AS CONSTRUTORAS DA NAÇÃO: PROFESSORAS PRIMÁRIAS NA
PRIMEIRA REPÚBLICA
MARIA LÚCIA RODRIGUES MÜLLER
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO/INSTITUTO DE
EDUCAÇÃO
Este trabalho é síntese de parte de minha Tese de Doutoramento, defendida em
1998, na Pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu objetivo é
discutir a “construtora da nação”, isto é, a professora primária na Primeira República.
Trata-se de compreender como a idéia da construção da nação brasileira produziu a
professora, sua construtora. E, por sua vez, como ela, a professora, incorporou esta
tarefa.
Para compor o painel histórico de um objeto tão rico e tão complexo fiz uso de
diferentes aportes teóricos, procurando estabelecer algumas intercessões com a história
das mentalidades, a antropologia e a sociologia. Concentrei a pesquisa nos estados de
Minas Gerais, de Mato Grosso e do Rio de Janeiro (antigo Distrito Federal). Graças a
essa pesquisa foi possível encontrar um trânsito regional de idéias e ações que buscava
divulgar a idéia de nação para além do círculo restrito das elites intelectuais. Optei por
trabalhar com um conjunto de fontes que mesclou documentos escritos, depoimentos
orais, documentos oficiais, ou guardados nos acervos oficiais, e as histórias de vida ou
relatos autobiográficos. Quanto aos documentos escritos, privilegiei os acervos da
Instrução Pública encontrados no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, no
Arquivo Público Mineiro e no Arquivo Público de Mato Grosso.
Em termos históricos, a idéia da nacionalidade brasileira é muito recente. Ao ser
abolida a escravidão e, em seguida, com a proclamação da República, intensifica-se a
discussão sobre a nação. A partir daquele momento, o esforço foi dirigido para o como
formá-la. O pano de fundo ainda era um conjunto de concepções e representações
pessimistas sobre a população brasileira, devido à sua composição étnica. Não tínhamos
povo, era voz corrente. Havia que formá-lo.
As vozes mais generosas, ou mais lúcidas, sinalizavam que as condições de vida
dessa população, “que não era um povo”, não se devia à sua composição étnica. As
origens de nossos males estavam inscritas na nossa história.
Nos primeiros anos deste século, de diferentes áreas do conhecimento e, como
veremos, de diferentes partes do país, colocava-se a necessidade da construção da
nação. A escola primária assume, então, um papel fundamental. Será através dela que a
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identidade e o sentimento nacional poderão ser construídos. Será ela quem difundirá
novos hábitos e valores, os deveres da cidadania. Entra em cena, então, a professora
primária.
A contribuição da professora para a construção da nação deu-se basicamente
através de dois processos: a difusão e a apresentação do modelo. Foi ela que divulgou e
ensinou os símbolos e os mitos da nacionalidade e conformou os hábitos e atitudes de
seus jovens alunos. Para isso ela contava com alguma espécie de orientação
metodológica que foi sendo aperfeiçoada com o tempo. Também contava com os
programas de ensino: história, moral e cívica ou moral e civismo, língua pátria e,
finalmente, com a execução dos rituais que garantiam a afirmação de pertencimento de
todos os brasileiros a uma mesma nação. Os programas de ensino tinham como base a
necessidade de estabelecer, via escola, o sentido de nação para a população brasileira.
Tão importante quanto a questão nacional era a situação específica, a conjuntura
histórica em que se encontrava uma determinada sociedade, no plano regional, e os
projetos políticos de suas elites para garantir seu espaço político no poder regional e
central.
Em Minas, os programas de Moral e Civismo enfatizavam o respeito à
propriedade pública e privada, as regras de cortesia que deveriam existir entre
indivíduos, principalmente entre os desiguais. Os programas de História reverenciavam
os heróis pátrios, mas também os heróis mineiros. No Distrito Federal, enfatizava-se o
respeito às autoridades constituídas e a necessidade de contenção corporal. Mato
Grosso, por sua vez, assinalava a diferenciação entre o “nós”, brasileiros e matogrossenses e o “eles”, paraguaios e bolivianos; também enfatizava a necessidade da
manutenção da integridade territorial, regional e nacional.
Os programas definiam e determinavam o que ensinar, mas não eram suficientes
para significar a idéia de nação. A segunda forma, tão ou mais importante que a
primeira, implicava necessariamente que a professora, individualmente, pudesse
exemplificar a pátria para seus jovens alunos. Exemplificar a pátria significava, no caso
brasileiro, servir de modelo vivo das virtudes nacionais. Ela mesma, professora,
transformar-se em símbolo, em modelo,
nas suas atitudes, condutas, valores e
sentimentos. Dar sentido à nação, mesmo nas pequenas coisas que dão a aparência de
virtude, apresentando o modelo sem apresentar.
