Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128
06 e 07 de agosto de 2009
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LEITURAS TRIANGULARES: RACISMO E ALIENAÇÃO EM LITERATURAS
LUSÓFONAS
Jesiel Ferreira de Oliveira Filho (UFS)
Pensar a diferença. Pensar sobre o que significa diferenciar numa sociedade mestiça. Se
“tudo” é misturado, tudo é “igual”? Num mundo em que todos são feitos de muitos pedaços,
camadas, faces, o que pode servir de referência para a coerência, para o equilíbrio, para a justiça? Transitando entre cores e aparências, também transitaremos entre éticas? Tais questionamentos sintetizam, em sua dimensão mais generalista e mais empírica, os problemas que têm
se destacado para mim no âmbito de um trabalho reflexivo baseado na leitura de sentidos estruturantes da memória cultural brasileira. Uma leitura que tenho desenvolvido sob uma perspectiva triangulada, que conjuga polifonicamente textos culturais brasileiros, portugueses e
angolanos. Mais do que a recomposição de uma história “comum”, tenho me dedicado a mapear conexões, paralelismos e divergências entre essas textualidades e entre os cenários que
elas narram, buscando montar painéis contrastivos que permitam a revisão crítica das significações imaginárias investidas na produção das contemporaneidades desses espaços identitários
lusófonos.
De partida, é fundamental discutir o que aqui se entende por “lusofonia”, buscando
sobretudo uma demarcação das significações estritamente lingüísticas, ou institucionalmente
condicionadas, em geral atribuídas a esse termo. Por vezes concebida como uma espécie de
superestrutura espiritual derivada de certas peculiaridades fonéticas e “empáticas”, a língua
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portuguesa, que foi o principal dos idiomas comerciais do escravagismo, exibe uma versatilidade intercultural que, sem dúvida, precisa ser historicamente equacionada considerando-a
como instrumento de verbalização dos hibridismos culturais suscitados pela mestiçagem. Usado para o contato “descobridor” e para a transplantação colonial, para o questionamento e
para a imposição de sentidos, o sistema lingüístico do português comporta, tal como o corpo
mestiço, níveis múltiplos de significação que, a meu ver, se organizam num sistema correspondente ao que Volochínov, o discípulo-heterônimo de Bakhtin, definiu como um “repertório de formas de discurso [utilizados] na comunicação socioideológica” (BAKHTIN, 2006, p.
44). Interessado em superar as posturas mecanicistas acerca das relações entre infra e superestrutura, para Volochínov os problemas concernentes à análise da “psicologia do corpo social”
devem levar em conta a complexidade das formas de interação verbal mobilizadas por indivíduos e coletividades. Nesse aspecto, vale recordar que uma “mesma” língua se encontra estratificada e tensionada por diferentes modos de discurso veiculados através dos significantes
comuns. Situando na “luta de classes” a força-motriz dessa diferenciação, Volochínov propõe
o conceito de “comunidade semiótica” (idem, p. 47) para definir o agenciamento, no interior de
“uma” língua, entre signos normativos e semioses heterogêneas, ou mesmo antagônicas. Posteriormente reconceitualizada pelo próprio Bakhtin, sob uma ótica culturalista e literária, como
heteroglossia, a idéia de comunidade semiótica define um campo verbal de cruzamento de
signos ideológicos1 carregados de “índices de valor contraditórios” (idem, ibidem). Configurando analiticamente espaços comunicacionais e identitários altamente hibridizados, os aportes
teóricos de Volochínov possibilitam uma ampliação conceitual da lusofonia que põe em destaque a pluralidade de apropriações da língua portuguesa como suporte verbal para rituais de
permuta simbólica. Ferramenta indispensável na demarcação das fronteiras entre a tradução e
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a homogeneização, entre o exótico e o mútuo, o repertório de práticas significantes demandado pela mestiçagem estabelece conexões e padrões de integração entrecruzando, também, as
distintas projeções identitárias investidas como eixos coesivos nos espaços da diáspora tropical. O modelo da comunidade semiótica permite, portanto, a caracterização das formas ideológicas que operam a mediação das diferenças sócio-culturais, especificando modos de atualização de valores e sentidos concernentes à ordem colonialista nas formas diasporizadas e pósimperiais da língua portuguesa. Se, como diz o ensaísta português Eduardo Lourenço, a lusofonia é um “lugar de memória” (LOURENÇO, 2001, p.176), sobretudo de memória verbal, o
que fica em causa então é mapear e discutir a persistência, a dissolução ou a reelaboração de
quadros de referência derivados da experiência colonial.
