FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
DANIEL PROCHALSKI
O CRITÉRIO ESPACIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS E
OS CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS
CURITIBA
2007
DANIEL PROCHALSKI
O CRITÉRIO ESPACIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS E
OS CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS
Dissertação
apresentada
no
Programa
de
Mestrado em Direito Empresarial das Faculdades
Integradas Curitiba, como requisito parcial para
obtenção do Título de Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor José Roberto
Vieira
CURITIBA
2007
DANIEL PROCHALSKI
O CRITÉRIO ESPACIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS E
OS CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre
em Direito pelas Faculdades Integradas Curitiba.
Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Presidente:
Orientador: Professor Doutor José Roberto Vieira
Professora Doutora Gisela Maria Bester
Professora Doutora Betina Treiger Grupenmacher
Curitiba, fevereiro de 2007
AGRADECIMENTOS
A decisão de ingressar em um programa de mestrado implica, freqüentemente,
a renúncia ao convívio de nossos entes queridos, o que se intensifica sobremaneira no
período dedicado à redação da dissertação, quando, nessas longas horas de silêncio e
meditação, contamos tão-somente com a companhia fria – mas fiel – dos livros ao nosso
lado.
No entanto, a solidão, nesses momentos, é apenas aparente, pois em nossa
retaguarda sempre estão aqueles que, com incondicionais apoio e afeto, não medem
esforços para que nossa caminhada seja o menos árdua possível. Os agradecimentos,
portanto, são imprescindíveis.
Aos meus pais Eduardo Prochalski e Sr.ª Wanda Prochalski, pelo exemplo de
amor, honestidade, disciplina e educação.
À minha amada esposa Sr.ª Kauana, pelo carinho e pela compreensão.
Ao Professor Doutor José Roberto Vieira, que, compartilhando sua imensa
sabedoria nas áreas do Direito e da Linguagem, contribuiu decisivamente na correção de
falhas em nosso raciocínio, sempre de forma respeitosa e amigável. Portanto, os defeitos
e as incorreções ainda existentes resultam exclusivamente das limitações do autor.
Aos colegas do escritório de advocacia João Paulo Capella Nascimento,
Ângelo Eduardo Ronchi e Tiago da Costa Bilesky, que de forma solícita atenderam
meus compromissos durante o período em que essa dissertação exigiu meu afastamento.
Ao professor e advogado tributarista Doutor Luiz Carlos Derbli Bittencourt,
que, cedendo gentilmente sua valiosa biblioteca, muito contribuiu para a elaboração
deste trabalho.
Finalmente, a todos os que, embora não mencionados, de alguma forma
estiveram ao meu lado nessa caminhada.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo geral uma aplicação da teoria da norma tributária à
regra-matriz de incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza, designado
pela sigla, de uso corrente, “ISS”, conforme sua matriz constitucional e também
segundo a legislação nacional que disciplina esse imposto, em nível infraconstitucional.
O objetivo específico é, com base na unidade lógica da norma jurídica tributária,
proceder ao estudo da estrutura integral do núcleo constitucional da regra-matriz do ISS,
o que servirá de fundamento para expor qual é a nossa visão sobre o único critério
espacial possível da hipótese de incidência desse tributo, em virtude da certeza
científica de que, na escolha, pelo legislador constituinte, das materialidades aptas a
integrar a hipótese de incidência dos tributos, os traços da definição dos demais critérios
da hipótese – temporal e espacial – também já estão implicitamente contidos naquele
núcleo. O mesmo raciocínio é eficaz na identificação de quais sejam a base de cálculo e
o sujeito passivo possíveis do tributo. Constitui ainda premissa fundamental, neste
estudo, o entendimento de que os serviços passíveis de incidência pelo ISS não podem
ser outros senão aqueles cuja prestação represente o cumprimento de uma “obrigação de
fazer”. Por outro lado, o presente estudo também almeja dar relevo à responsabilidade
social que subjaz à obrigação tributária, como reflexo da evolução conceptual da noção
de imposição tributária, o que é resultado, em grande parte, do advento do Estado
Democrático de Direito. Esse novo contexto ganhou especial relevo em face do papel da
receita tributária do ISS como importante meio de efetivação da Autonomia Municipal.
Palavras Chave: ISS, Norma Jurídica Tributária,
Responsabilidade Social, Autonomia Municipal.
Regra-Matriz
do
ISS,
ABSTRACT
The present work has for general objective an application of the theory of the tributary
norm to the rule-head of incidence of the tax on services of any nature, designated by
the acronym, of current use, “ISS" (Tax on Services), according to its constitutional
matrix and also according to the national legislation that disciplines that tax, in
infraconstitutional level. The specific objective is, with base in the logical unit of the
tributary juridical norm, to proceed to the study of the integral structure of the
constitutional nucleus of the rule-head of ISS, what will serve as foundation to expose
which is our vision on the only possible spatial criterion of the hypothesis of incidence
of that tribute, by virtue of the scientific certainty that, in the choice, by the constituent
legislator, of the capable materiality to integrate the hypothesis of incidence of the
tributes, the lines of the definition of the others criterions of the hypothesis - temporal
and spatial - are also implicitly contained in that nucleus. The same reasoning is
effective in the identification of which are the calculation base and the passive subject
possible for tribute. The understanding that the services susceptible to incidence by ISS,
that still constitutes fundamental premise, in this study, cannot be other than those
whose rendering represents the execution of a " obligation of doing ". On the other
hand, the present study also longs for highlighting the social responsibility that
underlies the tributary obligation, as reflex of the evolution conceptual of the notion of
tributary imposition, what is resulted, largely, of the coming of the Democratic State of
Right. This new context won special outline in face of the paper of the tributary revenue
of ISS as important middle of effectiveness of the Municipal Autonomy.
Key words: ISS, Tributary Juridical Norm, Rule-Head of ISS, Spatial Criterion, Social
Responsibility, Municipal Autonomy.
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................
5
ABSTRACT............................................................................................
6
INTRODUÇÃO......................................................................................
10
1
O DIREITO............................................................................................
16
1.1
A PERSPECTIVA CIENTÍFICA............................................................
16
1.2
CIÊNCIA DO DIREITO E LINGUAGEM.............................................
23
1.3
O DIREITO COMO UM SISTEMA.......................................................
31
1.4
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................................
36
2
SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL..............................................
44
2.1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS...............................................................
44
2.2
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS...........................
47
2.2.1
Princípios: Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal............
48
2.2.2
Princípio da Legalidade Tributária..........................................................
65
2.2.3
Princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva...........
79
2.2.3.1 Solidariedade Social e Tributação...........................................................
81
2.2.4
Princípio da Irretroatividade da Lei Tributária........................................
96
2.2.5
Princípio da Anterioridade da Lei Tributária...........................................
98
2.2.6
Princípio da Vedação de Utilização de Tributo com Efeito de
Confisco................................................................................................... 103
2.3
LEI COMPLEMENTAR EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA...................... 104
2.3.1
Lei complementar em sentido material e formal. Problema da
hierarquia.................................................................................................
104
2.3.2
Lei complementar tributária..................................................................... 113
2.3.3
Conteúdo das normas gerais de Direito Tributário.................................. 117
3
A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA............................................... 136
3.1
A ESTRUTURA DA NORMA JURÍDICA............................................ 136
3.2
A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA.......................
3.3
A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA............................................................ 148
3.3.1
Considerações introdutórias....................................................................
3.3.2
Critério material....................................................................................... 159
3.3.3
Critério temporal...................................................................................... 160
140
148
3.3.4
Critério espacial.......................................................................................
163
3.4
A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA.....................................................
164
3.4.1
Considerações Introdutórias....................................................................
164
3.4.2
Critério subjetivo.....................................................................................
173
3.4.2.1 Sujeito ativo.............................................................................................
174
3.4.2.2 Sujeito passivo.........................................................................................
177
3.4.3
Critério objetivo....................................................................................... 184
3.4.3.1 Base de cálculo........................................................................................
185
3.4.3.2 Alíquota...................................................................................................
190
3.4.3.3 Local e prazo de pagamento....................................................................
192
4
A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS...............................
195
4.1
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES..................................................
195
4.2
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ISS........................................................ 203
4.3
A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ISS..............................................
4.3.1
O critério material.................................................................................... 204
4.3.1.1 Natureza jurídica da obrigação................................................................
204
233
4.3.1.2 Relações com o ICMS e o IPI.................................................................. 237
4.3.1.3 A Lei Complementar de que trata o inciso III do artigo 156................... 256
4.3.1.4 A Lista de serviços................................................................................... 268
4.3.2
O critério temporal................................................................................... 278
4.3.3
O critério espacial....................................................................................
4.3.4
A questão da incidência condicionada ao pagamento do serviço............ 285
4.4
A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA DO ISS........................................ 288
4.4.1
O critério subjetivo..................................................................................
288
4.4.1.1 Sujeito ativo.............................................................................................
288
4.4.1.2 Sujeito passivo.........................................................................................
290
4.4.2
281
O critério objetivo.................................................................................... 297
4.4.2.1 Base de cálculo........................................................................................
297
4.4.2.2 Alíquota...................................................................................................
314
5
CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS...........
321
5.1
CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS............................................................... 321
5.2
PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA........
328
5.3
ESTABELECIMENTO E ESTABELECIMENTO PRESTADOR........
337
5.4
O ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI N 406/68...................................... 347
5.5
A JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF............................................ 358
5.6
O CRITÉRIO ESPACIAL NA
LEI COMPLEMENTAR
N
116/2003..................................................................................................
368
5.7
A REGRA DO DOMICÍLIO DO PRESTADOR.................................... 387
5.8
A AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO............................. 392
5.8.1
Características do direito processual tributário brasileiro........................ 392
5.8.2
Tutela do direito à observância da regra-matriz do ISS........................... 394
CONCLUSÕES ESPECÍFICAS..........................................................
400
CONCLUSÃO GERAL......................................................................... 411
REFERÊNCIAS..................................................................................... 412
INTRODUÇÃO
O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é tributo de competência
municipal, conforme prevê o artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988.
Interpretando-se esse dispositivo de forma sistemática, em harmonia com o
ordenamento jurídico, depreende-se que os serviços tributáveis pelos municípios não
podem ser outros senão aqueles cuja prestação representa o objeto de uma relação
jurídica bilateral, em que as partes envolvidas – tomador e prestador –, possuem direitos
e deveres recíprocos, ou seja, direito subjetivo e dever jurídico, respectivamente, à
prestação do serviço assim como ao pagamento do preço previamente acertado.
A razão dessa afirmação deve-se ao fato de que, no sistema jurídico brasileiro,
as normas impositivas tributárias, criadoras de impostos, devem obrigatoriamente
revelar, em sua materialidade, fatos signo-presuntivos de riqueza, consoante a expressão
autorizada de ALFREDO AUGUSTO BECKER, querendo, com isso, referir-se à
necessidade de observância do Princípio da Capacidade Contributiva, na sua acepção
objetiva.1
Portanto, somente poderão ser considerados tributáveis pelo ISS aqueles
serviços cuja prestação represente o cumprimento de uma obrigação jurídica. Tal
obrigação jurídica, pela natureza do ISS, só pode ser classificada como sendo
“obrigação de fazer”, já que prestação gratuita de serviços não pode ser tributada por
esse imposto, por não representar riqueza para o prestador nem poder indicar critérios
para definição de uma base de cálculo juridicamente legítima.
Esse raciocínio demonstra o vínculo inevitável entre o Direito Privado,
aplicável aos contratos realizados entre os prestadores de serviços e seus respectivos
tomadores, e o Direito Tributário, neste caso, em especial, as normas jurídicas relativas
ao ISS. O cumprimento da obrigação de fazer pelo prestador do serviço é fato jurídico
tributário, posto que, assim que ocorrido, deflagra, de forma automática e infalível, o
nascimento de outra obrigação empresarial, agora, porém, de natureza compulsória, a
qual não resulta de acordo de vontades, como ocorre com a anterior relação entre
tomador e prestador.
Essa nova obrigação empresarial nada mais é do que a relação jurídica
tributária, tendo como sujeito ativo o município competente para exigir o recolhimento
1
Teoria Geral do Direito Tributário, p. 454-456.
10
do valor objeto da prestação, e como sujeito passivo o prestador do serviço, salvo as
hipóteses legais de retenção na fonte pelo tomador, quando então este passa ser o que se
convencionou denominar de “substituto tributário”.
O ISS era regulado integralmente, em âmbito nacional, até o ano de 2003, pelo
Decreto-Lei nº 406, de 31 dez. 1968, o qual, em seu artigo 12, fixava a regra geral
segundo a qual o local da prestação do serviço correspondia ao local do estabelecimento
prestador ou, na falta desse estabelecimento, o do domicílio do prestador. Apenas os
serviços de construção civil constituíam exceção a essa regra, atividade cujo fato
tributário se considerava ocorrido no local da efetiva prestação. O Superior Tribunal de
Justiça, no entanto, pacificou o entendimento de que o ISS é devido onde o serviço é
efetivamente prestado, o que veio a causar uma série de transtornos, posto que as
empresas que, estabelecidas em um município, mas prestadoras de serviços em outro,
viram-se diante de verdadeira bitributação, com ambas as prefeituras exigindo o
pagamento de imposto sobre o mesmo fato. A controvérsia sobre o critério espacial,
portanto, tem provocado a indefinição com relação a quem é o legítimo sujeito ativo da
relação tributária do ISS.
Com o advento da Lei Complementar nº 116, de 31 jul. 2003, procurou-se
solucionar a questão do conflito de competência e também da guerra fiscal entre
municípios. No caput do artigo 3º dessa lei, repetiu-se a regra constante do pré-citado
artigo 12 do Decreto-Lei nº 406/68, pela qual o serviço é considerado prestado e o
imposto devido no local do estabelecimento prestador e, na sua falta, no local do
domicílio do prestador. Como exceções a essa regra, foram previstos, nos incisos I ao
XXII desse mesmo artigo 3º, serviços cuja prestação é considerada ocorrida e o imposto
devido (a) no local da efetiva prestação – grande maioria dos casos – ou (b) no local do
estabelecimento do tomador do serviço, sendo essa última regra aplicável em apenas
duas hipóteses: serviços provenientes do exterior do País ou cuja prestação se tenha
iniciado no exterior do País (inciso I) e aos serviços de fornecimento de mão-de-obra
(inciso XX).
Com efeito, no plano do Direito Positivo, apesar de louvável iniciativa política,
a nova lei complementar parece não ter servido de garantia para o fim das controvérsias,
seja em razão do núcleo da regra-matriz de incidência do ISS, que se extrai da
interpretação direta da Constituição Federal, seja de outros problemas também conexos
ao critério espacial, como é exemplo a questão da responsabilidade do tomador ou
intermediário de determinados serviços constantes da lista anexa a essa lei, conforme
11
prevê seu artigo 6º, § 2º, II, posto resultar na possibilidade de um município legislar
sobre sujeição passiva de empresas situadas em municípios diversos.
Não obstante o longo tempo de existência do ISS no ordenamento jurídicotributário brasileiro – tem sua origem na Emenda Constitucional nº 18, de 1º de
dezembro de 1965 –, assim como pela sua grande relevância jurídica, em especial pelo
seu caráter instrumental em relação ao princípio constitucional da Autonomia
Municipal, o presente estudo observou que são poucas as obras produzidas pela doutrina
nacional que examinam esse tributo municipal em sua completude.2 Por outro lado,
numerosos são os trabalhos que analisaram questões pontuais do ISS. Deles, aqueles
que reputamos mais importantes foram objeto de análise no presente estudo.
A pequena produção científica sobre o ISS é, talvez, resultado de uma falta de
expectativa quanto à sua permanência no sistema jurídico-tributário brasileiro, em face
de numerosas e recentes propostas de reforma tributária, que recomendam a sua
substituição, em conjunto com o ICMS e o IPI, por um “IVA” – Imposto sobre o Valor
Agregado.3 Tal fenômeno, no entanto, não justifica um menoscabo em relação ao ISS,
em especial pelo advento da Lei Complementar nº 116/2003, norma que, a pretexto de
solucionar antigos pontos polêmicos em torno desse tributo municipal, pouco alterou do
seu regime infraconstitucional, o que reforça, mais uma vez, a necessidade de uma
interpretação da legislação nacional, sobre o ISS, no contexto da Constituição Federal
de 1988.
A importância do tema também se justifica à medida que a recente doutrina,
nascida após a publicação da Lei Complementar nº 116/2003, não tem sido unânime
sobre as questões que surgem a respeito do local de ocorrência do fato tributário do ISS
– critério espacial – do que decorre a necessidade de a Ciência do Direito Tributário se
debruçar sobre esse tema, influenciando de forma positiva as decisões judiciais e
administrativas a seu respeito, e visando, em última análise, propiciar maior segurança
jurídica aos contribuintes. A discussão, com efeito, ultrapassa os limites do direito
2
Dentre todas as obras, as seguintes se destacam pelo rigor científico e são atualmente marcos
doutrinários obrigatórios em qualquer pesquisa sobre o ISS: O Imposto Sobre Serviços na
Constituição (São Paulo: RT, 1985), do respeitado jurista paranaense MARÇAL JUSTEN FILHO,
produzida ainda sob a égide da Constituição anterior; ISS – Aspectos Teóricos e Práticos (3. ed. São
Paulo: Dialética, 2003), de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, professor livre-docente da PUCSP; ISS na Constituição e na Lei (2. ed. São Paulo: Dialética, 2003) de AIRES BARRETO, professor
paulista que preside o Instituto Geraldo Ataliba de Direito Público e Empresarial; e a mais recente, ISS:
do Texto à Norma (São Paulo: Quartier Latin, 2005) do advogado e professor paranaense MARCELO
CARON BAPTISTA.
3
BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 51-52.
12
material para, dentro da seara da efetividade, buscar subsídios para que o contribuinte
possa, judicial ou extrajudicialmente, ter segurança no momento do adimplemento da
obrigação tributária.
Este trabalho, portanto, tem por objetivo geral o estudo da regra-matriz de
incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza, que, aqui, será designado
pela sigla de uso corrente “ISS”, conforme sua matriz constitucional e também segundo
a legislação nacional que disciplina esse imposto, em nível infraconstitucional. Como
objetivo específico, e com base na unidade lógica da norma jurídica tributária, o estudo
parte da estrutura integral do núcleo constitucional da regra-matriz do ISS como
premissa para expor qual é a nossa visão sobre o único critério espacial possível da
hipótese de incidência desse tributo, posto já estar cientificamente demonstrado que, na
escolha, pelo legislador constituinte, das materialidades passíveis de integrar a hipótese
de incidência dos tributos, já estão implicitamente abrangidos, também, os traços da
definição dos demais critérios da hipótese – temporal e espacial – assim como, a partir
daí, já é possível inferir quais sejam a base de cálculo e o sujeito passivo do tributo.
Como essa interpretação tem origem única e exclusivamente no contexto
constitucional, dela não podem os municípios se afastar, pois é a Constituição o
fundamento de validade das leis tributárias editadas não só pelos municípios, mas
também, e com os mesmos fundamentos, das leis emanadas da União Federal, dos
Estados-membros e do Distrito Federal. Simultaneamente, o mesmo raciocínio serve
para definir quais os limites a que a União Federal está vinculada quando da edição das
normas gerais em matéria tributária, onde está inserida a competência para legislar
sobre o ISS em nível nacional.
A foz do presente estudo está na análise conjunta das conclusões extraídas
acerca do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, diante da investigação das
razões do surgimento dos constantes conflitos de competência entre os municípios, o
que também tem como uma das causas a eleição do sujeito passivo do ISS, em flagrante
desrespeito à matriz constitucional do imposto municipal. Nesse sentido, a polêmica e
atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça desempenha papel de destaque, pois
serviu e ainda tem servido como orientação na elaboração de muitas leis municipais.
Como já se pode dessumir, este trabalho não se propõe a analisar nenhuma
regra-matriz específica, ou seja, não trataremos de nenhuma lei municipal que já tenha
criado o ISS em definitivo, tendo os contribuintes e responsáveis tributários como
13
destinatários.4 O nosso estudo dirige-se às normas jurídicas que prescrevem qual é,
dentro da regra-matriz do ISS, o critério espacial possível, a ser observado pelos
legislativos municipais, assim como questões conexas relativas à sujeição passiva
tributária, tendo como pano de fundo os conflitos entre municípios. Trata-se, portanto,
de uma análise de regras de estrutura.
De forma preliminar, está consignada nossa visão acerca do que é o Direito,
assim como qual seja, em nossa opinião, a metodologia para melhor conhecê-lo, para o
que reputamos imprescindível uma utilização devida da teoria da linguagem, como
instrumento para identificar os níveis lingüísticos em que tanto o Direito Positivo como
a Ciência do Direito são veiculados. Ato contínuo, e lastreados na noção do Direito
como um sistema, expomos nossa visão sobre qual seja a ideologia encampada pela
Constituição em relação ao Estado Democrático e Social de Direito para, após, e nessa
perspectiva, comentar a eficácia dos mais relevantes princípios constitucionais
aplicáveis em matéria tributária.
Ainda antes de adentrar especificamente no estudo do ISS, trataremos do tema
da estrutura das normas jurídicas, conforme sua formulação advinda da Teoria Geral do
Direito, para então aplicar as conclusões sobre a estrutura lógica da norma jurídica
tributária, adotada como premissa para o estudo da regra-matriz de incidência do ISS.
No âmbito desta, nossas atenções voltam-se, como já afirmado, para o critério espacial
da hipótese de incidência, ou seja, para os dados existentes no ordenamento jurídico que
indicam qual é o único local onde se reputa ocorrido o fato tributário do ISS, o que terá
como principal conseqüência a definição da pessoa política competente para instituir
esse imposto e em especial do sujeito ativo da relação jurídica tributária.
Por fim, ressaltamos que o presente estudo também procurará dar relevo à
responsabilidade social que subjaz à obrigação tributária, posto que a receita tributária,
por ser pública, deve ser efetivada dentro de uma nova interpretação da Constituição
Federal, mais adequada à atual realidade, para exigir que, além da observância aos
cânones do Estado de Direito, devam os atos e negócios jurídicos ser realizados em
consonância com as conquistas do Estado Social e Democrático de Direito, no sentido
de não mais se tolerar uma visão egoística da atividade do setor privado – liberdade
4
É de se lembrar que em nosso país existem 5.564 Municípios e um Distrito Federal, todos com
competência para aprovar leis ordinárias criando em definitivo o ISS, conforme dados oficiais do
Instituto
Brasileiro
de
Geografia
e
Estatística
–
IBGE.
Disponível
em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2005/default.shtm> Acesso em: 20 jan.
2007.
14
negativa – cujos respectivos efeitos devem respeitar a Igualdade, a Solidariedade e a
liberdade positiva no meio social. Essa perspectiva ganha especial destaque em virtude
da relevância da receita tributária do ISS, como um dos mais importantes instrumentos
de efetivação da Autonomia Municipal.
15
1. O DIREITO
1.1 A PERSPECTIVA CIENTÍFICA
O Direito é passível de investigação por vários ramos do saber. Cada um, no
entanto, analisa esse objeto sob uma perspectiva particularizada. A Filosofia do Direito,
por exemplo, ocupa-se de investigar não como é, mas como deve ser o Direito; a
História do Direito tem por objeto o Direito de outrora; a Política do Direito estuda
como deve o Direito ser construído; a Sociologia Jurídica ocupa-se com a eficácia social
do Direito, e assim por diante, com outros campos de investigação.
Já a atividade de interpretação do Direito – entendido esse como um conjunto
de normas postas em um determinado espaço e em uma determinada época – para que
possa revestir a qualidade de um labor rigorosamente científico, requer a
desconsideração de qualquer elemento estranho ao sistema jurídico ou de qualquer
atitude valorativa proveniente de alguma ideologia que se revele extranormativa.
Admite-se, no entanto, a importância e o valor de outros campos de
investigação qualificados como pré-jurídicos ou metajurídicos. Porém, seus objetivos
não se podem confundir com os objetivos visados pelo cientista do Direito, em cuja
atividade não se permite discricionariedade científica. Esse cientista, longe de aplicar
suas próprias ideologias no estudo dos textos normativos, deverá, no nível pragmático
da análise da linguagem jurídica, encontrar qual é a ideologia intranormativa que o
sistema privilegiou. Nessa pesquisa elegerá, dentre as normas, as que possuem maior
carga axiológica, com o que poderá identificar, dentro do sistema jurídico, aquelas que
revestem a qualidade de verdadeiros e legítimos princípios jurídicos.
Na interpretação das normas da Constituição, há que se levar em conta a
existência de valores políticos que foram positivados no sistema jurídico, e porque tais
valores, conforme EROS ROBERTO GRAU, “[...] penetram o nível do jurídico, na
Constituição, quando contemplados em princípios [...], desde logo se antevê a
necessidade de os tomarmos, tais princípios, como conformadores da interpretação das
regras constitucionais”.5 Na mesma trilha é o raciocínio de JOSÉ JOAQUIM GOMES
CANOTILHO, para quem “Sob o ponto de vista teorético-político, a interpretação das
5
A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), p. 176-177. Informamos que as
citações diretas, realizadas no corpo do texto, serão grafadas em itálico, como forma de destaque.
16
normas constitucionais deve ter em conta a especificidade resultante do facto de a
constituição ser um estatuto jurídico do político [...]”.6
Para a investigação de nosso objeto de estudo, o critério espacial da regramatriz de incidência do ISS, optamos, como faríamos na interpretação de qualquer outra
norma, pelo chamado positivismo metodológico. Nesse sentido, as palavras de JOSÉ
SOUTO MAIOR BORGES, ao discorrer sobre a sua perspectiva científica em uma de
suas obras:
Metodológico, precisamente porque não elimina outros campos de
investigação e pesquisa. Porque há outros saberes que a decisão pelo
positivismo jurídico-metodológico não exclui. [...] A opção metodológica
consiste em circunscrever a investigação científica ao complexo normativo
que integra a ordem jurídica. Ela não implica conseqüentemente a negação da
Sociologia Jurídica, nem da História do Direito, nem da Filosofia do Direito.
Antes se aparta dessas investigações por um corte lógico no objeto material
que estuda, ou seja, as normas de direito positivo e a conduta juridicamente
normada.7
Ressalte-se que a postura metodológica adotada nesses termos deve andar de
mãos dadas com a prudência. É que a interpretação do Direito Positivo está
condicionada à ideologia constitucionalmente adotada, e que “[...] esta ideologia,
perfeitamente determinável e definível no bojo do discurso constitucional, vincula o
intérprete, de sorte precisamente, a repudiar a postura, aludida por Canotilho,
assumida por quantos optam por concepções ideológicas dela diferentes, e a ensejar o
exercício [...] de um prudente positivismo, indispensável à manutenção da
obrigatoriedade normativa do texto constitucional”.8
O Direito, portanto, não é neutro, mas um objeto cultural e político, e como tal,
carrega dentro de si intensa carga axiológica. Não se pode negar, na linguagem do
cientista do Direito, a valoração inerente ao Direito Positivo, mas é importante lembrar
que os valores já estão objetivados no sistema, não cabendo ao cientista do Direito
atitudes valorativas que não constam do objeto único de seu estudo.
Não cabe ao intérprete, portanto, valorar uma ideologia extranormativa,
cabendo-lhe somente analisar da ideologia que já está positivada no sistema, ou seja, a
ideologia intranormativa. E é exatamente nesses valores intranormativos, fixados na
ordem jurídica positiva, que poderemos identificar os princípios do sistema. São nas
normas carregadas axiologicamente que o intérprete identifica os princípios maiores de
6
Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1.081.
Obrigação tributária (uma introdução metodológica), p.19-20.
8
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica..., op. cit., p. 194-195.
7
17
um sistema, mesmo porque não está explícito, em cada dispositivo legal, a condição de
ser ou não princípio. É, portanto, na opção ideológica estabelecida dentro da ordem
jurídica que poderemos identificar o nível pragmático da linguagem do cientista do
Direito, ou seja, da interpretação jurídica.
A doutrina é abundante na menção aos métodos de interpretação das normas
jurídicas, atividade que é objeto de estudo da hermenêutica que, de forma pacífica, tem
concluído pela inexistência de métodos que sejam eficazes de forma isolada. Já vimos
acima que interpretar normas jurídicas é fazer Ciência do Direito, e que esta também se
estrutura em um sistema. Depreende-se disso que todos os métodos interpretativos
(como o literal, histórico, lógico e teleológico) possuem sua utilidade, mas somente será
eficaz aquele que leva em consideração todo o sistema, ou seja, todos os métodos
devem levar ao método sistemático. Não por outra razão, MARÇAL JUSTEN FILHO
defende que “[...] a interpretação sistemática é, não apenas mais um ‘método
interpretativo’, senão o método hermenêutico”.9
KARL LARENZ10 e KARL ENGISCH11, com acerto, defendem a
inconsistência das teses que defendem a superioridade de um método de interpretação
em relação a algum outro, ou aos demais. Ambos exprimem bem essa idéia, defendendo
que os métodos de interpretação não devem ser isolados, mas devem, sim, sempre atuar
conjuntamente. LARENZ conclui que “[...] não se trata de diferentes métodos de
interpretação, como permanentemente se tem pensado, mas de pontos de vistas
metódicos que devem ser todos tomados em consideração para que o resultado da
interpretação deva poder impor a pretensão de correcção (no sentido de um enunciado
adequado)”.12
Apesar de cada um dos métodos ser potencialmente válido, dependendo do
contexto em que se situe, inegável é a importância e imprescindibilidade da
interpretação sistemática, que abrange e pressupõe todos os demais métodos
interpretativos. Por outro lado, a porção pragmática da linguagem da Ciência do Direito
depara-se com o posicionamento ideológico do cientista em relação aos valores já
positivados no sistema, e somente no método sistemático, o intérprete, após percorrer
todos os demais métodos, transcorrerá, sempre com rigor científico, todos os níveis da
9
O imposto sobre serviços na Constituição, p. 60.
Metodologia da ciência do direito, p. 445-450.
11
Introdução ao pensamento jurídico, p. 148-149.
12
Metodologia..., op. cit., p. 445-450.
10
18
linguagem, posto pressupor esse método interpretativo a passagem pelos planos
sintático, semântico e pragmático.
Corroborando esse entendimento, sólidas são as argumentações de CARLOS
MAXIMILIANO: “O Direito é um todo orgânico; portanto não seria lícito apreciarlhe uma parte isolada, com indiferença pelo acordo com as demais. Não há intérprete
seguro sem uma cultura completa. O exegeta de normas isoladas será um leguleio; só o
sistematizador merece o nome de jurisconsulto...”.13
Já no campo da Ciência do Direito Tributário, pode-se afirmar que a “Teoria
geral do direito tributário”, de ALFREDO AUGUSTO BECKER, foi a obra que
causou verdadeira revolução no Brasil, apesar de não ter, na época de seu lançamento, a
merecida acolhida.14 Essa obra alertou para a existência de uma “[...] infeliz mancebia
do Direito Tributário com a Ciência das Finanças Públicas que o desviriliza, pois
exaure toda a juridicidade da regra jurídica tributária”,15 do que resultaram obras que
não passavam de “[...] coletâneas de leis fiscais singelamente comentadas à base de
acórdãos contraditórios e paupérrimos de argumentação cientificamente jurídica” 16, e
com isso alertando o leitor para a compreensão de que se faz necessário desenvolver
uma “[...] atitude mental jurídica tributária que lhe será útil para manejar – em
qualquer tempo e lugar - o Direito Tributário”.17
Apesar das críticas que a obra de BECKER sofreu, a melhor doutrina ressalta a
importância epistemológica de sua obra no estudo do Direito, assim como o seu valor
por ter sido a obra precursora de sua época, servindo de ponto de partida para outros
autores. O pensamento de BECKER originou a idéia no Direito Tributário de que o
operador jurídico somente deve descrever o Direito Positivo, o qual é visto como um
“dado” que o jurista deve captar em sua integridade, tal como uma “câmara
fotográfica”, ou seja, o conhecimento jurídico partiria do objeto para o sujeito,
conforme observa OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, acrescentando que, à Ciência do
Direito Tributário, caberia, portanto, apenas uma função descritiva do Direito Positivo,
enquanto esse tem uma função prescritiva, pois “[...] existe para regular as condutas
humanas em sua intersubjetividade”.18
13
Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 195.
Teoria Geral do Direito Tributário.
15
Ibidem, p. 4.
16
Ibidem, p. 5.
17
Ibidem, p. 14.
18
A contribuição ao PIS, p. 12.
14
19
JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES acrescentou que mais do que simplesmente
descrever, a ciência deve explicar os fenômenos, evitando uma indevida redução em
seu campo de investigação, pelo que há que se ver “[...] a explicatividade como um
atributo das proposições descritivas da ordem jurídica, sem sacrificar-se o rigor da
exposição científica”. O vocábulo “explicar”, ensina o autor, tem acepção mais
profunda do que “descrever”. Explicar significa “[...] despregar, desdobrar,
desenvolver, justificar, interpretar, expor, comentar, explanar. E também esclarecer o
que não estava claro, isto é, o oculto, aclará-lo, elucidá-lo”. Por sua vez, a noção de
descrever “[...] é, digamos: trivial: expor, narrar, referir com certo desenvolvimento,
delinear etc.”; pelo que não pode ser aceita.19
Em comentário sobre esse raciocínio, JOSÉ ROBERTO VIEIRA, com acerto,
tece relevantes argumentos, no sentido de que a norma jurídica não é extraída pronta do
direito positivo:
não se entenda essa idéia de retirar a norma jurídica das dobras do direito
positivo como implicando afirmar que ela já ali estava pronta e acabada,
apenas escondida em suas pregas. Debruçando-o sobre o direito posto,
investigando todos os ângulos de sua linguagem (Sintático, semântico e
pragmático), conhecendo-o, descrevendo-o e explicando-o, em verdade, ao
cientista do direito cabe, isso sim, construir a norma jurídica.20
OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, entretanto, entende que “[...] mesmo essa
‘função explicativa’ continua a conferir muita importância a somente um dos pólos da
relação de conhecimento, o objeto [...]”.21 A brilhante observação desse autor amparase no ensinamento de AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO, defensor da
utilização de uma epistemologia dialética na Ciência do Direito, pela qual o importante
é a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento na construção científica. 22
Contribui, dessa forma, para uma visão superadora da dualidade empirismoracionalismo, representada pelas suas respectivas formas clássicas, o jusnaturalismo e o
positivismo jurídico, às quais critica justamente pela atitude metafísica de privilegiar um
dos pólos da relação cognitiva, e não ela própria. Vejamos alguns excertos do
pensamento desse mestre:
19
O direito como fenômeno lingüístico, o problema de demarcação da ciência jurídica, sua base empírica
e o método hipotético-dedutivo. Anuário do Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do
Recife da Universidade Federal de Pernambuco, p. 13-15.
20
A Semestralidade do PIS: Favos de Abelha ou Favos de Vespa? Revista Dialética de Direito
Tributário, n. 83, p. 90, grifos no original.
21
A Contribuição..., op. cit, p. 13.
22
A Ciência do Direito: conceito, objeto, método.
20
Para a dialética, o importante é a própria relação, tomada não exatamente em
seu sentido abstrato e genérico, mas a relação concreta que efetivamente
ocorre dentro do processo histórico do ato de conhecer. Ela busca, assim,
tomar consciência das condições reais do ato cognitivo, dentro do processo
de sua elaboração. Toda pesquisa criadora é um trabalho de construção de
conhecimentos novos, mas de uma construção ativa, engajada, e não uma
simples captação passiva da realidade, porque o conhecimento não pode ser
puro reflexo do real como querem os positivistas.23
Para melhor explicar, o autor faz a distinção entre o objeto real e o objeto de
conhecimento: “O objeto real é a coisa existente independentemente de nosso
pensamento, quer considerada em si mesma (o númeno de Kant), quer através de suas
manifestações concretas (o fenômeno). Já o objeto de conhecimento é o objeto tal como
o conhecemos, isto é, o objeto construído, sobre o qual se estabelecem os processos
cognitivos (filosóficos, científicos, artísticos etc.)”.24
Não se trata aqui de uma crítica ao Direito Positivo, mas sim de ter-se a
consciência de que a interpretação jurídica não se resume em uma simples (e
impossível) captação do objeto real, mas sim na construção do objeto de
conhecimento. Ou melhor, na reconstrução, pois o ato de conhecer pressupõe construir
a partir de conhecimentos anteriores.25
O operador jurídico, na elaboração do processo de conhecimento, deve ter
consciência dos efeitos dos seus trabalhos no contexto social em que são produzidos. A
neutralidade e a objetividade, apesar de serem sempre perseguidas, não lhe são
inerentes, pois o operador jurídico não é mero “espectador do mundo”. Como resultado,
não existe “a” ciência do direito, mas sim “várias” Ciências do Direito, “[...] cada uma
delas analisando-o em uma determinada dimensão”.26 O operador jurídico não deve ter
em mente que, por natureza, o Direito seja reduzido à lei, “[...] pois, tal visão decorre,
em última instância, muito mais da imposição de uma determinada classe política do
que um ‘achado’ científico por parte dos juristas”.27
Encontramos uma boa síntese de nossas intenções jurídicas nas afirmações de
SACHA CALMON NAVARRO COELHO, em obra que retrata sua tese de
doutoramento, pois, assim como ela, nosso trabalho também parte da estrutura da norma
jurídica tributária como premissa: “O fato de centrar-se na teoria da norma, enquanto
23
Ibidem, p. 13-14.
Ibidem, p. 14.
25
Idem.
26
FISCHER, Octávio Campos. A Contribuição..., op. cit., p. 13.
27
Ibidem, p. 14.
24
21
estrutura lógica, não implica adesão a certo ‘normativismo’ que reduz o direito a mero
formalismo, amesquinhando-o”.28 É que o Direito é “[...] o reflexo, no plano da
cultura, dos valores e interesses sociais dominantes, diversos no tempo e no espaço”.29
Reitere-se, no entanto, que, para legitimar seus resultados, o cientista do
Direito deve, antes, optar por certos critérios, aceitos como condição de validade em um
dado sistema jurídico, sem o que as conclusões quedariam frágeis, ante a aleatoriedade
dos argumentos utilizados como premissas de seu trabalho. Esse rigor metodológico,
entretanto, deve ser aplicado tendo em vista não ser o Direito encarado com um fim em
si mesmo, mas como um instrumento a serviço da humanidade, com o que se objetiva
atingir, através da linguagem jurídica, os mais elevados ideais de justiça, sempre em
harmonia com a inegável necessidade de segurança jurídica.
Como poderá ser observado no decorrer deste trabalho, o posicionamento
científico adotado procurou centrar-se, ainda, na inafastabilidade da supremacia
constitucional, vetor interpretativo cuja noção foi desenvolvida com propriedade pela
professora de Direito Constitucional GISELA MARIA BESTER:
É por isso que a dupla condição da Constituição como norma jurídica e como
norma suprema a configura não somente como fonte de Direito, mas também
como norma reguladora e delimitadora do próprio sistema de fontes do
Direito. Aí está a sua supremacia, e daí ser também chamada de Lei
Fundamental, Lei Magna, Carta Magna, Norma Ápice ou Norma Normarum
(norma das normas). [...] Reforçamos: o dogma de que uma norma não possa
ter validade se não estiver de acordo com a Constituição levou a que esta não
somente seja considerada fonte de Direito, mas que também regule o próprio
sistema de fontes e seja o parâmetro de aplicação e de interpretação do
Direito.30
Além disso, intentou-se proceder a uma leitura de cada dispositivo
constitucional de forma não isolada, mas, antes, envolvido no contexto da ordem
jurídica brasileira. Com esses incontestáveis argumentos, temos a certeza de que
estamos amparados em forte suporte doutrinário quanto ao nosso entendimento pela
supremacia dos dispositivos constitucionais que tratam do ISS, diante da legislação
infraconstitucional que trata desse imposto.
28
Teoria geral..., op. cit., p. 21.
Idem.
30
Direito Constitucional. v.1: fundamentos teóricos, p. 59-60, grifos no original.
29
22
1.2 CIÊNCIA DO DIREITO E LINGUAGEM
O jurista italiano NORBERTO BOBBIO, comentando a crise científica do
Direito na pós-modernidade, refuta a idéia daqueles que questionam a cientificidade da
Ciência do Direito, sob a alegação de que essa ciência não se teria conformado aos
modelos de ciência que vigoraram nos últimos séculos. Ele defende que essas
concepções de ciência é que na verdade são questionáveis, porque sempre parciais e
insuficientes e, portanto, não abrangem a Ciência do Direito. O autor italiano, com
propriedade, ensina que a Ciência do Direito:
en cuanto que pone como objeto propio proposiciones normativas ya dadas
(resultado ellas mismas de un estudio empírico precedente que el jurista debe
respetar hasta el límite del absurdo manifiesto o de la injusticia escandalosa),
consta exclusivamente de la parte crítica propia de todo sistema científico, es
decir, de la construcción de un lenguaje riguroso a los fines de la plena
comunicabilidad de las experiencias fijadas de antemano. La parte crítica
común e indispensable de toda ciencia es el llamado análisis del lenguaje.
Pues bien, la jurisprudencia es en su parte esencial un análisis del lenguaje, y,
de modo más preciso, de ese específico lenguaje en el que a través de las
proposiciones normativas se expresa el legislador.31
Ainda na defesa da cientificidade da Ciência do Direito, BOBBIO sustenta que
as operações da Ciência do Direito são as mesmas inerentes a uma parte de qualquer
ciência, e que, sem tais operações, nenhum estudo pode pretender valer como ciência. É
que, como toda ciência possui o seu respectivo objeto de estudo, também o Direito,
como ciência, possui o seu específico, que não pode ser outra coisa senão o próprio
Direito Positivo, que não é o de ontem – que já não existe – muito menos é o de amanhã
– que ainda nem foi criado – mas o de hoje, que vigora em um determinado território. E
se temos que o Direito posto é uma linguagem, a Ciência do Direito nada mais é do que
uma análise dessa linguagem, análise essa que recebe o nome de interpretação do
Direito. Sustenta, portanto, que essas operações:
no son más que esa actividad compleja en la que tradicionalmente se hace
consistir la labor del jurista: la interpretación de la ley. ¿Qué es, en efecto, la
interpretación de la ley, sino análisis del lenguaje del legislador, de ese
lenguaje en el que se expresan las reglas jurídicas? Pues entonces, estando así
las cosas, si el análisis del lenguaje jurídico y la interpretación jurídica son
todo uno y si el análisis del lenguaje es la operación propiamente científica
del jurista, se deberá concluir que el jurista, precisamente en cuanto jurista en
el sentido tradicional de la palabra, en cuanto intérprete de las leyes,
construye la ciencia del Derecho. No hay ciencia del Derecho, en suma, fuera
de la labor del jurista intérprete, el cual precisamente como tal intérprete
31
Contribución a la teoría del derecho, p. 181-184.
23
realiza ese análisis lingüístico del que ninguna ciencia puede prescindir y
constituye ese lenguaje riguroso en el que consiste – según la concepción
moderna de la ciencia que ha pasado el problema de la ciencia de la verdad al
rigor – el carácter esencial de todo estudio que pretenda tener validez de
ciencia.32
Estamos, portanto, de acordo com BOBBIO, de que a Ciência do Direito é uma
análise da linguagem em que se expressa o legislador, e de que toda análise feita pelo
cientista do Direito refere-se ao labor hermenêutico, ou seja, a análise do Direito
Positivo nada mais é do que a interpretação das leis. É natural também que, como será
analisado adiante, a Ciência do Direito, por apresentar-se sob a forma de um discurso,
também seja linguagem, mas, por ser uma linguagem sobre outra linguagem, está
vertida de uma forma diferente.
Mas se a Ciência do Direito é uma análise de uma linguagem, produzida pelo
homem, é natural que cada um dos elementos dessa linguagem tenha conteúdo de
significação (semântico) diversificado, sendo imprescindível, portanto, a disciplina do
pensamento a ser transmitida na mensagem, tarefa essa que cabe à Lógica Jurídica.
O Direito é objeto cultural, fruto do meio em que nasce, espontaneamente.
Assim, o Direito deve servir ao homem, e não o homem ao Direito. Por essa razão,
alguns defendem não se adequar à interpretação jurídica às regras da lógica, e que, por
força dos valores objetivados nas normas, somente seria possível uma interpretação
axiológica. Ousa-se, contudo, discordar, exatamente pelo fato de que, por ser o Direito
um objeto cultural, é carregado axiologicamente pelas aspirações sociais que, quando
positivadas, trazem consigo as imperfeições lingüísticas e as atecnias jurídicas, ínsitas
ao trabalho do legislador, oriundo dos mais diversos segmentos da sociedade, fato
natural e necessário em um Estado que se queira representativo e democrático.
Na década de vinte do século XIX, um grupo de filósofos, conhecido sob a
denominação de Círculo de Viena, fundou uma teoria lingüístico-epistemológica,
conhecida em geral como Positivismo Lógico, corrente que defendia o rigor discursivo
como paradigma científico. Em suma, à produção de qualquer discurso que se
pretendesse científico deveria anteceder uma análise rigorosa da linguagem utilizada.
Essa corrente pregava, portanto, que, onde não há rigor lingüístico não há ciência, e que
“[...] fazer ciência é traduzir numa linguagem rigorosa os dados do mundo; é elaborar
uma linguagem mais rigorosa que a linguagem natural”.33
32
33
Ibidem, p. 184.
WARAT, Luís Alberto. O direito e sua linguagem, p. 37.
24
A filosofia de hoje tem sido unânime em aceitar que a análise de qualquer
linguagem, para que resulte satisfatória e suficiente, deve obrigatoriamente percorrer os
denominados três níveis ou planos da linguagem: o sintático, o semântico e o
pragmático. O discurso jurídico, por também ser científico, obedece também a essa
necessidade de incursionar nesses três planos da linguagem. Ou seja, o direito também é
uma linguagem. Mas, antes de ingressar em maiores comentários, mister é
esclarecermos, desde já, as duas camadas lingüísticas nas quais pode verificar-se a
existência do Direito, para então prosseguirmos nesse estudo. Estamos referindo-nos à
diferença entre a realidade do Direito Positivo e da Ciência do Direito.
Para PAULO DE BARROS CARVALHO, jurista que no Brasil foi um dos
precursores do estudo lingüístico dentro do âmbito jurídico, “Muita diferença existe
entre a realidade do Direito Positivo e a da Ciência do Direito. São dois mundos que
não se confundem, apresentando peculiaridades tais que nos levam a uma consideração
própria e exclusiva. São dois corpos de linguagem, dois discursos lingüísticos, cada
qual portador de um tipo de organização lógica e de funções semânticas e pragmáticas
diversas”.34
Podemos assim definir Direito Positivo como sendo o conjunto de normas
jurídicas válidas em um determinado país, ou ainda, um determinado ordenamento
jurídico delimitado no tempo e em um espaço geográfico determinado. Cabe à Ciência
do Direito, por sua vez, “[...] descrever esse enredo normativo, ordenando-o,
declarando sua hierarquia, exibindo as formas lógicas que governam o entrelaçamento
das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação”.35 Para
HANS KELSEN, os textos jurídico-positivos, ao contrário das proposições jurídicas
feitas pela Ciência do Direito, “[...] são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por
eles serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito”.36
Percebe-se que KELSEN fazia a distinção entre norma jurídica e proposição
jurídica. Em síntese, norma jurídica seria aquela posta pela autoridade pública, enquanto
que proposição jurídica seria o resultado da interpretação do ordenamento jurídico
realizada pelo cientista do Direito. Como efeito desse raciocínio, somente a proposição
do cientista do Direito poderia ser definida como juízo hipotético, tendo a norma
jurídica a forma de um imperativo (comando, permissão, autorização). Esse
34
Curso de direito tributário, p.1.
Ibidem, p. 2.
36
Teoria Pura do Direito, p. 79-84.
35
25
posicionamento foi impugnado, com propriedade, pelos cultores da lógica jurídica, a
exemplo de LOURIVAL VILANOVA, para quem “[...] a terminologia kelseniana não
é exata: tanto a norma jurídica quanto o enunciado com que a ciência dogmática
descreve a norma, logicamente, são proposições”.37 Amparado nesse raciocínio, JOSÉ
ROBERTO VIEIRA ensina que as normas jurídicas, no sentido de prescrições
legislativas, também são veiculadas através de juízos hipotéticos. Esses juízos, assim
como qualquer outro, manifestam-se como proposições, pelo que correto, defende esse
autor, teria sido KELSEN ter falado em “proposições prescritivas” e “proposições
descritivas”.38
O Direito Positivo tem por objetivo regular o comportamento humano, no
campo de suas relações de intersubjetividade, o que significa dizer que as regras
jurídicas objetivam organizar a conduta das pessoas, umas com relação às outras,
mesmo porque os problemas da pessoa para com ela mesma (intra-subjetivos), desde
que não se exteriorizem, não interessam para o Direito. Em razão desse seu modo de
expressão, afirma-se que o Direito Positivo é um conjunto de proposições que está
vertido em uma linguagem prescritiva, ou seja, uma linguagem que prescreve
comportamentos. Por sua vez, o objetivo da Ciência do Direito é o estudo desse
conjunto de proposições, ou seja, o cientista do Direito vai debruçar-se sobre esse
conjunto de regras, descrevendo-as segundo determinada metodologia científica.
Depreende-se então que a linguagem utilizada pela Ciência do Direito é de
caráter descritivo – descreve normas jurídicas – e que é uma linguagem sobre outra
linguagem, ou melhor, a linguagem da Ciência do Direito descreve a linguagem
prescritiva do Direito Positivo. O Direito Positivo é, assim, uma linguagem-objeto, e a
Ciência do Direito é uma linguagem de sobrenível, ou metalinguagem. Nesse sentido,
RUDOLF CARNAP sustenta como “linguagem-objeto” a linguagem em que se fala e
“metalinguagem” como a linguagem em que se fala da linguagem-objeto.39
WARAT define a necessidade de estabelecer esses dois níveis de linguagem,
necessidade essa que surge quando tomamos como objeto de nossa reflexão a própria
linguagem, e defende que “O sentido desta distinção é dado, segundo os lógicos
positivistas, pela incapacidade das linguagens produzirem processos de autocontrole
sobre a lei de sua organização lógica. Necessita-se, então, da construção de um outro
37
As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 143.
A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p. 57.
39
Apud WARAT, Luís Alberto. O direito..., op. cit., p. 48.
38
26
nível de linguagem, a partir do qual se possa fazer uma investigação problematizadora
dos componentes e estruturas da linguagem que se pretenda analisar”.40
A cada uma das linguagens corresponde, necessariamente, também uma
diferente lógica. Ou seja, como as linguagens do Direito Positivo e da Ciência do
Direito são vertidas de formas diferentes, a lógica também será, obrigatoriamente,
diversa em relação a cada uma delas. As proposições normativas que compõem o
Direito Positivo dirigem-se para a região material da conduta, e pode-se dizer que tais
proposições usam os valores de “validade” ou “invalidade”, ínsitos à lógica do deverser (lógica deôntica), ao passo que as proposições científicas simplesmente descrevem
seu objeto, sem nele interferir, pelo que seus valores somente podem ser a “verdade” ou
“falsidade” (lógica clássica, lógica das ciências).
Vimos acima que toda linguagem, de certa forma, é metalinguagem de outra
linguagem-objeto. Fixamos a idéia, portanto, de que o Direito Positivo está vertido em
uma linguagem prescritiva, e que se trata de uma metalinguagem da realidade. Portanto,
nada mais coerente do que estabelecermos que a Ciência do Direito é a metalinguagem
da linguagem do Direito Positivo. E linguagem que é, pode ser analisada em seus três
níveis: o semântico, o sintático, e o pragmático.
No nível semântico da linguagem jurídica, os signos existentes nas normas
revelam o conteúdo de significação de um objeto, podendo também resultar na
verificação de que um mesmo signo jurídico pode veicular significados de mais de um
objeto. Nesse plano, analisaremos o sentido dos signos utilizados pelo legislador para
regular a conduta dos homens em suas relações de intersubjetividade, e
conseqüentemente sofreremos com as vaguezas e ambigüidades, inerentes à textura
aberta do Direito. Em linguagem jurídica, é o modo de referência à realidade, ou seja,
visa alterar normativamente a conduta. Em especial, pode-se dizer que, em grande parte,
o trabalho do cientista do Direito é o de eliminar os conteúdos de vagueza e de
ambigüidade do produto legislado.
A vagueza – ou vaguidade – ocorre quando estamos diante de uma palavra
imprecisa, em virtude da indeterminada extensão do seu significado. Exemplo clássico
utilizado na doutrina é a vagueza do vocábulo “calvície”. Apesar de sabermos com
certeza que uma pessoa sem nenhum fio de cabelo é calva, já não podemos saber com
40
Idem.
27
precisão a partir de quantos fios de cabelos existentes na cabeça de alguém pode-se
afirmar que essa pessoa deixa de ter tal característica. 41
Os termos vagos comportam três zonas de conhecimento: (a) zona de
luminosidade positiva: naquela circunstância há certeza da aplicação do termo. (b) zona
de luminosidade negativa: situação na qual com certeza não se aplica o termo. (c) zona
de nebulosidade ou zona cinzenta: é a zona intermediária, na qual se pode pender para
ambos os lados, e onde se originam os problemas de interpretação.42
Ambigüidade, por sua vez, refere-se ao problema das multissignificações (ou
plurissignificações), e indica que um determinado termo pode ser aplicado a mais de um
objeto, a mais de uma circunstância ou situação. Podemos exemplificar como um termo
ambíguo o vocábulo “manga”, o qual tanto se pode referir a uma espécie de fruta quanto
pode ainda se referir à extremidade de certas peças do vestuário. 43
HERBERT HART, ao analisar a questão das polissemias inerentes ao jurídico,
fala com propriedade de uma textura aberta do direito, a qual “[...] significa que há, na
verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem
desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio,
à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para
caso”.44
Por essa razão, é no nível sintático, o qual se refere à relação que os signos
mantém entre si, que poderemos reduzir os seus respectivos conteúdos semânticos.
Estaremos no plano sintático da linguagem da Ciência do Direito quando analisamos as
articulações das normas jurídicas entre si. São sintáticas, portanto, as relações verticais e
horizontais das normas entre elas mesmas. Dizendo de outra forma, as relações de
hierarquia entre as normas, como por exemplo, a relação entre uma norma
constitucional e uma lei ordinária (relação vertical), bem assim a relação entre uma
norma que estabelece um dever e outra que estabelece uma sanção, ou ainda a relação
entre a hipótese e o conseqüente de uma mesma norma (relação horizontal).
Para PAULO DE BARROS CARVALHO, “[...] pertencem ao plano sintático
todos os critérios que se detêm no arranjo dos signos jurídicos. A boa disposição das
41
VIEIRA, José Roberto. Medidas provisórias tributárias e segurança jurídica: a insólita opção estatal
pelo “viver perigosamente”. In: CARVALHO, Paulo de Barros (pres.); DE SANTI, Eurico Marcos
Diniz (coord.). Segurança Jurídica na tributação e Estado de Direito, p. 337.
42
Ibidem, p. 339-340.
43
Ibidem, p. 336.
44
O conceito de Direito, p. 148.
28
palavras, na frase normativa, é condição para o sentido da mensagem”. Depreende
disso que os métodos literal e lógico de interpretação situam-se no plano da sintaxe.
Acresce, com proveito, que “Não há qualquer exagero no afirmar-se que os problemas
relativos à validade das normas jurídicas, à constitucionalidade de regras do sistema,
são questões que têm um lado sintático e, em parte, podem ser estudadas no plano da
gramática jurídica. Dizem respeito à correta posição que as unidades normativas
devem manter no arcabouço do direito”.45
Entretanto, mesmo com o auxílio das relações sintáticas entre os signos, há a
possibilidade de ainda restar mais de um sentido. Nesse momento surge a necessidade
de analisarmos o terceiro nível da linguagem: o pragmático, caracterizado por
representar as relações entre o signo e o sujeito que o utiliza. O nível pragmático cuida
das formas utilizadas pela linguagem em relação ao discurso e na comunidade social
para motivar comportamentos, e “[...] por seu intermédio é possível distinguir o
conteúdo semântico de um signo, pois a habitualidade de sua utilização, em um mesmo
sentido, no contexto de uma linguagem, credencia o receptor da mensagem a
decodificá-la com proximidade da precisão”.46
Em relação ao sistema do Direito, é a forma como o jurista – aquele que se
ocupa com a Ciência do Direito – vê esse cosmos jurídico, como o entende, e em
conseqüência, a forma como ele discursa exteriorizando a sua respectiva linguagem.
Apesar de ser a sua visão sobre o sistema, não lhe é permitido, ante a perspectiva de um
necessário rigor científico, inserir valorações (suas) que não encontrem correspondência
com os valores positivados no sistema. É, sem sombra de dúvida, o que nos traz maiores
dificuldades no que tange à definição de seus exatos limites. O que queremos dizer é
que, por tratar das relações dos signos com seus usuários, aqui, grande é o risco de
avançarmos desmedidamente e deixarmos para trás os limites da linguagem-objeto, ou
seja, da linguagem normativa, estritamente a linguagem prescritiva do Direito Positivo.
Nessa altura, é importante ressaltar a total diferença entre perceber que o
Direito, como fenômeno empírico, tem uma linguagem, e que sua interpretação pelo
cientista ocorre através da linguagem, ou seja, o Direito como linguagem. A opção, com
efeito, é epistemológica, e não ontológica. Não se quer dizer que o Direito se reduz
45
46
Curso..., op. cit., p. 100.
BRITO, Edvaldo. Interpretação econômica da norma tributária e o planejamento tributário. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O planejamento tributário e a lei complementar 104, p. 55.
29
integralmente à linguagem, ainda que se imagine ela em um sentido amplo de
comunicação.
Nesse caminho é a advertência feita com propriedade por TÉRCIO SAMPAIO
FERRAZ JÚNIOR, o qual afirma que, se o Direito, como sistema de proposições
normativas, pode ter o aspecto lingüístico como fundamental, “[...] não se pode
esquecer que ele corresponde também a uma série de fatos, empíricos, que não são
linguagem, como relações de força, conflitos de interesse, instituições administrativas
etc., os quais, portanto, se não deixam de ter uma dimensão lingüística, nem por isso
são basicamente fenômenos lingüísticos”.47
Acolhe-se a visão desse autor, posto que o que se deseja não é analisar a
linguagem do Direito, mas sim analisar o próprio Direito – especificamente a norma
jurídica do ISS – ao nível da linguagem, pois dela necessita, para sua própria existência.
É que, ao investigar a norma jurídica, não se dispensam “[...] as características
operacionais da teorização jurídica, como a referência à práxis decisória, a
possibilidade de solução de conflitos, a regulamentação de comportamento, etc.”,
devendo a expressão “ao nível lingüístico” ser entendida, aqui, como “ao nível do
discurso”. O discurso, como um conjunto de fatos lingüísticos, “[...] conduz a pesquisa,
a nosso ver, ao plano privilegiado da pragmática”, sem menosprezar os planos
sintático e semântico.48
Esclarecemos que, conferir privilégio ao plano pragmático não significa o
abandono da dogmática jurídica, o que ocorreria apenas na hipótese de a relação de
conhecimento ter, como perspectiva, tão-somente o sujeito cognoscente. Antes, resulta
de nosso posicionamento a favor da utilização da chamada epistemologia dialética na
Ciência do Direito, defendida por AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO, pela
qual o importante – ao invés de privilegiar-se um dos pólos da relação cognitiva – é a
relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento na construção científica.49
47
Teoria da norma jurídica, p. 6-7.
Ibidem, p. 7.
49
Vide supra, item 1.1. A Ciência ... op. cit.
48
30
1.3 O DIREITO COMO UM SISTEMA
Já ao tempo de sua clássica obra, e à frente de seu tempo, PONTES DE
MIRANDA afirmava que a ciência jurídica de então evoluiu de forma considerável,
devido sua investigação ter-se elevado ao nível da investigação de outras ciências, com
maior precisão da linguagem e raciocínio: “A subordinação dela à metodologia que
resultou da lógica contemporânea, inclusive no que concerne à estrutura dos sistemas,
é o último degrau a que se atingiu”.50
Ao defender-se a supremacia da interpretação sistemática, necessariamente
vem à mente a idéia de sistema. E o que é, exatamente, um sistema? Em estudo sobre o
tema, JOSÉ ROBERTO VIEIRA encontra na doutrina nacional e estrangeira três noções
de sistema: uma primeira, pela qual sistema seria um conjunto de elementos (repertório)
que se relacionam por certas regras (estrutura do sistema); uma segunda, à qual obtevese somando à noção primeira a idéia de unidade; e por fim a terceira, que além das
características das anteriores incorpora a de coerência, resultando, pois, na noção de
sistema como “[...] um conjunto de elementos (repertório) que se relacionam
(estrutura), compondo um todo coerente e unitário (ordenação e unidade)”.51
O mesmo autor, comentando a existência de sistema no Direito Positivo e
sistema na Ciência do Direito, esclarece que somente em relação a esta última o sistema
exige a característica de coerência, em razão da impossibilidade da existência em seu
bojo de contradições. Por outro lado, a existência de antinomias entre as regras do
Direito Positivo, ainda que conflite com a idéia de coerência, não lhe infirma a condição
de sistema. É que a exigência de coerência atende à Lógica Apofântica, aplicável à
Ciência do Direito, mas não ao Direito Positivo, sujeito à Lógica Deôntica. 52
Mas para os fins desse estudo o sistema que nos interessa é o da Ciência do
Direito. E os elementos desse sistema responsáveis pela coerência são, sem dúvida, os
princípios jurídicos e dentre esses, mais precisamente os princípios constitucionais,
vetores interpretativos e diretrizes de aplicação de todas as normas jurídicas. Os
princípios constitucionais têm como uma de suas principais funções colmatar as
aparentes falhas na aplicação do Direito, interligando as normas umas às outras para
que, no fim de cada interpretação, resulte sempre garantida a unidade da Constituição.
50
Tratado de Direito Privado, v. 1, p. 20-22.
A Noção de Sistema no Direito. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, p. 55.
52
Ibidem, p. 60-61.
51
31
Pertinentes são as considerações de CANOTILHO nesse sentido, ao analisar o
princípio da unidade da constituição, que para o autor português “[...] é uma
exigência da ‘coerência narrativa’ do sistema jurídico”, e que as normas
constitucionais devem ser entendidas “[...] como se fossem obras de um só autor”. A
necessidade dessa unidade decorre, para esse autor, da existência de conflitos (tensão)
entre os princípios, originários do “[...] facto de a constituição constituir um sistema
aberto de princípios”; ou seja, “os princípios não obedecem, em caso de conflito, a
uma ‘lógica do tudo ou nada’, antes podem ser objeto de ponderação e concordância
prática, consoante o seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso”.53
Entende-se que a tese da Constituição como um sistema aberto de regras e
princípios, defendida por CANOTILHO, e por nós aqui acatada, não conflita com a
opção metodológica adotada neste trabalho, de que a Ciência do Direito exige rigor
discursivo, pois entendemos que os níveis semântico e pragmático da linguagem
jurídica, especialmente a dos princípios constitucionais, necessariamente devem
adequar-se à realidade espaço-temporal em que é aplicada, sem perder de vista as
aspirações sociais legítimas que informaram o nascimento desse sistema. É nessa
adequação que entendemos existir a abertura do sistema do Direito, necessária à noção
do já citado prudente positivismo.
Em uma outra noção de sistema, ROQUE ANTONIO CARRAZZA acentua o
papel dos princípios: “Sistema [...] é a reunião ordenada das várias partes que formam
um todo, de tal sorte que elas se sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas
primeiras. As que dão razão às outras chamam-se princípios, e o sistema é tanto mais
perfeito, quanto em menor número existam”54. Apesar dos bons argumentos utilizados,
esse autor não deixa claro, quando usa a expressão “reunião ordenada”, se a referência é
em relação à característica da “estrutura” – existente em qualquer sistema – ou à
característica da “coerência” que, como já demonstrado acima por JOSÉ ROBERTO
VIEIRA, não é um atributo inerente, por exemplo, ao sistema do Direito Positivo.55
Na Constituição há, portanto, normas que revelam verdadeiros princípios e
normas que revelam apenas regras. As primeiras caracterizam-se pelo elevado grau de
abstração, não possuindo aplicação direta aos casos concretos, mas servem de
fundamento de interpretação e aplicação para as segundas, além de estarem mais
53
Direito Constitucional..., op. cit., p. 1.057.
Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 31.
55
A Noção de Sistema..., op. cit., p. 60-61.
54
32
vinculados à idéia de direito, por serem “[...] ‘standards’ juridicamente vinculantes,
radicados nas exigências de ‘justiça’ [...] ou na ‘idéia de direito’”. Já as segundas, as
normas que revelam regras, essas possuem reduzido grau de abstração, sendo, por essa
razão, susceptíveis de aplicação direta ao caso concreto.56
É de rigor, portanto, que a interpretação e a aplicação de qualquer norma tenha
por pressuposto a observância do sentido indicado pelos princípios constitucionais
aplicáveis à espécie. EDVALDO BRITO, comentando sobre o papel das normas-regra
e das normas-princípio, ressalta importante aspecto de nosso ordenamento jurídico:
Este é um sistema interno da Constituição que condiciona a sua interpretação,
no que diz respeito à subordinação desses elementos, operando-se a partir da
esfera de maior generalidade, às de menor; bem assim, por ser um sistema
aberto, há de estar sensível a uma interpretação de legitimação das aspirações
sociais que o informaram desde a sua origem, quando da eleição das normas
pelo legislador constituinte. No caso brasileiro de 1988, essa sensibilidade
avulta pelo fato de ter havido constante participação popular no permanente
acompanhamento da elaboração do texto, como nunca houve dantes.57
Paralelamente ao tradicional dualismo entre princípios e regras, HUMBERTO
ÁVILA acrescentou relevante contribuição científica ao defender a existência, dentre as
normas jurídicas, de princípios, regras e postulados. Os princípios, para o autor, são
normas de 1º grau, com a função de estabelecer finalidades (normas finalísticas), ou
seja, estabelecem um estado ideal de coisas a ser perseguido. Subdividem-se em
princípios em sentido estrito e sobreprincípios. Estes, ao contrário daqueles,
buscariam a realização de um ideal mais amplo, como, por exemplo, o princípio do
Estado de Direito. Por sua vez, os postulados, porque se qualificam como normas sobre
a aplicação de outras normas, seriam normas de 2º grau, e constituem-se nas condições
essenciais a que se submete a interpretação do direito posto. Dentre esses, existem os
postulados meramente hermenêuticos, destinados à compreensão em geral do Direito e
os postulados aplicativos, cuja função é estruturar a sua aplicação concreta. O autor cita,
dentre os mais importantes postulados hermenêuticos, o da unidade do ordenamento
jurídico. Dentre os postulados normativos aplicativos, os principais seriam os da
proporcionalidade, da razoabilidade e da proibição de excesso.58
Ressalte-se que nenhuma análise dos princípios constitucionais será tida como
válida e legítima se não considerar o resultado da evolução política, social e cultural de
56
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional..., op. cit., p. 1.034.
Interpretação Econômica..., op. cit., p. 62-63.
58
Sistema Constitucional Tributário, p. 38-44.
57
33
seu meio, mas também não o será se inobservar os valores políticos e sociais que
informaram a sua respectiva positivação. É que as normas que expressam princípios,
diferentemente das que revelam regras, podem entrar em aparente contradição entre si,
por não haver, sob uma certa perspectiva, hierarquia entre elas, mas sim uma
necessidade de aplicação diferenciada dependendo da situação fáctico-jurídica a
ponderar em cada caso.
Como observa KARL LARENZ, “[...] no caso de uma contradição entre
princípios, tem, portanto, cada princípio de ceder perante o outro, de modo a que
ambos sejam actuados ‘em termos óptimos’ (‘mandado de optimização’). Em que
medida seja este o caso depende do escalão do bem jurídico em causa em cada caso e
requer, ademais, uma ponderação de bens”.59 É o que CLAUS-WILHELM CANARIS
denominou de “jogo concertado de princípios”, única forma de conhecermos os
significados e o alcance de cada um dos princípios constitucionais.60
Para PONTES DE MIRANDA, os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, que
utilizam proposições que se referem a fatos da vida, do mundo. Somente os fatos do
mundo escolhidos pelas regras jurídicas é que integram o mundo jurídico, e elas – as
regras jurídicas – imprimem valores a tais fatos por considerá-los relevantes e assim
objetivam a harmonização do homem no meio social. A determinação do conteúdo da
regra jurídica é função do intérprete – juiz ou jurista – o qual deve, para tal mister, “[...]
conhecer o passado do sistema jurídico e, pois, de cada regra jurídica, e o sistema
jurídico do seu tempo, no momento em que se pensa, ou pensa e fala ou escreve”.
Interpretar é, em grande parte, “[...] estender a regra jurídica a fatos não previstos por
ela”, o que está além da analogia.61
Ao interpretar, investiga-se o sistema jurídico, com o que não se pode estar
adstrito à letra da lei, buscando “[...] o sentido [...] mais adequado às relações
humanas, sem se dar ensejo ao arbítrio do juiz”. Se o legislador não se expressou bem,
deve prevalecer o pensamento que se tentou exprimir, mas esse pensamento deve ser
buscado no sistema jurídico, e não no espírito ou na vontade do legislador, “[...] porque
seria atravessar a linha distintiva do político e do jurídico”.62
Como síntese dos efeitos da sistematicidade do Direito, PIETRO MEROLA
CHIERCHIA ensina, com extremo proveito, que “[...] mais do que um critério ou de
59
Metodologia..., op. cit., p. 675-677.
Apud LARENS, Karl. Ibidem, p. 677.
61
Tratado..., op. cit., p. 13-14.
60
34
um instrumento interpretativo, fala-se de uma ‘interpretação sistemática’, justamente
porque, referida à Constituição, a sistematicidade deve ser assumida não como um
simples método de trabalho do intérprete, mas sim como uma característica essencial,
no sentido de que a interpretação, antes do que de normas isoladas, é sempre e
necessariamente interpretação do sistema constitucional inteiro”.63
A premissa da interpretação sistemática tem importância fundamental no
estudo do objeto deste trabalho. É que o regime jurídico tributário do ISS envolve
normas editadas antes e depois da atual Constituição. As anteriores, como é cediço,
permanecem válidas em razão do fenômeno da recepção das normas anteriores,
materialmente compatíveis com o atual ordenamento jurídico. O aspecto formal, desde
que observado no sistema anterior, é desconsiderado para fins de recepção, e a norma
anterior recepcionada passa a ter a eficácia da espécie normativa prevista pela atual
Constituição para o trato da sua matéria.
Entretanto, a recepção, em si mesma, não é argumento suficiente para concluir
pela manutenção da interpretação existente em torno do dispositivo recepcionado,
quando ainda vigente sob a égide da Constituição anterior. A inserção de um texto
normativo pretérito na atual Constituição exige uma nova contextualização, para que
seja cumprido o cânone hermenêutico pelo qual a aplicação de uma norma pressupõe a
aplicação conjunta de todo o ordenamento jurídico. Com efeito, é perfeitamente
possível que um mesmo dispositivo tenha sua interpretação ampliada ou restringida,
após sua recepção pela nova ordem jurídica, do que resulta a advertência da necessária
cautela com que se adotam conclusões doutrinárias e jurisprudenciais firmadas quando
ainda vigente a Constituição pretérita.
Nesse sentido são as conclusões acertadas de MARÇAL JUSTEN FILHO, em
comentário sobre a interpretação do Decreto-lei 406, de 31/12/68, no atual sistema
jurídico:
a substituição de uma constituição produz decorrências significativas para o
intérprete. A existência, na constituição posterior, de dispositivo com redação
idêntica ou similar à de uma disposição da carta anterior deve ser enfocada
com cautela. Não se autoriza a automática seqüência de aplicação de doutrina
e jurisprudência desenvolvidas sob a constituição revogada, desde que tais
entendimentos retratavam a interpretação da constituição anterior considerada
62
63
Ibidem, p. 14.
Apud JUSTEN FILHO, Marçal. O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-Lei nº 406. Revista
Dialética de Direito Tributário, n. 3, p. 65.
35
em seu todo. A nova constituição pode, no seu conjunto, produzir
conseqüências não cogitadas sob a égide da anterior.64
Estabelecidas essas premissas, passemos agora à análise da necessidade atual
de uma nova interpretação das normas jurídicas tributárias no ordenamento jurídico
brasileiro, não tanto por força da positivação de direitos na atual Constituição, mas
sobretudo pela nova roupagem que princípios já antes existentes vêm assumindo com o
crescimento da noção de Estado Social e Democrático de Direito, em substituição à
antiga idéia de Estado de Direito.
1.4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A transição do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito
verifica-se com especial destaque no enriquecimento da carga valorativa existente na
expressão “liberdades”, cuja eficácia jurídica vem exigindo sua efetivação não só no
aspecto negativo, correspondente à clássica noção do princípio da legalidade no âmbito
privado, em que ao indivíduo é facultado fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, mas
também e especialmente no aspecto positivo, pelo qual não basta que a atividade dos
indivíduos não esteja vedada pela lei, sendo necessário que esteja de acordo com a
proteção aos direitos sociais positivados constitucionalmente.
Essa evolução jurídica tem como um de seus marcos iniciais a idéia de
república. Da essência legítima de república, bem como de sua etimologia (res publica
= coisa do povo) nasceram várias idéias, muitas das quais passaram a representar
verdadeiros princípios presentes nas modernas constituições. Mas foi seguramente na
noção de representatividade no poder que o princípio republicano mais se disseminou
por quase todo o mundo.
E representatividade nada mais é do que governar através da lei. Disso
resulta, como inferência lógica, que o princípio da legalidade está umbilicalmente
ligado às diretrizes republicanas, desde que o governo, mesmo que através de leis, seja
real e efetivamente expressão da vontade popular, forte na noção de auto-governo,
idéia que remonta às teorias sobre o contrato social de TOMAS HOBBES, JONH
LOCKE e em especial de JENA JAQUES ROUSSEAU.
64
O ISS..., op. cit., p. 65.
36
À noção de república confluem os ideais da democracia, tendo vários autores
até mesmo concluído pela confusão conceitual entre ambos os termos, crescendo assim
em grande escala a utilização da expressão república democrática. É também na
reunião de ambas as idéias que CANOTILHO afirma que “[...] a ‘forma republicana de
governo’ reivindica uma legitimação do poder político baseado no povo (‘governo do
povo’). Num governo republicano a legitimidade das leis funda-se no princípio
democrático (sobretudo no princípio democrático representativo) com a conseqüente
articulação da autodeterminação do povo com o ‘governo de leis’ e não ‘governo de
homens’”.65
Semelhante é a posição de ROQUE ANTONIO CARRAZZA sobre o conceito
de República, com a diferença de que sua definição acentua em primeiro lugar a idéia de
igualdade entre as pessoas: “República é o tipo de governo, fundado na igualdade
formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter
eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.66
As estreitas relações entre os ideais republicanos e democráticos foram objeto
de excelente estudo de JOSÉ ROBERTO VIEIRA, para quem “[...] caracterizam a
República: a representatividade, decorrente da eletividade, a transitoriedade e a
responsabilidade”, conferindo relevo ao primeiro desses traços, pois a República é,
antes e acima de tudo, um regime de governo em que as autoridades são meros
administradores da coisa pública, a título de mandatários do povo.67 Acrescenta o autor
que, da idéia de representatividade, inerente à república, decorre também a noção de
democracia, cujo mínimo semântico indica obrigatoriamente a participação do povo no
exercício do poder, o que se realiza, indiscutivelmente, na produção legislativa, daí sua
“[...] indefectível conexão com o Princípio da Legalidade”.68
A definição precisa de GISELA MARIA BESTER complementa o amparo
doutrinário ao nosso trabalho, dando ênfase à essência eletiva e representativa dos
mandatários e à divisão do poder. Ao final, o entendimento dessa autora também revela
a inevitável relação da República com a democracia: “A República pressupõe eleição
periódica do Chefe de Estado, a divisão do poder em três funções distintas e implica a
65
Direito Constitucional..., op. cit., p. 223.
Curso..., op. cit., p. 48.
67
Fundamentos republicano-democráticos da legalidade tributária: óbvios ululantes e não ululantes, In:
FOLMANN, Melissa (coord.). Tributação e Direitos Fundamentais: propostas de efetividade, p.
203.
68
Ibidem, p. 208.
66
37
necessidade de legitimidade popular dos seus mandatários, isto é, do Presidente da
República, dos Governadores dos Estados e dos Prefeitos Municipais, bem como do
poder Legislativo, simplesmente porque isto é da essência do regime democrático
representativo”.69
Também em nosso ordenamento jurídico vigora o princípio republicano, tendo
a Constituição de 1988, previsto, já em seu artigo 1°, que “A República Federativa do
Brasil” – acrescentando adiante, no mesmo artigo –
“constitui-se em Estado
Democrático de Direito”. Aqui surge, qualificado pela democracia, outra expressão
jurídica: Estado de Direito. Mas a história demonstra que nem sempre o Direito
(legítimo) foi o adjetivo na grande maioria dos Estados. No Estado Moderno – que
nasce em razão do fim dos feudos, na Europa, diversamente do que ocorreu na
Antiguidade clássica e na sociedade feudal, verificou-se uma “[...] crescente
concentração de poder nas mãos do príncipe, [...] operada com o auxílio da noção de
soberania recém-elaborada por juristas e teóricos” – diríamos forjada – o que resultou
no surgimento do Estado absolutista.70 Esta situação gerava insegurança nas relações
jurídicas, situação agravada com a existência de várias ordens paralelas (clero, nobreza
etc.).
Importante registrar que “[...] nem todos os Estados de tipo social foram ou
são democráticos”, como adverte, em boa hora, GISELA MARIA BESTER, para quem
“[...] o Estado Democrático de Direito é o regime jurídico que autolimita o poder de
governo ao cumprimento das leis que a todos subordinam, inclusive a si próprio”. Mais
do que isso, adverte a autora, não basta a submissão ao Direito, mas que esse direito seja
criado democraticamente, o que, em última instância, resulta na origem democrática
tanto da composição do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo, que são os dois
poderes com aptidão para criar normas, o primeiro como função típica, o segundo como
exceção. “Logo, este princípio permite ao povo (governados) uma efetiva participação
no processo de formação da vontade pública (governantes e legisladores), sendo a
marca principal deste tipo de Estado a origem democrática do poder e das normas”.71
Todos os problemas gerados pelo Estado Absoluto, aliados ao surgimento do
racionalismo iluminista, favoreceram, ideológica e politicamente, a eclosão das
revoluções burguesas, surgindo, com esse movimento, a chamada teoria constitucional,
69
Direito Constitucional..., op. cit., p. 277.
CLÈVE, Clemerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo, p. 21-22.
71
Direito Constitucional..., op. cit., p. 283-284.
70
38
a qual daria ao Estado uma constituição jurídica, com o objetivo de fixar os limites do
poder político e vincular esse Estado à sociedade civil, através da positivação dos
direitos individuais aspirados pela burguesia. Por propiciar tais ensejos, ganhou
relevância a teoria da separação dos “poderes” – primeiro através de Locke e depois
com seu precursor, Montesquieu – sendo adotada nas constituições seguintes, tanto nos
Estados Unidos como na França, iniciando-se então o processo de sua positivação.
As revoluções contrárias ao Estado absoluto não pretendiam destruir o aparelho
estatal, visto como um mal necessário, mas sim opor limites ao poder político,
objetivando mantê-lo concentrado. Isso seria feito primeiro com o controle do poder
pelo próprio poder, e depois com a transferência da soberania, do Rei para o povo.
Surge assim, como herança do liberalismo, a idéia de Estado Constitucional ou de
Direito.
É comum referir-se ao liberalismo como sendo o modelo do qual resultaram
dois legados: um, no âmbito econômico, representado pela idéia de bem-comum,
advindo das leis naturais do livre mercado; e outro, no espectro político, representado de
forma especial pela positivação das liberdades nos ordenamentos jurídicos.
O liberalismo econômico puro, como é cediço, quedou impotente ante a
inevitável conclusão de uma necessária participação estatal na regulação do mercado e
na prestação de serviços ao público, sendo que a discussão ideológica permanece quanto
à intensidade e à dimensão mais indicadas de intervenção.
O liberalismo político legou-nos o primado do Estado de Direito, consolidando
a idéia da inviabilidade de um Estado que não fosse criado e regulado pela ordem
jurídica legitimamente instituída. As características básicas desse modelo seriam,
conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, (a) a submissão ao império da lei, que
era a essência do seu conceito, sendo a lei necessariamente considerada ato emanado
formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo-cidadão; (b)
divisão de “poderes”, para que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário sejam
separados com independência e harmonia, resultando em técnica que garanta a produção
legislativa ao primeiro, a viabilidade do atendimento das exigências sociais ao segundo
e a independência e a imparcialidade do último diante dos demais e das pressões do
setor privado mais poderoso; e, por fim, o (c) enunciado e a garantia dos direitos
39
individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito,
o qual representa uma grande conquista da civilização liberal.72
A teoria da separação de “poderes”, por constituir-se em mecanismo de
garantia das liberdades individuais, conquistou prestígio na doutrina constitucional do
liberalismo, “[...] doutrina política que fundamentou a construção da teoria do Estado
de Direito; um Estado juridicamente limitado pela Constituição e ideologicamente
assumido pela doutrina liberal”.73 A liberdade de que se fala no liberalismo não é a
mesma da antiguidade, que se exercitava através de uma forma direta de democracia,
mas um novo conceito, que define um campo de autonomia do cidadão e da sociedade
em contraposição à autonomia estatal. O Estado deve ser concebido como expressão da
vontade dos indivíduos (contratualismo), e deve ter o seu poder e os seus fins limitados.
O único fim do Estado liberal parece ser o de garantir a segurança de que os indivíduos
necessitam para que possam livremente desenvolver-se.
O liberalismo defendia a responsabilidade do Estado somente para garantir a
segurança das relações sociais, não possuindo outras funções além da legislativa, da
executiva e da judicial. No início do capitalismo, os liberais acreditavam que o egoísmo
em geral produziria o bem comum através de uma “mão invisível”, sem imaginarem que
as mudanças provocadas pela acumulação de capital e a recente noção de poder
econômico exigiriam uma mudança no Estado e no Direito. Para o liberalismo, o
Parlamento representava a vontade da nação, que não se confundia com o povo ou com
o eleitorado. A conquista do sufrágio universal, portanto, teve a virtude de conciliar as
idéias de liberalismo e democracia, que, em suas origens, não são coincidentes.
Mas ainda mesmo nos Estados de Direito em que não se verificaram tendências
totalitárias, demonstrou-se que o individualismo e o neutralismo do Estado liberal
resultaram em grandes injustiças, deflagradoras de importantes movimentos sociais,
ocorridos em especial nos dois últimos séculos. O qualificativo “liberal”, desse modo,
não era mais “bem visto” ao Estado de Direito, o qual não mais poderia justificar-se de
tal forma. Como conseqüência, percebeu-se o abandono da visão meramente formal do
Estado de Direito, nascendo de tal transição paradigmática um Estado material de
Direito, acrescendo, à positivação jurídica das liberdades, o “plus” dos direitos sociais,
donde nasce o Estado Social de Direito.
72
73
Curso de direito constitucional positivo, p. 112-113.
Atividade legislativa..., op. cit., p. 34.
40
Entretanto, JOSÉ AFONSO DA SILVA anota que, embora a concepção liberal
do Estado de Direito tenha servido de apoio aos direitos do homem, transformando os
súditos em cidadãos livres, verificou-se a existência de concepções deformadoras, “[...]
pois é perceptível que seu significado depende da própria idéia que se tem do Direito”,
do que resulta sua ambigüidade quando apartado de outro qualificativo que indique qual
é o seu conteúdo material. Diante disso, e apoiado em construções formalistas e
normativistas do Direito, infelizmente serviu a interesses de regimes totalitários e
ditatoriais, como ocorreu na Alemanha nazista.74
A limitação jurídica estatal cede espaço diante da necessidade do Estado de
assumir novas funções. Os direitos fundamentais, antes restritos à idéia de liberdades
negativas (dever de abstenção do Estado), agora incluem os chamados direitos
econômicos, sociais e culturais (prestações positivas pelo Estado). Fatores como a crise
capitalista, sufrágio universal, reivindicações dos trabalhadores, revoluções socialistas,
redução das empresas, oligopólio, sociedade de massas, urbanização etc., acabaram por
exigir o nascimento do Estado Social de Direito, fenômeno que não pôde ser ignorado
pelo direito constitucional, tendo como primeiros modelos a Constituição mexicana de
1917 e a alemã de 1919 (Weimar), surgindo, no Brasil, com a Constituição de 1934.
Diante das numerosas exigências que lhe são feitas, e em decorrência das
profundas modificações sofridas no meio social, o Estado avolumou-se, inchou. E é o
mesmo Estado quem tem o dever de assegurar as liberdades, abstendo-se muitas vezes
de ultrapassar certos limites. A liberdade outrora existente, não é mais imaginável hoje.
Os indivíduos dependem do Estado para quase tudo, além de dependerem uns dos
outros. Além de indivíduos, a sociedade é formada hoje por grandes grupos – sindicatos,
igreja, partidos políticos, grandes empresas, bancos etc. – cada um com interesses
muitas vezes conflitantes com outros grupos ou com o próprio Estado. Assim, tem o
Estado a função de quebrar o domínio dos grupos e corporações.
Em um Estado social, o Executivo vê ampliada sua atuação, pois é um Estado
de serviços, o que lhe dificulta uma conciliação com o Estado de Direito, pois “[...] a
separação de poderes só tem sentido em um Estado de Direito”.75 Não faltam exemplos
de Estados sociais que se tornaram totalitários. É que, diante da ambigüidade da
expressão “social”, o modelo do “Estado Social de Direito”, infelizmente, serviu de
justificativa para a implantação de uma série de regimes em que se verificou total
74
Curso..., op. cit., p. 113-114.
41
desrespeito à vontade popular e aos mínimos direitos humanos. Foram, assim, “Estados
Sociais”, a Alemanha nazista, a Itália fascista, e inclusive o Brasil, na época do Estado
novo. O Estado “Social” comporta, portanto, a coexistência de regimes políticos
antagônicos, como a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. O “social” deve
qualificar o Direito, e não o Estado. Conclui-se, portanto, que, nem o Estado liberal de
Direito, nem o Estado social de Direito, garantem a existência de um Estado
Democrático, regime fundado na soberania popular, exigindo a participação formal e
material do povo, não só na formação das instituições representativas, mas, além disso,
na gestão da coisa pública, visando “[...] realizar o princípio democrático como
garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana”.76
Como bem observou BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, “[...] entre as
ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por
enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma”; ou dizendo de outro modo, os
novos paradigmas sempre nascem das mazelas dos velhos paradigmas. 77 Assim, do
Estado absoluto, nasceu o Estado Liberal, e desse surgiu o Estado Social. Mas, após o
fim da Segunda Guerra Mundial, o Estado social e o Estado de Direito reencontraramse, com a união do novo papel do Estado à já conquistada sujeição do Estado ao Direito.
É quando nascem os Estados Democráticos de Direito.
Do princípio republicano democrático, portanto, bem assim dos fundamentos
do Estado de Direito, surgem, para o cidadão, direitos fundamentais, entre nós,
positivados no rol do artigo 5° da Constituição de 1988, assim como vários direitos
sociais, indicados no artigo 7º da Lei Maior. Dentro do Direito Tributário, porém,
sempre foi dado destaque aos direitos à liberdade, à igualdade, à segurança jurídica e à
propriedade, devido em grande parte à estreita vinculação desse ramo jurídico com o
princípio da legalidade.78
É importante, no entanto, atentar para os novos conteúdo e alcance do princípio
da legalidade, renovado com novos matizes, após o advento do Estado Democrático de
75
CLÈVE, Clemerson Merlin. Atividade legislativa..., op. cit., p. 34.
Curso..., op. cit., p. 115-117.
77
Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v.1, A crítica
da razão indolente: contra o desperdiço de experiência, p. 16.
78
O direito à vida, direito fundamental por excelência, é patrimônio primeiro do cidadão, devendo ser
priorizado em qualquer circunstância. Apenas não o citamos, aqui, em razão de que a tributação atual,
apesar de agressiva, felizmente não tem ocasionado violações à vida, pelo menos não diretamente, pois
se poderia defender que, do regime tributário do país, resultam as mazelas sociais e econômicas, e que,
por via reflexa, portanto, a tributação seria a causa das mortes ocorridas, devido a estados extremos de
pobreza e subnutrição.
76
42
Direito, como expressa com propriedade JOSÉ AFONSO DA SILVA, constitucionalista
que defende ser a legalidade um princípio basilar do Estado Democrático de Direito,
modelo que, como todo Estado de Direito, sujeita-se ao império da lei, mas da lei que
realize o princípio da igualdade e da justiça, não pela sua generalidade, mas pela busca
da equalização das condições dos socialmente desiguais. Mais adiante, ressalta que o
Estado Democrático de Direito “[...] tem que estar em condições de realizar, mediante
lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da
comunidade”, pois “[...] a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa [...],
pois precisa influir na realidade social”.79 Não se poderia chegar a outra conclusão,
pois se a Constituição é o berço legítimo das transformações políticas, econômicas e
sociais almejadas pela sociedade brasileira, a lei terá importância fundamental, posto
que, na qualidade de expressão clássica do direito positivo, fruto do desdobramento do
conteúdo constitucional, revela-se como instrumento de transformação democrática da
sociedade.