Para assumir uma tarefa de tamanha envergadura, a construtora precisou ser
construída. Vários foram os agentes históricos, individuais ou coletivos, que pensaram e
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formularam os caminhos para essa construção, inclusive ela, professora. Contudo, as
ações mais sistemáticas e intensas partiram do poder público. Como assinalou Geertz
(1984:209), as idéias têm que ser institucionalizadas para terem uma existência material
na sociedade.
Já nos primeiros anos deste século, o ensino público primário incorpora um
crescente número de mulheres. Em 1906, 50% do magistério do Distrito Federal era
composto por mulheres. A partir daí, a presença feminina no magistério carioca irá
aumentando rapidamente. Processo semelhante ocorreu nos outros estados.
O diploma da Escola Normal conferia privilégios, principalmente a
vitaliciedade, mas não era obstáculo para o ingresso e a permanência no posto. Já se
pode falar de carreira, no sentido de níveis profissionais e mecanismos de passagem a
estes níveis, mas ainda não se exigia formação especializada.
As fontes escritas e orais consultadas não autorizam a conclusão que nessa
época as professoras e seus familiares obrigatoriamente pertencessem aos setores mais
privilegiados da sociedade, social e economicamente. Pelo contrário, os depoimentos
das próprias professoras, mais as evidências de outras fontes, indicam que a maioria
delas precisava, e muito, do salário que obtinha com seu trabalho.
No Distrito Federal, bastava à candidata ao magistério possuir o curso primário
completo para ser nomeada professora. Nos textos legais normalistas tinham preferência
para nomeação, mas não era isso o que acontecia na prática. Os concursos para
preenchimento de vagas, embora previstos em lei, nem sempre ocorriam.
Em Mato Grosso, o Regulamento do Ensino determinava ser obrigatória a
apresentação de autorização do pai ou, em falta dele, da mãe ou do marido, caso a moça
fosse casada e atestado de autoridade policial que comprovasse sua boa conduta, moral
e civil, para que a professora, mesmo maior de idade, pudesse ingressar no magistério
estadual. No Distrito Federal, em 1920, o exigido era comprovação de idade (idade
mínima:18 anos idade máxima: menos de 40 anos); prova de haver concluído o curso
primário; atestado de bom comportamento; atestado de vacina e revacina e, atestado de
um médico escolar de que a requerente não sofria de qualquer moléstia transmissível ou
que a inabilitasse para o exercício do cargo. Isto para os concursos de “auxiliar de
ensino”. Antes dessa data não havia limite de idade. Tanto que várias das requerentes
aos concursos tinham menos de 18 ou mais de 40 anos. A função de auxiliar de ensino
desaparece nos anos posteriores. A partir da década de vinte, o diploma da Escola
Normal torna-se de fato obrigatório.
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Os Regulamentos garantiam formalmente a permanência dos professores
primários nos cargos. No entanto, na prática, era muito insegura sua situação.
Professores e professoras viviam em permanente insegurança política, pois poderiam ser
sumariamente demitidos caso seu partido perdesse as eleições municipais.
É bom frisar que a professora, recém ingressa na escola pública e cada vez mais
tornando-se maioria, teve também de ser “civilizada” e disciplinarizada. Sendo a
professora a responsável por transmitir elementos de civilidade e moralidade aos seus
alunos, sua conduta moral foi esquadrinhada e posta em parâmetros bem definidos e
delimitados. Entretanto, por outro lado, estava permanentemente ameaçada de ver sua
credibilidade posta em dúvida. Uma calúnia, por menos consistência que tivesse,
poderia trazer danos sérios à sua vida pessoal e profissional. A existência de diversos
atestados encontrados nos Arquivos, enfatizando a conduta moral das professoras ou
candidatas ao posto de professora, comprova que, nos primeiros anos deste século, esse
era seu maior atributo, o, então chamado, decoro profissional.
Em Minas Gerais podemos encontrar outro tipo de ameaça de punição, como é o
caso das professoras ameaçadas de sofrerem multa por não enviarem às autoridades
educacionais a escrituração escolar (mapas de freqüência, copia da matrícula, boletins,
listas de freqüência, etc.) ou, tendo-a enviado, não escreviam corretamente a
denominação da escola (por exemplo, a escola era masculina e a professora colocava
feminina ou mista, etc.). Tendo as mulheres ingressado na profissão mais recentemente,
é de supor-se que fossem menos afeitas à rotina dos procedimentos burocráticos.