Assumindo a linguagem, e em especial as linguagens literárias, como fator de expressão
e articulação de diferenças, o método de leitura triangulada que proponho pretende recompor
uma “intercultura da diáspora” (GILROY, 2001, p. 17) configurada através das narrativas que
traduzem as diversificadas experiências de influência mútua e de apropriação de valores que se
desdobram dos intercâmbios e dos encontros sincréticos luso-angolo-brasileiros. Abrindo vias
interpretativas que relacionam as clivagens vigentes na sociedade brasileira à dispersa memória
do colonialismo português, a triangulação tropical mobiliza um jogo comparativo que reinsere
vetores translocais de sentido tendo em vista, como sugere Stuart Hall ao definir os objetivos
da crítica pós-colonial, “pensar as questões do poder cultural e da luta política” a partir das
“aporias e reduplicações” (HALL, 2003, p. 115) que fissuram saberes e tradições legados pela
ordem colonialista.
Por vezes encaradas como resultados do subdesenvolvimento imposto à colônia, ou
então da coexistência mantida, no âmbito da jovem nação, entre povos e estratos sociais em
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“estágios” distintos de civilização, as formas complexas de diferenciação e de desigualdade que
transpassam a sociedade brasileira, assim como outros espaços identitários marcados pelo colonialismo português, põem em questão pensar a própria constituição do “diferente”, do Outro, se se pretende ultrapassar os impasses legados pelas pedagogias da morenidade. Os diversos cultos nacionais ao encontro “harmônico” entre as “três raças” fundadoras tendem a enfatizar os processos congregativos acionados pelo tipo de leitura multi-acentuada que os significantes mestiços demandam2, postura que subestima as contradições acumuladas na produção
histórica da mestiçagem. A meu ver, a aparente superação dos binarismos raciais promovida
pela miscigenação deve ser aferida levando em conta as identificações ambíguas que derivaram
desses cruzamentos, e de que maneira tais ambiguidades têm servido como instrumentos ideológicos direcionados para a reprodução do que o filósofo Etiénne Balibar chama de estruturas
de “exclusão interior” (WALLERSTEIN & BALIBAR, 1991, p. 71), ou as formas psicossociais de construção da infrahumanidade que perpetuam, como um apartheid transparente, graves
divisões econômico-culturais nas sociedades pós-coloniais. As condições excessivas de violência e de exploração em que se processou a colonização — e que se mantiveram na construção
da nação escravocrata — tornam necessário avaliar até que ponto, nos modos de convívio
promovidos pela mestiçagem, bem como nos discursos que buscam interpretá-los, não se acomodam patologias sociais cuja normalização simbólica não pode ser confundida com a sua
resolução efetiva. Contrariando o tom das interpretações familialistas, as mestiçagens tropicais
também constituíram marcações e compassos mediante os quais esquemas diversos de classificação e de violência racial podiam ser articulados às interações físicas e afetivas mantidas
entre os sujeitos da diferença colonial.
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Conforme ficou consagrado nas análises sócio-antropológicas feitas por Gilberto Freyre, a produtividade da “paz senhorial”, manobrando exploração e simbiose, decorreria do
elevado grau de intimidade, ou de dependência mútua, que ela era capaz de instalar entre dominadores e escravos. Tal forma de cumplicidade impositiva seria como que catalisada pelo
caráter exacerbadamente emotivo do colonizador português, considerado pelo sociólogo como sujeito a “extremos desencontrados de introversão e extroversão ou alternativas de sintonia e esquizoidia” (FREYRE, 2004, p. 68). Forjados em meio a essas dinâmicas tortuosas, os
ideais da mestiçagem oscilam entre noções de mistura que ora ressaltam o valor do intercâmbio, do convívio, ora o da purificação progressiva, da tutelagem paternalista e “civilizadora”,
mobilizando assim forças de diferenciação e de apagamento que, com grande facilidade, deslizam para o apassivamento radical dos sujeitos negros. Nesse contexto, para além das ambiguidades fenotípicas que marcam os modelos estéticos branqueados, é necessário atentar para as
contradições que se entrecruzam na elaboração psicológica e moral do “ideal de um supernome (super) nacional” (WALLERSTEIN & BALIBAR, 1991, p. 98), segundo a formulação
de Balibar, ou das projeções do tipo de sujeito que condensa a “autenticidade” nacional. Encarnado tradicionalmente, no imaginário brasileiro, pelo “moreno”, ou pelo sujeito sincrético e
simpático, a esse modelo também se associam as virtudes da adaptabilidade e da sabedoria
flexível, ou “malandra”, sempre hábil para burlar as regras comuns em benefício próprio. Individualista e multifacetado, amoroso e despótico, não se pode perder de vista que a moldagem “interpenetrativa”, como também diria Gilberto Freyre, desse modelo derivou, sobretudo, das fraturas que dinamizavam as trocas culturais na sociedade escravagista, dos simbolismos que investiam em tornar cotidiana a experiência das deturpações e das fragmentações
aplicadas na remontagem de valores transplantados. Traduzidos como “excesso luxurioso” no
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Retrato do Brasil de Paulo Prado, ou como “dialética da ordem e da desordem” na análise que
Antonio Candido dedicou a Memórias de um sargento de milícias, de Manual Antônio de Almeida,
esses agenciamentos estruturantes dos arquétipos identitários brasileiros regem-se de acordo
com um princípio de naturalização do contraditório, de aceitação das desproporções, que foi
sintetizado ideologicamente como a força civilizadora da “raça superior”, ou como os critérios
“realistas” a serem seguidos para transformar a multiplicidade brasileira numa nação.