No presente trabalho e, portanto, no contexto da análise da regra-matriz de
incidência do ISS, essa nova perspectiva, resultante do advento do Estado Democrático
de Direito, implica uma necessidade de uma nova consciência político-tributária,
tanto para os representantes do povo – seja em âmbito nacional como nos Municípios –
como para os contribuintes – nesse caso, os prestadores de serviço. Esse novo contexto
é marcado, de forma especial, pelo influxo, no âmbito tributário, do valor constitucional
da solidariedade social, previsto no artigo 3º da Constituição Federal de 1988. Devido à
importância do tema, dedicamos a ele um subitem específico, razão pela qual deixamos
de analisá-lo detidamente nesse momento.80
79
80
Curso..., op. cit., p. 121-122.
Vide infra, subitem 2.1.3.1.
43
2. SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A análise jurídica de qualquer tributo, inserido no ordenamento jurídico pátrio,
não pode ser feita somente a partir de seus dispositivos específicos, o que pressuporia a
interpretação isolada dos textos normativos, como se eles gozassem de uma autonomia
normativa. “Não há norma jurídica avulsa, como que pairando no ar...”, dizia, com
autoridade científica, GERALDO ATALIBA, acrescendo que não é possível entender o
texto, “[...] sem inseri-lo no contexto do qual faz parte”.81
Com efeito, não há outra opção hermenêutica válida, legítima, senão aquela
que privilegie uma interpretação sistemática de toda e qualquer norma, dentro do seu
respectivo sistema. O maior ou menor sucesso nessa empreitada dependerá, ainda, de
um correto e coerente dimensionamento axiológico dos princípios maiores que
informam o ordenamento jurídico, é dizer, há que se saber aplicar, em cada caso, qual é
o princípio que revela o vetor constitucional mais indicado para que a solução final seja
consentânea com os valores prestigiados no sistema, aqui e agora.
A razão disso está no entendimento de que não há relação de hierarquia entre
os princípios constitucionais, em especial entre aqueles de maior envergadura – com
graus de generalidade e abstração equivalentes – senão um campo de aplicação
específico para cada um, hipótese em que todos os demais deverão ser, para aquele caso
único, desconsiderados, posto ser aquele princípio eleito o único que realiza, por meio
de uma só norma, o Direito como um todo.
Há casos, por exemplo, em que o valor da segurança jurídica determinará a
aplicação do princípio da legalidade tributária ou de seu corolário imediato, a tipicidade
fechada da norma tributária, e a conclusão pela inaplicabilidade do princípio da
isonomia tributária. Em outra situação, nada impede que, por exigência inafastável de
prestígio ao cânone da capacidade contributiva, a isonomia tributária deva ser a opção
do intérprete. Quando se fala em “aplicação de um princípio”, ou “opção por um
princípio”, parte-se da premissa implícita de que essa “aplicação” ou “opção” é
efetivada com uma independência parcial do intérprete, pois em razão de os valores já
81
Imposto sobre serviços: competência tributária é, eminentemente, legislativa – matéria constitucional –
função das normas gerais de direito tributário – ampla autonomia tributária do Município – tributação
dos serviços de vigilância bancária. Revista de Direito Tributário, n. 35, p. 69.
44
estarem positivados no sistema, àquele somente resta, no plano pragmático da
linguagem jurídica, subsumir seus valores pessoais à ideologia encampada pela
Constituição. É lógico que, devido ao elevado grau de abstração e generalidade das
normas que revelam princípios, evidencia-se uma verdadeira e legítima “folga
interpretativa”, espaço no qual se justifica a convivência de conclusões diferentes sobre
o mesmo tema, assim como é o que permite às expressões e vocábulos, constantes dos
textos normativos, adaptarem-se às peculiaridades fáticas, no tempo e no espaço.
Essa “flexibilidade” existente no sistema jurídico, verificável, como se disse,
somente no nível pragmático da linguagem jurídica, e que peculiariza a lógica da
Ciência do Direito (“dever-ser”) diante da lógica inerente às ciências naturais (“ser”) é a
única justificativa legítima para resultados interpretativos divergentes. Fora dessa
perspectiva, qualquer análise de um texto normativo resulta falsa, não podendo nem
mesmo ser qualificada como interpretação, pois, ou a interpretação é sistemática, ou de
interpretação não se trata. É o caso clássico da interpretação literal (gramatical) que,
apesar de válida como um primeiro estágio hermenêutico, não é bastante em si para
chegar a qualquer resultado verdadeiro. De resto, o caráter sistemático e unitário do
Direito é, em rigor, verdadeiro axioma, que por essa razão dispensa maiores esforços em
sua demonstração.
O Sistema Tributário Nacional é expressão que abrange todas as normas,
constantes do ordenamento jurídico, que disciplinam as relações jurídicas tributárias.
Constitui-se, portanto, em verdadeiro subsistema, em razão das peculiaridades que esse
ramo jurídico apresenta. Não se quer com isso afirmar a existência de foros de
autonomia científica para o Direito Tributário, pois já é cediço que o caráter unitário do
Direito impede possa um determinado ramo jurídico pretender ser titular de institutos e
conceitos próprios, desvinculados do restante do sistema jurídico.
Quando muito, há uma autonomia tão-só didática, e que não passa de relativa,
pois não há ramo jurídico cujo ensino prescinda do recurso às demais áreas do Direito.
O Direito Tributário, além de não poder ser diferente, é intensamente marcado por essa
característica. Basta um breve lançar de olhos a qualquer norma jurídica tributária, em
cuja hipótese de incidência são facilmente identificáveis conceitos e institutos advindos
de outros ramos, em especial do Direito Civil e do Direito Comercial. No plano do
Direito Tributário formal, onde estão inseridas as normas jurídicas que tratam da
exigibilidade dos tributos, destacam-se as participações do Direito Administrativo e do
45
Direito Processual. Não por outra razão o Direito Tributário é denominado de “direito
de superposição”.
O Sistema Tributário Nacional, assim como o sistema jurídico, pode ser
vislumbrado como a clássica figuração da pirâmide jurídica. No ápice estão as normas
jurídicas que, não obstante existirem em menor número, são as mais importantes do
ponto de vista axiológico, o que lhes confere a posição hierárquica superior. A cada
degrau da pirâmide, reduzindo-se o grau de abstração e generalidade, as normas
tributárias vão aumentando em quantidade e concreção, mas sempre tendo a forma e o
conteúdo vinculados ao que dispõem as normas superiores, que lhes servem de
fundamento de validade.
São as normas constitucionais, portanto, que ocupam o mais alto nível na
hierarquia normativa. Dentre elas, ainda se podem classificar as mais relevantes, e que
condicionam a interpretação do restante do ordenamento jurídico, inclusive das demais
normas constitucionais. São os chamados princípios constitucionais e, para o que
interessa ao presente estudo, os princípios constitucionais que orientam a aplicação de
todo o Direito Tributário brasileiro. Com essa afirmação não se quer defender que
apenas os princípios constitucionais previstos no Capítulo I do Título VI (Do Sistema
Tributário Nacional)
orientam a aplicação do Direito Tributário no Brasil. Isso
implicaria franca contradição com a anterior afirmação da inexistência de autonomia do
Direito Tributário.
Essa exigência hermenêutica foi bem demonstrada por HUMBERTO ÁVILA,
em acertada crítica sobre a “combinação de princípios” levada a efeito pela tradicional
interpretação sistemática do Direito Tributário, onde a descrição, pela doutrina, das
limitações ao poder de tributar abrange, em geral, as limitações negativas, sem uma
investigação mais profunda e conjunta das limitações positivas, como, por exemplo, a
proporcionalidade e os princípios e direitos fundamentais.82
82
Sistema constitucional tributário, p. 21-22.
46
2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS 83
O artigo 150 da Constituição Federal de 1988, antes de enumerar em seus
incisos as mais importantes “limitações constitucionais ao poder de tributar”, dispõe, em
seu caput, o seguinte:“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:” (grifamos). Ou
seja, a expressão “outras garantias” confere a certeza de que os princípios
constitucionais tributários subsumem-se entre os “direitos e garantias individuais”
previstos no artigo 60, § 4°, IV, da Constituição Federal de 1988, o que os qualificam
como cláusulas pétreas. E não poderia ser de outra forma. São os princípios que
presidem o funcionamento de todo o sistema jurídico. Se assim não fosse, o Direito
seria um amontoado de normas, cuja aplicação em cada caso dependeria do humor
momentâneo do magistrado, instaurando-se o caos da insegurança jurídica e da
inexistência de certeza do Direito. Dessume-se, então, que as noções de sistema
jurídico e princípio são indissociáveis. É da essência de todo e qualquer sistema a
existência de elementos mais importantes que comandam a intelecção e aplicação dos
demais.
No sistema jurídico brasileiro, os princípios são a mais legítima expressão da
vontade popular, sendo compromisso ético e moral dos representantes do povo, tanto no
Poder Legislativo como no Poder Executivo, a luta incessante pela sua eficácia,
mediante a irradiação de seus valores sobre a legislação infraconstitucional. GERALDO
ATALIBA, publicista que se destacou como um dos maiores defensores dos princípios
constitucionais, revela esse pensamento, nos seguintes termos: “Olvidar o cunho
sistemático do Direito é admitir que suas formas de expressão mais salientes, as
normas, formam um amontoado caótico, sem nexo, nem harmonia, em que cada
preceito ou instituto pode ser arbitrária e aleatoriamente entendido e aplicado,
grosseiramente indiferente aos valores jurídicos básicos resultantes da decisão
popular”.84
No entanto, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “É extensa e larga
a diversidade semântica da palavra ‘princípio’[...]”, sendo comum na seara do Direito,
83
Alguns princípios, que aqui serão analisados, não são de aplicação exclusiva no Direito Tributário, como é
o caso dos princípios republicano, federativo e da autonomia municipal, valores supremos que se irradiam
por todo o ordenamento jurídico. Não há, nesse sentido, princípio específico e exclusivo de algum ramo
jurídico, senão manifestações específicas dos princípios gerais de Direito, que ganham nova roupagem em
cada área do jurídico.
47
lembra o autor, referi-los metaforicamente como alicerces do edifício jurídico, ou
ainda como bases ou pilares do ordenamento. Em razão dessa multiplicidade de
sentidos da expressão “princípios constitucionais”, o jurista paranaense nos adverte da
necessidade de “[...] elucidar o sentido em que a estamos utilizando, de modo mais
específico do que a noção muito ampla de fundamentos do sistema [...]”, e, amparado
nas quatro acepções arroladas por PAULO DE BARROS CARVALHO, o autor adota a
expressão, nesse seu estudo, com os sentidos de “[...] normas jurídicas de posição
privilegiada, portadoras de valor expressivo ou que estipulam limites objetivos”.85 Em
virtude da boa síntese, e da sua aderência com os nossos objetivos, adotamos também,
neste trabalho, a expressão “princípios constitucionais” com essa conotação.
2.2.1 Princípios: Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal
A Constituição Federal, já em seu artigo 1º, estabelece: “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos...”. A circunstância de os primados da República e da Federação já
constarem do primeiro artigo da Constituição não é mera coincidência. Antes, é fruto da
solidificação jurídico-cultural desses que estão entre os mais importantes princípios de
nosso sistema jurídico, pois deitam luzes sobre todas as demais normas do ordenamento
jurídico, inclusive sobre os demais princípios constitucionais, os quais têm eficácia na
medida exata em que, com eles, entrem em harmonia.
Segundo a definição irretocável de GERALDO ATALIBA, República é o “[...]
regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas)
representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade,
eletivamente e mediante mandatos renováveis periodicamente”.86 As características da
República, para o autor, são, portanto, a eletividade (instrumento de representação), a
periodicidade (asseguradora da fidelidade aos mandatos) e a responsabilidade (penhor
da idoneidade da representação popular).
Verifica-se que, para o referido autor, a tônica do ideal republicano está na
exigência de que a tomada de decisões seja feita pelo povo, através de seus
84
85
República e Constituição, p. 15.
Bocage e o Terrorismo Constitucional das Medidas Provisórias Tributárias: a emenda pior do que o
soneto. In:: FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e Limites da Tributação, p. 685-688.
48
representantes. Ou seja, o Direito que disciplina a sociedade e o próprio Estado é fruto
da vontade popular. Quer parecer que a principal conseqüência desse posicionamento
será a necessidade de rigorosa observância, pelo Estado e pela própria sociedade, dos
valores prestigiados pelo povo, e que, por essa razão, erigiram-se como os magnos
princípios constitucionais, com destaque para o princípio da legalidade.
ROQUE ANTONIO CARRAZZA tem definição semelhante, cujo traço
distintivo, no entanto, parece ser a ênfase na idéia da igualdade, como reflexo principal
da república: “República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das
pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo,
representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.87 Como decorrência de
seu raciocínio, ressaltam, como principais reflexos do princípio republicano no campo
tributário, o princípio da isonomia tributária (artigo 150, II, da Constituição) e o cânone
da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º, também da Constituição). Não restam
dúvidas, todavia, que, no seu raciocínio, também se manifesta a idéia da legalidade,
fruto do exercício do poder político por meio dos representantes. O mesmo
entendimento é defendido por SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO.88
Tamanha é a força e intensidade axiológica do princípio republicano que todo o
restante do ordenamento jurídico tem seu sentido dirigido em razão de seus postulados.
De outra forma, pode-se afirmar que o princípio republicano influi, de modo decisivo,
na interpretação de todas as demais normas constitucionais, sejam as que revelam
verdadeiros princípios, sejam as que revelam simplesmente regras. Com mais razão,
todas as normas infraconstitucionais devem ter seu sentido condicionado à
conformidade com suas exigências.89
O principal reflexo do princípio republicano no Direito Tributário é a exigência
inafastável de que todo tributo só pode ser criado ou aumentado tendo em vista o bemcomum, o que se estende, por força de pura lógica, às isenções tributárias, as quais não
podem ser concedidas ou revogadas em detrimento desse supremo valor constitucional.
Disso decorre o princípio da destinação pública dos valores arrecadados mediante a
tributação, assim como a proibição de vantagens tributárias a determinadas pessoas sem
86
República..., op. cit., p. 13.
Curso..., op. cit., p. 52.
88
Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, p. 4-5.
89
ATALIBA, Geraldo. República..., op. cit., p. 32.
87
49
respaldo constitucional, como no passado ocorria, por exemplo, com aqueles que
possuíam títulos de nobreza ou que faziam parte do clero.90
ROQUE ANTONIO CARRAZZA também ressalta que o princípio republicano
leva ao princípio da generalidade na tributação, pelo qual “[...] todos os que realizam o
fato imponível tributário venham a ser tributados com igualdade”.91 O princípio
republicano, portanto, leva à igualdade na tributação, o que exige tratamento tributário
isonômico para todos os que se encontram na mesma situação jurídica. Por via de
conseqüência, o princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, de
nossa Carta Magna, também é manifestação do ideal republicano, pois é o discrímen
que permite atribuir tratamento desigual aos contribuintes. Ou seja, os iguais e os
desiguais, no Direito Tributário, são os que revelam a mesma ou diversa capacidade
contributiva.92
GERALDO ATALIBA leciona que os princípios mais importantes são os da
Federação e o da República, razão pela qual “[...] exercem função capitular da mais
transcendental importância, determinando inclusive como se devem interpretar os
demais, cuja exegese e aplicação jamais poderão ensejar menoscabo ou detrimento
para a força, eficácia e extensão dos primeiros”.93
Tão cristalizada está a certeza da importância desses princípios no
ordenamento jurídico, que a Constituição Federal, no § 4º do seu artigo 60, tratou de
petrificá-los, não podendo, diante desse dispositivo, nem mesmo ser objeto de
deliberação, no Congresso Nacional, a proposta de emenda que tão-somente tenda a
aboli-los.94 Ainda que a vedação somente seja expressa em relação à “forma federativa
de Estado” (inciso I), a Constituição alberga outras inequívocas manifestações do ideal
republicano, sendo o “voto direto, secreto, universal e periódico” (inciso II),
certamente, a principal delas, por representar a idéia essencial de representação. Em
seguida, pode-se ainda citar a “separação dos Poderes” (inciso III) e “os direitos e
garantias individuais” (inciso IV).
Se a Constituição é qualificada como rígida, em razão da complexidade de seu
processo de reforma, quanto a esses dois princípios ela é “rigidíssima”, conforme
90
BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar, p. 258 et seq.
Curso..., op. cit., p. 73.
92
Curso..., op. cit., p. 80-81.
93
República..., op. cit., p. 36.
94
“§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de
Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e
garantias individuais.”
91
50
expressão de ATALIBA, pois não pode o Congresso Nacional nem mesmo discutir
qualquer projeto tendente – “[...] que abrigue tendências; que leve; que conduza; que
encaminhe; que facilite; que possibilite, mesmo indiretamente” – à abolição da
República e do Federalismo.95 Todas as demais normas constitucionais, exceto as
cláusulas pétreas, são modificáveis, o que conduz à conclusão de que em hipótese
alguma a interpretação de qualquer norma, inclusive reveladora de outros princípios
constitucionais, poderá sequer reduzir a eficácia desses dois princípios, quanto mais
inobservá-los.
ROQUE ANTONIO CARRAZZA entende que, não obstante a suprema
importância do princípio republicano, ele não se constitui mais em cláusula pétrea, ao
contrário do que ocorria na Constituição de 1967/1969. Contudo, em razão de o “voto
direto, secreto, universal e periódico” (artigo 60, § 4º, II da Constituição Federal)
permanecer como cláusula irreformável, o autor conclui que pelo menos os reflexos do
princípio republicano não podem ser alterados por meio de emenda constitucional, pois
“[...] é justamente o que torna possíveis o sistema representativo e o regime
democrático, decorrências naturais da forma republicana de governo”.96
Percebe-se, portanto, que, não obstante o entendimento pela subsistência ou
não da República como cláusula pétrea, em qualquer caso não se pode negar que são
inalteráveis os postulados republicanos, o que poderia inclusive ser ratificado pela
ocorrência da “preclusão” da oportunidade de o povo, através de plebiscito, eleger a
monarquia constitucional como forma de governo, já que a única oportunidade deu-se
em 21 abr. 1993, pela Emenda Constitucional n° 2, de 25 ago. 1992, a qual antecipou a
data anterior (07 set. 1993), prevista que estava no artigo 2º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. A razão parece estar, portanto, no entendimento defendido
por CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, para quem a república não foi cláusula
pétrea no período entre a promulgação constitucional e o plebiscito de 1993, devido à
possibilidade de sua modificação pela via revisional, tendo, após, recobrado sua
condição de imutabilidade, como limite material implícito.97
Dentre os dois princípios, pode-se ainda afirmar que a noção de república vem
em primeiro lugar, posto que a federação é um instrumento de sua realização. A
autonomia dos entes federados e a descentralização política em que se traduz a
95
96
República..., op. cit., p. 38.
Curso..., op. cit., p. 75-77.
51
federação, fazem com que melhor funcione a representatividade e o exercício, pelo
povo, de suas prerrogativas de cidadania e de autogoverno, nas palavras de GERALDO
ATALIBA, que, amparado em Rui Barbosa, lembra que a expressão regime
“republicano-federativo” denuncia a íntima e necessária relação entre os dois
princípios.98
A divisão do Estado brasileiro em pessoas políticas – União Federal, Estadosmembros, Distrito Federal e Municípios – deve-se aos princípios constitucionais do
federalismo e da autonomia municipal. Como se verá adiante, o estudo desses
princípios é de fundamental importância na análise do tema da distribuição de
competências legislativas entre as pessoas políticas, o que, obrigatoriamente, também
exige uma devida compreensão do conteúdo e do alcance possíveis das leis ordinárias e
complementares de âmbito nacional.
MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, amparada em MIGUEL
REALE, afirma que:
a todo poder social corresponde uma ordem jurídica, sendo a ordenação do
Direito a forma de organização da coerção social. Por conseguinte, com a
descentralização política própria do Estado federal se dá, necessariamente,
uma descentralização jurídica. O enfoque estritamente jurídico da questão,
leva-nos a constatar o inverso. À descentralização jurídica corresponderá a
política, já que o poder estatal, sob tal ângulo, é mera validade e eficácia da
ordem jurídica [sic].99
Portanto, independente do ponto de vista de que se analisa o tema, o certo é
que a descentralização do Estado Federal confere à União, aos Estados-membros, ao
Distrito Federal e aos Municípios tanto a função política como a função jurídica, é dizer,
as pessoas políticas tanto têm a aptidão constitucional para criar as leis vigentes em seus
respectivos espaços territoriais, dentro das matérias que lhes foram reservadas, e
executá-las, no relacionamento com os cidadãos, como têm a força coercitiva de exigir
sejam elas cumpridas. Dentro dos limites constitucionais, pode-se afirmar terem as
pessoas políticas autodeterminação política e administrativa.
No âmbito tributário, em face de previsões como, por exemplo, a do artigo 146,
caput, da Constituição Federal de 1988, o conhecimento amplo dos primados do
federalismo e da autonomia municipal será crucial para a análise do espectro de atuação
97
República e Federação no Brasil: Tração Constitucionais da Organização Política Brasileira. Belo
Horizonte: Del Rey, 1997, p. 70, 86 e 88-89.
98
República..., op. cit., p. 43-44.
99
Fundamentos da competência tributária municipal. Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 105.
52
da lei complementar de normas gerais em matéria tributária. A expressão “normas
gerais” já denuncia tratar-se de normas de âmbito nacional. A existência das leis
nacionais – complementares ou ordinárias, conforme a matéria – não só para o Direito
Tributário, mas também em relação a outros ramos do Direito Público, deve-se a uma
necessidade, prevista pelo legislador constituinte, de que a Constituição Federal fosse
observada por todas as pessoas políticas de uma forma harmônica, quando do exercício
de suas competências, preservando assim a unidade dos interesses nacionais.
A repartição de competências legislativas, entre as pessoas políticas, é,
portanto, resultado imediato da existência do Estado Federal e do Princípio da
Autonomia dos Municípios. O federalismo contrapõe-se à forma unitária de Estado em
razão da descentralização do poder, fenômeno jurídico pelo qual outros entes, frutos da
divisão interna do próprio Estado, são dotados de certa autonomia políticoadministrativa. São chamados de Estados-membros. Não há um conceito único de
federalismo, em razão de ser “[...] um sistema de composição de forças, interesses e
objetivos que podem variar, no tempo e no espaço, de acordo com as características, as
necessidades e os sentimentos de cada povo”.100
ROQUE ANTONIO CARRAZZA fornece conceito que destaca o aspecto da
inexistência de soberania para os entes federados: “É uma associação, uma união
institucional de Estados, que dá lugar a um novo Estado (o Estado Federal), diverso
dos que dele participam (os Estados-membros). Nela, os Estados Federados, sem
perderem suas personalidades jurídicas, despem-se de algumas tantas prerrogativas,
em benefício da União. A mais relevante delas é a soberania”.101 A soberania, ensina o
autor, é o principal atributo do Estado, e que lhe outorga o poder supremo, tendo como
características: (a) é uma: a soberania é exclusiva, não podendo, em um mesmo Estado,
haver duas ou mais soberanias; (b) é originária: a soberania é um poder que encontra
em si mesma sua própria fonte, ou seja, ela não deriva de outros ordenamentos
anteriores ou superiores; (c) é indivisível: não pode ser fracionada, pois do contrário
desaparece; e (d) é inalienável: o Estado não pode renunciar à soberania.
Ainda que a perspectiva vislumbrada pelo autor seja relevante, entendemos que
as características mais importantes do federalismo residem na (a) descentralização de
competências; (b) na participação dos entes federados na vontade nacional; e (c) na
100
101
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 112-113.
Ibidem, p. 113.
53
prerrogativa de autogoverno, com destaque para a possibilidade de aprovarem suas
próprias constituições.
Convivem harmonicamente no Brasil, a ordem jurídica total (ou global),
representada pelo Estado Brasileiro, e as ordens jurídicas parciais. As parciais
subdividem-se em: ordem jurídica parcial central, resultante da união (vínculo) de
todas as ordens parciais, que por essa exata razão recebeu o nome de União Federal;
ordens jurídicas parciais periféricas, denominadas de Estados-membros; e, por fim, as
ordens jurídicas parciais locais, representadas pelos Municípios. Perceba-se a crucial
diferença entre o que é resultado da soma das ordens jurídicas parciais (Estado
brasileiro), e o que se constitui do vínculo entre elas (União Federal). Nesse sentido é o
entendimento, por exemplo, de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES102, ROQUE
ANTONIO CARRAZZA103 e SACHA CALMON NAVARRO COELHO104.
Quanto à questão de os Municípios integrarem ou não a federação, entende-se
que, apesar do sentido literal do artigo 1º da Lei Maior, melhor razão assiste àqueles que
vêem os Municípios como componentes da federação na qualidade de entes federativos
– divisões políticas dos Estados-membros – e não como entes federados propriamente
ditos, em especial pelo fato de que não participam tais pessoas políticas da formação da
vontade jurídica nacional, posto que não integram o Congresso, não possuindo
representantes nem no Senado (Casa dos Estados) nem na Câmara dos Deputados (Casa
do Povo).105 Portanto, é nesse sentido a redação do artigo 1º da Constituição, ao
estabelecer que o Estado Federal Brasileiro resulta da união indissolúvel dos Estados,
Municípios e Distrito Federal.106
Em qualquer caso, inafastável é a conclusão de que a autonomia dos
Municípios é conseqüência direta não apenas do princípio federativo, como também do
princípio republicano, o que a posiciona dentre os mais importantes princípios de
Direito Público previstos na Constituição. Afirma ATALIBA que “[...] por meio da
autonomia municipal realizam-se os ideais republicanos de maneira excelente e
conspícua no que concerne à vida política local e no exercício das liberdades políticas,
102
Lei complementar tributária, p. 64-66.
Curso..., op. cit., p. 126.
104
Curso de direito tributário brasileiro, p. 96.
105
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 149-150.
106
SILVA, José Afonso da. Curso..., op. cit., p. 101.
103
54
em matéria própria do ‘círculo de vizinhos’, em que se funda a instituição
municipal”.107 Acresce ainda o autor:
Realiza-se no Município brasileiro, com notável extensão, o ideal republicano
da representatividade política, com singular grau de intensidade. Aí, a
liberdade de informação, a eficácia da fiscalização sobre o governo, o amplo
debate das decisões políticas, o controle próximo dos mandatários pelos
eleitores, dão eficácia plena a todas as exigências do princípio republicano
representativo. [...] Todos os preceitos constitucionais direta ou indiretamente
aplicáveis aos Municípios têm a dupla finalidade de: a) dar eficácia ao
princípio republicano, garantindo o autogoverno local; e b) assegurar
mecanismos republicanos de funcionamento do Município, nas suas relações
internas. [...] O modo pelo qual foi constitucionalmente tratado o Município
no Brasil só faz esplender, com maior intensidade e brilho, as virtudes
notáveis da república representativa, com seus postulados democráticos.108
Do raciocínio lúcido e inatacável do referido autor, resulta a inviabilidade da
pretensão da União Federal de, quando no exercício de competências de âmbito
nacional, pretender amesquinhar a autonomia municipal, como é o caso da competência
para editar, por meio de lei complementar, as normas gerais de direito tributário,
instrumento que não pode ser invocado para invadir a competência municipal, pois nem
mesmo o legislador constituinte derivado tem essa prerrogativa.
HELY LOPES MEIRELLES entende que, pela Constituição Federal de 1988,
os Municípios integram a Federação como entidade de terceiro grau, por não se
justificar a sua exclusão, “[...] já que sempre fora peça essencial da organização
político-aministrativa brasileira”.109 Apesar da excelência das argumentações
expendidas por esse mestre, entende-se não integrarem os Municípios a Federação,
mesmo porque essa afirmativa não diminui a sua importância na organização política e
administrativa brasileira, a qual é assegurada pelo princípio da autonomia municipal.
O incremento na autonomia dada aos Municípios pela Constituição de 1988 é
ressaltado por GISELA MARIA BESTER, para quem “[...] os municípios nunca antes
em nossa organização político-territorial desfrutaram de tão ampla autonomia como
pela CF/88”, pois além da prerrogativa do autogoverno, os Municípios receberam, da
atual Lei Maior, competência de auto-organização, em face da previsão constitucional
de que se devem reger por suas próprias leis orgânicas. A autora ressalta, entretanto,
que, se por um lado, a atual Constituição efetivamente aumentou a autonomia dos
107
República..., op. cit., p. 45.
Ibidem, p. 46.
109
Direito municipal brasileiro, p. 36.
108
55
Municípios (artigo 18), “[...] por outro lado também lhes acarretou um aumento de
responsabilidades e das competências materiais [...]”.110
JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que o fato de uma entidade territorial
possuir autonomia político-constitucional não leva, necessariamente, à conclusão de que
a mesma seja um ente federativo. Explica, ainda, que os Municípios nem mesmo são
essenciais ao conceito de federação brasileira, pois não há uma federação de
Municípios, mas uma federação de Estados-membros, únicos essenciais ao conceito de
qualquer federação. Caso houvesse uma federação de Municípios, eles passariam a
constituir uma nova classe de Estados-membros, o que resultaria em um conflito, já que
desapareceria a autonomia federativa, a qual pressupõe território próprio, ou seja, não
compartilhado.111
Apesar de os Municípios serem somente componentes da federação, mas não
entidades federativas, os Municípios, da forma como disciplinados na Constituição
Federal de 1988, são pessoas políticas dotadas de grande autonomia, e que recebem
suas competências diretamente da Constituição, que é o único fundamento de validade
de suas leis.112 Portanto, “[...] toda a lei tributária municipal válida é suprema sobre
qualquer outra da União, do Estado ou de outro Município com a qual conflite”.113
Importante ressaltar, contudo, que a autonomia não é poder originário, mas sim
prerrogativa política concedida e limitada pela Constituição Federal, conforme ensina
HELY LOPES MEIRELLES, para quem tanto os Estados-membros como os
Municípios têm a sua autonomia garantida constitucionalmente, não como um poder de
autogoverno, decorrente da soberania nacional, mas como um direito público subjetivo
de organizar o seu governo e prover a sua Administração, nos limites traçados pela Lei
Maior.114
Como síntese do que foi visto até agora, pode-se concluir que os Municípios,
não obstante não serem entes federados, são entes federativos, pois, ainda que de forma
indireta, participam do pacto federativo como divisões políticas dos Estados-membros.
Comprovam a assertiva dispositivos constitucionais como o artigo 18, caput, pelo qual
“a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos
110
Direito Constitucional..., op. cit., p. 281-282.
Curso..., op. cit., p. 473.
112
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 150.
113
Ibidem, p. 152.
114
Direito municipal..., op. cit., p. 81.
111
56
desta Constituição”; como a aliena “c”, do inciso VII, do artigo 34, onde está previsto
que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: c) autonomia
municipal”. Note-se que o constituinte, não se limitando somente a consignar a
autonomia municipal como princípio, o que já seria bastante para a sua efetividade
como tal, preferiu assegurá-lo, mediante a conseqüência da sanção extrema de
intervenção federal no Estado-membro agressor, elevando esse princípio ao mesmo
patamar, por exemplo, da proteção à forma republicana, ao sistema representativo e ao
regime democrático, cuja proteção também é garantida pela ameaça da intervenção,
conforme a alínea “a”, do inciso VII, do mesmo artigo 34.
Não se vislumbra para os Municípios proteção constitucional diversa da que é
conferida aos Estados-membros. A peculiaridade de que estes possuem funções outras
no cenário nacional, visualizáveis de forma especial na atividade legiferante do Senado
Federal, não implica concluir pela eventual existência de relação de hierarquia com os
Municípios. A proteção constitucional da autonomia político-administrativa dos
Municípios resulta do contexto constitucional, em especial de normas como as
veiculadas pelo artigo 18, caput (acima transcrita), e pelos artigos 30, incisos I a IX 115; e
31, §§ 1 a 4116; e 34, inciso VII, letra “c”117, todos da Carta Magna.
115
“Artigo 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a
legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência,
bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes
nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual; V organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de
interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI - manter, com a
cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino
fundamental; VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de
atendimento à saúde da população; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação
fiscalizadora federal e estadual.”
116
“Artigo 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante
controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei. §
1º. O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas, dos
Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver. § 2º. O
parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar,
só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal. § 3º. As contas
dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para
exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei. § 4º. É vedada a
criação de Tribunais, Conselhos ou Órgãos de Contas Municipais”.
117
“Artigo 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: [...] VII - assegurar
a observância dos seguintes princípios constitucionais: [...]; c) autonomia municipal;”
57
Mais uma vez, corrobora nosso entendimento MISABEL DE ABREU
MACHADO DERZI, em comentário ainda sobre o ordenamento jurídico anterior, o
que, todavia, não prejudica sua aplicação no atual panorama jurídico-político:
À luz do nosso Texto Constitucional, a autonomia municipal é assegurada,
configurando sua inobservância, caso de intervenção federal no Estadomembro que a quebrar [...]. Encontra-se, pois, o Município, inserido no
Estado brasileiro, como pedra de apoio ao federalismo. O poder de instituir
seus próprios tributos, a que chamamos competência tributária, não pode,
portanto, ser tolhido ou mitigado. Somente os limites e restrições desenhados
no próprio texto Constitucional confirmam e bitolam o campo de atuação
municipal.118
Ressalte-se que a vedação presente no artigo 60, § 4º, I, da Constituição
Federal, refere-se à impossibilidade de a autonomia municipal ser suprimida por
emenda constitucional. Uma forma de supressão seria, inegavelmente, restringir a
participação dos Municípios na repartição de competências tributárias. Entende-se,
todavia, que não há impedimento para que o legislador constituinte derivado possa
alterar a distribuição das materialidades tributáveis, desde que, sublinhe-se, a nova
divisão mantenha o anterior potencial de receitas ou, o que seria mais recomendável,
que o melhore, tendo em vista a crescente centralização de “poder” tributário na esfera
federal, o que segue na direção oposta aos ideais democráticos e republicanos.
Esse entendimento, que parece ser o mais coerente, merece atenção especial
quando da análise de cada caso concreto, conforme ensina MARCELO CARON
BAPTISTA:
Sobre a possibilidade de modificação da repartição da competência tributária,
a explicação é um tanto mais complexa. Superada a questão da supressão
total, não existe impedimento formal para que a competência tributária seja
modificada por emenda constitucional. Isso porque, mantida a divisão das
competências de tributar, a menos em um primeiro momento restaria
intocada, formalmente, a Federação. Todavia, a modificação da competência
para legislar em matéria tributária, a depender dos efeitos que provoque,
poderá acarretar inconstitucionalidade material, em relação a um ou a vários
entes federados. [...] A resposta, então, quanto à possibilidade de emenda
constitucional modificar a distribuição da competência tributária depende da
análise de cada caso concreto.119
Sobre o ISS em especial, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES afirmava, ainda na
vigência da Carta anterior, que a competência exclusiva dos Municípios para instituí-lo
está compreendida no dispositivo constitucional do “[...] peculiar interesse municipal”.
Na atual Constituição, o inciso I, do artigo 30, dispõe que “compete aos Municípios
118
Fundamentos..., op. cit., p. 111.
58
legislar sobre assuntos de interesse local”, interesse esse que é um pré-requisito para a
efetivação da autonomia do Município na gestão dos seus próprios negócios, pois, como
é cediço, não há autonomia política e administrativa sem autonomia financeira.120
Confirma esse raciocínio o escólio de HELY LOPES MEIRELLES, aqui
amparado em AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO: “Com efeito, inexpressivas seriam a
autonomia política e a autonomia administrativa sem recursos próprios que
garantissem a realização de obras e a manutenção de serviços públicos locais. Seria
uma quimera atribuir-se autogoverno ao Município sem lhe dar renda adequada à
execução dos serviços necessários ao seu progresso”.121
A insistência em afirmar a autonomia financeira dos Municípios tem, aqui, o
objetivo claro de defender a impossibilidade de a União Federal, através de lei
complementar, restringir o direito de os Municípios legislarem sobre os tributos que lhe
couberam na repartição constitucional de competências, ainda que sob o pretexto de, em
tais hipóteses, estar o Congresso Nacional legislando em âmbito nacional. Como será
analisado adiante, leis infraconstitucionais – nacionais, federais, estaduais, distritais e
municipais – regra geral, não possuem relação de hierarquia, mas sim competências ratione materiae – distintas, salvo quando uma lei busca seu fundamento de validade
em outra lei também infraconstitucional.
A análise dos princípios Federativo e da Autonomia Municipal, neste trabalho,
pretende servir de pressuposto para o estudo dos limites da lei complementar nacional
em matéria tributária, em especial no que se refere às leis complementares criadas em
cumprimento às normas constitucionais que outorgam a competência tributária
municipal para dispor sobre o ISS, o que será tratado adiante. Entretanto, e
preliminarmente à análise direta dos dispositivos que outorgam competência tributária
aos Municípios, cabe consignar algumas premissas que devem vincular o legislador em
nível infraconstitucional, quando da leitura do artigo 30 da Constituição Federal.
Em primeiro lugar, é pacífico que a Constituição, além de ter elevado a
autonomia municipal à categoria de magno princípio, estabeleceu como essência de sua
efetivação a instituição e arrecadação dos tributos de sua competência, conforme
determina o inciso III, do artigo 30 da Lei Maior. Com supedâneo nessa premissa,
GERALDO ATALIBA, em comentário sobre a necessidade de lei complementar na
119
ISS: do texto à norma, p. 99 e 101.
Lei Complementar..., op. cit., p. 187-188.
121
Direito municipal…, op. cit., p. 100.
120
59
previsão dos serviços tributáveis pelo ISS, ainda conforme o texto da Constituição de
1967, defende que não é consentido ao intérprete desprezar o princípio da autonomia
municipal e, subvertendo a ordem jurídica, por apego à literalidade de uma mera regra
de importância secundária, pretender atribuir à lei complementar a faculdade de anular
esse princípio.122
Nesse sentido, cabe ressaltar que a discriminação constitucional de
competências legislativas, de acordo com a base territorial das pessoas políticas, tem
assento, em princípio, na conveniência de descentralizar o Poder Legislativo,
considerando, conforme lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, a “[...]
variável amplitude de interesses” que corresponde a cada esfera: “Então, no caso
brasileiro, os interesses mais amplos assistem à União; os circunscritos ao âmbito
regional, aos Estados; e os que concernem tão-só à esfera local, aos Municípios”.123
A questão, contudo, não é tão simples, pois é inevitável que as diferentes
pessoas políticas possam compartilhar, por vezes, dos mesmos interesses, exigindo-se,
em tais casos, um devido sopesamento para aferir qual dos interesses é mais relevante.
Quer-se com isso dizer que os assuntos decididos em nível nacional, com toda a certeza,
também são de interesse dos Estados e Municípios, assim como os temas afeitos à
esfera dos Estados também refletem no âmbito municipal. O raciocínio inverso, ainda
que com menos intensidade, também é correto, ou seja, os assuntos municipais
interessam aos Estados e à União e, por sua vez, as questões estaduais interessam, da
mesma forma, à União. Em síntese, é aplicável, aqui, a máxima pela qual “[...] o todo
afeta as partes, assim como o que afeta as partes afeta o todo”, como ensina CELSO
ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO.124
O autor esclarece que a obviedade de suas afirmações tem como objetivo
advertir que, diante de dificuldades interpretativas, deve-se evitar incorrer no equívoco
de defender a existência de um interesse de dada esfera, mediante aspectos que bem
poderiam inseri-lo em quaisquer das demais órbitas e que, por tais razões, permite
subsumi-lo em uma ou outra, o que varia conforme as tendências pessoais de cada
intérprete. Esse equívoco deve ser evitado mediante uma interpretação que consiga
122
Imposto sobre serviços: competência tributária é, eminentemente, legislativa – Matéria constitucional –
Função das normas gerais de direito tributário – Ampla autonomia tributária do Município – Tributação
dos serviços de vigilância bancária. Revista de Direito Tributário, n. 35, p. 76-77.
123
Discriminação constitucional de competências legislativas: a competência municipal. In: MELLO, Celso
Antonio Bandeira de (org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito administrativo e
constitucional, p. 271-272.
124
Ibidem, p. 272-273.
60
“[...] separar a generalidade da especificidade do interesse, pois é este último – e só
ele – que pode fornecer a diretriz procurada pelo intérprete”.125
O artigo 30 da Constituição dispõe caber aos Municípios: “I – legislar sobre
assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual, no que
couber; III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência...”. Da análise desse
dispositivo, depreende-se que a Constituição estabelece uma dualidade de fundamentos
para definir a competência legislativa municipal, ou seja, resumem-se a duas as
hipóteses em que determinada matéria pode ser considerada como de competência
municipal, coincidentes com os incisos I e II do precitado artigo 30.
O inciso III, que dispõe sobre a competência tributária, como se verá, aloca-se
em uma das duas hipóteses. O inciso I, quando fala de “[...] assuntos de interesse
local”, está se referindo aos interesses próprios da pessoa política classificada como
“Município”, considerada em si mesma, prescindindo, portanto, das peculiaridades de
cada uma delas, como é exemplo a legislação edilícia, da coleta de lixo, do transporte de
passageiros intermunicipal etc. A competência, nessa hipótese, pertine a todo e qualquer
Município, mas é vedada a qualquer outra entidade (Estados e União), por caracterizarse como assunto de interesse local.
O inciso II trata das matérias que, não obstante o exercício de sua competência
ter sido atribuído à União ou aos Estados, devido serem interesses que transcendem o
universo municipal, a Constituição o fez de forma genérica, o que poderia deixar a
descoberto certas peculiaridades desse ou daquele Município, caso não lhes fosse
possível editar normas suplementares, a fim de regulamentar os casos que lhes são
especificamente próprios. Como exemplo, pode-se citar a necessidade de um dado
Município legislar sobre o horário de funcionamento do comércio local, em virtude de
um feriado comemorado somente na região, em que pese competir privativamente à
União Federal legislar sobre Direito Comercial, conforme prescreve o artigo 22, inciso
I, da Constituição Federal.
Com efeito, ou o interesse é local, quando então encontra abrigo no inciso I, do
artigo 30, ou o interesse, apesar de ser federal ou estadual em um sentido genérico, por
força de uma especificidade local, não regulada na lei federal ou estadual, passa a exigir
uma suplementação legislativa por parte do respectivo Município. É óbvio que essa
suplementação só será válida se o interesse do Município, além de caracterizar-se como
125
Ibidem, p. 273.
61
particular daquele ente municipal, já não estiver regulado na lei federal ou estadual – daí
a razão da expressão “no que couber” – assim como dito interesse deverá estar em
harmonia com o contexto constitucional.126
Ousa-se, no entanto, acrescentar que a competência tributária, prevista no
inciso III, acima parcialmente transcrito, subsume-se a uma das duas hipóteses acima
mencionadas. Ou seja: ou a competência tributária é assunto de interesse local, e
portanto, vincula-se ao inciso I, do qual se entende tratar de matérias afeitas a todos os
Municípios de igual forma, ou trata-se de matéria de competência genérica da União ou
dos Estados, e só poderia ser tratada pela lei municipal nos casos em que alguma
peculiaridade municipal assim o exigisse, conforme é a inteligência do inciso II do
mesmo artigo 30.
Como o artigo 156, III, da Constituição, expressamente estabelece que
“Compete aos Municípios instituir impostos sobre...”, fica inequivocamente refutada a
segunda opção e, por conseqüência, só se pode concluir que a competência tributária
municipal é assunto de interesse local de todos os Municípios – tributo local. JOSÉ
EDUARDO SOARES DE MELO confirma esse raciocínio, afirmando que a
arrecadação dos tributos locais constituía, na Constituição anterior, assunto de “peculiar
interesse” dos Municípios, assim como se consubstancia em assunto de “interesse
local”, na atual Constituição.127
Confirma-se a assertiva pela certeza de que o exercício da competência
tributária municipal tem sua validade diretamente extraível da Carta Constitucional,
assim como a remissão à lei complementar, de que tratam o artigo 156, III – definição
dos serviços tributáveis pelo ISS – e todos os incisos do artigo 146 – normas gerais de
Direito Tributário – ambos da Constituição, não tem o condão de infirmar esse
raciocínio. É que essa legislação, como o próprio nome está a indicar, só pode
complementar a Constituição, e, assim mesmo, tal complementação está rigorosamente
limitada aos vocábulos e expressões dotados de vagueza ou ambigüidade, com vistas a
auxiliar a cumprir os desígnios constitucionais, impedindo a disparidade na
interpretação de suas normas, por parte das diversas esferas competenciais.
Procura-se, com esse raciocínio, somar argumentos que ratifiquem a aptidão
constitucional outorgada aos Municípios para a criação dos tributos que lhes couberam
na repartição das receitas tributárias, bem como oferecer resistência às teses que
126
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discriminação..., op. cit., p. 277-278.
62
pretendem conceder ao legislador complementar um poder que esse não tem, atitude
que tem o efeito nefasto de centralizar o poder nas mãos de poucos, inviabilizando a
autonomia na gestão política e administrativa pelos Municípios, o que, insista-se, é um
fator que fragiliza os ideais republicanos e democráticos.
Após demonstrar o papel superior dos princípios dentro do sistema jurídico,
GERALDO ATALIBA acresce que, “[...] sendo a autonomia municipal expressamente
figurada como um ‘princípio constitucional’, é à luz dela que se hão de interpretar as
simples normas constitucionais e legislação infraconstitucional. [...] Os poderes do
Congresso para – mediante lei complementar – definir os serviços tributáveis, não
podem ser tais que anulem o sentido substancial dessa autonomia”. Amparado em
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, assinala que, por ser uma entidade
constitucionalmente autônoma, o Município não pode ser encarado como uma
autarquia, pois, ao contrário dessa, não se limita a cumprir leis feitas por outras pessoas
jurídicas.128
Não restam dúvidas, portanto, de que a outorga constitucional da competência
tributária aos Municípios é plena, admitido somente o delineamento posto pela própria
Constituição, o que pode ser resumido na obrigatoriedade de observância dos demais
princípios constitucionais, em especial os declinados dentre as “limitações
constitucionais ao poder de tributar”, conforme dispõem os artigos 150 a 152 da Lei
Maior. Nas palavras autorizadas de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, “[...] seu
poder heterônomo é constitucionalmente exclusivo e não pode ser limitado nem pela
União, nem por Estados, Distrito Federal, ou obviamente por outros Municípios,
conforme o princípio do destinatário territorial (o sujeito em seu território)”.129
JOSÉ ROBERTO VIEIRA lembra, com proveito, uma perspectiva de análise
da autonomia municipal que a fortalece e ratifica ainda mais, pela qual esse princípio
“[...] surge como corolário do Princípio Republicano, no mesmo sentido da realização
da representatividade, estabelecendo o grau máximo de proximidade entre governantes
e governados”.130 A relação da autonomia municipal, como princípio diretamente
informado pelo princípio republicano, resulta, portanto, de interpretação coerente com o
contexto constitucional.
127
Local da incidência tributária. Revista de Direito Tributário, p. 336.
República..., op. cit., p. 72.
129
Competência tributária municipal. Revista de Direito Tributário, n. 53, p. 86.
130
Princípios constitucionais e Estado de Direito. Revista de Direito Tributário, n. 54, p. 103.
128
63
Pertinentes também são os argumentos de PAULO DE BARROS
CARVALHO, quando, em artigo sobre os princípios constitucionais tributários, tece
críticas ao artigo 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, dispositivo que,
em flagrante desrespeito à isonomia constitucional das pessoas políticas, estabelece
ordem de preferência entre elas na cobrança judicial de seus créditos tributários:
Sabemos que as mensagens prescritivas dos arts. 29 a 31, da Constituição do
Brasil, realizam o ‘princípio da autonomia dos Municípios’, confirmado pela
análise do sistema vigente. Nada obstante, juristas de renome, menos
inclinados ao ‘municipalismo’, conquanto não neguem a indigitada
autonomia, reduzem drasticamente a relevância dessas pessoas políticas, em
suas interpretações, chegando ao ponto de designá-las por ‘entes menores’.
Esforçados nessa mesma inspiração, compreendem, ao pé da letra, o que
preceitua o artigo 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional,
chegando ao resultado deplorável de admitir a ‘ordem’ que o dispositivo
estabelece, com o que relegam os Municípios a uma condição de flagrante
inferioridade em face dos Estados, do Distrito Federal e da União, sobre
violarem de maneira frontal o princípio implícito da isonomia das pessoas
políticas de Direito Constitucional interno.131
Não há como olvidar a coerência dos argumentos que pugnam pela necessidade
de atribuir uma maior eficácia à lei complementar, com vistas a evitar uma corrosão da
própria Federação, o que poderia ocorrer caso fosse permitido a cada um dos milhares
de Municípios extrair, do respectivo núcleo constitucional – materialidade – a regramatriz dos tributos que lhes couberam na repartição de competências. Por outro lado,
mais prejudicial seria permitir uma demasiada centralização na União Federal, o que
relegaria a Federação a um aspecto meramente formal. Como bem observa OCTÁVIO
CAMPOS FISCHER, a inegável existência de argumentos distintos, porém coerentes,
exige do intérprete e aplicador da norma o recurso ao princípio da proporcionalidade
na solução das questões, princípio cujo vetor interpretativo é revelado de acordo com o
contexto normativo, axiológico e fático existente no momento em que surge o
conflito.132
Por outro lado, os limites jurídicos que restringem o exercício abusivo do
direito à elisão tributária133, em torno dos tributos municipais, têm como um de seus
131
Sobre os princípios constitucionais tributários. Revista de Direito Tributário, n. 55, p. 149.
A tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais. In: TÔRRES, Heleno Taveira
(coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 458459.
133
JOSÉ ROBERTO VIEIRA adverte que o adjetivo “fiscal” abrange as receitas, a gestão e as despesas, ou
seja, todos os campos da atividade financeira do Estado, o que o identifica muito mais com “financeiro”
do que com “tributário”. Com base nesse raciocínio, temos que a elisão, por se referir à eventual
incidência ou não-incidência de uma norma tributária, pode perfeitamente ser adjetivada de “tributária” –
132
64
principais fundamentos o fato de a autonomia financeira ser a principal viabilizadora da
autonomia político-administrativa dos Municípios. Por exemplo: no contexto do tema
objeto do presente trabalho, o planejamento tributário consistente na transferência do
estabelecimento de um prestador de serviços para um município vizinho, onde a
alíquota do ISS seja reduzida, não será considerado válido se representar apenas uma
alteração formal, com a continuidade da prestação dos serviços no município antigo.
No subitem seguinte, que tratará do princípio da legalidade tributária, a questão
dos limites do planejamento tributário será examinada, ainda que brevemente, em sua
nova conformação, resultante da tipificação, no atual Código Civil, do abuso de direito
(artigo 187) e da fraude à lei (artigo 166, VI), como ilícitos gerais, ou seja, aplicáveis a
toda a ordem jurídica.
2.2.2 Princípio da Legalidade Tributária
O artigo 5°, II, da Constituição, estabelece a máxima pela qual “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. É o
princípio da legalidade, em sua disposição genérica, que pode ser traduzido como a
mais clássica noção de liberdade, no sentido de que o cidadão é livre para fazer tudo
aquilo que a lei não proíba.
Tão grande é a importância e expressão do Princípio da Legalidade, que o
mesmo foi incluído entre os direitos e garantias individuais, o que lhe garante a
condição de cláusula pétrea, estando vedada qualquer deliberação sobre proposta de
emenda à Constituição que até mesmo tenda a abolir essa garantia, conforme disposição
do artigo 60, § 4°, IV da Constituição Federal de 1988. O termo “tenda” significa que a
vedação de deliberação de propostas de emenda à Constituição não alcança somente
aquelas que violem frontalmente a legalidade, mas impede também as que indiretamente
venham a conflitar, seja com que intensidade for, com o primado da legalidade.
No campo tributário, tamanha é a sua importância, que a grande maioria dos
países, de uma forma ou de outra, o adotou em suas constituições, revelando que a sua
essência constitui verdadeiro princípio geral de Direito. RAMÓN VALDÉS COSTA,
ex-professor titular da Faculdade de Direito da Universidade da República do Uruguai,
Prefácio. O direito de crédito do contribuinte: excelências e excrescências. In: CASSULI, Ceia Gascho.
O direito de crédito do contribuinte, p. XIX-XX.
65
em acurado estudo sobre o Princípio da Legalidade no sistema uruguaio, ante o Direito
Comparado, confirma esse entendimento, conforme se verifica desse seu raciocínio:
66
Seguramente ningún principio jurídico ha acumulado a través de siglos
mayores adhesiones en la doctrina y en los Derechos Positivos, que el de la
legalidad em materia tributaria. Con razón ha sido calificado como ‘principio
común de Derecho Constitucional Tributario’ en virtud de su recepción
expresa o implícita en las constituciones del Estado de Derecho
Contemporáneo. Esta raigambre constitucional permite afirmar, como lo
hemos hecho en repetidas oportunidades, que se trate de la proyección de un
principio general de Derecho, en el campo específico de la rama juridíca que
en este siglo hemos categorizado como Derecho Tributario.134
Quando visto sob a óptica da liberdade, o princípio da legalidade expressa
uma permissão, visto, portanto, com um conteúdo positivo. Mas do ponto de vista de
uma garantia, encerra uma proibição, que tem por destinatário o próprio Estado, no
sentido de impedir que atos estatais não fundamentados em lei venham a atingir a
liberdade ou a propriedade das pessoas – dever de abstenção. A legalidade está, dessa
forma, dentre aqueles direitos que ROBERT ALEXY denomina de “derechos a
acciones negativas” ou “derechos de defensa”.135
E, mais do que isso, a lei que fundamenta todo e qualquer ato estatal deve estar
em consonância com as diretrizes maiores veiculadas pelos princípios constitucionais.
Mesmo porque, do contrário, não seria lei, teria apenas aparência de lei, pois a
expressão lei inconstitucional, em rigor, encerra uma contradictio juris.
Ao contrário, portanto, do sentido que o princípio veicula quando os
destinatários são os cidadãos – relação de compatibilidade com a lei, pode-se fazer
tudo o que a lei não proíba – quando o destinatário é o Poder Público, surge
obrigatoriamente uma relação de conformidade com a lei, o que se traduz na exigência
de que toda e qualquer atividade realizada pelo Estado deva estar prevista em lei.
Sobre as relações de compatibilidade ou conformidade com a lei, JOSÉ
ROBERTO VIEIRA, amparado em CHARLES EISENMANN, entende o que chama de
“concepção restritiva do princípio” como uma noção mínima de legalidade,
correspondente ao que denominamos acima de relação de compatibilidade, indicada
também pelo autor como uma “relação de não-contrariedade” com a lei, “[...] que só
fixa limites”.136
Como o princípio da legalidade expressa a idéia de que o povo é governado
“por si próprio”, através de seus representantes, seria um contra-senso admitir que
fosse obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, ou, ainda, ter seu direito de propriedade
atingido, por um ato que não represente a vontade popular. Por essa razão, a
134
135
El principio de legalidad. Revista de Direito Tributário, n. 38, p. 93-94.
Teoria de los derechos fundamentales, p. 189.
67
Constituição exige que a administração pública esteja rigorosamente subordinada à lei,
além de condicionar sua atividade aos princípios da moralidade, publicidade,
impessoalidade, conforme dispõe o artigo 37 de nossa Carta Magna, pois o Estado
existe em razão do interesse público e do bem comum. Sintetizando bem o tema,
CARRAZZA sustenta que “[...] sendo a lei ‘a expressão da vontade geral’, é
inimaginável que o povo possa oprimir a si próprio. Eis por que as matérias mais
importantes são inteiramente reservadas à lei; é o caso das que dizem respeito à
liberdade e à propriedade, v.g., penas, multas, tributos etc.”.137
Como observa VICTOR UCKMAR, o surgimento do parlamentarismo ocorreu
na Europa da Idade Média, tendo em vista impedir que qualquer prestação pecuniária
pudesse ser imposta sem anterior deliberação pelos órgãos legislativos. Para o autor
italiano, é errônea a idéia generalizada de que a legalidade tributária tenha surgido com
a Magna Charta, quando, durante o reinado de João sem Terra, os barões rebelaram-se
contra a onerosidade dos tributos, citando o autor vários países nos quais, em épocas
anteriores, já existiam formas de aprovação legislativa para a cobrança de tributos. O
parlamentarismo surge, acrescenta o autor, tendo em vista a “[...] necessidade de se
adequar entradas e despesas públicas”.138 Entretanto, JOSÉ ROBERTO VIEIRA
esclarece que o destaque conferido pela doutrina à Magna Carta justifica-se plenamente
“[...] pelas suas notáveis características de generalidade e abstração, que revelam sua
natureza legal; enquanto os documentos medievais típicos, marcados pela
especificidade e concretitude, não foram além de uma natureza meramente
contratual”.139
Sendo a cobrança de tributos atividade que invade sobremaneira tanto a esfera
da propriedade, como também a da liberdade dos cidadãos, é de concluir-se pela
acentuada necessidade de que todas as fases inerentes à tributação, desde a sua
instituição, passando pelos procedimentos de fiscalização, lançamento, recolhimento e
também de sanção nos casos de descumprimento, rigorosamente obedeçam ao que foi
estabelecido na lei em sentido formal e material, ou seja, lei que obedeceu aos requisitos
constitucionais de elaboração e de aprovação. Dizendo de outra forma, a lei deve ser
constitucional tanto no conteúdo como na forma.
136
Legalidade tributária ou lei da selva: sonho ou pesadelo. Revista de Direito Tributário, n. 84, p.104.
Curso..., op. cit., p. 217.
138
UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário, p. 21-22.
139
Prefácio. O direito..., op. cit., p. XI-XII.
137
68
Por essas razões, a exigência de lei em matéria de tributos é representada pelo
brocardo nullum tributum sine lege, à semelhança do existente no Direito Penal, onde
nullum crimen nulla poena sine lege. Ressalte-se, contudo, que, no Direito Tributário, o
princípio ganhou maior intensidade, conforme se depreende da leitura do artigo 108, §§
1° e 2°, do Código Tributário Nacional, os quais, respectivamente, estabelecem que “O
emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei”
e “O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo
devido”.
Essa maior intensidade do Princípio da Legalidade da Tributação é, também,
demonstrada pela expressão reserva absoluta de lei140, o que significa dizer que não
basta a existência de lei formal como fundamento da instituição de um tributo, sendo
necessário que essa lei esteja revestida de características especiais, ou seja, que traga em
seu conteúdo todos os elementos necessários a identificar, com previsibilidade, todos os
fatos que se subsumam na previsão normativa, assim como todos os que com ela não se
compatibilizem, por não se adequarem ao tipo tributário em todos os seus aspectos.
Comentando a exigência de reserva absoluta de lei em relação ao ISS, que é o
tributo objeto de nosso estudo, AIRES BARRETO ensina:
A reserva relativa de lei formal [...] não satisfaz, nem é suficiente à
instituição ou aumento do ISS. Em relação a este, não basta a existência de
lei como fonte de produção jurídica específica; requer-se a fixação, nessa
mesma fonte, de todos os critérios de decisão, sem qualquer margem de
liberdade ao administrador. [...] Vigora, destarte, nessa matéria, aí incluído o
ISS, o princípio da reserva absoluta de lei formal. [...] Não basta a lex scripta;
indispensável ainda uma lex stricta, equivalendo esta à subtração dos órgãos
do Executivo de quaisquer elementos de decisão, que haverão de estar
contidos na lei mesma.141
Essa exigência, sob a égide da Carta anterior – Emenda Constitucional nº 1, de
17 out. 1969 – resultava da inteligência de seu artigo 153, § 2º, dispositivo que previa a
legalidade genérica e, especificamente no âmbito tributário, do artigo 19, I. 142 Em nível
infraconstitucional, a previsão constava do caput, incisos e § 1º do artigo 97 do Código
140
Registre-se que, no Direito brasileiro, por força do Princípio da Legalidade genérica, previsto no artigo
5º, II, da Constituição de 1988, pelo qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”, a expressão “reserva absoluta de lei” não pode resultar na conclusão de que
algumas matérias estão reservadas à previsão legal, enquanto outros assuntos poderiam ser previstos em
norma infralegal, como os decretos, por exemplo, pois todos os direitos e deveres devem ter previsão na
lei, salvo se já estiverem previstos, de forma suficiente, em norma de hierarquia superior.
141
ISS na constituição e na lei, p. 13-14.
142
“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - instituir ou aumentar tributo
sem que a lei o estabeleça, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;”
69
Tributário Nacional, dispositivos válidos até hoje, face à sua recepção pela atual
Constituição, e que prevêem o seguinte: “Somente a lei pode estabelecer: I - a
instituição de tributos, ou a sua extinção; II - a majoração de tributos, ou sua redução
...; III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal ...; IV - a fixação
de alíquota do tributo e da sua base de cálculo ...; [...] § 1º Equipara-se à majoração
do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais
oneroso.”
Mas em 1988 essa garantia foi consagrada pela nova Constituição, que
além de prever a legalidade tributária no artigo 150, I, o qual estabelece que
“sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: exigir ou aumentar
tributo sem lei que o estabeleça”, foi além, no seu artigo 146, III, “a”, dispositivo
que reservou à lei complementar a competência absoluta para definir, em
relação aos impostos, seus elementos essenciais: “Cabe à lei complementar:
estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente
sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos
impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores,
bases de cálculo e contribuintes”.
ALBERTO XAVIER, jurista que se destacou no estudo da legalidade e da
tipicidade da tributação, afirma que a alínea “a” do inciso III do artigo 146 nada mais
seria que a consagração do Princípio da Tipicidade da tributação, pelo qual se exigiria
que a lei complementar definisse os “elementos essenciais” dos tributos, que são o fato
tributário, a base de cálculo e o contribuinte. Esclarece o autor que, apesar de o artigo
146, III, “a”, somente mencionar a tipicidade “[...] em relação aos impostos
discriminados nesta Constituição”, a regra seria aplicável também aos impostos da
competência residual da União, pois o artigo 154, I, da Constituição Federal de 1988,
exige que os impostos que eventualmente venham a ser criados pela União “[...] sejam
não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos
discriminados nesta Constituição”, resultando na conclusão de que tais impostos
deverão ter definido, também, todo o seu respectivo tipo tributário, para impedir a
ocorrência do fenômeno do “bis in idem”. Disso resultaria que, em matéria de impostos,
cabe “única e exclusivamente” à lei complementar definir os respectivos tipos
70
tributários, em um procedimento de determinação do núcleo essencial do tributo, que já
é tipificado na própria Constituição.143
Entende-se, no entanto, que tanto o Princípio da Legalidade Tributária, como o
seu corolário da Tipicidade Fechada, existem independentemente da previsão do inciso
III, “a”, do artigo 146 da Constituição. Com efeito, concorda-se com a visão de
ALBERTO XAVIER, desde que tal consagração da tipicidade tributária, pela lei
complementar, ocorra como uma eventual conseqüência da instituição de normas gerais,
pois estas têm seu conteúdo limitado a dispor sobre conflitos de competência em
matéria tributária ou regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e, dentre
essas últimas, somente aquelas que requerem complementação, por não se constituírem
em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
É por decorrência, portanto, da reserva absoluta de lei formal que o Princípio
da Legalidade assume conteúdo extremamente rígido, que se manifesta através de outro
princípio, o da Tipicidade da Tributação, que deverá ser observado tanto na criação,
como na majoração dos tributos. AIRES BARRETO, aplicando esse raciocínio ao ISS,
defende ser inafastável que somente a lei possa definir a norma tributária do ISS, o que
exige estejam explicitados, na lei, tanto os critérios que compõe a hipótese de incidência
– material, temporal e espacial – como os que tratam do conseqüente, como o pessoal
(sujeitos ativo e passivo) e quantitativo (base de cálculo e alíquota), resultando assim na
construção daquilo que se tem denominado de tipo fechado ou tipo cerrado, por não
ensejar dilargamento pelo aplicador da lei.144
A cada um dos entes políticos caberá, através de suas respectivas leis
ordinárias, decidir se instituem ou não os tributos que lhe couberam na repartição de
competências, podendo até mesmo ficar aquém do que dispôs a lei complementar,
nunca podendo, entretanto, ir além, sob pena de instituir-se tributos sobre fatos que não
se encontram dentro de sua faixa de competência, tal como estabelecida pela
Constituição.
E quais são as razões do rigor com que se expressa o Princípio da Legalidade
na tributação? Com a conquista do Estado Democrático de Direito, o cidadão recebeu da
Constituição prerrogativas, positivadas sob a rubrica de direitos fundamentais – artigo
5° da Constituição Federal de 1988 – e que certamente possuem hierarquia superior à de
qualquer norma relativa à tributação. O setor da tributação, por sua vez, sempre se
143
Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p. 21-22.
71
revelou “generoso” em desrespeitar os direitos e garantias dos cidadãos, e, como a
atividade de tributar atinge diretamente o direito de propriedade das pessoas, podendo
afetar drasticamente também o seu direito à liberdade – seja a clássica de ir e vir, como
também a livre iniciativa, prevista no artigo 170 da Constituição – necessário foi que o
Princípio da Legalidade fosse qualificado por regras que vinculassem estritamente tanto
o aplicador da lei, como o próprio legislador, tudo com o fim maior de assegurar a
observância ao Princípio da Segurança Jurídica e que, em síntese, visa garantir a
previsibilidade nas relações jurídicas.145
É nesse sentido o raciocínio de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, conforme se
observa nessa sua crítica:
chama-nos a atenção que, em um Estado Democrático de Direito, a cada
inovação fiscal, ainda temos que nos preocupar com normas basilares do
direito tributário e que há muito já deveriam ter sido incorporadas à atuação
dos poderes públicos. Se hoje descobrimos a importância para a tributação de
princípios como a boa-fé, a moralidade, a eficiência, a proporcionalidade, por
outro lado, ainda não conseguimos superar a fase da legalidade tributária. Há
um eterno retorno a esse princípio cada vez que nova legislação é produzida.
Não só porque o executivo passou a amealhar uma maior gama de funções
legislativas, mas porque se verificou que o Legislativo também é capaz de ser
tão agressor da Constituição quanto aquele.146
Acrescenta o autor, entretanto, que, paradoxalmente, percebe-se que a
legalidade tributária é um princípio privilegiado, ao menos do ponto de vista normativo,
destacando uma estreita ligação desse princípio com a segurança jurídica, com o que se
pode nele enxergar três facetas, muito bem definidas: “[...] a) legalidade constitucional
(princípio da constitucionalidade), porque a instituição e a regulamentação dos
tributos somente podem ser feitas com autorização constitucional e nos limites dessa;
b) reserva de lei, porque, além da autorização constitucional, a instituição e
estruturação dos tributos somente podem ser feitas por lei; e c) legalidade
administrativa, na medida em que a cobrança e a fiscalização dos tributos somente
podem ser feitas nos limites autorizados por lei”.147 O artigo 3º do Código Tributário
Nacional, ao dispor que tributo é uma prestação instituída em lei e cobrada mediante
atividade administrativa plenamente vinculada, faz expressa menção à legalidade, tanto
na criação como na exigência do tributo.
144
ISS…, op. cit., p. 14.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, p. 148.
146
A tributação..., op. cit., p. 455-456.
147
Ibidem, p. 456.
145
72
O Princípio da Legalidade na Tributação também se encontra estreitamente
relacionado com o Princípio da Divisão de Poderes, pois sua observância também
objetiva impedir que a tarefa de instituição e/ou majoração de tributos, que pela
Constituição é reservada exclusivamente ao Poder Legislativo, possa vir a ser exercida,
ainda que de modo indireto ou oblíquo, pelo Poder Executivo e pelo Poder Judiciário.148
Vedadas são, portanto, quaisquer inversões que deleguem aos poderes Executivo ou
Judiciário competência para complementar, completar ou delimitar o tipo tributário.
Como bem lembra SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, “[...] o jus tributandi,
antes apanágio dos reis, é agora indeclinável função dos parlamentos”.149
Interessante observar que, mesmo com o advento do Estado Social de Direito,
e, após, com a sua evolução para um Estado Democrático de Direito, quando ao
Executivo foi atribuída uma imensidão de novas responsabilidades, não houve
enfraquecimento do primado da Legalidade Tributária. Ao contrário, como se pode
observar em nossa Constituição, as disposições em matéria tributária, ao invés de serem
reduzidas, foram substancialmente aumentadas, vinculando a atividade de tributar às
disposições de um verdadeiro Estatuto do Contribuinte. Como aspecto negativo,
temos, infelizmente, o histórico do indiscriminado e abusivo uso de medidas provisórias
em matéria tributária, problema que não foi resolvido, mesmo com o advento da
Emenda Constitucional n° 33/2001,
a qual objetivou minimizar os problemas da
utilização em massa desse instrumento normativo.
Não há espaço, por fim, para aqueles que pretendem reduzir o alcance da
estrita Legalidade Tributária, defendendo que, mediante o Princípio da Isonomia
Tributária, poderia o aplicador da lei tributar um negócio jurídico não tipificado em
norma tributária, devido a ele possuir o mesmo conteúdo econômico – mesma
capacidade contributiva – de uma outra forma jurídica, prevista em hipótese de
incidência tributária. Esse raciocínio é fruto da chamada interpretação econômica ou
funcional do fato gerador, teoria elaborada por ENNO BECKER na Alemanha e
consagrada na Abgabenordnung em 1919150; tendo, mais tarde, sido direcionada aos fins
148
XAVIER, Alberto. Tipicidade..., op. cit., p.26.
Curso..., op. cit., p. 199.
150
Código Tributário Alemão. Em 1977, com o advento do novo Código Tributário, a interpretação
econômica foi revogada na Alemanha.
149
73
do nazismo.151 No Brasil, um dos maiores defensores da interpretação econômica foi
AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, conforme denuncia a seguinte afirmativa:
Em Direito Tributário, autoriza-se o intérprete, quando o contribuinte comete
um abuso de forma jurídica (“Missbrauch von Formen und
Gestaltungsmöglichkeiten dês bürgerlichen Rechts”), a desenvolver
considerações econômicas para a interpretação da lei tributária e o
enquadramento do casso concreto em face do comando resultante não só da
literalidade do texto legislativo, mas também do seu espírito da mens ou ratio
legis. [...] Para que tal aconteça, é necessário que haja uma atipicidade da
forma jurídica adotada em relação ao fim, ao intento prático visado.152
No entanto, apesar de defender a interpretação econômica, o mesmo autor
demonstra a impossibilidade de adotar-se a analogia em sede de Direito Tributário, sob
o argumento de que ela é forma de integração da lei, e não de sua interpretação, o que
parece encerrar uma contradição científica, pois aplicar uma norma tributária (tipo)
específica para um fato de conteúdo econômico equivalente – porém juridicamente
diverso – nada mais é do que aplicar a analogia, vedada, de resto, pelo § 1º do artigo
108 do Código Tributário Nacional. Para fins tributários, o que são análogos nos fatos
são os seus respectivos conteúdos econômicos, ou, dizendo de outra forma, a
capacidade contributiva revelada. Não por outra razão é que ela, a capacidade
contributiva, é o critério de discrímen do Princípio da Isonomia Tributária. A questão
crucial que se impõe está na exigência de que a isonomia, além de dever estar presente
quando da criação da lei, é princípio, nessas condições, a ser invocado pelo
contribuinte, e nunca pelo fisco, salvo casos em que a conduta daquele esteja
contaminada por alguma ilicitude.
No Brasil, infelizmente, com o advento da Lei Complementar n° 104, de 10
jan. 2001, que acrescentou um parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário
Nacional, e após, com a Medida Provisória n° 66, de 29 ago. 2002, tentou-se introduzir
em nosso ordenamento a interpretação econômica do fato gerador, através de uma
norma geral antielisão, visando dificultar a realização do planejamento tributário,
mesmo o lícito.153 Em boa hora, a Lei n° 10.637, de 30 dez. 2002, resultado da
conversão da MP 66/2002, não contemplou os artigos que tratavam da desconsideração
151
NOGUEIRA, Johnson Barbosa. A teoria da interpretação econômica frente ao princípio da legalidade. In:
Escola de Administração Fazendária – ESAF (coord.). Anais do seminário internacional sobre elisão
fiscal, p. 45-46.
152
O fato gerador da obrigação tributária, p. 21.
153
“Artigo 116. [...] Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios
jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a
74
de negócios jurídicos, e que tinham como um dos fundamentos a interpretação
econômica.
Com relação ao citado parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário
Nacional, boa parte da doutrina tem se pronunciado no sentido de que, se a intenção do
legislador era introduzir mecanismos que possibilitassem ao fisco desconsiderar
negócios jurídicos originalmente não tributados, para então equipará-los a outros
negócios jurídicos previstos em normas tributárias, tal não foi o resultado, posto que
somente possibilita ao fisco desconsiderar negócios jurídicos praticados com
simulação, o que, de resto, já era previsto no artigo 149, VII, também do Código
Tributário Nacional154.
Por outro lado, caso interprete-se o referido parágrafo único, do artigo 116,
como apto a introduzir uma norma geral antielisão, fundamentada em uma interpretação
econômica, esse objetivo, além de encontrar óbices intransponíveis nos princípios da
Legalidade e da Tipicidade tributárias, “[...] jamais poderia ser atingido sem a
revogação do § 1° do artigo 108 do Código Tributário Nacional, segundo o qual o
emprego da analogia não pode resultar na exigência de tributo não previsto em lei”.155
Não se quer, porém, defender uma posição ultrapassada do Princípio da
Legalidade Tributária, como se fosse um instrumento perverso a justificar, por exemplo,
negócios jurídicos praticados em flagrante exercício abusivo do direito. É importante,
entretanto, compreender que o Princípio da Legalidade Tributária, como, aliás, ocorre
em qualquer outro ramo do direito, deve ser interpretado de forma condizente com as
novas exigências advindas do Estado Democrático de Direito, modelo que, como todo
Estado de Direito, sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da
igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da equalização das
condições dos socialmente desiguais, como ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, pois se
a Constituição é a origem das aspirações às transformações políticas, econômicas e
sociais, a lei, como desdobramento do conteúdo constitucional, é instrumento de
natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem
estabelecidos em lei ordinária”.
154
Como exemplo, vide, com proveito, O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104, sob a
coordenação de Valdir de Oliveira Rocha, Dialética, São Paulo, 2002.
“Artigo 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes
casos: [...] VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com
dolo, fraude ou simulação;”
155
TROIANELLI, Gabriel Lacerda. Comentários aos novos dispositivos do CTN: a LC 104, p. 27-44.
75
transformação democrática da sociedade.156 O desafio reside em consolidar esse novo
paradigma da Legalidade Tributária no Direito brasileiro, sem prejuízo das garantias já
conquistadas pelos contribuintes, em defesa dos abusos constantemente cometidos pelos
fiscos federal, estaduais e municipais.
É nesse novo contexto que parte da doutrina passou a defender que a
possibilidade de o fisco desconsiderar planejamentos tributários não se restringe mais às
tradicionais hipóteses do artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional, ou seja,
quando restarem demonstrados o dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do atual
Código Civil, que positivou as figuras do abuso de direito (como ato ilícito) e da
fraude à lei (como ato nulo), surgiu a tese de que o fisco passou a ter o poder-dever de
lançar o tributo também nessas novas hipóteses. 157 Isso implica uma nova definição dos
limites em que o planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária (lícita) para
tipificar caso de evasão tributária (ilícita). Nesse sentido é o pensamento de MARCO
AURÉLIO GRECO158, de DOUGLAS YAMASHITA159 e de LUCIANO ALAOR
BORGO160, por exemplo.
No entanto, essa tese ainda está longe de ser pacífica, havendo boa parte da
doutrina que defende só haver evasão fiscal nas hipóteses de dolo, fraude e simulação,
posto que previstas no seio do Direito Tributário – artigo 149, VII, do Código Tributário
Nacional. Esse é o entendimento, por exemplo, de ALBERTO XAVIER.161
Contudo, entende-se que o abuso de direito e a fraude à lei não são figuras de
aplicação restrita às relações privadas, o que alguns defendem em razão da positivação
desses institutos no Código Civil. Uma premissa importante e também inafastável reside
no entendimento de que os dispositivos do Código Civil não pertencem apenas ao
Direito Privado. Deve-se lembrar que a Lei de Introdução ao Código Civil, e a parte
geral do próprio código, por exemplo, tratam de temas que dizem respeito a todos os
ramos jurídicos, inclusive os ramos do direito público, não sendo o Direito Tributário
exceção a essa regra.
156
Curso..., op. cit., p. 121-122.
“Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
“Artigo 166. É nulo o negócio jurídico quando: [...] VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa.”
158
Planejamento tributário.
159
Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso do direito e da fraude à lei.
160
Elisão tributária: licitude e abuso do Direito, p. 329-333.
161
Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva.
157
76
Nesse contexto estão, por exemplo, as regras sobre a vigência e a eficácia das
normas jurídicas, as disposições sobre os fatos, atos e negócios jurídicos, regime das
pessoas naturais e pessoas jurídicas, inclusive as de direito público etc. Esse é o
entendimento de SÍLVIO DE SALVO VENOSA162, MARIA HELENA DINIZ163,
assim como de MIGUEL REALE, para quem “[...] nada mais errôneo do que pensar
que o que se encontra num livro de Direito Civil seja sempre Direito Civil”.164
Seria ilógico, portanto, que alguém pudesse defender que um planejamento
tributário é legítimo, ainda que fundamentado em negócio nulo e/ou ilícito, apenas
porque não há norma especificamente tributária que o tipifique dessa forma. A questão
relaciona-se intimamente com o princípio da legalidade tributária, porque, regra geral,
as hipóteses de planejamento tributário, contaminadas por abuso de direito e/ou fraude à
lei, têm, como fundamento uma interpretação da norma tributária que conclui pela não
incidência e/ou incidência reduzida, mas que, apesar de ser um dos sentidos literais
possíveis, é violadora de algum princípio jurídico de maior hierarquia. Ou seja, o
contribuinte não pode invocar o Princípio da Estrita Legalidade Tributária diante de
uma interpretação literal que contraria, por exemplo, o Princípio da Isonomia Tributária.
Esse é o entendimento, por exemplo, de RICARDO LOBO TORRES.165
Nesse sentido é o acórdão proferido nos autos da Apelação Cível nº
115.478/RS, do extinto Tribunal Federal de Recursos. Nesse processo, discutiu-se a
viabilidade da criação de oito sociedades pelos mesmos sócios de uma única indústria
fornecedora, com o fim de possibilitar a opção pelo lucro presumido, regime a que a
mesma não teria direito por ser de grande porte. Embora não tenha considerado a
operação nem simulada nem fraudulenta, definiu-a como ilícita e evasiva, por ofensa ao
Princípio da Igualdade:
AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. IMPOSTO DE RENDA.
LUCRO PRESUMIDO. OMISSÃO DE RECEITA. Legitimidade da atuação
do Fisco, em face dos elementos constantes dos autos. Constituídas foram, no
mesmo dia, de uma só vez, pelas mesmas pessoas físicas, todas sócias da
autora, 8 (oito) sociedades com o objetivo de explorar comercialmente, no
atacado e no varejo, calçados e outros produtos manufaturados em plástico,
no mercado interno e no internacional. Tais sociedades, em decorrência de
162
Direito civil: parte geral, p. 93.
Curso de Direito civil brasileiro, v.1, p. 54.
164
Lições preliminares de Direito, p. 15.
165
A norma antielisão, seu alcance e as peculiaridades do sistema tributário nacional: objeto da norma,
efeitos na aplicação, fundamentos e limites, abrangência, pressupostos, avaliação de motivos, condição
de aplicação. In: Escola de Administração Fazendária – ESAF (coord.). Anais do seminário
internacional sobre elisão fiscal, p. 208.
163
77
suas características e pequeno porte, estavam enquadradas no regime
tributário de apuração e resultados com base no lucro presumido, quando sua
fornecedora única, a autora, pagava o tributo de conformidade com o lucro
real. Reconhece-se à recorrente, apenas, o direito de compensação do
Imposto de Renda pago pela aludidas empresas. Reforma parcial da
sentença.166
Outra questão delicada diz respeito à eventual necessidade de a nulidade ou
ilicitude ser previamente declarada pelo Poder Judiciário, interpretação que poderia
resultar do artigo 168, parágrafo único, do Código Civil, pelo qual “As nulidades devem
ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e
as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento
das partes.” Em que pese o teor do dispositivo, ressalte-se que, em sede de lançamento
tributário, nunca houve necessidade de declarar que o ato foi praticado com dolo, fraude
ou simulação, pois, em tais casos, a desconsideração pelo fisco tem efeitos apenas no
âmbito tributário, permanecendo o negócio válido perante as partes, pelo menos até que
uma sentença judicial definitiva afirme o contrário. Com os atos nulos e/ou ilícitos, o
raciocínio parece deva seguir o mesmo caminho.
Entretanto, não cabe, nos limites deste trabalho, adentrar na polêmica
instaurada entre os defensores de ambas as teses. A intenção de examinar, ainda que
brevemente, o tema dos limites do planejamento tributário, é dar relevo à importância
da receita tributária do ISS como instrumento viabilizador da autonomia financeira dos
Municípios e, em especial, porque essa autonomia financeira é concretizadora das suas
autonomias política e administrativa. Como já foi visto no subitem anterior, os ideais da
República e da Democracia são tanto mais prestigiados quanto maior é a observância do
princípio da autonomia municipal, tendo em vista que aqueles valores exigem uma
possibilidade efetiva de os cidadãos fiscalizarem a gestão dos recursos públicos pelos
seus representantes.
Inserindo essa análise no contexto do presente estudo, a importância da receita
do ISS para os Municípios reforça a necessidade de observância do local de ocorrência
166
Apelação Cível no 115.478-RS, Ac. da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, de 18.2.87, Rel. Min.
Américo Luz, Revista do Tribunal Federal de Recursos 146: 217, 1987. Às fls. 5 do voto consta o
entendimento de que a operação violou o princípio da igualdade de tratamento tributário: “As respostas
do laudo não infirmam essa conclusão (a de que as oito sociedades não teriam finalidade própria),
porquanto enfatizam o envoltório jurídico das operações cuja finalidade era acobertar a receita
representada pela diferença financeira resultante da justaposição de regimes tributários, privilegiados
(lucro presumido), de um lado, do lucro real de outro. Eis um efeito tributário ilícito, não meramente
elisivo, conclusão a que se chega inclusive pela via do absurdo que representa o garantir à autora o
beneplácito a um procedimento que quebra o princípio da igualdade de tratamento tributário perante a
comunidade de contribuintes”.
78
do fato tributário desse imposto, tal como extraído da Constituição Federal, para que os
Municípios tenham garantia da arrecadação sobre todos os serviços que, perante a Lei
Maior, sofrerem a incidência das respectivas leis locais. Essa exigência demanda o
respeito pelo critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, não só pelos
Municípios, mas também se dirige aos contribuintes, de forma a servir como mais um
forte argumento a deslegitimar os planejamentos tributários realizados com o objetivo
de reduzir esse ônus tributário, sempre que se demonstrar serem ilícitos os atos ou
negócios jurídicos que lastreiam tais operações.
2.2.3 Princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva
A Constituição da República, em seu artigo 150, II, prescreve que “Sem
prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] II - instituir tratamento desigual
entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer
distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
Verifica-se que este dispositivo recepcionou a tradicional visão aristotélica, pela qual o
princípio da isonomia consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais, na razão de suas desigualdades.
Embora a legitimidade do princípio o constitua em primado inafastável, seu
alto grau de abstração é insuficiente para que tenha eficácia satisfatória junto ao mundo
fenomênico, posto não estabelecer quais os critérios hábeis a identificar as
desigualdades em cada caso. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, a partir
dessa verificação, a que ele resume afirmando que, apesar de reconhecer nesta
afirmação “[...] sua validade como ponto de partida, deve-se negar-lhe o caráter de
termo de chegada”, o que leva à imprescindibilidade de saber, para fins jurídicos, quem
são os iguais e quem são os desiguais.167
O referido autor, após questionar qual espécie de igualdade veda e que tipo de
desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem violação aos
objetivos do princípio constitucional da isonomia, conclui que “[...] as discriminações
são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente
167
Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 10-11.
79
quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial
acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela
conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados
na Constituição”.168
A Igualdade Tributária, no ensinamento de PAULO DE BARROS
CARVALHO, está intimamente ligada ao conteúdo econômico dos fatos escolhidos
pela lei impositiva, os quais são mensurados pela base de cálculo. Quando o legislador,
ao escolher os fatos tributários, opta pelos que expressem signos de riqueza econômica,
observa a chamada capacidade contributiva absoluta ou objetiva. Quando, ato contínuo,
ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição dos participantes de
forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido, realiza a capacidade
contributiva relativa ou subjetiva. Com efeito, é dessa forma que se realiza o Princípio
da Igualdade previsto no artigo 5º, caput da Constituição Federal.169 Confirma o
raciocínio AIRES BARRETO: “Lanço por lanço, dispositivo por dispositivo, vê-se na
Constituição a afirmação e reiteração de que a outorga de competência para a criação
de tributo se circunscreve a manifestações de capacidade contributiva”.170
Portanto, no âmbito do direito tributário, de regra, o critério a ser utilizado para
estabelecer discriminações, pelo menos no que tange aos impostos, somente pode ser o
critério da Capacidade Contributiva, conforme, aliás, explicita o § 1º do artigo 145 da
Lei Maior, o qual exige que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e
serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]”.
Dizemos “de regra”, e a expressão constitucional “sempre que possível”
confirma a assertiva, em razão de haver, na própria Constituição, autorização para que
sejam instituídos impostos cuja maior ou menor intensidade, na cobrança, tenha
finalidade extrafiscal, como é exemplo o caso das alíquotas progressivas do imposto
sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU, visando o atendimento da
função social da propriedade, afastando-se, nesses casos, a Capacidade Contributiva. No
entanto, a extrafiscalidade, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “[...] é uma
medida excepcional em face da via regular dos tributos que é a finalidade
arrecadatória, que é o abastecimento dos cofres públicos”.171
168
Ibidem, p. 17.
Curso..., op. cit., p. 336-337.
170
BARRETO, Aires Fernandino. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais, p. 26.
171
IPI e extrafiscalidade. Revista de Direito Tributário, n. 91, p. 76.
169
80
Em matéria tributária, ensina AIRES BARRETO, a agressão ao princípio
verifica-se de forma mais constante pela inadequação da base de cálculo, como ocorre,
por exemplo, com os chamados “tributos fixos”. É que a análise do Princípio da
Capacidade Contributiva, em conjunto com a função constitucional da base de cálculo
de servir de critério de distinção das espécies tributárias, assim como o de indicar os
limites das competências tributárias – conforme ilustra o artigo 154, da Constituição
Federal de 1988 – revela a inconstitucionalidade dessa sistemática impositiva. 172 Para o
autor, o Princípio da Capacidade Contributiva:
é diretriz que impõe ao legislador ordinário, cumulativamente, a escolha de
fatos com conteúdo econômico e a eleição de critério de mensuração (base de
cálculo) ad valorem. [...] Em face dos impostos, fere-se o princípio, seja pela
eleição de fato sem conteúdo econômico, seja pela adoção de base de cálculo
não lastreada no valor. [...] No caso do ISS, a eventual tributação fixa esbarra
nesse entrave, implicando instituição e exigência de tributo
inconstitucional.173
No que se refere ao tema objeto deste estudo, é importante registrar que os
numerosos conflitos de competência entre Municípios, sobre qual seja o titular da
receita tributária do ISS, têm freqüentemente causado a cobrança do imposto em
duplicidade, em relação a prestadores de serviço que, estabelecidos em um Município,
prestam seus serviços em outro, em flagrante violação dos princípios da Isonomia, da
Capacidade Contributiva, e da Vedação de Tributo com Efeito de Confisco.
2.2.3.1 Solidariedade Social e Tributação
Com o advento do Estado Social e Democrático de Direito, ganhou força a tese
que defende a necessidade de interpretar a relação jurídica tributária de forma
contextualizada com o valor constitucional da solidariedade social. Ainda que em todo o
capítulo da Constituição Federal de 1988, dedicado ao Sistema Tributário Nacional –
Capítulo I, Título VI – não se encontre disposição expressa sobre o assunto, é de rigor
concluir que o preceito contido no artigo 3º, I, da Lei Maior, pelo qual “Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade
livre, justa e solidária; ...”, tem aplicação obrigatória em relação a todos os demais
dispositivos constitucionais. Registre-se também a expressão constante do seu
preâmbulo, a qual indica o ideal de uma “sociedade fraterna”. Isso não significa, porém,
172
Ibidem, p. 134.
81
que a busca da solidariedade social prevalecerá sempre sobre todas as demais normas
constitucionais, pois sempre existirão situações onde restará configurada a supremacia
de outros valores, também positivados no texto constitucional.
De início, é relevante identificar o significado da expressão “solidariedade
social”. MARCIANO SEABRA DE GODOI esclarece que o termo solidariedade,
apesar de plurívoco, “[...] aponta sempre para a idéia de união, de ligação entre as
partes de um todo...”, e que etimologicamente, “[...] o termo remonta a termos latinos
que indicam a condição de sólido, inteiro, pleno”. Mas, em seu sentido jurídico – que é
o que interessa ao nosso trabalho – a solidariedade social “[...] remonta à idéia próxima
de justiça social, conceito típico do início do século XX”.174
A solidariedade de que trata a Constituição, no entanto, é a solidariedade
genérica, referente à sociedade como um todo, em oposição à solidariedade de grupos
sociais homogêneos, a qual se refere a direitos e deveres de um grupo social específico.