Entre perseguições e punições mais ou menos duras, vai sendo construído um
modelo de conduta para o magistério público. Nem sempre esses processos disciplinares
estavam previstos nos regulamentos de ensino. Como se houvesse uma lei escrita e
outra não-escrita.
Nos anos seguintes, cada vez mais seria atribuída às professoras a tarefa de
serem um exemplo vivo das melhores qualidades morais e cívicas. Elas deveriam ser
missionárias civilizadoras. Seus comportamentos e valores deveriam servir de modelo
aos alunos, pais e colegas mais jovens.
A invocação às regras de decoro profissional era diferente em cada região do
país. No Distrito Federal, em 1920, quando já se processava a racionalização do sistema
escolar, vinte e nove professoras foram repreendidas e suspensas, acusadas de haverem
faltado a “seus mais elementares deveres” por terem aprovado alunos sem que estes
tivessem condições. Quais eram os “elementares deveres” que essas vinte e nove
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professoras cariocas deixaram de cumprir? No meu entendimento, o primeiro deles foi o
de faltar à lógica do Estado que prescreve que um seu funcionário (ou funcionária) deve
atender a uma racionalidade impessoal (no caso, a verificação do aproveitamento do
aluno, conforme determinava o regulamento, as “disposições da lei”) e não a uma lógica
relacional (como parece ter ocorrido), fundada na relação entre pessoas singulares que
se conhecem e estabelecem regras informais de convivência.
Minha intenção ao recuperar esse processo de racionalização administrativa é
procurar relacioná-lo com as transformações que iam ocorrendo na mesma época com o
perfil das professoras primárias. Complementado os critérios de ingresso -limite de
idade, saúde e formação mínima- estabelecia-se o regime da recompensa ao mérito
como fator predominante, quando não exclusivo, para as nomeações e para a ascensão
profissional. Divisor de águas, o mérito foi o critério profissional, político e cultural por
excelência dessa nova professora que se pretendia que construísse a nação. Ao serem
estabelecidas essas regras, indicava-se quem podia e quem não podia aspirar ao
magistério primário e, dessa maneira, limitava-se o universo das possíveis candidatas.
Esse processo fatalmente iria conduzir a uma maior elitização na cooptação do pessoal
docente.
Além disso,
a professora, deveria estar em condições de incorporar novos
controles emocionais, não discutir em termos desabusados com o inspetor escolar, por
exemplo. Deveria também estabelecer novas disposições mentais, estar disponível para
incorporar novos conhecimentos ou, pelo menos, parecer que incorporava esses
conhecimentos. Permitir que fosse educada sua sensibilidade, amar os alunos, amar a
pátria, dispor-se a sacrifícios pessoais em nome de entidades tão abstratas quanto pátria
e educação da nação. Deveria também prever quais seriam os resultados de suas
condutas e que comportamentos adotar em função dos espaços onde transitava. Adotar
os procedimentos que se esperava dela, por exemplo, amealhar o mérito ou os
significados do mérito: as comprovações que poderiam assegurar-lhe a ascensão
profissional. O que hoje chamamos comprovações profissionais ou de desempenho
profissional e que são anexados ao currículo..
Esse processo de aprendizado aparentemente não foi fácil nem foi rápido. Pelo
quantidade de ofícios de repreensão que aparecem no acervo da instrução pública do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, relativos ao período 1910-1920, um grande
número de professoras estavam ainda presas às regras de afeto e convivência do mundo
privado.
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Custou também às professoras discernir as diferenças simbólicas entre o espaço
escolar e os outros espaços sociais. A escola, como a conhecemos hoje, é um espaço que
se pretende especializado na aquisição de conhecimentos. Esse espaço exige formas de
conduta e de sociabilidade diferentes daquelas que desempenhamos em outros espaços
sociais, exige controle e autocontrole e regras de cortesia adequadas a esse espaço.
Assim mesmo, as festas, os rituais praticados na escola têm sempre a referência do
sentido escolar, oficial, de reafirmação dos elementos que unem, que integram, que
transcendem o cotidiano individual e reafirmam a coletividade nacional: a
comemoração do 7 de Setembro, por exemplo. Os rituais servindo para confirmar a
importância do símbolo.
Porém, para que a instituição escolar tivesse tal caráter
especializado e simbólico, muitas medidas tiveram de ser tomadas com relação ao seu
professorado. Inclusive, no caso do Distrito Federal, proibindo-se enfaticamente a
presença de alunos, professores e professoras em festividades populares.
