhos da Liberdade, a personagem Mathieu parece estar em
busca justamente de tal designação, de tal desvendamento, da totalidade; Mathieu
apresenta-se querendo/precisando transcender a si mesmo. Eis a chave estética de
Sartre mediante os problemas vividos por Mathieu: pela ação desta personagem, o
leitor é convidado a um engajamento imaginário. As relações de Mathieu com as
2
“(...) O escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim
de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade”. Op. Cit.,
p. 21.
3
Op. Cit., p. 38.
4
Op. Cit., p. 39.
5
“(...) Estabelece-se então um vaivém dialético; quando leio, exijo; o que leio, então, desde que
minhas exigências sejam feitas, me incita a exigir mais do autor, o que significa: exigir do autor que
ele exija mais de mim mesmo. Reciprocamente, a exigência do autor é que eu leve ao mais alto grau
as minhas exigências. Assim a minha liberdade, ao se manifestar, desvenda a liberdade do outro”.
Op. Cit., p. 46.
outras personagens são, concomitantemente, suas ações e o engajamento
imaginário do leitor: a dialética autor-leitor, conduzida pela ação da personagem,
redunda, então, no objetivo da arte, acima exposto – trata-se de encontrar a
totalidade.
Destarte, a articulação entre a ética e a literatura é de fundamental importância
em Sartre, já que a totalidade precisa ser conquistada: sua prosa vincula as duas
por uma personagem que tem a potência de desvendar o mundo, o que resta a
saber é o quê e como desvendá-lo. Qual dever ser o objeto da prosa: borboletas ou
a perseguição aos judeus? E mais: como escrever? Estas perguntas expressam as
bifurcações e as veredas necessárias para a conquista da totalidade. À primeira
pergunta, o escritor tem de responder se deve se engajar ou não; à segunda, como
escrever para que o engajamento seja potencializado, caso ele tenha tomado este
caminho. De tal relação entre literatura e ética, nota-se o primado do tema do
romance sobre o estilo presente no mesmo, é preciso salvar a busca pela totalidade
a cada linha da prosa.
Em Caminhos da Liberdade, há a expressão desta dinâmica entre estética e
ética: três personagens, Brunet, Jacques e Mathieu têm condutas diferentes e
características na busca pela felicidade. Um acredita que o caminho é o
engajamento na luta social, ao lado do Partido Comunista; outro, envereda por um
objetivismo radical, rendendo-se aos mecanismos sociais de conquistar a resolução
de seus problemas em acordo com a própria ordem; o último, por sua vez, age
distanciando-se das duas classes que se antagonizam no capitalismo da época dos
escritos de Sartre. Ética e estética, mais uma vez, articulam-se no modo como as
três personagens lutam pela felicidade, elas estão situadas em um ambiente no qual
há de se tomar decisões em relação a uma historicidade, uma negatividade e uma
temporalidade – estas três categorias são fundamentais para percebermos a relação
entre ética e estética na produção romanesca sartriana. Por elas, percebemos como
o estilo ganha adequação à proposta de buscar a totalidade. Tratemos das três
categorias.
Historicidade. Mathieu, por exemplo, está situado diante de uma família, de uma
classe social, de uma nação. Ele não vive pairando de modo a-histórico no mundo,
sua historicidade é aquela que o próprio Sartre expôs em O que é a literatura?:
“(...) A partir de 1930, a crise mundial, o surgimento do nazismo, os
acontecimentos na China, a guerra civil espanhola, nos abriram os olhos;
pareceu-nos que o chão ia faltar debaixo de nossos pés e, de súbito, para
nós também começou a grande escamoteação histórica: esses primeiros
anos da grande Paz mundial de repente tinham de ser considerados como
os últimos do período entre as duas guerras; em cada promessa que
havíamos saudado era preciso ver uma ameaça; cada dia que tínhamos
vivido revelava a sua verdadeira face: a ele nos havíamos abandonado
sem desconfiança, e eis que nos encaminhava em direção a uma nova
guerra, com uma rapidez secreta, com um rigor oculto sob um ar
despreocupado; nossa vida de indivíduo, que parecera depender de
nossos esforços, de nossas virtudes e falhas, de nossa vida ou má fortuna,
da boa ou má vontade de um punhado de pessoas, de repente nos
pareceu governada, até os mínimos detalhes, por forças obscuras e
coletivas, e suas circunstâncias mais mínimas refletiam o estado do mundo
inteiro. De repente nos sentimos bruscamente situados: sobrevoar os fatos,
como gostavam de fazer os nossos predecessores, tornou-se impossível;
havia uma aventura coletiva que se desenhava no porvir e era a nossa
aventura, a que permitiria mais tarde datar a nossa geração, com os seus
Ariéis e os seus Calibãs; algo nos aguardava nas sombras do futuro, algo
que nos revelaria a nós mesmos, talvez na iluminação de um derradeiro
instante antes de nos aniquilar; o segredo de nossos gestos e de nossas
determinações mais mínimas estavam adiante de nós, na catástrofe a que
os nossos nomes iriam vincular-se. A historicidade refluiu sobre nós; em
tudo o que tocávamos, no ar que respirávamos, na página que líamos,
naquela que escrevíamos, no próprio amor, descobríamos algo como um
gosto de história, isto é, uma mistura amarga e ambígua de absoluto e
6
transitório” .