Por força da solidariedade genérica, é lógico concluir que cabe a cada cidadão brasileiro
dar a sua contribuição para o financiamento do “Estado Social e Tributário de
Direito”.175
Vários autores que se debruçaram sobre o tema identificaram o Princípio da
Capacidade Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, da Constituição, como o vínculo
essencial entre a tributação e a solidariedade social.176 Ou seja, o contribuinte cumpre
com seu dever de solidariedade, no meio social, quando efetivamente contribui para a
manutenção dos gastos estatais – através do recolhimento dos tributos que lhe são
exigíveis – na exata medida de sua capacidade contributiva.
Nas palavras de JOSÉ CASALTA NABAIS, professor da Faculdade de Direito
de Coimbra, “[...] a simples existência de um Estado Fiscal convoca desde logo uma
idéia de justiça, que se não contém nos estritos quadros de uma justiça comutativa,
como seria a concretizada num Estado financeiramente suportado por tributos
bilaterais ou taxas, figura tributária cuja medida se pauta pela idéia de
equivalência”.177 O autor lusitano acrescenta que tal não ocorre em um “Estado Fiscal”,
173
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na lei, p. 13.
Tributo e solidariedade social. In:.GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.).
Solidariedade social e tributação, p. 142.
175
YAMASHITA, Douglas. Princípio da Solidariedade em Direito Tributário. In: GRECO, Marco Aurélio;
GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 59-60.
176
YAMASHITA, Douglas. Princípio da Solidariedade..., op. cit., p. 160.
177
Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra
de (coord.). Solidariedade social e tributação, p. 128.
174
82
que é suportado por todos ou, em especial, por aqueles que revelem capacidade
contributiva. Disso resulta que o conjunto dos contribuintes deva suportar o custeio de
todos os serviços públicos, que beneficiam todos os cidadãos, sejam ou não
contribuintes, do que surge a idéia de justiça distributiva, traduzida na redistribuição dos
rendimentos dos contribuintes para os que não sejam contribuintes. Conclui que essa
situação tem, como importante aspecto, o fato de que a lei criadora do tributo teve a
participação democrática tanto dos representantes dos contribuintes, como dos não
contribuintes, o que não ocorria durante a vigência do sufrágio censitário. Com efeito,
entende o autor que a máxima inglesa “no taxation without representation” passou a ter
um sentido mais democrático do que a clássica noção da “autotributação”. 178
Na doutrina brasileira, MARCO AURÉLIO GRECO é um dos autores que
mais se destacam no exame dessa questão:
Esta mudança do perfil do Estado repercute, também, no âmbito da
tributação, que deixa de ser vista da perspectiva do confronto entre
contribuinte e Fisco – a partir do que as respectivas normas constitucionais
assumem o papel de instrumentos de limitação do poder do Estado e
proteções ao patrimônio do indivíduo – para ser vista como instrumento de
viabilização da solidariedade no custeio do próprio Estado. Daí a capacidade
contributiva ser guindada à condição de princípio geral do sistema tributário,
a teor do § 1º do art. 145 da CF.179
Infelizmente, é um fato cultural e histórico o contribuinte desconfiar do Estado,
assim como ver na arrecadação dos tributos uma “subtração”, em vez de uma
contribuição a um Erário comum. Diante disso, o tema da solidariedade é fundamental,
porque leva a uma reflexão sobre as razões pelas quais se pagam tributos, ou porque
deva existir uma lealdade tributária. Inegável, todavia, que esse “mal-estar” em pagar
tributos resulta de uma gestão corrupta das receitas arrecadadas, serviços públicos
ineficientes, assim como de uma carga tributária muitas vezes distribuída de forma não
equânime.180
Para CLÁUDIO SACCHETTO, catedrático de Direito Tributário e
Internacional, Comunitário e Comparado da Universidade de Turim, “Como corolário
da solidariedade, no campo fiscal, surgiu a reconstrução do dever tributário como um
dever de concorrer para a própria subsistência do Estado e não como uma prestação
correspectiva-comutativa diante da distribuição de vantagens específicas para o
178
NABAIS, José Casalta. Solidariedade Social..., op. cit., p. 128-129.
Planejamento tributário, p. 284.
180
SACCHETTO, Cláudio. O Dever de Solidariedade no Direito Tributário: o ordenamento italiano, in
GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 11.
179
83
obrigado”.181 Pagar tributos, portanto, é um dever constitucional, que deve ter como
perspectiva não o caráter impositivo, porque oriundo do império da lei, mas da
consciência jurídica de que a lei criadora do tributo reflete a vontade e a decisão de
todos, quanto à necessidade de custeio dos encargos estatais por todos os cidadãos, na
medida da capacidade econômica de cada um. Daí a noção do vocábulo “contribuinte”,
pois o dever de contribuir para as despesas públicas é um dever individual de
solidariedade social, pela simples razão de pertencer a uma comunidade.
O autor citado defende, com acerto, que não é mais possível considerar o
tributo como prestação coercitiva apenas porque sua instituição está submetida à reserva
de lei, pois “[...] legalidade e autoridade não são mais correlatas”. O Princípio da
Legalidade passou a representar, nos Estados Republicanos, a vontade expressa de
forma democrática pelo povo, que é o único titular da soberania. Acrescenta o autor:
“Um dever de solidariedade fiscal só pode ter como referência a comunidade. A
repartição das despesas públicas só pode ser, in primis, perante bens e serviços
indivisíveis, portanto, bens e serviços que devem ser colocados à disposição de todos.
Não faz sentido um tributo a cargo de um único indivíduo beneficiário do serviço
público;...”.182
Do raciocínio do professor italiano resulta clara a idéia de que a solidariedade
social, no âmbito tributário, aplica-se também na exigência de os tributos – com
destaque para os impostos – serem suportados por todas as pessoas que revelem
capacidade contributiva, não tendo a Constituição estabelecido uma contrapartida direta
a ser suportada pelo Estado, o que somente ocorre com os chamados tributos
vinculados, como a taxa e a contribuição de melhoria. A idéia ganha coerência quando
lembramos de certos serviços sociais impossíveis de serem sempre custeados pelos
próprios beneficiários, como a educação e os serviços de assistência social.
A imposição tributária não pode mais ser vista como tendo apenas caráter
fiscal, ou que esse prevaleça, pois a arrecadação tributária não é um fim em si mesmo.
Nesse novo paradigma, prestigiou-se a natureza extrafiscal dos tributos, os quais
passaram a servir de instrumento para atingir outros fins de ordem econômica e social
encampados pela Constituição, os quais, por sua vez, somente são legítimos na medida
em que viabilizam os ideais republicanos e democráticos.
181
182
Ibidem, p. 21.
Ibidem, p. 23.
84
Essa nova perspectiva, entretanto, não autoriza a instituição de tributos – e
muito menos a sua cobrança – com base apenas em princípios constitucionais, em
virtude da existência de normas constitucionais que condicionam as atividades do
Estado no campo da tributação, dentre as quais o Princípio da Legalidade tributária,
previsto no artigo 150, I, da Lei Maior, e as regras que distribuem as competências
tributárias, são os exemplos mais relevantes. Nessa perspectiva, HUMBERTO ÁVILA
tece argumentos indispensáveis no trato da matéria:
Na perspectiva da espécie normativa que as exterioriza, as normas de
competência possuem a dimensão normativa de regras, na medida em que
descrevem o comportamento a ser adotado pelo Poder Legislativo,
delimitando o conteúdo das normas que poderá editar. O decisivo é que a
Constituição Brasileira não permitiu a tributação pelo estabelecimento de
princípios, o que deixaria parcialmente aberto o caminho para a tributação de
todos e quaisquer fatos condizentes com a promoção dos ideais
constitucionalmente traçados. Em vez disso, a Constituição optou pela
atribuição de poder por meio de regras especificadoras, já no plano
constitucional dos fatos que podem ser objeto de tributação. Essa opção pela
atribuição de poder por meio de regras implica a proibição de livre
ponderação do legislador a respeito dos fatos que ele gostaria de tributar, mas
que a Constituição deixou de prever. Ampliar a competência tributária com
base nos princípios da dignidade humana ou da solidariedade social é
contrariar a dimensão normativa escolhida pela Constituição.183
Uma tributação com fundamento tão-somente em princípios, acabaria por
conflitar com as regras constitucionais que outorgam as competências tributárias e as
demarcam entre as pessoas políticas, como, por exemplo, a divisão das materialidades
tributáveis pelos impostos, com base nos artigos 153, 154, 155 e 156 da Constituição
Federal, entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A idéia de que os
princípios são normas de maior importância pode levar à falsa conclusão de que os
mesmos devem prevalecer sobre as regras, no caso em exame, as que tratam de
competências tributárias.
A questão, na verdade, refere-se à diferente eficácia entre essas normas, ou
seja, “[...] as regras têm uma eficácia que os princípios não têm. [...] Em primeiro
lugar, a eficácia das regras é decisiva, ao passo que a dos princípios apenas
contributiva, não cabendo ao intérprete, por conseqüência, afastar, sem mais, a decisão
tomada pela Constituição Federal pela sua própria decisão pessoal.” Em síntese: “[...]
não há poder de tributar com base no princípio da solidariedade social de acordo com
183
Sistema constitucional tributário, p. 159-160.
85
a Constituição de 1988”.184 Admitir o contrário implicaria a contrariedade com outras
normas constitucionais, como as referidas regras de competência e o sobreprincípio da
Segurança Jurídica, bem como os seus corolários da Legalidade, Irretroatividade e
Anterioridade.
Como anota HUMBERTO ÁVILA, esse entendimento tem sido prestigiado
pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive em relação às contribuições sociais, tributos
previstos na Constituição especificamente como instrumentos de busca do ideal da
solidariedade social. Encontramos um bom exemplo desse posicionamento no Recurso
Extraordinário nº 150.764-1, onde a Suprema Corte decidiu que a seguridade social,
ainda que deva ser financiada por toda a sociedade, só o poderá, em relação às
contribuições, mediante bases de incidência próprias185 – as previstas no artigo 195 da
Constituição – e não apenas com base no princípio da universalidade do
financiamento.186 Se esse raciocínio se aplica às contribuições, com maior razão deve
refletir, também, sobre a interpretação das regras de competência relativas aos impostos,
os quais se submetem, nesse contexto, apenas ao princípio da capacidade contributiva,
conforme o artigo 145, § 1º da Constituição.
Ainda que a linguagem utilizada pela Constituição possa ser indeterminada,
isso não autoriza concluir pela inexistência, em qualquer caso, de núcleos de
determinação, ou que ela não possa sofrer determinação pelo próprio sistema no qual
esteja inserida. As normas constitucionais que atribuem competências indicam os
critérios materiais das hipóteses de incidência dos tributos e, assim o fazendo,
estabelecem conceitos, “[...] cujos núcleos de significado não podem ser desprezados
pelo intérprete, nem mesmo a pretexto de prestigiar algum valor constitucional,
supostamente de maior hierarquia”. Felizmente o Supremo Tribunal Federal tem
prestigiado esse entendimento, como se pode verificar na decisão proferida no Recurso
Extraordinário nº 117.887-6187; que, ao analisar a incidência de imposto sobre a renda
na distribuição de dividendos pelas sociedades, concluiu não ter havido auferimento de
renda, raciocínio que partiu do conceito constitucional dessa materialidade como
“acréscimo patrimonial”.188
184
ÁVILA, Humbelo. Limites à Tributação com Base na Solidariedade Social. In: GRECO, Marco Aurélio;
GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 70-71.
185
DJ 02 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
186
ÁVILA, Humberto. Limites à Tributação..., op. cit., p. 72.
187
DJ 23 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
188
ÁVILA, Humberto. Limites à Tributação..., op. cit., p. 73-74.
86
Com base na análise das decisões do Supremo Tribunal Federal, HUMBERTO
ÁVILA conclui que essa Corte tem prestigiado de forma firme e reiterada o
entendimento de que as regras constitucionais atributivas de competência, quando
utilizam expressões com conotação dada pela própria Constituição ou pela legislação
infraconstitucional vigente à época de sua promulgação, “[...] prevêem ou incorporam
conceitos que fixam balizas instransponíveis ao legislador infraconstitucional”, não
havendo espaço para entender essas normas como constitucionalmente abertas.189
A eficácia do Princípio da Solidariedade Social no âmbito tributário deve,
portanto, restringir-se a informar a aplicação do cânone da Capacidade Contributiva e,
por seu intermédio, consagrar a Isonomia Tributária, estabelecida no artigo 150, II, da
Constituição, pelo qual é vedado às pessoas políticas “[...] instituir tratamento desigual
entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer
distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
De forma especial, entendemos que a maior eficácia da solidariedade social,
em relação ao Direito Tributário, resulta da observância da aplicação da
progressividade nas alíquotas dos impostos, instrumento ótimo no atendimento do
caráter extrafiscal da tributação, ou seja, promover o bem-estar social, tendo em vista
que a tributação apenas proporcional, além de atender apenas ao aspecto fiscal da
imposição tributária, cria situação de extrema injustiça, ao onerar na mesma intensidade
contribuintes em situação desigual. Partindo desse raciocínio, concorrer de modo
progressivo e não proporcional, significa fazê-lo em função das necessidades não só
próprias, mas também das alheias, do que decorre a estreita ligação entre solidariedade e
progressividade. A não valorização do Princípio da Solidariedade certamente explica a
queda presenciada na defesa da progressividade tributária.190
Ao lado da progressividade, a exigência de alguns impostos estará em sintonia
com a solidariedade social mediante o atendimento da seletividade, como são
exemplos, no Sistema Tributário Nacional, o IPI e o ICMS, por força, respectivamente,
do disposto nos artigos 153, § 3º, I, e 155, § 2º, III, da Constituição Federal. Em que
pese o dispositivo relativo ao ICMS prescrever literalmente que esse imposto “poderá”
ser seletivo, ROQUE ANTONIO CARRAZZA, de forma acertada, defende que a
189
190
Ibidem, p. 77.
SACCHETTO, Cláudio. O Dever de Solidariedade..., op. cit., p. 28.
87
seletividade é instrumento de extrafiscalidade obrigatório, tanto para o ICMS como para
o IPI.191
É verdade que a receita tributária é condicionada à existência da economia
privada e também à garantia dos direitos dos particulares. Por outro lado, o contrário
também é verdade, pois é a receita obtida com a tributação que possibilita a existência e
manutenção do direito à propriedade, ao patrimônio privado, à livre iniciativa etc. “Se
estas premissas são aceitas, então todos aqueles que têm direitos, e todos são titulares
de direitos – são obrigados à solidariedade e à solidariedade fiscal”.192
Essa tomada de posição não implica aceitar a tese de que a eficácia jurídica do
Princípio da Capacidade Contributiva autorizaria o Fisco a exigir tributos com base na
chamada “interpretação econômica do fato gerador”. Da mesma forma, não nos parece
possa a Capacidade Contributiva servir de fundamento para desconsiderar negócios
jurídicos lícitos, apenas porque celebrados com o propósito isolado de economia
tributária. A evasão tributária somente pode resultar de ilicitudes que contaminam o
planejamento tributário, e a economia tributária, em si mesma, não pode tipificar um ato
como ilícito, ainda que se admita a recepção, no Direito Tributário, das figuras da
fraude à lei e do abuso de direito, previstas, respectivamente, nos artigos 166, VI e 187,
ambos do Código Civil – Lei nº 10.406/2002.
Não se pode concordar, portanto, com o pensamento de MARCO AURÉLIO
GRECO, para quem o Princípio da Capacidade Contributiva elimina o predomínio da
liberdade, ainda que inexistente qualquer ilicitude. Nas palavras do autor: “Ou seja,
mesmo que os atos praticados pelo contribuinte sejam lícitos, não padeçam de nenhuma
patologia; mesmo que estejam absolutamente corretos em todos os seus aspectos
(licitude, validade), nem assim o contribuinte pode agir da maneira que bem entender,
pois sua ação deverá ser vista também da perspectiva da capacidade contributiva”.193
O raciocínio de GRECO deve-se à sua perspectiva não só da eficácia jurídica
desse princípio, mas também da identificação de quem são os destinatários do comando
do artigo 145, § 1º, da Constituição de 1988. Para o autor, à expressão “sempre que
possível”, prevista nesse dispositivo, deve ser dado um “sentido forte”, em razão de sua
identificação como princípio geral – diretrizes positivas – e não apenas como limitação
– restrições – não sendo possível, em sua visão, aceitar a interpretação de que a
191
Curso..., op. cit., p. 89.
SACCHETTO, Cláudio. O Dever de Solidariedade..., op. cit., p. 36.
193
GRECO, Marco Aurélio. Planejamento...,op. cit., p. 281.
192
88
expressão contém apenas uma recomendação, como “se puder, faça”, e “se não puder,
não faça”.
Esse sentido forte seria representado na existência de um ângulo positivo da
expressão “sempre que possível”, colocando a tônica no “sempre” e não no “possível”,
para que sempre que for possível, deva-se atender à capacidade contributiva. Assim,
haveria inconstitucionalidade sempre que for possível atender à capacidade contributiva
e isso não seja feito.194 Entende, como resultado de seu raciocínio, que, ao contrário de
outros dispositivos, o preceito da capacidade contributiva não se refere somente à lei,
pois o dispositivo prevê que os impostos serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte, e não que a lei graduará os impostos segundo ela. O autor
defende, assim, a possibilidade de a capacidade contributiva se dirigir também ao
aplicador da lei.195 DOUGLAS YAMASHITA também está de acordo com a eficácia
positiva da capacidade contributiva, defendendo que esse princípio necessita de
concretização inclusive pelo aplicador da lei, como no caso das decisões judiciais.196
MARCO AURÉLIO GRECO argumenta que essa sua afirmação não deveria
causar espanto, pois é qualidade imanente a todas as normas constitucionais, mesmo que
se
tratem
de
normas
meramente
programáticas,
as
quais,
no
moderno
constitucionalismo, não são mais vistas como singelas recomendações ou declarações
de propósito, nem se apresentam apenas com eficácia negativa – fundamentar a
inconstitucionalidade de dispositivos que a contrariem. Ou seja, a norma programática
possui eficácia positiva, pois contém preceitos que podem e devem ser aplicados. O
autor, no entanto, esclarece: “Isto não significa que o princípio da capacidade
contributiva possa ser aplicado sem lei, nem estou afirmando que podem ser cobrados
tributos sem lei e sem tipo. Estou apenas afirmando que o princípio ilumina o tipo
previsto na lei; que esta será irrigada pela interpretação com os olhos da capacidade
contributiva, mas sem que isto signifique atropelar a lei ou o tipo nela previsto”.197
Entretanto, o raciocínio seguinte do autor parece conflitar com essa sua afirmação:
Ora, se o legislador deve atingir isonomicamente a capacidade contributiva,
deverá fazê-lo em relação a todas as suas manifestações: aqueles que tenham
praticado atos indicativos daquela aptidão devem ser atingidos pelo mesmo
tributo. Se existirem idênticas manifestações de capacidade contributiva,
194
Ibidem, p. 300.
Ibidem, p. 301-302.
196
YAMASHITA, Douglas. Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso de direito e da fraude à lei,
p. 185.
197
GRECO, Marco Aurélio. Planejamento...,op. cit., p. 307.
195
89
sujeitas a tributações diferentes, não haverá tributação isonômica. Em última
análise, a tributação estará se dando inconstitucionalmente.[sic]198
O entendimento do autor levanta um questionamento: como conciliar a (a)
possibilidade de o aplicador da lei tributária – o Fisco, por exemplo –utilizar o Princípio
da Capacidade Contributiva com (b) a vedação da tributação por analogia, regra que,
apesar de prevista no artigo 108, § 1º, do Código Tributário Nacional, é, em verdade, a
manifestação do Princípio da Legalidade insculpido no artigo 150, I, da Constituição?
Para nós, o problema, na tese de GRECO, está em que esse respeitável autor considera
que haverá abuso de direito sempre que um negócio jurídico for celebrado unicamente
com propósito de economia tributária.199 Ocorre que a economia tributária é um fator de
altíssima relevância em qualquer operação jurídica, sendo, por si só, justificativa
plausível para realizar um negócio jurídico. Isso será defensável, pensamos nós, quando,
por exemplo, constituir-se em único meio para a manutenção de uma atividade
econômica como lucrativa, ou ainda, quando for imprescindível para assegurar
condições mínimas de uma família viver com dignidade, situações que se subsumem às
chamadas “excludentes de ilicitude” previstas no Código Civil, na condição de
“exercício regular de um direito”.200
Não se nega plausibilidade jurídica à tese de MARCO AURÉLIO GRECO,
mas caso seja possível a outorga ao Fisco dessa eficácia positiva ao Princípio da
Capacidade Contributiva, caberá ao Poder Judiciário a correção de um sem número de
abusos que certamente serão praticados pelas administrações tributárias, tendo em vista
o vetor interpretativo fazendário ter notoriamente, na maior parte dos casos, apenas um
viés arrecadatório. A necessidade de buscar atingir o valor da solidariedade social,
pensamos, não justifica uma situação grave como essa, onde certamente a Segurança
Jurídica sucumbirá, ante a violação de direitos como a liberdade, propriedade, livre
iniciativa etc.
A solidariedade social no campo tributário também sofre os reflexos do tema
da função social do contrato. É que os contratos podem ser analisados sob a
perspectiva de sua função econômica e/ou de sua função social. A função econômica
198
Ibidem, p. 307.
Um exemplo esclarece o raciocínio: um pai doa em vida todos os seus bens aos filhos, tendo em vista a
alíquota do imposto sobre doações ser inferior ao imposto causa mortis. Em tal hipótese, ele não queria
doar, pelo menos não naquele momento, mas o fez apenas para reduzir a carga tributária, que seria maior
por ocasião do inventário.
200
“Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de
um direito reconhecido; [...].”
199
90
dos contratos consiste na circulação de bens e serviços, com os reflexos daí decorrentes.
É importante ressaltar que cada tipo contratual possui uma função econômica
específica, que lhe é peculiar, como, por exemplo: troca (compra e venda, doação,
permuta), crédito (mútuo), garantia (penhor, hipoteca, fiança), custódia (guarda e
conservação de bens alheios, como depósito, estacionamento), laboral (contrato de
trabalho, locação de serviços, comissão), previsão (seguro), recreação (turismo,
espetáculos) etc. Com efeito, na hipótese de o exercício do direito à liberdade de
contratar contrariar manifestamente a função econômica peculiar daquele tipo
contratual – o princípio que justifica o contrato – ocorrerá abuso do direito de
contratar. Com base nesses argumentos, DOUGLAS YAMASHITA defende que “[...]
tal excesso só será manifesto se o exercício da liberdade de contratar perseguir
finalidade ilegítima, constituir um meio incapaz para atingir a finalidade legítima,
existir outro meio jurídico capaz e menos oneroso para realizar a finalidade legítima
ou a liberdade de contratar impor um sacrifício desproporcional em relação à
finalidade perseguida”.201
Em relação à sua função social, o contrato deve observar critérios de justiça, de
eqüidade, de boa-fé, para que a parte “forte” não tenha o direito de se aproveitar da
credibilidade da parte “fraca”, abusando de sua confiança através de cláusulas leoninas
e abusivas. O atual Código Civil exige o cumprimento dessa diretriz em seu artigo 421,
pelo qual “[...] a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função
social do contrato”. No entanto, desde a edição da Lei de Introdução ao Código Civil –
LICC – Decreto-Lei nº 4.657, de 04 set. 1942 – nosso ordenamento já previa que “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do
bem comum” (art. 5º).
É imperioso advertir, no entanto, que a função social dos contratos não pode
anular a função primária e natural dos contratos, que é a econômica, conforme bem
acentua HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, autor que em boa hora nos lembra que o
contrato é, antes de tudo, um fenômeno econômico e não uma criação do Direito. Esse
autor adverte ainda que ao contrato cabe uma função social, mas não uma função de
“assistência social”. Por mais que o indivíduo mereça uma assistência social, não será
no contrato que encontrará a solução para tal carência. Ou seja, o contrato é um instituto
econômico com fins econômicos a realizar, os quais não podem ser ignorados, seja pela
201
Elisão..., op. cit., p. 190.
91
lei ou pelo aplicador da lei.202 Para parte da doutrina, a função social dos contratos
corresponde, no Direito Tributário, à eficácia positiva do Princípio da Capacidade
Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º da Constituição Federal de 1988. Nesse
sentido é o pensamento de MARCO AURÉLIO GRECO203 e também de DOUGLAS
YAMASHITA204.
Todavia, essa transposição para o Direito Tributário exige uma reflexão sobre o
tema. Mesmo que se aceite que a liberdade de contratar deva adequar-se à função social
do contrato, é de se indagar: que função social maior poderá ter um contrato senão
aquela que justifica sua existência, ou seja, servir à circulação de riquezas,
proporcionando segurança ao tráfego do mercado? Em primeiro lugar, portanto, deve-se
assegurar a função natural e específica do contrato que lhe é primária dentro da vida
social, qual seja a de propiciar a circulação da propriedade e emanações dela em clima
de segurança jurídica – função socioeconômica. Apenas depois é que se pode pensar em
limites dessa natural e necessária função. DOUGLAS YAMASHITA observa, nesse
sentido, que:
A função social é um plus que se acrescenta à função econômica. Não poderá
jamais ocupar o lugar da função econômica no domínio do contrato. Contrato
sem função econômica simplesmente não é contrato. [...] Nessa perspectiva,
pode-se afirmar que a função social não se apresenta como meta do contrato,
mas como limite da liberdade do contratante de promover a circulação de
bens patrimoniais (art. 421 do CC/2002). Em suma, função social e função
econômica do contrato são coisas distintas. Uma não substitui nem anula a
outra. Devem coexistir harmonicamente. [...] Portanto, sempre que um
contrato cumpra sua função econômica típica (troca, crédito, garantia etc.),
não há que se questionar se ele descumpre ou excede os limites impostos por
sua função social. Não se pode prejudicar a função econômica em nome da
função social. Em outras palavras, se o ato tiver um propósito econômico,
jamais poderá ser desconsiderado em nome da função social do ato que se
examina.205
Diante dos argumentos expostos, entendemos que a solidariedade social é,
efetivamente, um valor a ser atendido, inclusive no âmbito tributário. No entanto, essa
efetivação deve ter como instrumento, de forma especial, a eleição, pelo legislador, de
hipóteses de incidência que revelem capacidade contributiva – aqui em sua acepção
objetiva – assim como através da progressividade e da seletividade em relação aos
impostos, o que viabiliza o atendimento da chamada capacidade contributiva subjetiva.
202
O contrato e sua função social, p. 95 et. seq.
Planejamento...,op. cit., p. p. 456 e ss.
204
Elisão..., op. cit., p. 192.
205
Elisão..., op. cit., p. 193-194.
203
92
Obviamente, o Poder Judiciário poderá e deverá, sempre que provocado, desconsiderar
atos e negócios jurídicos contaminados por alguma ilicitude, tendo em vista a
necessidade de coerência interna no ordenamento jurídico.
No que pertine ao nosso estudo, ou seja, o exame da regra-matriz de incidência
do ISS, a solidariedade social encontra uma aplicação importante no tema da
“descentralização fiscal” própria do federalismo. CLÁUDIO SACCHETTO ensina que
o dever de solidariedade sempre esteve ligado a atuações de entidades públicas
tipicamente estatais, ou, se locais, financiadas pelo Estado, o que pode ter ocorrido em
razão do Estado, pela função que lhe é inerente, sempre ter sido considerado como a
sede de maior garantia, ou ainda devido à exigência de um tratamento estatal igual a
todos os beneficiários da solidariedade, através de uma oferta de serviços equivalente a
todos os cidadãos. 206
Esse posicionamento, no entanto, não mais se justifica. O princípio da
subsidiariedade, inerente à descentralização resultante do federalismo, “[...] exprime
um valor e uma exigência democrática de eficiência e melhor governabilidade”, pois
“aproxima” o cidadão da entidade pública do governo, permitindo que com ele tenha
um vínculo mais estreito, acentuando a relação entre tributação e serviços públicos,
inclusive os que revelam, em seu conteúdo, um instrumento de busca da solidariedade
social. 207 Conclui o autor, com proveito: “Pode-se, então, afirmar que hoje não só não
existe incompatibilidade entre solidariedade e subsidiariedade, mas realmente
sinergia”, e que “A subsidiariedade pode ser um meio para responder ao problema da
solidariedade/eficiência”.208
A Constituição Federal de 1988 representa o fim do regime de exceção e o
prestígio aos ideais democráticos. Não é por outra razão que a Lei Maior reiterou aos
municípios sua condição de entes federativos, dotados de autonomia política,
administrativa e financeira. A intenção constitucional, seguindo a orientação dos demais
países democráticos, foi descentralizar recursos e poderes para as esferas locais, com o
objetivo de estimular o exercício da cidadania e a democracia, verdadeiros ideais
republicanos. Diante das dimensões territoriais do Brasil, os municípios brasileiros têm
um papel fundamental nesse processo, assim como em razão do aumento na demanda da
206
O Dever de solidariedade..., op. cit., p. 37. Registre-se que as expressões “estatais” e “locais”, utilizadas
por esse autor, equivalem, no contexto brasileiro, respectivamente, ao Estado – na acepção de soma de
entes federados – e aos municípios.
207
Idem.
208
Ibidem, p. 40.
93
população por serviços na área social, os quais somente podem ser atendidos de forma
mais personalizada e eficaz caso sejam prestados e fiscalizados pelos governos mais
próximos ao cidadão.
Para uma maior eficácia da descentralização, os governos municipais devem
deter o controle de suas próprias fontes de receitas, sob pena da inépcia da autonomia
que lhes é inerente, resultando em uma dependência perversa da União Federal. Isso
exige tornar eficaz o exercício das competências tributárias por parte dos Municípios,
com a implantação de uma política de tributação que busque viabilizar a criação dos
tributos autorizados pela Constituição, assim como a fiscalização e a cobrança dos
tributos municipais no atual contexto jurídico, com a utilização de todos os expedientes
aptos a evitar e desestimular a inadimplência e a evasão tributária, viabilizando, assim, a
manutenção dos serviços públicos locais em um nível de excelência.
A adoção dessas medidas também se justifica diante da crescente transferência
de responsabilidades sociais aos municípios, sem que isso represente, em todos os
casos, uma necessária contrapartida de recursos, o que, por sua vez, dificulta a
observância da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao contrário disso, a União Federal
prefere incrementar sua competência tributária mediante o aumento das contribuições
sociais, tributos não sujeitos à repartição com os Estados e Municípios.
Nesse contexto, a receita oriunda do ISS é o instrumento tributário mais
importante para a realização da autonomia financeira dos Municípios, o que se tem
intensificado devido à crescente participação, no mercado, da prestação de serviços
tributáveis pelo ISS. Um exemplo disso é a atual possibilidade de tributação dos
serviços bancários, para o que se faz necessário, apenas, sua previsão na lista de
serviços, diante da infeliz jurisprudência que a entende como taxativa.
E no contexto específico de nosso objeto de estudo – o critério espacial da
regra de incidência do ISS – a solidariedade social/fiscal exige uma reiteração da
supremacia constitucional, no que tange à observância – pela legislação de normas
gerais, que trata do ISS em âmbito nacional, e também a local, que institui efetivamente
o ISS em cada município – da materialidade desse imposto, ou seja, do conceito de
prestação de serviços encampado pela Constituição e, como conseqüência, do efetivo
local em que os serviços são prestados, pois como será analisado neste trabalho, é a lei
desse respectivo município que incidirá sobre os fatos ocorridos em seu território, assim
como é esse município quem deterá a capacidade tributária de exigir o recolhimento do
94
ISS. Ressalte-se que esse exercício de competência/capacidade é não apenas um direito,
mas um dever constitucional de cada ente federativo.
O prestador dos serviços tributáveis pelo ISS, por sua vez, tem o dever
constitucional de recolher o respectivo ISS apenas e tão-somente no município onde os
serviços forem efetivamente prestados, sob pena desse contribuinte estar promovendo
um enriquecimento ilícito de outra pessoa política, em flagrante desrespeito do Princípio
Federativo e da Autonomia Municipal. Com efeito, o Direito Tributário deve propiciar
aos municípios instrumentos jurídicos que possibilitem questionar a validade de
planejamentos tributários consubstanciados na mudança das sedes de contribuintes que,
embora estabelecidos em um município apenas para sujeitar-se à sua alíquota reduzida
do ISS, prestam seus serviços, efetivamente, em municípios diversos. JOSÉ
EDUARDO SOARES DE MELO ensina, sobre o assunto, que:
Embora o contribuinte tenha liberdade para instalar sua sede e o
estabelecimento prestador de serviços nos locais que sejam de seu exclusivo
interesse (princípio da autonomia da vontade que regra os negócios
particulares), a atividade somente poderá ficar sujeita à alíquota menos
gravosa se efetivamente possuir de modo concreto (e não apenas “caixa
postal”) um estabelecimento no Município. Um simples local que nada
possui (bens, pessoas e instalações) representará mera simulação, cujos
efeitos tributários podem ser desconsiderados.209
A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal, já em 1980, entendia o seguinte:
Imposto sobre serviços. Escritório de contato. Competência tributária. A
forma ou modalidade de atuação da empresa, por conveniência de sua
organização, por si só não poderá afastar a competência tributária do
Município, desde que caracterizada a ocorrência do fato gerador.
Interpretação razoável (súmula 400). Recurso extraordinário não
conhecido.210
Entretanto, caso a reestruturação das atividades do prestador dos serviços seja
lícita, não se poderá questioná-la, apenas porque houve uma redução da carga tributária,
já que ninguém é obrigado a escolher o caminho mais oneroso para a gestão de seus
negócios. Nem mesmo o dever moral a isso impõe. LUCIANO AMARO confirma
nossos argumentos:
Os limites da legalidade circundam, obviamente, o território em que a busca
de determinada instrumentação para negócio jurídico não chega a configurar
ilegalidade. Essa zona de atuação legítima (economia lícita de tributos)
baseia-se no pressuposto de que ninguém é obrigado, na condução de seus
209
210
Impostos federais, estaduais e municipais, p. 267.
Recurso Extraordinário nº 92.883/RS – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev.
2007.
95
negócios, a escolher os caminhos, os meios, as formas ou os instrumentos
que resultem em maior ônus fiscal, o que, repita-se, representa questão
pacífica.211
Diante do suporte doutrinário acima, concluímos, enfim, que o dever de
observar o valor constitucional da solidariedade social, seja pelo legislador nacional,
seja pelo dos municípios, cinge-se à efetiva observância do núcleo das regras-matrizes
dos tributos municipais, como estabelecido na Constituição e, em conseqüência, dos
respectivos critérios temporais e espaciais, para que se respeitem quando e onde
ocorrem os fatos tributários, tudo com o objetivo de garantir a receita tributária ao ente
legitimado para sua arrecadação. Os contribuintes, por sua vez, têm o dever de
estruturar seus negócios sempre de forma lícita, pagando os respectivos tributos sempre
em observância do Princípio da Legalidade, o qual deve, no entanto, ser invocado de
forma sistemática com o restante do ordenamento jurídico, e não de forma a mascarar
ilicitudes, o que certamente resultará em violação de outros valores constitucionais
também relevantes.
2.2.4 Princípio da Irretroatividade da Lei Tributária
Embora o título desse subitem cogite de Irretroatividade da Lei Tributária,
entende-se que esse princípio veda a aplicação retroativa gravosa para todas as “fontes
formais do Direito”, e não só da “lei”, entendida essa em seu sentido restrito, ou seja,
como resultado da atividade legislativa. A irretroatividade, assim, deve ser aplicada às
normas jurídicas em geral. As sentenças judiciais, por exemplo, apesar de serem
aplicáveis a um só caso concreto, são, por tudo, normas jurídicas, que se peculiarizam
tão-somente pela inexistência de generalidade e abstração, pelo que é inequívoco que
também a atividade jurisdicional deverá respeitar o direito adquirido e a coisa julgada,
como garante o artigo 5, XXXVI, da Constituição. Confirma a assertiva o pensamento
de MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI:
Urge erradicar o vício de se restringir o princípio da irretroatividade a uma
limitação imposta exclusivamente ao legislador. O princípio da
irretroatividade aplica-se também à totalidade das fontes de formação do
Direito, quer às decisões do Poder Judiciário, quer aos atos e decisões do
Poder Executivo. Somente assim a segurança jurídica e a proteção da
confiança, como valores elementares do Estado Democrático de Direito,
podem ser asseguradas. Ao contrário do que se supõe [...], somente assim, ou
211
Direito tributário brasileiro, p. 229-230.
96
seja, a partir do pleno respeito à segurança e à confiança, é que a igualdade e
a evolução do Direito se tornam possíveis.212
Em que pese esse dispositivo constitucional usar a palavra “lei”, a interpretação
sistemática da Constituição exige que se entenda o vocábulo de forma ampla, de forma
a compreender a lei não só em seu sentido estático, ou seja, como resultado do labor
político, mas também quando de sua atuação dinâmica, seja aplicada pelo Executivo,
seja pelo Judiciário:
A expressão lei, utilizada mo artigo 5, XXXVI, significa a inteligência da lei
em determinado momento, ou seja, certa leitura da lei, abrangendo, assim, os
atos que a ela se conformam, emanados do poder Judiciário e do Executivo.
[...] A irretroatividade é assim, do Direito e alcança, portanto, a
irretroatividade da inteligência da lei aplicada a certo caso concreto, que se
cristalizou por meio de atos administrativos e da coisa julgada. Não podem
retroagir as decisões judiciais, ainda que a título de uniformização
jurisprudencial, nem tampouco os atos administrativos.213
É nesse sentido, portanto, que a expressão “Irretroatividade da Lei Tributária”
deverá ser compreendida neste trabalho. Lei retroativa é aquela que atinge fato ocorrido
anteriormente à sua vigência, ou seja, há retroatividade quando a lei alcança fatos já
consumados anteriormente à sua entrada em vigor, imputando-lhes determinados efeitos
jurídicos. Visando impedir que tal fenômeno ocorra, em prejuízo do destinatário da
norma jurídica, a Constituição Federal dispõe, em seu artigo 5°, XXXVI, que “a lei não
prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito”; dispositivo
que estabelece o Princípio da Irretroatividade em sua formulação genérica. Esse
princípio dirige-se tanto ao legislador como ao aplicador da lei.
Esse mandamento refere-se à irretroatividade relativa porque a lei pode, em
princípio, atingir fatos anteriores à sua publicação, como nas hipóteses de leis
interpretativas – em que a interpretação pretendida pela lei somente poderá retroagir
caso sejam observados os princípios constitucionais pertinentes, com destaque para o da
Segurança Jurídica, o que torna muito reduzida a aplicação da lei interpretativa no
âmbito tributário – e/ou de leis penais mais benéficas, conforme inteligência do artigo
5º, inciso XL da Constituição, que, no âmbito tributário, são as que atenuam
penalidades ligadas ao não cumprimento de obrigações tributárias. Caso contrário, a lei
somente terá eficácia em relação aos fatos futuros. É um qualificativo inerente ao
Princípio da Legalidade: como decorrência do Princípio da Segurança Jurídica, as leis
212
A irretroatividade do direito no direito tributário. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de (org.).
Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito tributário, p. 180.
97
devem ser feitas em obediência ao Princípio da Irretroatividade. De nada adiantaria, por
exemplo, que os tributos só fossem criados ou aumentados por meio de lei, se essa
pudesse atingir livremente fatos ou situações já consumados.
Em razão da importância do assunto em matéria tributária, a Constituição
reforçou a necessidade de obediência ao princípio, em seu artigo 150, III, “a”, vedando
expressamente que a lei que crie ou aumente tributos alcance fatos ocorridos antes do
início de sua vigência. A lei que cria ou aumenta tributo nunca pode ser retroativa. Essa
regra é absoluta, pois não admite exceções, aplicando-se, portanto, também ao ISS.
O artigo 106, I, do Código Tributário Nacional, criou a figura da retroatividade
da lei tributária interpretativa, pela qual a lei tributária aplica-se a ato ou fato
pretérito, “[...] em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a
aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados”. Entende-se que tal
artigo deve ser desconsiderado, posto que a hermenêutica repudia a existência de leis
interpretativas de outras leis, mesmo porque tais leis também devem ser interpretadas. A
interpretação é função do aplicador da lei, e nunca de seu criador.
Esse é o entendimento de LUCIANO AMARO, para quem conferir ao
legislador a função de interpretar, vinculante para o Judiciário na apreciação de fatos
concretos ocorridos anteriormente, seria o mesmo que conceder àquele a atribuição de
dizer o direito aplicável aos casos concretos, tarefa conferida pela Constituição
precipuamente ao Poder Judiciário. Como conclusão, “[...] ou a lei nova dá ao preceito
interpretado o mesmo sentido que o juiz infere desse preceito, ou não; no primeiro
caso, a lei é inócua; no segundo, é inoperante, por retroativa (ou porque usurpa função
jurisdicional)”.214
2.2.5 Princípio da Anterioridade da Lei Tributária
A Constituição prevê, em seu artigo 150, III, “b” e “c”, que “[...] é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: cobrar tributos: [...] b) no
mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou
aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei
que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”. A alínea “c” foi
incluída pela Emenda Constitucional nº 42, de 19 dez. 2003, tendo em vista minorar os
213
DERZI, Mizabel de Abreu Machado. A irretroatividade..., op. cit., p. 217.
98
efeitos negativos gerados pela redação anterior, em que a Constituição somente exigia a
dilação da eficácia para o exercício seguinte, quando então as leis tributárias publicadas
nos últimos dias de dezembro já passavam a ter eficácia poucos dias após, a partir de 1º
de janeiro do exercício seguinte.
Por essa razão, a redação anterior desse artigo sempre foi criticada pela
doutrina, conforme ilustra esse pensamento de AIRES BARRETO:
Esse princípio – destinado a preservar o sobreprincípio da segurança jurídica
– em verdade não realiza inteiramente os propósitos a que destinado
porquanto. Comumente, as leis são editadas nos últimos dias de dezembro de
dado exercício, produzindo eficácia logo após, em 1º de janeiro do exercício
subseqüente. É razoável, portanto, a exegese de que o princípio exigiria, ao
menos, o cumprimento do interregno nonagesimal, por força do
entrelaçamento harmônico desse princípio com o termo inscrito no § 6º, do
artigo 195, da CF.[sic]215
O Princípio da Anterioridade, que se aplica exclusivamente em Direito
Tributário, passou a exigir, portanto, que a lei que cria ou aumenta certos tributos, ao
entrar em vigor, fica com sua eficácia paralisada no mínimo por noventa dias
(anterioridade nonagesimal); e no máximo até o início do próximo exercício financeiro,
quando só então incidirá, produzindo os seus respectivos efeitos na ordem jurídica.
O Princípio da Anterioridade refere-se, portanto, à eficácia das leis tributárias,
e não à sua vigência ou validade. Possuir vigência (estar em vigor) é ter força para
regular os comportamentos intersubjetivos, sobre os quais a norma jurídica incide; é
uma propriedade da regra jurídica que está apta para propagar efeitos, assim que
aconteçam no mundo os fatos nela descritos abstratamente. Eficácia jurídica é o
processo mediante o qual, ocorrendo o fato descrito na hipótese (antecedente) da norma
jurídica, desencadeiam-se os efeitos prescritos em seu mandamento (conseqüente).
Exemplo: quem praticar o fato “A” (antecedente ou hipótese), deverá cumprir o
mandamento “B” (conseqüente). Portanto, a lei tributária sujeita à anterioridade pode
estar em vigor, por exemplo, desde a publicação, mas sua eficácia está condicionada ao
prazo nonagesimal ou ao início do exercício financeiro seguinte, que, no Brasil,
coincide com o ano civil, ou seja, começa em 1° de janeiro e termina em 31 de
dezembro.
O Princípio da Anterioridade não deve ser confundido com o extinto princípio
da anualidade, que existiu no Brasil durante a vigência da Constituição Federal de
214
215
Direito tributário brasileiro, p. 195.
ISS…, op. cit., p. 23.
99
1946, pelo qual nenhum tributo podia ser cobrado, em cada exercício, sem prévia
autorização orçamentária anual. A palavra cobrar, constante no artigo 150, III, da
Constituição Federal de 1988, deve ser entendida no sentido de exigir. Caso contrário, o
fisco poderia usar de ardil para somente retardar a cobrança do tributo para o exercício
seguinte ou após noventa dias, tornando a disposição constitucional “letra morta”.
Assim, por exemplo, um tributo criado em junho poderia incidir sobre fatos ocorridos
em julho do mesmo ano, bastando ao fisco, para observar a anterioridade, que realizasse
a cobrança – mero ato administrativo – no exercício seguinte.216
O raciocínio acima resulta da interpretação sistematizada do inciso III do artigo
150 da Constituição, com o sobreprincípio da Segurança Jurídica, o qual visa evitar
surpresas para o contribuinte, através da criação ou aumento de tributos, durante o
exercício financeiro, ou, conforme a modificação introduzida em bom tempo pela
Emenda Constitucional nº 42/2003, antes de noventa dias. Esse princípio exige que o
contribuinte conheça com antecedência os tributos que lhe serão exigidos, para que
possa efetuar um devido planejamento de sua vida econômica. O contribuinte pode,
inclusive, esquivar-se à tributação, evitando praticar o fato tributário que o tornaria
sujeito passivo de eventual obrigação tributária. As pessoas – físicas ou jurídicas –
possuem o direito subjetivo à elisão tributária, meio lícito de evitar ou reduzir a carga
tributária.
Portanto, para a observância do Princípio da Anterioridade, não basta que o
tributo seja apenas cobrado no exercício financeiro seguinte ou após noventa dias. É
preciso que o tributo – aqui entendido como relação jurídica tributária – nasça, ou,
seja majorado, somente no exercício seguinte, ou, no mínimo, após noventa dias de sua
criação ou aumento. Como exemplo, se neste ano for instituído o imposto sobre grandes
fortunas, o fato de alguém, neste exercício, possuir “grande fortuna”, não será
considerado fato tributário daquele tributo, ainda que a cobrança ocorra somente após o
prazo da anterioridade. Somente ocorrerá a incidência – apta a tornar alguém sujeito
passivo desse novo imposto – com o fato de alguém possuir grande fortuna após aquele
prazo.
As exceções ao princípio da anterioridade estão previstas no § 1º do artigo 150,
da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 42/2003. Em
primeiro lugar, podem-se reunir as exceções comuns a ambas espécies de anterioridade,
216
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 178.
100
seja a que desloca a eficácia para o início do exercício seguinte (artigo 150, III, “b”),
seja a que a posterga para após noventa dias (artigo 150, III, “c”), as quais não se
aplicam ao empréstimo compulsório criado “para atender a despesas extraordinárias,
decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência” (148, I), aos
impostos de importação e exportação (153, I e II), ao imposto sobre operações de
crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários – conhecido como
imposto sobre operações financeiras – IOF (153, V), impostos extraordinários, podendo
ser criados na iminência ou no caso de guerra externa (154, II). Em segundo lugar, entre
os tributos não sujeitos somente à vedação do inciso III, “b” (anterioridade do exercício
seguinte), está somente o imposto sobre produtos industrializados – IPI (artigo 153, IV).
As razões dessas exceções estão no fato de que, dada a urgência das causas que
justificam a incidência, alguns tributos necessitam de maior flexibilidade e demandam
rápidas alterações, não podendo aguardar o exercício seguinte, ou os noventa dias, para
serem exigidos.
Por fim, as exceções somente à vedação do inciso III, “c” (anterioridade
nonagesimal) são o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (artigo 153,
III), e a fixação da base de cálculo do imposto sobre a propriedade de veículos
automotores (artigo 155, III) e do imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana (artigo 156, I). Quanto a essas últimas exceções, JOSÉ ROBERTO VIEIRA bem
observa que “[...] as concessões do estado arrecadador não costumam ser gratuitas”,
pois tratam justamente dos tributos cujas medidas tributárias dos últimos dias do ano
tomavam de inopino os contribuintes. Arremata o autor: “Ou seja, admitem-se algumas
mudanças, mas luta-se desesperadamente para minimizá-las ao extremo!”.217
Entretanto, andou mal o legislador constituinte, ao dispor sobre a necessidade
de observar a anterioridade do exercício seguinte no caso de empréstimo compulsório
criado para atender “investimento público de caráter urgente e de relevante interesse
nacional”, pois acaba por resultar em uma contradição, haja vista que, se o investimento
público é de caráter urgente, como poderia então ter de aguardar o início do exercício
seguinte, quando então até mesmo é possível o risco de irreversibilidade dos danos
ocorridos?
As contribuições para o financiamento da Seguridade Social, previstas no
artigo 195, incisos I, II e III, também se sujeitam à anterioridade nonagesimal, prevista
217
Uma Reforma Tributária de Gatinhos e Hienas. Revista da Academia Brasileira de Direito
Constitucional: anais do V Simpósio Nacional de Direito Constitucional, p. 44.
101
porém no § 6° deste mesmo artigo 195, o qual dispõe que “[...] só poderão ser exigidas
após decorridos 90 (noventa) dias da data da publicação da lei que as houver instituído
ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no artigo 150, III, b”.
Em relação ao ISS, não restam dúvidas de que se trata de imposto não
compreendido em quaisquer das hipóteses de exceção ao princípio da anterioridade
eficacial, seja a alusiva ao exercício seguinte, seja a que institui o prazo de noventa dias.
Disso resulta que a lei que criar ou majorar o ISS só terá eficácia, ou seja, só produzirá
efeitos, no exercício seguinte àquele em que tiver sido editada, ou ainda, após o decurso
mínimo de noventa dias, caso o exercício seguinte tenha início antes desse prazo. As
leis que extinguem ou reduzem uma isenção tributária, por possuírem os mesmos efeitos
econômicos do que uma lei que cria ou majora um tributo, também deverão observar o
princípio da anterioridade tributária. O princípio, portanto, aplica-se também nas
hipóteses de revogação ou redução de uma isenção de ISS.
Em relação à hipótese de isenção heterônoma, prevista no inciso II do § 3º do
artigo 156 da Constituição – dispositivo que autoriza a União Federal, por meio de lei
complementar, a conceder isenção de ISS no caso de exportação de serviços para o
exterior – AIRES BARRETO entende que, devido a lei complementar concessiva da
isenção não ter o poder de revogar a lei ordinária municipal criadora do ISS, mas tãosomente de paralisar-lhe a eficácia, caso seja revogada a lei complementar que
concedeu a isenção heterônoma, a lei municipal, como conseqüência, teria a sua eficácia
restabelecida de imediato, passando o ISS a incidir desde então. 218 É nesse sentido,
também, o entendimento de ROQUE ANTONIO CARRAZZA.219
PAULO DE BARROS CARVALHO, em comentário sobre a isenção
heterônoma, vedada pelo artigo 151, III, da Constituição, entende que “[...] ainda que
se tenha em conta de isenção [...], consubstancia hipótese de revogação temporária do
tributo ou dos tributos dos Estados e Municípios”. Nesses casos, o que ocorre é a “[...]
automática supressão do critério pessoal do conseqüente, no que diz respeito ao sujeito
ativo”.220 Diante da lição desse mestre, que nos parece irrefutável, entendemos que o
retorno da eficácia da lei municipal – em virtude da revogação da referida lei
complementar – estará condicionado à observância da anterioridade, pois esse é o único
raciocínio que prestigia a supremacia constitucional.
218
BARRETO, Aires Fernandino. ISS..., op. cit., p. 23.
Curso..., op. cit., p. 220-221.
220
Curso..., op. cit., p. 494 e 496.
219
102
2.2.6 Princípio da Vedação de Utilização de Tributo com Efeito de Confisco
A vedação da utilização de tributo com efeitos confiscatórios pode ser
examinada, conforme AIRES BARRETO, em dois planos. Em um primeiro, sem
qualquer quantificação, do que cabe afirmar que haverá confisco sempre que houver
violação aos princípios da liberdade de iniciativa, trabalho, ofício ou profissão, assim
como quando o Estado absorver o valor equivalente ao da propriedade imóvel, ou ainda
quando o tributo impossibilitar a exploração de atividades econômicas, o que se pode
resumir da seguinte forma: haverá confisco por afronta, isolada ou conjunta, dos incisos
XIII e XXII do artigo 5º e do artigo 170 e seu parágrafo único, todos da Constituição
Federal. Sob uma segunda perspectiva, o tema pode ser analisado como registro de
números relativos, ou, dizendo de outra forma, será confiscatório o tributo que exceder
a capacidade contributiva. Sob ambos os primas, é inequívoco que o conceito sobre a
vedação de efeito de confisco assume alto grau de indeterminação.221
Diante da verificação de que o confisco trata-se de sanção, nada mais sendo do
que absorção total ou parcial da propriedade sem indenização, seria equivocado dizer
que “é vedado o confisco”, pois se o tributo é instituto que não se constitui em sanção
de ato ilícito, a Constituição só poderia mesmo proibir que, por meio da exigência de
um tributo, chegue-se a um resultado cujo efeito seja equivalente ao confisco, mas não a
confisco propriamente dito. Como a própria Constituição, de um lado, autoriza a
tributação, e de outro, garante o direito de propriedade – ainda que vinculado à sua
função social – somente tem efeito confiscatório a tributação que ofenda à propriedade.
222
Em relação ao tema do presente trabalho, e no mesmo sentido já examinado em
relação aos princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva, a vedação
constitucional de tributo com efeito de confisco é gravemente inobservada quando um
prestador de serviço que, estabelecido em um Município, presta seus serviços em outro,
é forçado a recolher o ISS em duplicidade. Esse é, inequivocamente, um forte
argumento a exigir a observância do critério espacial da regra-matriz de incidência do
ISS, nos seus moldes constitucionais, por todos os seus destinatários.
221
Ibidem., p. 17.
103
2.3 LEI COMPLEMENTAR EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
2.3.1 Lei complementar em sentido material e formal. Problema da hierarquia
Não há, em princípio, relação de hierarquia entre as leis nacionais e as leis
editadas pelas pessoas políticas – federais, estaduais, distritais e municipais – pela razão
de que todas buscam seu fundamento de validade na própria Constituição. Somente
haverá relação de subordinação entre normas, quando uma constituir-se em fundamento
de validade da outra. É nesse sentido a advertência de JOSÉ SOUTO MAIOR
BORGES, pugnando pelo rigor lingüístico quanto ao vocábulo “hierarquia”,
imprescindível para o trato do tema da lei complementar dentro do sistema jurídico
brasileiro:
A relação de hierarquia supõe que uma norma retira a sua validade da
conformação com outra norma. Diz-se então que a primeira é uma norma
subordinada ou de grau inferior e a segunda, uma norma subordinante, ou de
grau superior. A relação entre a norma subordinante e a norma subordinada,
cuja criação é regulada pela norma subordinante, é uma relação de hierarquia,
consistente num vínculo de supra e subordinação. [...] Essas normas portanto
não guardam entre si uma relação de coordenação, mas de subordinação
hierárquica.223
A diferença entre a União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios
não está, portanto, em um nível hierárquico, mas, nas competências distintas que
receberam da própria Constituição. No campo das competências, com efeito, descabe
invocar qualquer fundamento com base no argumento da hierarquia, pois “[...] o deverser da competência é redutível apenas a uma validade normativa”.224 O critério que
preside a classificação das leis em federais, estaduais e municipais não é a hierarquia,
mas, sim, a amplitude do âmbito material de validade atribuído à cada pessoa política.
Pode-se acrescentar, conforme ensinam CLÉBER GIARDINO e HERON ARZUA, que,
além do critério material, a Constituição também adotou, em conjunto com esse, o
critério territorial (situs), o que é de supina relevância na discriminação das
competências tributárias.225 226
222
Ibidem, p. 17-19.
Lei complementar tributária, p. 15.
224
BORGES, José Souto Maior. Aspectos fundamentais da competência municipal para instituir o ISS (do
Decreto-lei n. 406/68 à LC n. 116/2003). In:.TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços
– ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 5.
225
ISS – competência municipal. Revista de Direito Tributário, n. 32, p. 219.
223
104
A coexistência, em um mesmo território, de várias ordens jurídicas, implica a
necessidade de uma sistemática que impeça os atritos entre as leis emanadas de cada
uma das pessoas políticas. A solução, para tanto, está na específica atribuição, para cada
uma das pessoas de direito público interno, de competências exclusivas, o que significa
dizer que o aspecto material das leis emanadas de cada um de seus respectivos poderes
legislativos está previamente demarcado pela Constituição, de forma a impedir que
ocorra o chamado conflito de competências.
As leis qualificadas como nacionais diferem das federais, em razão de
emanarem do Estado Federal, e não da União Federal, ainda que o Poder Legislativo, de
onde se originam tais leis, seja o mesmo. A polêmica em torno desse tema, portanto,
deve-se basicamente ao fato de que, em no sistema jurídico brasileiro, um só corpo
legislativo serve, simultaneamente, à União Federal e ao Estado Brasileiro. Como
resultado, o Congresso Nacional detém competência para legislar sobre assuntos que
terão como destinatários, também, as demais pessoas políticas, ou seja, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios. Esse raciocínio é confirmado pelo ensinamento de
HELENO TAVEIRA TÔRRES:
Por determinação constitucional, no Brasil, o Congresso Nacional exerce três
funções legislativas distintas: é i) constituinte derivado, ao discutir e votar
Emendas à Constituição, e é o legislador ordinário da União, sob duas
modalidades: ii) legislador federal, ao exercer as competências típicas da
União, na qualidade de pessoa de direito público interno, plenamente
autônoma; e iii) legislador nacional, ao dispor sobre normas gerais aplicáveis
às quatro pessoas políticas, nas matérias previstas no artigo 24, da CF, e em
outras previstas no corpo da Constituição.227
Semelhante é o entendimento de SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO,
para quem o Congresso Nacional, paralelamente às suas funções normais de órgão
legislativo da União Federal (ordem jurídica parcial), também exerce outras, que não
são do exclusivo interesse desta, como, por exemplo, a aprovação de algumas matérias
sujeitas às leis complementares e as emendas constitucionais. 228 Adverte o autor, no
entanto, que a lei complementar está a serviço da Constituição, e não da União Federal,
a qual somente “empresta” o seu órgão legislativo para a edição das leis
226
O imposto sobre serviços e o princípio da territorialidade. In:. MELLO, Celso Antonio Bandeira de
(org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito tributário, p. 143. O Distrito Federal cumula
as competências reservadas aos Estados e aos Municípios, conforme revelam, no âmbito tributário, os
artigos 147 e 155, caput, da Carta Constitucional.
227
Código Tributário Nacional: teoria da codificação, funções das leis complementares e posição hierárquica
no sistema. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 71, p. 92.
228
Curso..., op. cit., p. 98.
105
complementares, leis que se caracterizam como instrumentos constitucionais, utilizados
para integrar e fazer atuar a própria Constituição.229 A lei nacional é, assim, categoria
jurídico-positiva distinta da lei federal, sendo que a dificuldade para o estabelecimento
dessa distinção decorre da origem comum, já que ambas são leis editadas pela União.
JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, embora concorde com essa divergência,
defende que ela se deve basear na teoria kelseniana dos âmbitos de validade da norma:
a) material; b) pessoal; c) espacial; e d) temporal. Com relação aos âmbitos espaciais de
validade, são idênticos, tanto os da lei federal, como os da lei nacional, posto que ambas
vigoram em todo o território do país. Também não existe diferença no que toca aos
âmbitos temporais de validade, porque não vigora nenhum critério específico de
predeterminação de vigência da lei federal e da lei nacional. Quanto ao âmbito pessoal
de validade, a lei federal vincula-se somente à União, enquanto que a lei nacional,
embora editada pelo Congresso Nacional, tem como destinatários, além da União,
também os Estados e Municípios. Por fim, quanto ao âmbito material de validade, a lei
nacional distingue-se da lei federal porque tem por conteúdo matéria que vincula
também os Estados e os Municípios, em conjunto ou isoladamente.230
Importante ressaltar que, caso seja matéria que vincule somente os
jurisdicionados e administrados da União, não será hipótese de lei nacional, e sim
federal. Diante disso, a lei nacional e a lei federal somente seriam idênticas, entre si, se
todos os seus âmbitos de validade coincidissem, o que, como já vimos, não ocorre em
relação aos âmbitos materiais, que são sempre distintos, e também, em relação aos
âmbitos pessoais, pois os destinatários da lei nacional nunca se restringem somente aos
vinculados à União Federal.231
Registre-se
que
as
leis
nacionais
não
são,
necessariamente,
leis
complementares – ou vice-versa – ainda que, especialmente em matéria tributária, na
maior parte dos casos, coincidentemente o sejam. Da mesma forma, não é porque a lei
complementar emana do Congresso Nacional, órgão legiferante da União, que o seu
âmbito de validade estará, em todos os casos, restrito ao nível federal, ou seja, aos
assuntos que a Constituição atribuiu somente à União Federal. Ao contrário, é
instrumento legislativo que bem cumpre a disciplina dos assuntos de âmbito nacional,
pois a maior relevância desses, para o Estado brasileiro, exige uma maior
229
Ibidem, p. 99.
Lei complementar..., op. cit., p. 63 e ss.
231
Ibidem, p. 68.
230
106
representatividade popular na sua aprovação. Isso, contudo, não é argumento bastante
em si para pugnar pela superioridade hierárquica das leis complementares em relação às
leis ordinárias.
Pode-se entender o qualificativo “complementar” em um sentido amplo, lato
sensu, tido por alguns como sentido “ontológico” ou “doutrinário”, pelo qual “lei
complementar” seria toda lei que “complementa” a Constituição, sem considerar
qualquer aspecto alusivo à forma de sua aprovação, a qual exige maioria absoluta,
conforme dispõe o artigo 69 da Lei Maior. Nesse sentido, amplo, JOSÉ SOUTO
MAIOR BORGES e PAULO DE BARROS CARVALHO ensinam que todas as leis são
complementares em relação à Constituição, ao conferir eficácia a seus dispositivos e
princípios ou, com outras palavras, lei complementar é toda aquela que integra
dispositivo constitucional não auto-executável.232
No entanto, para o sentido que interessa ao presente trabalho, lei complementar
será aquela que é exigida pela interpretação sistemática da Constituição, haja ou não
previsão expressa nesse sentido, pois do contexto constitucional é possível concluir pela
exigência dessa espécie normativa para tratar de matérias que, pela interpretação literal,
não a requerem. O conceito de lei complementar que será buscado, portanto, é o
conceito jurídico-positivo, da forma como construído pelo sentido harmônico da
Constituição, ou seja, pelo regime jurídico a que é subordinada a edição das leis
complementares.
No sistema jurídico brasileiro, o regime jurídico da lei complementar abrange
não só o aspecto material – que diz respeito à matéria que, por força da Constituição,
deva ser objeto de tal disciplina – mas, também, do aspecto formal, pelo qual o processo
de elaboração da lei complementar exige a aprovação da maioria absoluta dos membros
das duas Casas do Congresso Nacional, desde que, é óbvio, o processo tenha sido
iniciado mediante projeto de lei complementar. Segundo preceitua PAULO DE
BARROS CARVALHO, os dois traços identificadores da lei complementar são: a)
matéria expressa ou implicitamente indicada na Constituição, denominado de
pressuposto material ou ontológico; e b) o quorum especial do artigo 69 da
Constituição, designado como o requisito formal. Disso resulta a afirmação de que a lei
complementar reveste-se de natureza ontológico-formal.233
232
Ibidem, p. 31.
Curso..., op. cit., p. 204-205.
233
Curso..., op. cit., p. 205.
107
O único critério jurídico válido, portanto, para distinguir uma lei complementar
de uma lei ordinária, reside no regime jurídico aplicável a cada uma das espécies
legislativas, o qual envolve tanto o processo constitucionalmente previsto para a
elaboração e aprovação legislativa, como o conteúdo material que a Carta
Constitucional exige seja veiculado por espécie legislativa. Não há consistência,
contudo, na tese daqueles que advogam ser a lei complementar distinta da lei ordinária,
face aquela veicular matérias de âmbito nacional e, esta, matérias de ordem
exclusivamente federal. A simples leitura da Constituição traz exemplos que derrubam
esse raciocínio, pois tanto há leis ordinárias da União que tratam de assuntos alusivos
somente ao seu campo de competência – como é exemplo a lei que institui o imposto de
importação – como há leis ordinárias da União que regulam matérias de inegável âmbito
nacional – como é o caso da Lei nº 8.666, de 21 jun. 1993, que “[...] estabelece normas
gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços,
inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Por outro lado, a Constituição exige a figura da lei complementar tanto para
matérias de ordem nacional, como é o exemplo do artigo 146, III, da Constituição, ao
reclamar essa espécie normativa para tratar das normas gerais de direito tributário,
aplicáveis à todas as pessoas políticas, assim como também requer a aprovação por
maioria absoluta para matérias de âmbito exclusivamente federal, como é o caso da lei
complementar necessária ao exercício da competência federal para instituição do
empréstimo compulsório, conforme estabelece o artigo 148, I e II.
Não por outra razão, HELENO TAVEIRA TÔRRES afirma que, nas atividades
típicas de legislador ordinário “federal”, o Congresso Nacional poderá tanto usar de lei
ordinária, como de lei complementar, a depender da exigência constitucional para o
respectivo exercício de competência, exigência essa que pode ser explícita ou implícita,
sendo, em ambos os casos, inafastável o cumprimento do requisito do artigo 69 da
Constituição. Todas as demais matérias poderão ser objeto de leis ordinárias.234
Depreende-se de nosso sistema jurídico que, assim como não há a possibilidade
de uma lei ordinária revogar uma lei complementar, também não há como uma lei
complementar possa revogar uma lei ordinária, o que leva à conclusão da inexistência
de superioridade formal entre tais espécies de normas. E isso ocorre basicamente por
234
Código tributário nacional..., op. cit., p. 93.
108
dois argumentos, conforme ensina JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES: a) não há
interpenetração entre os âmbitos materiais de uma e outra, em virtude da técnica
constitucional de distribuição ratione materiae de competências legislativas; e b) a
superveniência de lei complementar, em certos casos excepcionais, somente suspende
ou paralisa a eficácia da lei ordinária. Por força do princípio da competência, portanto, é
falso o problema da possibilidade de uma lei complementar ser revogada por uma lei
ordinária.235
O referido autor classificou as hipóteses de invasão inconstitucional dos
âmbitos materiais privativos, tendo como critério as diferentes conseqüências jurídicas
de cada uma: (a) invasão por lei complementar de campo reservado às leis ordinárias da
União Federal; (b) invasão por lei ordinária de campo reservado à lei complementar; (c)
invasão por lei complementar de campo reservado às leis ordinárias dos Estadosmembros e Municípios; e (d) invasão por leis ordinárias dos Estados-membros e
Municípios de campo da lei complementar.236
Na hipótese de invasão, por uma lei complementar, de campo reservado à lei
ordinária, ocorre o que a doutrina convencionou denominar de “queda de status”, pois
lei complementar que não satisfaça, de forma cumulativa, os aspectos formal – quorum
de aprovação qualificado de maioria absoluta – e material – previsão constitucional do
conteúdo da lei complementar – será simples lei ordinária com nomen juris
inapropriado, podendo, inclusive, ser revogada por tal espécie legislativa. Entretanto,
para ter existência, validade e eficácia, somente poderá tratar de assunto que esteja
reservado à competência legislativa da União Federal.237
Se, ao contrário, uma lei ordinária tratar de assunto reservado ao campo de lei
complementar, invadindo-o, estará maculada por flagrante inconstitucionalidade, uma
vez que, para tal matéria, a Constituição ali exigiu fosse a aprovação qualificada por um
quorum especial que, de acordo com o artigo 69 da Lei Maior, deverá ser o de maioria
absoluta. Nas hipóteses em que uma lei complementar invada o campo reservado às leis
ordinárias de Estados-membros e Municípios, ou de as leis ordinárias de Estadosmembros e Municípios invadirem o campo reservado à lei complementar, estar-se-á
235
Lei complementar..., op. cit., p. 25.
Idem.
237
Ibidem, p. 26-27.
236
109
diante de atos inconstitucionais do Congresso Nacional, no primeiro caso, ou das
Assembléias Legislativas e/ou Câmara de Vereadores, na segunda hipótese. 238
Salvo a hipótese da letra “a”, em que a (falsa) “lei complementar” terá sido
“aproveitada”, nas demais situações o respectivo ato será inconstitucional, não sendo
possível solucionar o problema mediante a revogação do mesmo, mas a partir daí tãosomente através de declaração de inconstitucionalidade por decisão do Supremo
Tribunal Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN, a qual possui
efeitos erga omnes – artigo 102, I, “a”, da Constituição Federal de 1988 – ou mediante
Resolução do Senado Federal que suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei
declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal – artigo
52, X, da Constituição Federal de 1988.
O problema da alegada superioridade formal da lei complementar diante das
leis ordinárias, sejam da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, dáse no plano da eficácia da lei, o que se constitui no argumento científico apto a
demonstrar a inexistência dessa pretensa hierarquia. A Ciência do Direito distingue os
planos de (I) existência, (II) validade, (III) vigência, (IV) incidência, (V) aplicação e
(VI) eficácia da lei.239
No plano da existência da lei só cabe argumentar se a lei “é” ou “não é”. A
regra jurídica, como qualquer outro fato jurídico, só existirá se for fato colhido pelo
mundo do direito. É conceito prévio aos planos da validade, vigência e eficácia, pois
uma norma só terá validade, vigor e eficácia, se existir. Após existir, a norma poderá ser
válida ou não válida (= nula ou anulável) – dependendo de sua compatibilidade ou não
com o ordenamento jurídico, tanto no aspecto formal – processo legislativo previsto na
Constituição – como no material – conteúdo conforme a Constituição.
O conceito de vigência não se confunde com o de incidência, pois a lei que já
está em vigor tem potencial para incidir, não significando, contudo, que já incida. A
incidência surge com a ocorrência do fato jurídico no mundo fenomênico, que é fato
sobre o qual incide a regra jurídica. A incidência é sempre infalível, ao contrário do
cumprimento da regra pelo destinatário (respeitabilidade). Também se distingue a
vigência da eficácia, pois uma norma pode já estar em vigor e ainda não ser eficaz, ou
seja, não comporta praticabilidade ou realizabilidade. Dizendo de outro modo, eficaz é a
norma que tem capacidade para produzir os efeitos jurídicos que lhe são próprios. Não
238
Ibidem, p. 27.
110
há que se confundir a eficácia jurídica, com a eficácia social das regras jurídicas, que é
a eficácia observada pelo efetivo atendimento da conduta prescrita pela regra jurídica,
assunto que, todavia, é pós-jurídico, a ser analisado pela sociologia jurídica.
Com efeito, a eficácia jurídica é conceito que exige a preexistência da lei,
requerendo o seu ingresso no sistema jurídico. Com base nesse raciocínio, conclui-se
que o quorum qualificado, exigido pelo artigo 69 da Constituição para a aprovação das
leis complementares, é um requisito de existência e não de eficácia da lei
complementar, posto que esta, a eficácia, “[...] pressupõe a adequação do ato
legislativo com os limites constitucionalmente postos à competência da União para
editá-la, na observância do devido processo constitucional”.240 A maioria absoluta,
portanto, é requisito constitucional de existência e validade de uma lei complementar
apenas em seu aspecto formal. A eficácia da lei complementar, desse modo, deve ser
vislumbrada em outro plano, o do seu respectivo objeto, em que a Constituição elegeu
determinadas matérias para serem positivadas mediante um processo legislativo
especial.
Também carece de fundamentação científica a tese pela qual a posição
hierárquica superior da lei complementar seria resultado de sua localização intercalar
entre as emendas constitucionais e as leis ordinárias, nos incisos I a III do artigo 59 da
Constituição. Essa afirmação, como bem defende JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES,
envolve uma inadvertida petição de princípio, ao dar como demonstrado aquilo que
deveria ter sido e não o foi, haja vista que teria que se embasar no fato de ser a lei
complementar o fundamento de validade de uma lei ordinária – federal, estadual ou
municipal. Incorreu, entretanto, em raciocínio inverso, pois parte da função
intermediária como conclusão da superioridade da lei complementar sobre a ordinária.
Acrescenta o autor, ainda, que categoria intermediária em razão da matéria, entre a
Constituição e a lei ordinária, não será superior à lei ordinária, no plano da eficácia,
“[...] dado que eficácia é mera relação entre norma e conduta e não relação entre
normas”.241
O quorum qualificado, necessário à aprovação das leis complementares, existe
como uma conseqüência jurídica de uma decisão política do legislador constituinte,
tendo por fundamento a proteção de valores reputados relevantes, mediante um processo
239
Ibidem, p. 36.
Ibidem, p. 45.
241
Ibidem, p. 47.
240
111
legislativo mais rígido que assegure maior representatividade, já que a lei complementar
tem por aspecto material questões que são de interesse nacional, ou seja, não só da
União Federal, como também dos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. A
subordinação hierárquica entre normas, no Direito, não é uma necessidade da regulação
da conduta, mas uma construção do sistema positivo, ou seja, é uma decisão que tem
origem em ato de vontade do detentor do poder político.242
Os planos da validade e da eficácia jurídicas são essencialmente distintos, do
que resulta a conclusão de que a investigação do problema da validade da norma não
interfere com a solução a ser dada para o problema de sua eficácia, o qual se põe,
quanto à lei complementar, em momento lógica e cronologicamente diverso, ou seja,
após o seu ingresso no sistema jurídico por ato do Congresso Nacional, através da forma
estabelecida no artigo 69 da Constituição. A eficácia é um atributo da norma que se
relaciona com a conduta humana – conforme ou desconforme à norma – não sendo
conceito de relação entre normas, do que resulta não ser a eficácia jurídica um conceito
suscetível de quantificação, não tendo, juridicamente, nenhum sentido defender-se que
uma norma possui mais eficácia do que outra, ou que possua uma “superioridade
eficacial” em relação à outra norma.243
A lei complementar tem por função a integração ou a contenção de eficácia das
normas constitucionais, complementando o sistema federal de governo, não podendo,
em hipótese alguma, emendar a Constituição, sob pena de violar-lhe a rigidez. Não há,
diante disso, superioridade hierárquica da lei complementar em relação à lei ordinária.
Na verdade, só há hierarquia entre normas jurídicas quando uma norma é inferior à
outra porque esta é o seu fundamento de validade, ou seja, a superior estabelece o
processo de criação e o conteúdo material da inferior. Em nosso ordenamento jurídico,
regra geral, a lei ordinária busca o seu fundamento de validade diretamente da
Constituição, e não da lei complementar.
Por fim, como bem observa JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, “É um
irremediável ilogismo reconhecer que a lei complementar somente pode explorar um
campo de competência cujo limite esbarra na área privativamente reservada à
legislação ordinária e pretender, ao mesmo tempo, identificar na lei complementar
superioridade hierárquica ou eficacial... dentro desse campo privativo”.244
242
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 207.
BORGES, José Souto Maior. Lei complementar..., op. cit., p. 51-52.
244
Ibidem, p. 57-58.
243
112
2.3.2 Lei complementar tributária
Todo estudo sobre o Direito Tributário no Brasil tem, como premissa
inafastável, o fato de o sistema constitucional brasileiro, além de extenso e complexo,
ser dos mais rígidos e exaustivos que existem. Quase toda a matéria tributária está na
Constituição, restando muito pouco para a dicção infraconstitucional, onde somente é
possível obedecer-lhe e completá-la, nas hipóteses em que a própria norma superior
assim o requerer.245 Com base nesse raciocínio, HERON ARZUA ensina:
Essa especialidade do sistema constitucional tributário, essa disciplina quase
exaustiva de toda a atividade tributária, essa verdadeira retenção do poder
tributário pleno, resulta na pouca liberdade da legislatura, jungida fortemente
às normas e aos princípios constitucionais tributários. Significa expressar que
a lei infraconstitucional não pode mexer nas previsões constitucionais, seja
para ampliar, reduzir ou alterar tais comandos.246
GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO, em comentário sobre a definição
de serviço por lei complementar, ressaltam, com acerto, que, “[...] se a Constituição é
rígida e, com extrema rigidez, fixa as competências tributárias, discernindo as áreas
exclusivas de atuação das pessoas políticas, por critério material objetivo, não pode a
lei
complementar
diminuir,
nem
ampliar
as
competências.
A
legislação
247
infraconstitucional não altera a Constituição”.
Uma das melhores fundamentações acerca dos estreitos limites da lei
complementar em matéria tributária coube a MARÇAL JUSTEN FILHO, em item
intitulado “Colocações prévias imperiosas” [sic], de sua clássica obra sobre o ISS,
onde o jurista paranaense traça interessante paralelo entre esse tema e o problema da
discricionariedade na administração pública: “Mutatis mutandis, o problema é muito
assemelhado ao ora tratado, eis que o fulcro da discussão é acerca da liberdade
juridicamente admissível na tarefa de complementar disposições normativas”.248 Como
base de seu raciocínio, o autor ampara-se no pensamento de FERNANDO SAINZ
MORENO, o qual assinala que a linguagem legislativa vale-se de conceitos jurídicos, os
quais, como qualquer outro conceito, revestem-se de uma certa indeterminação
(vaguidade):249
245
ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 144-145.
Ibidem, p. 145.
247
ISS – conflitos de competência e tributação de serviços. Revista de Direito Tributário, n. 6, p. 61.
248
O imposto sobre serviços na Constituição, p. 60-61.
249
Conceptos jurídicos, interpretación y discricionalidad administrativa, p. 364.
246
113
La indeterminación consiste em que la aplicación del concepto a su objeto se
mueve entre dos límites, uno de certeza positiva que marca la idea nuclear del
concepto (aquello a lo que con seguridad puede aplicarse), y otro de certeza
negativa (aquello a lo que con seguridad no puede aplicarse), existiendo entre
ambos límites una zona de duda (hal del cencepto)... La idea nuclear en que
todo concepto consiste, al proyectarse sobre los objetos, deja una zona en
penumbra entre el ámbito de realidad propeio de ese concepto y el ámbito
que corresponde a otros conceptos.250
Existem, de fato, conceitos de maior determinação do que outros, tendo em
vista ser menor o âmbito de penumbra que pode ocorrer no seu cotejo com a realidade.
Entretanto, quando uma norma, por utilizar um conceito jurídico (mais) indeterminado,
remete a uma segunda norma a tarefa de tornar mais determinado esse conceito, isso
não confere qualquer parcela de liberdade à norma interpretante, mesmo nas zonas de
maior obscuridade. Defender o contrário seria admitir uma faculdade de interpretação
desvinculada dos limites da norma interpretada ou complementada, em ofensa ao
princípio da legalidade e da hierarquia superior das normas constitucionais.
Deve-se, para descobrir o sentido da norma, aplicar os mesmos princípios e
limites existentes em relação à interpretação dos conceitos jurídicos mais
indeterminados. A presunção de validade da determinação contida na norma inferior
será sempre relativa, afastável toda vez que restar configurada a incompatibilidade
lógica com a vontade extraível não só da norma superior, mas também de todo o
sistema.251 Esse raciocínio, aplicado às normas complementares do Sistema
Constitucional Tributário, leva à inevitável conclusão da inexistência de qualquer
liberdade para o legislador complementar, a qual desvirtuaria a exaustiva normatização
da matéria tributária em nível constitucional. A norma complementar, assim, tem por
objeto apenas e tão somente tornar mais determinado o conceito jurídico utilizado pelas
normas constitucionais, afastada qualquer possibilidade de inovação. Conclui
MARÇAL JUSTEN FILHO:
É postulado imperioso o de a lei complementar não poder incidir sobre os
campos de certeza (positiva ou negativa) do conceito jurídico constitucional.
Não poderá afastar do âmbito de incidência desse aquilo sobre o que
certamente incide, nem poderá pretender fazê-lo incidir sobre aquilo que
certamente não incide. Seu campo próprio será o da chamada zona grísea –
aquele campo sobre o qual é duvidoso que a norma constitucional incida.252
250
Apud JUSTEN FILHO, Marçal. ibidem, p. 61.
Ibidem p. 61-62.
252
Ibidem, p. 62-63.
251
114
Nessa esteira, depreende-se ser inequívoco que a atribuição expressa das
competências da lei complementar de normas gerais, de que trata o artigo 146, da
Constituição Federal, abrangendo todas as matérias veiculadas nos seus incisos I, II e
III, não autoriza o uso discricionário nas hipóteses em que a Constituição consignou
normas cujo conceito é certo e determinado. HERON ARZUA pontua que, ainda no
campo da prevenção de conflitos de competência tributária (artigo 146, I), campo por
excelência da lei integrativa, a liberdade da lei complementar é relativa, “[...] visto já
nascer a competência tributária com suas fronteiras marcadas pela própria
Constituição”.253
JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES lembra que a doutrina invariavelmente
sustenta estar a lei complementar em uma posição intermediária ou intercalar entre a
Constituição e a lei ordinária, como resultado de uma sua pretensa superioridade
hierárquica, conforme já foi refutado em item anterior. Ainda que se discorde dessa
posição doutrinária, há que se observar que prevalece o entendimento pelo qual a
vigência e a eficácia da lei complementar, em especial em matéria tributária – como são
exemplos as normas gerais de direito tributário – não podem ficar condicionadas à sua
observância pelas leis dos Estados e Municípios, os quais não podem, por simples
omissão, desobedecer tais normas e, com isso, manter a existência de conflitos de
competência tributária.254
O que efetivamente ocorre é que “[...] a superveniência de lei complementar
sobre normas gerais de direito tributário paralisa ou suspende a eficácia da lei
tributária estadual e municipal”, provocando um “vácuo” que só poderá ser
preenchido pela legislação competente, ou seja, a própria legislação estadual ou
municipal.255 Não podem os Estados e Municípios incorporar as normas gerais previstas
em lei complementar através de decreto, sob pena de violação ao Princípio da
Legalidade. Enquanto isso não ocorrer, o tributo não poderá ser exigido. Não é
logicamente possível, portanto, defender que a lei complementar possua eficácia plena,
e, simultaneamente, conferir-lhe a função de ato legislativo intercalar.256
O referido autor comenta que uma parcela da doutrina aceita, como se fosse
uma obviedade inatacável e prescindível de fundamentação, a tese de que a lei
complementar ocupa uma “posição hierárquica supraordenada”, do que resultaria uma
253
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 145-146
Lei complementar..., op. cit., p. 59.
255
Ibidem, p. 60.
254
115
pretensa “superioridade eficacial” desse ato legislativo com relação à lei ordinária. Diz
o autor que essa posição doutrinária estuda a lei complementar como se a mesma fosse
uma “categoria legislativa unitária”, ou seja, “[...] como se todas as leis
complementares previstas na Constituição estivessem submetidas a idêntico regime
jurídico-material”.257 O regime jurídico-formal da lei complementar é o que decorre da
exigência constitucional, prevista no artigo 69 da Lei Maior, de aprovação por maioria
absoluta, enquanto que o regime jurídico-material dessa espécie legislativa diz
respeito, como o próprio nome acusa, às matérias para as quais a Constituição reservou
a forma da lei complementar. As razões para a defesa dessa equivocada posição
doutrinária residem na inquestionada certeza de que a lei complementar seja sempre o
fundamento de validade das leis ordinárias federais, estaduais e municipais, conclusão
que, muitas vezes, resulta da sua localização intercalar entre as emendas constitucionais
e as leis ordinárias, conforme está disposto no artigo 59 da Constituição.
Em uma análise jurídica mais detida, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES
demonstra que nem sempre isso ocorre. A análise de que fala o autor resultou na
classificação das leis complementares em dois grupos básicos: 1º) leis complementares
que fundamentam a validade de atos normativos (leis ordinárias, decretos legislativos e
convênios); e 2º) leis complementares que não fundamentam a validade de outros atos
normativos.258 A conclusão a que se chega através dessa classificação é que, ratione
materiae, a lei complementar não constitui uma categoria legislativa unitária, ainda que
seja disciplinada de modo uniforme pela Constituição. O autor lembra ainda, com
acerto, que a isonomia das pessoas políticas é reforçada pelo fato de a lei complementar
poder fundamentar a validade não só das leis estaduais e municipais, mas também das
federais.259
Sem contrapor a excelente classificação feita pelo referido autor, SACHA
CALMON NAVARRO COÊLHO, sob outro prisma, oferece contribuição de vulto em
sua classificação das formas de atuação das leis complementares em matéria tributária,
as quais podem, na visão desse renomado autor:
256
Ibidem, p. 60-61.
Ibidem, p. 80.
258
A classificação do autor, feita com base na Constituição Federal de 1969, não prejudica a nossa
teorização, em razão não só da similitude do regime jurídico anterior com o atual, assim como da
extensão das comparações realizadas.
259
Lei complementar..., op. cit., p. 82-84.
257
116
a) integrar dispositivos constitucionais de eficácia limitada, atribuindo-lhes
normatividade integral: é o caso das imunidades previstas no artigo 150,
VI, “c”, cuja eficácia depende da observância dos requisitos previstos em
lei que, a teor do artigo 146, II, da Constituição, só pode ser a
complementar, por tratar-se de regulamentação de “limitação constitucional
ao poder de tributar”;
b) complementar
dispositivos
constitucionais
de
eficácia
contida,
definindo-lhes o alcance: como é exemplo o dispositivo prescrito no artigo
155, § 2º, X, “a”, na redação anterior à Emenda Constitucional nº 42/2003,
pelo qual as exportações de produtos industrializados eram imunes ao
ICMS, com exceção dos semi-elaborados a serem definidos em lei
complementar que, enquanto não editada, tornou a exceção sem efeito;
c) atuar diretamente: aqui cabe citar o exemplo da lei complementar exigida
pelo artigo 148 da Constituição, para instituição dos empréstimos
compulsórios nos casos definidos nos incisos I e II, ou, ainda, a que trata o
artigo 146, I, para dispor sobre conflitos de competência em matéria
tributária.260
2.3.3 Conteúdo das normas gerais de Direito Tributário
Em excelente artigo, publicado em 1969, GERALDO ATALIBA, comentando
sobre o tema das normas gerais de Direito Tributário, reflete com argúcia sobre o
Sistema Tributário Nacional, dando legítimo relevo ao papel dos princípios
constitucionais que informam e condicionam o seu adequado funcionamento. Partindo
dessas sólidas premissas, o autor entende, raciocinando por exclusão, que “[...] outra
função não podem ter as normas gerais senão completar a Constituição onde e quando
seja previsível – ou efetivamente venha a ocorrer – conflito entre as pessoas
tributantes”.261
O autor fundamenta que seria ilógico e absurdo que a Constituição houvesse
concedido aos Estados e Municípios autonomia, tributos privativos e ampla
competência na sua instituição e regulamentação e, simultaneamente, tivesse conferido
260
261
Curso..., op. cit., p. 100-101.
Normas gerais de direito financeiro e tributário e autonomia dos Estados e Municípios. Revista de
Direito Público, n. 10, p. 47-48.
117
ao Congresso Nacional poderes para que pudesse limitar, de forma arbitrária, aquelas
faculdades e competências. Acrescenta que “[...] sem a rigorosa visão de conjunto
desse complexo, o aplicador da legislação tributária é levado à perplexidade, quando
não às erronias mais deploráveis”.262
O raciocínio de GERALDO ATALIBA deu-se em relação ao texto da
Constituição Federal de 1967, alterado pela Emenda n 1, de 17 out. 1969. Em que pese
a concordância com suas conclusões, naquele contexto, o texto da atual Constituição,
por apresentar alterações que reputamos relevantes, merece uma nova leitura, mais
consentânea com a nova redação inequivocamente desejada pelo legislador constituinte.
É óbvio que tais dispositivos devem ter a sua interpretação vinculada aos valores
revelados pelos princípios constitucionais, posto que a adoção de sua análise em si
mesma implicaria admitir a aceitação tão-somente da interpretação literal, o que, desde
logo, refutamos veementemente, uma vez que, conforme já defendemos no início desse
trabalho, a única interpretação válida, para nós, é aquela que desemboca no contexto
sistemático da Constituição.
Preliminarmente à análise do artigo 146 da Carta Constitucional, é relevante
tecer alguns comentários sobre o artigo 24 da Constituição de 1988. A parte que
interessa ao trabalho dispõe o seguinte:
Artigo 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre: I - direito tributário...; § 1º - No âmbito da
legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer
normas gerais. § 2º - A competência da União para legislar sobre normas
gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º - Inexistindo
lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência
legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º - A superveniência
de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que
lhe for contrário. (grifamos)
A disposição do caput, pela qual a União, os Estados e o Distrito Federal
legislam concorrentemente sobre direito tributário, se interpretada literalmente, pode
levar a um resultado falso, pois as pessoas políticas, em matéria tributária, concorrem
em campos distintos. A previsão do § 1º tem, por objetivo, impedir que as normas gerais
editadas pela União tenham por destinatários somente uma classe de pessoa política, ou
seja, que atinjam ou só os Municípios, ou só os Estados. Conclui-se que, para serem
qualificadas como normas gerais, deverão ser aplicáveis a todas as pessoas políticas,
incluindo a própria União. O § 2º e o § 3º tratam das hipóteses em que a União quede
262
Ibidem, p. 48.
118
inerte em sua competência para a edição de determinada norma qualificada como geral,
o que transfere aos Estados a aptidão para exercerem a chamada competência
suplementar.