Como definir, portanto, nos ritos da cordialidade configurados a partir do rescaldo do
domínio colonial, os limites da aceitação e da tolerância, do compromisso e da imposição, do
explícito e do silenciado? Na abordagem dessas questões, já o médico e etnólogo Nina Rodrigues chamava a atenção para um aspecto crucial das dinâmicas de sincretização que estudou: a
instabilidade moral dos agentes gerados nesses processos. Mais grave do que as supostas inapetências físicas ou intelectivas costumeiramente sublinhadas pela reflexão racialista, é no
campo moral que se concentram as inquietações acerca do “caráter nacional” resultante da
mistura mestiçadora. Fundamental, entretanto, para releituras críticas desse diagnóstico da
instabilidade é deslocar essa perspectiva dos processos tradicionais de estigmatização do negro
e do mestiço africanizado, e reprojetá-la na abordagem das duplicidades comportamentais da
população europeizada. As energias caóticas liberadas e cruzadas pela colonização transcontinental reclamaram um tipo de autoridade que se adaptasse a modos de convívio regulados por
um “padrão de completa inconstância” (ARAÚJO, 1994, p. 63), segundo afirma um dos principais leitores contemporâneos de Freyre, o antropólogo Ricardo Araújo, tipo cuja matriz mítico-histórica seria a figura do Caramuru, ágil na exibição do poder e na manipulação conciliadora. Essas linguagens e performances que produzem modos de, por assim dizer, “estar sem
ser”, desdobram-se do caráter ao mesmo tempo despótico e dissimulado das relações coloni-
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ais, fundadas em acordos provisórios ou viciados que, traduzindo antes o impasse do que o
equilíbrio, suturam antagonismos persistentes. Superando os vieses essencialistas da abordagem freyreana, cabe examinar esses traços da passionalidade e da imprevisibilidade como
componentes de dramaturgias sociais que manobram politicamente carências e fragilidades do
subalterno. Em seus estudos sobre o preconceito racial no Brasil, Florestan Fernandes resume
o jogo de alternâncias e de segredos que tantas vezes perpassa os cotidianos da mestiçagem:
Sem nenhuma espécie de farisaísmo consciente, tende-se a uma acomodação contraditória. O “preconceito de cor” é condenado sem reservas, como se constituísse
um mal em si mesmo, mais degradante para quem o pratica do que para quem seja
sua vítima. A liberdade de preservar os antigos ajustamentos discriminatórios e preconceituosos, porém, é tida como intocável, desde que se mantenha o decoro e suas
manifestações possam ser encobertas ou dissimuladas. (...) O branco entrega-se a
um comportamento vacilante, dúbio e substancialmente tortuoso. (FERNANDES,
1972, p. 24)
Segundo o filósofo Cornelius Castoriadis, o “essencial da heteronomia — ou da alienação, no sentido mais amplo do termo — (...) é o domínio por um imaginário autonomizado
que se arrojou a função de definir para o sujeito tanto a realidade quanto seu desejo”
(CASTORIADIS, 1982, p. 124). Tensionadas pelas heranças do escravagismo, as significações
oblíquas agenciadas nos imaginários das mestiçagens tropicais emparelham simbolismos contraditórios, por vezes traumáticos, referentes a origens, assimilações, qualidades e pertencimentos, estabelecendo correlações entre os processos de subjetivação e, nos termos de Castoriadis, a “massa de condições de privação e de opressão, (...) indução, mistificação, manipulação e violência” (idem, p. 131) mediante a qual o mundo social institucionaliza disparidades,
preconceitos míticos e forças alienantes. É importante frisar que esse viés de leitura que articula o processo biocultural da mestiçagem com a naturalização dos comportamentos dúplices
não busca sustentar qualquer reivindicação de uma “pureza estabilizadora”, mas abordar o