Eis a historicidade da personagem Mathieu: naquele período, o escritor, o próprio
Sartre, usou sua pena em uma história que ele não escolheu para si e, no entanto,
foi nela que seu ofício foi exercido. Naquele momento histórico que Mathieu teve de
fazer suas escolhas.
Negatividade. A tensão que Sartre deu a sua trilogia foi o eterno “vício”7 de ser
livre que a personagem Mathieu tinha: ele não tomava o partido do engajamento,
não entrava na resistência francesa (em grande parte da trilogia), não se cansava.
Isto é, a negatividade que acompanhava Mathieu, que refletia sobre a sua realidade
e fazia com que ele não aderisse às ideologias do momento, foi expressão da
própria negatividade que, segundo Sartre, é um exercício próprio da literatura: é
preciso limpar terreno, não aceitar os termos confusos e ideológicos; nas palavras
de Sartre, “a função do escritor é chamar o gato de gato”8. Somente a partir desta
difícil operação de negar, de limpar a linguagem de vários vícios, o escritor constrói
seu pensamento/romance de modo limpo e verdadeiro. Isto é, há dois momentos na
6
Op. Cit., pp. 157-158.
SARTRE, Jean-Paul. A Idade da Razão. Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Abril Cultural, 1981,
p.21.
8
SARTRE, Jean-Paul. O que é literatura? P. 208.
7
negatividade: de início, em A idade da razão, o “vício” de Mathieu é uma liberdade
abstrata, vacilante e, no último romance da trilogia, Com a morte na alma, é uma
liberdade engajada, concreta, que vincula Mathieu à entrada na Resistência – é hora
de “chamar o gato de gato”.
Temporalidade. A geração de escritores franceses que escreveu a partir de 1930,
por exemplo, integrada na história, fez uma literatura de historicidade cuja
característica era o redescobrimento do absoluto dentro do relativo, o absoluto
metafísico visto dentro do fato histórico. Nos termos sartrianos:
“uma vez situados, os únicos romances que poderíamos escrever eram
romances de situação, sem narradores internos nem testemunhas
oniscientes; em suma, se quiséssemos dar conta da nossa época,
devíamos fazer passar a técnica romanesca da mecânica newtoniana para
a relatividade generalizada, povoar os nossos livros de consciências semilúcidas e semi-obscuras, dentre as quais talvez considerássemos alguns
com mais simpatia do que outras, mas nenhuma teria um ponto de vista
privilegiado sobre os acontecimentos, nem sobre si mesma, apresentar
criaturas cuja realidade seria o tecido confuso e contraditório de
apreciações que cada uma fará a respeito de todas – inclusive de si
mesma – e todas a respeito de cada uma. (...) Devíamos, enfim, disseminar
dúvidas, expectativas, incompletude, forçando o leitor a fazer suas próprias
conjecturas, inspirando-lhe a sensação de que sua visão da intriga e das
personagens era apenas uma opinião entre muitas outras, sem nunca
9
conduzí-lo nem deixar que ele adivinhasse os nossos sentimentos” .
Eis o motivo de toda vacilação de Mathieu, do seu “vício” de ser livre, a infinitude de
sua indecisão. Trata-se de uma personagem marcada pela temporalidade: o autor,
ao escrever sobre o seu mundo, buscando o absoluto de modo articulado com a
relatividade histórica, preenche a literatura com toda a dinâmica presente, dá a ela a
ação10 do seu tempo. Isto é, a literatura, em si, é uma literatura da ação, da práxis.
Imbricada na articulação entre a relatividade histórica e o absoluto metafísico, a
questão da temporalidade também tem uma nova abordagem que ajuda Sartre a dar
conta de seu projeto: as três dimensões do tempo – passado, presente e futuro –
são consideradas como três estruturas que estão encadeadas processualmente. Isto
é, o passado também é uma realidade na medida em que está vinculado ao
9
Op. Cit., pp. 165-166.