Conclui-se que, do exercício dessa competência (§ 3º), só poderão resultar
normas aplicáveis ao próprio Estado, posto ser pacífico que um Estado não pode editar
norma aplicável à União ou mesmo aos Municípios, diante da autonomia inerente à cada
pessoa política.263 O § 4º é claro ao dispor que, se após a criação de norma suplementar
estadual, sobrevier norma geral editada pela União, a norma estadual, automaticamente,
terá sua eficácia suspensa, naquilo que conflitar com a lei nacional. Por sua vez, o artigo
146 e incisos da Constituição estabelecem caber à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,
especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos
impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores,
bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas
sociedades cooperativas;
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e
para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou
simplificados no caso do imposto previsto no artigo 155, II, das contribuições
previstas no artigo 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o
artigo 239.
Na Constituição de 1967, o artigo 18, § 1, tratava da competência da lei
complementar de forma semelhante ao que dispõe o artigo 146 da atual Carta, acima
transcrito, mas com a diferença de que não discriminava qual era o conteúdo específico
a ser legislado pelas normas gerais, como fez o atual inciso III, nas letras “a”, “b”, “c”,
assim como a letra “d”, recentemente incluída pela Emenda Constitucional n 42/2003.
Da análise, à época, sobre o real alcance e função desse dispositivo, resultaram duas
correntes doutrinárias de opiniões divergentes, as quais estiveram, desde então, sempre
presentes nos debates acadêmicos.
Uma primeira corrente foi designada tricotômica, também conhecida por
“trialismo”, por entender que o dispositivo em exame estabeleceria três funções
distintas para a lei complementar, conforme ilustra o pensamento, à época, de IVES
263
ATALIBA, Geraldo. Lei complementar em matéria tributária. Revista de Direito Tributário, n. 48, p.
86-87.
119
GANDRA DA SILVA MARTINS, e que, nitidamente, prestigia o sentido literal do
texto:
Reza o 1º do artigo 18 da Constituição Federal que ‘Lei complementar
estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre conflitos de
competência dessa matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder de tributar’,
definindo bem o campo da atuação da lei complementar, ou seja, com tríplice
função, sempre de esclarecimento [...].264
A interpretação levada a cabo por essa corrente, se transplantada para o atual
artigo 146, resulta na errônea conclusão de que as únicas matérias a serem tratadas por
normas gerais de direito tributário são as que estão previstas nas alíneas do inciso III do
artigo 146, quando na verdade todo o artigo 146, incluindo também os incisos I e II,
dispõe sobre matérias de inegável caráter geral. Outra conseqüência do “trialismo”
reside no entendimento de que a lei de normas gerais poderia definir a hipótese de
incidência do tributo, o que se revela no mínimo temerário, pois a estruturação
definitiva do tributo, dentro da qual está a definição do antecedente, é tarefa
inequivocamente destinada à lei tributária material editada pela pessoa política
competente para instituir cada tributo. Pelo posicionamento mais restrito ao teor literal,
tal corrente passou a ser chamada de “[...] escola bem comportada do Direito
Tributário brasileiro”.265
Uma segunda corrente, chamada de dicotômica, ou “dualismo”, capitaneada
por GERALDO ATALIBA, criticou a anterior, por entender que a mesma estaria
privilegiando uma interpretação meramente literal, a qual possibilitaria ao legislador da
União, diante da não delimitação das normas gerais de direito tributário, ofender o pacto
federativo e a autonomia municipal, por meio de leis complementares que invadissem as
competências reservadas às demais pessoas políticas. Por defender que o dispositivo em
análise teria apenas a finalidade de veicular normas gerais de direito tributário, as quais
somente poderiam (i) ou dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária, ou
(ii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar. 266
Os seus defensores – GERALDO ATALIBA267, JOSÉ SOUTO MAIOR
BORGES268,
PAULO
DE
BARROS
CARVALHO269,
ROQUE
ANTONIO
264
Imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.).
Tributos municipais – ISS, IPTU e contribuição de melhoria, p. 7.
265
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 198.
266
Apud TORRÊS, Heleno Taveira. Código tributário nacional..., op. cit., p. 95-96.
267
Normas gerais..., op. cit., p. 70.
120
CARRAZZA270, entre outros – defendem, para a lei complementar de normas gerais de
direito tributário, uma função meramente declaratória do conteúdo constitucional, pois,
devido às competências tributárias já possuírem seus limites rigorosamente demarcados
no próprio texto constitucional, assim como não se admite que os direitos e garantias
individuais do contribuinte – “limitações constitucionais ao poder de tributar” – possam
sofrer restrições em nível infraconstitucional, muito pouco ou nenhum espaço sobraria
para ser regulado pelas normas gerais de direito tributário.
Durante muito tempo a doutrina dividiu-se entre as duas posições. Diante do
exame conjunto das mesmas, a corrente dicotômica, inegavelmente, representa um
raciocínio mais coerente e sistêmico sobre o tema, em face do ordenamento jurídico, em
especial quanto à crítica da literalidade presente na corrente tricotômica e seus efeitos
potencialmente violadores dos princípios federativo e da autonomia municipal. Todavia,
e com o devido respeito, entende-se que disso não resulta o total acerto de suas
conclusões.
Mais recentemente, parte da doutrina parece defender um terceiro
posicionamento, contrário à redução do papel das normas gerais às duas funções
propostas pelos “dualistas” – dispor sobre conflitos em matéria tributária e regular as
limitações constitucionais ao poder de tributar – pois esse raciocínio poderia remeter a
um resultado interpretativo cujo espectro é inferior ao que seria efetivamente possível
para essa espécie de normas no atual Sistema Tributário Nacional.
HELENO TAVEIRA TÔRRES teceu relevantes reflexões nesse sentido. Esse
jurista, com base nas teorias da codificação, ao invés de reduzir as funções das normas
gerais a somente duas, prefere explicitar as possibilidades da aludida lei complementar,
no que tange às funções representadas em cada uma das hipóteses do artigo 146 da
Constituição. Na visão desse autor, caberia, portanto, à lei complementar de normas
gerais de direito tributário:
i) regular limitações constitucionais ao poder de tributar; detidamente àquelas
que exigem lei específica para surtir seus efeitos; ii) evitar conflitos de
competência entre as pessoas tributantes, ao dispor sobre fatos geradores,
bases de cálculo e contribuintes dos impostos já identificados na
Constituição; iii) definir os tributos e suas espécies; iv) harmonizar os
procedimentos de cobrança e fiscalização dos tributos, tratando de obrigação,
lançamento e crédito; e v) uniformizar prazos de decadência e prescrição; vi)
268
Lei complementar..., op. cit., p. 198.
Curso..., op. cit., p. 197-202.
270
Curso..., op. cit., p. 805-806.
269
121
fomentar, de modo harmonizado, adequado tratamento tributário ao ato
cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.271
O autor também defende que todas essas funções devem ser exercidas tendo
em vista a observância aos princípios maiores estabelecidos na Constituição, sendo
vedada qualquer possibilidade de que normas gerais tratem de assunto reservado ou já
previsto de forma satisfatória na própria Lei Maior. Acrescenta-se, em razão do advento
da Emenda Constitucional n 42/2003, a competência para a lei complementar
estabelecer normas gerais visando definir tratamento diferenciado e favorecido para as
microempresas e empresas de pequeno porte, conforme inclusão da letra “d” no inciso
III do artigo 146.
Outra renomada jurista, MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, vê uma
necessidade de padronização das várias ordens jurídicas tributárias existentes, em
virtude de uma política econômica de âmbito nacional: “O Estado intervencionista e
planificador, que visa a controlar e possibilitar um planejamento econômico e
financeiro nacional, teve que adotar determinados instrumentos que pudessem
estabelecer diretrizes para a produção das ordens jurídicas parciais federal, estadual e
municipal”.272
Para a autora, o que a Constituição quer é evitar que cada legislativo municipal
e/ou estadual, ao instituir seus próprios tributos, imprima uma interpretação em
desarmonia com o texto constitucional. Entretanto, esclarece que, não obstante seu
posicionamento, não pode a União Federal, quando do exercício de sua competência
para editar normas gerais, impor às demais pessoas políticas uma interpretação das
exigências constitucionais que não se coadune com o ordenamento jurídico como um
todo, em especial com os princípios constitucionais. Nesse caso, ainda que houvesse, na
lei tributária de todas as pessoas políticas, um mesmo vetor interpretativo oriundo da lei
complementar, todas estariam em conflito com a Lei Maior.
É inegável que esse posicionamento representa uma contribuição científica
relevante, em especial pela intenção de proceder a uma análise contextual do tema das
normas gerais, não se reduzindo, como fez a teria tricotômica, a aceitar o que
literalmente está disposto na Constituição. Entende-se, entretanto, que a única função
das normas gerais em matéria tributária compatível com o contexto constitucional é a de
271
272
Código tributário nacional..., op. cit., 96-97.
Apud BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, p. 42.
122
regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e, dentre estas, somente as que
não possuam eficácia plena e aplicabilidade imediata.
Partindo dessa premissa, conclui-se que, visualizar como funções das normas
gerais todas as hipóteses representadas nos incisos I, II e III, do artigo 146 da
Constituição, resulta em considerar como função algo que na verdade é apenas e tãosomente uma explicitação constitucional do caminho a ser seguido pela lei
complementar de normas gerais, quando estiver cumprindo sua única função permitida,
ou seja, quando estiver regulamentando aquelas limitações constitucionais ao poder de
tributar que exigem essa forma de integração.
Toda a discussão sobre o Direito Tributário que está na Constituição e aquele
que pode estar na legislação complementar resume-se a somente dois aspectos. Um
primeiro trata da repartição das competências tributárias, efetivada pela Constituição, ou
seja, preliminarmente, há que se saber quais são as materialidades que cada uma das
pessoas políticas recebeu como passíveis de serem oneradas mediante a instituição do
tributo, tarefa designada de exercício da competência e que, pelo pacto federativo e pela
autonomia dos Municípios, cabe tão-somente à lei ordinária da respectiva pessoa
política.
Um segundo envolve o conhecimento preciso de quais são os limites a serem
observados quando do exercício dessa competência. Dentre esses limites, estão: a) a
materialidade reservada à competência alheia; b) a observância dos princípios
constitucionais tributários; e c) as hipóteses de não-incidência constitucionalmente
qualificadas, ou seja, as imunidades tributárias. Em síntese, seja qual for a limitação, ela
é denominada de “limitação constitucional ao poder de tributar”.
Então, quando o artigo 146, I, da Constituição Federal, dispõe que cabe à lei
complementar dispor sobre conflitos de competência, ou ainda quando o inciso III, “a”,
do artigo 146, outorga competência ao legislador complementar para definir tributos e
suas espécies, bem como os fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos
impostos, quaisquer dessas leis, se editadas, estarão regulando uma espécie do gênero
“limitação constitucional ao poder de tributar”, ou seja, a limitação da materialidade
reservada à competência alheia. Por outro lado, as letras “b”, “c” e “d”, do inciso III, do
mesmo artigo 146, outro objetivo não podem ter senão o de remeter à lei complementar
a disciplina dos princípios constitucionais tributários, uma outra espécie do gênero
“limitação constitucional ao poder de tributar”, aumentando a concretude daqueles no
âmbito infraconstitucional.
123
Nessa trilha é a posição mais recente de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES273,
para quem a discussão entre o “dualismo” e o “trialismo” é um “[...] diálogo de
surdos, no qual só a divergência de opiniões se move”. As conclusões das duas
correntes, diz o autor, “[...] ficaram no meio do caminho porque rendem espaço a uma
construção doutrinária unificadora, que por isso mesmo as suplanta...”.274 Para o autor,
as três funções da lei complementar do artigo 146 da Constituição (linguagem-objeto)
podem ser reduzidas, na metalinguagem doutrinária, à função de dispor sobre as
limitações constitucionais ao poder de tributar, sendo que a mais eminente delas, sem
nenhuma violação ao espírito da Constituição, é a legalidade tributária.
Para o citado autor, “[...] na ordem da sua importância axiológica, as questões
de limites primam sobre as demais”. Como síntese, as três funções das normas gerais
seriam redutíveis a uma: “[...] dispor a norma geral sobre a legalidade tributária das
pessoas constitucionais”, teoria unificadora que não acarreta nenhuma redução no
âmbito de validade do artigo 146, III, da Constituição. Ao que nos parece, essa foi a
melhor análise do tema das normas gerais até o momento.275
Outro argumento relevante, ainda que político, não jurídico, reside no notório
uso abusivo, pela União Federal, de sua competência de editar normas gerais, o que
confirma HERON ARZUA, para quem “[...] a União não é confiável em matéria de
tributação”.276 Comentando a afirmação desse autor, a Professora LUCIA VALLE
FIGUEIREDO afirma: “Esta é uma frase lapidar, é uma frase que deveria encimar
qualquer consideração sob o ponto de vista da tributação. A União não é confiável.
Além do que as estatísticas também não são confiáveis”.277
A lei de normas gerais é, nas palavras de RAUL MACHADO HORTA, “[...]
normas não exaustivas”. Ensina esse autor que “[...] a lei de normas gerais deve ser
uma lei quadro, uma moldura legislativa”.278 MISABEL DE ABREU MACHADO
DERZI transfere essa definição para a seara tributária: “Lei quadro, lei moldura, lei de
princípios, a lei de normas gerais de Direito Tributário emana da União por meio de
273
Em sua obra Lei complementar tributária, p. 198, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES ainda defendia os
mesmos argumentos da corrente dicotômica.
274
Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 19.
275
Ibidem, p. 24 e ss.
276
IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário: mesa de debates – temas gerais. Revista de Direito
Tributário, n. 67, p. 163.
277
IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário: mesa de debates – temas gerais. Revista de Direito
Tributário, n. 67, p. 165.
278
Apud BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário..., op. cit., p. 41.
124
lei complementar e pertence àquela ordem jurídica no Estado Federal”.279
Discordamos dessa autora, no entanto, quando ela defende serem as leis de normas
gerais hierarquicamente superiores às ordens jurídicas parciais da própria União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pois como já se demonstrou acima, há,
na verdade, tão-somente um campo de competência diverso entre tais leis, não havendo
como identificar conflito de hierarquia uma vez que possuem aspecto material diverso
conforme traçado na Constituição.280
É óbvio que a Constituição, com supedâneo nos princípios do Federalismo e da
Autonomia Municipal, impõe rigorosos limites à União Federal, quando estiver
legislando sobre esse tema, uma vez que tal competência não poderá, em hipótese
alguma, servir de pretexto para que sejam menoscabadas a autonomia e a igualdade
existente entre as pessoas políticas internas. É de rigor, portanto, que as leis nacionais
tributárias, destinadas ao legislativo dos demais entes políticos – verdadeiras normas
sobre normas – não inovem além do que já dispõe a própria Constituição Federal,
servindo tão-somente para facilitar, explicitar, a aplicação dos cânones constitucionais.
É que determinados vocábulos e expressões constantes do texto constitucional
são, por vezes, dotados de vagueza (textura aberta), o que os tornam “conceitos até certo
ponto indeterminados”, situados em campo qualificado semanticamente como zonas
cinzentas, oferecendo mais de uma possibilidade significativa. Entretanto, é preciso
ressaltar que na própria Constituição estão positivados os valores ideológicos que
permitem e impõem um devido direcionamento interpretativo, possibilitando efetuar
uma contextualização que acaba por afastar os significados que se revelem em
dissonância com o sistema jurídico em geral. O principal papel da lei complementar em
matéria tributária – em especial quando dispõe sobre conflitos de competência – é,
portanto, afastar a indeterminação dos conceitos existentes na Lei Maior, não se
podendo constituir em instrumento de inovação jurídica nascida da vontade exclusiva da
pessoa política central, já que sua utilização não é fruto de decisão do Poder Legislativo,
mas sim de previsão constitucional expressa.281
Como já se demonstrou acima, a previsão quanto à competência da União
Federal para instituição, mediante lei complementar, de normas gerais em matéria
279
Idem.
Idem.
281
Diz-se principal, pois a Constituição reserva outras funções à lei complementar, destinadas a tratar de
assuntos de competência exclusiva da União Federal, como é o caso, por exemplo, da criação dos
empréstimos compulsórios (artigo 148) e do imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, VII).
280
125
tributária, conforme dispõe o artigo 24, I, da Constituição, está situada no âmbito da
legislação concorrente. A criação dessas normas gerais não pode substituir o exercício
da competência legislativa própria dos Estados e Municípios, pois o artigo 150, I, da
Constituição Federal, que dispõe sobre o Princípio da Estrita Legalidade Tributária,
assim como o artigo 97 do Código Tributário Nacional, que o regulamenta, fazem
referência à exigência de lei da pessoa competente – federal, estadual ou municipal –
para a instituição do tributo, não sendo suficiente, para tanto, nem a previsão
constitucional, nem a edição da lei complementar federal criadora das normas gerais. 282
Pode-se dizer que os limites da União Federal na edição de normas gerais
encontram-se na própria autonomia dos entes políticos internos. Embora a prevenção de
conflitos de competência, no Direito Tributário, seja assunto de extrema importância, a
padronização levada a efeito pelo legislador complementar resultará em dúvidas para o
intérprete quanto à sua extensão.283 Nesse sentido, o ensinamento de MISABEL
DERZI: “O federalismo integrativo, já por si centralizador, não pode sufocar, de forma
nenhuma, a autonomia e a descentralização, enfim, a dissimetria a que se refere Pontes
de Miranda, sob pena de converter-se o país em verdadeira unidade política”.284
Verifica-se ainda, do próprio texto constitucional, que as normas que atribuem
competência tributária às pessoas políticas têm eficácia imediata, servindo de
fundamento de validade direto e originário para o legislador ordinário, quando da
instituição do tributo. Diante disso, se não existir lei complementar editada com base
nos incisos I, II ou III, do artigo 146 da Constituição, ou seja, não havendo norma geral
que disponha sobre conflitos de competência tributária, que regulamente as “limitações
constitucionais ao poder de tributar”, ou que defina os tributos, suas espécies e, quanto
aos impostos, suas hipóteses de incidência e suas bases de cálculo, ainda assim as
pessoas políticas poderão instituir seus tributos, tomando como diretrizes, diretamente,
os artigos da Constituição.
A própria Constituição é quem diz, conforme se infere do seu artigo 24, § 3º,
que “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência
legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”, assim como o § 4º do mesmo
artigo complementa prescrevendo que “A superveniência de lei federal sobre normas
gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”. Como se não
282
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário..., op. cit., p. 41.
Ibidem, p. 43.
284
Idem.
283
126
bastasse, o artigo 34, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
estabelece que “Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário
nacional nela previsto”. Conclui-se que, desde que observados os princípios
constitucionais tributários e as normas gerais eventualmente já editadas, é suficiente a
lei ordinária da pessoa política competente para a efetiva criação do tributo, com
exceção das hipóteses taxativas de instituição de determinados tributos federais por lei
complementar, como os empréstimos compulsórios (artigo 148) e os tributos da
competência residual, sejam impostos (artigo 154, I) ou contribuições para a Seguridade
Social (195, § 4º).
Entretanto, ainda que existente lei complementar de normas gerais em matéria
tributária, nos termos do artigo 146 da Constituição, seu caráter será sempre meramente
declaratório, como ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA, autor que, com
propriedade, defende que os possíveis conflitos de competência em matéria tributária já
estão resolvidos na própria Constituição, o que os torna conflitos aparentes, pois não são
oriundos do texto constitucional, mas sim dos erros de interpretação, eventualmente
constantes das leis das pessoas políticas. Da mesma forma, as “limitações ao poder de
tributar” já estão todas delineadas na Carta Constitucional, não sendo possível ao
legislador infraconstitucional, como o complementar, pretender inovar esse campo, mas
tão-somente possuem o poder e o dever de reafirmá-las. O autor acrescenta que “[...] ou
a lei complementar veiculadora de ‘normas gerais em matéria de legislação tributária’
limita-se a declarar a Constituição, nas matérias a que está autorizada, ou a afronta, e,
neste caso, há que ser afastada, em última análise, pelo Poder Judiciário”, e que “[...]
só o Judiciário, em nosso Direito, é competente para declarar, quando provocado, a
vontade constitucional, definitivamente e com força de coisa julgada”.285 Conclui
lembrando o seguinte:
Aliás, as normas gerais em matéria de legislação tributária, em rigor, não
obrigam nem ao Poder Legislativo (que busca suas competências diretamente
na Constituição), nem ao Poder Executivo (que, com maior ou menor grau de
liberdade, cumpre as determinações válidas do Legislativo), nem, tampouco,
ao Poder Judiciário, que – convém sublinhemos – abdica de sua majestade
sempre que, comodamente endentado na entrosagem das leis complementares
que as veiculam, não as submete ao indispensável crivo da
constitucionalidade, mas, rendendo-lhes homenagens, manda simplesmente
... que se cumpram.286
285
286
Curso..., op. cit., p. 821.
Ibidem, p. 822.
127
Em artigo sobre a lei complementar tributária, GERALDO ATALIBA põe a nu
as inconsistências dos argumentos contrários à corrente dicotômica. Em um primeiro
comentário, sobre o inciso I do artigo 146, que remete à lei complementar dispor sobre
conflitos de competência, o autor defende, com lógica, que o dispositivo, em rigor, seria
desnecessário, pois no aspecto eminentemente jurídico da Constituição, não há a
possibilidade de conflitos de competência. É lógico que, no plano fático, não só as
normas que outorgam competências, mas toda a Constituição pode ser violada. Mas
isso, porém, seria assunto a ser resolvido pelo Poder Judiciário.287 Entende-se, porém,
que, como foi extremamente clara e expressa a Constituição ao dispor sobre a
competência material prevista no artigo 146, I, não resta ao intérprete senão analisá-lo
da forma que mais bem se adapte aos princípios constitucionais.
A norma que se extrai do inciso I do artigo 146 da Constituição – “Cabe à lei
complementar... dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” – existe, em síntese, devido à
Constituição Federal prever, nos artigos 153, 154, 155 e 156, todas as situações que
podem ser tributadas pela via dos impostos, dividindo-as entre a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios. Como resultado, é possível, contudo, restarem dúvidas
no saber de quem é a competência para tributar um determinado fato ou negócio
jurídico, ocasionando um conflito de competência entre as pessoas políticas.
Quando a União Federal edita uma lei complementar, com base no inciso I do
artigo 146, da Constituição, tratando de tais conflitos, essa lei terá âmbito nacional, não
vinculando somente as pessoas políticas envolvidas. Por essa razão, esse assunto
também é considerado como sendo normas gerais de direito tributário. Entretanto, é
preciso compreender que os conflitos não estão na Constituição – não são jurídicos –
mas decorrem de falha hermenêutica, conforme ensina com mestria CLÉBER
GIARDINO:
Acho que a problemática dos conflitos, na verdade, nos coloca diante de duas
situações: do ponto de vista fático, do ponto de vista concreto, conflito, na
verdade, significa uma situação de ‘disputa’sobre uma determinada
competência. Por definição, uma das partes envolvidas nessa disputa, estará
extravasando o campo de competência que lhe foi constitucionalmente
reservado. Esse é um corolário da afirmação inicial de que a repartição
constitucional de competências tributárias esgota, na verdade, essas
competências, e coloca, efetivamente, em cada um dos entes contemplados,
campos absolutamente autônomos e privativos para o exercício desses
287
ATALIBA, Geraldo. Lei complementar..., op. cit., p. 90.
128
poderes. Daí, nesse aspecto, a situação conflitiva ser uma situação ‘falsa’. [...]
Sob outro ângulo, a situação de conflito se reduz a um problema exegético.
Todas as vezes que se diz: estamos diante de um conflito, quer-se significar,
na verdade, que estamos diante de uma situação de maior ou menor
dificuldade no sentido de corretamente interpretar o texto constitucional.
Portanto, poder-se-ia encaixar a expressão ‘conflito’ no plano da
interpretação jurídica, no plano do trabalho científico de localizar, na
Constituição, o verdadeiro conteúdo das normas de competência.[sic]288
Comentando o teor do inciso II do artigo 146 da Constituição Federal de 1988,
GERALDO ATALIBA, mais uma vez, critica a forma apressada e incoerente desse
trecho do texto constitucional. Lembra que RUI BARBOSA, que para o autor foi o
maior mestre do Direito Constitucional no Brasil, defendia que “[...] quando um
preceito constitucional é proibitivo, quando um preceito constitucional é negativo não
cabe complementação, não cabe lei complementar”, e eventual lei que pretender
complementar preceito proibitivo ou negativo será inconstitucional, porque onde a
Constituição diz não é não, não havendo espaço para ampliar ou reduzir o “não”
constitucional, senão para, desnecessariamente, repetir o “não”, reproduzir o “não”.
São dessa espécie os dispositivos da Constituição localizados na Seção II, do
capítulo dedicado ao Sistema Tributário Nacional, que estabelecem as “limitações
constitucionais ao poder de tributar”, pois ali está expresso, nos artigos 150, 151 e 152,
a expressão “é vedado”.289 A conclusão, em relação a esse inciso II do artigo 146, é do
mesmo teor do que foi tecido acima em relação ao inciso I, ou seja, ainda que
pertinentes as observações do autor citado, o texto constitucional não deixa outra
alternativa senão tentar compatibilizar seu conteúdo com as normas que revelam os
princípios constitucionais tributários.
O precitado inciso II do artigo 146, ainda que desnecessariamente, remete à lei
complementar a regulamentação das disposições que limitam o exercício da
competência tributária por parte dos entes políticos, como o Princípio da Legalidade, da
Anterioridade, da Irretroatividade, as imunidades etc. A essa altura, poder-se-ia indagar
acerca da consistência do raciocínio de GERALDO ATALIBA, em relação à imunidade
prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “c”, onde está previsto que é vedado instituir
impostos sobre “[...] patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive
suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação
e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei” (grifamos).
288
289
Conflitos entre ICM, ISS e IPI. Revista de Direito Tributário, n. 7/8, p. 111-112.
Lei complementar..., op. cit., p. 90.
129
É óbvio que, por exigência do referido inciso II do artigo 146, a lei de que trata
o dispositivo só pode ser a complementar, sendo facilmente verificado o equívoco
existente na literalidade do texto. GERALDO ATALIBA entende que, em vez de
remeter o assunto à lei complementar, deveria a própria Constituição estabelecer os
requisitos para gozar da imunidade.290 Tais requisitos foram previstos pelo artigo 14 do
Código Tributário Nacional. A maior parte dessas disposições, portanto, são autoaplicáveis; outras, como a comentada acima, necessitam de uma lei que as
complemente, determinando as condições de sua aplicabilidade.
Como as leis complementares que disporão sobre essas limitações vincularão
todas as pessoas políticas no território nacional, também são consideradas como sendo
normas gerais de direito tributário. Reforçando esse posicionamento, a competência da
lei complementar, nesses casos, somente poderá ser exercida nos casos em que se faz
necessária lei específica para surtir os efeitos que lhe são próprios, não se admitindo
restrição alguma a princípios como o da Isonomia ou da Capacidade Contributiva, por
exemplo.
No inciso III do artigo 146, estão as matérias que a Constituição prevê, de
forma expressa, caber à lei complementar “estabelecer normas gerais em matéria de
legislação tributária...”. Insista-se, como já foi dito, que o fato de a expressão “normas
gerais” só estar inserida neste inciso não resulta na conclusão de que somente as
matérias ali contidas é que se constituem nessa espécie de normas. Na alínea “a”,
dispõe a Constituição que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais “[...]
especialmente sobre: definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação
aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores,
bases de cálculo e contribuintes”.
ALBERTO XAVIER defende que a alínea “a” do inciso III do artigo 146,
consagra o Princípio da Tipicidade da Tributação, mediante a exigência de que a lei
complementar defina os “elementos essenciais” dos tributos, que são o “fato gerador”, a
base de cálculo e o contribuinte. Acresce ainda que a regra é aplicável também aos
impostos de competência residual da União, pois o artigo 154, I, da Constituição
Federal, exige que os impostos que eventualmente venham a ser instituídos pela União
“[...] sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios
290
Ibidem, p. 92.
130
dos discriminados nesta Constituição”, resultando que tais impostos terão que ter
definido todo o tipo tributário para impedir a ocorrência do “bis in idem”.
Portanto, na visão desse autor, em matéria de impostos, cabe única e
exclusivamente à lei complementar definir os respectivos tipos tributários, em um
procedimento de determinação do núcleo essencial do tributo que já é tipificado na
própria Constituição.291 Como já foi comentado no item 2.1.2 – Princípio da Legalidade
Tributária – em que pese a excelência das argumentações desse jurista, entende-se que
tanto o Princípio da Legalidade Tributária, como o seu corolário da Tipicidade Fechada,
existem de forma independente à previsão do inciso III, “a”, do artigo 146 da Carta
Magna.
Defende-se, ao contrário, que as normas gerais a que alude esse dispositivo,
assim como ocorre com as demais alíneas do inciso III, têm seu conteúdo limitado a
“dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária” ou “regular as
limitações constitucionais ao poder de tributar” e, dentre estas últimas, somente
aquelas que requerem complementação, por não se constituírem em normas
constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
Para GERALDO ATALIBA, a própria Constituição já classifica todos os
tributos, não só pelos nomes, como também fornece a materialidade de todos eles, o que
torna desnecessária qualquer lei complementar sobre o assunto. Quanto à definição dos
“fatos geradores”, bases de cálculo e contribuintes dos impostos, o referido autor é
veemente ao afirmar que todos os tributos já possuem suas respectivas hipóteses de
incidência suficientemente desenhadas no próprio texto constitucional, assim como, na
Teoria Geral do Direito, é fácil encontrar subsídios para concluir que a base de cálculo
somente pode ser aquela que mede, mensura, a hipótese de incidência e, se a hipótese já
está na Constituição, então a base de cálculo indiretamente também lá está prevista,
ainda que de forma implícita. Assim, qualquer lei complementar, nesse sentido, só vai
dispor o óbvio, reproduzindo o que já existe na própria Constituição.292
Melhor sorte não assiste ao texto constitucional quando dispõe caber à lei
complementar definir os contribuintes. É que se a capacidade contributiva é o cânone
constitucional inafastável na instituição dos impostos, por óbvio que o sujeito passivo
somente poderá ser aquela pessoa que exterioriza os chamados sinais de riqueza,
reveladores da citada capacidade.
291
Tipicidade da tributação..., op. cit., p. 21-22.
131
Se a essência de toda e qualquer hipótese de incidência de um imposto é a
previsão de uma capacidade econômica, e se a materialidade dessa hipótese de
incidência sempre se expressa pela existência de um verbo acrescido de um
complemento (PAULO DE BARROS CARVALHO), é lógico que, ocorrido no mundo
fenomênico o fato que se subsume àquela hipótese normativa, e por essa razão é
qualificado como fato jurídico tributário, o sujeito passivo, o destinatário legal
tributário, conforme defende HECTOR VILLEGAS, e aqui no Brasil, MARÇAL
JUSTEN FILHO, que de forma feliz adaptou a expressão para destinatário
constitucional tributário, somente poderá ser aquele que praticou esse fato.293 Caso a
lei eleja outra pessoa como contribuinte, será inconstitucional.
A utilização da técnica legislativa da responsabilidade tributária não altera nem
desmente esse raciocínio, pois o que se tem, nesse caso, é uma forma de o Fisco garantir
o recebimento do crédito tributário, devido originalmente pelo contribuinte, através da
qualificação como sujeito passivo de um “terceiro” que tenha alguma relação pessoal e
direta com o fato tributário, conforme prevê, inclusive, o artigo 128 do Código
Tributário Nacional. Em tais hipóteses, o sujeito passivo da relação jurídica tributária
deve encontrar na lei os meios de não sofrer o ônus econômico do tributo, através de
técnicas que permitam repassá-lo ao chamado “contribuinte de fato”, como é o caso
clássico da retenção na fonte, por exemplo.
Na alínea “b”, ainda do inciso III, do artigo 146, está prescrito que cabe à lei
complementar estabelecer normas gerais em matéria de “obrigação, lançamento,
crédito, prescrição e decadência tributários”. A Constituição, nesse dispositivo, não
pode ser interpretada de modo a concluir que essa lei complementar deve definir o que
sejam esses institutos jurídicos, pois há muito tempo disso já se ocuparam o Direito
Civil e a Teoria Geral do Direito, e o fizeram muito bem. Ou seja, não pode haver, por
exemplo, uma obrigação jurídica para o Direito Civil, e outra para o Direito Tributário.
Igual raciocínio vale para a noção do crédito que é inerente a essa obrigação.
Como forma de “salvar” esse dispositivo, pode-se entender que a sua única
interpretação razoável seria aquela que estabelece alguns parâmetros máximos a serem
observados nas leis ordinárias das pessoas políticas, tendo com fundamento, para tanto,
a consagração de magnos princípios como o da Segurança Jurídica etc. Como exemplo,
292
293
Lei complementar..., op. cit., p. 90-91.
Destinatário legal tributário – contribuintes e sujeitos passivos na obrigação tributária. Revista de Direito
Público, n. 30, p. 241-242.
132
poder-se-ia citar os artigos do Código Tributário Nacional que dispõem sobre os prazos
de decadência e prescrição – artigos 150, 173 e 174.
Nesse caminho, tais dispositivos, de âmbito nacional, serviriam como limites
máximos a serem observados em cada uma das leis ordinárias, sendo possível dispor em
contrário somente se for em benefício do contribuinte. Entretanto, esse posicionamento
pode criar problemas para tributos que, por suas peculiaridades intrínsecas, exigem
disciplina jurídica individualizada, como seria o caso, por exemplo, do prazo de
decadência de dez anos para o lançamento das contribuições para a Seguridade Social,
instituído pelo artigo 45 da Lei nº 8.212, de 24 jul. 1991, dispositivo que no Superior
Tribunal de Justiça, vem sendo afastado, por violar, no entendimento dessa corte, o
artigo 173 do Código Tributário Nacional, o qual estabelece para tanto o prazo de cinco
anos.
Na alínea “c”, a Constituição remete à lei complementar a criação de norma
geral que preveja “[...] adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado
pelas sociedades cooperativas”. JOSÉ ROBERTO VIEIRA, amparado em HELENO
TAVEIRA TÔRRES, leciona que o sentido do dispositivo “[...] só pode ser perquirido
à luz do art. 174, § 2º, que ordena o apoio e o estímulo ao cooperativismo, como se o
primeiro desses dispositivos constituísse verdadeiro corolário do segundo”. Acrescenta
que “[...] nessa confluência normativa, tratamento adequado passa a significar
necessariamente tratamento vantajoso, favorável, favorecido, privilegiado”.294
Por fim, a alínea “d”, recentemente incluída pela Emenda Constitucional nº
42/2003, prevê caber à lei complementar estabelecer normas gerais sobre “[...]
definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as
empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do
imposto previsto no artigo 155, II, das contribuições previstas no artigo 195, I e §§ 12 e
13, e da contribuição a que se refere o artigo 239”.
Com base nas mesmas premissas até aqui sustentadas, entende-se que o regime
tributário das microempresas e das empresas de pequeno porte somente será aquele
cujas respectivas leis de cada uma das pessoas políticas entenderem por bem instituir.
Então, o que for microempresa para a União Federal, não será, ou poderá não ser, o
mesmo regime de microempresa aplicáveis aos Estados ou aos Municípios. Isso é
294
Sujeição passiva tributária, p. 262.
Prefácio. Tributação das cooperativas: dos preconceitos ao conceito, um itinerário voltaireano. In:
Tributação das Cooperativas à Luz do Direito Cooperativo, p. 22.
133
assunto de nítida autonomia das pessoas políticas, e por conseqüência, somente a elas
seria dado escolher a forma de tributação dessas espécies de pessoas jurídicas, o que
torna
a
Emenda
Constitucional
nº
42/2003,
nessa
parte,
de
duvidosa
constitucionalidade.295
Como último comentário desse item, o Código Tributário Nacional - Lei n°
5.172, de 25 out. 1966 – é uma lei formalmente ordinária que, apesar de ter sido
aprovada em 1966, contém dispositivos compatíveis com o conceito de normas gerais
de Direito Tributário. Naquela época, vigorava a Carta de 1946, a qual não previa a
existência das leis complementares. Com o advento da Constituição de 1967, assim
como com a Emenda nº 1/69, passou-se a prever que determinadas matérias, entre as
quais estavam as normas gerais de direito tributário, deveriam ser aprovadas por lei
complementar.
Pelo fenômeno da recepção, esses dispositivos – apenas os que se
identificaram materialmente com a Constituição de 1967, e não todo o Código
Tributário Nacional – foram incorporados ao ordenamento jurídico capitaneado pela
então nova Carta. O mesmo ocorreu com a atual Constituição, promulgada em 1988, e
com isso firmou-se o entendimento de que o Código Tributário Nacional, na parte em
que a Constituição o recepcionou, é uma lei formalmente ordinária e materialmente
complementar. Portanto, a eventual alteração ou revogação de qualquer desses
dispositivos requer nova lei complementar. A denominação “Código Tributário
Nacional” não veio na própria Lei 5.172/66, mas só depois, através do artigo 7º do Ato
Complementar nº 36, de 13 mar. 1967.
Por outro lado, e aplicando-se, em relação ao Código Tributário Nacional, o
que até aqui foi exposto quanto ao tema do conteúdo possível das normas gerais de
Direito Tributário, conclui-se que essa lei nacional só trata de normas gerais enquanto
dispõe sobre conflitos de competência em matéria tributária ou quando regula as
limitações constitucionais ao poder de tributar. Em rigor, inclusive, o tema “conflitos de
competência” constitui matéria compreendida dentre as “limitações constitucionais ao
poder de tributar”, posto que o exercício da competência de cada ente político encontra
295
Em cumprimento a esse dispositivo constitucional foi aprovada a Lei Complementar nº 123, de 14 dez.
2006, a qual “Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte”, dentre
outros assuntos correlatos.
134
seus limites na própria Constituição, conforme a tese, acima comentada, de JOSÉ
SOUTO MAIOR BORGES.296
Partindo dessa premissa, os dispositivos das leis complementares nacionais que
extrapolarem esses limites não poderão ser considerados como recepcionados pelo atual
ordenamento jurídico, pois materialmente incompatíveis com o que dispõe a Lei Maior.
Esse entendimento será de extrema relevância no exame dos dispositivos
infraconstitucionais que regulam o ISS em âmbito nacional – o Decreto-lei nº 406/68 e a
Lei Complementar nº 116/2003 – pois, em virtude de serem considerados leis
complementares de normas gerais de Direito Tributário, deverão ter, como limites, os
pressupostos identificados no presente estudo, ou seja, tais normas somente serão
válidas se e enquanto regularem alguma “limitação constitucional ao poder de
tributar”. Com isso, já é possível concluir que as principais normas tributárias do
sistema jurídico brasileiro não estão nas leis complementares ou no Código Tributário
Nacional, mas sim na Constituição Federal.297
296
297
Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 19 e ss.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 831-832.
135
3. A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA
3.1 A ESTRUTURA DA NORMA JURÍDICA
Como este estudo terá por perspectiva o exame da estrutura da norma jurídica
tributária do ISS, com destaque ao seu critério espacial, é de rigor expor o entendimento
sobre a expressão norma jurídica, definindo a causa e as conseqüências do
qualificativo “jurídica” dado ao vocábulo “norma”, e, na seqüência, revelar a posição
doutrinária adotada sobre sua estrutura lógica. É, nesse sentido, a recomendação precisa
de PAULO DE BARROS CARVALHO:
Qualquer trabalho jurídico de pretensões científicas impõe ao autor uma
tomada de posição no que atina aos conceitos fundamentais da matéria em
que labora, para que lhe seja possível desenvolver seus estudos dentro de
diretrizes seguras e satisfatoriamente coerentes. E, desde logo, se coloca o
problema da própria conceituação do Direito, na medida em que se procura
discorrer sobre a natureza e estrutura interior da norma jurídica, posto que
falar em norma jurídica, em última análise, é tratar do próprio Direito.[sic]298
Em sentido semelhante é o seguinte pensamento de GERALDO ATALIBA:
“O direito (em sentido objetivo) é um conjunto de normas que – por isso que
integrando a ordem jurídica – se chamam normas jurídicas. Formam o direito positivo:
o direito que foi posto (e só pode ser retirado) por quem tem poder jurídico para
tanto”.299 O Direito, nessa acepção, é também chamado de sistema jurídico, ordenação
jurídica, do que surge a necessidade de se entender o alcance da expressão norma
jurídica.
HANS KELSEN defendia que uma norma seria jurídica quando o seu
descumprimento pelo destinatário ensejasse a aplicação coativa de uma sanção, ou seja,
com o uso da força física, se necessário.300 Para a doutrina kelseniana, a formulação do
Direito dava-se com fundamento na chamada “norma dúplice” ou “norma complexa”,
formada pela “norma primária” e pela “norma secundária”.
Em uma primeira fase, a “norma primária” era aquela que descreveria a
sanção pelo descumprimento de determinada obrigação, enquanto que a “norma
secundária” prescreveria o comportamento desejado, ou seja, a prestação, tendo,
ambas, a mesma natureza de um “juízo hipotético”: “dado fato F ‘deve-ser’ a
298
Teoria da norma tributária, p. 29.
Hipótese de incidência tributária, p. 22.
300
Teoria Pura do Direito, p. 33-35.
299
136
prestação P” (norma secundária) e “dado não-P ‘deve-ser’ a sanção S” (norma
primária).
As normas jurídicas, para HANS KELSEN, são atos de vontade, formulados
através de juízos hipotéticos, e não categóricos, como até então sustentava a Teoria
Imperativista. Os juízos hipotéticos corresponderiam, conforme o pensamento de
KANT, ao mundo do dever-ser, assim como o mundo do ser corresponderia aos juízos
categóricos. Nesta primeira fase, HANS KELSEN entendia que o ilícito não estava fora
do direito, pelo que a norma que estabelece a sanção seria a primária, ao contrário do
que até então sustentava a doutrina tradicional. A norma secundária seria apenas um
expediente técnico para expor o Direito, sem possuir autonomia ôntica. 301
A teoria egológica, de CARLOS COSSIO, apesar de não coincidir em alguns
pontos com a teoria de HANS KELSEN, também via a norma jurídica como dupla ou
complexa. A diferença está em que esse jusfilósofo argentino não via a norma jurídica
como “juízo hipotético”, mas sim como “juízo disjuntivo”: “‘dado A deve-ser P’ ou
‘dado não-P deve-ser S’”. Ou seja, na mesma estrutura lógica de uma norma jurídica
integral, estariam reunidas, por meio da conjunção disjuntiva “ou”, duas proposições de
“dever-ser”: a primeira, equivalente à “norma secundária” de KELSEN, a qual COSSIO
denominou de “endonorma”, e a segunda, com a mesma função da “norma primária”,
chamou de “perinorma”. Apesar das semelhanças, COSSIO, ao contrário de KELSEN,
não via a “endonorma” (norma secundária) como simples expediente técnico para expor
o Direito, mas como integrante principal da estrutura disjuntiva da norma jurídica. 302
Em uma segunda fase, apesar de ainda não ter aceitado as críticas de COSSIO,
KELSEN passou a aceitar a existência de outras normas ao lado das secundárias,
normas não-autônomas, em lado oposto às normas autônomas, que estariam restritas
às normas primárias. Como KELSEN ainda mantinha a idéia de Direito como ordem
coativa, a idéia de sanção ainda prevalecia na sua estrutura da norma jurídica. 303 Em sua
obra publicada postumamente, e alterando entendimento anterior, passou a ver, na
norma primária, a que determina a conduta desejada, e, na norma secundária, a que
estabelece a sanção pela inobservância da norma primária.304
Discorda-se do entendimento de KELSEN quanto à coatividade ser o único
aspecto relevante nas normas jurídicas, pois é claro, no ordenamento jurídico a
301
Apud JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto sobre serviços na Constituição, p. 15.
Apud CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria..., op. cit., p. 46.
303
Apud FISCHER, Octávio Campos. A contribuição ao PIS, p. 27.
302
137
existência de normas de natureza e finalidade diversas, prescrevendo conteúdo não
sancionatório, como defende MARÇAL JUSTEN FILHO.305 KELSEN distinguia,
ainda, a norma jurídica da proposição jurídica. Norma jurídica seria a que é posta pela
autoridade pública, enquanto que, proposição jurídica, seria a descrição do ordenamento
jurídico feita pelo cientista do direito. Com efeito, somente esta última é que se revelaria
como um juízo hipotético, posto que a norma jurídica seria um imperativo, um
comando, permissão etc.
Concorda-se com o raciocínio de JOSÉ ROBERTO VIEIRA, que com
fundamento na lógica jurídica, esclarece a questão: “Ora, também a norma jurídica
(prescrição legislativa) é veiculada mediante juízos hipotéticos, que, como os demais,
exprimem-se mediante proposições. Correto, em termos lógicos, portanto, teria sido
referir-se KELSEN a proposições prescritivas e proposições descritivas”.306
Irretocável também é o juízo de PAULO DE BARROS CARVALHO. Esse
mestre aceita a feição dúplice das regras de Direito, ou seja, norma primária – ou
endonorma, segundo COSSIO – a que prescreve um dever, se e quando acontecer o fato
previsto no suposto; e norma secundária – ou perinorma, na denominação de COSSIO –
a que prescreve uma sanção, no caso de descumprimento da conduta prevista na norma
primária.307 Entretanto, o referido autor entende que as duas entidades juntas (norma
primária e secundária) formam a norma completa, pois “[...] expressam a mensagem
deôntico-jurídica na sua integridade constitutiva, significando a orientação da conduta,
juntamente com a providência coercitiva que o ordenamento prevê para seu
descumprimento”.308
A essa idéia, conforme ensina BOBBIO, deve ser acrescentada outra, a de que
“[...] a norma jurídica é aquela que pertence a um ordenamento jurídico”, com o que
entende que a significação do jurídico está em uma norma pertencer a um ordenamento,
e não na norma em si mesma. A questão: “O que se entende por norma jurídica?”,
então, é solucionada ampliando a pesquisa com outra questão: “O que se entende por
ordenamento jurídico?”, pois só a essa segunda questão é possível dar uma resposta
coerente. Não é por outra razão que BOBBIO afirma que o problema da definição do
Direito encontra sua localização apropriada na teoria do ordenamento jurídico e não na
304
Teoria geral das normas, p. 181.
O imposto..., op. cit., p. 18.
306
A regra-matriz..., op. cit.,, p. 56.
307
Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 31.
308
Ibidem, p. 32.
305
138
teoria da norma.309 O Direito não é uma regra, mas um conjunto de regras que possui o
tipo de unidade que entendemos por sistema, sendo impossível conhecer a natureza do
Direito se analisarmos uma regra isolada.
E uma norma integra um sistema porque o Direito regula a sua própria criação,
na medida em que uma norma jurídica estabelece o modo pelo qual outra norma é
criada e, também, o conteúdo dessa norma. Uma norma jurídica sempre é válida por ser
criada de um modo determinado por outra norma jurídica, ou seja, essa última é o
fundamento de validade daquela. A norma que determina a criação de outra norma é a
norma superior, e a norma criada segundo essa determinação é a inferior. A ordem
jurídica, portanto, não é um sistema de normas que se encontram no mesmo nível, mas
um sistema de normas em diferentes níveis de hierarquia. GERALDO ATALIBA, de
forma diversa, defendia a inclusão da sanção dentro da estrutura lógica da norma
jurídica, ou seja, para esse autor, ela decompõe-se em hipótese de incidência,
mandamento e sanção – conseqüência jurídica que incide no caso de descumprimento
do mandamento principal da norma.310
Entende-se, todavia, que melhor razão assiste à formulação defendida por
PAULO DE BARROS CARVALHO: toda norma jurídica é constituída por duas partes:
uma hipótese de incidência – também chamada de antecedente, suporte fático,
pressuposto de fato, descritor normativo – e uma conseqüência jurídica –
mandamento, regra jurídica. A hipótese contém a descrição, teórica e abstrata, de um
evento do mundo fenomênico, o qual, se ocorrer, deflagrará a incidência da respectiva
regra jurídica, tendo, então, como efeito automático e infalível, o nascimento da relação
jurídica ali prevista.311 Na conseqüência, há a previsão abstrata de um comando
jurídico, o qual prescreve que o destinatário da norma deve sujeitar-se a uma
determinada conduta que, conforme os três modais deônticos, pode ser proibida,
permitida ou obrigatória. Dizendo de outra forma, somente há a incidência de uma
norma jurídica quando um fato ocorrido no mundo real subsumir-se (corresponder) ao
modelo teórico previsto na hipótese de incidência. 312
309
Apud SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, p. 126-129.
Hipótese..., op. cit., p. 39-40.
311
Em sua visão mais recente, PAULO DE BARROS CARVALHO passou a defender que a incidência
só é automática e infalível quando o “evento” do mundo real for descrito na linguagem competente do
lançamento tributário, convertendo-se, então, em “fato jurídico” – Direito Tributário..., op. cit, p.
182-184.
312
Teoria..., op. cit., p. 48.
310
139
3.2 A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA
É imprescindível, nesse momento, ressaltar a contribuição dada por ALFREDO
AUGUSTO BECKER à Ciência do Direito Tributário no Brasil, através de sua obra
“Teoria Geral do Direito Tributário”.313 Embora nem todas as conclusões desse jurista
tenham sido bem recebidas pela moderna doutrina, sua obra representa a primeira
advertência para que os estudiosos do Direito Tributário purificassem, de suas
considerações, influências oriundas da Ciência das Finanças. Queria o autor, pois, que
fosse dada prevalência ao “Direito” – leia-se: à Teoria Geral do Direito – e não ao
“Tributário”, do que resulta a necessidade de estudar a estrutura lógica e a atuação
dinâmica da norma jurídica tributária, de forma desvinculada de questões atinentes à
eventual justiça ou injustiça de sua aplicação.
Foi de BECKER, portanto, dentro do Direito Tributário, a primeira
contribuição relevante sobre o tema, para quem a estrutura lógica da regra jurídica
(visão estática) é formada por duas partes: hipótese de incidência – “fato gerador”,
suporte fáctico, “fattispecie”, “Tatbestand” – e regra – norma, regra de conduta,
preceito.314 No mesmo sentido, ainda, a afirmativa de JOSÉ SOUTO MAIOR
BORGES: “A estrutura lógica da regra-jurídica consta de uma previsão (hipótese de
incidência, suporte fático) e uma disposição correlata (norma, preceito, regra de
conduta)”.315
OCTÁVIO CAMPOS FISCHER chama atenção para o fato de que “[...]
muitos estudiosos do Direito Tributário no Brasil não procuraram olhar para as lições
de Kelsen e Cossio para enriquecer suas contribuições para a análise da estrutura da
norma jurídica tributária”, atitude que levou bons autores, em um passado próximo, a
seguirem a “escola de glorificação do fato gerador”, conferindo importância
demasiada à hipótese de incidência, em detrimento da conseqüência jurídica
(mandamento).316 Não obstante esse antigo posicionamento ter sido substituído por
novos doutrinadores, os quais passaram a identificar a real importância do conseqüente
da norma jurídica, seus então seguidores merecem todos os nossos encômios, pois que,
à sua época, revolucionaram o estudo do Direito Tributário e, em especial, prepararam o
solo para os trabalhos posteriores.
313
Teoria geral do direito tributário, passim.
Ibidem, p. 274.
315
Teoria geral da isenção tributária, p. 180.
314
140
A “escola de glorificação do fato gerador”, acima citada, era, então, formada
por autores que viam, na hipótese, a parte mais relevante da norma jurídica. Sua origem
é freqüentemente vinculada ao jurista italiano, radicado na Argentina, DINO JARACH,
um dos autores que mais influenciou os estudiosos do Direito Tributário no Brasil; 317
com destaque para as obras de AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO318 e de GERALDO
ATALIBA319. Como resultado de seu posicionamento, JARACH defende que todos os
elementos da relação jurídica tributária, subjetivos e objetivos, resumem-se no único
conceito de pressuposto de fato definido pela lei. Com efeito, entende que os sujeitos e
o objeto da relação jurídica tributária não são um elemento “a priori”, e que não
estariam desvinculados do pressuposto de fato objetivo.320
AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, apesar de criticar a afirmação de
JARACH, de que toda a teoria do Direito Tributário material não passa de um
desenvolvimento da própria teoria do “fato gerador”, a qual qualifica como “radical”,
acaba, infelizmente, conferindo importância extremada ao antecedente da norma
tributária, o qual seria importante para a fixação de noções como, por exemplo,
determinação do sujeito passivo, alíquota, base de cálculo etc., elementos que, como já
se demonstrou, localizam-se no conseqüente normativo, por dizerem respeito,
essencialmente, à relação jurídica tributária.321
GERALDO ATALIBA, apesar de ver a norma jurídica como uma estrutura
complexa, compreendendo sempre hipótese, mandamento e sanção, via na hipótese
quase todos os aspectos da norma tributária: pessoal, temporal, espacial e material –
incluindo, neste último, a base de cálculo – relegando, para a conseqüência, somente a
alíquota. Posteriormente, em artigo elaborado com J. A. LIMA GONÇALVES, inseriu
na hipótese o prazo de recolhimento dos tributos, entendendo em síntese que, “[...] num
clima inflacionário, o prazo de pagamento do tributo passa a ser altamente modificador
do quantum e, portanto, passa a ser tão essencial (juridicamente relevante) quanto a
alíquota e a base”, integrando, na visão desse autor, o elemento quantitativo da
hipótese de incidência.322
316
A contribuição..., op. cit., p. 31.
Aspectos da hipótese de incidência tributária, Revista de Direito Público, n. 17, p. 287-304; El Hecho
Imponible: Teoria General del Derecho Tributario Substantivo, passim.
318
O fato gerador da obrigação tributária, passim.
319
Hipótese de Incidência Tributária, passim.
320
Estrutura e elementos da relação jurídico-tributária. Revista de Direito Público, n. 16, p. 337-338.
321
O fato gerador..., op. cit., p. 31-33.
322
Carga tributária e prazo de recolhimento de tributos. Revista de Direito Tributário, n. 45, p. 29.
317
141
Conforme ensina JOSÉ ROBERTO VIEIRA, essa tendência esvazia o
conteúdo do conseqüente da norma tributária, pois desloca para a hipótese os seus
critérios, “[...] esvaziando-o do liame jurídico decorrente da incidência, e até mesmo
da base de cálculo; o que implica, em resumo, a negação do caráter de juízo hipotético
da formulação da norma jurídica tributária, pela via da negação da conseqüência”.323
Correta também é a crítica de MARÇAL JUSTEN FILHO, que, conquanto
ressalte a grande contribuição dos trabalhos de JARACH para a revelação da estrutura
da norma tributária, demonstra que “[...] o resultado foi a confusão entre estrutura e
dimensão da norma tributária e dimensão da hipótese”, pois concentrou, nessa última,
todos os elementos localizados na norma, do que resultou o entendimento de ser a
hipótese constituída tanto pelos elementos necessários à descrição abstrata do fato
jurídico – materialidade com suas coordenadas de tempo e espaço – como pelos
elementos necessários à identificação tanto dos sujeitos, como do objeto da relação
jurídica tributária.324
O autor aponta, de forma coerente, as possíveis razões que levaram à atitude
científica de não imputar à conseqüência jurídica os elementos que lhe pertencem,
diante da análise da estrutura lógica da norma. Entretanto, adverte que, ainda que tais
argumentos possam demonstrar as razões da adoção desse pensamento, eles não têm o
condão de legitimar-lhe a correção do raciocínio:
É compreensível esse defeito de óptica que oblitera a conseqüência da norma
tributária. A relação jurídica nela prescrita tem natureza obrigacional e em
nada se peculiariza. Só é possível caracterizar uma relação jurídica como
tributária (conseqüência jurídico-tributária) conjugando-a com seu fato
imponível (hipótese de incidência). Logo, há uma irrefreável tendência a
concentrar na hipótese tudo o que a norma tributária tem de peculiar – o que
é incorreto, a nosso ver. [...] Além disso, há outro motivo. É o temor de que a
desvinculação (lógica) entre aspectos da hipótese e da conseqüência abra
margem ao arbítrio, possibilitando que a uma hipótese de incidência se
atribua uma conseqüência que lógica e materialmente em nada se relacione
com ela. O caso mais evidente desses descalabros é a adoção de uma base
imponível totalmente incompatível com o aspecto material da hipótese de
incidência.325
Foi,
contudo,
PAULO
DE
BARROS
CARVALHO
quem
avançou
sobremaneira no tema, representando verdadeiro marco na Ciência do Direito
Tributário, devido à desmistificação do que pregavam esses autores que, apesar da
excelência, pecaram por valorizar em demasia a hipótese de incidência em detrimento
323
324
A regra-matriz..., op. cit., p. 62.
O imposto..., op. cit., p. 43.
142
da conseqüência (mandamento, regra de conduta). Procurou o autor demonstrar que, na
norma jurídica tributária, há certos “critérios” que não se encontram na hipótese,
proposta que revalorizou toda a sua estrutura, mantendo sua integridade, deixando na
hipótese somente os critérios necessários à identificação do fato jurídico tributário, e
atribuindo à conseqüência os critérios aptos a identificar a relação jurídica. 326
A doutrina tem reconhecido a contribuição desse autor por sua nova visão da
estrutura da norma tributária, como demonstra o testemunho de MARÇAL JUSTEN
FILHO, jurista paranaense que atribui “grande perspicácia” àquele autor, por ter
estabelecido a distinção entre a hipótese e o mandamento normativos, além de ter
destacado que, assim como estão previstos na hipótese todos os dados hábeis ao
reconhecimento de um evento a ocorrer no mundo dos fatos, constam do mandamento
as regras acerca do comando jurídico, ou, sendo fiel ao seu pensamento, as regras
necessárias à identificação da relação jurídica. 327 OCTÁVIO CAMPOS FISCHER
também assevera que, apesar das grandes lições de outros autores, “[...] o melhor estudo
a respeito da estrutura da norma jurídica tributária” coube a PAULO DE BARROS
CARVALHO. Não tira, entretanto, o mérito de autores como BECKER, precursor no
sentido de que a estrutura da regra jurídica (norma) é composta por uma hipótese e por
uma regra.328
Esse raciocínio ampara-se, em grande parte, no que já sustentava o jurista
alemão KARL ENGISH329; a quem PAULO DE BARROS CARVALHO credita a
melhor formulação do problema, conforme se pode verificar em algumas de suas
afirmações, como a de que as regras jurídicas “[...] são regras de dever-ser, e são
verdadeiramente, como sói dizer-se, proposições ou regras de dever-ser hipotéticas.
Elas afirmam um dever-ser condicional, um dever-ser condicionado através da
‘hipótese-legal’”;330 ou ainda, mais especificamente em relação à uma necessária visão
de equivalência entre hipótese e conseqüência: “Pertence, com efeito, à hipótese legal
tudo aquilo que se refere à situação a que vai conexionado o dever-ser (Sollen), e à
conseqüência jurídica tudo aquilo que determina o conteúdo deste dever-ser”331.
325
Ibidem, p. 43-44.
Teoria..., op. cit., p. 108-115.
327
ISS no tempo e no espaço. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 2, p. 53.
328
A contribuição..., op. cit., p. 33.
329
Teoria..., op. cit., p. 120-121.
330
Introdução ao pensamento jurídico, p. 36.
331
Ibidem, p. 55.
326
143
Utilizando com propriedade os fundamentos da lógica jurídica, PAULO DE
BARROS CARVALHO seccionou a norma jurídica tributária, por meio de um corte
metodológico imaginário, em hipótese tributária (antecedente, suposto, ante-suposto ou
pressuposto) e conseqüência tributária. A primeira (hipótese) corresponde à previsão
fáctica, “[...] a descrição normativa de um evento que, concretizado no nível das
realidades materiais e relatado no antecedente de norma individual e concreta, fará
irromper o vínculo abstrato que o legislador estipulou na conseqüência”.332 A segunda
– conseqüência ou conseqüente tributário – que é o prescritor da relação jurídica que
nascerá, automática e infalivelmente, caso o evento da hipótese se concretize.
Essa divisão da norma em hipótese e mandamento (seccionamento) ocorre
somente no plano lógico, haja vista cada uma dessas entidades constituir unidade
inseparável uma da outra, ou seja, são, como qualquer outra categoria jurídica, conceitos
unitários. Para o autor, existem referências a critérios tanto na hipótese, aptos a
identificar o fato jurídico tributário, como na conseqüência, possibilitando identificar a
relação jurídica que nasce pela ocorrência daquele fato, sendo tal seccionamento feito
exclusivamente no plano lógico, posto cada um dos segmentos da regra-matriz
constituir unidade inseparável do outro, ou seja, são conceitualmente unitários, assim
como qualquer outra categoria jurídica.
Quanto ao vocábulo utilizado para designar as entidades resultantes desse
seccionamento provisório da regra-matriz tributária, ainda vigora na doutrina
divergência quanto ao termo “aspectos” – sustentado por GERALDO ATALIBA333 –
ou “critérios” – proposto por PAULO DE BARROS CARVALHO334 – ainda que,
salvo melhor juízo, não se vislumbre prejuízo a um resultado rigorosamente científico.
Desde já, contudo, consignamos nossa adesão à terminologia defendida por PAULO DE
BARROS CARVALHO, para quem tanto a hipótese, quanto a conseqüência, possuem
referências a critérios, que permitem reconhecer o fato jurídico previsto na norma e a
relação jurídica deflagrada pela ocorrência daquele fato, pois os “aspectos” não existem
na norma em si mesma, mas sim no fato jurídico, como esclarecem MARÇAL JUSTEN
FILHO335 e JOSÉ ROBERTO VIEIRA336.
332
Curso..., op. cit., p. 244.
Hipótese..., op. cit., p. 74-75.
334
Teoria..., op. cit., p. 123.
335
Imposto..., op. cit., p. 44.
336
A regra-matriz..., op. cit., p. 60.
333
144
PAULO DE BARROS CARVALHO, portanto, inovou ao repensar a estrutura
da norma jurídica tributária, mantendo no antecedente somente as entidades necessárias
à identificação da ocorrência do fato jurídico tributário, às quais denominou de critérios.
Para o autor, o legislador constrói a hipótese através de uma proposição descritiva de
uma situação objetiva real, onde recolhe os dados de fato da realidade social que deseja
disciplinar e os qualifica normativamente como fatos jurídicos. “Ao escolher os fatos
que lhe interessam como pretexto para desencadear efeitos jurídicos, o legislador
expede conceitos que selecionam propriedades do evento”, posto que não há como uma
descrição possa captar o fato em todas as suas infinitas peculiaridades.337
Passou, então, a defender que os critérios hábeis a identificar a ocorrência do
fato tributário, descrito na hipótese tributária (descritor), são três: material –
comportamento de uma pessoa – espacial – condicionamento daquele comportamento
no espaço – e temporal (condicionamento do comportamento no tempo. Portanto, ao
construir a hipótese tributária, ou seja:
conceituar o fato que dará ensejo ao nascimento da relação jurídica do
tributo, o legislador também seleciona as propriedades que julgou
importantes para caracterizá-lo. E desse conceito, podemos extrair critérios
de identificação que nos permitam reconhecê-lo toda vez que, efetivamente,
aconteça. No enunciado hipotético vamos encontrar três critérios
identificadores do fato: a) critério material; b) critério espacial; c) critério
temporal.338
Por sua vez, deslocou para a conseqüência (prescritor), os critérios aptos a
identificar a relação jurídica que nasceria com a ocorrência in concreto daquele fato
descrito abstratamente na hipótese, os quais seriam dois: pessoal – sujeito ativo e sujeito
passivo da relação jurídica – e quantitativo – base de cálculo e alíquota.339 Seguindo o
caminho trilhado por PAULO DE BARROS CARVALHO, JOSÉ ROBERTO
VIEIRA340 e AMÉRICO LACOMBE341, apesar de desenvolverem o raciocínio desse
mestre, adotaram, na essência, a mesma fórmula para a estrutura da norma jurídica
tributária.
Entende-se, no entanto, ser mais correto, do ponto de vista da Teoria Geral do
Direito, ver no mandamento um critério subjetivo e um critério objetivo, pensamento
semelhante ao defendido por MARÇAL JUSTEN FILHO, o qual defende a existência
337
Curso..., op. cit., p. 252.
Ibidem, p. 252-253.
339
Ibidem, p. 239.
340
A regra-matriz..., op. cit., p. 60-61.
338
145
de determinações subjetiva e objetiva no conseqüente tributário: “A determinação
subjetiva contém os mandamentos acerca dos sujeitos ativo e passivo da relação
jurídica. [...] A determinação objetiva consiste na imposição de uma conduta, devida
pelo sujeito passivo em benefício do ativo”. Esse autor rejeita o vocábulo
“quantitativo”, a que alude PAULO DE BARROS CARVALHO, pois reputa que “a
norma determina o objeto da relação jurídica – não uma quantia”.342
A nossa concordância com esse autor, portanto, restringe-se à substituição do
critério quantitativo por um “critério objetivo”, por ser mais abrangente no que tange à
estrutura da relação jurídica, e da expressão “critério pessoal” pela expressão “critério
subjetivo”, mais coerente e harmônica ao lado daquela. Mantém-se, assim, a opção pelo
vocábulo “critérios”, ainda que não se veja erronia no vocábulo “determinações”. Esse
raciocínio identifica-se com a posição adotada por OCTÁVIO CAMPOS FISCHER,
autor que, filiando-se parcialmente as lições de MARÇAL JUSTEN FILHO, assinala
que “[...] o vocábulo ‘objetivo’ é muito mais adequado para figurar no mandamento da
norma tributária, na medida em que, além da base de cálculo e da alíquota, outros são
os componentes necessários para bem delinear o objeto da relação jurídica”. Prefere o
autor, também, manter a utilização do vocábulo “critérios” ao invés de “determinações”:
“Não se duvida que a hipótese ‘descreve’ um fato, enquanto a conseqüência
‘prescreve/determina’ uma certa relação jurídica”. Entretanto, fala em “critérios” não
como entes implícitos na hipótese ou no mandamento, mas como ferramentas
conceituais utilizadas pelo cientista do Direito para conseguir extrair o fato e a relação
previstos na norma jurídica em sua integridade. Com efeito, ainda que o mandamento
prescreva/determine uma relação, entende o autor que “(…) o cientista tem a seu dispor
certos ‘critérios’ para desenhá-la”.343 Serão tratados, no item destinado à análise do
conseqüente tributário, outros detalhes complementares a esse tema.
Hipótese e conseqüência, portanto, equivalem-se em importância, conforme
corrobora o pensamento de PAULO DE BARROS CARVALHO: “(…) a ‘regra-matriz
de incidência tributária’ prevê a ocorrência de um fato apto a fazer nascer uma relação
jurídica, por ela também prescrita abstratamente, na qual uma determinada pessoa se
vê obrigada a levar uma quantia x de dinheiro aos cofres públicos, a título de tributo”.
Em observância aos princípios fundamentais do Direito Tributário, em especial o
341
Obrigação tributária, p. 115.
Imposto..., op. cit., p. 53.
343
A contribuição..., op. cit., p. 37-38.
342
146
“princípio da tipicidade”, o intérprete da norma tributária, na arquitetura dessa regra,
deve fazer do modo mais correto possível a subsunção entre o fato e a norma, para que
reste cumprido integralmente o desígnio constitucional.344
Com relação à classificação das normas jurídicas em “regras de conduta” e
“regras de estrutura”, adotada por PAULO DE BARROS CARVALHO, a regra-matriz
de incidência do ISS – no sentido da fixada pela lei municipal instituidora do tributo –
está entre as regras de conduta, já que objetiva regular diretamente a tributação das
prestações de serviço como fatos jurídicos tributários municipais. Por outro lado,
quando analisamos as normas jurídicas da Constituição, ou as leis nacionais sobre a
matéria, estamos diante de regras de estrutura – também denominadas de regras de
organização – pois estas prescrevem como devem ser produzidas as leis municipais
(regras de conduta) que prescrevem a obrigação de pagar o ISS. Melhor esclarecendo,
regras de conduta são as que “(…) têm como objetivo final ferir de modo decisivo os
comportamentos interpessoais, modalizando-os deonticamente como obrigatórios (O),
proibidos (V) e permitidos (P), com o que exaurem seus propósitos regulativos”; já as
regras de estrutura, “[...] dispõe também sobre condutas, tendo em vista, contudo, a
produção de novas estruturas deôntico-jurídicas”, ou seja, são regras que estabelecem
como outras regras devem ser produzidas, não regulando, diretamente, a conduta de
seus destinatários.345
No campo tributário, portanto, são regras de conduta, dentre outras, as regrasmatrizes de incidência dos tributos, como são exemplos as derivadas das leis municipais
que exigem o ISS dos contribuintes que prestam serviços. E são típicas regras de
estrutura aquelas que definem as competências, como, por exemplo, o artigo 156 da
Constituição Federal, o qual outorga a competência tributária aos Municípios, ou, ainda,
as normas tributárias infraconstitucionais de âmbito nacional, tendo como exemplo a lei
complementar de que trata o artigo 146, III, alínea “a”, da Constituição Federal,
dispositivo que exige essa espécie normativa para a edição das “[...] normas gerais em
matéria de legislação tributária, especialmente sobre [...] definição de tributos e de
suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a
dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”.
Nos subitens seguintes, será aprofundada a análise do conteúdo da regra-matriz
tributária, não só em relação à hipótese de incidência e à conseqüência da norma
344
Ibidem, p. 38.
147
jurídica tributária (visão estática), mas também, ainda que de forma breve, quanto à
relação jurídica tributária, fato jurídico – aqui não no sentido de fato que se subsumiu a
hipótese – que nasce por força do fenômeno da incidência (visão dinâmica).
3.3 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA
3.3.1 Considerações introdutórias
A expressão “hipótese de incidência” é designada por várias outras expressões,
sendo “fato gerador” a mais utilizada no Direito brasileiro, vista por ALFREDO
AUGUSTO BECKER como a mais infeliz, porque “[...] não gera coisa alguma além
de confusão intelectual”, pois a relação jurídica nasce somente após a incidência da
regra jurídica sobre o “fato gerador”, e não somente com a ocorrência desse, em si
mesmo considerado. Como resultado, é comum encontrar na doutrina do Direito
Tributário “[...] autores que, embora dotados de vigorosa inteligência e brilhante
erudição, escrevem – imersos numa atitude mental pseudo-jurídica – capítulos e livros
destituídos de valor jurídico, os quais todavia são excelentes no plano pré-jurídico da
Ciência das Finanças Públicas e da Política Fiscal”.346
AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO também teceu críticas à expressão “fato
gerador”. No entanto, as mesmas restringiram-se ao qualificativo “gerador”, o qual
tinha, para o autor, uma impropriedade, no sentido de que não é o “fato gerador” que
gera a obrigação tributária, sendo, a fonte de tal obrigação, a energia ou força que a cria
ou gera a própria lei. O “fato gerador” seria, apenas, o pressuposto material estabelecido
pelo legislador para que se instaure a relação obrigacional. O autor, contudo, mantém o
uso da expressão “fato gerador”, justificando que a mesma não exclui a virtude de
assinalar que o momento da ocorrência do “fato gerador’ é aquele mesmo em que se
reputa instaurada a obrigação tributária, além da vantagem de o uso do vocábulo “fato”
esclarecer que o “fato gerador” é conceitualmente um fato jurídico e não um ato
jurídico. Por fim, acrescenta o argumento de que a expressão já é comum na
terminologia jurídica.347
345
Direito Tributário..., op. cit., p. 36.
Teoria..., op. cit., p. 288-289.
347
Fato gerador..., op. cit., p. 29-30.
346
148
Essa crítica, no entanto, revelou-se insuficiente, pois manteve a expressão “fato
gerador” como única para referir-se a duas entidades ontologicamente diversas: a
hipótese de incidência e o fato jurídico tributário. Por outro lado, discorda-se da
afirmação de que é a lei a fonte de onde nasce a obrigação tributária, pois como já se
demonstrou anteriormente, a relação jurídica nasce, na verdade, por força do fenômeno
da incidência. Como o tributo é uma obrigação ex lege, surge com a concreta realização,
em um determinado momento, de um fato que está previsto em lei anterior e que da lei
recebeu a força jurídica que determina o nascimento dessa obrigação. Portanto, a
obrigação tributária somente nascerá se e quando ocorrer, no tempo e no espaço, esse
fato concreto, que deve ser idêntico ao previsto na hipótese legal, como defende
ATALIBA.348
Partindo desse raciocínio, esse autor também reforçou as críticas de BECKER
à utilização, por parte da doutrina, da expressão “fato gerador”, para designar tanto a
hipótese legal (conceito abstrato), como o fato efetivamente ocorrido (conceito
concreto), o que causou enorme confusão terminológica que não pode ser aceita, ante
um necessário rigor científico. Diante disso, o autor passou a defender a utilização da
expressão “hipótese de incidência” para referir-se à previsão legal, e “fato imponível”
para o fato realmente ocorrido no mundo fenomênico.349 ATALIBA define a hipótese
de incidência como sendo a “hipótese da lei tributária”: “É a descrição genérica e
abstrata de um fato. É a conceituação (conceito legal) de um fato: mero desenho
contido num ato legislativo”.350
Importante ressaltar, quanto à correta utilização do vocábulo “conceito”, a
distinção entre conceito lógico-jurídico e conceito jurídico-positivo. O primeiro,
também chamado de categoria lógico-jurídica, tem validez universal, não resultando da
interpretação de um determinado sistema jurídico, assim como independe de vínculos
com institutos jurídicos localizados no tempo e no espaço. “É aplicável assim ao direito
vigente como ao revogado ou constituendo. É válido aqui, como alhures, onde haja
direito, porque conceito lógico-jurídico”.351 Como exemplos de conceitos lógicojurídicos, temos: “relação jurídica”, “sanção”, “direito subjetivo”, “dever”, “pessoa”,
“preceito” etc.
348
Hipótese..., op. cit., p. 47-48.
Ibidem, p. 48-50.
350
Ibidem, p. 53-54.
351
Ibidem, p. 54-55.
349
149
Por sua vez, um “conceito jurídico-positivo” está delimitado ao ordenamento
jurídico do qual faz parte, devendo ser resultado da interpretação das normas existentes
e válidas em um dado sistema jurídico, sendo, com efeito, inválido, perante o direito
alienígena. A distinção entre “categoria lógico-jurídica” e “conceito jurídico-positivo” é
dada com propriedade por JUAN MANOEL TERAN:
la validez de un concepto jurídico-positivo está sujeta a la vigencia del
derecho mismo en que se apoya. En cambio, cuando se formula un concepto
lógico que sirve de base para la conceptuación jurídico-positiva, esa noción
se formula con pretensión de validez universal. ... En conclusión: uno es el
plano de los conceptos jurídico-positivos y otro el plano de las nociones o
fundamentos lógico-jurídicos. Los conceptos jurídico-positivos tienen un
ángulo equivalente al de la positividad del derecho concreto que los ha
comprendido e implantado, en tanto que los fundamentos lógicos pretenden
tener una validez común y universal para todo sistema jurídico y, por lo
tanto, para toda conceptuación jurídica. ... Por otra parte, los conceptos
jurídico-positivos son calificados como nociones a posteriori; es decir, se
obtienen una vez que se siente la experiencia del derecho positivo, de cuya
comprensión se trata; en tanto que los otros conceptos, los lógico-jurídicos
son calificados como conceptos a priori; es decir con validez constante y
permanente, independiente de las variaciones del derecho positivo”, como
“Por ejemplo: la noción genérica de persona en derecho, como sujeto de
imputación, no se alterará porque varién los sistemas jurídico-positivos:
seguirá valiendo.352
O conceito de “hipótese de incidência”, portanto, é universal, no sentido de
não ser exclusivo, privativo, de determinado sistema jurídico. É um conceito formulado
pela Ciência do Direito, com alcance limitado ao universo jurídico (conceito da Teoria
Geral do Direito). “Deve-se distinguir o conceito, como ato de pensamento (como
conteúdo de pensamento), do objeto do conceito”, o qual seria o resultado da análise
desse conceito pelo pensamento.353 Entretanto, a hipótese de incidência não é um
simples conceito, mas um conceito legal. Confirma a assertiva a ilustração dada por
ESTEVÃO HORVATH ao conceito de tributo no Direito Tributário brasileiro: “Tributo
é conceito jurídico-positivo – e não lógico-jurídico (Juan Manuel Terán) – e, assim
sendo, o Direito positivo dirá o que é tributo”.354
Isso implica que a hipótese de incidência, como conceito legal, não se
confunde com o seu objeto, que é algum fato ou estado de fato, e que não tem todas as
suas características, mas recolhe e espelha somente aquelas necessárias à sua função
técnico-jurídica. É por isso que, ao intérprete, só interessam, do fato concreto que se
352
Apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 58.
Hipótese..., op. cit., p. 55.
354
Classificação dos tributos. In: BARRETO, Aires Fernandino; BOTTALLO, Eduardo Domingos
(coord.). Curso de Iniciação em Direito Tributário, p. 37.
353
150
subsume à hipótese de incidência, os caracteres que tenham sido contemplados pela lei,
sendo os restantes irrelevantes para esse fim.355 Ainda que na hipótese possamos
visualizar isoladamente seus diversos elementos, como categoria lógico-jurídica ela é
una e indivisível.356 Como resultado, cada hipótese de incidência só é igual a si mesma e
não se confunde com as restantes. Cada tributo, portanto, só é igual a si mesmo.357
A hipótese de incidência não existe só na regra jurídica tributária, cuja
estrutura lógica e atuação dinâmica é idêntica a qualquer outra regra jurídica. A hipótese
de incidência tributária pode ser qualquer fato – ato, fato ou estado de fato – lícito –
econômico ou jurídico – pois do contrário, o objeto da prestação será sanção e não
tributo, conforme ensinamento de BECKER, o qual entendia que o fato escolhido para
base de cálculo exerce a função de núcleo da hipótese de incidência e, por exclusão,
todos os demais fatos exercem a função de elementos adjetivos.358
Como veremos adiante, identificar a localização da base de cálculo no
antecedente foi perdendo espaço na doutrina, pois se verificou mais lógico que, junto
com a alíquota, constituísse ela um dos elementos necessários à quantificação da relação
jurídica tributária, a qual é o objeto da prescrição contida no mandamento da norma.
Entretanto, a tese de BECKER teve o aspecto positivo de prestigiar a necessidade de a
base de cálculo ter uma correspondência lógica com a materialidade da hipótese de
incidência, assim como foi esse autor foi preciso em afirmar a necessidade de a hipótese
de incidência também compreender as coordenadas de tempo e de lugar para a sua
realização.
ATALIBA, apesar de ter defendido, com acerto, que os aspectos da hipótese de
incidência não estão necessariamente arrolados de forma explícita e integrada na lei,
pois, em geral, estão esparsos em um ou diversos textos normativos, estando muitos de
forma implícita no sistema jurídico, e que o caráter múltiplo desses “aspectos” não
ofende a unidade e indivisibilidade da hipótese, incluiu, equivocadamente, na hipótese
de incidência, o aspecto pessoal, ao lado dos demais aspectos, que lhe são lógicos, ou
seja, o material, o temporal e o espacial.
Como resultado, o autor vislumbrava, na hipótese de incidência, a quase
totalidade dos elementos identificáveis na norma tributária, com exceção da alíquota,
355
ATALIBA, Geraldo. Hipótese..., op. cit., p. 56-57.
Exemplo: a hipótese “vender mercadorias” tem como elementos: (a) o ato da venda e (b) o objeto
dessa venda, a mercadoria.
357
ATALIBA, Geraldo. Hipótese..., op. cit., p. 60-61.
358
Teoria..., op. cit., p. 238.
356
151
único integrante, em sua visão, a compor o mandamento. Via, portanto, um aspecto
pessoal, como identificador dos sujeitos ativo e passivo da relação jurídica, integrando a
hipótese de incidência. O aspecto material, qualificado pelos aspectos espacial e
temporal, tinha como perspectiva dimensível a base de cálculo, a qual preferia
denominar de “base imponível”.359 O autor aderia, nesse ponto, ao pensamento de
BECKER, para quem o fato escolhido para base de cálculo exerce a função de núcleo
da hipótese de incidência e todos os demais fatos, por exclusão, exercem a função de
elementos adjetivos.360
Por ouro giro, ATALIBA denominou de “fato imponível” o fato ocorrido no
mundo fenomênico, que, por encontrar absoluta identidade com a descrição prevista na
hipótese de incidência, identifica-se, com essa, no fenômeno denominado de subsunção,
cuja propriedade é a deflagração imediata e automática do nascimento da relação
jurídica tributária. Ao afirmar que “[...] o vínculo obrigacional que corresponde ao
conceito de tributo nasce, por força de lei, da ocorrência do fato imponível”, quis com
isso dizer, pois, que a obrigação tributária não nasce somente da lei, nem somente do
fato imponível por si só, mas da circunstância de tal fato, por ser considerado imponível,
por subsumir-se a uma hipótese de incidência.361 Dizendo de outra forma, o que faz a
obrigação tributária nascer é a incidência da regra jurídica sobre um fato que
corresponde à sua respectiva hipótese de incidência.
Afirma o autor, ainda, que o fato imponível é um fato jurídico, e não um ato
jurídico, porque, quando a lei coloca como aspecto material da hipótese de incidência
um fato que é voluntário para outros ramos do direito, para o Direito Tributário esse
fato será simplesmente fato jurídico, sendo irrelevante sua classificação como fato
voluntário ou não. “Para o direito tributário é irrelevante a vontade das partes na
produção de um negócio jurídico”, sendo sua única vontade a que emana da lei, ainda
que tal vontade seja relevante para os efeitos privados do negócio.362
O qualificativo “imponível” ganhou destaque com as obras “El hecho
imponible”, de DINO JARACH e “Análisis jurídico del hecho imponible”, de SÁINZ
DE BUJANDA, conforme anota JUAN RAMALLO MASSANET, para quem ambos
“[...] son los autores que en mayor medida han profundizado y derivado consecuencias
de la institución del hecho imponible. En relación a este término – hecho imponible –
359
Hipótese..., op. cit., p. 108.
Teoria..., op. cit., p. 238.
361
Hipótese..., op. cit., p. 64.
360
152
ambos autores se han detenido de manera especial en el análisis del calificativo
‘imponible’”.363 O autor espanhol ressalta que, além do qualificativo “imponible”
(imponível), também entende relevante a análise do substantivo “hecho” (fato):
Yo, por mi parte, llamaria tanbién la atención sobre el sustantivo ‘hecho’. En
efecto, ‘hecho’no es más que el participio pasivo irregular del verbo hacer, y
equivale a suceso o cosa que ocurre. La realidad es que el ‘hecho imponible’
es en esencia siempre un verbo (obtener, poseer, gastar, transmitir, ejercer...
algo por alguien); y el verbo, gramaticalmente, constituye el ‘elemento
nuclear ordenador’ de una oración. [...] De ahí que se pueda afirmar: así
como el verbo ordena los demás elementos de la oración gramatical, el hecho
imponible ordena los demás elementos de la obligación tributaria. 364
Percebe-se que a intenção de MASSANET foi demonstrar que a ocorrência do
fato “imponível” ordena – relação de imputação, causalidade – o nascimento da
obrigação tributária, com todos os seus elementos (critérios), previstos de forma abstrata
na regra-matriz de incidência. Já para a hipótese de incidência, o autor expressa-se da
seguinte forma: “[...] la ley no se limita a establecer los supuestos de hecho que, de
darse en la realidad, generan las obligaciones tributarias”.365
JOSÉ JUAN FERREIRO LAPATZA, outro grande professor espanhol,
demonstra, no Direito Comparado, a mesma preocupação em distinguir a realidade
fática da normativa:
Debemos aclarar inmediatamente que con las expresiones ‘presupuesto de
hecho del tributo’ y ‘hecho imponible’ se alude a idéntica realidad, al hecho
hipoteticamente previsto en la norma cuya realización determina el
nacimiento de la obligación tributaria. Ambas expresiones son, pues,
equivalentes; ambas se refieren a lo mismo, si bien cada una de ellas lo hace
desde diferente perspectiva, resaltando distintos matices de aquel hecho al
que se refieren. Cuando decimos ‘presupuesto de hecho del tributo’
resaltamos que tal hecho está supuesto o previsto en la norma, dibujado y
delimitado por ella.366
Para PAULO DE BARROS CARVALHO, a hipótese das normas jurídicas
sempre representa a descrição de um fato, e assim como todos os conceitos, sejam ou
não jurídicos, possui uma integridade lógica – idéia única e incindível – inexistente nos
acontecimentos reais, que podem ser vistos de modo unitário. No entanto, a
indecomponibilidade lógica dos conceitos pode ser transposta pela operação lógica da
362
Ibidem, p. 68-69.
MASSANET, Juan Hamalo. Hecho imponible y cuantificación de la prestación tributaria. Revista de
Direito Tributário, n. 11/12, p. 11.
364
Idem.
365
Idem.
366
Relación jurídico-tributaria – la obligación tributaria. Revista de Direito Tributário, n. 41, p. 25.
363
153
abstração – onde se separa o inseparável – para fins de investigação científica. Portanto,
incorreta é a divisão dos “fatos geradores” em simples e complexos (ou
“complexivos”)367, haja vista que, se as hipóteses tributárias são conceitos lógicos,
gozam de um caráter unitário, sendo impossível serem simples ou complexas, atributos,
todavia, inerentes aos eventos do mundo físico.368
Como exemplo, o referido autor fala sobre o costume em considerar o “fato
gerador” do imposto sobre produtos industrializados, por exemplo, como simples,
porque a mera saída do produto industrializado – IPI, faz nascer a obrigação tributária, e
do imposto de renda como complexo, pela razão de que a ocorrência da renda líquida
tributável dependeria de uma série de acontecimentos, a ocorrerem durante o exercício
financeiro – rendimentos, deduções etc. Ou seja, qualquer fato depende de algo que lhe
é anterior.369
Houve, no entanto, autores que, a partir da obra de PAULO DE BARROS
CARVALHO, elaboraram novos raciocínios, através de inclusões e/ou alterações na sua
fórmula sobre a norma tributária. Dentre esses, podemos destacar, com proveito, as
teses de MARÇAL JUSTEN FILHO370, SACHA CALMON NAVARRO COELHO371,
MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI372, autores que criticam, na estrutura da
norma tributária proposta por PAULO DE BARROS CARVALHO, a ausência de um
critério/aspecto pessoal ou subjetivo na hipótese, mediante o argumento de que o fato
descrito no antecedente sempre estará vinculado a uma pessoa, com o que estaria
incompleto tal modelo.
Todos os citados autores, entretanto, refutam a existência desse critério/aspecto
pessoal na hipótese como apto a identificar o sujeito passivo da relação jurídica, nos
moldes em que defendia GERALDO ATALIBA373. SACHA CALMON NAVARRO
COELHO ilustra esse pensamento com o antigo ICM, pois tal imposto exigia em certas
367
Para AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, “instantâneos” seriam os fatos geradores que “[...] ocorrem
num momento dado de tempo e que, cada vez que surgem, dão lugar a uma relação obrigacional
tributária autônoma”, como é exemplo o fato gerador “importação”, em relação ao imposto de
importação. Já os fatos geradores “complexivos” ou “periódicos” são aqueles “[...] cujo ciclo de
formação se completa dentro de um determinado período de tempo [...] e que consistem num
conjunto de fatos, circunstâncias ou acontecimentos globalmente considerados”, como seria o
exemplo do fato gerador “renda”, em relação ao imposto de renda. – O fato gerador..., op. cit., p.
126-127.
368
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 249-250.
369
Teoria..., op. cit., p.128-129.
370
O imposto..., op. cit., p. 46-52.
371
Teoria geral..., op. cit., p 113.
372
Do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, p. 219-220.
373
Hipótese..., op. cit., p. 77.
154
operações de circulação a figura de determinado sujeito, como o industrial, comerciante,
produtor agropecuário etc., além de defender a utilidade da presença do aspecto pessoal
na hipótese, para explicar institutos de Direito Tributário, como é o exemplo da
“substituição tributária”.374 MARÇAL JUSTEN FILHO também concorda com o
exemplo do antigo ICM, acrescentando, porém, que o “[...] caso mais evidente de
critério pessoal expresso tem-se no campo dos tributos vinculados”.375
OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, com base na idéia da integridade lógica da
norma jurídica como conceito que é, refuta tal raciocínio, defendendo que “[...] a
existência de um critério pessoal na hipótese não é um pressuposto para a incidência
das regras-matrizes de determinados tributos”, sustentando que o fenômeno da
incidência ocorre de modo unitário, sem que possa haver uma cronologia entre hipótese
e conseqüência.376
Em que pese esse respeitável entendimento, quer nos parecer que assiste razão
aos argumentos defendidos por PAULO DE BARROS CARVALHO em sua tese de
livre-docência, acerca da “Regra-Matriz do ICM”, onde o aludido critério pessoal da
hipótese seria excepcional, fortuito, ocasional, quando o objetivo em rigor é identificar
o “[...] arcabouço essencial da norma jurídica tributária, seu mínimo irredutível ou sua
unidade monádica”377. Igualmente pertinentes são as considerações de JOSÉ
ROBERTO VIEIRA, para quem é inegável a existência desse aspecto subjetivo no
antecedente, quando a materialidade refere-se a um comportamento de pessoas e
exigindo verbo pessoal. “A questão é se este dado tem relevância suficiente para ser
elevado à categoria de critério da hipótese de incidência tributária”.