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conflito árduo e plurifacetado entre os potenciais liberatórios e opressivos do sincretismo tropical. Vale dizer, seu poder para ressignificar ou para alienar, para estimular a criatividade
transmutadora ou a repressão acomodativa no jogo das traduções culturais. Para subsidiar essa
discussão, proponho-me a realizar um mapeamento de imagens literárias a partir do qual se
possa compor uma genealogia dos efeitos psicossociais das mestiçagens lusófonas, estabelecendo tipologias de valores, agentes e processos simbólicos acionados em representações de
conflitos raciais. Pelo cruzamento comparativo dessas imagens, pretende-se pôr em evidência
fatores comuns que contribuem para a persistência dos estereótipos coloniais, bem como entrecruzar diferentes respostas histórico-culturais às divisões suscitadas pelo racismo nos cenários
luso-angolo-brasileiros.
Os objetos dessa pesquisa compõem-se através de uma rede de textos e imagens ficcionais que proporcionem a inscrição e a rearticulação de significações concernentes à experiência colonial e suas heranças, às misturas e às hierarquias culturais, ao valor identitário e sexual do corpo, e às dinâmicas do familialismo lusófono. O corpus com o qual trabalho presentemente desdobra algumas referências que reuni durante minha pesquisa de doutoramento, da
qual resultou a tese Raça e poder em textos e contextos luso-angolo-brasileiros: articulações estratégicas
(2008). Tendo me centrado na tese em cenários do século XX, desejo agora explorar as possibilidades interpretativas do estudo diacrônico, bem como da diversificação dos olhares ficcionalizantes. No âmbito dos textos brasileiros, analiso três obras nas quais se inscrevem questões
básicas relativas aos convívios e conflitos entre brancos e negros: os contos de As vítimasalgozes, de Joaquim Manoel de Macedo (1869); a novela Clara dos Anjos, de Lima Barreto
(1922); e o romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (1984). O exame das duas
primeiras obras pretende traçar um panorama das reconfigurações do imaginário racial entre
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dois momentos-chave da história brasileira: a crise final do regime escravocrata e o início da
modernização capitalista, cenários captados por Macedo e Barreto, respectivamente, com o
foco dirigido para as violências e perversões que os transpassam. A saga-paródia de Ribeiro,
por sua vez, além de colocar em destaque as diversas formas de resistência empreendidas pelos afrobrasileiros contra a exploração racial, inscreve uma rica galeria de representações das
ambivalências mestiças (tais como os personagens Amleto, Leléu, Maria da Fé e Patrício Macário), estabelecendo também produtivas articulações entre o passado escravagista e o presente.
O princípio contrastivo acionado pelo método triangulador que dinamiza esta pesquisa
se mostra especialmente útil, a meu ver, para conferir mais nitidez aos mecanismos que transparentizam a vigência dos arcaísmos e a persistência dos preconceitos discriminatórios. Pela
confrontação entre as muitas faces do “mundo que o português criou”, torna-se possível caracterizar os processos simbólicos que instituíram as hierarquias coloniais nesses espaços, bem
como as estratégias de saber e poder investidas em preservá-las ou superá-las. O corpus da literatura portuguesa selecionado para a pesquisa procura dar conta da variedade de olhares que a
cultura colonizadora lança sobre a sua “obra imperial”, destacadamente quando se trata da
construção da imagem do Outro africano, ambiguamente marcada pelos estigmas da selvageria
e da submissão. As matrizes para esses estereótipos podem ser mapeadas desde o encontro de
Vasco da Gama com o estranho de “pele preta” que, logo à primeira vista, lhe pareceu mais
selvagem do que o “bruto Polifemo”, confirme registrou Camões no Canto V de Os Lusíadas.