Em Minas Gerais essa “formação” político/pedagógica, disciplinadora e
civilizadora da professora primária foi bastante bem conduzida e enfaticamente
afirmada. É emblemática, do ponto de vista desse processo, a lição sobre a organização
da sala-de-aula publicada na Revista do Ensino, em março de 1925. Didaticamente
explicita as regras de cortesia e as operações mentais necessárias ao trabalho escolar.
Vemos ali o controle do corpo, o controle do tempo, a relação com o espaço físico, as
formas de tratamento (ou as regras de cortesia) entre iguais – os alunos; com relação aos
superiores: professora, demais autoridades e visitantes; no espaço público de maneira
geral – na rua, no recreio. A formação da sensibilidade através do aprendizado do
sentimento de solidariedade, do autocontrole emocional, etc
Uma outra nota na Revista do Ensino, publicada quatro anos depois, em 1929,
reafirmava quais deveriam ser os objetivos dos festejos escolares. Mas também nos
informa do quanto era difícil retirar do espaço escolar o profano, o popularesco, no
sentido da construção da especialização das funções. A nota execrava o “mau gosto
deplorável” de alguns programas de festas escolares, onde eram cantadas canções como
“Adiós Muchachos”, “Adiós mis Farras”. Terminava dizendo que a finalidade das festas
escolares era a comemoração de datas e vultos de nossa história. O espaço escolar servia
para, entre outras coisas, cultivar o sentimento pátrio. Não era o espaço onde se deveria
ouvir músicas, digamos, românticas que serviam à perfeição para os congraçamentos
sociais que louvavam o ócio, o prazer e, principalmente, a fuga aos deveres do cidadão,
principalmente o amor ao trabalho e o respeito às instituições.
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A leitura da “Revista do Ensino” nos faz saber que eram os homens que escreviam
sobre os assuntos “doutrinários”. Eram eles que diziam como deveria ser construída a
nação através da escola. A elas, professoras, cabia cumprir as tarefas. Escreviam na
revista? Escreviam, quase sempre sobre o “como fazer”, o “como dar aulas”. Essa
divisão de tarefas que, de certa maneira, reflete a divisão de tarefas por gênero que
encontramos na sociedade até os dias de hoje, foi
cantada em prosa e verso.
Demonstração da subordinação feminina? Parece que sim. Entretanto, também era um
espaço conquistado. Tratava-se da evidência material, posto que seus artigos eram
publicados na Revista, que as mulheres também eram capazes de produzir
intelectualmente. Isto não significa que houvesse consenso a respeito da capacidade
intelectual da mulher. Também havia aqueles que pensavam que ela era cheia de afeto e
dedicação e parca de inteligência.
A vida da construtora não era um mar de rosas. Apesar do título e da correspondente
segurança profissional que a acompanhavam, a vida da professora primária era dura. As
entrevistas nos falam de muito trabalho e de uma remuneração exígua. Nos arquivos
estão os registros de vários pedidos de licença por motivo de enfermidade. O registro do
número de professoras doentes e/ou incapacitadas para o trabalho remete, hoje sabemos,
às doenças da pobreza, denunciando as condições em que a professora exercia o
magistério. Alguns diagnósticos referiam-se à “asthenia nervosa”, provavelmente
sofrimentos mentais adquiridos no exercício da profissão. O trabalho docente era mal
remunerado e produzia desconforto físico e emocional.
Ser professora nessa época era muito mais do que conquistar a possibilidade de
uma renda certa e segura (mesmo dentro dos limites que já foram assinalados); ou de
adquirir prestígio social para si e para sua família. Ser professora era, principalmente,
conquistar um direito que desde a abolição da escravatura era concedido a todos os
brasileiros, o direito de ir e vir. O ingresso nos espaços do estudo e do trabalho docente
possibilitava às moças transitarem sozinhas pela cidade. Porém, se deixavam de ser
vigiadas em casa, não escapavam de ser vigiadas na rua. O exercício do trabalho
docente implicava numa vigilância implícita de todos aqueles que transitavam pelo
espaço público. Ambigüidade que muitas resolveram “mantendo as aparências”
necessárias ao posto de trabalho que ocupavam. E quando me refiro a “manter a
aparência”, não estou utilizando o sentido popular do termo, o de aparentar ser o que
não se é. Pelo contrário, aparentar ser professora significava ter a convicção de que sua
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conduta e seus valores eram os mais adequados. Como disse uma professora: “As
professoras geralmente eram bem comportadas”.