Raramente o terá, sustenta esse jurista paranaense, pois “[...] o único exemplo
a afiançar a tese [...] era o ICM (Constituição de 1967/1969, artigo 23, II)”, alterado
na Constituição Federal de 1988 para o ICMS, em que o fato tributário somente se
considerará ocorrido se a operação de circulação for realizada por certos sujeitos –
industrial, comerciante, produtor agropecuário ou equiparados. Entretanto, já na
vigência da Constituição Federal de 1988, na redação anterior à Emenda Constitucional
nº 20, de 15 dez. 1998, as contribuições sociais sobre a folha de salários, o faturamento
e o lucro, também dependiam da existência do sujeito “empregadores”, conforme
374
Teoria geral..., op. cit., p. 114.
O imposto..., op. cit., p. 51.
376
A contribuição..., op. cit., p. 40.
377
Apud VIEIRA, José Roberto. A regra-matriz..., op. cit., p. 64.
375
155
raciocínio de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER em relação à Contribuição ao PIS378.
Quanto à existência dos critérios material, espacial e temporal na hipótese de incidência,
não restam divergências.
Além da visão estática da regra-matriz de incidência tributária, ou seja, do
sentido abstrato do texto normativo, pode-se visualizar a norma jurídica tributária
também pela sua visão dinâmica, o que é possível através do estudo da fenomenologia
da incidência, com o acontecimento concreto do fato ocorrido no mundo fenomênico
que, por força de sua subsunção àquela previsão normativa, faz irromper o nascimento
da relação jurídica tributária.379
Entretanto, disso surge a necessidade de posicionamento quanto à terminologia
a ser utilizada para este fato ocorrido, posto que a validez de um método científico exige
que duas realidades tão diversas recebam também diversa denominação. Conforme já
mencionado no início deste subitem, esta já era a preocupação de BECKER, pois a
expressão “fato gerador”, infelizmente ainda utilizada pela legislação tributária e
felizmente repudiada pela doutrina dominante, abrange em seu conteúdo semântico
aquelas duas realidades estanques, resultando em equívoco que, conquanto existente na
linguagem do Direito Positivo, é inadmissível na linguagem da Ciência do Direito.
Quanto ao antecedente da regra-matriz tributária, a expressão “hipótese de
incidência”, cunhada por GERALDO ATALIBA, logrou obter grande adesão da
doutrina e jurisprudência, assim como o vocábulo “antecedente”, não se vislumbrando,
em relação a eles, qualquer impeditivo científico. Por outro lado, o mesmo não se pode
dizer da expressão “fato imponível”, com que GERALDO ATALIBA denominou o
evento ocorrido no mundo e que se identifica com a sua descrição normativa, pois, se é
imponível, ainda não pode ser tido como fato ocorrido, e, após a incidência, com a sua
ocorrência efetiva, deixará de sê-lo (imponível), conforme crítica precisa de PAULO
DE BARROS CARVALHO, autor que defende as expressões “hipótese tributária”
para a prescrição geral e abstrata, e “fato jurídico tributário”, para sua equivalente
ocorrência efetiva no mundo, as quais reputamos plenamente válidas em relação à
realidade a que se referem.380
378
A contribuição..., op. cit., p. 39-40.
Vide infra, subitem 3.4.
380
Curso..., op. cit., p. 244-245.
379
156
Antes da análise dos critérios da hipótese de incidência tributária, é necessário
consignar algumas premissas, que serão de supina relevância em toda a argumentação
relativa ao local de ocorrência do fato tributário do ISS.
MARÇAL JUSTEN FILHO lembra que “[...] o Direito não pode alterar o
mundo físico, mas pode alterar a relevância desses fatos”. É o Direito que determina o
que integrará o seu mundo (jurídico), que não são os fatos como tais, mas os fatos como
juridicamente relevantes. Os fatos não têm eficácia jurídica própria, mas apenas aquela
que o Direito lhes reconhece. Nesse sentido, é comum designar por ficção jurídica “[...]
a situação que se passa quando o Direito determina que não se produzam efeitos
atribuídos por ele próprio a uma situação fática determinada, ou quando determina que
se produzam certos efeitos sem que a situação fática usualmente imprescindível faça-se
presente” [sic]. Assim como ALFREDO AUGUSTO BECKER381, MARÇAL JUSTEN
FILHO vê na utilização do vocábulo “ficção” um despropósito, pois “[...] em termos
puramente jurídicos, aí não se passa algo diverso do que se dá nos demais casos”. Não
há confusão entre os mundos do ser e do dever-ser.382
Transpondo o raciocínio anterior ao tema do aspecto espacial da hipótese de
incidência, conclui o autor que “[...] teríamos de reconhecer a plena possibilidade de a
norma eleger uma situação fática qualquer para desencadear a incidência de seu
mandamento – ainda que essa situação fática viesse a ocorrer em um espaço
geográfico sobre o qual a pessoa política editora da norma não dispusesse de
competência. Essa possibilidade é ilimitada no caso de Estados soberanos e pode ser
limitada no tangente a normas editadas por pessoas políticas de uma Federação”, o
que não ocorreu no Brasil, onde não há norma constitucional expressa que afete o
aspecto espacial da hipótese de incidência das normas tributárias, o que não ocorre em
relação ao aspecto temporal, por força dos princípios da irretroatividade e da
anterioridade. Como resultado, lembra o autor que podem surgir dúvidas sobre a
possibilidade de um Município tributar serviço prestado em território de outro
Município.383
Todavia, as dúvidas desaparecem quando lembramos que os fatos são no
tempo e no espaço, como já dizia PONTES DE MIRANDA, ou seja, têm data e lugar.
Os critérios da hipótese de incidência – denominada por esse autor de suporte fático –
381
Teoria..., op. cit., p. 464.
O imposto..., op. cit., p. 143.
383
Ibidem, p. 143-144.
382
157
podem apresentar uma relação de tempo de sucessão e simultaneidade. A regra jurídica
(conseqüência) e o suporte fático devem coexistir no momento em que se dê a
incidência, não sendo preciso que tal ocorra no momento da aplicação, o que é
importante na análise de regras retroativas.384
Diante disso, e partindo sempre da perspectiva de que a descrição abstrata do
fato do mundo a ser tributado deve propiciar ao destinatário da norma o máximo
possível de segurança jurídica, a hipótese resultaria insuficiente se só revelasse a
materialidade desse evento. Como o próprio vocábulo implicitamente acusa, se é
evento, ocorre em determinado lugar e em determinado momento do tempo. É
necessário, portanto, que o critério material da hipótese de incidência seja qualificado
pelo critério espacial, o qual fornecerá as coordenadas de espaço para poder identificar
onde se considerará ocorrido o fato jurídico tributário; e também pelo critério
temporal, revelador das coordenadas de tempo imprescindíveis ao conhecimento do
momento exato em que um fato do mundo poderá ser considerado jurídico, por
subsumir-se àquela materialidade já localizada no espaço.
É crucial a verificação de que os critérios da hipótese de incidência – material,
espacial e temporal – não obstante poderem ser analisados de forma individualizada,
com abstração dos demais, no plano da Ciência do Direito, são inseparáveis no plano
fático, o que implica a impossibilidade lógica de dissociação desses critérios em relação
ao fato tributário, assim como a qualquer outro fato jurídico. O que se quer defender é
que os critérios da hipótese de incidência, quando da análise da regra-matriz
constitucional do tributo, são interdependentes e, como resultado, não é permitido ao
legislador ordinário, quando da instituição do tributo, ampla margem de liberdade na
escolha desses dados. Como a Constituição tem a materialidade como o critério
expresso para a repartição de competências tributárias, resta inequívoco que os demais
critérios – espacial e temporal – também já estão previstos no contexto constitucional,
ainda que de forma implícita.
Qualquer outra conclusão, por força de raciocínio lógico, é juridicamente
absurda, pois, para cada critério material, somente pode haver um critério espacial e um
critério temporal, como efetivamente ocorre em sede constitucional. Caso se admita que
possa a lei, complementar ou ordinária, dispor em sentido contrário, estar-se-á a admitir
a falácia de que a Constituição é (extremamente) flexível, podendo ser alterada de
384
Tratado..., v.1., op. cit., p. 76-78.
158
acordo com o rumo das (in)conveniências do legislador infraconstitucional. Conforme
adverte GERALDO ATALIBA, ainda que se possa visualizar na hipótese de incidência
seus diversos elementos isoladamente, como categoria lógico-jurídica, ela é una e
indivisível.385
3.3.2 Critério material
O critério material é o núcleo da hipótese, referindo-se a um comportamento
pessoal, isolado das condicionantes de espaço e tempo, o que o distingue da “descrição
objetiva do fato”, pois caso assim fosse conceituado confundir-se-ia com toda a
hipótese, resumindo-se, na verdade, a um verbo seguido de um complemento. Com
relação a esse verbo, adverte PAULO DE BARROS CARVALHO que não podem ser
utilizados os pertencentes à classe dos impessoais (como haver), assim como estão
desqualificados os que não possuem sujeito (como chover), sob pena de inviabilizar o
alcance da operatividade dos fins normativos. É de rigor, portanto, a existência de um
complemento do predicado verbal, o que impede a utilização de verbos de sentido
completo. Em síntese, o verbo deve ser pessoal e de predicação incompleta, o que exige
sempre a presença de um complemento.386
JOSÉ ROBERTO VIEIRA acrescenta que o complemento pode ser um objeto
direto ou indireto, o que exclui verbos impessoais, sejam os essenciais, os quais
exprimem, por exemplo, fenômenos da natureza, ou os acidentais, como, por exemplo,
“haver”, na acepção de existir; “fazer” indicando decurso de tempo etc.; e também,
regra geral, os verbos unipessoais, que são aqueles que, por exemplo, exprimem uma
ação ou um estado peculiar a um determinado animal.387
Como resultado da unidade lógica e incindível da regra-matriz tributária resulta
o corolário da interdependência dos critérios da hipótese – material, espacial e temporal.
O critério material, como núcleo da hipótese, condiciona os critérios espacial e
temporal. Do fato de a Constituição, nos dispositivos que outorgam as competências
tributárias, ter-se referido expressamente só às materialidades, não autoriza concluir não
tenha também fornecido, ainda que implicitamente, o que não reduz o alcance do
raciocínio, os demais critérios. Por essa razão, o legislador infraconstitucional não pode
385
Hipótese..., op. cit., p. 60-61.
Curso..., op. cit., p. 255.
387
A regra-matriz..., op. cit., p. 63.
386
159
alterar os critérios espacial e temporal, pois assim agindo estará inevitavelmente
tributando materialidade diversa daquela descrita na hipótese tributária. Como exemplo,
se a norma determina que o critério espacial do fato tributário do ISS é o local
(município) onde está seu domicílio, a tributação passa a incidir não mais sobre a
prestação do serviço, como quer a Constituição, mas sobre o fato de manter-se uma
sede.388
A materialidade da hipótese de incidência também é o critério que vinculará a
eleição do sujeito passivo, do que se conclui que o legislador, quando da conclusiva
criação do tributo, não possui plena discricionariedade para eleger quem figurará no
pólo passivo da obrigação tributária. Não desmente essa afirmação o fato de, em muitos
casos, o destinatário constitucional tributário, para usar a expressão de MARÇAL
JUSTEN FILHO, não ser o sujeito passivo, mas figurar como substituído tributário. É
que, em tais casos, o sujeito passivo, qualificado como substituto, além de estar
obrigatória e diretamente vinculado à materialidade da hipótese tributária, deverá ter
condições jurídicas de transferir o ônus econômico do tributo ao contribuinte
substituído.389
3.3.3 Critério temporal
O tempo, isoladamente, não é fato jurídico, mas entra, como fato, no suporte
fático de fatos jurídicos. “O tempo [...] pode ser tido como extensão em que fatos
positivos, ou fatos negativos ocorram”.390 O tempo pode ser elemento do suporte fático,
para que, com a incidência da regra jurídica, nasça o direito, ou que ocorra a sua
extinção. Nas palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO, no âmbito tributário, o
critério temporal é “[...] o marco de tempo, indicado no contexto da regra instituidora
do tributo, e que nos permite saber do momento exato quando surde à luz o liame
jurídico que vincula credor e devedor em função de um objeto”.
Acrescenta o autor: “De extraordinário relevo, é por tal indicação que temos
ciência do nascimento de um direito subjetivo público, para o Estado, de um dever
jurídico, para o sujeito passivo, a despeito de o laço haver-se instalado com grau de
388
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 74-75.
Sujeição..., op. cit., p. 262.
390
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado..., v.1., op. cit., p. 78-80.
389
160
eficácia mínima ou média, no caminho da tese de Pontes de Miranda e de Alfredo
Augusto Becker, que também acolhemos”.391
O critério temporal, portanto, constitui o grupo de indicações que permitem
conhecer o exato momento em que ocorre o fato descrito na hipótese, fator de extrema
importância, pois indica o momento exato do surgimento, no mundo jurídico, da relação
jurídica tributária. No entanto, da exacerbação desse fenômeno, o legislador, e parte da
doutrina e da jurisprudência, passaram a confundir o critério temporal de certos
impostos com a descrição integral da hipótese de incidência, o que ocorreu de forma
acentuada em tributos como o IPI e o ICMS, cujas disposições legais prevêem, em
síntese, que a hipótese tributária (“fato gerador”) é, conforme o caso, a saída ou entrada
do produto ou da mercadoria.
O artigo 116 do Código Tributário Nacional dispõe que, “Salvo disposição de
lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as
circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são
próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja
definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável”. Na linguagem do Código,
o artigo 116, portanto, define o “momento de ocorrência do fato gerador”.
Essa redação foi alvo de acertadas críticas pelo professor PAULO DE
BARROS CARVALHO, para quem o legislador cometeu erro jurídico grosseiro, “[...]
ao diferenciar as situações jurídicas, sabendo que as primeiras (situações de fato), uma
vez contempladas pelo direito, adquiriram a dignidade de situações jurídicas”.392 Mais
adiante, contudo, o autor esclarece que, não obstante sua crítica, o conteúdo do artigo
116 apresenta méritos, pelo que não é de ser desprezado.
O inciso I, quando usa a expressão “[...] situações de fato”, na verdade quer se
referir aos meros fatos jurídicos, não qualificados como institutos jurídicos, ou seja,
entidades cuja definição não se encontrava antes positivada pelo sistema jurídico. Um
exemplo é o fato “auferir renda”, tributável pelo imposto sobre a renda, previsto no
artigo 153, III, da Constituição de 1988. Já no inciso II, a expressão “[...] situações
jurídicas” refere-se aos institutos já anteriormente qualificados pelo direito, como, de
regra, os atos e negócios jurídicos, como é exemplo a compra e venda de bens imóveis,
onde a respectiva transmissão é tributada pelos municípios através do ITBI (artigo 156,
391
Hipótese de incidência do ICM. Revista de Direito Tributário, n. 11/12, p. 264-265.
161
II). Em rigor, entende-se como parcialmente falha essa distinção, pois esse artigo,
indevidamente, não considera “fato” como “situação jurídica”, pois qualquer fato que
esteja previsto hipoteticamente em lei adquire qualificação jurídica. 393
Uma advertência importante reside na correta interpretação que exige a
expressão “Salvo disposição de lei em contrário...”, constante do início do caput do
artigo 116 do Código Tributário Nacional. É que se o fato jurídico tributário somente
surge após a concretização de sua materialidade no mundo fenomênico, a liberdade do
legislador ordinário existe para fixar o momento de ocorrência do fato tributário em
qualquer átimo, desde que posterior àqueles previstos nos incisos I e II do mesmo artigo
116. Comunga desse entendimento o professor AIRES BARRETO: “[...] o artigo 116,
do CTN, não é norma autorizativa de exigência de tributo antes da ocorrência do fato
tributário”.394 Nesse aspecto, é importante o que dispõe o artigo 144, também do
Código Tributário Nacional, ao prever que “O lançamento reporta-se à data da
ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que
posteriormente modificada ou revogada”.
É pacífico, na doutrina tributária, que inexistem fatos tributários cuja formação
é prolongada no tempo, havendo um instante exato, no tempo, em que se reúnem todos
os elementos fenomênicos caracterizadores do fato jurídico. Todos os eventos, ocorridos
antes dessa ultimação, não são fatos jurídicos, ainda que, somados, sejam
imprescindíveis à configuração do fato tributário. “Ao Direito só interessam os
específicos momento e local em que se completou o fato imponível”.395
Será inconstitucional, portanto, toda lei que estabeleça, por meio de indevida
ficção jurídica, critério temporal como um momento outro que não aquele em que
ocorre aquela específica materialidade ou, em momento posterior à sua concretização.
Não há o menor indício de que a Constituição tenha autorizado a criação de ficções
jurídicas em matéria de competência tributária. Portanto, padecerá de irremediável
inconstitucionalidade a eventual lei complementar ou ordinária que venha a estatuir,
como critério temporal, momento dissociado da regra-matriz constitucional, ainda que,
no primeiro caso, a pretexto de dispor sobre conflitos de competência.396
392
Curso..., op. cit., p.273.
Ibidem, p. 273-274.
394
ISS na Constituição e na lei, p. 300.
395
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 74.
396
Idem.
393
162
3.3.4 Critério espacial
O conhecimento dos critérios material e temporal da hipótese de incidência
permite, mediante raciocínio lógico, identificar qual seja o mandamento constitucional
implícito acerca do seu critério espacial. O critério espacial identifica o local onde
ocorre o fato jurídico, não se restringindo ao âmbito de validade territorial da lei, ou
seja, pode coincidir com o campo de eficácia da lei, mas com este não se confunde
ontologicamente. Esse critério sempre está presente na hipótese tributária, seja de forma
expressa ou implícita, cabendo a opção ao legislador. PAULO DE BARROS
CARVALHO classifica o gênero tributo, em relação ao seu critério espacial, da seguinte
forma: (a) hipótese cujo critério espacial menciona determinado local para a
ocorrência do fato tributário, como são exemplos os impostos que gravam o comércio
exterior, como o Imposto de Importação e o Imposto de Exportação, cujo critério
espacial são as repartições alfandegárias; (b) hipótese em que o critério espacial alude
a áreas específicas, quando o acontecimento ocorrerá somente se estiver
geograficamente contido dentro delas, como o imposto municipal IPTU (zona urbana do
município) e o imposto federal ITR (zona rural do município); e (c) hipótese de critério
espacial bem genérico: o fato será tributário sempre que ocorra dentro do âmbito de
validade territorial da norma, estando nesta espécie todos os demais, como o ICMS, o
ISS ou o IPI, exceto, quanto a este último, o que incide sobre a importação, quando
então se enquadrará na primeira espécie, por ocorrer o fato somente na repartição
aduaneira.397
É preciso, entretanto, compreender que, na hipótese da letra “c” acima, o
critério espacial, por se confundir com o próprio âmbito de validade da lei, não pode ser
ampliado por iniciativa do legislador tributário, sob pena de violação do critério
territorial que, junto com o critério material, constituem os elementos escolhidos pela
Constituição na discriminação das competências tributárias. Ou seja, o legislador
constituinte não distribuiu as competências tributárias somente em razão das matérias
(ratione materiae), como também o fez em razão do âmbito espacial (territorial) de
vigência da lei de cada uma das pessoas políticas (ratione loci).
Quando da instituição do tributo, portanto, pode o legislador reduzir o âmbito
espacial de validade da lei, mas não pode ampliá-lo, sob pena de grave ofensa à
397
Curso..., op. cit., p. 258.
163
Constituição. Esse raciocínio será de extrema relevância para o objeto principal desse
estudo, o critério espacial do ISS, pois servirá como princípio balizador para definir
onde se considera ocorrido o fato tributário desse imposto municipal.
3.4 A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA
3.4.1 Considerações introdutórias
Além da hipótese tributária, a regra-matriz de incidência contempla ainda o
conseqüente, ou mandamento, que é o prescritor da relação jurídica que se instaurará,
de forma automática e infalível, caso o evento da hipótese se concretize. Ou seja, o
conseqüente fornece-nos os critérios necessários a identificar o vínculo jurídico que
nasce, “[...] facultando-nos saber quem é o sujeito portador do direito subjetivo; a
quem foi cometido o dever jurídico de cumprir certa prestação; e seu objeto, vale dizer,
o comportamento que a ordem jurídica espera do sujeito passivo e que satisfaz, a um só
tempo, o dever que lhe fora atribuído e o direito subjetivo de que era titular o sujeito
pretensor”.398
A estrutura da regra-matriz tributária idealizada por PAULO DE BARROS
CARVALHO representou um verdadeiro marco no Direito Tributário, por ter
desmistificado o pensamento de outros autores que, apesar da excelência, insistiam em
supervalorizar o antecedente em detrimento do mandamento da norma jurídica
tributária. Sua noção da estrutura lógica da norma tributária rompeu com o pensamento
de uma série de renomados tributaristas, labor levado a cabo pelas exigências do rigor
científico. Isso verifica-se especialmente pela sua configuração do conseqüente, cujos
critérios, são dois: o “pessoal” e o “quantitativo”.
O critério pessoal trata do conjunto de elementos existente no prescritor da
norma, indicando os sujeitos da relação jurídica. De um lado, o sujeito ativo (credor ou
pretensor) e, de outro lado, o sujeito passivo (devedor). Noutro giro, o critério
quantitativo, na visão desse autor, fornece o objeto da prestação que, para a regramatriz tributária, é constituído pela base de cálculo e pela alíquota. 399
398
399
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 280-281.
Idem.
164
A visão da conseqüência da regra-matriz tributária, idealizada por PAULO DE
BARROS CARVALHO, à semelhança do que ocorreu em relação à hipótese de
incidência, também sofreu propostas de alteração de parte da doutrina. SACHA
CALMON NAVARRO COÊLHO entende que, no mandamento, além da base de
cálculo, alíquota e dos sujeitos ativo e passivo, há outros critérios pertinentes à relação
jurídica que se forma com a realização da hipótese de incidência: como, onde, de que
modo, quando e em que montante deve ser satisfeito o débito para com o sujeito
ativo.400
Para o autor, ao reduzir o aspecto quantitativo da conseqüência a tão-somente
dois elementos – a base de cálculo e a alíquota – PAULO DE BARROS CARVALHO
restringiu o alcance de sua teoria, por duas razões: (a) há tributos que sequer apresentam
base de cálculo e alíquota, como ocorreria freqüentemente com as taxas, e (b) há outros
tributos, mais complexos, como são exemplos o imposto de renda (IR), o imposto sobre
operações relativas à circulação de mercadorias (ICMS), o imposto sobre produtos
industrializados (IPI) e o imposto territorial rural (ITR), dentre outros, os quais exigem,
após a aplicação da alíquota à base de cálculo, outros elementos como adições,
deduções e cálculos, seja pela complexa quantificação, seja pela obediência à nãocumulatividade, sem os quais não seria possível fixar o valor da prestação devida pelo
sujeito passivo.401
O equívoco no raciocínio desse autor foi bem demonstrado por JOSÉ
ROBERTO VIEIRA, para quem os procedimentos necessários à apuração da base de
cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas “[...] constituem operações
cronologicamente anteriores à mesma; e, em verdade, tais passos estão embutidos na
base de cálculo, compondo-a em sua plenitude”. Quanto ao ICMS e ao IPI,
diversamente do que ocorre em relação ao Imposto de Renda, os procedimentos de
apuração do saldo devedor e/ou credor, mediante o encontro de débitos e créditos, “[...]
só terão lugar em átimos posteriores à atuação da base de cálculo, permanecendo
irretocável, uma vez mais, o critério quantitativo do conseqüente tributário” (grifos do
autor).402
MARÇAL JUSTEN FILHO também apresenta divergência em relação à
posição de PAULO DE BARROS CARVALHO, apesar de admitir concordar com a
400
Teoria geral..., op. cit., p. 117.
Ibidem, p. 117-118.
402
A regra-matriz..., op. cit., p. 124.
401
165
essência do raciocínio desse mestre. O jurista paranaense, em primeiro lugar, somente
aceita a utilização do vocábulo “critérios” para o antecedente, discordando da
utilização desse vocábulo para o mandamento da norma, defendendo que a
conseqüência, na verdade, abrangeria “determinações subjetiva e objetiva”.403
A “determinação subjetiva” compreende o mandamento, no que diz respeito
aos sujeitos ativo e passivo da relação jurídica tributária. Por sua vez, a “determinação
objetiva” consiste na imposição da conduta que é imposta ao sujeito passivo em
benefício do sujeito ativo, repelindo, esse autor, o vocábulo “quantitativo” aludido por
PAULO DE BARROS CARVALHO, por defender que, cientificamente, “[...] a norma
determina o objeto da relação jurídica – não uma quantia”.404
Para o referido autor, a razão está em que, se na conseqüência devem estar
previstos todos os elementos necessários à identificação do objeto da relação jurídica,
imprescindível que ali estejam também definidos, além da base de cálculo e alíquota, os
dados necessários a informar o local onde a conduta exigida deverá ser satisfeita (onde
pagar), assim como o momento em que esta deverá ocorrer (quando pagar), como
determinações espacial e temporal do mandamento normativo. No entanto, para evitar
um esquema de muita complexidade, prefere manter o entendimento de que o
mandamento contém determinações subjetiva e objetiva, essa última compreendendo as
determinações quantitativa, espacial e temporal.
Apesar da bem fundamentada crítica a tais posições realizada por JOSÉ
ROBERTO VIEIRA, o qual defende que ao “como”, “quando” e “onde” pagar, “[...]
embora revestidas de significação econômica, constituem questões de menor relevância
jurídica, às quais falta sintonia com a idéia de regra-matriz dos tributos como
arcabouço essencial, mínimo irredutível, unidade monádica”, defende-se, salvo melhor
juízo, que, por força de princípios constitucionais como o da segurança jurídica e o da
certeza do direito, não há como divergir da idéia de que o objeto da relação jurídica
tributária não se restringe ao produto da operação matemática entre a base de cálculo e a
alíquota.405
Concorda-se, no entanto, que, salvo o “quando” e o “onde” pagar, os quais
devem estar presentes no mandamento da norma tributária, o “como” pagar – como, por
403
O imposto..., op. cit., p. 53.
Idem.
405
A regra-matriz..., op. cit., p. 68.
404
166
exemplo, o tipo de guia de recolhimento – é elemento melhor situado em ato expedido
pelo executivo, não advindo disso maiores prejuízos aos contribuintes.
Por outro lado, entende-se plenamente procedentes as críticas de JOSÉ
ROBERTO VIEIRA em relação à inclusão, no critério quantitativo, além da base de
cálculo e da alíquota, das adições e deduções de que fala SACHA CALMON
NAVARRO COÊLHO: “Ora, adições e subtrações posteriores à base de cálculo são
irrelevantes, pois também posteriores à norma-padrão e aos seus efeitos; e as adições e
subtrações anteriores já se presumem embutidas na base de cálculo”.406
Quanto ao vocábulo utilizado, prefere-se manter “critérios” ao invés de
“determinações”, pois, apesar da correta argumentação desenvolvida por MARÇAL
JUSTEN FILHO, no sentido de que o mandamento determina uma relação jurídica, não
se visualiza uma incompatibilidade desse raciocínio específico com o entendimento de
que a conseqüência disponibilize “critérios”, para que o cientista do direito possa
construir a estrutura da relação jurídica tributária. Ou seja, temos que ambos os
raciocínios estão corretos, pois partem de perspectivas diversas, não havendo
necessariamente conflito entre “determinações” e “critérios”.
Conforme ensinamento de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, fala-se em
“critérios” não como entes implícitos na hipótese ou no mandamento, mas como
ferramentas conceituais utilizadas pelo cientista do Direito para conseguir extrair o fato
e a relação previstos na norma jurídica em sua integridade. Com efeito, ainda que o
mandamento prescreva/determine uma relação, entende-se que “[...] o cientista tem a
seu dispor certos ‘critérios’ para desenhá-la”.407
Com efeito, a conseqüência constitui, na estrutura da norma jurídica tributária,
a prescrição da regra aplicável, caso o evento descrito abstratamente na hipótese venha a
ocorrer no mundo fenomênico. Dizendo de outro modo, é a parte da norma que
prescreve quais são os efeitos jurídicos que nascerão simultaneamente à ocorrência do
fato jurídico tributário, que é o momento em que se dá o fenômeno da incidência. Tais
efeitos jurídicos, previstos hipoteticamente na norma jurídica, constituem a descrição
normativa da relação jurídica a instaurar-se com a ocorrência daquele fato. Caso uma
norma jurídica já esteja apta a produzir tais efeitos jurídicos, dizemos que ela já possui
eficácia jurídica, a qual não se confunde com a eficácia social e nem com essa possui
relação de dependência.
406
Idem.
167
O fenômeno da incidência é assunto tratado pelo estudo da atuação dinâmica
da norma jurídica. Na doutrina pátria, grande foi a contribuição de PONTES DE
MIRANDA nesse tema, o qual defendia que a incidência independe de sua efetiva
aplicação, ou do respeito à regra jurídica, que é questão a ser analisada à luz da
Sociologia do Direito, e não da Teoria Geral do Direito. A incidência é infalível. Não se
pode confundir a eficácia da regra jurídica, que é a da sua incidência (eficácia só da lei),
com a eficácia jurídica, que se refere aos efeitos dos fatos jurídicos (eficácia da lei e do
fato, cumulativa). “As conseqüências da incidência são fato, como os outros, portanto
algo a mais no mundo jurídico”, como, e.g., o surgimento de relações jurídicas.408
Para que a regra jurídica incida, é preciso que o fato se identifique com toda a
hipótese de incidência – “suporte fático abstrato” – na expressão utilizada por
PONTES DE MIRANDA – quando então será fato jurídico. Se o “suporte fático
concreto” não é suficiente, a regra jurídica deixa de incidir. A eficácia só se perquire
depois da incidência, pois ainda quando simultâneas, esta é um prius lógico. Importante,
pois, a prova do suporte fático e da sua suficiência.409
ALFREDO AUGUSTO BECKER trouxe os ensinamentos de PONTES DE
MIRANDA sobre a incidência para o Direito Tributário, em contribuição de inestimável
valor. A incidência da regra jurídica, dizia BECKER, é infalível, o que falha é o respeito
aos efeitos jurídicos dela decorrentes, e que não há regra ordenando a incidência –
automatismo – pois que essa é infalível pela especificidade do jurídico como
instrumento praticável de ação social.410
Essa infalibilidade não contradiz aquilo que o autor denomina de “atitude
mental jurídica”, que é o conhecimento e respeito aos efeitos das regras jurídicas, pois a
sua falta é reparada pela Doutrina Jurídica, pelo Advogado, pelo Judiciário, pelo Órgão
Executivo. A não-sujeição também não altera ou enfraquece essa infalibilidade ou ainda
a coercibilidade da eficácia jurídica, posto que é somente na não-sujeição que se torna
necessário o exercício da coação, hoje monopólio do Estado. O Judiciário, portanto, não
“aplica” a lei, mas analisa se houve ou não a incidência da regra jurídica, seus efeitos
jurídicos e, caso o sujeito passivo ainda ignore ou não se sujeite à eficácia jurídica,
então intervém o Órgão Executivo através da coação.
407
A contribuição..., op. cit., p. 37-38.
Tratado..., v.1., op. cit., p. 62-64.
409
Ibidem, p. 72-74.
410
Teoria..., op. cit., p. 280.
408
168
Esse tema é de enorme importância, já que o objetivo primordial do Direito,
que é o de ordenar a vida social nas suas relações de intersubjetividade, tem sua
operatividade através da relação jurídica, a qual, surgindo com a ocorrência dos fatos
jurídicos, irradia direitos e deveres que são os efeitos prescritos na conseqüência da
norma. Com base nisso, PAULO DE BARROS CARVALHO ressalta que “[...] o
prescritor normativo é o dado por excelência da realização do direito, porquanto é
precisamente ali que está depositado o instrumento da sua razão existencial”. Esse
autor bem adverte que a expressão relação jurídica possui mais de uma acepção, e que
a que utiliza nesse contexto é a da Teoria Geral do Direito: 411 “[...] vínculo abstrato,
segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito
ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada de sujeito passivo, o
cumprimento de certa prestação”.412
A relação jurídica, para nascer, exige somente a imputação normativa, sendo
irrelevante que haja, anteriormente à disciplina jurídica, um liame de caráter
sociológico, político, econômico, ético, religioso ou biológico. A relação jurídica é
sempre entre dois sujeitos, vinculados a um objeto, o qual é o “[...] centro de
convergência do direito subjetivo e do correlato dever”.413 Do ponto de vista lógico, a
relação jurídica é irreflexiva, pois é perante outro sujeito, e assimétrica, já que enquanto
o sujeito ativo tem “um direito a”, o sujeito passivo tem “a obrigação de”,
constituindo uma relação conversa, o que é expresso pelo referido autor na seguinte
fórmula: S’ R S” implica sempre em S” Rc S’. A hipótese normativa liga-se à
conseqüência pelo elo da imputação deôntica, e a relação jurídica, de forma diversa,
rege-se pelas leis da lógica.414
Dentre as possíveis classificações dos elementos da relação jurídica, destaca-se
aquela segundo a qual, quanto ao objeto, o critério que seleciona as espécies é o caráter
patrimonial da prestação, teorização levada a efeito em especial pelos civilistas. No
âmbito do Direito Tributário, parte da doutrina, a exemplo de PAULO DE BARROS
CARVALHO415, RICARDO LOBO TORRES416, JOSÉ ROBERTO VIEIRA417,
411
Outras acepções para “relação jurídica”, por exemplo: liame de parentesco; laço processual que
envolve autor, juiz e réu.
412
Curso..., op. cit., p. 282-283.
413
Ibidem, p. 284.
414
Idem.
415
Ibidem, p. 286-287.
416
Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 212.
417
A regra-matriz..., op. cit., p. 65-66.
169
entende que as relações suscetíveis de avaliação econômica são denominadas de
relações jurídicas de cunho obrigacional, e na hipótese contrária, relações jurídicas não
obrigacionais, ou veiculadoras de meros deveres.
Em sentido contrário, temos, também como exemplos, os pensamentos de
MARÇAL JUSTEN FILHO, para quem a “[...] conduta humana é insuscetível de
consideração patrimonial”418; e de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, o qual em síntese
defende – com base no que está positivado nos parágrafos 1º e 2º do artigo 113 do
Código Tributário Nacional419 – que “[...] tanto as prestações de cunho patrimonial,
quanto as prestações que não o têm, são, pelo direito positivo brasileiro, caracterizadas
como obrigacionais”.420
Adotamos a primeira posição, em especial pela sua identificação com a
denominação “deveres instrumentais”, ou também “deveres formais”, dada pela
doutrina dominante, em substituição à imprópria expressão “obrigações acessórias”,
que, ao lado da expressão “obrigação principal”, foi infelizmente positivada no Código
Tributário Nacional, já que necessariamente não há vínculo de acessoriedade entre tais
espécies de relações jurídicas.
RICARDO LOBO TORRES define a relação jurídica tributária como aquela
que “[...] estabelecida por lei, une o sujeito ativo (Fazenda Pública) ao sujeito passivo
(contribuinte ou responsável) em torno de uma prestação pecuniária (tributo) ou não
pecuniária (deveres instrumentais)”, em conceito que tem a virtude de demonstrar as
espécies de objetos possíveis em uma relação jurídica tributária. 421
Não se pode concordar, entretanto, quanto à restrição da figura do sujeito ativo
à Fazenda Pública, posto não haver óbice na Constituição Federal para que, por força do
fenômeno da parafiscalidade, seja a capacidade tributária ativa delegada à pessoa de
direito privado, como acontece, por exemplo, com as contribuições sindicais. Também
discordamos, sob uma perspectiva eminentemente jurídica, da clássica divisão do
sujeito passivo em contribuinte ou responsável, por ser classificação correta somente do
ponto de vista econômico-financeiro.
418
Sujeição..., op. cit., p. 61.
“Artigo 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a
ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e
extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorrente da
legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no
interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º [...]”.
420
BORGES, José Souto Maior. Obrigação tributária: uma introdução metodológica, p. 81.
421
Curso..., op. cit., p. 205.
419
170
A relação jurídica tributária, portanto, não se reduz somente à de caráter
patrimonial, ou seja, aquela cujo liame entre o sujeito ativo e o passivo tem por objeto
uma prestação pecuniária, o pagamento do tributo. Ao lado dessa, a ordem jurídica
prevê outros comportamentos, positivos ou negativos, consistentes em um fazer ou nãofazer, os quais não são um fim em si mesmos, mas que objetivam dar ao Fisco
condições de conhecer e controlar a arrecadação dos tributos. Diante disso, encontramse, entre as relações jurídicas tributárias, as duas espécies: “[...] as de substância
patrimonial e os vínculos que fazem irromper meros deveres administrativos. As
primeiras, situadas no núcleo da norma que define o fenômeno da incidência – regramatriz – e as outras, circumpostas a ela, para tornar possível a operatividade da
instituição tributária: são os deveres instrumentais ou formais”.422
Por força do Princípio da Estrita Legalidade Tributária, qualificado pelo
cânone da Tipicidade Fechada, a conseqüência tributária, ou seja, a respectiva relação
jurídica, somente nascerá caso ocorra o fenômeno denominado de subsunção. A
doutrina é pacífica no afirmar que, para ser possível, juridicamente, que alguém esteja
na posição de sujeito passivo em uma relação jurídica tributária, é imprescindível que
haja a subsunção do fato ocorrido concretamente no mundo real à norma jurídica,
especificamente com o critério material contido na hipótese de incidência –
materialidade da norma.
Sempre partindo de uma perspectiva de rigor científico, PAULO DE BARROS
CARVALHO defendia que a subsunção, por ser operação lógica, só poderia operar-se
entre iguais. Por tal razão, entendia não ser correto o enunciado de que “o fato subsumese à norma jurídica”. O correto então seria utilizarmos a expressão “subsunção do
conceito do fato ao conceito da norma” para designarmos a fenomenologia da
incidência da norma jurídica. Com efeito, somente ocorreria a subsunção quando o
conceito do fato jurídico tributário fosse idêntico (tipicidade) ao conceito da hipótese
tributária. Entretanto, esse autor reverteu tal posicionamento, passando a defender que a
subsunção, “[...] como operação lógica que é, não se verifica simplesmente entre
iguais, mas entre linguagens de níveis diferentes”, pelo que “[...] o certo é falarmos em
subsunção do fato à norma, pois ambos configuram linguagens”.423
Ocorrendo o fato em concreto, instala-se, automática e infalivelmente, na
expressão de ALFREDO AUGUSTO BECKER, o laço abstrato pelo qual o sujeito ativo
422
Curso..., op. cit., p. 287.
171
torna-se titular do direito subjetivo público de exigir a prestação, ao passo que o sujeito
passivo ficará na contingência de cumpri-la.424 PAULO DE BARROS CARVALHO
utiliza o esquema das proposições aritméticas para demonstrar que “[...] a hipótese
tributária está para o fato jurídico tributário assim como a conseqüência tributária está
para a relação jurídica tributária”, o que representa através da fórmula: Ht/Fjt =
Ct/Rjt.425
Em relação ao mandamento da norma tributária, como já defendido nesse
mesmo subitem, entende-se mais apropriado falar-se em critério objetivo, ao lado do
critério subjetivo, do que somente em critério quantitativo, como defende PAULO DE
BARROS CARVALHO, por expressar, além da base de cálculo e alíquota, outros
elementos da norma necessários à configuração do objeto da relação jurídica tributária,
a saber: o quando e o onde pagar. JUAN RAMALLO MASSANET também põe ênfase
na necessidade de a lei prever o objeto da obrigação tributária: “Como es sabido, la ley
no se limita a establecer los supuestos de hecho que, de darse en la realidad, generan
las obligaciones tributarias. La ley debe también indicar, de un modo u otro, cuál sea el
objeto de esta obligación...”.426
No mandamento, portanto, encontram-se os critérios subjetivo e objetivo. O
primeiro trata dos sujeitos ativo e passivo da relação tributária, enquanto que o segundo
prescreve não só a base de cálculo e alíquota, mas também o local e o prazo para a
satisfação da prestação devida pelo sujeito passivo, delineando a própria conduta em sua
compostura integral, como ensinam MARÇAL JUSTEN FILHO 427 e OCTÁVIO
CAMPOS FISCHER428.
423
Idem.
Ibidem, p. 246.
425
Ibidem, p. 247-248.
426
Hecho imponible..., op. cit., p. 11.
427
O imposto..., op. cit., p. 53.
428
A contribuição..., op. cit., p. 40.
424
172
3.4.2 Critério subjetivo
O critério subjetivo do conseqüente normativo contém as indicações
necessárias a que se possa identificar o sujeito ativo e o sujeito passivo da relação
jurídica tributária. Antes de ocorrido o fato tributário, na análise tão-somente da regramatriz de incidência, já é possível reconhecer, com precisão e concretude, quem é o
sujeito ativo da obrigação tributária, ou seja, aquele titular do direito subjetivo público
de exigir o pagamento, pelo sujeito passivo, de uma determinada quantia a título de
tributo. E isso ocorre porque a obrigação tributária é ex lege, ou seja, o Estado, a um só
tempo, é criador da regra jurídica tributária e ocupante do pólo ativo da relação jurídica,
que nasce pela ocorrência do fato que se identifica com aquela regra.429
A escolha do sujeito ativo é livre pelo titular da competência tributária, o qual
pode atribuir a capacidade tributária ativa à própria pessoa política da qual emana a lei,
quando então é desnecessária a menção, por implícita, ou, então, pode delegá-la, desde
que expressamente, à pessoa diversa. Nessa segunda hipótese, o sujeito ativo, que tanto
pode ser pessoa de Direito Público ou de Direito Privado, pode ser um mero agente
arrecadador, ou então pode, cumulativamente, ficar para si com o produto da
arrecadação, para a consecução de seus fins, com o que surge a figura da
parafiscalidade.
Se o sujeito ativo “in concretu” já é conhecido, tão-só pela análise da norma
jurídica, a priori, o mesmo não ocorre com o sujeito passivo. O mandamento da norma
tributária somente fornece critérios para sua futura e eventual identificação, o que só
ocorrerá se e quando alguém praticar, no mundo fenomênico, um fato que se subsuma à
situação fática descrita, abstratamente, na hipótese de incidência. O sujeito passivo,
portanto, somente será conhecido após a ocorrência do fato tributário, a posteriori.
Como resta claro, a distinção tem origem na circunstância de que o sujeito ativo é
sempre o mesmo, enquanto o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa que venha a
praticar o fato jurídico. A seguir, analisar-se-á cada um deles.
429
Salvo as hipóteses de delegação da capacidade tributária ativa (parafiscalidade), quando outra pessoa
pode ocupar o lugar do Estado na condição de sujeito ativo da obrigação tributária.
173
3.4.2.1 Sujeito ativo
A distribuição de competências, inclusive a tributária, tem origem direta nas
exigências ditadas pelos Princípios do Federalismo e da Autonomia Municipal. Os
limites de cada competência devem ser encontrados dentro da própria Constituição. Na
hipótese de surgirem conflitos, eles devem ser considerados juridicamente aparentes,
pois a própria Lei Maior fornece os remédios jurídicos para afastá-los.
O destinatário das regras constitucionais de distribuição de competências é
sempre o legislador, sendo, por essa razão, classificadas essas normas como de
estrutura, e definidas por PAULO DE BARROS CARVALHO como aquelas que
estabelecem de que modo outras regras jurídicas devem ser criadas, transformadas ou
expulsas do sistema jurídico. Para o que interessa ao presente estudo, são normas que
prescrevem qual deve ser o aspecto formal e o aspecto material de outras normas. Não
se tratam, portanto, de normas de comportamento, também designadas de conduta, pois
essas se caracterizam por serem diretamente voltadas para a conduta das pessoas, em
suas relações de intersubjetividade.430
Competência tributária é a aptidão para criar, “in abstracto”, tributos,
conforme expressão utilizada por ROQUE ANTONIO CARRAZZA. 431 Em virtude do
princípio da legalidade (artigo 150, I, da Constituição), os tributos são criados, in
abstracto, sempre através de lei. A lei que cria o tributo deve descrever todos os
elementos essenciais da norma jurídica tributária, como a hipótese de incidência do
tributo, seus sujeitos ativo e passivo, sua base de cálculo, sua alíquota e, acrescentamos,
o momento e o local do pagamento. Entende-se, entretanto, que a criação do tributo tem
início já com a sua previsão constitucional, ultimando-se com a lei ordinária da
respectiva pessoa política, na esteira do entendimento defendido, com acerto, por JOSÉ
SOUTO MAIOR BORGES, o que será melhor examinado adiante (item 4.1).432
O conceito de competência, portanto, refere-se à criação de tributos – tarefa
legislativa – e não à sua cobrança – tarefa administrativa. Portanto, a competência está
ligada ao Poder Legislativo, e trata da criação do tributo. A cobrança do tributo, ligada
430
Curso..., op. cit., p. 138-139.
Curso..., op. cit., p. 437.
432
Teoria geral..., op. cit., p. 171-172.
431
174
ao Poder Executivo, ou quem lhe faça às vezes, é o exercício da capacidade tributária
ativa, o que é diferente.433
A titularidade da competência para criar o tributo também abrange, em relação
a ele, a faculdade de estabelecer majoração, redução, parcelamento, isenção, remissão –
perdão de dívida tributária – e anistia das infrações tributárias. Quem a detém – a
competência – pode, mediante decisão política legítima, até mesmo decidir pelo seu não
exercício – não tributar – sendo, portanto, inconstitucionais as leis que estabeleçam essa
obrigatoriedade para os entes políticos, como fez o artigo 11, caput, da Lei
Complementar nº 101, de 04 maio 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal – em violação
ao Princípio Federativo.434
O legislador, ao exercitar a competência tributária, encontra, nas normas
constitucionais, em especial, as que revelam os princípios, os grandes limites jurídicos.
A competência tributária, portanto, já nasce limitada. Somente possuem competência
tributária as pessoas políticas, ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, posto que somente elas possuem Poder Legislativo com representação
própria. Portanto, os entes políticos receberam um campo tributário próprio, exclusivo,
da Constituição Federal. Por isso se diz que a Constituição é a Carta das
Competências.435
ROQUE ANTONIO CARRAZZA aponta como características da competência
tributária: (a) privatividade, pela qual a pessoa política tem aptidão para criar,
querendo, um dado tributo e, simultaneamente, proíbe as demais pessoas de virem a
instituir esse mesmo tributo; (b) indelegabilidade, pela qual a competência tributária,
recebida da Constituição, não pode ser delegada a outra pessoa política nem ao Poder
Executivo da mesma pessoa política, ainda que por meio de lei; (c) incaducabilidade,
pois a competência tributária pode ser exercida sempre, ainda que não o tenha sido feito
durante prolongado tempo; (d) inalterabilidade, atributo que impede as pessoas
políticas de ampliar ou reduzir a dimensão de suas respectivas competências tributárias;
e) irrenunciabilidade, pois as pessoas políticas não podem legislar decidindo
definitivamente não mais tributar determinada materialidade de sua competência
tributária; (f) facultatividade, pela qual as pessoas políticas, apesar de não poderem
renunciar, nem delegar sua competência tributária, podem decidir se a exercem ou não.
433
434
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 437-439.
“Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão
e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.”
175
Sujeito ativo, portanto, diz respeito não à competência, mas à capacidade
tributária ativa, sendo aquela pessoa situada no pólo positivo da relação jurídica
tributária, a quem é conferido o direito subjetivo à prestação tributária, devida pelo
sujeito passivo. Na estrutura da regra-matriz tributária, o sujeito ativo está localizado no
critério subjetivo do mandamento. Como já afirmado, no direito positivo pátrio, e na
relação jurídica tributária, o sujeito ativo tanto pode ser uma pessoa jurídica pública ou
privada. Incorreta, portanto, a disposição constante do artigo 119 do Código Tributário
Nacional, onde se define sujeito ativo como a “[...] pessoa jurídica de direito público,
titular da competência para exigir o seu cumprimento”, por confundir “competência
tributária”, exercida pelo Poder Legislativo e indelegável, com “capacidade tributária
ativa”, que pode ser exercida pelo Poder Executivo, mas, por ser aptidão delegável,
como reconhece o próprio Código Tributário Nacional (artigo 7º), também pode ser
exercida por pessoa jurídica de Direito Privado.436
Entre as pessoas jurídicas de direito público, estão as investidas de capacidade
política – pessoas políticas de direito constitucional interno – e que possuem a
competência legislativa tributária. Nada impede, como já se demonstrou antes, que a
capacidade tributária de ser sujeito ativo possa ser delegada a pessoa jurídica privada,
como as entidades paraestatais que exercem funções de interesse público.
Com efeito, a redação do artigo 119 do Código Tributário Nacional não se
sustenta quando prevê que sujeito ativo da obrigação é a “[...] pessoa jurídica de direito
público, titular da competência para exigir o seu cumprimento”, já que restringe a
posição de sujeito ativo às pessoas políticas internas, além de não considerar o instituto
da parafiscalidade, que é a delegação da capacidade tributária ativa, pela pessoa
política detentora da competência tributária, a outra pessoa, pública ou privada, que fica
com o produto da arrecadação para a consecução de suas finalidades, como é o caso do
INSS, do SESC, do SENAC etc.437 O sujeito ativo, pois, é da obrigação tributária, e sua
identificação, portanto, deve ser buscada na relação jurídica em que nasce essa
obrigação, e não na titularidade da competência para instituir o tributo.
Como decorrência do Federalismo e da Autonomia Municipal, toda outorga de
competências legislativas envolve, a um só tempo, uma autorização e uma limitação. A
autorização existe em relação à matéria atribuída a determinado ente político, e a
435
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 439-444.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 296-297.
437
Ibidem, p. 297-298.
436
176
limitação diz respeito aos lindes territoriais em que essa competência pode ser exercida.
É dizer, o titular da competência só tem aptidão constitucional para legislar sobre as
matérias que recebeu diretamente da Constituição, assim como está jungido a destinar
suas leis para os fatos ocorridos exclusivamente dentro dos limites de seu território,
salvo os casos constitucionalmente admitidos de extraterritorialidade. No âmbito
tributário não é diferente, e com exceção das hipóteses em que haja delegação da
capacidade tributária ativa – parafiscalidade – o sujeito ativo da relação jurídica
tributária será a pessoa política em cujo território se consumou o fato tributário.
3.4.2.2 Sujeito passivo
Sujeito passivo é a parte devedora na relação jurídica tributária, ou seja, é a
pessoa que tem de cumprir, para o credor ou sujeito ativo, a prestação pecuniária que é o
objeto da obrigação tributária. Se a prestação for de natureza não patrimonial, o sujeito
passivo está submetido ao cumprimento dos chamados deveres instrumentais, que são
denominados pelo Código Tributário Nacional, impropriamente, de “obrigações
acessórias”. Não há controvérsias quanto à necessidade de o sujeito passivo da
obrigação tributária ser definido em lei, formal e materialmente, o que já se extrai da
própria Constituição. O artigo 97, III, do Código Tributário Nacional, em preceito
didático, dispõe que “Somente a lei pode estabelecer [...] a definição do fato gerador
da obrigação tributária principal, [...] e do seu sujeito passivo”.
Quanto ao sujeito passivo das chamadas obrigações acessórias, há
entendimento jurisprudencial segundo o qual é possível a fixação por meio de ato
normativo infralegal, diante de uma interpretação conjunta do § 2º do artigo 113 do
Código Tributário Nacional, o qual prevê que a obrigação acessória é decorrente da
“legislação tributária”; com o artigo 96 do mesmo diploma, onde está disposto que a
expressão “[...] legislação tributária compreende as leis, os tratados e as convenções
internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em
parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”.438 Com a devida vênia,
438
TRIBUTÁRIO – DECLARAÇÃO DE INFORMAÇÕES SOBRE ATIVIDADES IMOBILIÁRIAS –
DIMOB – OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA – INSTITUIÇÃO POR MEIO DE INSTRUÇÃO
NORMATIVA – POSSIBILIDADE – QUEBRA DO SIGILO DE TERCEIROS – INOCORRÊNCIA
– IN Nº 304-SRF – Nos termos do artigo 113, § 2º, do CTN, a obrigação acessória decorre da
legislação tributária. Neste conceito estão compreendidas as instruções normativas expedidas por
autoridade administrativa competente, razão pela qual não há qualquer ilegalidade na instituição da
Dimob por meio da Instrução Normativa nº 304-SRF. [...]. (TRF 5ª R. – AGTR 48945 –
177
entende-se que o Princípio da Legalidade Genérico insculpido no artigo 5º, II, da
Constituição Federal, veda tal possibilidade. A norma infralegal pode somente
regulamentar o dever instrumental que já se encontra previsto na lei, mas que ainda
requer redução no seu grau de abstração.
Os elementos hábeis para a determinação do sujeito passivo encontram-se no
critério subjetivo do conseqüente da regra-matriz de incidência tributária. PAULO DE
BARROS CARVALHO, em definição ampla em toda e qualquer relação jurídica
tributária, afirma que sujeito passivo “[...] é a pessoa – sujeito de direitos – física ou
jurídica, privada ou pública, de quem se exige o cumprimento da prestação:
pecuniária, nos nexos obrigacionais; e insuscetível de avaliação patrimonial, nas
relações que veiculam meros deveres instrumentais ou formais”. Verifica-se que esta
definição abrange tanto o sujeito passivo da obrigação tributária “principal”, como o da
obrigação tributária “acessória”, como dispõe a imprópria classificação adotada pelo
artigo 113 do Código Tributário Nacional.439
É irretocável a definição dada por esse autor à figura do sujeito passivo.
Entretanto, a sua formulação analisa o tema somente do ponto de vista da pessoa que
praticou um fato tributário e que, por conseqüência, está na posição de devedor do Fisco
de uma determinada quantia a título de tributo, ou, no caso dos deveres instrumentais,
da pessoa que deve cumprir uma prestação positiva ou negativa, de caráter não
pecuniário, também em benefício do Fisco. Nesse estágio, a lei tributante, obviamente,
já foi criada, tendo ou não respeitado os desígnios constitucionais.
Ou seja, aquele de quem está sendo exigido o cumprimento da prestação pode
estar nessa posição na forma prevista na Constituição, assim como é possível que a
respectiva lei tenha sido editada em desrespeito aos ditames constitucionais e, até que
seja assim declarada pelo Poder Judiciário, continuará obrigando aquele que está
indevidamente na condição de sujeito passivo.
Com esse raciocínio, o que se quer dizer é que é possível estudar “o que é” o
sujeito passivo, assim como também se pode investigar “quem pode ser” o sujeito
passivo, o que inegavelmente se revela de maior relevância no âmbito desse estudo. No
primeiro caso, a resposta, mais simples, é dada pela Teoria Geral do Direito, onde é
mais comum encontrar a expressão equivalente “devedor”, pois é certo que o conceito
(2003.05.00.010056-3) – RN – 1ª T. – Rel. Des. Fed. Francisco Wildo Lacerda Dantas – DJU
17.02.2004 – p. 492/493) – Disponível em <http://www.trf5.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
439
Curso..., op. cit., p. 300.
178
de devedor no Direito Tributário é o mesmo do conceito de devedor em qualquer outra
relação jurídica, seja comercial, civil, trabalhista etc.
Já na segunda hipótese, a resposta somente virá da análise sistemática do que
dispõe a Constituição Federal, uma vez que a regra-matriz de todos os tributos, como já
se afirmou, já está prevista em seu texto, ou melhor, contexto. Com efeito, também na
Constituição poderão ser obtidas as definições de quem pode vir a ser legitimamente
colhido como sujeito passivo pela lei criadora em cada um dos tributos previstos.
Em princípio, pode-se afirmar que somente poderá ser atribuída a condição de
sujeito passivo de relação jurídica tributaria a pessoa que figura no contexto
constitucional como o destinatário da carga tributária. É nesse sentido o ensinamento
de HECTOR VILLEGAS, para quem o sujeito passivo somente pode ser o destinatário
legal tributário, em construção que se tornou clássica sobre o tema.440 Em razão de o
regime jurídico tributário, no ordenamento jurídico pátrio, ter sua estrutura principal na
Constituição, a expressão de VILLEGAS recebeu feliz alteração pela pena de
MARÇAL JUSTEN FILHO, para quem o sujeito passivo, no Brasil, somente pode ser o
destinatário constitucional tributário, advertência que não encontra opositores na
doutrina e na jurisprudência.441
O autor esclarece que a expressão “destinatário legal tributário”, construída por
VILLEGAS, deve-se ao entendimento de que ao “contribuinte”, por ser aquela pessoa
que se encontra em relação com o fato signo-presuntivo de riqueza descrito na hipótese
de incidência, é que se “destina” a condição de sujeito passivo tributário, pois “[...] a
construção da materialidade da hipótese de incidência condiciona a escolha de sujeito
passivo...”.442
RENATO LOPES BECHO também defende que os dados para identificar
cientificamente o sujeito passivo são obtidos a partir da própria Constituição Federal.
Em alguns casos, afirma o autor, o sujeito passivo já está mesmo delimitado claramente
na Carta Constitucional, como ocorre em relação aos impostos sobre a propriedade,
como o IPTU e o IPVA.443 Para o autor, em um ou em outro caso, é possível descobrir
440
Destinatário legal tributário – contribuintes e sujeitos passivos na obrigação tributária. Revista de
Direito Público, n. 30, p. 241-242.
441
Sujeição..., op. cit., p. 262.
442
Idem.
443
Sujeição passiva e responsabilidade tributária, p. 77
179
na própria Lei Maior quem é o sujeito passivo constitucional.444 No mesmo sentido
caminham GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO:
Em princípio, só pode ser posta, como sujeito passivo das relações
obrigacionais tributárias, a pessoa que – explícita ou implicitamente – é
referida pelo Texto Constitucional como ‘destinatário da carga tributária’.
[...] Será sujeito passivo, no sistema tributário brasileiro, a pessoa que
provoca, desencadeia ou produz a materialidade da hipótese de incidência de
um tributo como inferida na Constituição: ou ‘quem tenha relação pessoal e
direta’ – como diz o artigo 121, parágrafo único, inciso I do CTN – com essa
materialidade. [...] A própria Constituição designa os destinatários dos
encargos tributários. A lei só pode substituí-los ou atribuir responsabilidade a
outrem, se assegurar que o encargo, finalmente, seja da pessoa
constitucionalmente pressuposta.445
O critério escolhido pela Constituição para a eleição das materialidades
constantes na hipótese de incidência dos impostos é o Princípio da Capacidade
Contributiva, tomado na acepção objetiva, encampado no § 1º do artigo 145 como um
dos “Princípios Gerais” na Constituição de 1988, conforme demonstra o título da
Seção I, do capítulo destinado ao Sistema Tributário Nacional. Por esse princípio,
“Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte...”. Dessume-se de seu teor que, no momento da
efetiva criação do tributo, o legislador deverá construir a hipótese de incidência de
forma a captar a melhor manifestação da capacidade contributiva que subjaz à
materialidade constitucional. O fato escolhido como hipótese de incidência deve revelar
a capacidade contributiva do próprio contribuinte, e não de um terceiro.
Amparados em RUBENS GOMES DE SOUSA, GERALDO ATALIBA e
AIRES BARRETO lembram que “[...] a pessoa que deve ter seu patrimônio diminuído
em razão do acontecimento desse fato há de ser a que o provoca ou causa e que dele
extrai proveito ou vantagem”, o que anula qualquer parcela de discricionariedade ao
legislador.446 Entender em sentido contrário, além de ofender flagrantemente o princípio
da capacidade contributiva, implica também defender que a Constituição é norma
desprovida de conteúdo vinculante, sem possibilidade de obrigar o legislador, o que se
revela inadmissível e despropositado absurdo jurídico. O sujeito passivo, portanto, já
está na regra-matriz do tributo, conforme seu desenho constitucional, restando ao
legislador somente a tarefa de declará-lo. Aqui não é necessário complementação da
Constituição, muito menos é possível inovação jurídica.
444
445
Ibidem, 85-86.
Substituição e responsabilidade tributária. Revista de Direito Tributário, n. 49, p. 73.
180
Conclui-se, portanto, que “[...] há exigência constitucional implícita, no
sentido de que um imposto somente pode ser exigido daquela pessoa cuja capacidade
contributiva seja revelada pelo acontecimento do fato imponível ou, nos casos de
tributos vinculados, somente daquela pessoa a que a atuação estatal se refira de
alguma maneira”.447 Diante do exposto, exsurge o problema da constitucionalidade do
responsável tributário, sujeito passivo eleito pela lei que não é a pessoa que praticou o
fato tributário exteriorizador da capacidade contributiva, mas que mantém vínculo
indireto com o aludido fato, conforme deflui do artigo 121, § único, I, do Código
Tributário Nacional.
Em excelente estudo, J. A. LIMA GONÇALVES, amparado nas lições de
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO sobre o Princípio da Igualdade, ensina o
seguinte448:
Destarte, a lei ordinária, desde que garanta a eficácia dos princípios
constitucionais, pode eleger outra pessoa que não a indicada, implícita ou
explicitamente, pela Constituição, para figurar no pólo passivo da relação
jurídica tributária, aparecendo o fenômeno da substituição. O meio para
assegurar o respeito à Constituição é a utilização de mecanismos legais que
possibilitem garantir que o eleito para substituir o destinatário tributário por
excelência possa não sofrer qualquer prejuízo em seu patrimônio (econômico
ou jurídico).449
Na substituição tributária, mecanismo largamente utilizado para facilitar e
agilizar a arrecadação tributária, o ônus econômico do tributo é suportado pelo chamado
substituído tributário, mas quem, entretanto, figura na relação jurídica tributária como
sujeito passivo é o substituto tributário; é dele somente o ônus jurídico do tributo. O
substituto, portanto, é devedor de tributo que originalmente não lhe é próprio, ou, de
outra forma, devedor de tributo cuja manifestação de capacidade contributiva pertence
ao substituído, e não a si mesmo. A substituição tributária não é, em si mesma,
inconstitucional, desde que observe os princípios constitucionais aplicáveis in casu.
Preliminarmente, ressalte-se que o regime jurídico a ser aplicado em casos de
substituição tributária obrigatoriamente deverá ser o do substituído, e não o regime do
substituto. Isso é lógico quando lembramos que o substituto, por estar na condição de
devedor de tributo alheio, deverá pagar exatamente o que deveria o substituído caso a
446
Ibidem, p. 74.
Ibidem, p. 75.
448
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 2002.
449
GONÇALVES, J. A. Lima. Princípios informadores do “critério pessoal da regra-matriz de incidência
tributária”. Revista de Direito Tributário, n. 23/24, p. 262.
447
181
relação de substituição não houvesse sido adotada pela lei, ou seja, o tributo é calculado
nas condições pessoais do substituído. Assim, por exemplo, se o substituído tem direitos
como imunidade, isenção, desconto, remissão, anistia etc., o substituto exercitará tais
direitos na mesma medida.450
É imprescindível também que o nascimento da relação jurídica tributária na
qual figura o substituto como sujeito passivo deverá ser regulada pela lei vigente à data
da ocorrência dos fatos praticados pelo substituído, e não a lei da data em que se
deflagra a substituição. Nesse sentido é, inclusive, a inteligência do artigo 144 do
Código Tributário Nacional.451 Por fim, a norma que dispõe sobre a relação de
substituição deve criar mecanismos que possibilitem o imediato ressarcimento do
substituto, sob pena da substituição ser inconstitucional por violação, em especial, do
Princípio da Isonomia e de seu corolário, a Capacidade Contributiva.452
Em preceito de proveitoso cunho didático, o artigo 128 do Código Tributário
Nacional prestigia a Constituição Federal, dispondo que “[...] a lei pode atribuir de
modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa”, mas desde
que “vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação...”. O Professor ALCIDES
JORGE COSTA, argumentando a respeito, assinala: “O princípio da capacidade
contributiva não é incompatível com a atribuição, a terceiro, da responsabilidade pelo
recolhimento do imposto, desde que este terceiro participe do fato gerador. É o que
exige o artigo 128 do CTN”.453
A aptidão para ser sujeito passivo de obrigação tributária é denominada de
capacidade tributária passiva. Há uma questão levantada, em razão da redação do
artigo 126 do Código Tributário Nacional, que diz respeito à possibilidade de quem não
possui personalidade jurídica, de acordo com as regras de direito civil, vir a ser o sujeito
passivo, o que parece ter sido a intenção do legislador desse código quando prevê que a
capacidade tributária passiva independe: I)“da capacidade civil das pessoas naturais”;
II) “de achar-se a pessoa natural sujeita a medidas que importem privação ou
limitação do exercício de atividades civis, comerciais ou profissionais, ou da
administração direta de seus bens ou negócios”, e III) “de estar a pessoa jurídica
450
ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino. Substituição..., op. cit., p. 75.
“Artigo 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se
pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”.
452
ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino, Substituição..., op. cit., p. 76.
453
Capacidade Contributiva. Revista de Direito Tributário, n. 55, p. 302.
451
182
regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou
profissional”.
PAULO DE BARROS CARVALHO adverte, entretanto, que não se pode
confundir capacidade para realizar o fato jurídico tributário, com capacidade para
ocupar o pólo passivo de uma obrigação tributária, situações completamente diferentes,
e que parecem ter sido reunidas como uma coisa só no artigo 126, acima transcrito. É
certo que o legislador tributário, conforme a dicção do artigo 109 do Código Tributário
Nacional, pode desconsiderar os institutos, conceitos e formas sobre fatos, bens ou
pessoas, prescritas pelo direito privado, porém, essa faculdade é única e exclusivamente
para lhes atribuir efeitos tributários. Outra coisa, totalmente diversa, seria dizer que o
legislador tributário tem o poder de modificar as regras de direito civil, para dizer quem
tem aptidão para integrar a relação jurídico-tributária. Caso isso seja possível, “[...] a
pretensão tributária estará inibida, em função da inaplicabilidade de cadeias de
dispositivos de direito processual, que dão significado e conteúdo de coatividade às
aspirações fazendárias”. A razão desse entendimento está no fato de que a obrigação
tributária é espécie de relação jurídica como qualquer outra, e, portanto, tem suas raízes
na Teoria Geral do Direito.454
Vejamos, como exemplo, a sociedade cujos atos constitutivos ainda não foram
averbados no registro competente. Nesses casos, devido à inexistência de personalidade
jurídica, as eventuais dívidas tributárias deverão ser exigidas diretamente dos sócios que
estavam à frente da gestão da sociedade, os quais figuram, portanto, como sujeitos
passivos na condição de terceiros responsáveis.
Conforme se depreende do artigo 128 do Código Tributário Nacional, a
condição de responsável pela obrigação tributária somente poderá ser atribuída a um
terceiro vinculado ao fato jurídico tributário, que pode ser qualquer pessoa, desde que
não tenha relação pessoal e direta com esse mesmo fato, pois será chamado de
contribuinte, conforme classificação do artigo 121, I e II, do mesmo diploma.
A Constituição não dispõe expressamente sobre quem deva ser o sujeito
passivo, somente se referindo a um evento ou a um bem, deixando a cargo do legislador
ordinário, quando da construção da regra-matriz de incidência, definir quem será o
devedor da prestação tributária, desde que, é lógico, obedeça aos desígnios
constitucionais. De forma especial, a escolha do sujeito passivo deverá recair na pessoa
454
Curso..., op. cit., p. 305-313.
183
que implicitamente consta como realizadora das atividades inerentes às materialidades
constantes dos dispositivos que outorgam as competências tributárias.
Se o devedor participar diretamente do evento, será o sujeito passivo chamado
de contribuinte. No entanto, se o legislador escolher outra pessoa, ligada ao fato jurídico
tributário de forma indireta, e incluí-la na relação jurídica para responder pela dívida,
essa pessoa será o autêntico sujeito passivo chamado de responsável. Mas é preciso
alertar que, se a lei, originalmente, excluir o participante direto (o contribuinte), e eleger
o terceiro como sujeito passivo, não há que se falar em responsável e “[...] impõe-se o
abandono do nome de contribuinte para o ser excluído, uma vez que tudo isso se passou
no momento pré-legislativo, inteiramente fora do território especulativo do Direito”.455
Quando o sujeito passivo escolhido é uma pessoa alheia ao fato tributado, a
relação jurídica respectiva tem a natureza de sanção administrativa, como são exemplos
as hipóteses de responsabilidade por sucessão previstas nos artigos 130 a 133 do Código
Tributário Nacional, mas em especial na Seção III (Responsabilidade de Terceiros),
onde no artigo 134, “[...] sob o manto jurídico da solidariedade, esconde-se a
providência sancionatória, de maneira nítida e insofismável”.456
A expressão “[...] nos atos em que intervierem ou pelas omissões de forem
responsáveis”, constante do precitado artigo 134, “(…) revela a existência de um
indisfarçável ilícito e do ‘animus puniendi’ que inspirou o legislador”, ensina PAULO
DE BARROS CARVALHO, acrescentando que, “Para evitar o comprometimento, as
pessoas arroladas hão de intervir com zelo e não praticar omissões: tal é o dever que
lhes compete. A inobservância acarreta a punição”. No parágrafo único do artigo 134,
a assertiva do autor confirma-se, quando prescreve que, em relação às penalidades, a
responsabilidade é somente quanto às de caráter moratório, que têm feição de sanção
civil, posto que caso se estendesse às multas administrativas, “[...] haveria
sobreposição de penalidades...”.457
3.4.3 Critério objetivo
Após o estudo do critério subjetivo, envolvendo os sujeitos ativo e passivo, o
conseqüente normativo exige ainda algumas considerações, ainda que breves, sobre o
455
Ibidem, p. 319.
Idem.
457
Idem.
456
184
critério objetivo que, como a própria expressão denuncia, trata dos dados obtidos no
mandamento da norma tributária que permitem identificar qual é o objeto da relação
jurídica tributária. A obrigação tributária classifica-se como sendo de “dar”, pois a
prestação tributária consubstancia-se na entrega, ao sujeito ativo, de uma quantia em
dinheiro a título de tributo.
3.4.3.1 Base de cálculo
A doutrina está de acordo quanto à importância da base de cálculo na
estruturação do tributo, ainda que os que mais se debruçaram sobre o tema hajam
discordado quanto à sua localização dentro da norma jurídica tributária. Foi devido a
importância da base de cálculo, dentro da regra-matriz de incidência tributária, que
ALFREDO AUGUSTO BECKER acabou por extremar a valorização dessa categoria
jurídica, relegando a segundo plano os dados descritores da hipótese de incidência. Para
o autor, a base de cálculo seria o núcleo da hipótese de incidência, conferindo o gênero
jurídico ao tributo, e todos os demais elementos seriam adjetivos, e confeririam a
espécie àquele gênero.458 O mesmo entendimento tem ANNA EMILIA CORDELLI
ALVES, para quem, nas regras jurídicas de tributação, “[...] o núcleo da hipótese de
incidência é sempre a base de cálculo”.459
Outro autor que defendeu a localização da base de cálculo na hipótese de
incidência foi GERALDO ATALIBA, que preferia denominar de “base imponível”. É
que para esse autor, “[...] a base imponível é uma perspectiva dimensível do aspecto
material da hipótese de incidência, que a lei qualifica, com a finalidade de fixar critério
para a determinação, em cada obrigação tributária concreta, do quantum debetur”.460
Entende-se que o correto, como será demonstrado adiante, é situar a base de
cálculo na conseqüência da norma tributária, pois é dado imprescindível à identificação
da relação jurídica, que nascerá com o eventual acontecimento do fato tributário. Da
verificação de ser a base de cálculo a medida econômica da hipótese de incidência, não
decorre, necessariamente, que ela a integre. Apesar disso, ATALIBA afirma,
corretamente, que a base de cálculo é, por exigência constitucional, atributo essencial,
não podendo deixar de existir em nenhum caso.
458
459
Teoria..., op. cit., p. 339.
A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na
Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 176.
185
Analisando o raciocínio desse autor, AIRES BARRETO entende controversa a
afirmação de ser a base de cálculo uma perspectiva dimensível da hipótese de
incidência, pois se a hipótese de incidência é a descrição abstrata de um fato suscetível
de tributação, dizer que a base de cálculo é a perspectiva mensurável da hipótese
significa afirmar ser aquela aparência o aspecto dimensível do abstrato, pelo que melhor
seria conceituar a base de cálculo como o padrão, critério ou referência para medir um
fato tributário. Conclui o autor ainda que “[...] sendo a hipótese de incidência tributária
a descrição hipotética de um fato, a base de cálculo, como atributo seu, só poderá ter,
igualmente, caráter normativo, tão hipotético quanto a própria hipótese de incidência
em que se contém. Se o todo é hipotético, igual natureza terão os atributos
respectivos”.461 Com exceção da parte em que esse autor, concordando com ATALIBA,
insere a base de cálculo na hipótese de incidência, não há como discordar de sua
posição, no que tange a ser a base de cálculo uma medida do fato tributário, e não da
hipótese de incidência.
A base de cálculo e a alíquota são os dados, obtidos pelo intérprete a partir dos
textos legais, necessários a que se precise com segurança o quantum devido a título de
tributo, os quais não têm sentido isolados um do outro. Dizendo de outra forma, base de
cálculo é o elemento que, previsto em lei, quantifica, em conjunto com a alíquota, o
valor da dívida tributária, através da mensuração do critério material da hipótese de
incidência.
O critério material, por sua vez, é identificado através da sua confirmação ou
afirmação pela base de cálculo. Caso infirmado o critério material, o tributo é
inconstitucional por falta de coerência interna na respectiva norma instituidora, pois é
de rigor uma necessária correlação lógica entre hipótese de incidência e base de cálculo.
Esse é o entendimento de PAULO DE BARROS CARVALHO 462 e ROQUE
ANTONIO CARRAZZA463. De fato, como confirma MARÇAL JUSTEN FILHO, “[...]
a escolha de uma determinada situação para integrar a materialidade da hipótese
condiciona a eleição da base imponível”.464
Esse também é o pensamento de PAULO DE BARROS CARVALHO: “[...] a
base de cálculo é a grandeza instituída na conseqüência da regra-matriz tributária, e
460
Hipótese..., op. cit., p. 108.
Base de cálculo..., op. cit., p. 50-51.
462
Curso..., op. cit., p. 327-328.
463
Curso..., op. cit., p. 449-450.
464
ISS no tempo..., op. cit., p. 55.
461
186
que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento
inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se à alíquota, seja
determinado o valor da prestação pecuniária”.465 Acrescenta, ainda, que,
paralelamente, a base de cálculo tem a virtude de confirmar, infirmar ou afirmar o
critério material constante da hipótese tributária. O autor vê, especificamente, três
funções para a base de cálculo: (a) medir as proporções reais do fato (função
mensuradora): após o legislador descrever o fato que constituirá a hipótese tributária,
deverá dispor sobre a fórmula numérica de estipulação do conteúdo econômico do dever
jurídico a ser cumprido pelo sujeito passivo. Para tanto, deverá escolher, dentre os
múltiplos atributos valorativos do fato, aquele ou aqueles que sejam idôneos para
avaliar a grandeza efetiva do evento – exemplos: valor da operação, valor venal, valor
presumido, peso, comprimento etc. – não podendo eleger qualidades que não lhe sejam
inerentes; (b) compor a específica determinação da dívida (função objetiva): após a
escolha de uma perspectiva dimensível, a essa deve ser indicado o fator que se lhe unirá,
para o surgimento do quantum devido pelo sujeito passivo (função projectiva).466 É a
função objetiva da base – compor a específica determinação da dívida tributária – pelo
que, nessa função, não se lhe deve atribuir maior importância do que à alíquota, não
representando mais que números justapostos que se preparam para um processo de
cálculo matemático; (c) confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério
material da hipótese tributária (função comparativa): diante das indevidas
expressões, muitas vezes utilizadas pelo legislador, para construir a regra de incidência,
descobriu a doutrina, na base de cálculo, um critério seguro para identificar o verdadeiro
critério material da hipótese, com o que se pode confirmar, infirmar ou afirmar o
enunciado da lei. É que a grandeza eleita pelo legislador, para servir de base de cálculo,
deve, obrigatoriamente, ser uma característica peculiar ao fato tributário.467
Com efeito, se houver perfeita sintonia entre o padrão de medida e o núcleo do
fato dimensionado, temos a função confirmar. Quando esses forem incompatíveis,
temos a função infirmar. E por fim, caso a formulação legal seja obscura, temos a
função afirmar, com o que prevalecerá, como critério material da hipótese, a ação-tipo
465
Curso..., op. cit., p. 327.
Conforme esclarece PAULO DE BARROS CARVALHO, a expressão “função projectiva” é oriunda
de autores espanhóis, “[...] porque se projeta para a frente, demarcando o conteúdo do objeto da
relação obrigacional. Contrapõe-se, por esse prisma, à função retrospectiva, em que o aplicador da
lei, olhando para trás, isto é, para o fato que já ocorreu, trata de medi-lo” – Curso..., op. cit., p. 330.
467
Ibidem, p. 327-332.
466
187
que está sendo avaliada. Portanto, havendo desencontro entre os termos do binômio –
hipótese de incidência e base de cálculo – deverá prevalecer a base de cálculo.
JOSÉ ROBERTO VIEIRA, na mesma esteira, assinala as funções da base de
cálculo: determinar, com a alíquota, a dívida tributária (objetiva); dimensionar o fato
tributário (mensuradora); e afirmar, confirmar ou infirmar o critério material da hipótese
tributária (comparativa), compondo, esta última, o binômio identificador do tributo,
junto com a hipótese tributária, do que resulta a sua imprescindibilidade
constitucional.468
Analogamente à distinção conceitual entre hipótese de incidência e fato
jurídico tributário, pode-se, de forma lógica, distinguir o que seja a base de cálculo
normativa da base de cálculo fáctica. Em primeiro lugar, base de cálculo normativa (in
abstrato) será a previsão hipotética da base de cálculo, é dizer, a grandeza escolhida
pelo legislador para a mensuração da materialidade da hipótese de incidência. Não
define, portanto, a base de cálculo normativa, valores líquidos, certos e
individualizados, em relação a cada contribuinte, pela razão óbvia de que, nesse estágio,
ainda não ocorreu nenhum fato tributário que possa ser mensurado “in concreto”.
O que há são coordenadas, diretrizes, informações, fornecidas pelo
mandamento da norma tributária, e que permitem, quando aplicadas a um caso
específico, ocorrido no mundo fenomênico, obter a exata quantificação de um fato
tributário já ocorrido. Por sua vez, essa última quantificação é denominada base de
cálculo fática (in concreto).469 ALBERTO XAVIER foi um dos primeiros autores, no
Brasil, a tratar de forma distinta as duas entidades, utilizando as expressões “definição”
da base de cálculo, para referir-se à base de cálculo normativa, ou seja, é o legislador
quem define o conceito de base de cálculo, e “determinação” da base de cálculo, para
tratar da base de cálculo fática, posto ser por ato da administração que se determina o
seu conteúdo.470
AIRES BARRETO, no mesmo sentido, também distingue a base de cálculo,
situada no plano normativo (abstrato), da base calculada, existente no plano fático
468
A regra-matriz..., op. cit., p. 114-115.
JUAN RAMALLO MASSANET, amparado em SÁINZ DE BUJANDA, afirma: “[...] normas que
definen el hecho imponible y normas que definen las bases imponibles y para las que, en lógica
consecuencia, reserva el nombre de bases imponibles normativas frente a las bases imponibles
fácticas que non son más que el resultado cuantitativo a que se llega para un contribuyente concreto”
- Hecho imponible..., op. cit., p. 23.
470
Imposto predial e territorial urbano: determinação da base de cálculo. Revista de Direito Tributário,
n. 13/14, p. 87.
469
188
(concreto). A grande distinção entre ambas está em que só a primeira está sob a “reserva
absoluta” de lei formal, pois a segunda é apurável somente depois da criação da lei, por
ocasião do ato administrativo do lançamento. A modificação da base de cálculo,
conforme dispõe o artigo 97, § 1º, do Código Tributário Nacional, equipara-se à
majoração de tributo, o que exige a observância do Princípio da Legalidade. Tal
modificação, em um tributo, implica na alteração do conceito normativo da base de
cálculo – se a lei, por exemplo, ao definir a base de cálculo do ISS, indicar que é o
“preço do serviço”, no sentido de receita líquida a que este corresponde, somente a lei
poderá alterar esse conceito para estabelecer que, preço, a partir de então, será a receita
bruta.471 Por outro lado, a atualização do valor monetário da “base de cálculo” não
indica majoração do tributo, conforme estabelece o § 2º do mesmo artigo 97, porque, na
verdade, o que se atualiza monetariamente é a base calculada, tarefa que cabe ao
Executivo.472
Secundando esses autores, PAULO DE BARROS CARVALHO posiciona-se
no mesmo sentido, ao entender que, de maneira equivalente à distinção entre “hipótese
de incidência” e “fato jurídico tributário”, no sentido de divisar o estudo do fato como
“fórmula abstrata” e como “ocorrência efetiva no mundo físico”, está a distinção entre a
“base de cálculo normativa”, também chamada de base de cálculo in abstracto, que
nada mais é do que a descrição legislativa da grandeza eleita pelo legislador para
dimensionar o fato tributário, e a “base de cálculo fáctica”, que surge “[...] com a
norma individual do ato administrativo do lançamento (em) que o agente público,
aplicando a lei ao caso concreto, individualiza o valor, chegando a uma quantia líquida
e certa...”(esclarecemos, nos parênteses).473
O raciocínio também foi utilizado por ROQUE ANTONIO CARRAZZA, para
distinguir a base de cálculo in abstracto, que é a descrição normativa da base de cálculo,
e que, em razão do Princípio da Estrita Legalidade Tributária ou da Tipicidade Fechada,
é matéria de competência privativa do Poder Legislativo, da base de cálculo in concreto,
que se constitui na real apuração do valor indicado na base de cálculo in abstracto,
sendo matéria de competência privativa do Poder Executivo, ou seja, o Fisco, quando
lança o tributo, determina sua base de cálculo in concreto.474
471
ISS..., op. cit., p. 15-16.
Base de cálculo..., op. cit., p. 127.
473
Curso..., op. cit., p. 332-333.
474
Curso..., op. cit., p. 449.
472
189
Concorda-se com PAULO DE BARROS CARVALHO, quando discorda do
pensamento de GERALDO ATALIBA, pelo qual este autor não aceita a expressão base
de cálculo, por defender a existência de tributos cuja determinação do quantum a pagar
independe de cálculo, como os tributos fixos, onde a base existente, por essa razão, não
seria de cálculo. Primeiro, porque tributo sem base de cálculo é inconstitucional, dentre
outras razões, por não permitir verificar o respeito à capacidade contributiva. Em
segundo, porque a falta do binômio hipótese de incidência/base de cálculo impediria
divisar qual é a natureza jurídica específica do tributo. Em terceiro, porque, se os
tributos fixos prescindem de cálculo, por certo aí também não haverá qualquer base.475
3.4.3.2 Alíquota
Não basta, para a fixação do quantum debetur, já dizia GERALDO
ATALIBA, a indicação legal da “base imponível”: “Só a base imponível não é
suficiente para a determinação ‘in concretu’ do vulto do débito tributário, resultante de
cada obrigação tributária. A lei deve estabelecer outro critério quantitativo que –
combinado com a base imponível – permita a fixação do débito tributário, decorrente
de cada fato imponível”.476 Esse autor conceitua a alíquota como o termo que se
consubstancia na fixação de um critério indicativo de uma parte, fração – sob a forma de
percentual, ou outra – da base imponível.477
Da mesma forma como distinguiu a base de cálculo da base calculada, AIRES
BARRETO divisa os conceitos de alíquota “in abstrato” (plano normativo) e o de
alíquota “in concretu” (plano de aplicação da lei): A alíquota in abstrato serve como
indicador da proporção a ser tomada da base de cálculo e, enquanto não ocorrer o fato a
ser mensurado, não se presta à obtenção do quantum devido a título de tributo.
Exemplo: 5% do preço do serviço, 10% do valor da operação etc. A alíquota in concretu
é o fator que, conjugado à base calculada, presta-se à obtenção do objeto da prestação
tributária, já atuando, nessa fase, como um dos termos da multiplicação, cujo produto é,
concretamente, o quantum debetur.478
475
Curso..., op. cit., p. 334.
Hipótese..., op. cit., p. 115.
477
Na visão estrutural da norma tributária de ATALIBA, em decorrência de sua sobrevalorização da
hipótese de incidência, a alíquota era o único elemento que restou para o mandamento da norma
tributária.
478
Base de cálculo..., op. cit., p. 58-59.
476
190
A alíquota não é critério que permita encontrar a natureza jurídica de um
tributo, sendo somente o elemento que, conjugado à base de cálculo, permite descobrir
o quantum de tributo a pagar. “Etimologicamente, alíquota, vocábulo latino da
primeira declinação, quer dizer parte, a parcela que se contém no todo um número
exato de vezes”, possível razão pela qual a doutrina insiste em tê-la como quota, fração
ou parte da base de cálculo. Apesar disso estar certo em grande parte dos casos, não é a
regra geral, pois nada impede que, além da forma de percentagem, seja expressa em
valores monetários. Ou seja, tanto a base de cálculo, como a alíquota, podem assumir
caráter pecuniário, mas, se a base não for uma importância em dinheiro, a alíquota
necessariamente o será.479
As alíquotas, conforme PAULO DE BARROS CARVALHO, podem
expressar-se de duas formas: a) um valor monetário fixo, ou variável em função de
escalas progressivas da base de cálculo; ou b) uma fração, percentual ou não, da base
de cálculo, que nesse caso será representada por quantia monetária. Aparecendo em
forma de fração (b), a alíquota pode ser proporcional invariável, por exemplo: 1/25 da
base de cálculo, seja qual for seu valor monetário; proporcional progressiva –
aumentando a base de cálculo, aumenta a proporção – ou proporcional regressiva –
aumentando a base, diminui a proporção. Com efeito, é através dessas formas de
alíquotas que o legislador busca a aplicação do Princípio da Igualdade Tributária e,
quando a limita em certos níveis, tenta evitar que o tributo assuma feições
confiscatórias. A alíquota é, também, instrumento de política extrafiscal. 480
ROQUE ANTONIO CARRAZZA também afirma não poder a alíquota
imprimir ao tributo um caráter confiscatório, conforme inteligência do artigo 150, IV,
da Constituição, violando assim o direito de propriedade (artigos 5º, XXII, e 170, II, da
Constituição). É, ainda, o dado que permite a observância do Princípio da Capacidade
Contributiva, previsto no § 1º do artigo 145 da Carta Constitucional, pelo qual “Sempre
que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte [...]”, ou seja, contribuintes que manifestem
distintas capacidades contributivas deverão sujeitar-se a alíquotas proporcionalmente
diferentes, ou seja, a alíquota deverá ser progressiva à medida que a capacidade
contributiva, concretizada na base de cálculo, aumente.481
479
Curso..., op. cit., p. 337-339.
Ibidem, p. 339-340.
481
Curso..., op. cit., p. 449.
480
191
A alíquota, in abstrato, faz parte da estrutura da norma jurídica tributária,
estando localizada no conseqüente tributário, juntamente com a base de cálculo, o local
e o momento de pagamento. Diante disso, conclui-se não ter o Poder Executivo, por
decreto, portaria, ou qualquer outra norma infralegal, legitimidade para alterar as
alíquotas de qualquer tributo que seja. A Constituição estabelece as hipóteses em que a
lei pode delegar, ao Poder Executivo, a faculdade de alterar as alíquotas, mas desde que
“[...] atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei [...]”, conforme dispõe o
artigo 153, § 1°, da Constituição.
Ou seja, em tais casos, a lei já estipulou quais os limites em que a alíquota
poderá variar, não havendo, portanto, senão “aparente exceção” ao Princípio da
Legalidade. Portanto, se alguma lei omitir qual é a alíquota de determinado tributo,
significa dizer que ele ainda não existe in abstracto, pois a norma jurídica tributária só
pode surtir eficácia quando estiver completa, não podendo nascer in concreto, nem, por
conseqüência, obrigar o contribuinte ao pagamento do tributo.482
A alíquota também pode ser seletiva, quando varia na razão inversa da
essencialidade do produto, como, por exemplo, ocorre com o Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI), imposto que grava com alíquotas maiores produtos como o álcool
e o tabaco, e menores produtos como os da cesta básica. 483 Por fim, há a hipótese da
alíquota zero, a qual corresponde à inexistência de tributação, por falta desse elemento
quantitativo. Tem os efeitos semelhantes ao da isenção, mas dessa se diferencia porque,
na isenção, há a suspensão de todos os aspectos da norma tributária, enquanto na
alíquota zero só há a suspensão desse elemento do aspecto quantitativo. Aplica-se, por
exemplo, em casos do IPI e do Imposto de Importação.484
3.4.3.3 Local e prazo de pagamento
Partindo do pressuposto de que a Constituição deve ser interpretada tendo
como base os princípios maiores que sustentam a estrutura do ordenamento jurídico,
GERALDO ATALIBA e J. A. LIMA GONÇALVES defendem que “(…) o prazo de
recolhimento do ‘quantum’ objeto da obrigação tributária integra o aspecto ou critério
quantitativo da respectiva hipótese de incidência, possuindo a virtude de alterar-lhe a
482
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 449-450.
BARRETO, Aires Fernandino. Base de cálculo..., op. cit., p. 69.
484
Ibidem, p. 76-79.
483
192
capacidade de afetar, mais ou menos gravosamente, a esfera patrimonial do
cidadão”.485
Ocorrendo, portanto, no mundo fenomênico, qualquer ato que acarrete a
alteração do quantum tributário, incide o mandamento constitucional que exige que esse
ato seja fruto da manifestação da vontade legislativa, sob pena de inconstitucionalidade.