Este e outros textos canônicos tendem a ser agregados dialogicamente à leitura de uma segunda tríade de obras que compõem o pólo português da análise triangular: Feitiços, livro de contos de
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autoria de Guilhermina de Azeredo (1935); Pele, romance de Henrique Galvão (1956/57); e O esplendor de Portugal, romance de António Lobo Antunes (1997).
Premiado na edição inaugural do Concurso de Literatura Colonial, o trabalho de Azeredo foi avaliado por José Osório de Oliveira, um dos primeiros entusiastas das teorias lusotropicalistas em Portugal, como “uma verdadeira revelação psicológica do povo negro”. Legitimada pelo tom maternal de contadora de estórias, a autora certamente ajuda, no âmbito do
impulso colonizador moderno voltado para Angola, a recompor a cartilha ideológica do Estado Novo para o africano, retratando o nativo angolano principalmente sob os ângulos do primitivismo e da infantilidade, e daí configurando sujeitos sempre dependentes da intervenção
do branco para encontrar um caminho viável para si mesmos e para sua comunidade. A análise dessa obra estimula a ampliação da pesquisa para outros exemplares da literatura colonial
portuguesa, gênero que começou a merecer maior atenção crítica entre os estudiosos brasileiros. Ressalte-se, nesse aspecto, o mapeamento de saberes coloniais feito pelo antropólogo
Omar Thomaz a partir da obra do polêmico escritor Henrique Galvão3. Pele é uma de suas
obras, entretanto, menos conhecidas e ainda a requerer um estudo mais detido. Ambientado
na Lisboa da primeira metade do século XX, este romance investe numa abordagem direta dos
conflitos decorrentes da mestiçagem, conflitos situados no próprio coração do império. A
mestiça Olga, filha bastarda criada numa família da elite portuguesa, delineia uma personagem
marcada pelo ressentimento, resultante das várias barreiras que lhes são dissimuladamente
impostas quando almeja ultrapassar o espaço doméstico e afirmar sua autonomia. As questões
derivadas dessa leitura encontram, a meu ver, uma instigante reinscrição e relocalização no
enredo de O esplendor de Portugal. Fazendo um balanço amargo da experiência colonial, que
enfatiza as cicatrizes e violências com que ela afeta sujeitos de todas as “raças”, nessa obra é
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ativada uma intensa polifonia, pela qual se articula a inviabilidade da permanência portuguesa
em Angola com a falência dos ideais da mestiçagem, seja a nível inter-cultural ou inter-pessoal.
Traçando representações paradigmáticas das indefinições e oscilações que (des)estruturam as
subjetividades mestiças, pela escrita introspectiva de Antunes tornam-se também legíveis muitas das vozes recalcadas e disruptoras que compõem o contraplano das racializações lusófonas,
ou aquela “realidade moral reativa” (FERNANDES, 1972, p. 25), nos termos de Fernandes, a partir
da qual são dinamizados os jogos de mascaramento do racismo “cordial”.
O esquema de conjugações e intersecções literárias da memória lusófona que aqui
proponho completa-se com um corpus de ficções produzidas pela literatura angolana, imbricação que, mobilizando a força tradutória do “significante africano” (HALL, 2003, p. 42), promove um deslocamento estratégico dos parâmetros eurocêntricos de normatização dos sentidos, fazendo emergir elementos-chave para a desconstrução do imaginário luso-tropical. Trata-se da constituição de uma perspectiva reversiva que possa confrontar os impasses e binarismos nos quais tantas vezes recai a crítica da mestiçagem. Uma obra notável na produção de
tais efeitos hermenêuticos é A gloriosa família (1997), de Pepetela, narrativa que reconstrói a
sociedade colonial angolana do século XVII sob a ótica de um escravo mestiço estrategicamente situado numa posição “não visível e não oculta” (FOUCAULT, 2000, p. 126), que o
torna especialmente atento para as duplicidades e os implícitos do poder colonial. Mantendo
uma relação “mimética”, segundo a formulação de Homi Bhabha, com seu proprietário, o
traficante luso-flamengo Baltazar Van Dum, o narrador-protagonista reencena momentos
matriciais dos processos transculturadores pelos quais se sedimentou uma cultura mestiça e
discriminatória no espaço luandense. Por sua vez, no pungente romance de António de Assis
Júnior, O segredo da morta (1935), é através de olhares e dramas femininos que os conflitos entre
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valores africanos e europeus são retratados. Intelectual engajado na autonomização cultural e
política de Angola, Assis Jr. convoca o percurso sofrido de mulheres africanas para discutir a
corrosão dos referentes tradicionais angolanos que se observa na entrada do século XX, em
decorrência de uma dinâmica civilizadora que, nas palavras do autor, se impõe “mais por sugestão e medo do que por persuasão e raciocínio” (ASSIS JR., 1979, p.32). Tendo em vista o
aprofundamento da reflexão sobre os diversos efeitos dessa dinâmica na construção nacional
angolana, torna-se fundamental abordar outro texto de Pepetela que mergulha nas ambivalências das mestiçagens tropicais, o romance Yaka (1985). No âmbito dessa obra, Yaka nomeia
uma misteriosa estátua cujas interações miméticas com o “branco de segunda” Alexandre Semedo representam processos ambíguos de assimilação do colono português ao espaço africano, ou os conflitos subjetivos e culturais que agenciam os tipos de duplo pertencimento — ou,
nos termos de Paul Gilroy, de “dupla consciência” —, experimentados pelos agentes investidos na construção da “Angola portuguesa”, entre os fins do século XIX e a declaração da independência, em 1975.