“(...) La fiction est bien présente dans la médiation rationelle, puisque cette dernière traite du vouloir
et de l’action; mais l’évocation des situations se passe de personnages nommément identifiés; elle
s’effectue sur les types. L’imagination a pour mission de fabriquer des variations eidétiques et des
schémes. Dans les Carnets, on voit naître le processus. Quand il traite de l’action, Sartre rencontre
l’axiome sur lequel repose l’entreprise des moralistes: à partir du singulier, on peut remonter à
l’universel, en étudiant un homme, on parle en vérité de tous les hommes”. SAINT-SERNIN, Bertrand.
“Philosophie et fiction” in Les Temps Modernes. Paris, vol I, out/dez de 1990, p. 175.
10
presente e transforma-se em futuro; a consciência, assim, articula-se não somente
com o que é, aqui e agora, mas também com o não-ser, com toda a história que a
antecedeu e com tudo que ocorrerá a partir de suas escolhas no presente. Para
Sartre (1993), o passado apresenta um conjunto de determinações que pautaram a
liberdade, tais como as normas sociais, a religião e a metafísica.
A liberdade do sujeito, diante destas condições objetivas, articula o passado com o
futuro na medida em que ela elabora um projeto e, assim, tem autonomia para
escolher entre dar continuidade ao determinado ou alterá-lo: o sujeito analisa as
condições existentes no seu passado e, a partir daí, tendo uma previsibilidade do
futuro, age para construí-lo. Isto é, antecipa-se o futuro: este é vivido pelo sujeito de
acordo com o seu projeto, de acordo com a negação de uma realidade presente.
Superar esta realidade, transcendê-la, é construir alguma outra que se abra como
possibilidade futura. Essas dimensões temporais trabalham, então, com a realidade
e a possibilidade de mudá-la, trabalham com o tempo tal como a consciência o
encara: continuar ou mudar? Viver de acordo com as determinações ou transcendêlas? O sujeito procura antecipar o futuro, vivenciar outra possibilidade de realidade
que não seja a atual (ele tem, portanto, uma dupla experiência com a realidade,
aquela que é dada e aquela que é possível) e, a partir daí, fazer a sua escolha.
Na prática, ao agir no presente, o sujeito age com comprometimento com o futuro e,
procurando executar seu projeto, dirige-se ao que ainda lhe falta, ao que a realidade
não lhe ofereceu. A vivência negativa da realidade inclina o sujeito a adquirir o que
ele não tem. Isto é, há a dupla determinação do seu ser: ele é e o que lhe falta.
Decorre desta abordagem da temporalidade mais um motivo para a vacilação de
Mathieu: sua consciência sempre aparece em aberto, como uma busca de uma
totalidade, mas que não se completa; assim, é melhor denominar esta consciência
como um processo de totalização – a temporalidade a afeta com veemência.
Eis as características da personagem Mathieu, eis a relação entre a ética e a
literatura em Caminhos da Liberdade: o conteúdo e a forma da escrita expressam as
questões históricas vividas pelo autor e pelo leitor; a vacilação de Mathieu em
realizar suas escolhas expressa a tensão existente, de modo concomitante, na
trilogia e no período histórico retratado; a articulação do indivíduo com a sua história,
isto é, a ação da personagem na sua situação histórica, expressa o processo de
totalização (procurar ser o que não se é) – para Sartre, o objetivo da arte.
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, M. Os romances de Sartre In: A parte do fogo. Tradução de Ana Maria
Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
MÉSZÁROS, I. A obra de Sartre: busca da liberdade. Tradução de Lólio Lourenço
de Oliveira. São Paulo: Ensaio, 1991.
SAINT-SERNIN, B. Philosophie et fiction. In: Les Temps Modernes. Paris: v.1,
out/dez. de 1990.
SARTRE, J.P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de
Paulo Perdigão, Petrópolis: Vozes, 1997.
_____. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2°
edição, 1993.
_____. A idade da razão. Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Abril Cultural,
1981.
_____. Sursis. Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
_____. Com a morte na alma. Tradução de Sérgio Milliet, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983.
______; HEIDEGGER, M. Os Pensadores. Tradução de Vergílio Ferreira, Luiz
Roberto Salinas Fortes e Bento Prado Junior, São Paulo: Abril Cultural, 1° edição,
1973.
SILVA, F. L. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo:
Unesp, 2004.
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