Ou seja, para que seja exigido o respeito ao Princípio da Legalidade, basta que o ato
possa alterar a quantificação do objeto da obrigação tributária. 486 Como justificativa, os
autores lembram que, num clima inflacionário, o prazo de pagamento do tributo altera
substancialmente o quantum e, portanto, passa a ser, juridicamente, tão relevante quanto
a alíquota e a base de cálculo.487
MARÇAL JUSTEN FILHO também defende a existência de um “aspecto
temporal” no mandamento da norma tributária: “Afirma-se, então, que a norma
tributária refere-se ao ‘tempo’, no mínimo, sob dois ângulos distintos e inconfundíveis.
[...] Assim como há um ‘quando’ para a ocorrência do fato imponível, também existe
um momento para o pagamento da prestação tributária”.488 Concorda-se com o autor,
portanto, quando defende caber à lei determinar quando será exigível o pagamento.
OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, concordando com os raciocínios de
GERALDO ATALIBA e MARÇAL JUSTEN FILHO, também se posiciona no sentido
de que, no critério objetivo, devem estar presentes o local e o prazo de recolhimento dos
tributos, sob pena de ofensa ao Princípio da Legalidade.489
No entanto, devido ao fato de que a estipulação do local e do prazo de
pagamento são temas mais afeitos às tecnicidades da administração tributária, entendese que mais consentâneo com a realidade tributária seria a lei prever limites, a serem
observados pelos atos normativos regulamentares expedidos pelo Poder Executivo, à
semelhança do que já prevê o § 1º do artigo 153 da Constituição, dispositivo que faculta
ao Poder Executivo, “[...] atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei
[...]”, alterar as alíquotas dos impostos sobre o comércio exterior – importação e
exportação – do imposto sobre produtos industrializados e do imposto sobre operações
financeiras.
485
Carga tributária..., op. cit., p. 25.
Ibidem, p. 27.
487
Ibidem, p. 29.
488
ISS no tempo..., op. cit., p. 54.
489
A contribuição..., op. cit., p. 41.
486
193
Por outro lado, conforme ressalta MARCELO CARON BAPTISTA, ainda que
essas informações sejam relevantes para a análise da relação jurídica tributária, são,
todavia, prescindíveis para explicar o tributo no campo abstrato, havendo maior
importância científica quando analisadas sob a perspectiva da norma tributária
individual e concreta, o que ocorreria caso o presente estudo fosse dirigido
especificamente à legislação do ISS de algum Município. Em virtude dessas razões, a
estrutura da regra-matriz de incidência do ISS, examinada neste trabalho, não
considerará o tema do prazo e local do pagamento desse imposto.490
490
ISS..., op. cit., p. 172-173.
194
4. A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS
4.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Estabelecida a nossa perspectiva doutrinária ante a visão da estrutura da norma
jurídica tributária, passa-se, deste ponto em diante, ao trabalho de sua aplicação
especificamente ao ISS. Antes, porém, não há como deixar de mencionar o fato de que
foi a obra de PAULO DE BARROS CARVALHO que abriu o caminho para que outros
autores pudessem realizar o trabalho a que chamou de desformalização, pois nada mais
seria do que substituir os elementos da fórmula da regra-matriz tributária pelos
vocábulos e expressões constantes do texto normativo, labor predominantemente
semântico, por buscar o significado dos vocábulos utilizados pelo legislador.491
Mas não se concorda em ver a desformalização como uma atividade puramente
lógica, como se fosse o resultado de uma operação matemática, o que não se admite
diante da certeza de que, desformalizar a regra-matriz de incidência é uma forma de
expressar o labor hermenêutico do cientista do Direito.
LOURIVAL VILANOVA, filósofo e teórico geral do Direito da Faculdade de
Direito do Recife, ressalta essa necessidade ao afirmar que “[...] a interpretação e a
aplicação jurisprudencial do Direito são complementos imprescindíveis para se ter o
‘Direito como experiência’ e, com base nessa experiência, obter-se o vínculo
husserliano entre ‘juízo e experiência’, ou entre Lógica e realidade”.492 Mais adiante,
adverte que “[...] sem isso, corre-se o risco de se fazer Lógica jurídica como admirável
peripécia algorítmica, mas sem nenhuma repercussão na Ciência do Direito e sem
maior fecundidade para a prática do Direito”.493
É, portanto, tarefa de interpretação jurídica e, para que seu resultado seja
satisfatório, há que se pôr a tônica não no sujeito cognoscente ou no objeto cognoscível,
mas na relação entre ambos, dentro da já mencionada “epistemologia dialética” na
Ciência do Direito, como bem defende AGOSTINHO RAMALHO MARQUES
NETO494.
JOSÉ ROBERTO VIEIRA, em agradável metáfora, após advertir, amparado
em EDMUND HUSSERL, que “generalizar” e “formalizar” não têm o mesmo
491
Curso..., op. cit., p. 346.
As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 34.
493
Idem.
492
195
significado, assim como “especialização” não é o mesmo que “desformalização”
ensina, acrescentando, que “[...] desformalizar é revestir as formas lógicas de conteúdo
material, é pôr-lhes os trajes da aparência empírica. Desformalizar a Regra-Matriz de
Incidência Tributária é recobrir o seu simbolismo estrutural com a capa da linguagem,
tanto aquela encontrada na literalidade dos textos legais, quanto a obtida na ambiência
sistemática dos contextos normativos”.495
Procurar-se-á, assim, expor a visão deste estudo sobre a regra-matriz de
incidência do ISS, o que exigirá, por certo, um posicionamento quanto às possibilidades
semânticas dos signos que compõem os textos normativos objeto de estudo, o que virá
através das opções axiológica e ideológica aqui realizadas, dentro dos limites possíveis
previstos no ordenamento jurídico.
A doutrina, em geral, está de acordo quanto a ser a Constituição Federal o
ponto de partida para a descoberta da regra-matriz não só do ISS, mas de todo e
qualquer tributo. De forma mais específica, é nos dispositivos constitucionais que
atribuem competência tributária às pessoas políticas, resultante do princípio federativo,
que poderão ser encontrados os primeiros subsídios normativos hábeis à construção da
norma-padrão dos tributos. Obviamente, isso não se dá somente com o recurso à
específica norma constitucional atributiva da competência tributária. É que não é
possível isolar as normas constitucionais, pois todas se inserem em um todo harmônico,
completo e rígido, do que resulta a inolvidável conclusão de que “[...] o sentido
aparentemente extraível da norma, enquanto objeto isolado de estudo, é incorreto tal
como as aparentes omissões ou imperfeições apressadamente localizadas não eram
senão produto de imperfeição atribuível apenas ao estudioso”.496
Como já afirmado, as normas jurídicas que outorgam competências tributárias,
porque destinadas aos respectivos legisladores – federal, estadual, municipal e distrital –
estão entre as normas de estrutura/organização, e não entre as normas de conduta. 497
Entende-se, assim, que as normas constitucionais, tanto as que outorgam competências,
como as que “limitam” o seu exercício, e as demais normas de estrutura que,
complementando a Lei Maior, regulamentam a atividade legiferante na esfera tributária,
494
A Ciência do Direito..., op. cit. , p. 13-14.
A regra-matriz..., op. cit., p. 71.
496
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 60.
497
Há também autores que utilizam as expressões norma de “segundo grau” e de “primeiro grau”, para se
referir, respectivamente, às normas de estrutura e de conduta. Nesse sentido é o entendimento de
MARÇAL JUSTEN FILHO. ibidem, p. 39.
495
196
indicam qual é a regra-matriz de incidência tributária possível, para que o legislador
definitivamente crie o tributo dentro desses limites, tanto em relação à hipótese, como
em relação à conseqüência.
Não por outra razão que a doutrina e a jurisprudência falam em “regra-matriz”
tributária, “norma-padrão de incidência”, ou ainda “arquétipo” de um tributo,
expressão utilizada por ROQUE ANTONIO CARRAZZA.498 É que o tributo instituído
pela lei da respectiva pessoa política deverá seguir o modelo idealizado pelo legislador
constituinte. Ressalte-se, porém, que a criação dos tributos não ocorre somente com
fundamento na regra-matriz prevista constitucionalmente. Por força da necessária
interpretação sistemática do ordenamento jurídico, todas as outras normas jurídicas
pertinentes, como são exemplos os princípios constitucionais tributários, ou ainda, as
normas jurídicas infraconstitucionais de âmbito nacional, como é o caso de alguns
dispositivos do Código Tributário Nacional, dentre outras, devem ser levadas em
consideração, quando de sua interpretação/aplicação, não sendo correto conceber as
normas de forma isolada uma das outras. É nesse sentido a advertência de MARÇAL
JUSTEN FILHO:
Daí por que o fato de a norma matriz fornecer apenas alguns aspectos da
hipótese de incidência do tributo não autorizar o aplicador ou o intérprete a
pretender liberdade quanto aos demais ou omissão constitucional
relativamente a eles. A análise da Constituição como um todo e dos
princípios por ela encampados sempre conduz à conclusão de que, perante a
Constituição Brasileira, são inexistentes os casos em que resta liberdade para
a pessoa política atuar a seu bel-prazer no campo tributário. Então, a norma
matriz não é a única a dispor sobre a norma infraconstitucional que se
disponha a criar um tributo específico.499
Defender que o legislador está vinculado
somente às disposições
constitucionais específicas de cada tributo, é admitir a satisfação, tão-somente, com a
primeira etapa do labor hermenêutico, a interpretação literal/gramatical, desprezando os
demais métodos interpretativos que sempre devem ter como desfecho a interpretação
sistemática, pois além de considerar todos os demais – teleológico, histórico etc. – leva
em conta todo o restante do sistema jurídico, privilegiando sempre as normas que
revelam os magnos princípios constitucionais.
É praticamente pacífica na doutrina e na jurisprudência a idéia de que a
Constituição não cria tributos, mas que tão-somente atribui competência às pessoas
498
499
Curso..., op. cit., p. 448.
O imposto..., op. cit., p. 40.
197
políticas para que o façam, mediante suas respectivas leis. Nesse tema, destaca-se o
pensamento divergente de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, para quem a posição
doutrinária que defende ser o tributo criado somente pela respectiva lei da pessoa
política “[...] envolve uma cisão, lógica e cronológica, no iter jurídico, ou seja, no
processo de estruturação do tributo, entre o momento da outorga constitucional da
competência tributária e o da criação do tributo pela lei tributária material da pessoa
política competente”.500
No raciocínio desse autor, esse entendimento seria equivocado por basear-se
em uma visão estática da criação do tributo, fenômeno que é essencialmente dinâmico.
Ou seja, a lei que exercita a competência tributária, criando em definitivo o tributo, não
iniciou o processo de criação, mas tão-somente o continuou, de forma integrativa. Toda
norma jurídica em um sistema representa, a um só tempo, ato de criação e de aplicação
do direito, pois cada norma é criada de acordo com o que prescreve outra. Quando uma
norma cria direito, está inovando no ordenamento jurídico.501
No sistema tributário brasileiro, a dinâmica jurídica – processo técnico de
criação do direito – consiste na criação e aplicação de normas, sendo que a inferior
aplica a superior. Disposições de caráter geral, como o artigo 146, III, da Constituição,
informam outras normas de caráter também geral, como as normas gerais de Direito
Tributário, ou ainda o Código Tributário Nacional502. A partir dessa fase, esse
procedimento prossegue a partir do geral para o particular – como a norma jurídica
municipal sobre o ISS, por exemplo – e, por fim, do particular para o individual, quando
do exercício da pretensão fiscal individualizada.503
Quando a Constituição, através das normas atributivas de competência, dispõe
sobre a hipótese de incidência e base de cálculo de impostos, taxas e contribuição de
melhoria, não está outorgando às pessoas políticas uma simples autorização, desprovida
de elementos substanciais. Raciocínio diverso implicaria a flexibilização do subsistema
constitucional tributário, contrariando a extrema rigidez que o peculiariza. Significaria
“[...] abandonar o modelo dogmático-normativista de análise do sistema tributário”.504
500
Teoria geral..., op. cit., 171-172.
Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 6-7.
502
Obviamente apenas em relação aos seus dispositivos que possuem compatibilidade com a noção de
normas gerais de Direito Tributário.
503
BORGES, José Souto Maior. Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 7.
504
BORGES, José Souto Maior. Teoria geral..., op. cit., p. 172-173.
501
198
JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES não está afirmando que a Constituição cria
definitivamente o tributo, mas sim que:
o complexo processo de sua criação se inicia, numa consideração dinâmica,
com a outorga constitucional de competência tributária [...]. Uma visão
dinâmica, e não estática, do sistema constitucional tributário porá a
descoberto que o processo de instituição (criação) do tributo, iniciado com a
outorga constitucional da competência tributária, se integra, observadas as
respectivas competências, com a superveniência das leis complementares,
ordinárias e eventualmente outros atos normativos. O insuficiente não é, em
tal caso, equiparável ao inexistente. O tributo parcialmente estruturado na
Constituição é algo já existente (conjunto de normas constitucionais válidas),
embora a sua estruturação postule a superveniência de lei integrativa.505
Acrescenta ainda o autor que a visão isolada da criação do tributo tão-somente
pela lei da pessoa política infirma o caráter sistemático do Direito, pois acaba por
conferir relevância às normas infraconstitucionais, em desprestígio à função criadora
das normas constitucionais. Uma prova irrefutável está em que a Constituição apresenta
normas, como as que veiculam imunidades – artigos 150 a 152 – cuja eficácia já é plena
e imediata, prescindindo para tanto de posterior legislação integrativa. 506
Em sentido contrário é o pensamento de ROQUE ANTONIO CARRAZZA,
para quem as normas jurídicas de competência previstas na Constituição não criam,
propriamente, tributos, mas, antes, conferem aptidão para que o legislador, em um
momento lógico-jurídico posterior, possa criá-lo (instituí-lo) através de uma decisão
política. Competência tributária, nas palavras do autor, “[...] é a aptidão para criar, in
abstracto, tributos”.507 Mais adiante, complementa:
A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de
liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo, a
regra-matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de
incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base
de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de
tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária,
deverá ser fiel à norma-padrão de incidência do tributo, pré-traçada na
Constituição.508
Esse posicionamento tem por essência o entendimento de que somente com a
lei editada pela pessoa de direito público interno é que poderá existir fato jurídico
tributário, cuja ocorrência, por se subsumir à hipótese de incidência, deflagrará o
505
Ibidem, p. 173.
Ibidem, p. 174-175.
507
Curso..., op. cit., p. 437.
508
Ibidem, p. 448.
506
199
nascimento da relação jurídica tributária. Apenas a previsão constitucional de um
tributo, sem a lei posterior, não criaria tributo algum e, como conseqüência lógica,
também não autorizaria o respectivo ente a exigir o pagamento, posto não haver ainda
como surgir obrigação tributária. Outro argumento é o de que, sem lei criadora, não há
ainda a alíquota, fator que, conjugado à base de cálculo, é imprescindível ao cálculo do
quantum devido a título de tributo.
Apesar dos bons argumentos invocados por ROQUE ANTONIO CARRAZZA,
e que refletem, de uma forma geral, o posicionamento dominante, entende-se que
melhor razão assiste ao raciocínio lógico de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, acima
exposto. Em primeiro lugar, a própria afirmação de ROQUE ANTONIO CARRAZZA,
acima transcrita, de que a criação do tributo ocorreria por decisão política do legislador
infraconstitucional, já denuncia que o raciocínio utilizado pela corrente dominante parte
de uma perspectiva pré-jurídica, da qual, como conseqüência lógica inafastável,
somente se poderia chegar a uma conclusão falsa, quando utilizado para uma
interpretação do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, verifica-se que a validade da tese de JOSÉ SOUTO MAIOR
BORGES deve-se ao fato de que parte de uma premissa válida, pois exclusivamente
jurídica, calcada no fenômeno da criação e aplicação do Direito, no qual, desde a
Constituição, até a aplicação individualizada de uma norma, ocorre o fenômeno que se
convencionou designar de processo de concreção normativa. Por outro lado, esse
pensamento ratifica e fortalece o caráter sistemático e coerente do ordenamento jurídico,
assim como se constitui em mais um forte fundamento obstaculizador das teses que
pretendem conceder à lei complementar de normas gerais de Direito Tributário uma
discricionariedade que ela definitivamente não possui.509
PAULO DE BARROS CARVALHO tentou refutar a tese de SOUTO,
alegando que também a validade de uma sentença judicial ou de um ato administrativo
específico depende de sua conformidade com a Constituição, donde não se poderia
inferir que o legislador constitucional cria a sentença ou o ato administrativo, nem que
começa a fazê-lo.510 JOSÉ ROBERTO VIEIRA, apesar de em um primeiro momento ter
concordado com esse autor, passou a adotar a tese de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES,
afirmando que a investigação tão-somente constitucional de um tributo, “[...] conquanto
509
Diante desse posicionamento, a menção à expressão “criação” ou “instituição” do tributo, no
decorrer desse trabalho, considera esse ponto de vista.
200
não suficiente, já nos revela ‘o tributo mínimo’, que, em sua substancialidade nuclear,
foi objeto de criação no seio da própria Lei Magna!” (grifos do autor).511
Como já esclarecemos na introdução, este trabalho não se propõe a analisar
nenhuma regra-matriz específica, que integra as regras de conduta, ou seja, não
trataremos de nenhuma lei municipal sobre o ISS. O nosso estudo dirige-se às normas
jurídicas que prescrevem qual é, dentro da regra-matriz de incidência do ISS, o critério
espacial possível a ser observado pelos legislativos municipais, assim como questões
conexas relativas à sujeição passiva tributária. Trata-se, portanto, de uma análise de
regras de estrutura.
A intenção (pretensão) é, portanto, o estudo das normas jurídicas
constitucionais, tanto a que dispõe sobre a competência municipal para a criação do ISS
(objetivo específico), como as que revelam, explícita ou implicitamente, os princípios
constitucionais tributários que informam a interpretação e aplicação daquela primeira.
Mas diante da extrema relevância da delegação constitucional ao legislador
complementar no campo tributário, o qual, dentre outras atribuições, tem a competência
para definir, em caráter nacional, o “fato gerador”, a base de cálculo e os contribuintes
dos impostos, inafastável, também, é a análise do Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro
de 1968 e da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
O Decreto-lei nº 406/68, editado ainda sob a égide da Constituição de 1967,
“Estabelece normas gerais de direito financeiro, aplicáveis aos impostos sobre
operações relativas à circulação de mercadorias e sobre serviços de qualquer natureza,
e dá outras providências”. A Constituição de 1967 inaugurou a exigência de que as
normas gerais de direito tributário fossem veiculadas pela forma da lei complementar, o
que foi mantido na Emenda nº 1 de 1969 e na Constituição Federal de 1988. Dessa
verificação, resultou a discussão da legitimidade do Decreto-lei nº 406/68 ter status de
lei complementar, haja vista dispor sobre normas gerais acerca do então ICM e do ISS.
LUIZ RAFAEL MAYER, em parecer da Consultoria-Geral da República, teve,
para nós, um dos melhores entendimentos sobre a questão:
A edição dessas normas, em forma de decreto-lei, não refuta, no caso, a
exigência constitucional de lei complementar. É que, como neles se indica
expressamente, esses diplomas legais foram expedidos com fundamento no §
1º do artigo 2º do Ato Institucional n° 5, que atribui ao Poder Executivo,
510
Apud E, afinal, a Constituição cria tributos! In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Teoria Geral da
Obrigação Tributária: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges, p. 631.
511
Ibidem, p. 640.
201
durante o recesso parlamentar, autorização para ‘legislar em todas as matérias
e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos
Municípios’. Desse modo, os decretos-leis em causa, quer por sua matéria
específica, quer pela abrangente competência legislativa de que emanam, têm
a função e a categoria previstas na Constituição para a lei complementar, e
poderiam ter-se denominado decretos-leis complementares [...]. Logo, as
medidas que visem a alterar as normas consubstanciadas no Decreto-Lei n°
406, de 1968, ou a dispor, de qualquer modo, em relação a imposto sobre
serviços, devem ser procedidas por via de lei complementar.512
Entretanto, a conclusão pela possibilidade de as normas gerais serem editadas
através de Decreto-lei, no chamado período de exceção, não implica automaticamente a
questão da obrigatoriedade das disposições do Decreto-lei nº 406/68 para os
Municípios, pois como adverte MARÇAL JUSTEN FILHO, “[...] suas previsões
somente seriam reconhecidas como obrigatórias para aquelas pessoas políticas à
medida que se reconhecesse ser caso, constitucionalmente previsto, de lei
complementar. Assim, vencido o tema da fonte formal da norma complementar, resta
imprescindível determinar se era dado veicular norma complementar dispondo sobre a
questão”.513
Dessa forma, é irrelevante o fato de o Decreto-lei nº 406/68 ter se intitulado
veiculador de normas gerais de Direito Tributário, pois o fundamental é saber se as
normas que editou se subsumem ao comando do artigo 146 da Constituição Federal de
1988 e, com isso, obrigam os Municípios. Em resumo, o Decreto-lei nº 406/68 foi
recepcionado pela Constituição Federal de 1988, mas tão-somente naquilo que é
materialmente compatível com a Lei Maior, no que possui, portanto, eficácia de lei
complementar.514 Ressalte-se que através do § 5º, do art. 34, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, a Carta de 1988 consagrou expressamente o Princípio da
Recepção da legislação tributária anterior, no que lhe for compatível.515
A Lei Complementar nº 116/2003, criada especialmente com o objetivo de
(tentar) solucionar os conflitos entre os Municípios no que toca à definição do local de
ocorrência do “fato gerador” – critério espacial da hipótese de incidência – “Dispõe
sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios
e do Distrito Federal, e dá outras providências”. Como ainda restam divergências sobre
quais dispositivos da norma anterior teriam sido revogados pela novel legislação, ambos
512
Imposto sobre serviços. Revista de Direito Público, n. 31, p. 43.
O imposto..., op. cit., p. 67-68.
514
Esse é o entendimento, também, de MARCELO CARON BAPTISTA, em ISS..., op. cit., p. 225-226.
515
“§ 5º - Vigente o novo sistema tributário nacional, fica assegurada a aplicação da legislação anterior,
no que não seja incompatível com ele e com a legislação referida nos §3º e § 4º.”
513
202
os textos normativos, naquilo que interessa ao tema, serão objeto de estudo neste
trabalho.
Por fim, e antes de adentrar efetivamente no tema, cite-se o raciocínio lúcido
de GERALDO ATALIBA, sobre o contexto do ISS no ordenamento jurídico:
O regime jurídico da tributação de serviço não é um amontoado ilógico e
díspar de mandamentos desconexos e independentes reciprocamente. Por
instância própria da dogmática jurídica e exigência universal e primeira da
ciência do Direito, é um conjunto uno, coeso e harmônico de disposições
normativas, hierarquicamente dispostas, sistematicamente organizadas, de
forma a erigir uma unidade estruturada em torno de alguns princípios básicos,
informadas por uma coerência interna que coordena e solidariza cada qual de
suas partes, entre si relacionadas, pelos traços comuns de vinculação formal
ao mesmo sistema e fidelidade e subordinação aos princípios informativos do
todo em que se inserem, cujas matrizes estão na Constituição e na lei.516
4.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ISS
O ISS é tributo de competência municipal, tendo origem em ordenamento
jurídico anterior, mais precisamente no artigo 15 da Emenda Constitucional nº 18, de 1º
de dezembro de 1965, emenda essa que introduziu a Reforma Tributária na Constituição
de 1946, substituindo outros impostos existentes no sistema de então – Imposto sobre
transações e o imposto sobre diversões públicas – em especial o “Imposto de Indústria e
Profissões”, conforme lembra RUBENS GOMES DE SOUSA.517
Dentre as principais razões para a substituição do imposto anterior pelo ISS
destacou-se, conforme esse renomado autor, a fragilidade com que ocorria a invasão de
competências tributárias entre diferentes pessoas políticas, pela falta de uma definição
precisa do campo de incidência e, como conseqüência, de qual seria a base de cálculo
concreta em cada caso.
516
517
Imposto Sobre Serviços..., op. cit., p. 69.
O imposto sobre serviços e as sociedades prestadoras de serviços técnicos profissionais, Revista de
Direito Público, n. 20, p. 354-355. Nesse artigo, RUBENS GOMES DE SOUSA afirma que a
comissão da reforma tributária promulgada pela Emenda n 18/65 à Constituição Federal de 1946, e
complementada pelo Código Tributário Nacional (Lei n 5.172/66), da qual foi relator, “[...]
consignou expressamente que o ISS destinava-se a substituir o antigo imposto de indústria e
profissões, que, pela imprecisão constitucional de sua incidência e conseqüente indefinição de sua
base de cálculo, se havia convertido no exemplo mais flagrante da inadequação da discriminação de
rendas então vigente, por permitir a interpenetração das competências tributárias privativas de
governos diferentes. Com efeito, os dois aspectos referidos permitiam que o imposto de indústria e
profissões viesse sobrepor-se a tributos reservados a outros poderes que não o Município,
notadamente, no campo das atividades comerciais, ao IVC; e nesse campo e também no das
atividades profissionais de prestação de serviços, calculado como era, via de regra, sobre o chamado
203
Em um primeiro momento, foi o Código Tributário Nacional – Lei nº 5.172, de
25 out. 1966 – a legislação que conferiu a primeira complementação normativa em
relação ao ISS, conforme se infere do caput do artigo 71, pelo qual “O imposto, de
competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza tem como fato
gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem
estabelecimento fixo, de serviço que não configure, por si só, fato gerador de imposto
de competência da União ou dos Estados”. No artigo 72, ficou estabelecido que “A
base de cálculo de imposto é o preço do serviço”.
As Constituições de 1967 e 1969 – esta última representada formalmente pela
Emenda Constitucional nº 1, de 17 out. 1969 – mantiveram a competência municipal
para a instituição do ISS. Nesse intermédio, o Decreto-lei nº 406/68, com as
modificações introduzidas logo após pelo Decreto-lei nº 834, de 08 set. 1969, por meio
de seus artigos 8º a 13, disciplinou o ISS em nível infraconstitucional nacional,
revogando, assim, os dispositivos acima citados do Código Tributário Nacional, além
do seu artigo 73, que prescrevia que o “Contribuinte do imposto é o prestador do
serviço”.
Posteriormente, o Decreto-lei nº 406/68 sofreu as seguintes alterações: a Lei
Complementar nº 22, de 11 dez. 1974 estabeleceu isenção de ISS para serviços de
engenharia contratados com a União, Estados, Distrito Federal, Municípios, Autarquias
e empresas concessionárias de serviços públicos; a Lei Complementar nº 56, de 15 dez.
1987 incluiu novos serviços na lista prestados por sociedades enquadráveis no regime
de alíquota fixa; e a Lei Complementar nº 100, de 22 dez. 1999 incluiu na lista anexa o
serviço de exploração de rodovia por agentes privados, assim como fixou critérios para
determinação da base de cálculo do imposto em relação a esse serviço.
4.3 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ISS
4.3.1 O critério material
O Sistema Tributário Nacional peculiariza-se pelo rigor com que o legislador
constituinte tratou do tema da tributação, do que resulta ser inevitável ter, como ponto
‘movimento econômico’ – equivalente à receita bruta – confundir-se com o imposto federal sobre a
renda e proventos de qualquer natureza” [sic].
204
de partida para a pesquisa da regra-matriz do ISS, o que dispõe a Constituição Federal.
É imperioso reconhecer que a análise científica não só do ISS, mas de todo e qualquer
tributo, só pode ser levada a bom termo se condicionada à sua estrutura constitucional,
como defende MARÇAL JUSTEN FILHO, ao ensinar que “[...] é na Constituição
Federal que encontramos todas as peculiaridades de cada tributo – em última análise,
a amplitude de sua hipótese de incidência e a delimitação de sua conseqüência”.518
Como já demonstrado anteriormente, é praticamente unânime, na doutrina, a
tese de que os tributos ainda não estão criados (instituídos) na Constituição, o que
ocorreria, efetivamente, somente com a lei aprovada pela pessoa política respectiva,
dentro de sua esfera de competência, conforme a repartição feita na Lei Maior. Diante
da consistência da tese contrária, defendida por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, pela
qual, em síntese, o processo de criação do tributo já inicia com as normas
constitucionais atributivas de competência, entendemos que seu raciocínio é o único
compatível com o sistema jurídico.519
Disso decorre não estar o legislador ordinário autorizado a ultrapassar,
restringir ou modificar o que dispõe a Constituição Federal sobre o assunto, pois ela
reduz ou até mesmo neutraliza a sua margem de liberdade quando do exercício da
competência, pois o respectivo poder legislativo está vinculado às rigorosas e exaustivas
previsões constitucionais acerca da matéria.
Não haverá, assim, validade científica em discussões doutrinárias que, a
pretexto de solucionar eventuais questões sobre o tema, recorram às normas
infraconstitucionais.520 É de rigor, portanto, iniciar a presente análise pelo contexto
constitucional. Preliminarmente, estabelece o artigo 156, da Carta Maior, que trata da
outorga de competência tributária aos Municípios, e seu inciso III, que dispõe
especificamente sobre o ISS, que “Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
[...] III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos
em lei complementar”.521
Antes de analisar o texto constitucional, é importante fazer uma necessária
advertência quanto ao recurso ao Direito Comparado, freqüentemente invocado nas
teorias sobre o imposto sobre o valor agregado (IVA) europeu. Não discorda a doutrina
518
O imposto..., op. cit., 59.
Vide supra, subitem 4.1.
520
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 59-60.
521
O artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988, teve sua redação dada pelo artigo 1º, da Emenda
Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993.
519
205
quanto à sua imprestabilidade para a busca de subsídios normativos, posto que “[...] só
depois de fixadas certas linhas mestras – captáveis diretamente da observação do texto
da Constituição – será útil qualquer consideração desse tipo, para sublinhar as
peculiaridades do nosso sistema, a fim de melhor compreendê-lo”.522 É que a
interpretação sistemática, como a própria expressão está a indicar, tem por limite o
sistema jurídico de um determinado país, ou dizendo de outro modo, está limitada a uma
certa ordem jurídica, não devendo, portanto, considerar normas jurídicas alienígenas.
Apesar de o Direito Comparado, cujo objeto nada mais é do que “[...]
estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças entre ordens jurídicas”, ser
extremamente útil naquilo a que acusa sua própria denominação – comparar ordens
jurídicas (macrocomparação) ou institutos jurídicos afins em ordens jurídicas diferentes
(microcomparação) – será inútil ou até mesmo inconveniente sua utilização para a
análise da regra-matriz de algum tributo existente no sistema tributário nacional, como é
o caso do ISS.523 O raciocínio é confirmado por HERON ARZUA:
A Grande Lei, num desdobramento lógico dos princípios da Federação e da
autonomia municipal, fatiou o poder tributário do Estado Brasileiro entre os
três entes engendrados, a União, Estados e Municípios. E só existe
discriminação de rendas porque o Brasil organizou-se em forma federativa e
elevou o Município à categoria de pessoa política. [...] Conseqüência
importante dessas peculiaridades do Texto Superior é a pouca ou quase
nenhuma utilidade do recurso às doutrinas estrangeiras para a solução dos
problemas de funcionamento de nosso sistema. A admoestação tem cabida
para evitar o vezo comum de que se querer interpretar as normas dos
impostos brasileiros, em particular do imposto sobre operações relativas à
circulação de mercadorias e serviços nominados (ICMS) e do imposto sobre
serviços (ISS), a partir do imposto sobre o valor agregado (IVA) europeu.524
Como fica claro de uma primeira leitura do texto constitucional, o critério
material da hipótese de incidência, a ser observado pela legislação infraconstitucional,
refere-se a imposto sobre serviços de qualquer natureza. Com efeito, nos moldes do que
dispõe a repartição e discriminação constitucional de competências tributárias, os
Municípios, com base no inciso III do artigo 156, só podem instituir o ISS sobre fatos
que estejam inseridos no conceito constitucional de serviço. Como conseqüência dessa
rígida e exaustiva outorga de competência, pela qual cada pessoa política recebe sua
respectiva parcela de modo privativo, depreende-se que qualquer fato que não possa ser
identificado como serviço está imune à incidência desse imposto municipal. Esse
522
BARRETO, Aires Fernandino. ISS..., op. cit., p. 27.
ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao direito comparado, p. 7-9.
524
O imposto sobre serviços e o princípio da territorialidade..., op. cit., p. 142-143.
523
206
pensamento é corroborado pelo professor AIRES BARRETO: “[...] examinando-se o
contexto sistemático da Constituição chegar-se-á a um conceito de serviço que não é
rigorosamente igual ao conceito vulgar. Em outras palavras: o conceito constitucional
de serviço não coincide com o emergente da acepção comum, ordinária, desse
vocábulo”.525
O legislador municipal, assim, não pode ir além dos marcos do conceito de
serviço encampado pelo contexto constitucional para definir sua esfera de competência,
ainda que sob o pretexto de estar amparado por qualquer outro conceito extrajurídico de
serviço, como o econômico, por exemplo, que é o conceito adotado pela CEE –
Comunidade Econômica Européia, para a incidência do imposto sobre o valor acrescido
(IVA) pelos países participantes.
Entretanto, doutrina e jurisprudência já defenderam, em nosso país, o
entendimento de que o “serviço” tributável pelo ISS tem o seu respectivo conceito
extraído não do Direito, mas da Ciência Econômica. Entre as obras que defendem esse
posicionamento, destaca-se a clássica “Doutrina e prática do imposto sobre serviços”,
de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, autor que parece ter indevidamente
importado para o ISS o conceito de “serviço” válido para o Imposto sobre o Valor
Acrescido (IVA) europeu, o qual sempre foi definido por exclusão ao de transferência
de bens materiais. A conclusão desse autor é a de que o ISS, por equiparação, também
onera as atividades econômicas de transferências de bens imateriais: “Conforme se
verifica, adotou-se o conceito econômico de serviço, assim entendido o bem econômico
(meio idôneo para satisfazer uma necessidade) que não seja bem material, isto é, que
não seja de extensão corpórea ou de permanência no espaço. Serviço, no sentido
econômico, é sinônimo de bem imaterial, fruto do esforço humano aplicado à
produção”. 526
Mais adiante, esse autor adverte que o conceito econômico de “prestação de
serviços” não se confunde com o conceito de “prestação de serviços” do direito civil, o
qual define como sendo o fornecimento de trabalho a terceiros mediante remuneração,
pois abrange também outras atividades como, v.g., locação de bens móveis, transporte,
publicidade, hospedagem, diversões públicas, cessão de direitos, depósito, execução de
obrigações de não fazer etc.527
525
ISS..., op. cit., p. 291.
Doutrina e prática do imposto sobre serviços, p. 40.
527
Ibidem, p. 41-43.
526
207
O referido autor, entretanto, interpretou a norma tributária do ISS com base em
raciocínio aplicável somente aos países integrantes da Comunidade Econômica
Européia, como foi dito acima. Como resultado, passou a defender que o ISS não recai
somente sobre a prestação de serviços, mas, sim, sobre “a venda de” serviços de
qualquer natureza, pois que a norma constitucional teria outorgado competência aos
municípios para onerar o serviço, cujo conceito, amplo, encontra-se radicado na
economia, e não só sobre a sua prestação, que é conceito restrito ao âmbito jurídico,
oriundo do Direito Civil.528 Tal entendimento seria confirmado pela existência, no
Decreto-lei nº 406/68, de uma série de atividades admitidas como “serviços”, mas que
não se subsumem ao conceito (civilista) de “prestação de serviços”, como é o caso da
locação de bens móveis, publicidade, hospedagem, diversões públicas etc. 529
Com a devida vênia, não há como adotar esse raciocínio. Em primeiro lugar,
porque recepcionou norma oriunda do Direito Comparado, como se fosse integrante de
nosso sistema jurídico, o que, como já se demonstrou acima, não se admite, já que a
própria denominação acusa servir o direito alienígena tão-somente para fins de
comparação com o sistema pátrio. Em segundo lugar, deflui desse entendimento que o
método hermenêutico utilizado pelo autor foi o da interpretação literal que, como se
sabe, é insuficiente, servindo apenas como método inicial, nunca, porém, definitivo.
E, por fim, o mais grave equívoco repousa na afirmação de que o ISS incidiria
não sobre o fato da prestação de serviços, mas sobre o negócio jurídico do qual ela
decorre – “venda de serviços”. Como veremos adiante, ainda que a análise do contrato
que subjaz à prestação do serviço seja necessária para uma devida compreensão do fato
tributário do ISS, isso não autoriza concluir seja o próprio negócio jurídico a
materialidade da hipótese de incidência do ISS.530
Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal chegou a chancelar esse
entendimento, tendo se posicionado no sentido de que o ISS poderia incidir sobre
qualquer atividade economicamente enquadrada no conceito de serviço, entendimento
esse que perdurou praticamente até entrar em vigor a atual Constituição, conforme
ilustram os Recursos Extraordinários ns 112.947-6/SP (2a Turma, Rel. Min. Carlos
528
Tanto o artigo 1.216 do antigo Código Civil, como o artigo 594 do atual código, prevêem que “Toda a
espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante
retribuição”.
529
Doutrina..., op. cit., p. 81-85.
530
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 84-85.
208
Madeira, julgado em 19/06/1987)531 e 115.103-0/SP (1a Turma, Rel. Min. Oscar Corrêa,
julgado em 22/03/1988).532
Como temos defendido, a única interpretação legítima e segura é a que
desemboca no contexto sistemático do ordenamento jurídico. BERNARDO RIBEIRO
DE MORAES, entretanto, interpretou a Constituição conforme uma norma
infraconstitucional, no caso, o Decreto-lei nº 406/68, quando o correto, entendemos,
teria sido interpretar esse texto normativo em conformidade com o contexto
constitucional.
Nesse sentido, FERNANDO OSÓRIO DE ALMEIDA JÚNIOR conceitua a
interpretação conforme a Constituição como sendo “[...] aquela que, entre outras
possíveis interpretações, se impõe sobre as demais, em razão de revelar na lei a sua
validade em face da Constituição”.533 Por outro lado, lembre-se que o Decreto-lei nº
406/68 é “maculado” pelo fato de ser instrumento normativo editado pelo Poder
Executivo durante regime de exceção e, à semelhança das atuais Medidas Provisórias,
também foi objeto de abusos por parte dos chefes do Executivo, em flagrante prejuízo
ao primado da democracia representativa.
Respeitados tais limites, os quais incluem a ressalva dos serviços de transporte
transmunicipal e de comunicação, reservados pela Constituição (artigo 155, II) aos
Estados e Distrito Federal, para serem tributados pelo ICMS, todos os demais serviços –
e daí advém a razão da expressão serviços de qualquer natureza – podem ser gravados
pelos Municípios e pelo Distrito Federal, pela via do ISS. Disso resulta, ainda, a
ilegitimidade da interpretação que confere caráter de taxatividade à lista de serviços
prevista na legislação infraconstitucional, atualmente anexa à Lei Complementar nº
116/2003. A inteligência constitucional não admite, portanto, outros limites ao
legislador tributário municipal senão os existentes como resultado do que prevê o inciso
531
“Tributário. ISS na locação de bens móveis. O que se destaca, 'utilitatis causa’, na locação de bens
móveis, não é apenas o uso e gozo da coisa, mas sua utilização na prestação de um serviço. Leva-se
em conta a realidade econômica, que é a atividade que se presta com o bem móvel, e não a mera
obrigação de dar, que caracteriza o contrato de locação, segundo o artigo 1188 do Código Civil. Na
locação de guindastes, o que tem relevo é a atividade com eles desenvolvida, que adquire
consistência econômica, de modo a tornar-se um índice de capacidade contributiva do imposto sobre
serviços. Recurso não conhecido.” – Disponível em http://www.stf.gov.br. Acesso em: 05 fev. 2007.
532
“ISS - Locação de bens móveis, expressamente incluída no item 52 da lista de incidência. Inexistência
de inconstitucionalidade. Conceito de serviços. Artigo 24, II, da Constituição Federal não violado.
Textos não prequestionados. Cabimento pela alínea 'c' indemonstrado. Recurso extraordinário não
conhecido.” - Disponível em http://www.stf.gov.br. Acesso em: 05 fev. 2007.
533
Interpretação conforme a Constituição e Direito Tributário, p. 16.
209
II do artigo 155 da Constituição, em que pese, infelizmente, a remansosa jurisprudência
em sentido contrário.
Da análise da materialidade da hipótese de incidência do ISS surge a questão
de saber quais serviços podem ter a respectiva prestação gravada pela via desse
imposto municipal. Conforme já denuncia o grifo, o critério material, apesar do que diz
literalmente a Constituição, não é e nem pode ser somente “serviços”. Conforme já
analisamos, o critério material da hipótese de incidência, de acordo com o ensinamento
de PAULO DE BARROS CARVALHO, é a descrição de um fato ou de um estado de
fato, também denominado de núcleo da hipótese, o que já remete à conclusão de que
com a hipótese não se confunde, sendo antes uma parte do antecedente. Esse núcleo
obrigatoriamente será formado por um verbo – alusivo a um comportamento humano –
o qual deve ser sempre pessoal e de predicação incompleta, o que exige a presença de
um complemento.534
Aplicando esse raciocínio ao ISS, conclui-se que o vocábulo “serviços”, se não
é um verbo, logicamente é o complemento de que fala PAULO DE BARROS
CARVALHO. E o verbo que mais se coaduna com esse complemento não é outro senão
“prestar”. O prestador do serviço é o único destinatário constitucional da obrigação
tributária do ISS.535 Como resultado, tem-se que o critério material do ISS é prestar
serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei
complementar.
É que “[...] não se tributa o serviço em si mesmo, mas a atividade humana da
qual ele decorre”.536 Dizendo de outro modo, seria ilógico considerar que o ISS tivesse
sua incidência reduzida somente à figura do “serviço”, como uma atividade já realizada,
posto que é somente na “prestação do serviço” que estão reunidas as figuras do
prestador e do tomador, que são os elementos necessários à instauração de uma relação
jurídica de direito privado, apta a irradiar os efeitos tributários pertinentes. 537
Apesar de o artigo 156, III, da Constituição Federal, dispor, literalmente, que
o imposto é sobre “serviços de qualquer natureza”, o próprio texto constitucional, em
outras ocasiões, encarrega-se de esclarecer o lapso gramatical. Esse mesmo dispositivo
– inciso III do artigo 156 – adverte que os serviços tributáveis pelo ISS são aqueles
“[...] não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar”, dispositivo
534
Vide supra, subitem 3.3.2.
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 80.
536
Ibidem, p. 78.
535
210
que trata da competência dos Estados federados para instituir o ICMS, imposto que,
além de incidir sobre as operações relativas à circulação de mercadorias, também grava
as “[...] prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação [...]”. Ou seja, de forma implícita, depreende-se que as prestações de
serviço, de uma forma geral, são tributáveis pelos municípios através do ISS, com
exceção dos serviços cuja prestação é materialidade reservada à competência estadual.
A legislação infraconstitucional confirma o entendimento, não havendo
oposição nesse sentido, como ilustra o antigo artigo 8º do Decreto-lei nº 406/68: “O
imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem
como fato gerador a prestação [...] de serviço constante da lista anexa”. Também o
artigo 1º da atual Lei Complementar nº 116/2003 dispõe de forma semelhante,
acrescentando, porém, que o imposto incide “[...] ainda que esses (os serviços) não se
constituam como atividade preponderante do prestador” (esclarecemos, nos
parênteses).
Outra particularidade, no que pertine à repartição de competências quanto aos
impostos, está no fato de que todas as materialidades passíveis de serem tributadas pela
via dos impostos estão expressamente previstas na Constituição Federal, seja tal
previsão explícita ou implícita. Não há, portanto, qualquer fato, desde que revelador de
capacidade contributiva – artigo 145, § 1º da Constituição Federal – que não possa,
pelo intérprete, ser remetido à competência privativa de uma das pessoas políticas. Mas,
nesse ponto, reside substancial diferença quanto à competência dos Estados, Distrito
Federal e Municípios, em relação à competência da União Federal.
É que a outorga de competência aos Estados e aos Municípios foi feita, pelo
legislador constituinte, de forma explícita, querendo isso significar que a competência
tributária estadual e municipal quanto aos impostos é somente aquela prevista,
respectivamente, nos incisos I ao III do artigo 155, e nos incisos I a III do artigo 156,
ambos da Lei Maior. Noutro giro, a competência da União Federal, além da prevista de
forma explícita nos incisos I ao VII do artigo 153 da Constituição, abrangerá também os
demais fatos signo-presuntivos de riqueza que, eventualmente, venham a ser
“descobertos” pelo legislador federal, por não terem sido positivados na Constituição
quando de sua promulgação.
537
MELO, José Eduardo Soares de. ISS – aspectos teóricos e práticos, p. 34.
211
Conforme estabelece o artigo 154, I da Constituição, “A União poderá
instituir: I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior,
desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo
próprios dos discriminados nesta Constituição”. Trata-se da denominada competência
residual da União Federal, pois abrange os fatos que “restaram”, após os previstos nos
artigos 153, 155 e 156, competência essa a ser exercida, por exigência expressa,
somente através de lei complementar, assim como é imperativo que o tributo criado seja
não-cumulativo – ou seja, a lei em questão deve instituir mecanismo econômicofinanceiro que impeça a incidência do imposto, em uma das fases da cadeia produtiva,
sobre o próprio imposto incidido na etapa ou nas etapas anteriores – e que, ainda, “[...]
não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta
Constituição”.
Como conseqüência inafastável, será inconstitucional, por invasão de
competência ou por ofensa à limitação constitucional ao poder de tributar, toda e
qualquer lei municipal que estabeleça a incidência de ISS sobre fato que extrapole o
conceito de serviço encampado pelo inciso III do artigo 156 da Constituição Federal,
seja por tal lei prever incidência sobre fatos de competência dos Estados e/ou da União
Federal, seja por instituir imposto sobre fato imune ao ISS, como é o caso dos serviços
públicos, por exemplo.538
As ilações até aqui expendidas permitem inferir que, não obstante o estudo do
artigo 156, III, do Texto Constitucional, ser essencial à análise da competência
municipal para a criação do ISS, também é de rigor, partindo sempre de uma necessária
interpretação sistemática, não descuidar das demais normas constitucionais que, de
alguma forma, influenciam o delineamento desse imposto, sejam elas os princípios
constitucionais, sejam as disposições que, ao atribuir as competências tributárias das
outras pessoas políticas, tratam de hipóteses semelhantes que, por essa razão, são
potencialmente a causa dos chamados conflitos de competência, tidos pela doutrina –
com acerto – como aparentes, já que resultam sempre de erro na conceituação dos fatos
pelo intérprete, nunca de antinomia constitucional propriamente dita.
Como exemplo, pode-se citar os casos de operações jurídicas em que há
dificuldade em definir se o que houve foi prestação de serviços tributáveis pelos
Municípios ou pelos Estados, como é o atual caso dos serviços de provedores de
538
BARRETO, Aires Fernandino. ISS..., op. cit., p. 27.
212
internet, ou ainda os casos de serviços abrangendo a “obrigação de dar” algo, em que
pode haver aproximação com os conceitos de comercialização e/ou industrialização,
operações destinadas respectivamente às competências estadual e federal.
Voltando à questão conceitual, verifica-se que a Constituição se limita a fazer
referência ao vocábulo “serviços”, não definindo, de forma expressa, qual seja o seu
conceito, para efeitos tributários, o que remete ao intérprete, portanto, a tarefa de fazêlo. Esse, contudo, conforme já se frisou, está jungido ao contexto constitucional nesse
mister, em especial pelo sentido sistemático dos seus princípios maiores. Nesse sentido,
AIRES BARRETO ensina que, por falta de um conceito constitucional, é de rigor
adotar, para a interpretação do inciso III do artigo 156 do Texto Constitucional, o
conceito comum e corrente, apartando-o, entretanto, do conceito de serviço público – o
qual será tratado adiante – e de fatos que possam estar compreendidos em hipóteses de
incidência outorgadas constitucionalmente a outras pessoas políticas. Advirta-se, porém,
de que não se trata de uma competência residual, ou seja, de que os serviços tributáveis
pelos municípios, por exclusão, são todos aqueles que não estejam compreendidos na
competência de outras pessoas políticas, pois mesmo após essa triagem há serviços que
não são graváveis pelo ISS.539
Portanto, ainda mesmo depois de excetuar as prestações de serviços reservadas
aos estados, não são todas as demais prestações de serviços que poderão ser tributadas
pelo ISS. É necessário, então, delimitar quais espécies de prestação de serviço serão
passíveis de sofrer a incidência da norma jurídica municipal, já que há aquelas
consideradas irrelevantes perante a tributação, devido ao seu conceito não se identificar
com a materialidade constante do arquétipo constitucional do ISS. Preliminarmente,
inafastável é a conclusão de que a definição de serviço deve ser jurídica. “O simples
serviço não está (nem pode estar) na materialidade da hipótese de incidência
tributária”.540
Com isso, queremos demonstrar que a prestação de serviço passível de
tributação pela via do ISS somente pode ser aquela que se constitui em objeto de uma
relação
jurídica,
celebrada
entre
os
respectivos
tomador/contratante
e
prestador/contratado. Por outro lado, a afirmação também é útil para afastar a errônea
idéia de que o conceito de serviço possa ser econômico, posto que tal entendimento
539
540
Ibidem, p. 27-28.
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 84.
213
parte do pressuposto equivocado de que ele (o conceito) possa ser obtido fora do
sistema jurídico, o que não se admite.
Para o Direito, prestar serviço implica uma atividade em proveito alheio, e
admitir o contrário seria aceitar o absurdo de a Constituição utilizar um vocábulo
técnico em sentido não-técnico, havendo presunção de que isso não ocorre. E, ainda que
se argumentasse em contrário, haveria o óbice de que os serviços prestados em
benefício próprio não exteriorizam sinais de riqueza e, portanto, não haveria aí
manifestação de capacidade contributiva, conforme exigência do artigo 145, § 1º da Lei
Maior, assim como – e também por conseqüência – eventual imposição tributária sobre
tal atividade resultaria em verdadeiro confisco, também vedado pela Constituição
Federal, conforme acusa o seu artigo 150, IV.
Juridicamente, portanto, tais serviços são irrelevantes, pelo menos no âmbito
tributário do ISS. MARÇAL JUSTEN FILHO adverte que o núcleo da hipótese de
incidência do ISS está na atividade de prestar serviço, e não no negócio jurídico do qual
decorre tal prestação, o que justificaria ter a Constituição utilizado a expressão
“serviço”, pondo destaque na respectiva atividade material, e não na sua causa
jurídica.541
O Princípio Constitucional da Isonomia tem, como critério de discrímen no
âmbito dos impostos, a capacidade contributiva. Conforme ALFREDO AUGUSTO
BECKER, o Princípio da Capacidade Contributiva exige que o legislador ordinário,
simultaneamente, escolha fatos signo-presuntivos de riqueza – que revelem capacidade
contributiva – e que também varie, em relação a uma determinada hipótese de
incidência tributária, a alíquota e o ritmo de sua progressividade, segundo a maior ou
menor riqueza presumível do contribuinte.542
Diante disso, já é possível inferir que não é qualquer serviço que se subsume ao
que dispõe o inciso III do artigo 156 da Constituição Federal, posto não ter todo serviço
expressão econômica. No escólio de MARÇAL JUSTEN FILHO, “[...] a capacidade
contributiva é revelada pelo fato concreto da prestação de serviços – não pela
realização de negócio jurídico do qual decorra essa prestação”.543 Entretanto, não há
como se certificar de que ocorreu a prestação de um serviço tributável pelo ISS sem o
exame do respectivo negócio jurídico.
541
Ibidem, p. 85.
Teoria..., op. cit., p. 454-456.
543
O imposto..., op. cit., p. 85.
542
214
A título de ilustração, citem-se, como exemplo, as pessoas jurídicas que são
constituídas por membros de uma mesma família, tendo como objeto social a prestação
de serviços de “administração de bens próprios”, cujo capital social é em sua maior
parte integralizado pelos sócios com seus bens móveis ou imóveis, assim como a receita
da futura sociedade resulta da gestão (prestação de serviço) desse patrimônio. Nessa
hipótese, por força de lógica, não poderá haver tributação pela via do ISS, pois além de
as figuras do tomador e do prestador se confundirem na mesma pessoa, falta o
imprescindível conteúdo econômico.
O raciocínio é confirmado por HERON ARZUA: “Em face do princípio da
capacidade contributiva (artigo 145, §1), esse esforço humano há de ser adjetivado
pelo conteúdo econômico, com o que se exclui o serviço em beneficio próprio (até por
outra razão o trabalho a si próprio não daria lugar à tributação: é que aí não haveria
relação jurídica.)”.544 O mesmo raciocínio cabe aos serviços prestados por motivações
afetivas, altruísticas, de cordialidade, a título desinteressado, aos desenvolvidos por
diletantismo, caridade, os quais não revelam conteúdo econômico algum, critério
essencial à caracterização não só do ISS, mas também de todos os demais impostos, a
teor do que dispõe o artigo 145, § 1º, da Constituição Federal.545
ALFREDO AUGUSTO BECKER ensina que a hipótese de incidência
tributária pode referir-se tanto a um fato que recebe sua primeira juridicização, quando
de sua inserção na hipótese tributária, o que poderia ser designado de fato “puro”, como
a um fato jurídico, que por sua vez, já havia sido juridicizado por outra norma, do que
decorre implicitamente a remissão da norma tributária a essa outra norma.546
A prestação de serviço tributável pelo ISS, a que alude a Constituição, não se
constitui em um simples fato, mas em um fato jurídico, pois é materialidade já
juridicizada pelo ordenamento. Não é o mero fato do serviço, em si mesmo, que se
constitui na materialidade da hipótese tributária, pois somente a prestação de serviço
como adimplemento de uma obrigação é tributável pela via do ISS.547 Como a
Constituição foi silente em relação ao conceito de serviço por ela encampado, concluise que a norma tributária do ISS deverá respeitar a qualificação efetuada pelo Direito
Privado – Direito Civil e Comercial – onde tem origem o regime jurídico da atividade
econômica da prestação de serviços.
544
O imposto..., op. cit., p. 148.
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 30.
546
Teoria..., op. cit., p. 293-297
545
215
A afirmação de ser necessária a análise do contrato de prestação de serviços,
para reconhecer a existência do fato tributário do ISS, não implica admitir estar ele, o
fato tributário, entre aqueles de “formação continuada”, em oposição aos chamados
“fatos geradores instantâneos”, pois todo fato tributário sempre ocorre em um exato
momento do tempo, sendo juridicamente irrelevantes os eventos ocorridos
anteriormente, ainda que tenham contribuído para a consumação do fato jurídico. Essa
classificação, como bem adverte MARÇAL JUSTEN FILHO, não é senão resultado de
uma “[...] lamentável confusão entre o mundo do Direito e o mundo dos fatos”.548
Os argumentos até aqui consignados já permitem concluir que os serviços
gratuitos, ou seja, aqueles onde não há preço, não são alcançados pela incidência desse
imposto. Apesar de o artigo 156, III, literalmente, não dispor nada nesse sentido, a
conclusão é resultado da interpretação sistemática da Constituição, pois o artigo 145, §
1º, da Constituição, dispõe que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal
e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]”, com o que
se constitucionalizou o Princípio da Capacidade Contributiva, critério que, no âmbito do
Direito Tributário, permite efetivar outro princípio, o da Isonomia Tributária – artigo
150, II, da Constituição. Ou seja, são iguais, perante a tributação, os que, juridicamente,
têm a mesma capacidade econômica; e, da mesma forma, são desiguais os que a
possuem em intensidade diversa.
ROQUE ANTONIO CARRAZZA, com propriedade, afirma que “O princípio
da capacidade contributiva tem por destinatário imediato o legislador ordinário das
pessoas políticas”, e que “[...] a hipótese de incidência dos impostos deve descrever
fatos que façam presumir que quem os pratica, ou por eles é alcançado, possui
capacidade econômica, ou seja, os meios financeiros capazes de absorver o impacto
deste tipo de tributo”. Mais adiante complementa: “Assim, o legislador tem o dever,
enquanto descreve a hipótese de incidência e a base de cálculo dos impostos, de
escolher fatos que exibam conteúdo econômico”.549 Com entendimento semelhante,
MARCELO CARON BAPTISTA defende a impossibilidade da tributação dos serviços
gratuitos pelo ISS.550
Embora concorde com a conclusão da intributabilidade dos serviços gratuitos
por “ausência de conteúdo econômico”, MARÇAL JUSTEN FILHO prefere
547
O imposto..., op. cit., p. 86.
Ibidem, p. 87.
549
Curso..., op. cit., p. 82-83.
548
216
estabelecer um fundamento jurídico para tanto. As fontes das obrigações no Direito
Privado são o contrato, a declaração unilateral de vontade e o ato ilícito. A prestação
de serviço tributável pelo ISS só é aquela correspondente a execução de obrigação de
fazer com origem em contrato, ficando de fora os serviços prestados por força de
obrigação derivada de declaração unilateral de vontade e de ato ilícito, posto que em
nenhuma dessas hipóteses existe manifestação de riqueza tributável pelo Estado.551
Entretanto, tais argumentos ainda não bastam, pois existem contratos gratuitos
e unilaterais, onde somente uma das partes assume um dever jurídico. Se esse dever
envolve obrigação de fazer, consubstanciada na prestação de serviço, ela não será
tributável pelo ISS. “Somente quando a conduta do indivíduo é qualificável como
adimplemento de obrigação de fazer originada de contrato bilateral é que nos
deparamos com o fato relevante para o ISS. Nesses casos é que há serviço
economicamente relevante. Essa relevância econômica decorre de a prestação de
serviço representar uma movimentação de riqueza, exteriorizando riqueza apropriável
pelo Fisco”. A prestação de serviço “gratuito”, por ter origem em obrigação unilateral,
não corresponde a nenhuma contraprestação para o prestador, pelo que não se subsume
à hipótese de incidência do ISS. 552
Sob outra perspectiva, não havendo valor recebido pela prestação, não há base
de cálculo que possa sofrer a incidência da alíquota, e qualquer tributação que incidisse
representaria ou confisco, que é vedado pelo artigo 150, IV, da Constituição, ou, ainda,
exercício indevido de competência, já que o que se estaria tributando seria outro fato,
não identificável como “serviço”. Não é dado confundir, entretanto, a inexistência de
preço, com as situações em que, não obstante existente, o direito ao recebimento do
valor representado pelo preço não é exercido – seja por lapso ou voluntariamente – ou,
embora existente a pretensão ao recebimento, advenha a inadimplência do tomador.
No primeiro caso, AIRES BARRETO exemplifica com o prestador que deixa
de cobrar o preço a um certo tomador, com vistas a conquistá-lo como cliente, hipótese
na qual não há senão serviço aparentemente gracioso, pois o serviço apresenta conteúdo
econômico, ocorrendo tão-somente escamoteamento do preço. Esclarece o autor que
550
ISS..., op. cit., p. 259-260.
O imposto..., op. cit., p. 96.
552
O imposto..., op. cit., p. 96.
551
217
“[...] o pagamento não compõe a regra-matriz de incidência, que se esgota na
existência da efetiva prestação de serviços”.553
Entretanto, importante é atentar que, do fato de exigir-se conteúdo econômico
na conceituação de serviço tributável pelo ISS, disso não decorre que seja necessário
tenha o prestador lucro efetivo na negociação, pois o ISS não incide sobre o lucro que,
aliás, é materialidade alcançada somente pelo imposto de renda.554 O que concretiza a
materialidade do ISS é a verificação de que houve prestação de serviço economicamente
relevante, sendo irrelevante tenha havido lucro na operação.555
A questão da lucratividade resultou, em grande parte, de uma equivocada
interpretação do artigo 8 do Decreto-lei n 406/68, dispositivo que, pretendendo definir
o fato tributário do ISS, estabeleceu que o imposto apenas incidiria sobre “[...] a
prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de
serviço constante da lista anexa”. A partir do momento em que vinculou a incidência
do ISS à existência de empresa ou profissional autônomo, teria o legislador, de forma
implícita, condicionado a tributação à existência de uma finalidade lucrativa.
As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nos Recursos
Extraordinários ns 78.369/CE556, em 04 jun. 1974, e 87.890-4/SP557, em 24 ago. 1979,
seguiram esse posicionamento, entendendo pela inconstitucionalidade da exigência do
ISS sobre serviços prestados por associações civis sem fins lucrativos aos seus
associados, mediante remuneração, sob o fundamento de que o precitado artigo 8, ao
utilizar a cláusula “[...] por empresa ou profissional autônomo”, afastou, da incidência
do ISS, os serviços prestados por sociedades sem objetivo econômico.558
Na doutrina, entre os defensores da necessidade de lucro na configuração do
fato tributário do ISS está o pensamento de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES,
553
ISS na Constituição..., op. cit., p. 299.
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 97.
555
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 297-298.
556
Ementa: “Imposto sobre serviços de qualquer natureza. Não incide sobre associações civis que não
exploram diversões públicas, com fins lucrativos. Recurso não conhecido.” – Disponível em
<http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
557
Ementa: “Tributário. Imposto sobre serviços. Estacionamento pago de veículos mantido por
sociedade civil para uso de associados, na própria sede social e em local próximo. Inexistência do
intuito econômico, implícito na cláusula 'por empresa ou profissional autônomo', lida tanto no art. 71
do código tributário nacional quanto no art. 8. Do decreto-lei n. 406, de 31.12.68, normas gerais de
direito financeiro sobre a matéria. Tributo indevido”. – Disponível em <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em: 05 fev. 2007.
558
BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações sobre os aspectos gerais da incidência do ISS
(acepção do termo serviços, serviços gratuitos e serviços prestados sem margem de lucro) e sobre o
554
218
autor que defende, baseado em entendimento isolado do Decreto-lei n 406/68, que a
existência, em si mesma considerada, de empresa ou profissional autônomo, seria
suficiente para caracterizar uma finalidade lucrativa.
Como conseqüência, o ISS
incidiria até mesmo sobre os serviços gratuitos (sem preço), desde que prestados por
empresa ou profissional autônomo, por serem agentes econômicos, com finalidade
lucrativa. Defende, ainda, que os serviços, quando prestados por tais pessoas, sempre
têm um valor ou preço, ainda quando sejam graciosos, sendo os preços obtidos, nesse
último caso, por meio de estimativa ou arbitramento.559
Esse entendimento revela-se equivocado, quando se considera que a
materialidade do ISS exige incondicionalmente a presença efetiva e concreta – e nunca
estimada, arbitrada ou presumida – do preço do serviço, entidade que não se confunde
com o elemento “valor”, presente em qualquer serviço, assim como ocorre com todas as
coisas existentes no mundo, sejam elas bens materiais ou imateriais, bens móveis ou
imóveis, as quais podem apresentar valor intrínseco, real ou de custo.560
Preço, no entanto, somente o possuem as coisas qualificadas como objeto de
um negócio jurídico entre adquirente e cedente ou, em nosso caso, entre tomador e
prestador de um serviço. Ou seja, preço é a retribuição paga a alguém pela entrega a
outrem de alguma coisa, ou pela prestação de um determinado serviço previamente
contratado. Como nos serviços gratuitos a falta de retribuição (contraprestação) é
patente, resta induvidoso que aí não há que se falar em incidência do ISS, mesmo
porque não há base de cálculo para aplicar-se a alíquota.
O conceito de empresa não vincula necessariamente a finalidade lucrativa,
ensina MARÇAL JUSTEN FILHO. O autor dá como exemplo as empresas estatais –
empresas públicas e sociedades de economia mista – onde embora a atividade seja
desempenhada com caráter nitidamente empresarial – mediante a organização dos
fatores econômicos para a produção ou circulação de bens ou serviços – não atuam, nem
podem atuar, com intenção lucrativa, pois visam o interesse público. A Constituição não
distinguiu a prestação de serviços tributável pelo ISS com base na existência ou não de
finalidade lucrativa, ou na existência efetiva de lucro na prestação. 561
local de pagamento do imposto. In: COSTA, Alcides Jorge; SCHOUERI, Luís Eduardo; BONILHA,
Paulo Celso Bergstrom (coord.). Direito Tributário Atual, n. 18, p. 194.
559
Doutrina..., op. cit., p. 121-123.
560
BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 195.
561
Imposto..., op. cit., p. 130.
219
O que importa é a existência de uma prestação de serviço como execução de
uma obrigação de fazer, onde há como contrapartida contratual uma remuneração, a
qual sofrerá a incidência do ISS tenha ou não o prestador finalidade lucrativa. O mesmo
raciocínio vale para os serviços gratuitos, os quais não são tributáveis pelo ISS, tenha ou
não o prestador finalidade lucrativa. Disso decorre que os serviços prestados pelas
cooperativas são tributáveis pelo ISS, desde que remunerados, sendo irrelevante
consubstanciarem-se em atos legitimamente cooperativos.562
Tanto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – conforme ilustra o
Recurso Extraordinário n 112.923-9/SP563 – assim como na do Superior Tribunal de
Justiça – como demonstra o Recurso Especial n 234.498/RJ564 – foi encampado o
entendimento da impossibilidade de incidência do ISS sobre serviços gratuitos. No caso
do Superior Tribunal de Justiça, os dois acórdãos estabeleceram um precedente pelo
qual o serviço, ainda que gratuito, poderia ser tributado pelo ISS quando tomador e
prestador forem empresas de um mesmo grupo. As decisões fundam-se na premissa de
um indevido planejamento tributário, onde por meio do aumento dos lucros distribuídos
pela empresa controlada (tomadora do serviço) à empresa controladora (prestadora),
devido à redução dos custos incorridos por aquela em suas próprias atividades, haveria
uma espécie de “contraprestação” ou “remuneração” pelos serviços prestados.565
Quer parecer que essas decisões se basearam na teoria da “interpretação
econômica do fato gerador”, método que não encontra guarida em nosso ordenamento
jurídico, haja vista ser incompatível com o Princípio da Estrita Legalidade Tributária,
assim como não observa seu principal corolário, a tipicidade fechada da norma
tributária. O Código Tributário Nacional, em seu artigo 108, § 1, estabelece, de forma
didática, que não poderá resultar tributo devido por meio de analogia, em preceito
consagrador da Estrita Legalidade em nível infraconstitucional.
562
Idem.
Ementa: “Imposto sobre serviços, exigido em relação a ingressos gratuitos ('permanentes'),
fornecidos por exibidores de espetáculos cinematográficos. Cobrança indevida, por falta de base de
cálculo, capaz de configurar a hipótese legal de incidência (artigo 9° do Código Tributário
Nacional). Recurso extraordinário de que não se conhece”. – Disponível em <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em: 05 fev. 2007.
564
Ementa: “TRIBUTÁRIO. ISS. INCIDÊNCIA. ARBITRAMENTO. SERVIÇO GRATUITO. 1 - O ISS só
não incide nos serviços prestados gratuitamente pelas empresas sem qualquer vinculação com a
formação de um contrato bilateral. 2 - Serviços de intermediação de propaganda, objetivo principal
da empresa, devem ser tributados pelo ISS. 3 - Alegação de gratuidade não reconhecida. 4 Arbitramento adotado pelo Fisco. Regularidade. 5 - Recurso improvido.” – Disponível em
<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
565
BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 197.
563
220
Ora, a analogia, em Direito Tributário, somente ocorre pela equiparação
econômica de fatos juridicamente distintos. Defende-se peremptoriamente que, se os
efeitos jurídicos da operação negocial foram válidos perante o respectivo regime
jurídico de origem, esses efeitos deverão ser considerados no âmbito do Direito
Tributário, ainda que se subsumam à hipótese de regra imunizante, isentiva, ou de
incidência menos onerosa que outra economicamente igual ou semelhante. Entende-se,
contudo, que as decisões do Superior Tribunal de Justiça seriam procedentes se a
conduta das empresas envolvidas estivesse maculada por algum ato ilícito, como é o
caso, por exemplo, do abuso de direito ou da fraude à lei´, previstos, respectivamente,
nos artigos 187 e 166, VI, ambos do Código Civil.
AIRES BARRETO defende que “serviço” é espécie do gênero “trabalho”, o
qual corresponde a todo esforço humano, considerado de forma ampla e genérica.
Serviço é, no entanto, a espécie de trabalho (fazer) desenvolvido sempre em proveito de
outrem, nunca em favor do próprio prestador. Com efeito, ainda que seja possível dizerse que se fez um trabalho para si mesmo, não é possível afirmar-se que se prestou um
serviço a si próprio. Dizendo de outra forma, “[...] pode haver trabalho, sem que haja
relação jurídica, mas só haverá serviço no bojo de uma relação jurídica”.566 Somente
existirá prestação de serviços, passível de incidência do ISS quando houver um negócio
jurídico mediante o qual uma parte (prestador) obriga-se a fazer algo em face de outra
(tomador), o qual, por sua vez, assumirá a obrigação de pagar determinada retribuição
(preço).567
Faz-se necessário, portanto, que haja as figuras do tomador e do prestador,
ambos vinculados por uma relação jurídica de direito privado, onde a atividade humana
de prestar o serviço é o objeto do negócio realizado entre as partes. A doutrina não
discorda a esse respeito. JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, nesse caminho,
esclarece que “O cerne da materialidade da hipótese de incidência do imposto em
comento não se circunscreve a ‘serviço’, mas a uma ‘prestação de serviço’,
compreendendo um negócio (jurídico) pertinente a uma obrigação de ‘fazer’, de
conformidade com os postulados e diretrizes do direito privado”.568
A menção da doutrina à obrigação de “fazer”, apesar de em um primeiro
momento parecer de fácil compreensão, já que quem presta um serviço está “fazendo
566
ISS na Constituição..., op. cit., p. 29.
BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 194.
568
ISS..., op. cit., p. 33.
567
221
algo”, revela-se de extrema importância quando a prestação do serviço envolver
também um “dar”, o que pode dificultar o enquadramento em uma ou outra espécie
obrigacional, com reflexos no que tange à competência tributária. As modalidades – dar,
fazer e não-fazer – serão tratadas no subitem seguinte, como instrumental a definir os
limites em que um contrato pode ter sua respectiva obrigação considerada como de
“fazer”, o que insere esse fato jurídico na competência tributária municipal, através da
incidência ISS.
Ainda que a Constituição não preveja explicitamente a expressão “prestar
serviços”, resulta de seu contexto que só é tributável a prestação de um serviço, e não o
seu consumo, fruição, ou utilização, o que cabe ao tomador do serviço. Quando a
Constituição, ao distribuir as competências tributárias, descreve uma materialidade, está
referindo-se à pessoa produtora do fato. AIRES BARRETO adverte que “[...] caso se
pretenda entender como tributável a fruição do serviço então, como visto, o sujeito já
será outro e a própria figura já deixará de ser aquela constitucionalmente
contemplada. O consumidor é o tomador do serviço; nem sempre, nem necessariamente
revela – recebendo-o, fruindo-o ou o consumindo – qualquer capacidade contributiva.
É o caso da pessoa que tem que recorrer, entre tantos outros, a um barbeiro, a um
advogado, a um médico”.569
Inegável que, do ponto de vista econômico e político, a Constituição, visando
melhor implementar o cânone da Capacidade Contributiva, mereceria reforma nesse
sentido. Como lembra MARCO AURÉLIO GRECO, a noção de serviço foi formulada
devido à colocação da tônica impositiva na atividade realizada, ou seja, no esforço
humano exercido por alguém. “A idéia de atividade é tão nítida a ponto de vivermos, no
âmbito tributário, sob um regime de lista de atividades (‘serviços’)...”.570
Adverte o autor, entretanto, que o mundo moderno tem mostrado que a
atividade não é mais o único elemento relevante para definir os valores das negociações
realizadas, pois se a análise do prisma do produtor resultou na verificação da atividade
exercida como elemento relevante para fins tributários, a análise feita do ângulo do
cliente leva ao surgimento de uma outra figura, a utilidade. Justifica o autor: “Muito
freqüentemente, as pessoas dispõem-se a pagar determinada remuneração não pela
natureza ou dimensão da atividade exercida pela outra pessoa, mas, principalmente,
569
570
ISS na Constituição..., op. cit., p. 32.
GRECO, Marco Aurélio. Internet e direito, p. 96.
222
pela utilidade que vão obter. O valor não está mais apenas na atividade do prestador,
mas também na utilidade obtida pelo cliente”.571
Com base nesse entendimento, concorda-se, sob uma perspectiva pré-jurídica,
com a tese de MARCO AURÉLIO GRECO572; pela qual “[...] utilizar o conceito de
serviço (como expressivo de uma atividade) para fins de qualificação da matéria
tributável é também deixar à margem da tributação significativa parcela da atividade
econômica exercida no mercado e que é formada pelo fornecimento de utilidades, no
mais das vezes imateriais e que resultam de atividades novas, não alcançadas pelo
conceito tradicionalmente utilizado”.573
O exemplo dado pelo autor é o do home banking, onde todos os custos –
equipamentos de acesso, ligações telefônicas etc. – e atividades – como a de digitação –
são por conta do usuário, o qual ainda paga para utilizar o “banco em casa”. Verifica-se
que a relevância nesse caso não está na atividade exercida, nem em seu custo, mas a
utilidade obtida, consistente em poder realizar operações bancárias sem precisar
deslocar-se até uma agência. Por outro giro, esse raciocínio é relevante como
fundamento para responder às questões relacionadas com o problema da definição do
critério espacial do ISS, como sublinha o próprio autor: “[...] cumpre ter presente que o
serviço pode ser visto sob a ótica da atividade ou da utilidade o que traz profundos
reflexos na identificação do local da respectiva prestação” [sic];574 o que será analisado
posteriormente.575
Da interpretação sistemática da Constituição também resulta serem
intributáveis pelo ISS os serviços públicos. Segundo MARÇAL JUSTEN FILHO, os
serviços juridicamente relevantes estão divididos em dois grandes grupos: os regidos
pelo Direito Público e os regidos pelo Direito Privado. No primeiro grupo estão os
serviços públicos, prestados pelo Estado à comunidade – ou por agentes privados em
seu nome, o que não lhes retira a natureza pública – e aqueles prestados por
funcionários públicos ao Estado.
571
Ibidem, p. 96.
São relevantes neste aspecto os argumentos defendidos por MARCO AURÉLIO GRECO: “As novas
realidades apontadas no texto sugerem um ajustamento da definição constitucional de competências
em razão dos avanços trazidos pela tecnologia e pela complexidade do mundo moderno, a fim de
atender aos ditames da justiça fiscal pois, se os conceitos constitucionais utilizados para fins de
tributação não acompanharem a dinâmica do surgimento de novas realidades, significativas
manifestações de capacidade contributiva deixarão de ser alcançadas” – Ibidem, p. 97.
573
Ibidem, p. 96.
574
Ibidem, p. 96-97.
575
Vide infra, subitem 4.3.3.
572
223
Como a espécie imposto, na classificação dos tributos defendida por
GERALDO ATALIBA, está entre os tributos não-vinculados a uma atuação estatal
referida ao contribuinte, a prestação de serviço público não pode estar no aspecto
material do ISS, devendo ser tributado através de taxa, que é tributo vinculado.576 Além
disso, caso fosse possível tributar o serviço público, ocorreria o absurdo de um
município tributar um serviço prestado por ele próprio – confusão na relação jurídica. E
se o serviço fosse prestado por outra pessoa política, incidiria a imunidade do artigo
150, VI, “a”, da Constituição Federal de 1988. Caso o sujeito passivo seja o
beneficiário do serviço, incidiria, portanto, o óbice que exige a tributação desse fato
somente através de taxa.577
Ressalte-se que o regime jurídico aplicável a um serviço nada tem a ver com a
natureza da pessoa que o executa. É indiferente, assim, seja o serviço prestado pelo
Poder Público ou por particulares em seu nome para que um serviço seja qualificado
como público e, como resultado, seja considerado imune ao ISS. A titularidade do
serviço, em tais casos, continua sendo do Estado, assim como o poder de disciplinar as
condições em que serão prestados. “O concessionário atua perante terceiros como se
fosse o próprio Estado”.578 É que a imunidade recíproca, quanto aos serviços públicos,
não tem por fim proteger o ente público, mas o próprio cidadão, posto o artigo 150, VI,
“a”, da Constituição ser claro ao dispor que “[...] imune é o serviço do ente público e
não o serviço prestado pelo ente público”, como bem sintetiza OCTÁVIO CAMPOS
FISCHER579. Esse também o entendimento de JOSÉ EDUARDO SOARES DE
MELLO.580
O raciocínio oposto também é válido, pois se um ente estatal vier a prestar um
serviço regido pelo Direito Privado – regido, portanto, pela igualdade das partes
contratantes e pela autonomia de suas vontades – iniludivelmente essa atividade sofrerá
a incidência automática da norma tributante municipal. Lembre-se ainda, que,
ontologicamente, serviço público pressupõe a existência de um interesse público
primário, a ser satisfeito por ele (serviço), interesse esse que é considerado igual ou até
mesmo superior ao interesse secundário do Estado na tributação. Os argumentos são os
576
Hipótese..., op. cit., p. 130-131.
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 79-80.
578
JUSTEN FILHO, Marçal. Concessão de serviços públicos, p. 66.
579
A tributação dos serviços..., op. cit., p. 470-471.
580
Inconstitucionalidades da LC n. 116/2003. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre
serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 308-309.
577
224
mesmos também com relação aos serviços públicos prestados por particulares, mediante
concessão ou permissão, pois nesses casos os serviços continuam sendo públicos, já que
o que se concede ou permite é a execução do serviço, e não o próprio serviço.
Não restam dúvidas, portanto, de que os serviços públicos – desde que
específicos e divisíveis – serão sempre remunerados através da espécie tributária taxa,
quer sejam prestados diretamente pelo próprio Estado, quer sejam prestados, mediante
concessão ou permissão, por particulares, conforme ratifica, inclusive, o artigo 145, II,
da Constituição, pelo qual “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
poderão instituir: [...] taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela
utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados
ao contribuinte ou postos a sua disposição”.581 JOSÉ EDUARDO SOARES DE
MELLO582 e ROQUE ANTONIO CARRAZZA583 possuem o mesmo entendimento.
Não procede, dessa forma, o pensamento daqueles que vêem a tarifa, também
chamada impropriamente de “preço público”, como contrapartida na remuneração dos
serviços públicos. É que o vocábulo “preço” indica a contrapartida de uma obrigação
voluntária, regida pelo Direito Privado, em especial pelo princípio da autonomia da
vontade. A expressão “preço público”, portanto, indica uma “contradictio in terminis”,
pois se é preço, não pode estar sujeito ao regime jurídico público, e se o serviço é
público, não pode ser remunerado por preço.
Os serviços públicos, portanto, somente ensejam a cobrança de taxa, nunca de
preço, sejam os de utilização compulsória, cuja simples disponibilidade enseja a
cobrança de taxa, sejam os de utilização facultativa, em que somente os efetivos
usuários poderão ser considerados sujeitos passivos dessa espécie tributária, pois, em
qualquer caso, os destinatários do serviço não têm liberdade para discutir as regras
aplicáveis na respectiva prestação. O serviço público é, com efeito, res extra
commercium.
MARÇAL JUSTEN FILHO defende, com propriedade, que, por ser o
prestador o destinatário constitucional tributário, somente ele pode ser o sujeito
passivo, sob pena de ofensa à Constituição, do que decorre que, tributar a prestação de
serviço por funcionário público, seria tributar a própria atividade do Estado, pois a
581
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 53-54.
Inconstitucionalidades..., op. cit., p. 307.
583
Inconstitucionalidades dos itens 21 e 21.1, da lista de serviços anexa à LC n. 116/2003. In: TÔRRES,
Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na
Constituição, p. 363.
582
225
atividade do funcionário é do Estado, e não prestada ao Estado. Com efeito, conclui
que o serviço a que alude a Constituição para fins de ISS “[...] deve ser entendido como
prestação de utilidade de qualquer natureza, efetuada sob regime de Direito
Privado”.584 Esse também é o entendimento de AIRES BARRETO, para quem o
conceito de serviço tributável, para fins de ISS, é um conceito de Direito Privado.585
Como a competência tributária é outorgada de forma originária, completa e
rígida pela Constituição Federal, é de rigor concluir que os conceitos jurídicos, por ela
utilizados, para definir as respectivas faixas de competência, não podem ser alterados
pelo legislador infraconstitucional, seja o complementar ou o ordinário. Do contrário,
restariam destruídas a rigidez, a privatividade e a exaustividade da discriminação das
competências, marcas características de nosso sistema constitucional tributário, pela
simples alteração, pelo legislador infraconstitucional, da definição, conteúdo ou alcance
dos conceitos de Direito Privado, utilizados, expressa ou implicitamente pela
Constituição, para definir as competências tributárias.586
Apesar
desse
entendimento
defluir
naturalmente
do
próprio
texto
constitucional, o artigo 110 do Código Tributário Nacional estabelece que “A lei
tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e
formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição
Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal
ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Embora esse
dispositivo seja, em rigor, tecnicamente desnecessário, a importância do seu conteúdo
torna relevante a lembrança, levada a cabo em disposição de bom cunho didático.
AIRES BARRETO, após partir de uma divisão – existente de forma abstrata na
própria Constituição – dos fatos jurídicos tributários em fatos puros, ou “fatos em si
mesmo”, e fatos decorrentes de atos jurídicos, distinguindo-se ambos pela verificação
da existência direta de uma relação obrigacional nos segundos – como é o caso dos fatos
tributários do imposto de circulação de mercadorias, imposto de importação, exportação
etc. – e inexistência dela entre os primeiros – como ocorre com o imposto de renda,
sobre a propriedade etc. – conclui que, entre os segundos, a obrigação que envolve o
fato será inevitavelmente ou de “dar” ou de “fazer”.
584
O imposto..., op. cit., p. 80.
ISS na Constituição..., op. cit., p. 33.
586
Idem.
585
226
Entre as obrigações positivas, a respectiva prestação pode ser de coisas,
entrega de um bem, ou de fatos, atividade do devedor. O autor usa esse raciocínio como
premissa para demonstrar que o contrato de locação, por exemplo, por ter como objeto
da respectiva obrigação, para o locador, uma prestação de coisa, qual seja a de ceder,
mediante a contrapartida da remuneração paga pelo locatário, o direito de uso do bem
móvel ou imóvel, durante o prazo previamente estipulado, não se confunde em nada
com prestação de fato – inerente às obrigações de fazer – já que não se vislumbra no
caso qualquer atividade, esforço pessoal, do próprio locador.587
Serão inconstitucionais, portanto, as leis municipais que, ampliando o conceito
constitucional de “serviços”, pretenderem tributar, pela via do ISS, a locação, seja de
que espécie de bem for, móvel ou imóvel, pois resta claro que tal materialidade não está
prevista no rol exaustivo das passíveis de serem tributadas pelos municípios e pelo
Distrito Federal por aquele imposto, ainda que a legislação municipal esteja lastreada
em lei complementar editada com suporte no inciso III do artigo 156 da Constituição,
quando então a lei complementar é que estará contaminada pelo vício da
inconstitucionalidade.588 Como conseqüência, também há a violação do já citado artigo
110 do Código Tributário Nacional, acima transcrito.
Como a cessão onerosa do uso e gozo de alguma coisa não fungível também
não está prevista na competência tributária dos Estados, conclui-se ser a locação uma
materialidade incluída na esfera da competência residual da União Federal, conforme
estabelece o artigo 154, I, da Constituição Federal. 589 AIRES BARRETO defende,
ainda, alternativamente, que, devido à remuneração da locação ser definida como
“aluguel” ou “renda”, a tributação desse fato pelos municípios implicaria também
invadir a competência da União Federal em relação ao imposto sobre a renda, prevista
no artigo 153, III, da Carta Constitucional.590 Discorda-se, contudo, desse segundo
587
Ibidem, p. 157-158.
Foi o que ocorreu com a inclusão do item nº 3 e de seus subitens 3.01, 3.03, 3.04 e 3.05, na lista de
serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003: “3 – Serviços prestados mediante locação, cessão de
direito de uso e congêneres. 3.01 – (VETADO). 3.02 – Cessão de direito de uso de marcas e de sinais
de propaganda. 3.03 – Exploração de salões de festas, centro de convenções, escritórios virtuais,
stands, quadras esportivas, estádios, ginásios, auditórios, casas de espetáculos, parques de diversões,
canchas e congêneres, para realização de eventos ou negócios de qualquer natureza. 3.04 – Locação,
sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de
ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza. 3.05 – Cessão de andaimes,
palcos, coberturas e outras estruturas de uso temporário”.
589
O artigo 565 do Código Civil dispõe que “na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à
outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa
retribuição”.
590
ISS na Constituição..., op. cit., p. 159.
588
227
ponto de vista, uma vez que o argumento somente procede do aspecto econômicofinanceiro, já que, do ponto de vista jurídico, as atividades de “locar coisa” e “auferir
renda” são distintas.
Ilegítima, com efeito, é a pretensão de entender válidas as leis complementares
federais ou as leis municipais que, em desrespeito à Constituição, defendem a
possibilidade de tributar os chamados “serviços por definição legal”, como se o
legislador gozasse de alguma discricionariedade em construir os conceitos das
materialidades, já definidas de forma definitiva no texto, e no contexto, constitucionais.
AIRES BARRETO lembra que, em muitos casos, esse equívoco também teria tido
origem na circunstância de o Código Civil anterior ter disciplinado a locação de coisas
(artigo 1.188) no mesmo capítulo que a locação de serviços (artigo 1.216), gerando o
erro de tributar, pelo mesmo imposto, toda e qualquer locação.591
Posteriormente à entrada em vigor da Constituição de 1988, o Supremo
Tribunal Federal, influenciado pela doutrina que defendia o conceito jurídico de serviço
como o único válido, voltou a apreciar a questão, tendo decidido, no Recurso
Extraordinário 116.121-3/SP, julgamento em sessão plenária de 01 out. 2000, pela
inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a “locação de bens móveis”, atividade
que constava como serviço na lista anexa ao Decreto-lei n 406/68. O fundamento da
decisão baseou-se no entendimento de que o “serviço” passível de sofrer a incidência do
ISS só pode ser aquele entendido em sua acepção jurídica, ou seja, como um negócio
jurídico, pelo qual se obriga a fazer algo tendo como contrapartida o direito ao
recebimento de uma determinada retribuição.592
Esse posicionamento teve o efeito de consolidar o entendimento do Supremo
Tribunal Federal nesse assunto, como se pode ver na decisão proferida no Agravo de
Instrumento n 485.707/DF, onde o Ministro Carlos Velloso, vencido no julgamento do
referido recurso, reconhece o atual posicionamento do Tribunal e conclui ser impossível
contrariar a decisão cristalizada pelo Pleno.593 A nova trilha seguida pelo Supremo
591
Ibidem, p. 160.
Ementa: “TRIBUTO - FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente
a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS
- CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o
objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado
contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido
próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo
Código Civil, cujas definições são de observância inafastável - artigo 110 do Código Tributário
Nacional” – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
593
DJ de 10 dez. 2004 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
592
228
Tribunal Federal acabou por influenciar o Presidente da República, que, ao sancionar a
Lei Complementar n 116/2003, vetou o item n 3.01 da nova lista de serviços –
“locação de bens móveis” – com o que foi prestigiada a jurisprudência dominante na
Excelsa Corte, conforme se vê em suas razões de veto, constantes da Mensagem n° 362,
de 31 jul. 2003.594
Em que pese a iniciativa do Presidente da República, entende-se que mais
louvável seria o veto ter sido estendido a todos os serviços constantes nos subitens do
item 3 da lista, pois todos são inconstitucionais quando confrontados com os
fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal, ou seja, todos configuram
execução de uma obrigação de dar, e não de fazer. É que, infelizmente, e em razão dos
limites decisórios do respectivo recurso extraordinário, a decisão da Suprema Corte
limitou-se à declaração de inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a locação de
bens móveis. Também entendendo pela inconstitucionalidade de todos os subitens do
item 3 da lista, estão CLÉLIO CHIESA595, GABRIEL LACERDA TROIANELLI e
JULIANA
GUEIROS596,
HUMBERTO
ÁVILA597,
e
HUGO
DE
BRITO
594
“Verifica-se que alguns itens da relação de serviços sujeitos à incidência do imposto merecem reparo,
tendo em vista decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. São eles: O STF concluiu julgamento
de recurso extraordinário interposto por empresa de locação de guindastes, em que se discutia a
constitucionalidade da cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, decidindo que a expressão
‘locação de bens móveis’ constante do item 79 da lista de serviços a que se refere o Decreto-Lei no
406, de 31 de dezembro de 1968, com a redação da Lei Complementar no 56, de 15 de dezembro de
1987, é inconstitucional (noticiado no Informativo do STF no 207). O Recurso Extraordinário
116.121/SP, votado unanimemente pelo Tribunal Pleno, em 11 de outubro de 2000, contém linha
interpretativa no mesmo sentido, pois a ‘terminologia constitucional do imposto sobre serviços revela
o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo a contrato de
locação de bem móvel. Em direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprios,
descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código
Civil, cujas definições são de observância inafastável.’ Em assim sendo, o item 3.01 da Lista de
serviços anexa ao projeto de lei complementar ora analisado, fica prejudicado, pois veicula indevida
(porque inconstitucional) incidência do imposto sob locação de bens móveis. O item 13.01 da mesma
Lista de serviços mencionada no item anterior coloca no campo de incidência do imposto gravação e
distribuição de filmes. Ocorre que o STF, no julgamento dos RREE 179.560-SP, 194.705-SP e
196.856-SP, cujo relator foi o Ministro Ilmar Galvão, decidiu que é legítima a incidência do ICMS
sobre comercialização de filmes para videocassete, porquanto, nessa hipótese, a operação se
qualifica como de circulação de mercadoria. Como conseqüência dessa decisão foram reformados
acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que consideraram a operação de gravação
de videoteipes como sujeita tão-somente ao ISS. Deve-se esclarecer que, na espécie, tratava-se de
empresas que se dedicam à comercialização de fitas por elas próprias gravadas, com a finalidade de
entrega ao comércio em geral, operação que se distingue da hipótese de prestação individualizada do
serviço de gravação de filmes com o fornecimento de mercadorias, isto é, quando feita por
solicitação de outrem ou por encomenda, prevalecendo, nesse caso a incidência do ISS (retirado do
Informativo do STF no 144). Assim, pelas razões expostas, entendemos indevida a inclusão destes
itens na Lista de serviços.”