Mas, o preço da autonomia era, muitas vezes,
a solidão. Solidão pelo
afastamento geográfico dos familiares, solidão pelo espaço social que ela passara a
ocupar e a tornava diferente de outras mulheres de sua geração. Sua liberdade era
muitas vezes negociada, transigida e limitada pelos preconceitos da época e pelo grupo
social a que pertencia. Os sapatos altos, as roupas elegantes, enunciavam um condição
econômica difícil de manter. A autonomia e a independência que os estudos e o salário
propiciavam não devia ser proclamada abertamente. E, ainda por cima, deveria ser o
sustentáculo da sua família e dos filhos das demais famílias, seus alunos.
Os cursos de férias, em 1924, no Distrito Federal, implantados na administração
Carneiro Leão, tiveram a assistência de até mil professoras por dia. As fotos dessas
aulas mostram mulheres e moças atentas, concentradas mesmo, nas aulas. Mostram
também essa mistura de modéstia, elegância e recato, tão própria às professoras. Um
processo que havia sido iniciado no começo do século, começava a dar resultados.
Minas Gerais, como já foi assinalado aqui, pouco a pouco, também constrói a
sensibilidade da professora. As professoras eram instadas a participar desse processo
representadas como protagonistas, como heroínas. Quem é o herói? O herói é aquele
que responde a alguma necessidade ou aspiração coletiva, é a encarnação de um
modelo coletivamente valorizado. Símbolos, mitos, heróis, devem ser constantemente
reafirmados para exercerem sentido. Ao ser conferida à escola a tarefa de construir a
identidade e o sentimento nacional, de produzir os valores e condutas adequados aos
brasileiros, de transformar essa “massa amorfa” em um povo, havia de ser conferido o
sentido de heroicidade à protagonista dessa construção. Como sabemos todos, os que
militamos no espaço escolar, a referência à escola traz implicitamente a referência à
quem ensina. No caso do magistério primário, a referência é à professora.
Era política de Estado outorgar à mulher professora primária a “missão” de civilizadora
da população e construtora da nação brasileira. Evidentemente essa política era reflexo
de toda uma discussão no pensamento social brasileiro e tinha uma certa aceitação
social, pois era um espaço de trabalho para as mulheres relativamente seguro no sentido
financeiro (propiciava-lhe um salário mensal), que lhe dava autonomia e condições de
diminuir sua submissão no espaço familiar e mesmo de ajudar aos seus, como os
depoimentos das professoras demonstram.
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No entanto, apresentar a professora primária como um ser indefeso e submisso aos
projetos alheios é desconhecer as evidências de que ela lutou muito para ser aceita como
produtora de significados e dar legitimidade à sua inserção profissional. A ela foi
conferida a representação heróica porque ela fez por merecer. As professoras souberam
aproveitar as brechas que lhe facilitavam o ingresso no espaço público. Aproveitavamse elas das tarefas que se lhe impunham no espaço possível e o ampliavam dentro das
possibilidades e das impossibilidades.
Em Mato Grosso, ao contrário de Minas e do Distrito Federal foram professoras e não o
poder público que assumiram a tarefa de dar significado ao magistério primário. Em
1916, fundaram um Grêmio Literário, o Grêmio Júlia Lópes e no ano seguinte passaram
a publicar uma revista, “A Violeta”, e dali encaminharam a discussão sobre a
construção da nação e o papel da professora nessa construção. Nesse caso específico, do
Grêmio Júlia Lópes, elas agiram, isto é, produziram sentidos, conferiram significados,
deram-se o título de heroínas, apesar dos poderes públicos. A sagacidade política não
partiu só de um lado.
A meu ver, nação e exercício do magistério contribuíram para que surgisse na
sociedade brasileira um novo tipo social de mulher. Assim, a professora primária
ocupou todas as brechas possíveis, inventou e reinventou-se e, graças à sua inserção
profissional, pôde usufruir de uma autonomia penosamente conquistada. Essa
autonomia era maior que a concedida às mulheres de sua época. As professoras foram,
talvez, o primeiro grande contingente social de mulheres que transitou da esfera privada
para a esfera pública na sociedade brasileira. Mas, como em todo processo social
complexo, as inter-relações são múltiplas e variadas. À mulher instruída, que trabalhava
fora e ganhava seu próprio sustento, contrapunha-se à mulher submissa e dependente da
família e do cônjuge. No entanto, não podemos tomar a figura da professora primária
como o oposto cultural das demais mulheres de sua época. Sua autonomia era relativa.
Adquirir um lugar no espaço público implicou submeter-se a outros tipos de pressões
culturais.
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