Do ponto de vista teórico, esta pesquisa destina-se a especificar um cânone, ou uma
genealogia literária, transversal às literaturas em língua portuguesa, um conjunto que articule
textos configuradores para o imaginário da mestiçagem. Útil para o lastreamento dos estudos
comparativos lusófonos, essa demarcação demanda um trabalho descritivo das estratégias
narrativas e das representações que inscrevem as tensões e as dualidades dos hibridismos tropicais, designadamente: as performances do dominador “paternal” e do subalterno “dócil”; a
construção de posições e hierarquias pelo esquema da epidermalidade; sistemas de vigilância e
de relaxamento operantes através de relações parentais, afetivas ou libidinais; aparatos discursivos de legitimação de assimetrias culturais; formas micropolíticas de acomodação, resistência
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e transgressão. Mediante a análise cruzada dessas dinâmicas de intimidade e calculismo, de
composição e discriminação, de conivência e confrontação, tenho construído um painel de elementos diacrônicos e contrastivos que ofereça possibilidades versáteis para a abordagem crítica do
tema da alienação, entendida como formas de recalque dos antagonismos sócio-culturais sustentadas, como propõe Homi Bhabha, por “produções não-repressivas de crença múltipla e
contraditória” (BHABHA, 1998, p. 135). No âmbito desta pesquisa, pretendo avaliar o peso
exercido pela homogeneização cultural “branqueadora”, ou “assimiladora”, resultante dos
métodos colonizadores luso-tropicais, na normalização ideológica das instituições culturais
herdadas do regime escravagista — em especial, dentre estas, os códigos reificadores do racismo patriarcal.
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Das muitas facetas que a noção de “ideológico” assume nos textos de Volochínov/Bakhtin, refiro-me aqui àquelas estruturas primárias de semantização através das quais são agenciadas as práticas discursivas que compõem a “ideologia do
cotidiano” (ou “do comportamento”). Como aponta Terry Eagleton, o que está em causa são “aquelas formas esquivas e
impalpáveis de consciência social” análogas ao que Raymond Williams denominou de “estrutura do sentimento”, cujos
vetores definem molduras tácitas e quadros de referência. Conferir BAKHTIN, 2006, p.122-123; EAGLETON, 1997, p.5354.
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Um bom exemplo recente desse tipo de olhar pode ser apreciado na letra da canção “Inclassificáveis”, de Arnaldo Antunes: “que preto branco índio o quê? / branco índio preto o quê? / índio preto branco o quê? // aqui somos mestiços mulatos / cafuzos pardos mamelucos sararás / crilouros guaranisseis e judárabes // orientupis orientupis / ameriquítalos luso
nipo caboclos / orientupis orientupis / iberibárbaros indociganagôs // somos o que somos / inclassificáveis”. Cabe, entretanto, estar atento às formas de desclassificação econômica e política que acabam por distinguir com muita nitidez, conforme têm mostrado os índices sociais brasileiros, os claros “iberibárbaros” dos escuros “indociganagôs”. Conferir, entre
outras, a terceira edição da pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, realizada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), cujos dados podem ser acessados em www.ipea.gov.br; e o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil, 2007-2008, organizado por Marcelo Paixão e Luiz Marcelo Carvano e publicado pelo Laboratório
de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER-UFRJ), material disponível em
www.laeser.ie.ufrj.br.
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Conferir Omar Ribeiro THOMAZ, 2002.
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Leituras triangulares: racismo e alienação em literaturas lusófonas