595
O imposto sobre serviços de qualquer natureza e aspectos relevantes da lei complementar nº 116/03.
In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 71.
596
O ISS e a lei complementar nº 116/03: aspectos polêmicos da lista de serviços, in ibidem, p. 116-117.
229
MACHADO598, acrescendo, este último autor, com razão, que, pelas mesmas razões
também se afigura inconstitucional o item 15.03 da lista.599
Conforme ensina ORLANDO GOMES, todos os contratos que têm por objeto
uma prestação de trabalho também estão compreendidos entre as obrigações de fazer,
sendo a expressão “trabalho” aqui utilizada em sentido lato, abrangendo tanto o contrato
de prestação de serviços propriamente dito, como o contrato regido pela legislação
trabalhista, o qual se destacou do Direito Civil, passando a ser regulado pelo Direito do
Trabalho. Aplicam-se as regras da locação de serviços às formas de prestação de serviço
que não mais se identificam com o conceito legal de contrato de trabalho, seja pela
ausência de subordinação, seja pela de continuidade, ou ainda pelo fim da atividade
do trabalhador. Entretanto, por entender que a denominação “locação de serviços” é
inconveniente e imprópria, defende que “[...] todos os contratos não subordinados à
legislação do trabalho podem ser enfeixados na rubrica comum de contratos de
prestação de serviços”.600
MARÇAL JUSTEN FILHO também prestigia essa importante distinção,
ensinando que os serviços regidos pelo Direito Privado abrangem duas grandes
categorias: a dos serviços sujeitos ao regime trabalhista e dos serviços não sujeitos a ele:
“A sujeição ao regime trabalhista apura-se através dos critérios fornecidos pelo artigo
3º da CLT – ou seja, prestação de serviços de natureza não-eventual a empregador, sob
dependência deste e mediante salário. É o serviço do ‘empregado’, do ‘trabalhador’”,
excluído da incidência do ISS pela maioria da doutrina, o que é aceito por esse autor,
não pelo argumento da invocação do artigo 10, parágrafo único do Decreto-lei n°
406/68, que dispõe não serem contribuintes os trabalhadores que prestam serviço sob
relação de emprego, mas sim pela invocação à terminologia técnica. 601 É que, “[...]
ainda que se tome a expressão prestação de serviço em acepção ampla, opõe-se ela à
prestação de trabalho debaixo de vínculo empregatício”, ou seja, “[...] juridicamente a
alusão a serviço não abrange emprego”.602
597
O imposto sobre serviços e a lei complementar nº 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O
ISS e a LC 116, p. 171-172.
598
O ISS e a locação ou cessão de direito de uso. In ibidem, p. 134-136.
599
“Locação e manutenção de cofres particulares, de terminais eletrônicos, de terminais de atendimento
e de bens e equipamentos em geral.”
600
Contratos, p. 322-323.
601
O imposto..., op. cit., p. 81.
602
Idem.
230
Cientificamente, a questão relaciona-se com a materialidade da hipótese de
incidência, e não com a qualificação do contribuinte, além de ser grave equívoco
interpretar a Constituição conforme a lei complementar. Cabe aqui o argumento relativo
ao serviço do funcionário público, apesar de as situações não serem idênticas, ou seja,
empregado não desempenha atividade de órgão do empregador. Externamente, a
atividade do empregado é atividade do empregador, pois não tem autonomia.
Outro argumento relevante está em que, na prestação de serviço mediante
vínculo de emprego, o conteúdo econômico da relação do empregador com o seu
empregado tem inequívoca essência alimentar, assim como essa relação é marcada pela
subordinação. A Constituição é clara ao distinguir a prestação de trabalho, regulada em
nível infraconstitucional pela Consolidação das Leis do Trabalho, da prestação de
serviço de que trata o inciso III do artigo 156 da Constituição, disciplinada pelo Direito
Civil.603
Após considerar vários aspectos, AIRES BARRETO conceitua o serviço
tributável pelos Municípios como sendo “[...] o desempenho de atividade
economicamente apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem,
sob regime de direito privado, com fito de remuneração, não compreendido na
competência de outra esfera de governo”.604
Decompondo as partes desse conceito, esclarece o autor que (a) “desempenho
de atividade” significa tratar-se de um comportamento humano; (b) “economicamente
apreciável”, que deve ter conteúdo econômico; (c) “produtiva de utilidade”, que o
resultado deva ser útil, ou seja, desejável pelo tomador; (d) “para outrem”, que deve
haver a figura do tomador do serviço ao lado do prestador, completando uma relação
jurídica, como essência de um contrato de prestação de serviços; (e) “sem
subordinação”, pois caso contrário o que haverá é uma relação de emprego, dentro de
um contrato de trabalho, ou uma relação institucional de serviço público (estatutário);
(f) “sob regime de.direito privado”, pois se o regime for de direito público, o serviço
também passará a ser público, o que atrai a imunidade relativa a impostos. Deve
prevalecer a autonomia da vontade (contratual), inexistente no serviço público; (g)
“com fito de remuneração”, já que o serviço tributável somente é aquele prestado tendo
uma remuneração como contrapartida; (h) “não compreendido na competência de outra
603
604
BARRETO, Aires Fernandino. O ISS na Constituição..., op. cit., p. 60.
Ibidem, p. 35.
231
esfera de governo”, o que se conclui tão-somente pela rígida demarcação constitucional
que atribui certos serviços também aos Estados e ao Distrito Federal. 605
Entende-se também que, por força da materialidade do ISS consistir em
“prestação de serviços”, disso decorre que não basta a existência isolada de um contrato,
estabelecendo a obrigatoriedade da prestação, para que se tenha por concretizada a
hipótese de incidência desse imposto. Quer se afirmar que não é possível considerar
como critério material do ISS a mera prestação potencial de serviço, pois nenhum
serviço, nesses casos, terá sido prestado.
O mesmo diga-se dos serviços de competência dos estados e do Distrito
Federal. O ISS e o ICMS, portanto, não são impostos que incidem sobre atos jurídicos
isolados, mas sim sobre fatos jurídicos que se subsumem às hipóteses de incidência
criadas dentro dos ditames constitucionais. Não obstante ser a relação jurídica negocial
essencial à configuração do fato jurídico tanto do ISS, como do ICMS, ela não é o
próprio fato jurídico tributário, mas tão-somente aspecto que lhe é integrante. Aqui,
cabe a advertência, feita com propriedade, por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES:
Como a CF autoriza sejam gravadas as prestações de serviços concretamente
ocorridas, ou – o que é o mesmo – os serviços efetivamente prestados – as
prestações potenciais de serviços não compõem o âmbito material de
validade da lei municipal instituidora do ISS. [...] Se a exigência decorre
reversamente de aplicação da lei municipal em sede administrativa, a
inconstitucionalidade estaria a fortiori caracterizada. Porque nesses termos
inconstitucional seria a aplicação de lei constitucional. É dizer: viciado por
inconstitucionalidade mostrar-se-ia o ato de aplicação da lei tributária
material ao caso concreto.606
Por fim, com relação ao ISS ser, ou não, um imposto cumulativo, entende-se,
com fundamento no raciocínio de ELIZABETH NAZAR CARRAZZA que, pela
certeza de o ISS incidir sobre o fato material da prestação de serviços, e não sobre a
relação jurídica a ele relativa, não há que se falar em incidência múltipla. Também não
resulta conclusão em contrário do fato de ser possível a prestação de um serviço em
etapas e, como tal, passível de desdobramento, para efeito de tributação.
Caso se defenda o contrário, o que se estaria tributando seria a relação jurídica
subjacente à prestação do serviço, e não o fato da prestação do serviço, em si mesmo
considerado, conforme revela a materialidade prevista constitucionalmente. É de notar-
605
606
Ibidem, p. 35-36.
Inconstitucionalidade e ilegalidade da cobrança do ISS sobre contratos de assistência médicohospitalar. Revista de Direito Tributário, n. 38, p. 170.
232
se, inclusive, que, se assim fosse, em muitos casos onde a prestação não chega a
concretizar-se, haveria a incidência sobre o negócio jurídico já entabulado.607
4.3.1.1 Natureza jurídica da obrigação
Como a prestação de serviços que interessa para o ISS é aquela realizada
mediante um negócio jurídico, no âmbito do direito privado, é imprescindível trazer os
conceitos alusivos às espécies de obrigações. A importância também se justifica pelo
fato de o Direito Tributário ser considerado um “direito de superposição”, pois as
hipóteses de incidência dos tributos, de uma forma geral, são construídas sobre
conceitos originários de outros ramos do direito, como o Civil, o Comercial, o
Trabalhista etc. O conceito das espécies de obrigações – “dar”, “fazer” e “não fazer” – é
dado pela Teoria Geral das Obrigações, no âmbito do direito privado.
A doutrina está de acordo em consistir a prestação, como objeto de uma
obrigação jurídica, em um dar – coisa certa ou incerta – fazer ou não fazer alguma
coisa – dare, facere e non facere. As duas primeiras, dar e fazer, constituem prestações
positivas – ações, atos comissivos – enquanto que a última – não fazer – implica
prestações negativas – abstenções, atos omissivos. Desde já é imperioso consignar que,
na análise da hipótese do ISS, estão de fora as obrigações de não-fazer (prestações
negativas), pois se a prestação de serviço se consubstancia em um esforço físico ou
intelectual, produtor de uma utilidade em proveito alheio, um “não-fazer” nunca poderá
enquadrar-se como serviço, ainda que produza proveito econômico em benefício do
credor.608
A análise dessa questão, portanto, revela-se de grande importância nesse
estudo, com destaque para a definição dos limites em que incide o ISS, separando-os
das fronteiras da incidência do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados – e do
ICMS – Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre
prestações de Serviços de Transporte interestadual e intermunicipal e de Comunicação.
SILVIO RODRIGUES ensina que “[...] a obrigação de dar consiste na
entrega de alguma coisa, ou seja, na tradição de uma coisa pelo devedor ao credor”, e
desdobra-se em obrigação de dar coisa certa ou incerta, ou ainda, sob um segundo
607
608
Natureza “Não Cumulativa” do ISS. Revista de Direito Tributário, n. 19/20, p. 256-257.
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 90.
233
critério, em obrigação de dar, propriamente dita, e obrigação de restituir. 609 Esta última,
como o próprio nome indica, é identificada pela existência de uma devolução, como
ocorre com a obrigação do comodatário ou depositário. Na obrigação de “dar coisa
certa”, o devedor compromete-se a entregar um objeto perfeitamente determinado em
sua individualidade, como um quadro famoso, por exemplo. Por outro lado, na
obrigação de “dar coisa incerta”, o objeto é a entrega de coisa não individualizada,
mas, considerada no gênero a que pertence, como, por exemplo, a “obrigação de
entregar quinhentas sacas de café”.610 No mesmo sentido, o pensamento de ÁLVARO
VILLAÇA AZEVEDO611 e WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO612.
O objeto das obrigações também pode ser classificado em prestações de coisas,
que abrange as obrigações “de dar”, “de entregar” e “de restituir”, ou prestações de
fatos, as quais englobam tanto os fatos “positivos” como os “negativos”. As prestações
de fatos consistem em atividade pessoal do devedor, como é exemplo o contrato de
prestação de serviços, que produz obrigação “de fazer”.613
No entanto, ocorre que nem sempre as obrigações são exclusivamente “de
dar” ou “de fazer”, pois é comum haver a reunião, em uma mesma obrigação, de
prestações de coisas e de fatos, como ensina ORLANDO GOMES. Nesses casos, o
autor esclarece que a classificação em uma ou outra espécie obrigacional ocorrerá pela
predominância de uma sobre a outra, e exemplifica com o contrato de empreitada, onde
a atividade pessoal do empreiteiro pode ser mais ou menos relevante do que o
fornecimento de materiais. No primeiro caso, restará configurada uma empreitada de
lavor, pela predominância da prestação de fatos; na segunda hipótese, predomina a
prestação de coisas, equiparando-se, por essa razão, até mesmo à compra e venda.614
A distinção entre as obrigações “de dar” e “de fazer”, para o referido autor,
deve ser feita com base no interesse do credor, posto que as prestações de coisas
pressupõem uma determinada atividade pessoal do devedor, e muitas prestações de fatos
exigem uma dação: “Nas obrigações de dar, o que interessa ao credor é a coisa que lhe
deve ser entregue, pouco lhe importando a atividade do devedor para realizar a
609
Direito civil: parte geral das obrigações, p. 19.
Ibidem, p. 19-20.
611
Teoria geral das obrigações, p. 55-56.
612
Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações, v. 4, 1ª parte, p. 55-56.
613
VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, p. 83-84.
614
Obrigações, p. 46.
610
234
entrega. Nas obrigações de fazer, ao contrário, o fim é o aproveitamento do serviço
contratado. Se assim não fosse, toda obrigação de dar seria de fazer, e vice-versa”.615
WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, sob uma outra perspectiva,
baseada na relação de causa e efeito, também explica a diferença entre uma e outra: “O
substractum da diferenciação está em verificar se o dar ou o entregar é ou não
conseqüência do fazer. Assim, se o devedor tem de dar ou de entregar alguma coisa,
não tendo, porém, de fazê-la previamente, a obrigação é de dar; todavia, se,
primeiramente, tem ele de confeccionar a coisa para depois entregá-la, se tem ele de
realizar algum ato, do qual será mero corolário o de dar, tecnicamente a obrigação é
de fazer”.616
Sob a mesma óptica é o entendimento de CARLYLE POPP, o qual é claro ao
afirmar que as obrigações de fazer “[...] constituem-se na prestação de atos de natureza
física ou intelectual, fática ou jurídica”, sendo tal espécie de obrigação “[...] calcada
naqueles negócios preparatórios, dependentes de uma manifestação de vontade (fazer)
futura”. Adverte, porém, o autor, que nem sempre é fácil estabelecer uma devida
distinção entre as obrigações de dar e as de fazer, devendo o critério de eleição ser o da
causa e efeito: “Se o dar é conseqüência de um fazer, então deste tipo é o vínculo
obrigacional. Se, todavia, não é assim, trata-se de um dar”. 617
ORLANDO GOMES esclarece, ainda, quanto à existência de situações em que
o “fazer” está vinculado a uma obrigação de meio, e aquelas em que é objeto de uma
obrigação de resultado. Dentre as últimas, há as que configuram empreitada, que, em
princípio, são aquelas nas quais a atividade consiste na realização de uma obra material,
propriamente dita. A título de ilustração, não há como incluir, entre obras materiais, a
resposta a uma consulta, emitida, por exemplo, por um médico ou advogado. É que o
resultado esperado em casos como tais é imprevisível, inseguro, não sendo possível
saber, a priori, se será eficaz, e a remuneração será devida em qualquer caso, donde a
invocação à expressão “obrigação de meio”.618
A esta última espécie contratual, o autor denomina de contrato de prestação de
serviços “stricto sensu”, ao qual designa como o “[...] contrato mediante o qual uma
pessoa se obriga a prestar um serviço a outra, eventualmente, em troca de determinada
remuneração, executando-os com independência técnica e sem subordinação
615
Idem.
Curso..., op. cit., 87.
617
Execução de obrigação de fazer, p. 87.
616
235
hierárquica”.619 Com efeito, o prestador, nessa qualidade, não executa o serviço
contratado sob a direção do tomador, assim como é ele quem define, com liberdade,
quais os métodos e qual a técnica a ser utilizada. Verifica-se que essa independência
técnica, em muitos casos, é resultado da independência econômica do prestador. A
remuneração a que tem direito é, em geral, definida como honorários.
A análise até aqui realizada, acerca das espécies de obrigações jurídicas,
extraída da doutrina civilista, tem, por objetivo, servir de auxílio ao correto
delineamento da tributação que incidirá sobre as operações jurídicas que envolvam a
prestação de serviços abrangidos na competência dos municípios, para apartá-las de
outras operações jurídicas, destinadas à competência tributária das demais pessoas
políticas – Estados e União Federal – como as que exigem, por exemplo, a circulação de
mercadorias ou a operação com produtos industrializados.
Identificando com precisão esta questão, AIRES BARRETO lembra que os
particulares, usando de sua liberdade negocial, podem produzir fatos complexos,
celebrando negócios que, em um só instrumento, podem abranger prestação de serviços
e venda de mercadorias, pois é possível, juridicamente, distinguir os dois objetos, ainda
que o interesse das partes seja global e uno. É imperioso estremar os dois objetos, “[...]
a fim de sujeitá-los a um e outro ou a um ou outro, na exata medida das respectivas
competências privativas”, pelo que o caminho a ser trilhado exige digressão em torno
das obrigações de dar e de fazer, único compatível com o sistema constitucional de
divisão de competências. Lembra o autor, no entanto, que há casos previstos pela
doutrina, em que o dar e o fazer praticamente se confundem, tornando difícil a análise
da efetiva natureza do vínculo obrigacional.620
Não basta a este estudo, entretanto, concluir que a prestação de serviços, a ser
erigida em núcleo da hipótese de incidência do ISS, será sempre aquela cujo contrato
envolver, de forma predominante, uma obrigação de fazer. Existem espécies de
obrigação de fazer que não envolvem prestação de serviço, por não resultar a produção
de uma utilidade mediante o esforço pessoal do obrigado, como é o exemplo da
obrigação de prestar uma fiança. Com esse raciocínio, MARÇAL JUSTEN FILHO
classifica as obrigações de fazer em dois grandes grupos, conforme a natureza da
prestação e do resultado por ela produzido. No primeiro grupo, estariam as obrigações
618
Obrigações..., op. cit., 324-325.
Ibidem, p. 325.
620
ISS na Constituição..., op. cit., 42-44.
619
236
de fazer cuja prestação consiste na realização de um novo negócio jurídico, pelo que
seriam consideradas obrigações (de fazer) meio. No segundo grupo, onde estariam
inseridas as relativas ao ISS, estariam as obrigações de fazer cuja prestação consiste
numa atividade que, em si mesma, satisfaz ambas as partes, qualificáveis como
obrigações (de fazer) fim. Nesse sentido, obrigação de fazer “[...] é aquela que envolve
uma prestação onde o fundamental é uma atividade do devedor não consistente na
entrega de um bem...”.621
4.3.1.2 Relações com o ICMS e o IPI
A materialidade do ISS propicia grande possibilidade de conflitos de
competência. Esses conflitos podem surgir com os próprios municípios entre si, quando
então o atrito surgirá não por divergência de conceituação do fato tributário, mas,
devido à falta de uma norma que possibilite, com razoável margem de segurança,
definir qual de dois municípios é o competente para tributar um mesmo fato. Por outro
lado, a atividade de prestar serviços pode suscitar conflitos com materialidades
reservadas à competência tributária de outras pessoas políticas, ou seja, com os estados
e/ou com a União Federal.622 Como o assunto deste subitem trata das relações do ISS
com o ICMS e com o IPI, é essa última forma de conflito que será analisada neste
momento. Os possíveis conflitos entre os municípios serão tratados no item seguinte.
Nenhum outro imposto em nosso sistema jurídico, mesmo desde a vigência da
Constituição anterior, tem possibilitado a existência de tantos conflitos como o ISS.
Com exceção das situações em que é possível conceituar um serviço como “puro”, o
que o inseriria dentro da chamada “zona de luminosidade” do conceito, muitas são as
“zonas cinzentas” e áreas comuns, em razão de um número elevado de serviços que
exigem a participação de materiais, insumos, como também não são raras transações
com produtos industrializados ou com mercadorias em que o fornecedor
(comerciante/industrial) tem, como pressuposto de sua obrigação de dar, um “fazer”,
que lhe é anterior.
621
622
O imposto..., op. cit., p. 90-91.
A União Federal é competente para tributar os serviços correspondentes às operações financeiras,
mediante o imposto sobre “operações financeiras”, previsto no artigo 153, V, da Constituição. Devido
à reduzida possibilidade de conflitos com o ISS, neste item somente serão analisados os conflitos com
o ICMS e o IPI.
237
É nesse sentido que GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO ensinam que
“[...] salvo o núcleo essencial do conceito de serviço, constitucionalmente referido,
toda a sua periferia apresenta pontos de contato com a materialidade de impostos de
competência dos Estados ou da União, de pontos que se tangenciam”.623 Embora essa
afirmativa tenha sido feita na vigência da Constituição pretérita, continua perfeitamente
válida, uma vez que nesse contexto já estavam inseridos tanto o IPI e o antigo ICM,
existentes também no sistema tributário anterior.
É exatamente onde estão situadas as denominadas “zonas cinzentas” do
conceito do fato jurídico, passíveis de ensejar superposição do exercício de
competências tributárias, a cujo respeito a lei complementar, de que trata o artigo 146, I,
da Carta Magna, está legitimada a dispor sobre eventuais conflitos entre as pessoas
políticas. AIRES BARRETO demonstra que a legislação complementar existente sobre
prevenção de conflitos entre ICMS e ISS “[...] fixou, em área onde não há conflito,
critérios que partem do erro palmar de não distinguir mercadorias e materiais”,
conforme ilustram, por exemplo, o artigo 1º, § 3º, III, do Decreto-lei nº 406/68, com a
redação dada pelo Decreto-lei nº 834/69, pelo qual não incide ICMS sobre mercadorias
a serem utilizadas na prestação dos serviços ali indicados, ou que o tenham sido.
Embora admita que, muitas vezes, é difícil discernir se, em um negócio, o preço do
material está embutido no preço do serviço, não se admite, com razão, que essa
dificuldade possa autorizar uma solução que resulte da equiparação jurídica dos
vocábulos “material” e “mercadoria”.624
A lei complementar não está, portanto, autorizada a impor aos materiais e
insumos, o regime tributário aplicável às mercadorias, assim como não lhe cabe
estabelecer qual serviço poderá ser tributado pelos Estados, com exceção, logicamente,
dos que lhes estão reservados explicitamente no artigo 155, II, da Constituição. É
inafastável que a definição de um bem, como mercadoria, não resulta de suas
características intrínsecas, mas no seu destino, pelo que só pode ser mercadoria o bem
que é objeto de um ato mercantil, nunca aquele cuja finalidade é a de possibilitar uma
prestação de serviço.
623
624
ISS – conflitos de competência..., op. cit., p. 54.
ISS na Constituição..., op. cit., p. 234.
238
Destaca-se, na doutrina nacional, a classificação dos serviços, quanto à sua
forma de prestação, levada a cabo por GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO, a
qual pode ser resumida da seguinte forma: 625
a) serviços simples: o “fazer” é exclusivo ou dominante, não sendo possível,
diante disso, qualquer conflito com o ICMS. Subdividem-se em: (a.1)
serviços puros: consistem exclusivamente num esforço humano –
intelectual e/ou físico – prescindindo do emprego de qualquer instrumental,
como são exemplos a consulta médica, que prescinda também da utilização
de qualquer material, ou a jurídica, em que seja desnecessária qualquer
pesquisa ou escrito; e (a.2) serviços menos puros: são assim considerados
por conjugarem o trabalho com o emprego de capital, como aparelhos,
máquinas, equipamentos, instrumentos ou veículos, sem os quais os
serviços não se realizam;
b) serviços que envolvem a aplicação de materiais, em conjunto ou não com
a utilização do instrumental a que se referem os serviços da letra “a” acima:
tais materiais são indissociáveis ao próprio serviço, integrando-o, porém, na
condição de meros ingredientes, insumos, componentes, o que os afasta de
serem considerados mercadorias, porque não são, como essas, bens móveis
destinados ao comércio. É o caso de um parecer jurídico, prestado mediante
a utilização de papel e tinta para impressão;
c) serviços associados ao fornecimento de materiais: ainda que a prestação
do serviço e o fornecimento dos materiais formem uma unidade, essa não é
incindível, podendo-se, no plano fático, distinguir uma e outra coisa, o que
traz relevantes efeitos jurídicos. A dificuldade, portanto, está na
identificação do predomínio do “dar” ou do “fazer”, onde a conseqüência,
no primeiro caso, será a incidência de impostos como o ICMS estadual e/ou
o IPI federal e, na segunda hipótese, a incidência do ISS. 626
Existe uma grande quantidade de serviços cuja execução exige o emprego de
materiais, como elementos integrantes da própria prestação, ou ainda como condição
625
626
A classificação de GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO, porque realizada em 1978,
exemplificava com o antigo “ICM”, como imposto a incidir no caso de predominar o “dar” na
obrigação, pelo que adaptamos para o atual “ICMS”, advindo com a Constituição Federal de 1988,
como também é nossa a inclusão do IPI neste item.
ISS – conflitos de competência..., op. cit., p. 57-58. Essa classificação também foi exposta em outro
artigo dos mesmos autores: ISS e ICM – conflitos. Revista de Direito Tributário, n. 11/12, p. 169171.
239
inafastável de seu desempenho. Nessas condições, o prestador do serviço não efetua a
venda destes materiais, “[...] mas seu emprego ou aplicação como requisito necessário
à prestação do serviço”, como elemento acessório, ensinam os autores. Esses materiais
dissolvem-se na própria atividade, com ela confundindo-se, não havendo, por
conseqüência, compra e venda de mercadorias. O efeito tributário, portanto, é o de que
tal operação mantém-se no campo dos serviços tributáveis pelo ISS, salvo os serviços
reservados aos Estados, no inciso II do artigo 155 da Constituição, não se configurando
como circulação de mercadorias, cuja incidência cabe ao ICMS. 627
Daí a necessidade de distinção entre materiais – aplicados ou empregados na
prestação de serviços – e mercadorias. Não há razão para discussões em torno do
conceito jurídico de “mercadoria”, pois a melhor doutrina é unânime a esse respeito, só
havendo a incidência de ICMS na hipótese de haver operação regulada pelo Direito
Mercantil, tendo mercadoria por objeto, o que não é o caso dos materiais aplicados,
usados ou empregados pelo prestador do serviço.628
ROQUE ANTONIO CARRAZZA ensina que, para o Direito, mercadoria
(espécie) é o bem móvel (gênero) objeto de atividade mercantil – sujeito à mercancia –
obedecendo, por força disso, ao regime jurídico comercial. Será mercadoria, portanto, o
bem móvel da empresa integrado ao estoque e que seja destinado, conforme o caso, à
venda ou à revenda, com intuito de lucro. É propriedade extrínseca do bem móvel a sua
destinação ao comércio.629
Dizendo de outra forma, as operações mercantis – que têm as mercadorias por
objeto – estão reservadas pela Constituição à competência dos Estados, e as operações
de prestação de serviços couberam aos Municípios, salvo, é óbvio, quanto aos serviços
expressamente atribuídos à competência estadual. O Distrito Federal, de acordo com os
artigos 147 e 155, cumula as competências municipal e estadual. É importante ressaltar
que essa repartição de competências é feita pela Constituição de modo rígido, não
podendo ser modificada, seja por lei complementar ou por qualquer outra norma editada
a esse título.
É imperiosa, portanto, a distinção entre o fornecimento de coisa qualificável
como mercadoria e a prestação de serviço que inclui material, do que resulta a
classificação das coisas como meio e como fim, conforme ensina AIRES BARRETO:
627
ISS – conflitos de competência..., op. cit., p. 58.
Ibidem, p. 59.
629
ICMS, p. 38-39.
628
240
Diante de operação mercantil a coisa é o objeto do contrato; sua entrega é a
própria finalidade da operação. No caso de prestação de serviço a coisa é
simples meio para a realização de um fim. A finalidade não é mais o fornecer
ou entregar uma coisa, mas, diversamente, prestar um serviço, para o qual o
emprego ou aplicação de coisas (materiais) é mero meio. [...] Verificável o
primeiro objeto, só pode incidir ICMS. Diante do segundo, só cabe ISS.630
Entretanto, da necessidade de distinguir materiais de mercadorias, não cabe,
necessariamente, concluir pela incidência de ISS sobre os gastos efetuados com
materiais e que representam despesas de titularidade do tomador dos serviços, como
parece ser o entendimento do referido autor. Como será melhor analisado no subitem
dedicado à base de cálculo do ISS, o preço do serviço, como seu indicativo, somente
pode ser entendido como a efetiva remuneração percebida como retribuição pelo serviço
prestado, sob pena de ofensa à matriz constitucional do imposto municipal.
A não identificação, como mercadorias, dos materiais empregados na prestação
dos serviços, tem por objetivo afastar a incidência do ICMS sobre tais valores, mas não
autoriza a concluir pela incidência do ISS sobre os mesmos. O ICMS, aliás, já incide
economicamente quando o prestador adquire os materiais, não podendo esse se creditar
do mesmo, nem transferi-lo para a próxima etapa da atividade econômica. A incidência
do ICMS sobre o valor dos materiais, portanto, resulta em dupla tributação do mesmo
fato, com violação de competência alheia.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema,
conforme revela o teor da Súmula nº 274, editada em 12 fev. 2003 – relatora Ministra
Eliana Calmon – segundo a qual “O ISS incide sobre o valor dos serviços de assistência
médica, incluindo-se nelas as refeições, os medicamentos e as diárias hospitalares”.
Entretanto, verifica-se que o posicionamento dessa Corte ampliou sensivelmente a
materialidade do ISS, em ofensa à Constituição Federal, seja em relação ao inciso III do
artigo 156, que prevê a incidência desse imposto somente sobre a prestação de serviços,
como também violou o princípio que veda a utilização de tributo com efeito de
confisco.
Com base nesses argumentos, BETINA TREIGER GRUPENMACHER afirma
que os valores que as instituições de saúde cobram de seus pacientes, a título de
refeições, medicamentos e materiais hospitalares, são meros insumos utilizados na
prestação de serviços, ou seja, o meio necessário para sua realização, pelo que sua
cobrança qualifica-se como ressarcimento de custos. Caso o fornecimento de
241
medicamentos, por exemplo, fosse efetuado por drogarias, seria devido o ICMS, mas
pela razão especial de que a obrigação, nesse caso, é de “dar”, enquanto que, nos
hospitais, a obrigação é de “fazer”.631
Essa preocupação já foi objeto de vários estudos de autores ligados à área
tributária, sendo majoritária a opinião de que tanto as operações com circulação de
mercadorias, tributáveis pelos estados, através do ICMS, como as operações com
produtos industrializados, graváveis pela União Federal, via IPI, representam
verdadeiras obrigações de dar, enquanto que as operações com prestação de serviços,
são cumpridoras das obrigações de fazer. Em hipóteses de operações mistas, nas quais
coexistem tanto uma obrigação de dar, como uma de fazer, há que se analisar, no caso
específico, qual das duas é predominante, não no sentido físico – econômico,
quantitativo, temporal – mas exclusivamente em seu sentido jurídico.
Entretanto, hipótese diversa ocorre quando coexistem dois negócios jurídicos
distintos – podendo ou não estarem reunidos em um só instrumento contratual – um
envolvendo prestação de serviço, e outro tratando de venda de mercadorias, produzindose ato jurídico complexo, não havendo, entre ambos, relação entre atividade-meio e
atividade-fim. Em tais casos, deve-se tomar o cuidado para bem discernir os dois
objetos e, se for o caso, concluir pela tributação aplicável a cada um deles. Ou seja,
apesar de haver um só instrumento, o documento, nesse exemplo, abrange dois
contratos, duas relações jurídicas. Um deles terá como objeto um fato subsumível ao
ISS, enquanto que o objeto do outro terá a incidência do ICMS e/ou do IPI, conforme a
operação envolver, ou não, produto industrializado.
Exemplo típico dessa situação ocorre quando uma loja de equipamentos de
informática vende um computador por um determinado preço e, simultaneamente,
celebra contrato obrigando-se, mediante determinada remuneração, a prestar o serviço
de instalação. O fato de a remuneração do serviço de instalação não estar embutida no
preço da mercadoria demonstra que o cliente contratou, mediante o instrumento de
compra e venda, apenas e tão-somente a aquisição do computador, na forma como ele se
encontrava na loja. A instalação do computador foi objeto de outro contrato, não mais
mercantil, mas de prestação do serviço.
630
631
ISS na Constituição..., op. cit., p. 235-236.
A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na
Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 204-205.
242
É importante ter em mente que o fato de existirem dois contratos, ou seja, duas
relações jurídicas, não impede que ambos estejam reunidos em um só instrumento. Um
instrumento – aspecto formal – pode abranger vários contratos e, portanto, várias
relações jurídicas. Caso a opção contratual fosse outra, no sentido de que a obrigação
pela tradição da mercadoria somente estaria cumprida com a instalação do computador,
estaríamos então diante de um contrato de compra e venda tão-somente, pois o serviço
de instalação demonstrou ter relevância jurídica significativamente inferior à compra e
venda. O que se contratou, nesse caso, foi a compra e venda do computador. A
instalação foi somente um “plus’, um detalhe, ainda que contido em cláusula contratual
específica.
Outro, porém, é o caso que ocorre quando o contribuinte, em seu
estabelecimento, desenvolve duas atividades distintas, que não se confundem – presta
serviços e efetua operações relativas à circulação de mercadorias. Em tais casos, não se
trata de prestação de serviço com mercadoria, mas de situação em que a mesma pessoa
explora duas atividades econômicas diversas, como ocorre se alguém, possuindo
empresa comercial – cujo objetivo operacional é a venda de mercadorias – diversificar
suas operações e passar a explorar, também, o ramo de prestação de serviços. Há, aqui,
a ocorrência de duas situações, cada uma configurando hipótese de incidência de
imposto diverso: a) ICMS, para as operações relativas à circulação de mercadorias e b)
ISS, para a prestação de serviços.632
Aplicando-se conjuntamente o pensamento de ORLANDO GOMES 633 – o qual
defende a relevância decisória do interesse do credor da prestação, assim como o de
WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO634 – que entende ser a espécie de
obrigação dada em razão de uma relação de causa e conseqüência – entende-se que, em
situações de difícil identificação da espécie obrigacional, há que se analisar, em um
primeiro momento, qual é a essência do objeto desejado pelo tomador a ser satisfeito
quando do cumprimento da prestação, para então conferir relevo jurídico ou à atividade
pessoal do prestador, ou aos bens móveis e corpóreos por ele necessariamente utilizados
na execução da tarefa. Mediante essa análise, será possível inferir, dentre os elementos
da operação jurídica – atividade (fazer) e bens materiais utilizados (dar) – a respectiva
posição em uma relação de causa e efeito (conseqüência).
632
ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino. ISS e ICM..., op. cit., p. 172.
Obrigações..., op. cit., p. 46.
634
Curso..., op. cit., p. 87.
633
243
No primeiro caso, o interesse contratual predomina nas características pessoais,
intrínsecas, do prestador, elementos esses que deverão individualizar o resultado final
do serviço, para distinguí-lo daqueles que teriam sido prestados por outros profissionais,
independente de a qualidade ser superior ou inferior. Como a obrigação, nesse caso,
seria de fazer, essa operação é tributável pelo ISS. Na segunda hipótese, o interesse está,
em sua maior parte, no bem móvel e corpóreo a ser entregue ao final, o que o atrairá a
tributação do ICMS, se tal bem for uma mercadoria, e também do IPI, se o bem for um
produto industrializado.
Conclusões semelhantes foram firmadas em Congresso de Direito Tributário
realizado em 1981, em São Paulo, sobre os distintos campos de incidência do ISS e do
ICMS:
a) a prestação de serviços consiste numa obrigação tendo por objeto um
fazer, a obrigação mercantil consubstancia um dar;
b) o fato de a prestação de serviços requerer emprego de materiais, e/ou
equipamentos, não descaracteriza a obrigação de fazer; esta obrigação é
unidade incindível, não decomponível em serviço (puro) e materiais ou
aparelhos;
c) as obrigações de fazer cujo conteúdo é a prestação de serviços, portanto,
são tributáveis exclusivamente pelo ISS, e não o podem ser pelo ICM.635
Depreende-se que, devido ao fato de encontrar-se, no critério material da
hipótese de incidência do ISS, a “prestação de uma utilidade a título de execução de
uma obrigação de fazer”, não há como, juridicamente, confundir-se o ISS com o ICMS
estadual, pelo menos na parcela da materialidade que trata da circulação de mercadorias,
posto que aí a operação jurídica envolve necessariamente uma obrigação de dar, cujo
conteúdo é a transferência do domínio ou da posse de uma mercadoria – bem material
móvel – e que é conceito dado pelo Direito Comercial, não pela sua natureza intrínseca,
mas pela sua destinação específica: a mercancia.
Por outro lado, “[...] quando a transferência do domínio ou da posse de um
bem é condição do fazer (pois a prestação que o obrigado deve cumprir exige, para
aperfeiçoar-se, a utilização de bem do domínio do obrigado) ou quando a transferência
da posse ou do domínio tem por objeto um bem jurídico produzido ou acrescido,
estruturalmente, pela atividade do devedor, há obrigação de fazer”, tributável,
portanto, pela via do ISS.636
635
636
Apud MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática, p. 61
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 108.
244
Entretanto, “[...] quando a conduta in obligationem inacrescenta atributo
algum ao objeto a ser transferido ao credor e a esse só é relevante o próprio objeto,
está-se diante do campo de funcionamento das obrigações de dar” [sic].637 Assim, se a
prestação, do objeto da obrigação de dar, for a entrega de uma mercadoria, então se está
diante de fato tributável pelo ICMS.
MARIA JULIANA DE ALMEIDA FONSECA, tendo como premissa o artigo
966 do atual Código Civil – o qual prevê: “Considera-se empresário quem exerce
profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de
bens ou de serviços” – defende estar superada a tese pela qual as hipóteses de
incidência do ICMS e do ISS envolvem, respectivamente, uma obrigação de dar e de
fazer. Seu raciocínio tem origem no atual regime aplicável ao empresário, que tanto
pode praticar os antigos atos de comércio, como pode, também, prestar serviços, a
depender da respectiva atividade ser exercida de forma empresarial, e não de forma
simples, como estabelecido, por exclusão, no parágrafo único do precitado artigo 966:
“Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza
científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores,
salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.638
Disso decorreria uma “aproximação”, pelo Código Civil, dos conceitos de
“mercadoria” e “serviço”, afirmando a autora, inclusive, que o serviço passou a ser uma
espécie do gênero mercadoria, sendo irrelevante a distinção ter como fundamento a
materialidade ou imaterialidade do bem. Cita, como exemplos, decisões do Superior
Tribunal de Justiça, que equipararam os imóveis a mercadoria, para fins de incidência
da Cofins – como exemplo, o RESP nº 210.335/PR, DJ 06/09/1999 – e as decisões que
entenderam pela incidência do ICMS, e não do ISS, sobre os softwares de prateleira –
RESP nº 123.022/RS, DJ 27/10/97. Esclarece a autora, por fim, que isso não implica
tributar os serviços pelo ICMS, “[...] pois há que se observar, sempre, o núcleo
preponderante da atividade desenvolvida para se identificar a hipótese de incidência
prevista na lei tributária”, ou seja, o gênero “mercadoria” envolveria as espécies
“serviços”, sujeitos ao ISS, e as “mercadorias stricto sensu”, sujeitas ao ICMS.639
Apesar de criticar a utilização da classificação das obrigações de “dar” e de
“fazer” para fins de divisar a incidência do ICMS e do ISS, pensamos que seu
637
638
Idem.
Conflito de Competência Tributária – ICMS e ISSQN: Os novos conceitos de mercadoria e serviço,
p. 88-89.
245
entendimento não a desmente. Sua classificação baseia-se em uma nova perspectiva de
análise do tema, mas que poderia, pensamos, ser resolvida com base no critério do
exame da maior preponderância existente nas relações obrigacionais, ou seja, ainda que
uma relação envolva simultaneamente um dar e um fazer, caso prevaleça a obrigação de
“dar”, estar-se-á diante de hipótese de incidência do ICMS. Ao contrário, prevalecendo
a obrigação de fazer, a incidência é do ISS.
Tratando do tema do campo de aplicação da lei complementar reservada a
dispor sobre conflitos de competência entre o ISS e o ICMS, AIRES BARRETO
ressalta que:
apenas nos casos excepcionalíssimos nos quais, em tese, a unidade ontológica
do fato seja insuperavelmente composta é que, para afastar conflito, está a lei
complementar autorizada a fixar critério que exclua a pretensão do Estado ou
do Município. Só na impossibilidade irremovível de distinção entre serviço e
operação mercantil é que se reconhece essa possibilidade. E, assim mesmo,
essa faculdade não pode ser arbitrária. O critério deverá ser aquele que
melhor realize os vetores constitucionais.640
Como resultado, se a lei complementar em questão não respeitar os desígnios
constitucionais precitados, o seu destinatário direto, ou seja, o legislador, ao exercer a
competência tributária que lhe é privativa, não está obrigado a observá-la, como bem
adverte o referido autor, para quem a Lei Complementar nº 116/2003, repetindo
invalidades dos diplomas anteriores – Decreto-lei nº 406/68, com a redação dada pelo
Decreto-lei nº 834/69, assim como as alterações promovidas pela Lei Complementar nº
56/87 – criou inequívocas limitações não consentidas pela Constituição, sendo nesses
casos norma inválida.641
Como exemplo, o autor critica o já revogado artigo 8º, § 1º, do Decreto-lei nº
406/68, o qual dispõe que “[...] os serviços incluídos na lista ficam sujeitos apenas ao
ISS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadoria”. É que se a única
atividade existente é a prestação de serviço, não há que se falar em fornecimento de
mercadoria, pois ou há uma, ou há outra. A recíproca também é verdadeira: onde houver
fornecimento de mercadorias, não poderá haver prestação de serviços. 642 De forma
semelhante prevê o artigo 1º, § 2º da Lei Complementar nº 116/2003.
639
Ibidem, p. 90-93.
ISS na Constituição..., op. cit., p. 236.
641
Ibidem, p. 237.
642
Ibidem, p. 237-238.
640
246
O que pode ocorrer, conforme já se demonstrou acima, é a prestação de
serviços com simultâneo fornecimento de mercadorias, onde se vislumbram dois
negócios jurídicos distintos, o que é diferente, pois nesse caso cada um dos negócios
estará sujeito a regime tributário diverso: a prestação de serviço será tributada pelos
municípios, através do ISS, e o fornecimento de mercadoria pelos estados, através do
ICMS.
PAULO DE BARROS CARVALHO, tratando da materialidade do antigo
ICM, traça os elementos indispensáveis à sua configuração:
a circulação de mercadorias, desde que promovida por força de negócio
jurídico, de que título for, estará sujeita à incidência do ICM. Esta a
importância capital da palavra ‘operações’, inserta no Texto Supremo e
lamentavelmente esquecida no nível da aplicação efetiva e prática do tributo.
Inexistindo título jurídico para que a mercadoria circule, não haverá falar-se
de acontecimento fático que se possa frisar com a previsão normativa.643
Como se pode depreender da aplicação do raciocínio desse autor ao tema que
se examina, quando se está diante de prestação de serviços, a eventual entrega e/ou
aplicação de materiais e insumos: (a) não é objeto de operação jurídica – a operação
jurídica existente tem por objeto a prestação do serviço, e não a entrega de qualquer
material ou insumo; (b) não corresponde a nenhuma circulação - pois não há título
específico para os materiais, sendo, o título jurídico, para a prestação do serviço; e (c)
até como conseqüência das letras anteriores, não há nenhuma mercadoria, sendo
inexistente qualquer negócio jurídico mercantil.
Problema semelhante surge por força de uma interpretação descabida, baseada
em considerações pré-jurídicas, do artigo 155, § 2º, IX, “b”, da Constituição, o qual
prescreve que o ICMS incidirá também “sobre o valor total da operação, quando
mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência
tributária dos Municípios”. Parte considerável da doutrina tributária, partindo de
premissas somente econômicas, em detrimento de uma devida análise jurídica, vê nesse
dispositivo uma autorização implícita para que os Estados possam também exigir
imposto sobre outros serviços, além dos que já lhes foram taxativamente outorgados no
inciso II desse mesmo artigo 155, ou seja, sobre os serviços de transportes
intermunicipal e interestadual e de comunicação.
AIRES BARRETO, com propriedade, esclarece que, diante do inafastável
Princípio da Autonomia Municipal, os estados não podem tributar outros serviços que
247
não os já previstos de forma exaustiva no inciso II do artigo 155 da Lei Maior. Como
agravante, quem defende tal posicionamento acaba também por entender que a lei
complementar está autorizada a resolver problemas desse jaez, inclusive invadindo
campo reservado à Constituição, restringindo ou ampliando competências das pessoas
políticas de modo discricionário. Conclui que, ao adotar esse entendimento, acaba-se
por defender a inexistência de rigidez e privatividade na distribuição de competências
tributárias pela Constituição, a qual poderia ser flexibilizada por mera lei
complementar.644
O artigo 155, § 2º, IX, “b”, da Constituição, deve, por exigência de uma
devida interpretação sistemática, ser entendido em harmonia com o disposto no inciso II
do mesmo artigo 155, do que resulta ser aquela alínea um desdobramento deste
dispositivo. Ora, se os serviços não compreendidos na competência tributária dos
municípios somente são os de transporte intermunicipal e interestadual e os de
comunicação, a inteligência dessa alínea está em que, se mercadorias forem fornecidas
concomitantemente com tais serviços, o ICMS incidirá sobre o valor total da operação.
Ou seja, o regime jurídico será o aplicável para as operações mercantis, conforme
escólio de AIRES BARRETO, o qual acresce que:
Com isso, busca a Constituição impedir que, mesmo diante de fixação de
alíquotas (e/ou bases de cálculo, regimes de crédito, momentos de ocorrência
do fato imponível etc.) diferentes para operações relativas à circulação de
mercadorias e para os serviços referidos, se possa considerá-los de per si
(como, por exemplo, aplicar uma alíquota, (ou base), para a operação
mercantil e outra para a prestação dos serviços de transporte transmunicipal
ou para os de comunicação).645
Com relação aos serviços de competência privativa dos estados e do Distrito
Federal, passíveis de serem tributados pelo ICMS, a possibilidade de surgirem conflitos
com os municípios, apesar de existente, é menor, haja vista a Constituição Federal ter
deixado bem explícito, no artigo 155, II, que os serviços passíveis de tributação por esse
imposto são os de “[...] transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação,
ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”. Nunca é demais repisar
que tais conflitos existem única e exclusivamente no plano pré-jurídico, onde os fatos
ainda não estão juridicizados.
643
Hipótese..., op. cit., p. 255.
ISS na Constituição..., op. cit., p. 38-39.
645
Ibidem, p. 50.
644
248
Após se tornarem fatos jurídicos, os serviços ou são de transporte
transmunicipal e de comunicação e, portanto, de competência dos estados e do Distrito
Federal, ou são, de forma residual, de competência dos municípios. Se, depois de
juridicamente qualificados, ainda restarem “conflitos”, esses são aparentes, e decorrem
sempre de má interpretação da Constituição, onde as competências foram delimitadas de
forma rigorosa e exaustiva, sem que haja confusão conceitual entre as diversas
materialidades entregues à competência tributária das pessoas políticas.
Quanto aos serviços de transporte, somente estarão na competência municipal
do ISS aqueles que se realizarem dentro dos limites territoriais do próprio município, ou
seja, os serviços de transporte intramunicipal, onde o início (origem) e o fim (destino)
da prestação do serviço ocorrem no mesmo município. Entretanto, decorre do contexto
constitucional que a prestação de serviço de transporte aéreo, seja a de cunho
estritamente municipal, seja a que tenha origem e destino em municípios e/ou estados
diferentes, é serviço intributável, não se subsumindo nem à materialidade do ISS, nem
tampouco à do ICMS, em virtude de caracterizar-se como serviço público, ex vi do
artigo 21, XII, “c” da Constituição Federal, como ensina AIRES BARRETO.646
Os serviços de transporte internacional, por força não só de impossibilidade
física, como lógica, não se compreendem na competência dos estados e do Distrito
Federal, pois a redação do inciso II do artigo 155 é clara ao limitar a competência dessas
pessoas políticas aos serviços de transporte intermunicipal e interestadual, opções onde
resta impossível identificar qualquer espécie de transporte efetuado no exterior do país.
E não se diga que a parte final do inciso II, do artigo 155, a qual prevê que o
ICMS incide “[...] ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”,
assim como a expressão constante do inciso IX, “a”, do § 2º do mesmo artigo 155, pela
qual o ICMS incidirá também “[...] sobre o serviço prestado no exterior [...]”,
poderiam amparar pretensão em sentido contrário. É que resulta inequívoco que essas
prestações de serviço, a que se refere o texto constitucional, só podem ser as de
comunicação, espécie de serviço tributável pelo ICMS que não sofreu nenhuma
restrição espacial, como ocorreu, ao inverso, com os serviços de transporte, onde é
inafastável que devem ser ou intermunicipais, ou interestaduais, dentre os quais é
impossível inserir os de transporte internacional, espécie de serviço não compreendida
em nenhuma previsão constitucional de outorga de competência tributária. Será, com
646
Ibidem, p. 65.
249
efeito, inconstitucional eventual lei complementar que preveja essa espécie de serviço
de transporte como sendo tributável pelos estados e Distrito Federal pela via do ICMS,
por flagrante extrapolação da competência atribuída a esses entes políticos pela
Constituição.647
Em relação aos serviços de comunicação, não obstante estarem compreendidos
na competência dos estados e do Distrito Federal, a Constituição outorgou à União
Federal a competência para sua exploração, direta ou indiretamente, conforme
estabelece o artigo 21, XI e XII, da Constituição, e também para sua regulamentação,
nos termos do artigo 22, IV, da Constituição. Portanto, “[...] existindo lei federal
definidora do que sejam os serviços de comunicação, materialmente considerados – e,
sob esse aspecto, não havendo, no conceito da lei federal, nenhum desbordamento do
conceito constitucional desses serviços, para fins de tributação – não se pode, em
princípio, desconsiderar os termos de suas definições”.648
Tal regulamentação, para AIRES BARRETO, estaria prevista na Lei federal nº
9.472, de 16 jul. 1997, a qual dispõe sobre telecomunicações e define, em seu artigo 60,
que “serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de
telecomunicação”, acrescendo, em seu § 1º, que telecomunicação “é a transmissão,
emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro
processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou
informações de qualquer natureza”. Com base no conceito legal, o autor defende que
“[...] estão submetidos à incidência do ICMS os serviços de comunicação, isto é, a
utilidade material, onerosamente prestada, que, concretamente, implique o tráfego de
informações, sinais e mensagens de qualquer natureza ou conteúdo, por quaisquer dos
meios tecnológicos para tanto aptos”.649
Em decorrência do § 1º do artigo 61 da Lei nº 9.472/97, o qual dispõe que o
“serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações”, surgiu
recentemente a polêmica com a prestação de serviços de provedor de Internet, em que
o Poder Judiciário foi instado a manifestar-se sobre qual das pessoas políticas – se
estados ou municípios – seria competente para tributar tais prestações de serviço. A
discussão, portanto, baseia-se no fato de serem ou não tais serviços de comunicação,
647
Ibidem, p. 68-69.
Idem.
649
Idem.
648
250
conforme prevê o § 1º do artigo 60 da Lei nº 9.472/97, ou se é hipótese de serviço de
valor adicionado, na esteira do que dispõe o § 1º do artigo 61 da mesma lei.
Diante do entendimento de que os provedores de internet não chegam a prestar
serviço de comunicação, posto não intermediarem a comunicação entre duas ou mais
pessoas, mas tão-somente disponibilizando meio eletrônico para que se possa acessar a
“rede”, alguns autores defendem tratar-se de mero serviço de valor adicionado ao já
prestado pelas empresas de telefonia, essas, sim, efetivamente, prestadoras de serviços
de comunicação, os quais já são tributados pelo ICMS.
Diante disso, os serviços prestados pelos provedores de internet, quando
onerosos, estariam compreendidos na competência tributária dos municípios, ainda que
inexistente sua previsão na lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003,
com a devida ressalva à existência de jurisprudência entendendo pela taxatividade da
mesma. Nesse sentido é o entendimento, por exemplo, de AIRES BARRETO650 e de
JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO651.
Registre-se, em sentido contrário, a opinião de MARCO AURÉLIO GRECO,
para quem, “[...] embora não seja um serviço de ‘telecomunicação’ por definição legal,
trata-se de um serviço de ‘comunicação’, pois disponibiliza para o usuário um meio
distinto de transmissão de mensagens comparativamente com o clássico serviço de
telefonia”, além de refutar a aplicação da Lei Geral de Telecomunicações, pois o artigo
155, II, da Constituição contempla o conceito de “comunicação” e não de “tele”comunicação, o que leva o autor a concluir estar o serviço de provedor de internet
sujeito ao ICMS, de competência estadual.652
Admitindo que essa posição é mais onerosa para o contribuinte, lembra o autor
que, apesar disso, por ser um serviço de comunicação, o serviço de provedor está
abrangido pela previsão do inciso XII, do artigo 5, da Constituição Federal de 1988,
dispositivo que resguarda o sigilo de dados e das comunicações telefônicas. Caso
contrário, se a atividade não for de comunicação, a natureza do sigilo do provedor,
perante terceiros, seria tão-somente comercial, o que não é oponível ao Fisco, a teor do
que dispõe o artigo 97, VII, do Código Tributário Nacional.653
650
Ibidem, p. 239-242.
ICMS..., op. cit., p. 57-58.
652
Internet..., op. cit., p. 109-110.
653
“Artigo 197. Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas
as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros: [...] VII
- quaisquer outras entidades ou pessoas que a lei designe, em razão de seu cargo, ofício, função,
ministério, atividade ou profissão”.
651
251
O autor lembra que o próprio Supremo Tribunal Federal, em duas
oportunidades, entendeu, ainda que em pronunciamento cautelar, que o conceito de
“comunicação” acolhido pelo artigo 155, II, da Constituição, é muito abrangente, a
ponto de alcançar até mesmo rádio e televisão – Medida Cautelar nas Adins n 1467, DJ
de 14 mar. 1997, e n 930, DJ de 31 out. 1997.654
Entretanto, quer parecer estar a razão com aqueles que defendem ser o serviço
de provedor de Internet um serviço de valor adicionado, não se subsumindo, portanto,
ao conceito de comunicação, tributável pelo ICMS, de competência estadual, ex vi do
artigo 155, II, da Constituição Federal. Nesse sentido, entende-se que o provimento de
acesso à internet deve ser considerado, na definição dada por JÚLIO MARIA DE
OLIVEIRA, como uma “[...] prestação de serviço que utiliza necessariamente uma
base de comunicação preexistente e que viabiliza o acesso aos serviços prestados na
rede mundial, por meio de sistemas específicos de tratamento de informações”.655
Diante dessa definição, o autor esclarece que o referido provimento de acesso
não pode ser enquadrado como um serviço de comunicação:
pois não atende aos requisitos mínimos que, técnica e legalmente, são
exigidos para tanto, ou seja, o serviço de conexão à Internet não pode
executar as atividades necessárias e suficientes para resultarem na emissão,
na transmissão, ou na recepção de valor adicionado, pois aproveita de uma
rede de comunicação em funcionamento e agrega mecanismos adequados ao
trato do armazenamento, movimentação e recuperação de informações.656
Lembra ainda o autor que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento
da Adin n 1.491-9, entendeu que os serviços de valor adicionado, cujo conceito legal
era então dado pelo artigo 10, da Lei n 9.295, de 19 jul. 1996 – revogado pela Lei n
9.472/97657, não são serviços de comunicação, mas sim serviços agregados aos serviços
de comunicação. Seguindo o entendimento desse autor, PAULO DE BARROS
CARVALHO também concluiu que o serviço prestado pelo provedor não é de
654
Internet..., op. cit., p. 132.
Internet e competência tributária, p. 123.
656
Idem.
657
“Artigo 10. É assegurada a qualquer interessado na prestação de Serviço de Valor Adicionado a
utilização da rede pública de telecomunicações. Parágrafo único. Serviço de Valor Adicionado é a
atividade caracterizada pelo acréscimo de recursos a um serviço de telecomunicações que lhe dá
suporte, criando novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação,
movimentação e recuperação de informações, não caracterizando exploração de serviço de
telecomunicações”.
655
252
comunicação.658 No Superior Tribunal de Justiça, devido à existência de divergência
entre os entendimentos da 1ª e da 2ª Turmas, a questão foi apreciada pela 1ª Seção, a
qual entendeu pela não incidência do ICMS sobre os serviços prestados pelos
provedores de acesso à internet, conforme ficou expresso na Súmula nº 334, de 13 dez.
2006.659
Quanto às relações do ISS com o IPI, há um tênue limite entre as respectivas
competências, do que resultam alguns conflitos. O pressuposto, para a solução, deverá
ser buscado nos respectivos critérios materiais das hipóteses de incidência, direto da
Constituição: enquanto o do IPI é realizar operações jurídicas com produtos
industrializados, consubstanciando uma obrigação de dar, o critério material do ISS é
prestar serviços, consistindo portanto em uma obrigação de fazer. Somente após esse
exame é que será legítimo o recurso à Lei Complementar que disponha sobre conflitos
de competência (artigos 146, I e 156, III, da Constituição).
Há atividades, porém, que, do ponto de vista estritamente econômico, podem
ser consideradas tanto como prestação de serviço, como industrialização. São exemplos
freqüentes
as
atividades
de
recondicionamento,
recuperação,
restauração,
recauchutagem etc. Em casos como tais, só é possível classificar a atividade como
serviço ou industrialização, após a análise, de forma conjugada: (a) das condições de
seu desempenho; e (b) da espécie de relação jurídica travada entre as partes envolvidas.
Dizendo de outra forma, tem-se que a mesma atividade – por exemplo, de
recondicionamento de um motor usado – pode ser validamente enquadrada como
prestação de serviço, o que ocorrerá na hipótese de o negócio jurídico entabulado pelas
partes consistir na obrigação específica de o contratado recondicionar (fazer) um
determinado motor; ou como industrialização, caso o negócio jurídico tenha por
essência a obrigação de entregar (dar), após o pagamento do preço, o motor
recondicionado. Nesta última hipótese, atente-se que, ainda que o contrato preveja a
obrigação de o contratado instalar (fazer) o motor, prevalece no negócio a obrigação de
dar, pois é a que revela a essência do negócio.
JOSÉ ROBERTO VIEIRA, analisando as diferenças entre as espécies de
obrigações, para exame das relações do IPI com o ISS – as quais não considera tão
pacíficas e amigáveis quanto as relações do IPI com o ICMS – assevera que, apesar das
658
Não-incidência do ICMS na atividade dos provedores de acesso à internet. Revista Dialética de
Direito Tributário, n. 73, p. 104.
659
“O ICMS não incide no serviço dos provedores de acesso à Internet.”
253
obrigações “de dar” estarem compreendidas nas “de fazer”, cada qual obedece a regime
jurídico próprio. Enquanto as primeiras têm por objeto prestações de coisas, as
segundas têm prestações de fatos – atividade pessoal do devedor – conforme, aliás,
entende não só a Ciência do Direito, mas prescreve o próprio Código Civil. O “fazer”
em comento é representado, no âmbito do ISS, pela idéia de serviço – prestações de
“fato”, enquanto que, no âmbito do IPI, o que interessa é a entrega de um produto
industrializado – prestações de “coisa”.660
O que se deve ter como premissa, na verdade, é a distinção entre “produto
resultante de uma atividade industrial” e “bens resultantes de uma atividade de
serviços”, conforme ensinam CÉLIO DE FREITAS BATALHA661 e CLÉBER
GIARDINO, sendo desse último o seguinte raciocínio:
Ora, juridicamente (e num conceito simplificado), produto industrializado é o
que se produz para vender. Vale dizer: não é a atividade produtiva que se
‘vende’ porém apenas o seu resultado (e por isso, no caso, se envolve um dar
e não um fazer). A seu lado, as simples coisas que decorrem de atividade de
serviços, enquanto tais, não são objeto de tráfico negocial, não são
‘vendidas’, mesmo porque já estão absorvidas pela precedente alienação do
próprio processo de elaboração do qual resultam, este sim ‘vendido’ (por
isso, nessas hipóteses, existe um fazer e nunca um dar).662
A materialidade constante na hipótese de incidência do IPI, portanto, consiste
em um dar. Poderá o industrial, eventualmente, obrigar-se a uma futura
industrialização, seguida da transferência da propriedade, como sói ocorrer nas
hipóteses de industrialização por encomenda, tributadas pelo IPI. Devido existir aqui,
além do “dar”, um “fazer” anterior, nasce uma possível área de atrito entre o IPI e o ISS,
com relação aos serviços associados ao fornecimento de materiais. E é na zona cinzenta
entre essas duas figuras que ganha relevo a análise do contrato de empreitada, que é
aquele pelo qual o empreiteiro se obriga a executar determinada obra, com material
próprio ou o que lhe é posto à disposição, mediante remuneração do comitente.
Quando a empreitada não envolve fornecimento de materiais, diz-se somente
de lavor. Do contrário, será empreitada de materiais ou mista. É o que dispõe o artigo
610 do Código Civil em vigor, à semelhança do que já dispunha o artigo 1.237 do
Código Civil anterior: “o empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu
660
A regra-matriz..., op. cit., p. 83-84.
Conflitos de competência (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e imposto
sobre serviços). Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 169.
662
Conflitos entre imposto sobre produtos industrializados e imposto sobre operações relativas à
circulação de mercadorias. Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 138-139.
661
254
trabalho ou com ele e os materiais”. É nesse contexto que surgem as possibilidades de
conflito entre o ISS e o IPI
JOSÉ ROBERTO VIEIRA demonstra a existência de três linhas de
interpretação na doutrina civilista.663 A primeira tendência interpretativa vê, na
empreitada de materiais, uma compra e venda de coisa futura, dando ênfase, portanto, à
obrigação de dar. O autor descarta essa corrente, por entender que só será compra e
venda de coisas futuras caso essas sejam genéricas e fungíveis, traço inexistente na
empreitada, onde sobrelevam as peculiaridades da obra a ser feita sob encomenda. 664
Uma segunda corrente vê, na empreitada de materiais, a convivência
autônoma do dar e do fazer, o que não pode ser aceito, por desvirtuar esse tipo de
contrato, além de criar figura não existente no mundo jurídico.665 E por fim, uma
terceira corrente, acatada pelo autor, enfatiza na empreitada de materiais, a atividade de
realização da obra, ou seja, a obrigação de fazer, em detrimento do fornecimento de
materiais – obrigação de dar – com o que tal fato só pode ser jurídico tributário em
relação ao ISS.666
Esse último entendimento foi, inclusive, encampado pelo parágrafo 1º do artigo
8º do Decreto-Lei nº 406/68: “Os serviços incluídos na lista ficam sujeitos apenas ao
imposto previsto neste artigo, ainda que sua prestação envolva fornecimento de
mercadoria”. A ressalva ao legislador deve-se unicamente ao fato de ter restringido o
critério apenas aos serviços constantes da lista, prestigiando a lei complementar em
detrimento da Constituição.
Não há como não aceitar os argumentos desta última posição, pois têm efeito
sobre os institutos de direito privado utilizados, de forma implícita, pela Constituição,
na repartição das competências tributárias entre as pessoas políticas, e que por essa
razão devem ser protegidas de eventuais invasões do legislador ordinário, conforme
prescreve o artigo 110 do Código Tributário Nacional: “A lei tributária não pode
663
A regra-matriz..., op. cit., p. 86-88.
Conforme o autor, esta é a óptica de TROPLONG e LAURENT, ENNECERUS, KIPP, WOLFF,
PLANIOL, RIPERT, BOULANGER, TRABUCCHI, THIRY, COLMET DE SANTERRE, e entre
nós, de BENTO DE FARIA, JOÃO LUIZ ALVES e MANUEL INÁCIO CARVALHO DE
MENDONÇA.
665
Defendida, conforme o autor, por AUBRY ET RAU, e aqui, por J. M. CARVALHO SANTOS e
WALDEMAR FERREIRA, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ARNOLDO WALD, e
MARIA HELENA DINIZ.
666
Encampada, entre os civilistas, por CLÓVIS BEVILÁQUA, PONTES DE MIRANDA e CAIO
MÁRIO DA SILVA PEREIRA, e entre os que analisaram a questão sob a óptica tributária, por
ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA, VICTOR NUNES LEAL, ROBERTO DE SIQUEIRA
CAMPOS e JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO.
664
255
alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito
privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas
Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos
Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
Na análise, portanto, do que dispõe o artigo 610 do Código Civil, pelo qual “o
empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os
materiais”, é inequívoca a intenção do legislador de relevar a obrigação de fazer como
essência do contrato de empreitada, seja a de lavor, seja a mista, o que, de resto, não é
infirmado por qualquer outra norma extraída do ordenamento jurídico. Dessa forma, não
se pode chegar a outra conclusão senão a de que, diante de um contrato de empreitada
de materiais, prevalece a obrigação de fazer, pelo que esse negócio somente se subsume
à hipótese de incidência do ISS, nunca do IPI.667
4.3.1.3 A Lei Complementar de que trata o inciso III do artigo 156
ALFREDO AUGUSTO BECKER já advertia da necessidade de não se
confundir regra jurídica com lei. Assim como uma única regra jurídica pode ser o
resultado de diversas leis ou artigos de leis, uma mesma fórmula literal legislativa pode
veicular duas ou mais regras jurídicas diversas. A regra jurídica “[...] é uma resultante
da totalidade do sistema jurídico formado pelas leis”.668 A Constituição Federal, em
seu artigo 156, III, prevê dispositivo nesse sentido, ao estatuir que “Compete aos
Municípios instituir impostos sobre [...] serviços de qualquer natureza, não
compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar”.669
Com base nesse ensinamento, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES adverte que,
embora a formulação unitária, o dispositivo pode ser decomposto em duas normas
distintas, ambas atributivas de competência, porém com destinatários distintos. A
primeira parte outorga competência aos Municípios para instituir o imposto sobre
serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência dos Estados, e, a
segunda parte, atribui competência à União Federal para, mediante lei complementar,
definir quais são esses serviços.670
667
A regra-matriz..., op. cit., p. 88-89.
Teoria geral..., op. cit., p. 270.
669
Redação dada pelo artigo 1º da Emenda Constitucional nº 3, de 17 mar. 1993.
670
Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 17-18
668
256
Em um primeiro momento, poder-se-ia inferir que reside na parte final do
inciso III uma demonstração de supremacia da competência federal, a ser exercida
mediante a utilização da lei complementar, podendo com isso definir quais serviços
seriam passíveis de ser tributados pelos Municípios. O referido autor, comentando o
dispositivo da Carta Constitucional anterior que concedia aos Municípios a competência
para instituir o ISS, esclarece que tal raciocínio não é correto, posto que não há que se
falar em supremacia quando o assunto é competência. “Esta, pura e simplesmente,
existe ou não existe, não comportando quantificação”.671
A competência tributária, no sistema tributário brasileiro, é exercida, via de
regra, pela lei ordinária da respectiva pessoa política, com obediência aos limites e
marcos estabelecidos rigorosa e exaustivamente na própria Constituição, não cabendo à
lei complementar exercer esse papel. Em outras palavras, a descrição legislativa da
regra-matriz de incidência, com suas respectivas hipótese de incidência e conseqüência
tributária, somente pode ser realizada pela pessoa de direito público interno que detém a
competência em cada caso, conforme a repartição traçada constitucionalmente.
À lei complementar, por outro lado, está reservada outra função, que, em linhas
gerais pode ser definida como sendo a de dispor sobre normas gerais de direito
tributário. As poucas exceções constitucionais tratam da exigência dessa espécie
normativa qualificada para a instituição de determinados tributos federais, como os
empréstimos compulsórios (artigo 148), o imposto sobre grandes fortunas (artigo 153,
VII), os impostos da competência residual da União (artigo 154, I), e as contribuições
sociais sobre outras fontes além das previstas (artigo 195, § 4º).
Não cabe à lei complementar, portanto, definir os limites da competência
tributária dos municípios, sob pena de converter-se uma Constituição rígida, quanto à
atribuição de competência tributária, em Constituição flexível, o que ocorreria pela
delegação à União Federal da possibilidade de delimitar a materialidade objeto da
competência municipal, o que resultaria em descaracterização da peculiar função da lei
complementar.672
Conclui-se, então, que a delimitação da competência tributária municipal, no
que diz respeito ao ISS, é obtida mediante exclusão, pois os municípios podem tributar
todos os serviços que não estejam na competência dos estados, que, nesse caso, são
previstos de forma taxativa. O mandamento constitucional em tela dirige-se não só ao
671
Lei complementar..., op. cit., p. 185.
257
legislador municipal, como também ao complementar, pois do contrário a dicção do
dispositivo “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II”,
seria desprovida de sentido, o que não se pode admitir.
Mas disso não resulta a conclusão de que o município só tributa serviços
remanescentes dos serviços tributáveis pelos estados-membros, pois tal afirmação tem
por base elementos substanciais dos serviços. Ou seja, há o serviço visto sob uma
perspectiva jurídico-tributária, assim como há os serviços que substancialmente ocorrem
no mundo dos fatos. Juridicamente, portanto, afirmar que os serviços tributáveis pelos
municípios são os remanescentes dos tributáveis pelos estados-membros é o mesmo que
afirmar que os estados-membros só tributam os serviços remanescentes dos municípios.
“Serviços
ontologicamente
considerados
não
se
confundem
com
serviços
deontologicamente normatizados”.673
Como conseqüência do que até aqui foi dito, a lei complementar, ao definir os
serviços tributáveis pelos municípios, não tem por função limitar a competência
tributária municipal, que é plena e sem espaços a serem preenchidos pela lei
complementar que, ao definir os serviços passíveis de tributação pelos municípios,
estabelece normas sobre tributação e não normas tributárias, porque esses serviços são
definidos em regras materiais sobre competência, as quais exercitam, nessa seara, a
competência na sua integridade original, conforme os ditames constitucionais e, por
essa razão, não limitável mediante lei complementar.674 Como bem resume GERALDO
ATALIBA, já há mais de vinte anos, é em virtude de “[...] uma infeliz interpretação
literal”, e, o mais grave, um evidente “[...] menoscabo pela autonomia municipal”, que
vem prevalecendo na doutrina certa corrente que entende que os municípios só podem
tributar os serviços previstos em lei complementar da União. 675
Noutro giro, a insistência de parte da doutrina em aceitar a possibilidade de a
lei complementar, de que trata o inciso III do artigo 156 da Constituição, definir, de
forma discricionária, quais são os serviços tributáveis pelos municípios, tem também
parte de sua origem na indevida recepção de teorias sobre o “Imposto sobre o Valor
Agregado”, o “IVA”, oriundas de países europeus integrantes, à época, do “Mercado
Comum Europeu”, onde o trabalho final elaborado pelas comissões criadas pelos países
integrantes dessa comunidade européia resultou em uma lista dos bens tributáveis.
672
Ibidem, p. 186.
BORGES, José Souto Maior. Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 10
674
BORGES, José Souto Maior. Lei complementar..., op. cit., p. 187.
673
258
A doutrina produzida nesses países europeus sobre o tema, nos âmbitos
econômico e financeiro, foi de extrema qualidade científica, o que acabou por
impressionar de forma relevante também a doutrina brasileira, em especial os juristas
GILBERTO DE ULHÔA CANTO e RUBENS GOMES DE SOUSA, que participaram
da elaboração da Emenda Constitucional nº 18/65, que inseriu o ISS e o ICM – hoje
ICMS, após a Constituição Federal de 1988 – no texto constitucional. No Congresso
Nacional, o então deputado federal e jurista ALIOMAR BALEEIRO esteve à frente dos
trabalhos para a aprovação da Emenda nº 18/65.
Também foram influenciados pela doutrina estrangeira sobre o IVA os
economistas MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN e o então Ministro da Fazenda
OCTÁVIO GOUVÊA DE BULHÕES. Após a emenda entrar em vigor, os legisladores
municipais passaram a efetivamente instituir esses impostos, mas, empolgados com o
sistema desenvolvido de forma peculiar para os países do Mercado Comum Europeu,
acabaram por não dar a devida atenção à própria Constituição.676
A principal razão para o erro de aplicar as noções do Direito Comparado, nesse
caso, resultou do fato de os países integrantes da comunidade européia, com exceção da
Alemanha, serem estados unitários, não havendo, portanto, dispositivo que preveja a
autonomia municipal em seus respectivos sistemas jurídicos da forma como esse
princípio é estruturado em nossa Constituição. Quanto à Alemanha, apesar desse país
constituir uma federação, ela é substancialmente diferente do modelo federativo
existente no Brasil, onde, dentre outras coisas, o exercício de certa competência pelo
governo central tem o condão de “cortar” a competência municipal.
Em nosso sistema, ao contrário, a autonomia municipal é princípio de elevado
valor jurídico, o que se verifica pela sanção de intervenção federal, aplicável no caso de
sua inobservância pelos estados, conforme estatui o artigo 34, VII, “c”, da Constituição
Federal. Dessarte, como a autonomia municipal não sobrevive sem o livre exercício da
competência tributária outorgada pela Carta Constitucional, dessume-se ser absurdo
lógico-jurídico entender pela legitimidade de mera lei complementar que pretender
restringir o alcance da expressão “serviços de qualquer natureza”, constante na
Constituição em seu artigo 156, III.677
675
Imposto Sobre Serviços..., op. cit., p. 68-69.
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na constituição..., op. cit., p. 103-104.
677
Ibidem, p. 105-106.
676
259
A lei complementar, por ser norma editada pelo legislativo da União Federal –
pessoa de direito público interno situada no mesmo nível hierárquico dos Estados,
Distrito Federal e Municípios – busca, como as leis dos demais entes políticos, o seu
fundamento de validade, formal e material, diretamente na Constituição, e não em si
própria, do que resultará inconstitucional toda e qualquer lei complementar que, a
pretexto de cumprir o desiderato previsto na parte final do inciso III do artigo 156,
definir quais são os serviços tributáveis pelos municípios, mas impedindo,
simultaneamente, que eles elejam como materialidade do ISS outros serviços não
compreendidos nessa lei, salvo, é óbvio, os serviços tributáveis pelos estados e Distrito
Federal através do ICMS.
Como já se afirmou acima, os limites de aplicação da legislação complementar
devem ser visualizados sob o prisma do Princípio da Autonomia Municipal, norma
obtida pela inteligência dos seguintes dispositivos constitucionais: artigo 18, caput;
artigo 30, incisos I a IX; artigo 34, VII, “c”. Esse pensamento foi defendido, com
propriedade, por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, ainda sob a égide do ordenamento
jurídico anterior, o que não retira a sua consistência, pois os fundamentos jurídicos, na
atual Constituição, são equivalentes. Esse jurista defende que a competência exclusiva
dos Municípios para instituir o ISS está compreendida no dispositivo constitucional do
“[...] peculiar interesse municipal” – artigo 15, II, da Constituição Federal de 1969, e
no artigo 30, inciso I, da Constituição Federal de 1988 – “[...] que é afinal um prérequisito para a efetivação da autonomia do Município na gestão dos seus próprios
negócios e interesses”, pois não há autonomia política e administrativa sem autonomia
financeira.678
Como conseqüência, se os Municípios são autônomos para legislar sobre os
tributos de sua competência privativa, tendo como fundamento de validade para tanto
única e exclusivamente o que dispõe a própria Constituição, poder-se-ia concluir como
de caráter excepcional, no sistema, um dispositivo constitucional que confere à União
Federal competência para, por meio de lei complementar, definir quais são os serviços
tributáveis pelos Municípios.
O autor citado demonstra que esse argumento toma como ponto de partida uma
falsa premissa, pois uma regra como essa representa somente uma espécie do gênero
“normas gerais de direito tributário”, devendo ser interpretada em harmonia com os
678
Lei complementar..., op. cit., p. 187-188.
260
demais princípios constitucionais, inclusive com o cânone da autonomia municipal, que
se constitui em “[...] direito público subjetivo dos Municípios, oponível à União e aos
Estados”.679 Assim, uma leitura apressada da segunda parte do inciso III do artigo 156
poderia levar a crer que a competência da União para, mediante lei complementar,
definir os serviços tributáveis pelos Municípios, importaria em derrogação da
privatividade na repartição constitucional de competências tributárias, como se esse
dispositivo veiculasse regra de caráter excepcional no sistema, contrário ainda ao
Princípio da Autonomia Municipal.
Contudo, “[...] o argumento envolve mais que uma petição de princípio,
porque toma como ponto de partida uma premissa falsa”, pois “[...] o artigo 156, III,
in fine, nada tem de excepcional no sistema da Constituição, porque contempla apenas
uma hipótese específica do cabimento de norma geral de direito tributário,
genericamente prevista no artigo 146, III. A relação que este guarda com o artigo 156,
III, in fine, é simplesmente relação de gênero para com espécie...”.680 Disso decorre que
a lei complementar do artigo 156, III, não está submetida a regime jurídico diverso do
previsto para qualquer outra norma geral de Direito Tributário, editada com base no
artigo 146 da Constituição, assim como a União não estaria impedida de estabelecer
norma geral de Direito Tributário dessa espécie, caso inexistisse a previsão da lei
complementar no artigo 156, III.681
Ora, se não constitui regra de caráter excepcional, deve o dispositivo em
análise ser interpretado em harmonia com o contexto constitucional, onde o Princípio da
Autonomia Municipal, por se erigir em direito público subjetivo dos municípios alçado
à categoria de verdadeiro e legítimo princípio constitucional, será a norma superior a
informar o sentido e a inteligência da simples regra prevista no artigo 156, III, da
Constituição. Somente após esse labor hermenêutico é que se poderá concluir de que
forma os Municípios estão sujeitos à observância dos serviços definidos em lei
complementar, “[...] não por uma eficácia superior dessa, mas por efeito da sistemática
adotada na própria Constituição”.682
Da mesma forma, à lei complementar está vedado legislar sobre tributo que
esteja reservado ao campo exclusivo da lei municipal, pois, do contrário, restaria
679
Ibidem, p. 188-189.
BORGES, José Souto Maior. Aspectos Fundamentais ..., op. cit., p. 10.
681
Ibidem, p. 25.
682
Ibidem, p. 14.
680
261
violada a distribuição constitucional das competências tributárias. A competência da
União, assim, está adstrita à expedição de normas gerais de direito tributário,
definidoras dos serviços tributáveis pelos municípios, sem que tal lei complementar
possa limitar o que já dispõe a Constituição Federal sobre o assunto, pois o conteúdo da
lei tributária municipal tem como fundamento de validade a Constituição Federal, nunca
a lei complementar.683
Disso resulta que a função dessa lei complementar é somente a de definir os
serviços tributáveis pelos municípios, mas, advirta-se que, definir serviços não pode ser
entendido como definir a hipótese de incidência, posto que essa função foi reservada
pela Constituição expressamente à lei tributária material aprovada pelo legislativo
municipal, o que inclusive é ratificado pelo artigo 97, III, do Código Tributário
Nacional, recepcionado pelo atual ordenamento jurídico. Entretanto, a vedação de
definir a hipótese de incidência por lei complementar não decorre da proibição
constitucional que impede que o tributo seja criado por essa espécie normativa, pois a
definição do suposto, tão-somente, não é bastante para tanto, sendo necessário que, além
disso, sejam positivados os elementos hábeis a identificar a relação jurídica tributária. 684
Quando o artigo 156, III, da Constituição, estabelece que os serviços passíveis
de tributação pelos municípios, através do ISS, serão aqueles “definidos em lei
complementar”, está prescrevendo que essa lei complementar tem por objeto identificar
os ditos serviços, nunca, no entanto, criá-los de forma inovadora, original, porque os
limites dirigidos ao legislador municipal já se encontram previstos de forma suficiente
na própria Constituição, quando afirma, no mesmo inciso III do artigo 156, que os
serviços serão aqueles “[...] não compreendidos no artigo 155, II”, ou seja, os
municípios poderão instituir o ISS sobre quaisquer serviços, com exceção dos afeitos à
competência dos Estados, quais sejam os serviços de transporte intermunicipal e de
comunicação. Com efeito, da mesma forma que a Constituição limita o âmbito material
da lei complementar, também o faz em relação à lei ordinária municipal. 685
Noutro giro, tem-se que o inciso III do artigo 156 da Constituição, na ausência
da lei complementar de que trata esse artigo, é auto-aplicável, pois a competência dos
municípios não pode ficar, nessa hipótese, condicionada á existência da referida norma.
Entretanto, com a superveniência da lei complementar definidora dos serviços, a
683
BORGES, José Souto Maior. Lei complementar..., op. cit., p. 190.
Ibidem, p. 195.
685
Ibidem, p. 195-196.
684
262
legislação municipal, na parte que com ela conflitar, perderá sua eficácia, não em razão
de uma pretensa superioridade hierárquica ou eficacial, mas tão-somente pela
privatividade da competência da União para definir tais serviços, em uma específica
manifestação da legitimidade da União para editar normas gerais de direito tributário.686
Uma das principais conseqüências de considerar a lei complementar do artigo
156, III, da Constituição como sendo “norma geral de direito tributário”, está em que, na
sua ausência, a eficácia da lei municipal sobre o ISS não é passível de nenhuma
limitação, ainda que ensejadora de eventuais conflitos de competência tributária. Com
isso, conclui-se pela inconsistência da tese daqueles que defendem ser o inciso III do
artigo 156 uma norma constitucional de eficácia limitada, pois caso assim fosse, no
silêncio da União em editar a referida lei complementar, estariam os municípios
impossibilitados de exercer sua competência no que toca à prestação de serviços, o que
se revela como absurdo jurídico, em face do condicionamento da eficácia de um
princípio constitucional – Autonomia Municipal – à discricionária edição de uma norma
pela União Federal.
Na análise da Constituição anterior, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES via o
artigo 24, II, como um dispositivo constitucional de eficácia contida, conforme a
classificação de JOSÉ AFONSO DA SILVA687; pois a competência a ser então exercida
pelos municípios era passível tão-somente de contenção pela eventual superveniência de
lei complementar que venha a definir os serviços tributáveis pela via do ISS.688
Atualmente, partindo da premissa de que o artigo 156, III, da Constituição
encerra duas normas distintas, conclui o autor que cada uma delas possui eficácia
distinta. A primeira, que outorga competência aos municípios para instituir o imposto
sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência dos estados,
seria norma de eficácia plena, imediatamente executável, prescindindo da
superveniência de lei complementar. A segunda, que atribui competência à União
Federal para, mediante lei complementar, definir quais são esses serviços, assim como
ocorre com qualquer outra norma geral de Direito Tributário, é norma de eficácia
limitada, cabendo à lei complementar integrar a eficácia do preceito.689
686
BORGES, José Souto Maior. Aspectos Fundamentais ..., op. cit., p. 21-22.
Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 81-87.
688
Lei complementar..., op. cit., p. 201-202.
689
Aspectos Fundamentais ..., op. cit., p. 28-29.
687
263
Conforme já foi explicitado no item alusivo às normas gerais de Direito
Tributário, as leis complementares que tenham como destinatários todas as pessoas
políticas, ou mesmo toda uma classe de pessoas políticas, como é o caso dos
municípios, será inequivocamente uma norma geral em matéria tributária, esteja ou não
tal previsão inserida no inciso III do artigo 146 da Constituição, único que, literalmente,
dispõe sobre tais hipóteses.
Com efeito, a lei complementar a que se refere o inciso III do artigo 156 da
Constituição, por ter seu âmbito de eficácia dirigido a todos os municípios, e também
aos estados-membros e à União Federal – para que respeitem o campo de tributação
municipal – identifica-se plenamente como sendo norma geral de Direito Tributário, da
espécie subsumível ao inciso I do artigo 146 da Constituição, o qual estabelece caber à
lei complementar “dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre
a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”.
O que se quer defender é que a lei complementar em apreço, que venha a
definir os serviços tributáveis pelos Municípios, somente pode ter como objetivo,
constitucionalmente delineado, o de dispor sobre eventuais conflitos que possam surgir
com outras pessoas políticas, em virtude de um eventual erro sobre a conceituação de
um determinado fato, deslocando-o indevidamente para a esfera tributária de ente
político incompetente.
Enfatiza-se o vocábulo “dispor”, pois o mesmo não significa “solucionar”,
“dirimir”, “resolver”, tarefas que cabem ao Poder Judiciário, quando provocado. Esse
é o entendimento de GERALDO ATALIBA, para quem “[...] só nestes casos tem
cabimento a lei complementar”, do que resulta a conclusão lógica de que ela não é
sempre necessária, tendo função excepcional. Fora desses casos, os municípios são
livres para criar e disciplinar o ISS apenas com os limites constitucionais.690
Por exemplo, caso uma prestação de serviço fosse incorretamente conceituada
como operação de industrialização por lei ordinária da União Federal, caracterizando-a
como hipótese de incidência do IPI e não do ISS. Nesse caso, a lei complementar teria
lugar, dispondo que a operação em si não configura industrialização, mas sim prestação
de serviço, predominando a obrigação de fazer, ao invés da obrigação de dar. Como
exemplo, pode-se citar o item 14.04 da lista anexa à Lei Complementar nº 116, de 31
jul. 2003, que define a operação de “recauchutagem ou regeneração de pneus” como
690
Imposto Sobre Serviços..., op. cit., p. 78.
264
sendo serviço tributável pela via do ISS, o que retira a competência da União Federal
em pretender tributar tal fato pelo IPI, como se de operação de industrialização se
tratasse.
É óbvio que, por força maior da autonomia das pessoas políticas, seja
decorrente do Princípio Federativo, seja do primado da Autonomia Municipal, essa lei
complementar não pode ser, como de fato não o é, o fundamento de validade da lei
ordinária oriunda de cada pessoa política, que efetivamente vem a criar o tributo, pois
elas buscam sua legitimidade diretamente da Constituição. Com efeito, na hipótese de a
lei complementar em comento dispor de forma incorreta, contrariando a inteligência
constitucional, força é concluir que não poderá obrigar nenhuma das pessoas políticas
destinatárias, e com muito mais razão não poderá vincular o Poder Judiciário, que é a
esfera estatal a quem compete, em definitivo, compor os conflitos, aí incluídos os de
competência tributária.
Portanto, ainda que de uma interpretação rasa do artigo 146 e seus incisos I, II
e III, da Constituição Federal, possa resultar a precipitada conclusão de que lei
complementar veiculadora de normas gerais de Direito Tributário somente é a de que
trata o seu inciso III, estamos certos de que qualquer lei complementar de que fala o
caput desse artigo, que vier a ser editada, somente poderá dispor sobre normas gerais
em matéria de legislação tributária, as quais ou disporão sobre conflitos de competência
em matéria tributária, ou regularão as limitações constitucionais ao poder de tributar. 691
Esse é o pensamento de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, para quem “[...] só
na área de atritos eventuais entre o imposto de serviços e impostos de competência
alheia [...], ou seja, no âmbito material sujeito a conflitos de competência tributária, é
que caberá a definição pela União dos serviços submetidos ao imposto municipal”,
âmbito esse chamado de zona cinzenta, interpenetrável por mais de um tributo. E
complementa o autor: “Só nessa hipótese é constitucionalmente autorizada a edição de
lei complementar a qual terá por função ‘definir’ ou regular uma limitação
constitucional ao poder de tributar (vale o mesmo que dizer: ‘completar’ a
Constituição)”.692 Mais recentemente, o autor, defendendo uma proposta unificadora
das chamadas teorias dicotômica e tricotômica, passou a afirmar que é uma só a função
da norma geral de Direito Tributário: “[...] regular a legalidade, a norma geral, e a
sobrenorma disporá sobre a legalidade tributária. [...] Não sobre a legalidade
691
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 805.
265
tributária toda, porque a norma geral deve conviver com as normas tributárias
editadas pelas pessoas constitucionais”.693
AIRES BARRETO defende posição interessante sobre o alcance da lei
complementar de que trata o inciso III do artigo 156 da Constituição. Partindo da
premissa de que a regra para tributar serviços está na competência municipal, pois
compreende “serviços de qualquer natureza”, e de que a exceção se encontra na
competência estadual – serviços de transporte intermunicipal, interestadual e de
comunicação – conclui que a lógica constitucional está em que o papel da lei
complementar em comento não pode ser outro senão o de definir a exceção, ou seja,
definir quais os serviços não são tributáveis pelos Municípios. Nesse sentido, tal lei
definiria, além dos dois serviços de competência estadual, aquelas operações que, não
obstante parecerem serviços – pelo menos na visão dos leigos – constituem, na verdade,
operações mercantis, ou também, as industriais. Argumenta o autor que a “definição”,
por lei complementar, de serviços tributáveis pelos Municípios, viola o Princípio da
Autonomia Municipal, pois, na sua ausência, os municípios ficariam inibidos de
instituir e arrecadar os tributos de sua competência, o que, de resto, é garantido pelo
artigo 30 da Carta Constitucional.694
Concorda-se, em parte, com as argumentações expendidas por esse autor, no
sentido de que mais eficaz e simples é a conclusão que vê na lei complementar em
comento a tarefa de definir, em relação aos serviços, quais são as exceções, ou seja,
quais são as materialidades não passíveis de tributação pelo ISS municipal. Mas, por
outro lado, entende-se ser possível que a lei complementar defina os serviços tributáveis
pelos municípios e ainda assim respeite os ditames constitucionais, desde que, por
exemplo, a clássica lista tenha conteúdo não restritivo do conceito constitucional de
serviço tributável pelo ISS, criada, inclusive, visando implementar outros vetores
previstos na Lei Maior, o que pode ser feito, por exemplo, com uma coerente
distribuição dos serviços em itens graduados conforme a capacidade contributiva de
cada um.
