FALÊNCIA MORAL DA
DEMOCRACIA BRASILEIRA
Ricardo Vélez Rodríguez
Coordenador do Centro de
Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
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A sociedade brasileira está em crise. Não sabemos, como povo organizado, qual
é o nosso padrão de comportamento. Nas últimas décadas estivemos preocupados
com outras coisas que encheram a nossa agenda, ao ensejo da saída do último ciclo
autoritário para a construção da Nova República. Não foi resolvida, no entanto, a
questão da moral social, que daria embasamento às instituições. Ocorre que, sem
equacionar essa questão, tudo o mais fica no ar: Constituição, Códigos de Direito Civil e
Penal, funcionamento adequado dos Poderes Públicos, pacto federativo, respeito às
leis, organização e funcionamento dos Partidos políticos, embasamento das práticas
econômicas em rotinas de transparência que dariam ensejo ao que Alain Peyrefitte
denominava de “sociedade de confiança”, governabilidade, etc.
Definamos o que se entende por moral: como frisa mestre Antônio Paim no seu
Tratado de Ética, ela consiste num “conjunto de normas de conduta adotado como
absolutamente válido por uma comunidade humana numa época determinada”. A
moral possui uma dupla dimensão, individual e social. A primeira se identifica com o
que Kant denominava de “imperativo categórico da consciência”. A segunda consiste
na definição do mínimo comportamental que uma sociedade exige dos seus
indivíduos, para que se torne possível a vida em comunidade. A moral social pode ser
de dois tipos: a) vertical, quando um grupo de indivíduos impõe ao resto o padrão de
comportamento; b) social, quando o padrão de comportamento é adotado por
consenso da comunidade. A moral social consensual constitui, no mundo
contemporâneo, o fundamento axiológico da vida democrática.
Ocorreu que, no plano da moral social, herdamos modelos verticais que não se
ajustam aos ideais democráticos. Os arquétipos de moral social sedimentados na
história quadrissecular da Nação brasileira ressentem-se do vício do estatismo e da
verticalidade que ele implica. É evidentemente vertical o modelo de moral social
herdado da Contra-Reforma; nele, os indivíduos deveriam agir, em sociedade,
seguindo à risca os ditames provenientes da Igreja mancomunada com o Trono, no
esquema de absolutismo católico ensejado pelos Áustrias na Península Ibérica, ao
longo dos séculos XVI e XVII. De outro lado, o modelo imposto pelo despotismo
iluminista de Pombal, no século XVIII, não mudou radicalmente as coisas, pois pecava
por manter a verticalidade da formulação do código de moral social, ao ensejo da
“aritmética política” que passou a vigorar, ao redor dos seguintes princípios: 1 Compete ao Estado empresário, alicerçado na ciência aplicada, garantir a riqueza da
Nação. 2 - É da alçada do Estado fixar a normas que consolidam a moralidade pública e
privada.
O cidadão, em virtude de tais princípios, ficava desonerado das incumbências
de produzir a riqueza e de se comprometer com a definição da moral social, que nas
democracias modernas terminou sendo configurada de forma consensual pelas
respectivas sociedades. Tudo se resolveria mediante a tutela do Estado modernizador
sobre os cidadãos, considerados como simples peças da engrenagem a ser gerida pelo
governo. O ciclo imperial, com a preocupação da elite em prol da constituição e
aperfeiçoamento da representação, mantendo a unidade nacional contra os
separatismos caudilhescos, num contexto presidido pelos ideais liberais, foi
abruptamente rompido pelo advento da República positivista. Frustrou-se assim,
talvez de forma definitiva, a aparição e o amadurecimento de um modelo ético de
moral social consensual .
Ora, a partir do arquétipo pombalino firmaram-se os modelos de moral social
vertical que têm presidido a nossa caminhada ao longo dos dois últimos séculos, de
mãos dadas com a cultura patrimonialista que sempre entendeu o Estado como bem a
ser privatizado por clãs e patotas, desde a República Iluminista apregoada por frei
Caneca, no início do século XIX, à luz da denominada “geometria política”, passando
pela “ditadura científica” positivista que se tornou forte ao ensejo do Castilhismo, no
Rio Grande do Sul, nas três primeiras décadas do século passado, passando pelo
modelo getuliano de “equacionamento técnico dos problemas” (elaborado pela
Segunda Geração Castilhista com Getúlio Vargas e Lindolfo Collor como cérebros dessa
empreitada e cooptando, como estamento privilegiado, as Forças Armadas). A última
etapa dessa caminhada estatizante foi o modelo tecnocrático efetivado pelo ciclo
militar, à sombra da “engenharia” política do general Golbery.
Com o advento da Nova República tentou ser retomada a questão da
representação política como meio para configurar, no país, a formulação de uma moral
social consensual. No entanto, o fracasso da reforma política que levaria ao
amadurecimento da representação terminou dando ensejo, no ciclo lulista e na atual
quadra do pós-lulismo, à consolidação de modelo vertical de moral social formulado
no contexto do que se denomina de “ética totalitária”, segundo a qual os fins
justificam os meios. A cooptação de aliados pelo Executivo hipertrofiado, no seio de
uma consciência despida de freios morais, terminou dando ensejo à atual quadra
desconfortável de corrupção generalizada, que ameaça gravemente a estabilidade
econômica duramente conquistada nas gestões social-democratas de Fernando
Henrique Cardoso. O Brasil perde o seu rumo, num mundo agressivo e cada vez mais
interdependente, assombrado pela ética totalitária petista, aliada, na síndrome lulista
do “herói sem nenhum caráter”, a desprezíveis formas de populismo irresponsável,
que elevou como ideal o princípio macunaímico de levar vantagem em tudo, num
sórdido cenário de desfaçatez e incultura. Tudo presidido pela maré estatizante que se
apropria da riqueza da Nação para favorecer a nova casta sindical e burocrática que
emerge ameaçadora, excludente e voraz.
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