É que, ao lado da inequívoca redação do inciso III do artigo 156, entende-se
que a competência para a lei complementar definir os serviços tributáveis pelos
692
Lei Complementar..., op. cit., p. 203.
Normas Gerais do Direito Tributário, Inovações no seu Regime na Constituição de 1988. Revista de
Direito Tributário, n. 87, p. 70.
694
ISS na Constituição..., op. cit., p. 40-41.
693
266
municípios não é necessariamente excludente da eficácia do Princípio da Autonomia
Municipal, desde que, advirta-se, tal definição tenha conteúdo meramente declaratório
da essência constitucional, sendo tal lei editada única e exclusivamente com vistas a
facilitar, e não condicionar a aplicação do dispositivo constitucional outorgador da
competência municipal, mesmo porque, como já se defendeu alhures, esse dispositivo é,
na ausência de lei complementar, de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
Existindo a lei complementar definidora dos serviços, esse dispositivo será de
eficácia contida, desde que, esta lei complementar, na qualidade de norma geral de
Direito Tributário criada para dispor sobre conflitos de competência, não preveja outra
coisa senão a realização plena do dispositivo constitucional que outorga a competência
tributária aos municípios. Não se pode negar, entretanto, que muito mais lógico e eficaz
seria definir as exceções dos serviços não tributáveis pelos municípios.
A exigência da interpretação sistemática, como já foi dito, está em aplicar
qualquer dispositivo jurídico, inclusive os previstos na própria Constituição, levando-se
em consideração todo o restante do ordenamento jurídico, mas sempre conferindo
relevância hermenêutica às normas jurídicas que, por protegerem os mais altos valores
consagrados pela Constituição, revelam verdadeiros princípios. O texto constitucional
não abrange, ipso facto, normas de idêntica hierarquia, devendo, as normas de
hierarquia inferior, ser interpretadas conforme as diretrizes axiológicas e ideológicas
positivadas nas normas de hierarquia superior.
Aplicando-se esse raciocínio ao caso em tela, conclui-se que a prescrição
existente no inciso III do artigo 156, da Constituição, não possui uma carga axiológica
suficiente em si mesma, mas tal norma é antes “imantada” pelas exigências do cânone
da Autonomia Municipal, norma de maior valor de onde retira a sua juridicidade e,
como conseqüência, a sua finalidade no contexto constitucional. Verifique-se, ainda,
que a expressão “definidos em lei complementar” nem mesmo possui, ao menos de
forma expressa, qualquer sanção pela sua inobservância. Ou seja, não estão os
Municípios impossibilitados de exercer a sua competência na ausência de lei
complementar definidora dos serviços tributáveis.
AIRES BARRETO tem entendimento pelo qual a maior eficácia da lei
complementar, no sentido de proporcionar uma redução na margem de equívoco
interpretativo quanto aos artigos que discriminam as competências tributárias dos
estados, Distrito Federal e municípios, seria obtida caso ela tivesse por conteúdo a
definição dos serviços não tributáveis pelos municípios, sejam os de competência dos
267
estados e Distrito Federal pela via do ICMS, sejam os demais serviços não
subentendidos no conceito constitucional, como é o caso, por exemplo, dos serviços
públicos, dos serviços prestados mediante relação de emprego etc.695
Após a análise da doutrina sobre o tema, entende-se, por fim, que a única
interpretação possível para a lei complementar de que trata do inciso III do artigo 156
da Lei Maior, é a que a considera como uma norma geral de Direito Tributário aquela
que, no contexto do artigo 146, também da Constituição, somente pode ter por objetivos
“regular as limitações constitucionais ao poder de tributar” ou “dispor sobre conflitos
de competência em matéria tributária”, conforme defende MARCELO CARON
BAPTISTA.696
4.3.1.4 A Lista de serviços
Conforme foi visto no item anterior, dispõe o artigo 156, III, da Constituição
Federal, que lei complementar definirá os serviços tributáveis pelo ISS, o que se
convencionou positivar através da conhecida “lista de serviços”. Essa lista, que adveio
originalmente com o Decreto-lei nº 406/68, e atualmente é definida pela Lei
Complementar n° 116, de 31 jul. 2003, passou a ser defendida por muitos autores como
sendo taxativa, fora da qual os municípios não poderiam tributar outros serviços, ainda
que não estivessem na competência das outras pessoas políticas. Nessa linha destaca-se
o entendimento de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, para quem a lista de serviços
baixada por lei complementar, por imperativo de ordem constitucional, é taxativa,
tendo, com efeito, função limitativa, restritiva, contendo as únicas atividades sujeitas ao
ISS.697
Em obra editada ainda sob a égide da Constituição anterior, MARILENE
TALARICO MARTINS RODRIGUES defende que a razão de a lista ser taxativa ou
exaustiva está no fato de o legislador do Decreto-lei nº 406/68 ter se preocupado, na
definição do “fato gerador” do ISS, em disciplinar o conceito de serviços. 698 Com a
devida vênia, quer parecer que a definição do conceito constitucional de serviço
tributável pelo ISS não tem por pressuposto lógico a existência de uma lista, criada com
a pretensão de exaurir as espécies de serviços que se subsumam àquele conceito.
695
Ibidem, p. 41.
ISS..., op. cit., p. 236.
697
Doutrina..., op. cit., p. 108.
696
268
Uma coisa é definir o conceito de serviço, labor legitimamente complementar
da Constituição, outra é identificar atividades cuja essência jurídica coincida com aquele
conceito, tarefa que somente pode ser realizada pelo legislador municipal, sob pena de
violação ao Princípio da Autonomia Municipal. Para ALIOMAR BALEEIRO, em
entendimento híbrido, apesar de ter defendido ser a lista taxativa, esta comportaria
interpretação analógica, o que estenderia a competência municipal aos serviços
assemelhados aos constantes da lista.699 A jurisprudência inclinou-se no sentido de ser a
lista numerus clausus, variando apenas o entendimento sobre a possibilidade dos seus
itens comportarem interpretação ampla, extensiva ou analógica.
O primeiro raciocínio a combater a taxatividade da lista, da forma como vinha
sendo defendida, deve-se ao então procurador do município de São Paulo, ARTHUR
CARLOS A. PEREIRA GOMES, o qual defendeu que a taxatividade somente
alcançaria a chamada zona cinzenta, na qual estariam compreendidas as chamadas
“atividades-mistas”, campo onde os atritos entre o então ICM e o ISS seriam mais
freqüentes. Dessa forma, permaneceriam no campo do ISS os serviços “puros”, que não
constituíssem hipótese de incidência de imposto federal ou estadual. 700
Esse entendimento representou valiosa contribuição, por ter sido precursor em
ver na lista de serviços a função mais compatível aos desígnios constitucionais, ou seja,
a de “dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária”, o que, em última
análise, nada mais é do que regular uma limitação constitucional ao “poder de tributar”,
pois a competência de um ente político tem a competência alheia como limite
constitucional inviolável.
AIRES BARRETO lembra que a interpretação que conclui pela taxatividade da
lista, veiculada por lei complementar, tem inibido em muito a competência municipal
em matéria de ISS, levando os municípios a não tributarem uma série de serviços
passíveis de serem gravados por esse imposto: “De fato, os Municípios não estão
gravando uma vasta gama de atividades que configuram serviço e que a Constituição
colocou sob o seu manto”. Essa situação decorre de duas possíveis razões. A primeira
refere-se aos casos de leis municipais, instituidoras do ISS, que se autolimitaram
mediante a cópia da lista estabelecida pela lei complementar. A segunda diz respeito às
hipóteses de leis municipais que, apesar de conterem um item genérico, pelo qual são
698
699
Imposto sobre serviços..., op. cit., p. 43.
Direito Tributário..., op. cit., p. 500-501.
269
tributáveis “quaisquer outros serviços, não compreendidos nos itens anteriores”, não
executam esse dispositivo em face do atual posicionamento do Poder Judiciário que, na
esmagadora maioria dos casos, entende pela taxatividade da lista. 701
GERALDO ATALIBA, partindo do pressuposto de que a lei complementar em
comento só pode atuar de modo excepcional nos casos em que seja necessário regular
limitações constitucionais ao “poder de tributar” ou dispor sobre conflitos de
competência, conclui que a lista, caso existente, nem mesmo pode ser tida como
exemplificativa, podendo servir tão-somente como sugestão, onde e quando os seus
itens não tenham pertinência com o campo de conflito, a chamada área cinzenta.702
Esse também é o entendimento de HERON ARZUA que, após definir os estreitos
limites em que pode atuar a lei complementar em matéria tributária, pondera que, tendo
em vista a fixação de serviços que dispõe o artigo 156, III, da Constituição, e em
especial “[...] o asserto que a legislatura, subserviente ao princípio da autonomia
municipal, não pode amputar a competência atribuída pela Constituição, a nossa
compreensão é a de que, se a definição vier consubstanciada em lista, como sói ocorrer
atualmente, ela só pode ser meramente sugestiva”.703
Uma das melhores análises sobre o tema coube a JOSÉ SOUTO MAIOR
BORGES. Partindo de uma interpretação sistemática, seu entendimento teve como
fundamento os seguintes princípios: (a) rigidez da discriminação constitucional de
competências tributárias, do qual resulta que a materialidade do ISS deve ser buscada
na própria Constituição e não pode ser reduzida por lei de hierarquia inferior, haja vista
ser a regra da competência uma norma jurídica plenamente aplicável e auto-executável,
e não uma norma de eficácia limitada; e (b) autonomia municipal, pois dela resulta que
nenhuma pessoa política, nem mesmo a União – ainda que por lei complementar – pode
interferir nos assuntos de interesse exclusivo dos municípios. Prova disso está em que,
caso a União não aprovasse essa lei complementar, é pressuposto lógico-jurídico que os
Municípios não ficariam tolhidos quanto à instituição do ISS.704
MARÇAL JUSTEN FILHO prestigiou incondicionalmente o raciocínio do
jurista recifense, acrescendo que a apontada lei complementar se trata de norma geral de
700
Imposto municipal sobre serviços: taxatividade parcial da lista. Revista de Direito Público, n. 20, p.
338.
701
ISS na Constituição..., op. cit., p. 114-115.
702
Imposto sobre serviços..., op. cit., p. 88.
703
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 150.
704
Lei Complementar..., op. cit., p. 185-206.
270
Direito Tributário, editável pela União ainda que inexistisse a previsão específica do
artigo 24, II, da Constituição Federal de 1967, vigente à época, prevista de forma
equivalente, na atual Constituição, no inciso III do artigo 156, dispositivo que veicula
norma constitucional de eficácia contida – “redutível”, na expressão do autor – “[...]
pois norma geral de Direito Tributário não se destina a ampliar a eficácia ou a dar
eficácia a normas constitucionais – antes, a reduzir a eficácia delas”. Como conclusão,
defende que a definição de serviços pela União somente tem cabida na chamada zona
cinzenta, interpenetrável por tributos diversos. Fora da zona cinzenta, a lei
complementar não poderia ser taxativa nem exemplificativa, pois nessa área não cabe a
ela dispor de nenhuma forma.705
Em estudo realizado já sob a égide da atual Constituição, MARÇAL JUSTEN
FILHO esclarece que a nova ordem constitucional exige nova interpretação para o tema,
haja vista a interpretação que prevaleceu na jurisprudência se ter alicerçado em alguns
pressupostos que perderam assento na Constituição de 1988. A atual Carta
Constitucional, ao determinar que a República Federativa do Brasil é “[...] formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal” (artigo 1º); e
que “[...] a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos,
nos termos desta Constituição” (artigo 18); extinguiu qualquer possibilidade de invocar
um papel menor para os municípios, como era conclusão corrente quando do
ordenamento jurídico anterior, o que se ilustra com a extinção da anterior possibilidade
– artigo 19, § 2º da Constituição Federal de 1969 – de a União instituir as chamadas
“isenções heterônomas”.706 O artigo 151, III, da Constituição de 1988, inclusive,
reiterou essa impossibilidade, ao prescrever que “É vedado à União [...] instituir
isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos
Municípios”.
Equivale a dizer que a União Federal, a partir da Constituição de 1988, não está
mais autorizada a reduzir a amplitude da competência tributária municipal, a qual já é
estabelecida em nível constitucional. A dicção do inciso III, a, do artigo 146 da
Constituição, também não autoriza a concluir pela possibilidade de a União, através de
lei complementar, definir os “fatos geradores” dos impostos de forma genérica e
705
706
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 99-100.
O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-Lei nº 406. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 3,
p. 67-68.
271
absoluta, pois o exercício da competência em relação às normas gerais só é legítimo
quando não se afigura possível extrair uma solução segura diretamente da Constituição.
Com exclusão desses casos, a lei complementar será inócua e ofensiva ao pacto
federativo e à Autonomia Municipal.
Em estudo mais recente, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, partindo da
premissa de que a lei definidora dos serviços constitui-se em norma geral de Direito
Tributário, conclui que essa lei complementar não poderá ter outro conteúdo senão o de
regular limitação constitucional ao “poder de tributar”, mediante a definição dos
serviços situados na chamada zona cinzenta, interpenetrável por tributos diversos.
Noutro giro, conclui que o entendimento pela taxatividade da lista resulta de
uma indevida utilização do argumento “a contrario sensu”, que parte da literalidade do
preceito “[...] o ISS tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista
anexa”, o que resulta na intributabilidade dos serviços não constantes da lista,
interpretando restritivamente não só os casos previstos, como os não listados. Ora, os
serviços não listados, à luz do contexto constitucional, constituem apenas e tão-só
hipóteses imprevistas, casos não regulados, em sede de normas gerais, com o que “[...]
a doutrina transformou a imprevisão legal numa previsão ficta pela via interpretativa”.
Com efeito, o argumento a contrario somente seria legítimo se a fórmula legal tivesse o
seguinte teor: “o ISS tem como fato gerador somente a prestação de serviços constantes
da lista anexa”, ou seja, quando a norma, expressa ou implicitamente, limita a
aplicabilidade de sua disposição a determinada classe de pessoas ou do estado de fato, o
que se obteve com o acréscimo do advérbio “somente” no texto legal hipotético. A
formulação “se A então C”, não autoriza o intérprete a concluir que “se não-A, então
não-C”. Caso a fórmula fosse “Se somente A, então C”, aí sim seria válida a
interpretação de que “se não-A, então não-C”.707
Amparado em CARLOS MAXIMILIANO, o referido autor sustenta que o
argumento “a contrario”, baseado, entre outras, na regra “inclusio unius fit exclusio
alterius”, ou seja, a inclusão de uma categoria implica na exclusão de quaisquer outras,
apesar de já muito prestigiado em outros tempos, hoje é malvisto pela doutrina e pouco
utilizado pela jurisprudência, cabendo, em seu lugar, a parêmia oposta “positio unius
non est exclusio alterius”, pela qual a especificação de uma hipótese não redunda em
exclusão das demais. O campo de aplicação do argumento “a contrario”, ensina o
707
Aspectos Fundamentais..., op. cit., p. 32.
272
autor, é o direito excepcional, o que não é o caso das normas gerais de Direito
Tributário, dentre as quais se insere a lei complementar de que trata o artigo 156, III, da
Constituição.708
Ainda o mesmo autor, no que foi secundado por MARÇAL JUSTEN FILHO,
demonstra a contento que, a priori, não podem ser descartadas as alternativas opostas da
exemplificatividade ou da taxatividade da lista de serviços, porque nenhuma das duas
soluções técnicas seria conflitante com a sistemática constitucional. 709 A questão,
defende o autor, deve ser analisada à luz do direito positivo, o que implica concluir que
a solução somente poderá advir da consulta à lei complementar efetivamente positivada.
Ou seja, a taxatividade da lista será legítima se e somente quando a respectiva lei
complementar tiver sido editada em respeito aos ditames constitucionais. Por outro lado,
caso essa lei possibilite interpretações distorcidas quanto aos limites da competência
municipal, há que se concluir pelo seu mero caráter exemplificativo.710
Em outra oportunidade mais recente, esclareceu o autor que a lista não poderia
jamais ser exaustiva em relação à competência municipal para a instituição do ISS. No
entanto, caso analisada sob o ângulo específico e exclusivo dos conflitos entre ISS e
ICMS, as listas previstas nos textos legais, desde o Decreto-lei 406/68 até a Lei
Complementar 116/2003, tiveram caráter exaustivo, “[...] porque não deixaram
juridicamente margem para o surgimento a posteriori de conflitos residuais entre esses
tributos”, ou seja, juridicamente, os conflitos entre ISS e ICMS tiveram sua forma de
composição exaustivamente prevista nos mencionados diplomas legais. A lista poderia,
também, ser tida como exemplificativa, desde que visualizada sob o ângulo da
competência tributária municipal, a qual não pode sofrer limites, ainda que parciais, em
nível infraconstitucional. Conclui o autor: “[...] inclusio unius (serviço constante na
lista), non fit exclusio alterius (serviço não constante na lista)”.711
Ainda que de acordo com os fundamentos desse autor, ousa-se discordar
parcialmente de algumas de suas conclusões. É que o eventual entendimento pela
taxatividade da lista, ainda que somente no campo dos conflitos entre ICMS e ISS,
tendo por fundamento uma questionável garantia de que em dado momento ela se ajusta
aos ditames constitucionais, é no mínimo temerária, pois, como se sabe, a evolução e a
dinâmica das atividades econômicas tem a capacidade de criar novas formas de
708
Ibidem, p. 33-35.
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 100.
710
Lei Complementar..., op. cit., p. 204.
709
273
prestação de serviços em um curto espaço de tempo, como ocorre, por exemplo, com as
atividades ligadas à informática e à cibernética.
Por outro lado, a exemplificatividade da lista parece ser solução ainda menos
feliz, pois do seu rol constam atividades econômicas que, como já demonstrado
anteriormente, não se subsumem ao conceito constitucional de serviços tributáveis pela
via do ISS, como é o caso do arrendamento mercantil (leasing), previsto no item 15.09
da lista anexa à Lei Complementar n° 116/2003.712
Para ROQUE ANTONIO CARRAZZA, o melhor raciocínio parece ser o que
defende ser a lista de serviços meramente sugestiva. Defende o autor que a lei
complementar de que trata o artigo 156, III, da Constituição, só pode veicular normas
gerais em matéria de legislação tributária, ou seja, “[...] só poderá dispor sobre
possíveis conflitos de competência entre o ISS e outros tributos – federais, estaduais ou
municipais – ou apontar as limitações constitucionais ao exercício da competência
para tributar por via de ISS”, fora desse campo não há espaço para a lei
complementar.713 Conclui, assim, em relação à lista, que “[...] ela contém sugestões que
poderão ou não ser seguidas pelo legislador municipal enquanto cria o Imposto Sobre
Serviços de Qualquer Natureza”.714
No mesmo sentido é o pensamento de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO:
como não se pode ignorar que a norma prevendo lei complementar para
‘definir os serviços de qualquer natureza’, tributáveis pelo ISS, deve possuir
um mínimo de eficácia; pode ser entendido que – sem prejudicar a
competência municipal – a ‘definição’ teria por escopo explicitar os serviços
a fim de evitar eventuais conflitos de competência em razão de
materialidades assemelhadas, afetas à União, Estados e Distrito Federal”. 715
Embora hajam fortes argumentos doutrinários para defender a não taxatividade
da lista, infelizmente o Poder Judiciário tem consagrado ser numerus clausus o rol dos
serviços constantes na lei complementar, certamente como resultado de uma equívoca
consolidação doutrinário-jurisprudencial, firmada após o advento da Emenda
Constitucional 18/65. Quando muito, as decisões admitem uma interpretação ampla ou
extensiva da lista, com vistas a abranger serviços idênticos aos expressamente previstos,
711
Aspectos Fundamentais..., op. cit., p. 36-37.
Vide supra, subitem 4.3.1.
713
Imposto sobre serviços. Revista de Direito Tributário, n. 48, p. 209-210.
714
Ibidem, p. 210.
715
ISS: aspectos teóricos e práticos, p. 52.
712
274
mas com denominação diversa, como ilustra este acórdão da 2ª Turma do STJ, da lavra
da Ministra ELIANA CALMON:
TRIBUTÁRIO – ISS – LISTA DE SERVIÇOS – A jurisprudência
sedimentada é no sentido de entender como taxativa a enumeração da lista de
serviços que acompanha a LEI COMPLEMENTAR 56/87. 2. Embora
taxativa, admite a lista interpretação extensiva para abrigar serviços idênticos
aos expressamente previstos, mas com diferente nomenclatura. 3. Tarifas em
cobrança, que se incluem na expressão "serviços prestados pela atividade
bancária" (item 95 da lista). 4. Recurso Especial improvido.716
JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, cujo trabalho sobre a lei complementar de
que trata o artigo 156, III, da Constituição, é dos mais consistentes, afirma que a posição
que defende serem intributáveis os serviços não listados, além de aplicar o argumento
“a contrario” em hipótese que nada tem de excepcional no sistema – normas gerais de
Direito Tributário – incorre ainda em uma petição de princípio ao defender como óbvia
ou comprovada uma premissa não demonstrada: a “taxatividade” da lista. Como uma
terceira crítica, ainda que essa tomada de posição não se apóie, em rigor, “[...] na
autoridade do argumento, senão no argumento da autoridade”, como é exemplo o
raciocínio de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, para quem a lista é taxativa “[...]
por imperativo de ordem constitucional”, e que a “maioria esmagadora dos autores
agasalham o mesmo ponto-de-vista”, sem, entretanto, ter esse autor consignado
qualquer fundamentação consistente para sua afirmação. 717
Recentemente, o comentário sobre a lista de serviços feita por MARCELO
CARON BAPTISTA parece ter sido o mais coerente com o papel da lei complementar,
no contexto da Constituição Federal de 1988. Defende o autor que a lista de serviços
não é taxativa, exaustiva, exemplificativa ou sugestiva, bem como descabe falar em sua
interpretação analógica, restritiva, limitativa, ampliativa ou extensiva. Afirma ainda que
a solução dos eventuais conflitos deve partir da própria Constituição, e não da lei
complementar, razão pela qual a lista não tem utilidade prática. 718 Acrescenta o autor:
A lista, portanto, é de observância obrigatória apenas naquilo que estiver em
sintonia com a Constituição Federal, servindo de instrumento para a
superação de supostos ‘conflitos de competência’ ou regulando ‘limitações
constitucionais ao poder de tributar’, o que em muito difere de entendê-la
como taxativa ou exaustiva. Por outro lado, não se lhe atribui qualquer
natureza exemplificativa ou sugestiva, porque não é tarefa do legislador
716
STJ – RESP 567592 – PR – 2ª T. – Relª Min. Eliana Calmon – DJU 15.12.2003 – p. 00300 –
Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
717
MORAES, Bernard Ribeiro de. Doutrina..., op. cit., p. 108-109; BORGES, José Souto Maior.
Aspectos Fundamentais..., op. cit., p. 36.
718
ISS..., op. cit., p. 235-236.
275
complementar dar exemplos ou sugerir algo a quem quer que seja. Ele deve
agir, apenas e tão-somente, no campo que lhe foi reservado pela Constituição,
quando o seu lavor, a norma jurídica, será obrigatória e, em determinados
casos, vinculará as pessoas políticas.719
A lista de serviços prevista no Decreto-lei n° 406/68 sofreu alterações com o
Decreto-lei n° 834/69, com a Lei Complementar n° 56/87, e por fim, com a Lei
Complementar n° 100, de 22 dez. 1999. Pelas alterações, não só eram incluídos novos
itens, como também acabava sendo editada uma nova lista, porém sempre no âmbito do
Decreto-lei n° 406/68. A exceção foi a Lei Complementar n° 100/99, que incluiu no rol
apenas o serviço de exploração de rodovias pelas empresas concessionárias. Ainda que
a ordem na numeração da lista tenha sofrido alterações, o formato permanecia sempre o
mesmo, no sentido da enumeração apenas em itens, com exceção do serviço de
diversões públicas, onde além do item com essa designação (gênero), o Decreto-lei n°
406/68, assim como todos os dispositivos legais posteriores que o alteraram, detalharam
esta atividade em subitens (espécies), como cinemas, teatros, bailes etc.
Com o advento da Lei Complementar n° 116/2003, a nova lista anexa
discrimina todos os serviços em itens e subitens, a exemplo do que ocorre, na esfera
federal, com a tabela do IPI – TIPI – anexa ao Decreto n° 6.006, de 28 dez. 2006. O
novo formato tem suscitado interpretações divergentes por parte da doutrina, havendo
os que defendem serem os itens genéricos meros indexadores dos subitens, assim como
há entendimento no sentido de os itens possuírem plena força normativa. Ou seja, no
primeiro caso, não sofreria a incidência do ISS um serviço que, não obstante
plenamente compatível com a descrição de um dado item, não esteja listado entre os
subitens. Já na segunda hipótese, ocorreria exatamente o oposto, tendo os subitens,
portanto, caráter meramente exemplificativo, sendo tão-só exigida a subsunção ao
gênero previsto no item.
Defendendo a primeira hipótese, GABRIEL LACERDA TROIANELLI e
JULIANA GUEIROS entendem que os itens da lista anexa funcionam como índice da
lista, não tendo força normativa suficiente para atrair a incidência tributária. A
taxatividade, portanto, concentrar-se-ia apenas nos subitens. Apontam duas razões para
tanto: a primeira tem como premissa a regra hermenêutica pela qual não haveria na lei
elementos inúteis; e a segunda dever-se-ia ao próprio formato da lista, onde há itens que
possuem apenas um subitem, o qual apenas repete a descrição do serviço listado no
719
Ibidem, p, 239.
276
item. Ou seja, não haveria razão para reproduzir um serviço em um subitem se o
respectivo item possuísse plena força normativa.720
Por outro lado, defendem que as expressões “e congêneres” e “de qualquer
natureza” possuem funções diferentes, a depender de sua previsão em um item ou em
um subitem. Nos itens, o efeito dessas expressões resumir-se-ia a alargar a abrangência
do índice, com vistas a possibilitar a eventual inclusão de novos subitens
posteriormente. Já nos subitens, defendem que as expressões são inócuas, por serem
incompatíveis com a taxatividade, ainda que ela seja interpretada de forma ampla e
analógica.721
AIRES
BARRETO,
após
ressalvar
seu
entendimento
pela
inconstitucionalidade da taxatividade da lista de serviços, e com base em argumentos
semelhantes, tem entendimento no sentido de que somente são tributáveis os serviços
descritos nos subitens da lista, assertiva que, esclarece o autor, somente é feita tendo em
vista a consolidação jurisprudencial sobre o tema. Esse parece ser o melhor raciocínio,
em que pese, como adverte o próprio autor, a taxatividade da lista ser inconstitucional,
seja em relação aos itens ou aos subitens, pois resulta em flagrante ofensa ao primado da
Autonomia Municipal. Com o advento da Lei Complementar n° 116/2003, surge um
novo argumento para modificar o entendimento da taxatividade da lista, hoje
infelizmente predominante na jurisprudência, em que pese a doutrina, em sua grande
maioria, defender com vigor exatamente o contrário. O § 4º do seu artigo 1º, ao
estabelecer que “a incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço
prestado”, veicula dispositivo que pode perfeitamente servir de fundamento para
encorajar o Poder Judiciário a rever o seu indefensável e acientífico posicionamento. O
autor, nesse sentido, sublinha que o novo dispositivo é de extrema utilidade, pois evita a
glorificação da tese da taxatividade da lista de serviços, com o que se está de pleno
acordo. 722
Registre-se, por fim, que a expressão “serviços de qualquer natureza”,
constante do artigo 156, III, da Constituição é, em rigor, contraditória com a outra
expressão, constante do final desse mesmo dispositivo, pelo qual aqueles serviços serão
“[...] definidos em lei complementar”, pois “Se são de qualquer natureza, prescindem
de definição; se são definidos, não serão jamais os de qualquer natureza, mas sim, os
720
O ISS e a Lei Complementar..., op. cit., p. 111-114.
Ibidem, p. 114-115.
722
ISS na Constituição..., op. cit., p. 116-120.
721
277
definidos”, como bem adverte AIRES BARRETO.723 Esse raciocínio foi prestigiado por
JOSÉ ROBERTO VIEIRA, para quem a questão soluciona-se juridicamente bem, “[...]
lembrando que essa lei complementar aí referida guarda uma relação de espécie para
com o gênero da lei complementar do artigo 146, destinando-se apenas a dispor sobre
conflitos de competência ou regular limitações da competência tributária, no caso,
predominantemente, volta-se para os eventuais conflitos [...]”.724 Com efeito, e com a
ressalva da importância prática contida no exame da taxatividade da lista de serviços –
em virtude da equivocada orientação jurisprudencial – esse raciocínio é o que melhor
atende à supremacia constitucional.
4.3.2 O critério temporal
O ISS identifica-se, na classificação constante do artigo 116 do Código
Tributário Nacional, entre os tributos que incidem sobre uma “situação de fato”, mais
precisamente o fato de “prestar serviço”. Incorreto, portanto, é pretender onerar pelo
ISS o negócio jurídico do qual decorre a prestação, conforme já demonstrado nos
comentários alusivos ao critério material desse imposto. Essa afirmação não conflita
com a necessidade de as prestações de serviço tributáveis pelo ISS serem somente
aquelas objeto de uma relação contratual. Ou seja, embora “prestar serviço” seja um
fato jurídico (tributário), deve ser subjacente a tal fato um negócio jurídico. No entanto,
e ao contrário do que ocorre com o ICMS, o negócio jurídico não é o núcleo da hipótese
de incidência.
O critério temporal, assim como o pessoal e o espacial, pode ser descoberto a
partir da análise da materialidade da hipótese de incidência, e, no caso do ISS, ensina
MARÇAL JUSTEN FILHO que “[...] só pode ser o momento em que se configura a
prestação de uma utilidade, prestação essa reconhecida como execução de obrigação
de fazer”, posto que a materialidade do ISS deve descrever um ato jurídico. O critério
temporal do ISS, portanto, ocorre “[...] quando é cumprida a prestação a que o sujeito
está obrigado, quando ele executa o dever jurídico (consistente em um fazer) e dele se
libera, adimplindo a obrigação extratributária que lhe incumbia”.725
723
Ibidem, p. 107-108.
Prefácio. A Dupla Personalidade do ISS: Dr. Jekyll e Sr. Hyde! In: BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS:
do texto à norma, p. 20.
725
O imposto..., op. cit., p. 134-135.
724
278
Há, porém, situações peculiares perante o Direito Privado. Existem obrigações
de fazer que se caracterizam pelo seu cumprimento prolongar-se no tempo, como é o
caso das obrigações de execução continuada e as de trato sucessivo: “As primeiras
são aquelas onde as partes convencionam incumbir a uma delas a realização de
prestações definidas, sendo desde logo definida a extensão de seus deveres e a época do
adimplemento como também a contraprestação devida”. É o caso do contrato de
assistência técnica, por exemplo. Nesse caso, a lei pode, à semelhança do que ocorre em
relação ao IPTU, reputar que o fato tributário se considera ocorrido em um dado
momento no transcurso do período de execução do contrato, mediante um
fracionamento com efeitos somente no campo tributário. Ou seja, ainda que perante o
Direito das Obrigações a prestação não esteja cumprida totalmente, para o Direito
Tributário haverá execução de obrigação de fazer.
As obrigações de trato sucessivo “[...] caracterizam-se por um acordo inicial
de vontades para regular a conduta futura das partes, mas ficando para ulterior
definição, durante a vigência do contrato, a exata extensão das prestações que
incumbirão às partes”. São obrigações que envolvem os chamados “contratos
normativos”, pois o acordo fornece regras gerais para situações futuras específicas,
quando então será necessária nova manifestação de vontade. Aqui há uma relativa
individualidade em cada prestação, as quais serão, por essa razão, autônomas para fins
tributários, aplicando-se, a cada uma, a regra geral para o critério temporal da hipótese
de incidência do ISS.726
Com raciocínio semelhante, AIRES BARRETO defende que a determinação
exata do momento em que se considera ocorrido o fato tributário do ISS exige que se
verifique se o serviço em questão é de natureza fracionável ou não. Caso o seja, a
prestação do serviço estará concluída no preciso momento em que se ultime cada uma
das frações em que a prestação se dividir, como ocorre, por exemplo, com as medições
de obras realizadas na construção civil. Caso contrário, o serviço somente poderá ser
considerado prestado no momento de sua conclusão definitiva.727
MARCELO CARON BAPTISTA tece relevantes argumentos sobre o
momento da prestação do serviço, para fins de incidência do ISS. O autor, seguindo o
melhor raciocínio, entende deva o critério temporal corresponder ao momento em que
726
727
Ibidem, p. 135-136.
ISS: serviços de despachos aduaneiros – Momento de ocorrência do fato imponível – Local da
prestação – Base de cálculo – Arbitramento. Revista de Direito Tributário, n. 66, p. 116.
279
“[...] a ação humana tenha o efeito de adimplemento integral de uma determinada
prestação-fim de fazer contratualmente estabelecida, incumbida ao prestador”, ou seja,
“[...] o fato jurídico tributário ocorre no instante em que o tomador recebe o resultado
do esforço do prestador”. Acrescenta ainda que: “Enquanto a prestação-fim não for
realizada pelo devedor, todo e qualquer esforço voltado ao tomador não passará de
uma prestação-meio, incapaz de realizar o comportamento tributável”.728
O autor também se filia às acertadas críticas feitas por PAULO DE BARROS
CARVALHO ao artigo 116, caput, do Código Tributário Nacional, acrescentando,
especificamente ao ISS, que a eventual indicação do critério temporal em momento
posterior à concreção, no mundo real, da materialidade da respectiva hipótese de
incidência, pode resultar em risco de violação ao Princípio da Segurança Jurídica. 729 O
comentário restringe-se a uma eventual eleição de momento “posterior”, em virtude da
única possibilidade interpretativa resultante da expressão “salvo disposição de lei em
contrário”, ressalva contida no precitado artigo 116, caput, posto que, permitir ao
legislador eleger o critério temporal em momento anterior à efetiva ocorrência do fato
tributário, resulta, em qualquer caso, em inevitável inconstitucionalidade, por violação
direta do primado da Segurança Jurídica, o que já ocorreu, inclusive, com a inserção do
§ 7º no artigo 150 da Constituição, pela Emenda Constitucional nº 3/93.730
Conclui-se, enfim, que, se o critério material da hipótese de incidência do ISS é
a prestação do serviço, o critério temporal só pode ser o exato momento em que essa
prestação se concretiza no mundo fenomênico. Caso a norma preveja um critério
temporal não coincidente com o momento de ultimação do critério material, o tributo
não mais incidiria sobre a prestação de serviço, mas sobre a materialidade verificável no
momento a que alude o critério temporal. É o caso, por exemplo, da tributação fixa das
sociedades uniprofissionais, em que o critério temporal da norma do ISS é o momento
da inscrição no cadastro municipal. Nessa hipótese, a tributação deixa de incidir sobre a
prestação do serviço para onerar a inscrição profissional.731
Como será exposto no subitem seguinte, a correta identificação do critério
temporal do ISS é imprescindível no exame do critério espacial, pois, por um raciocínio
728
ISS..., op. cit., p. 494-495.
Ibidem, p. 497-498.
730
“§7.º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo
pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a
imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”
731
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 138.
729
280
lógico, se o fato jurídico tributário desse tributo se considera ocorrido no momento em
que o prestador se desincumbir de seu vínculo com o tomador, a lei do município em
cujo território ocorrer a extinção desse liame jurídico será a única a incidir sobre o fato,
assim como, em conseqüência, esse mesmo município é que será qualificado como
sujeito ativo para exigir o recolhimento do imposto.
4.3.3 O critério espacial
Importante relembrar, nessa fase do estudo, que a identificação dos critérios da
regra-matriz de incidência do ISS, seja da hipótese de incidência, seja da conseqüência,
deve ocorrer tendo por premissa inicial a análise da Constituição. O recurso à legislação
infraconstitucional será secundário nesse labor, servindo, quando muito, para confirmar
o que já dispõe o texto constitucional, quando então será o dispositivo inócuo ou
redundante, ou para infirmação do seu conteúdo, por incompatibilidade e desrespeito à
Lei Maior.
Ainda que a Constituição não preveja, de forma expressa, o critério espacial
das hipóteses tributárias, é possível, em alguns casos – dentre os quais se insere o ISS –
retirar de seu contexto elementos indicadores do espaço em que o fato descrito na
hipótese de incidência será reputado ocorrido.732 Pelo que já foi até aqui analisado, já se
pode concluir que o critério espacial do ISS não pode ser outro senão aquele exato local
em que se verifica a prestação de serviço tributável pelo ISS, entendida como a
execução de uma obrigação de fazer, quando o prestador do serviço libera-se do dever
jurídico que lhe incumbia frente ao tomador do serviço. Dizendo de outra forma, o
critério espacial será o local em que se extingue o dever jurídico do prestador para com
o tomador.
O fato “imponível” do ISS ocorre no local onde ocorre a execução da
obrigação de fazer, confirma MARÇAL JUSTEN FILHO, complementando o autor que
“[...] há de reputar-se ocorrido o fato imponível no território do Município onde se
configuram realizados os aspectos material e temporal da hipótese de incidência”.733
732
733
COSTA, Simone Rodrigues Duarte. ISS - a LC 116/03 e a incidência na importação, p. 115.
Ibidem, p. 139.
281
Esse também é, dentre outros, o raciocínio de AIRES BARRETO734, JOSÉ EDUARDO
SOARES DE MELLO735 e RUBENS MIRANDA DE CARVALHO736.
Se a materialidade da hipótese de incidência do ISS se constitui no fato
“prestação de serviço”, e não no negócio jurídico que lhe deu causa, como já foi
demonstrado anteriormente, é irrelevante o local onde o negócio jurídico é celebrado,
onde surge o vínculo (relação jurídica) entre tomador e prestador. A única e
fundamental relevância diz respeito, na verdade, ao local de ocorrência da execução do
contrato. O argumento será o mesmo, ainda que ambos os locais, surgimento e execução
do contrato, coincidam, o que por óbvio não ocorre necessariamente.
O local previsto no contrato como sendo o obrigatório para a execução da
prestação não tem relevância direta na fixação do local de ocorrência do fato tributário
do ISS e, por conseqüência, do município competente para a respectiva tributação. Se a
parte contratada, sponte propria, presta o serviço em local diverso do estipulado
contratualmente, surge para o contratante, de acordo com a legislação civil, a faculdade
de recusar a prestação, o que, se verificado, desqualifica o esforço realizado como
execução da obrigação de fazer, não ocorrendo a subsunção do fato à hipótese de
incidência do ISS. Caso, entretanto, o tomador aceite a execução da obrigação em local
diverso do contratado, ocorre fato tributário do ISS, tendo por critério espacial o local
onde se deu a execução.737
Questão relevante também é a que diz respeito ao local em que está o prestador
no momento do adimplemento da obrigação jurídica. Não é necessária a presença física
do prestador do serviço nesse momento, ou seja, o local da ocorrência do fato tributário
do ISS continuará sendo aquele da execução da obrigação de fazer ainda que, no
momento da extinção do vínculo, lá não esteja presente o prestador. Em exemplo
esclarecedor, MARÇAL JUSTEN FILHO cria duas hipóteses envolvendo o serviço de
um protético. Imagine-se que, em um primeiro caso, um cliente contrata a elaboração de
uma peça para que seja implantada no próprio consultório. Nesse caso, a execução da
obrigação de fazer ocorreu no domicílio do profissional, sendo o ISS devido no
município onde está localizado o consultório.
Em uma segunda hipótese, o protético é contratado por um colega situado em
outro município, obrigando-se a entregar a peça no consultório do outro profissional.
734
ISS na Constituição..., op. cit., p. 314.
ISS..., op. cit., p. 146.
736
ISS: a Lei Complementar nº 116/2003 e a nova lista de serviços, p. 101.
735
282
Nesse caso, é óbvio que a execução da obrigação de fazer somente se ultimou no exato
momento da entrega da peça ao destinatário, do que resulta ter o fato tributário ocorrido
no município onde o destinatário está situado, sendo aí devido o ISS. Antes da entrega
da peça, não houve nenhuma prestação de serviço tributável pelo imposto municipal,
mas mera atividade juridicamente irrelevante, pois o protético ainda não havia cumprido
seu dever jurídico.738
Uma outra perspectiva no estudo do critério espacial do fato tributário do ISS
tem por premissa a verificação de que a regra-matriz desse imposto, conforme sua
feição constitucional, conferiu privilégio à atividade exercida pelo prestador, e não à
utilidade desejada e obtida pelo tomador, em raciocínio defendido por MARCO
AURÉLIO GRECO, autor que, em síntese, vê nessa “utilidade” um critério muito mais
consentâneo com a nova realidade dos negócios no mundo moderno, conforme já
analisado anteriormente.739 O autor confirma: “[...] cumpre ter presente que o serviço
pode ser visto sob a ótica da atividade ou da utilidade o que traz profundos reflexos na
identificação do local da respectiva prestação” [sic].740
Pode-se, com efeito, concluir que, se a essência da materialidade do ISS ou,
dizendo de outro modo, a sua perspectiva econômica, está estruturada sob o prisma da
atividade, e não da utilidade, tem-se que esse critério conduz necessariamente a
tributação ao local onde o serviço é prestado, onde a atividade é realizada, o que
impede, por força da lógica, seja o critério espacial definido em locais como o
estabelecimento ou domicílio do prestador, como fez o artigo 12 do Decreto-lei n
406/68.741
O raciocínio parece óbvio quando se imagina a prestação de serviços
tradicionais, onde habitualmente o prestador está situado no mesmo local onde o serviço
é consumado. Mas no caso de serviços prestados virtualmente, mediante a utilização de
recursos como a internet ou satélites, a questão ganha nítida relevância. Supondo, por
exemplo, uma prestação de serviço envolvendo três pessoas situadas em locais distintos:
737
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 140.
Ibidem, p. 140.
739
Vide supra, item 4.3.1.
740
Internet..., op. cit., 96-97.
741
É preciso, no entanto, distinguir o estabelecimento prestador, que é aquele local – permanente,
temporário ou mesmo virtual – onde o serviço é efetivamente prestado, do estabelecimento do
prestador, que pode ser qualquer outro local onde o prestador tenha uma unidade econômica
estruturada, mas que não é o local onde é prestado o serviço específico de que se cogita em um caso
particular. A referência diz respeito à segunda hipótese.
738
283
(a) estabelecimento prestador; (b) provedor que hospeda site na internet; e (c) usuário
do serviço.
Na hipótese de o critério para definir o serviço ser o da atividade exercida, o
fato tributário do ISS ocorrerá onde está o estabelecimento prestador, pois é aí que a
atividade é exercida in concretu. Mas se o serviço for prestado através do “site” da
empresa na internet, torna-se relevante o local do provedor onde esse “site” está
hospedado. Contudo, o local do provedor somente terá relevância jurídica caso o “site”
tenha sido efetivamente o meio físico utilizado na prestação dos serviços e na
celebração dos respectivos contratos, ainda que sem a participação direta das partes.
Enquanto a página na internet somente servir como meio de divulgação dos serviços
prestados, ou seja, onde ocorre a oferta, ela será considerada uma simples vitrine, sem
qualquer autonomia ou qualificação jurídica própria.742
Ressalte-se que MARCO AURÉLIO GRECO teceu esse raciocínio no ano de
2000, quando ainda estava em vigor o Decreto-lei n 406/68, o qual somente dispunha,
em seu artigo 12, letra “a”, que o local de ocorrência do “fato gerador” do ISS era,
regra geral, o estabelecimento prestador, não estabelecendo nada acerca da distinção
entre estabelecimento permanente ou temporário.
Visando adaptar a incidência do ISS às novas realidades, o artigo 4 da Lei
Complementar n 116/2003 passou a prescrever: “Considera-se estabelecimento
prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de
modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional,
sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto
de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras
que venham a ser utilizadas”.
Percebe-se que a Lei Complementar n 116/2003 prestigiou, para a expressão
“estabelecimento prestador”, o critério da atividade, reputando válidos tanto o
estabelecimento “permanente” como o “temporário”, assim como aquele que configure
uma unidade “econômica” ou “profissional”, conferindo ao conceito de estabelecimento
prestador um sentido amplo, apto a colher toda e qualquer prestação de serviço passível
de tributação pela via do ISS.
A única alternativa interpretativa consentânea com o contexto constitucional é
a que considera o fato tributário do ISS ocorrido no local, município, onde a prestação
742
Ibidem, p. 98-99.
284
do serviço se ultimou. Para isso, irrelevante será o fato de que as fases intermediárias à
consumação da prestação, entendida esta como o adimplemento efetivo de uma
obrigação contratual de direito privado, tenham ocorrido em município(s) diverso(s). É
que nesse caso, os fatos ocorridos antes da conclusão do serviço tributável pelo ISS não
são jurídicos, pelo menos não jurídico-tributários.
Registre-se o entendimento de MARCELO CARON BAPTISTA sobre o tema,
em raciocínio construído sobre a inafastável premissa da supremacia constitucional, na
análise desse tema:
Aferir se a prestação de serviço importante para o ISS ocorreu requer uma
incursão nas linguagens que constituem os dois mundos referidos; na
jurídica, em especial na seara do Direito das Obrigações, para verificar se o
esforço atingiu a prestação-fim pactuada; e na do mundo “real”, na parte em
que é objeto da Física, para identificar os correspondentes materiais,
temporais e espaciais do fato. Sendo essa uma imposição do próprio Direito
ela deve ser respeitada até as suas últimas conseqüências. Não há como
dissociar a materialidade daquele exato local em que o serviço foi prestado,
ou seja, do local em que o esforço do prestador fez desaparecer o dever
jurídico contratual.743
Com base nesse raciocínio, ao qual nos filiamos incondicionalmente, o autor
adverte que ao legislador infraconstitucional é vedado, por força do próprio sistema
jurídico, considerar que o fato ocorreu em local diverso daquele em que se verificou a
sua materialidade, pois a desvinculação do critério espacial dos critérios material e
temporal destrói a estrutura da hipótese normativa.744 É essa perspectiva jurídica que
deve orientar, em qualquer caso, todas as conclusões sobre o tema do critério espacial
da regra-matriz de incidência do ISS, independente de qualquer dificuldade prática
pertinente à fiscalização e cobrança do ISS.
4.3.4 A questão da incidência condicionada ao pagamento do serviço
Ainda que seja pacífico não incidir o ISS sobre o rendimento ou a renda
obtidos pelo prestador, também é certo que os serviços gratuitos não são tributáveis,
pois só há incidência do imposto municipal sobre o serviço que revele capacidade
contributiva, ou seja, aquele que se constitui em fato signo-presuntivo de riqueza. A
prestação do serviço, portanto, sobre ser necessária, não é suficiente em si mesma,
sendo imprescindível a existência de remuneração, sob pena do imposto incidir tão só
743
744
ISS..., op. cit., p. 516.
Idem.
285
sobre a capacitação pessoal para a prestação do serviço, o que transmudaria a
materialidade desse tributo em imposto outro que não o ISS. Com base nesse
entendimento, MARÇAL JUSTEN FILHO lembra que ignorar a remuneração
transformaria o ISS no revogado imposto sobre indústria e profissões, o qual incidia
mais sobre a atividade potencial do que sobre a atividade efetiva.745
Entretanto, o referido autor entende ainda ser inconstitucional a exigência do
pagamento do ISS antes de ocorrido o efetivo recebimento da remuneração pelo
prestador do serviço. Além de a remuneração ser contratualmente necessária, também
entende ser imprescindível seu efetivo recebimento. O autor fundamenta seu
posicionamento com base na defesa de que a previsão da incidência sobre a aquisição
tanto da disponibilidade econômica como sobre a disponibilidade jurídica só ocorre em
relação ao imposto sobre a renda, não havendo nada na regra-matriz do ISS que permita
concluir pela possibilidade de incidência nos casos onde há ainda somente o direito à
remuneração ou, o que é menor, expectativa desse direito.746
Discordamos desse entendimento, pois o não pagamento da remuneração pelos
serviços prestados é fato a ser discutido somente no âmbito civil, não podendo surtir
efeitos tributários. Entende-se que, de acordo com o que dispõe o inciso II do artigo 116
do Código Tributário Nacional, pelo qual, salvo disposição de lei em contrário,
considera-se ocorrido e existentes os efeitos do “fato gerador” que se constitui em
“situação jurídica” desde o momento da sua constituição definitiva, nos termos de
direito aplicável.
Ora, a prestação de serviço, antes de ser encampada pela Constituição como
materialidade do ISS, já era fato jurídico regido pelo Direito Civil, onde corresponde à
execução de uma obrigação de fazer. Após o cumprimento dessa obrigação, o fato
tributário do ISS está concretizado, sendo o pagamento da remuneração, na verdade, a
execução de uma obrigação (de dar) a cargo da outra parte no contrato.
Na verdade, o próprio autor, ao que nos parece, fornece as premissas para
entendimento contrário, pois defende que “[...] a execução da obrigação de fazer é o
exato momento do aperfeiçoamento do fato imponível, do nascimento da obrigação
tributária”.747 Ora, dessa afirmação, que temos como exata, dessume-se ser irrelevante
745
ISS no Tempo e no Espaço..., op. cit., 59.
Idem.
747
Ibidem, p. 135.
746
286
para o fato tributário do ISS todo e qualquer evento que venha a ocorrer após sua
consumação, como é o caso do pagamento.
Portanto, condicionar a incidência do ISS ao efetivo pagamento da retribuição
pela prestação dos serviços equivale a exigir, de forma cumulada, a execução das
obrigações devidas tanto pelo prestador como pelo tomador dos serviços, o que não se
coaduna com a materialidade constitucional do ISS. Como ilustração, o artigo 597 do
Código Civil dispõe que “a retribuição pagar-se-á depois de prestado o serviço...”.
AIRES BARRETO, no mesmo sentido, defende que o pagamento “[...] não compõe a
regra-matriz de incidência, que se esgota na existência da efetiva prestação de
serviços”.748 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no mesmo sentido:
ISS: EXIGIBILIDADE – A exigibilidade do ISS, uma vez ocorrido o fato
gerador – Que é a prestação do serviço -, não está condicionada ao
adimplemento da obrigação de pagar-lhe o preço, assumida pelo tomador
dele: a conformidade da legislação tributária com os princípios
constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva não pode depender
do prazo de pagamento concedido pelo contribuinte a sua clientela.749
Por outro lado, é inconstitucional a exigência antecipada de ISS, ou seja, antes
de ocorrido o fato tributário, pois se ainda não há fato jurídico, não há obrigação e, por
conseqüência, não há também crédito tributário a ser exigido. A questão, entretanto,
perdeu fôlego com a inclusão do § 7º ao artigo 150, da Constituição, pela Emenda
Constitucional nº 3, de 17 mar. 1993, o qual autoriza a lei a “[...] atribuir a sujeito
passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de impostos
ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata
e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador
presumido”.
A doutrina majoritária, com base no mesmo raciocínio acima, defendeu a
inconstitucionalidade desse dispositivo. Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da ADIn nº 1.851/AL, em decisão de inegável e ilegítimo cunho político,
entendeu pela sua constitucionalidade e, como se não bastasse, interpretou o direito à
restituição somente nos casos em que não ocorrer o “fato gerador presumido”, e não
748
749
ISS na Constituição..., op. cit., p. 299.
STF – AGRAG 228337 – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 18.02.2000 – p. 58 –
Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
287
naqueles em que, não obstante ter ocorrido, o valor real da operação foi inferior ao valor
presumido pelo Fisco.750
4.4 A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA DO ISS
4.4.1 O critério subjetivo
4.4.1.1 Sujeito ativo
MARÇAL JUSTEN FILHO ensina que a determinação do sujeito ativo é livre
pelo titular da competência de instituir o ISS, o qual pode atribuir a capacidade
tributária ativa a si próprio, quando então é desnecessária a menção, por implícita, ou
então pode delegá-la de modo expresso a pessoa diversa. Nesta segunda hipótese, a
pessoa arrecadadora – que pode ser de Direito Público ou Privado – pode ser um mero
agente arrecadador, ou então pode inclusive ficar para si com o produto da arrecadação
750
“TRIBUTÁRIO – ICMS – SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA – CLÁUSULA SEGUNDA DO CONVÊNIO
13/97 E §§ 6º E 7º DO ARTIGO 498 DO DECRETO Nº 35.245/91 (REDAÇÃO DO ARTIGO 1º DO
DECRETO Nº 37.406/98), DO ESTADO DE ALAGOAS – ALEGADA OFENSA AO § 7º DO ARTIGO
150 DA CF (REDAÇÃO DA EC 3/93) E AO DIREITO DE PETIÇÃO E DE ACESSO AO
JUDICIÁRIO – Convênio que objetivou prevenir guerra fiscal resultante de eventual concessão do
benefício tributário representado pela restituição do ICMS cobrado a maior quando a operação final
for de valor inferior ao do fato gerador presumido. Irrelevante que não tenha sido subscrito por
todos os Estados, se não se cuida de concessão de benefício (LC 24/75, artigo 2º, INC. 2º).
Impossibilidade de exame, nesta ação, do Decreto, que tem natureza regulamentar. A EC nº 03/93,
ao introduzir no artigo 150 da CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 o § 7º, aperfeiçoou o instituto,
já previsto em nosso sistema jurídico-tributário, ao delinear a figura do fato gerador presumido e ao
estabelecer a garantia de reembolso preferencial e imediato do tributo pago quando não verificado o
mesmo fato a final. A circunstância de ser presumido o fato gerador não constitui óbice à exigência
antecipada do tributo, dado tratar-se de sistema instituído pela própria Constituição, encontrando-se
regulamentado por Lei Complementar que, para definir-lhe a base de cálculo, se valeu de critério de
estimativa que a aproxima o mais possível da realidade. A Lei Complementar, por igual, definiu o
aspecto temporal do fato gerador presumido como sendo a saída da mercadoria do estabelecimento
do contribuinte substituto, não deixando margem para cogitar-se de momento diverso, no futuro, na
conformidade, aliás, do previsto no artigo 114 do CTN, que tem o fato gerador da obrigação
principal como a situação definida em Lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. O fato
gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição
ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização
final. Admitir o contrário valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua
concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a
dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às
atividades de tributação e arrecadação. Ação conhecida apenas em parte e, nessa parte, julgada
improcedente. (STF – ADI 1851 – AL – TP – Rel. Min. Ilmar Galvão – DJU 22.11.2002 – p. 00055)”
[sic] – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
288
para a consecução de seus fins, com o que surge a figura da parafiscalidade.751 Em
relação ao ISS, é usual os municípios exercerem tanto a competência tributária, através
do Poder Legislativo, como também a capacidade tributária ativa, por meio do Poder
Executivo.
A atribuição de competências tributárias, corolário do Federalismo e da
Autonomia Municipal, envolve, simultaneamente, uma autorização e uma limitação. A
autorização diz respeito à materialidade tributária atribuída a determinado ente
político, enquanto que a limitação estabelece os limites territoriais em que essa
competência pode ser exercida. Ou seja, em princípio, o titular da competência
tributária só tem aptidão constitucional para criar tributos sobre as materialidades que
recebeu diretamente da Constituição, assim como é imperativo constitucional que suas
leis tenham eficácia somente em relação aos fatos ocorridos exclusivamente dentro dos
limites de seu território.
Dizemos “em princípio” devido haver hipóteses em que se afigura válida a
extraterritorialidade da lei tributária, nos termos do disposto no artigo 102 do Código
Tributário Nacional.752 Entretanto, a definição de extraterritorialidade através de lei de
normas gerais, editada pela União, tem por limites a regra-matriz dos tributos conforme
extraível diretamente da Constituição. Portanto, e com exceção das hipóteses de
parafiscalidade – delegação da capacidade tributária ativa – o sujeito ativo da relação
jurídica tributária será a pessoa política em cujo território consumou-se o fato tributário.
No caso do ISS, a regra é a de que o sujeito ativo será o município (ou o
Distrito Federal) em cujo território os serviços são prestados. Quanto à parafiscalidade,
não se conhece casos de municípios em que tenha ocorrido tal delegação. Como ensina
AIRES BARRETO, “O Município ou o Distrito Federal são, a um só tempo, os
titulares da competência; como, além disso, exercitam a capacidade tributária ativa
não há necessidade de expressa menção, na lei, ao sujeito ativo da obrigação
tributária”.753 JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, em comentário sobre o sujeito
ativo do ISS, também defende o mesmo entendimento: “Os Municípios são dotados de
competência para instituir o ISS, dentro do âmbito territorial de validade, circunscrito
751
O Imposto..., op. cit., p. 151-154.
“A legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País, fora dos
respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que
participem, ou do que disponham esta ou outras leis de normas gerais expedidas pela União”.
753
ISS na Constituição..., op. cit., p. 345.
752
289
aos respectivos limites geográficos, como o local da específica realização do fato
gerador”.754
4.4.1.2 Sujeito passivo
O sujeito passivo do ISS, à vista do que já se depreendeu acerca da hipótese de
incidência desse imposto, em especial quanto ao seu critério material, somente pode ser
o prestador do serviço, pois somente essa pessoa se identifica com o destinatário
constitucional tributário, no feliz ensinamento de MARÇAL JUSTEN FILHO, em
adaptação da clássica expressão “destinatário legal tributário”, de HECTOR
VILLEGAS.755
O sujeito passivo, previsto no mandamento da norma tributária, deve estar
vinculado à materialidade descrita na hipótese de incidência, sob pena de
desnaturamento do tributo, ensina MARÇAL JUSTEN FILHO. Disso resulta que a
determinação subjetiva está vinculada ao aspecto pessoal da hipótese de incidência. Na
verdade, o autor vê esse critério subjetivo, dentro da hipótese de incidência, como o
sujeito que hipoteticamente pratica o fato descrito abstratamente no critério material.756
Apesar de, à primeira vista, esse raciocínio parecer divergir da estrutura da norma de
PAULO DE BARROS CARVALHO, em substância não há diferença, posto que, para
esse último autor, o critério pessoal, apesar de integrar somente o mandamento, aí tem
uma outra função¸ que é a de revelar quem integra a relação jurídica tributária.
No caso do ISS, MARÇAL JUSTEN FILHO lembra que “[...] o critério
pessoal da hipótese refere-se aos sujeitos de uma prestação de serviço (prestador e
beneficiário)”, mas em seguida esclarece que, mesmo dentre as pessoas envolvidas na
situação prevista na materialidade da hipótese de incidência, não há liberdade para o
legislador municipal escolher o sujeito passivo da obrigação tributária, pois o
destinatário constitucional tributário só pode ser o prestador dos serviços, já que é
somente esse que preenche a exigência constitucional de que a tributação pela via dos
impostos incida sobre os fatos signo-presuntivos de riqueza. É que o conteúdo
econômico não reside na prestação do serviço em si mesma, mas na remuneração,
existente como retribuição. O tomador dos serviços não revela nenhuma riqueza, mas
754
755
Impostos Federais, Estaduais e Municipais, p. 266-267.
JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição passiva..., op. cit., p. 262; VILLEGAS, Hector. Destinatário...,
op. cit., p. 241-242.
290
sim uma necessidade da utilidade decorrente de determinado serviço.757 No mesmo
sentido, AIRES BARRETO:
A dicção constitucional considerada (artigo 156, III) não só requer o fato
serviço como necessário, mas, igualmente – embora implicitamente – seu
produtor: não supõe o fato com abstração de quem lhe dá origem. Pelo
contrário, visa a indicar, claramente, ao legislador ordinário o sujeito passivo
do tributo (que só pode ser quem desempenha o esforço em que ele consiste).
Evidentemente, a prestação do serviço só é tributável porque o conteúdo
econômico indica o prestador como o verdadeiro beneficiário da retribuição
que, de alguma maneira, é o modo objetivo de mensuração desse mesmo
conteúdo econômico.758
JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO confirma o raciocínio:
Numa esfera pré-jurídica, o legislador colhe a pessoa intimamente vinculada
à realização da materialidade, que deve traduzir-se no mero índice de
capacidade contributiva. A íntima conexão da pessoa com a materialidade é
que tem a virtude de revelar a figura do contribuinte, porque, ao realizar o
fato gerador, terá que recolher aos cofres públicos uma parte da respectiva
grandeza econômica, qualificada como tributo. É fácil inferir tal assertiva no
ISS, uma vez que o contribuinte só poderá ser a pessoa (jurídica ou natural)
que presta serviços de qualquer natureza [...] [sic]. 759
Nesse caminho, o artigo 5º da Lei Complementar nº 116/2003, ao estabelecer
que “contribuinte é o prestador do serviço”, nada mais fez do que confirmar o que já
dispõe a Constituição. A opção pela expressão “contribuinte”, em vez de “sujeito
passivo”, tem origem na circunstância de que o sujeito passivo não será o prestador do
serviço nas hipóteses de “responsabilidade tributária”, mas alguém somente “vinculado
ao fato gerador”, na dicção do artigo 128 do Código Tributário Nacional.
Felizmente, a Lei Complementar nº 116/2003 não repetiu os graves erros
terminológicos existentes no artigo 8º do Decreto-lei n° 406/68, onde se diz que o ISS
tem como “fato gerador” a prestação, “[...] por empresa ou profissional autônomo
[...]”. A atribuição de competência pela Constituição é feita de forma ampla, sendo que,
em relação à definição do sujeito passivo, as únicas limitações são as constantes das
normas veiculadoras de imunidades subjetivas, como as que instituem imunidade aos
templos de qualquer culto, partidos políticos, instituições de ensino sem fins lucrativos
etc.
756
O imposto..., op. cit., p. 155.
Ibidem, p. 155-158.
758
ISS: Serviços de Despachos..., op. cit., p. 116.
759
ISS..., op. cit., p. 11.
757
291
Portanto, com exceção das hipóteses imunizantes, todas as pessoas que
praticarem fatos que correspondam integralmente à hipótese de incidência, com a
subsunção exata de seus critérios material, espacial e temporal, serão automaticamente
tidos como sujeitos passivos da respectiva relação jurídica tributária. Não há, portanto,
margem de liberdade para o legislador infraconstitucional, nesse campo senão a
possibilidade de confirmar o que já estabelece a Constituição. Com efeito, a restrição do
contribuinte a “empresa ou profissional autônomo”, feita pelo Decreto-lei nº 406/68 foi,
durante o período de sua vigência, flagrantemente inconstitucional.760
Por outro lado, percebe-se que o vocábulo “empresa” foi utilizado pelo
legislador de forma extremamente equivocada. Dispõe o Código Civil, em seu artigo
966: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica
organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. No parágrafo
único do mesmo artigo está previsto que “Não se considera empresário quem exerce
profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso
de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de
empresa”. Como é cediço, essa redação teve influência direta do Código Civil italiano
de 1942.
Da mesma forma que no direito italiano, o novo diploma civil brasileiro
unificou as atividades civis, prestação de serviços, e mercantis, indústria e comércio,
resultando em nova classificação das atividades, sob o novo discrímen da forma,
empresarial ou não, com que as atividades, civis ou mercantis, sejam exercidas. As
sociedades não empresárias passam a ser designadas de sociedades “simples”. Ora,
mesmo à época do Decreto-lei nº 406/68, o conceito de “empresa” já era pacífico no
sentido de ser não o sujeito de direito, mas a atividade em si mesma. Ou seja, o correto
é “exercer”, “desenvolver”, “desempenhar”, “encerrar” uma empresa, e não “abrir” ou
“fechar” uma empresa, o que implica confusão entre a atividade e a pessoa jurídica.
Aplicando-se de empréstimo o raciocínio de MARÇAL JUSTEN FILHO, não
se pode também pretender que a expressão “empresa” tenha sido utilizada como
sinônimo de “empresário”, pois profissional autônomo também pode ser empresário, o
que resta incompatível com a disjunção “por empresa ou profissional autônomo...”,
constante no precitado decreto-lei. Mas, caso se admita – como argumento – essa
interpretação, chegaríamos a um resultado também inconstitucional, pois o sujeito
760
JUSTEN FILHO, Marçal. O Imposto..., op. cit., p. 126-127.
292
passivo do ISS restringir-se-ia somente às pessoas, físicas ou jurídicas, empresárias e
pessoas físicas não-empresárias, excluindo do aspecto pessoal da hipótese de incidência
as pessoas jurídicas não empresárias, ou seja, as sociedades simples, o que violaria o
Princípio da Isonomia Tributária.
Esse último entendimento é inaceitável, quando lembramos que o campo de
atuação das sociedades não empresárias (simples) é basicamente o da prestação de
serviços. Já a atividade de produção e circulação de bens se afigura inviável sem a
organização em forma empresarial. A única conclusão a que se chega, portanto, é que a
palavra “empresa” foi utilizada, no Decreto-Lei n° 406/68, com a acepção vulgar e não
jurídica de “pessoa jurídica”.761
As regras que limitam as possibilidades de eleger o tomador como sujeito
passivo, na condição de responsável tributário, estão implicitamente previstas na própria
Constituição, pois decorrem do núcleo constitucional da regra-matriz de incidência do
tributo. No problema proposto acima, é o sujeito ativo constitucionalmente implícito na
norma-padrão do ISS que impede a eleição do tomador como substituto tributário, pois
o sujeito ativo legítimo, por ser município diverso, não teria como exigir o recolhimento
do ISS retido por esse tomador, em virtude dos limites territoriais da eficácia da lei
municipal. Portanto, a disposição do artigo 128 do Código Tributário Nacional, norma
geral que permite à lei atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito
tributário a terceira pessoa, mas desde que “[...] vinculada ao fato gerador da
respectiva obrigação”, é meramente didática, pois não representou inovação jurídica.
Sendo, portanto, a responsabilidade tributária, matéria pertinente ao sujeito
passivo, cada pessoa política pode, em princípio, regulamentá-la como melhor entender,
desde que por meio de lei e sem ultrapassar os limites da competência que recebeu da
Constituição. A eleição do tomador como sujeito passivo na condição de responsável
tributário, somente poderá ser matéria da lei complementar de que trata o artigo 146 da
Constituição na hipótese dessa lei ter sido editada com vista a prevenir conflitos de
competência em matéria tributária. Fora dessa hipótese, a lei complementar de normas
gerais não é necessária como requisito à eleição do tomador como substituto tributário.
A Lei Complementar nº 116/2003, em seu artigo 3º, estabeleceu para o local de
incidência do ISS três critérios: a) como regra geral, o local onde está o estabelecimento
prestador; b) na falta do estabelecimento – como regra subsidiária, portanto – o local
761
Ibidem, p. 128-129.
293
passa a ser o domicílio do prestador; e c) como exceções a ambas as regras, essa lei
prevê várias hipóteses, onde o ISS incide no local onde os serviços são prestados. Como
conseqüência, a nova lei estabelece casos onde o tomador é eleito sujeito passivo por
responsabilidade tributária, mediante a retenção do valor do tributo quando do
pagamento do preço ao prestador. A técnica, portanto, é a da substituição tributária, já
que o tomador estará obrigado, como substituto tributário, a recolher o valor retido aos
cofres de seu município.
O objetivo específico da norma é atingir aqueles serviços onde o ISS é devido
no local, município, em que se dá a respectiva prestação e não onde está situado o
estabelecimento prestador, já que não há outra forma de operacionalizar a cobrança do
ISS nos casos em que o prestador, estabelecido em um município, não possua inscrição
municipal nos outros municípios em que venha a prestar seus serviços. A previsão de
responsabilidade tributária, em relação ao ISS, é, em alguns casos, mera sugestão ao
legislador municipal, e, em relação a determinados serviços, a regra é obrigatória,
conforme os termos seguintes:
Artigo 6º. Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir
de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa,
vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a
responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo
do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se
refere à multa e aos acréscimos legais.
§ 1o Os responsáveis a que se refere este artigo estão obrigados ao
recolhimento integral do imposto devido, multa e acréscimos legais,
independentemente de ter sido efetuada sua retenção na fonte.
§ 2o Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, são
responsáveis:
I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou
cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País;
II – a pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária
dos serviços descritos nos subitens 3.05, 7.02, 7.04, 7.05, 7.09, 7.10, 7.12,
7.14, 7.15, 7.16, 7.17, 7.19, 11.02, 17.05 e 17.10 da lista anexa.
Com efeito, ainda que a Lei Complementar nº 116/2003 estabeleça ser o
prestador do serviço o contribuinte (artigo 5º), facultou, em seu artigo 6º, a
possibilidade de os municípios instituírem a sistemática da retenção do ISS na fonte
pelos tomadores dos serviços, em previsão idêntica à do artigo 128 do Código
Tributário Nacional. Sem prejuízo dessa faculdade, o § 2º do mesmo artigo 6º,
estabelece, de forma obrigatória, a sujeição passiva pelo pagamento do tributo, também
na modalidade da retenção na fonte, ao tomador ou intermediário dos serviços
294
importados (inciso I) e à pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou
intermediária de determinados serviços constantes da lista anexa à mesma lei (inciso II).
A Lei Complementar nº 116/2003, portanto, somente é sugestiva no tocante à
responsabilidade tributária de que trata o caput do seu artigo 6º, o mesmo não ocorrendo
com o disposto nos incisos I e II do § 2º, onde a regra é obrigatória. Não se pode
concordar, portanto, com aqueles que defendem ser todo o artigo 6º regra meramente
sugestiva, como é, por exemplo, o entendimento de DALTON LUIZ DALLAZEM, pois
é inequívoco que a regra do artigo 6º, § 2º, foi veiculada com o objetivo de prevenir os
conflitos de competência entre os Municípios.762
No § 1º do artigo 6º, a Lei Complementar nº 116/2003 estabelece que os
responsáveis estão obrigados ao recolhimento integral do ISS, acrescido de eventual
multa e acréscimos legais, independentemente de ter sido efetuada sua retenção na
fonte. Portanto, caso o tomador do serviço, no momento do pagamento ao prestador,
não efetue a retenção do valor devido a título de ISS, ainda assim permanecerá obrigado
pelo imposto junto ao Fisco Municipal. Em casos como esse, o substituto tributário terá
o direito de regresso contra o contribuinte, com fundamento tanto no Princípio da
Capacidade Contributiva, como na vedação de enriquecimento sem causa.
Outra hipótese de extensão do dever tributário ocorre quando o fisco municipal
atribui ao contribuinte – substituído tributário – a condição de sujeito passivo da
obrigação tributária do ISS, em razão de inadimplência do substituto tributário. Isso será
válido desde que, obviamente, o substituto não tenha exercido a possibilidade de
reembolso e haja previsão expressa nesse sentido na lei municipal. Sobre esse tema
ensina MARÇAL JUSTEN FILHO:
instituída a substituição, ter-se-á um sujeito passivo tributário distinto do
destinatário legal tributário. Em princípio, não recairá a sujeição passiva
tributária sobre o último, mas exclusivamente sobre o primeiro. Pode-se
supor, contudo, a hipótese de insolvência do substituto ou, por outros
caminhos, ausência de satisfação do crédito tributário relativamente ao
patrimônio do substituto. Em princípio, seria incogitável o Estado pretender
exigir o pagamento do destinatário legal tributário, transformando-o em
contribuinte. Mas não necessariamente. [...] Assim, verificado que o
substituto não tem condições de satisfazer a pretensão creditícia do Estado,
poderia ele dirigir-se contra o destinatário legal tributário (transformado,
então, em contribuinte), desde que, evidentemente, não tivesse sido exercido
o poder de reembolso.763
762
A responsabilidade tributária e o ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços
– ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 166.
763
Sujeição..., op. cit., p. 286.
295
Portanto, desde que reste demonstrado não ter havido o exercício da
possibilidade de reembolso pelo substituto, o fisco poderá estender a condição de sujeito
passivo ao contribuinte. O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, tem entendimento de
que a obrigação tributária é exclusiva do substituto em tais casos, ainda que não tenha
ocorrido a retenção na fonte (reembolso).764
Conforme visto acima, a Lei Complementar nº 116/2003, em seu artigo 3º,
prevê, quanto ao critério espacial da hipótese de incidência do ISS, três possibilidades
distintas. Como regra geral, o critério espacial será o local onde está situado o
estabelecimento prestador. Na falta de estabelecimento prestador, o critério espacial,
como regra supletiva, será o local do domicílio do prestador. E, nos incisos I ao XXII
do mesmo artigo 3º, considera como critério espacial, na maior parte dos casos, o local
onde o serviço é efetivamente prestado. Para esses últimos, os municípios em cujo
respectivo território sejam prestados tais serviços terão maiores dificuldades na
arrecadação e fiscalização do ISS quando o tomador for pessoa física, já que, nesses
casos, normalmente, não há a obrigatoriedade de manter uma escrituração contábil ou
fiscal ou mesmo a inscrição em cadastro municipal, o que poderá tornar ineficaz a
eleição do tomador pessoa física como sujeito passivo, na condição de substituto
tributário. Como resultado, aquele que prestar o serviço não estará obrigado a recolher o
ISS para o município onde está estabelecido, assim como poderá facilmente fugir à
tributação no município onde o serviço for prestado.
Noutro giro, saliente-se que a sistemática da retenção do ISS na fonte poderá
ser atribuída tão-somente em dois casos: (a) quando o tomador estiver situado no
mesmo município em que se verifique o critério espacial para aquele serviço específico,
pois caso contrário o tomador estará retendo o ISS, e recolhendo-o, aos cofres de
município não competente para exigir o imposto incidente sobre aquela prestação; e (b)
quando, obviamente, o serviço seja prestado em município onde estejam situados
tomador e prestador. Fora dessas duas hipóteses, a instituição do tomador como
substituto tributário será violadora tanto da Constituição, como do Código Tributário
Nacional, pois tais sujeitos passivos não estarão vinculados ao mesmo critério espacial a
que estão submetidos os contribuintes.
Embora as regras para instituir a retenção na fonte sejam claras, o histórico de
abusos por parte dos municípios, em especial os de grande porte, cria uma legítima
764
Como exemplos: REsp n° 153.664 – DJ de 11 set. 2000 – e REsp n° 411.428 – DJ de 21 out. 2002 –
Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
296
expectativa de que haverá toda a sorte de ofensas à Constituição, quando da implantação
da técnica da substituição tributária. Ou seja, municípios em que esteja situado o
estabelecimento prestador exigirão o recolhimento do ISS incidente sobre fatos para os
quais a Lei Complementar n° 116/2003 prevê, como critério espacial, o local onde os
serviços foram prestados, conforme a maioria dos incisos do artigo 3º, invocando para
tanto a regra geral. Por sua vez, o município onde os serviços forem prestados elegerá,
de forma legítima, o tomador como responsável tributário por substituição. O
contribuinte, premido no meio dessa disputa insana, será obrigado, para poder receber o
preço, a sujeitar-se à retenção prevista na lei municipal. Os conflitos certamente
recrudescerão, e, mais uma vez, o Judiciário será chamado para se manifestar sobre o
assunto.
4.4.2 O critério objetivo
Analisado o critério subjetivo da regra-matriz do ISS, com o que se tentou
demonstrar os critérios hábeis a identificar os sujeitos ativo e passivo, no conseqüente
normativo, neste item, serão tecidos breves comentários sobre o critério objetivo do
arquétipo do imposto municipal. Ou seja, tratar-se-á dos dados obtidos no mandamento
da norma tributária que permitem identificar qual é o objeto da prestação que, por sua
vez, é o objeto da relação jurídica tributária no caso do ISS.
4.4.2.1 Base de cálculo
A materialidade do ISS, conforme a dicção constitucional prevista no artigo
156, III, consiste na prestação de serviços de qualquer natureza “definidos em lei
complementar”, com exceção dos tributáveis pelos estados-membros e pelo Distrito
Federal, pela via do ICMS. Verifica-se que não há, na Constituição Federal, nenhum
dispositivo expresso que disponha qual seja a base de cálculo do ISS. Entretanto,
decorre implicitamente da regra-matriz constitucional desse imposto a noção de que a
sua base de cálculo somente pode ser o preço do serviço prestado. De uma forma geral,
a doutrina está de acordo nesse aspecto.
ANNA EMILIA CORDELLI ALVES afirma que, quanto à base de cálculo do
ISS, deflui da própria matriz constitucional a noção de preço efetivo do serviço
297
prestado.765 A legislação infraconstitucional tem seguido esse entendimento. O caput do
artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, já revogado, assim como, de forma idêntica, o artigo
7º da Lei Complementar n° 116/2003, também em seu caput, prevêem que “A base de
cálculo do imposto é o preço do serviço”.
Em decorrência da necessidade de harmonia interna na norma do ISS,
MARÇAL JUSTEN FILHO ressalta que o único critério apto a quantificar o critério
material da hipótese de incidência e, por conseqüência, identificar a base de cálculo
desse tributo, é a remuneração do serviço, pois é o único fato que preenche a exigência
de ser signo-presuntivo de riqueza, “[...] a permitir uma apropriação parcial pelo
Estado”, já que a prestação de serviço, em si mesma considerada, não revela riqueza
alguma. O autor entende que, em relação ao antigo imposto sobre indústria e profissões,
cuja materialidade era (inclusive) somente a profissionalidade – não um fato, mas um
estado de fato – era possível, por essa razão, a adoção de um tributo com valor “fixo”,
sendo irrelevante o dado da remuneração.766 Mas, para o ISS, que não incide sobre uma
potencialidade de prestação de serviços, mas sobre a sua efetiva prestação, aquele dado,
além de imprescindível, é o único a servir de critério mensurador da materialidade da
hipótese de incidência.767
Para ratificar os argumentos, tenha-se que, caso não se adote a remuneração
como base de cálculo, restam duas soluções, ambas, porém inconstitucionais. “Ou a lei
remeteria ao arbítrio (não à discrição) do fisco a determinação do valor da prestação
tributária (o que é absolutamente inadmissível, por viger o princípio da estrita
legalidade), ou preveria uma tributação fixa, invariável e predeterminada para os
serviços...”, conforme vem sendo adotado para os serviços de profissionais liberais na
maioria das legislações municipais.768
Para MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES, salvo as exceções
legais – como é o caso, por exemplo, das sociedades uniprofissionais com recolhimento
de valores fixos – a base de cálculo do ISS “[...] é o valor do próprio bem vendido, isto
é, o preço do serviço”, assim entendida a “[...] receita bruta decorrente da prestação
765
A base de cálculo..., op. cit., p. 178.
Entendemos, com o devido respeito à opinião contrária desse ilustre autor, que a tributação fixa
também era inconstitucional em relação ao antigo imposto sobre indústria e profissões, já que todo e
qualquer imposto deve obediência aos princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade
Contributiva.
767
O Imposto..., op. cit., p. 161-163.
768
Ibidem, p. 163.
766
298
de serviços, sem dedução de nenhuma parcela componente, nem despesas, custos ou
material empregado na prestação de serviços”.769
AIRES BARRETO, em sentido semelhante, afirma que a base de cálculo do
ISS é o preço do serviço, que a seu turno, é a receita bruta a ele correspondente. A
base de cálculo do ISS – perspectiva dimensível do “aspecto material” da sua hipótese
de incidência – não é o volume de recursos financeiros que ingressa no caixa das
empresas, mas, tão-somente aquela espécie de ingressos que, proveniente da prestação
dos serviços, pode ser classificada como receita do prestador. 770 Ousamos discordar do
raciocínio desse mestre, pois o preço do serviço nem sempre é compatível com a receita
bruta auferida pelo prestador do serviço.
Quando um empreiteiro, por exemplo, é contratado para executar determinada
obra, ele estipula um preço que corresponde à remuneração que deseja receber pelo
serviço a ser prestado. Quando da emissão da nota fiscal, o seu valor total, receita bruta,
certamente abrangerá valores relativos a materiais e insumos necessariamente aplicados
na obra, que não fazem parte da retribuição acordada anteriormente. Noutro giro, os
materiais que adquiriu para aplicar na obra já foram onerados pelo ICMS, e, caso
integrem a base de cálculo do ISS, haverá dupla incidência tributária sobre um mesmo
produto, vedada constitucionalmente por invasão de competência tributária. Como o
prestador dos serviços não é comerciante, não terá como se creditar do respectivo valor,
nem poderá repassá-lo adiante.
Assim, a única base de cálculo compatível com o preceito constitucional que
atribuiu competência aos municípios para instituir o ISS é o valor da remuneração “pura
e simplesmente”, dele excluídas todas as verbas cobradas pelo prestador a título de
ressarcimento por despesas. O prestador, ao empregar insumos necessários ao
desempenho de sua atividade, não os está comercializando, posto que essa não é sua
atividade preponderante. A utilização de materiais é o meio necessário para a realização
de alguns tipos de prestação de serviços. A discriminação de materiais e despesas
operacionais no documento fiscal realiza-se com o objetivo de que possam ser objeto de
ressarcimento, sem, no entanto, integrar a base de cálculo do ISS.771
Equívocos como esse decorrem muitas vezes da confusão entre ingressos e
receitas. Ingresso é gênero, do qual a receita é uma de suas espécies. Assim, é possível
769
770
Imposto..., op. cit., p. 47-48.
ISS: serviços de despachos..., op. cit., p. 119.
299
a existência de meros ingressos no caixa de uma empresa, que não configurem,
juridicamente, receita. Receita, por sua vez, é apenas o ingresso que provoca mutação
patrimonial na pessoa que a aufere, aumentando seu ativo e/ou reduzindo seu passivo,
como elemento novo e positivo, na expressão utilizada por ALIOMAR BALEEIRO. 772
Meros ingressos financeiros, não qualificáveis como receita, são valores cuja
titularidade patrimonial pertence a terceiros e que estão temporariamente transitando
pelo ativo da empresa, para serem posteriormente devolvidos, razão pela qual sempre
possuem uma contrapartida no passivo patrimonial.
Os valores recebidos como retribuição pela prestação de um serviço, portanto,
são considerados contabilmente como receitas, já que, ao seu ingresso no caixa ou
banco da empresa, não há um lançamento no passivo, sob a rubrica, por exemplo, de
“obrigações a pagar”. Por outro lado, podem ser exemplificados como meros ingressos
as entradas no ativo – caixa ou bancos – originadas pela contratação de uma operação
de crédito – financiamento, empréstimo, desconto de títulos etc.. Quanto às despesas,
AIRES BARRETO assinala que elas são inconfundíveis com valores pertencentes a
terceiros. Despesas são gastos do prestador do serviço, a serem deduzidos da sua
respectiva receita, para efeito de apuração do resultado. Somente nesse caso o seu
reembolso configurará também receita, afetando o resultado econômico de atividade, ou
seja, afetando positivamente o patrimônio da empresa. A contraposição é entre despesas
e receitas e não despesas com ingressos financeiros. As despesas são gastos com a
própria atividade, realizados para que ela possa gerar receitas, sendo realizadas somente
em favor de quem as efetua. Só tais gastos são considerados como verdadeiras despesas,
reembolsáveis ou não. E as despesas reembolsáveis, obviamente, não podem ser
deduzidas, sob pena de o preço do serviço deixar de ser a receita a ele correspondente.
No entanto, não são considerados como despesas reembolsáveis os valores recebidos de
outrem para adimplir obrigações de terceiro, cujo negócio é administrado pelo
prestador.773
Perceba-se que o próprio AIRES BARRETO admite que só são despesas os
gastos efetuados em benefício próprio. Ora, os gastos com aquisição de materiais a
serem aplicados em obras não são efetuados em benefício próprio, mas em proveito do
tomador. Não são, portanto, registrados na contabilidade do prestador como despesas,
771
GRUPENMACHER, Betina Treiger. A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.).
Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 199.
772
Uma Introdução à Ciência das Finanças, p. 116.
300
pois não haverá mutação patrimonial. Somente ocorrerá uma alternância de valores
entre contas do ativo, mediante a saída de recursos financeiros do caixa ou banco, com o
ingresso do valor equivalente em outra conta do próprio ativo representado pelos
produtos adquiridos.
É, portanto, pressuposto para o estudo da base de cálculo do ISS, a definição
do que seja o núcleo da regra-matriz de incidência desse imposto, a qual pode ser
resumida como “prestar serviço”, o que vem a ser o efetivo objeto da tributação. Nas
palavras de MARCO AURÉLIO GRECO: “Identificar o núcleo da tributação é tarefa
essencial pois, a partir dele, será possível reconhecer a base de cálculo adequada para
fins de previsão na lei instituidora do imposto. Com efeito, é curial que a base de
cálculo dimensiona o fato gerador devendo ser-lhe compatível, sob pena de múltiplas
distorções” [sic].774
Conforme já foi estudado, a análise desse núcleo pode ocorrer tanto sob a
perspectiva da atividade como da utilidade. Ou seja, se for visto sob a óptica do
prestador, o serviço será tido como uma atividade. Caso o seja da ótica do tomador, o
serviço será visto como uma utilidade. Como a óptica constitucional é do ponto de vista
do prestador, o que se põe em relevo é a atividade desempenhada, e não a utilidade
obtida, ainda que em elucubrações pré-jurídicas seja possível defender que, do ponto de
vista da manifestação de capacidade contributiva, o oposto teria mais eficácia. A base
de cálculo, portanto, deverá sempre dimensionar a atividade realizada.775
Nessa perspectiva, a distinção entre “atividades-meio” e “atividade-fim” é
essencial para aferir a composição da base de cálculo do ISS. 776 É que o núcleo da
prestação de serviços contratada somente se identifica com a atividade-fim. Com efeito,
o preço do serviço, conforme é a expressão legal da base de cálculo, deve refletir a
remuneração devida pela “atividade-fim” contemplada no objeto do objeto da relação
obrigacional. Os demais valores pagos pelo tomador dos serviços e que se identifiquem
com as “atividades-meio”, não são hábeis a compor a base de cálculo, pois representam
meros ingressos financeiros não registráveis como receita tributável para fins do ISS. 777
773
ISS: Serviços de Despachos..., op. cit., p. 120.
ISS – Construção Civil – Base de Cálculo – Exclusão dos Materiais Fornecidos pelo Prestador –
Inconstitucionalidade. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 72, p. 159-160.
775
Vide supra, item 4.3.1.
776
BARRETO, Aires Fernandino. ISS – Atividade-Meio e Serviço-Fim, Revista Dialética de Direito
Tributário, n. 5, p. 83.
777
HOFFMANN, Susy Gomes. A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.).
Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 226.
774
301
Com base nesse raciocínio, a indicação de valores outros que não aqueles
relativos à prestação de serviços, no critério da “atividade-fim” contratada pelo tomador
dos serviços, violaria a Constituição sob no mínimo dois aspectos. O primeiro, porque o
ISS
incidiria
sobre
uma
hipótese
mais
ampla
do
que
aquela
prevista
constitucionalmente. O segundo aspecto é que a composição da base de cálculo com
valores distintos daqueles relativos à prestação de serviços violaria o Princípio da
Capacidade Contributiva, posto que a exteriorização da riqueza somente ocorre quanto
ao valor referente à prestação de serviços, e não quanto a outros valores relacionados
indiretamente à prestação dos serviços.778
Analisando o artigo 9, § 2, do Decreto-lei n 406/68, artigo que autoriza a
exclusão da base de cálculo do ISS do valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos
serviços de construção civil, verifica-se que o legislador observou a Constituição nesse
dispositivo, pois a remuneração corresponde à produção da obra, não computada a
parcela relativa aos materiais fornecidos pelo prestador do serviço. Na Lei
Complementar n 116/2003, o inciso I, do § 2, do artigo 7, dispõe em sentido
equivalente. Nessas hipóteses (itens 7.02 e 7.05 da lista), a lei complementar determina
que, na apuração da base de cálculo, sejam desconsiderados os valores relativos ao
“fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da
prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS”.
Entender em sentido contrário violaria o Princípio da Isonomia Tributária, uma
vez que sujeitaria obras com a mesma relevância econômica a distintas cargas
tributárias, em razão da opção contratual adotada pelas partes – empreitada de lavor ou
mista.779 Por essas razões, essa deveria ser a regra geral, posto ser a única que se
compatibiliza com a matriz constitucional do imposto municipal. Nesse exato sentido é
o entendimento de BETINA TREIGER GRUPENMACHER.780 O Superior Tribunal de
Justiça, infelizmente, possui posicionamentos divergentes sobre o tema, o que tem
contribuído para o aumento da insegurança jurídica entre os contribuintes.781
778
Ibidem, p. 227.
GRECO, Marco Aurélio. ISS – Construção Civil..., op. cit., p, 162.
780
A base de cálculo..., op. cit., p. 207.
781
Exemplos de acórdãos nos quais se entendeu que a base de cálculo do ISS somente contempla os
valores relativos à efetiva prestação de serviços: REsp n. 132.435/CE (DJ de 17/11/1997, Relator
Ministro JOSÉ DELGADO); REsp n. 224.813 (DJ de 28/02/2000, Relator Ministro JOSÉ
DELGADO); REsp n. 259.339/SP (DJ de 02/10/2000, Relator Ministro HUMBERTO GOMES DE
BARROS); REsp n. 411.580/SP (DJ de 16/12/2002, Relator Ministro LUIZ FUX). Em sentido
contrário, exemplos de acórdãos nos quais se entendeu que a base de cálculo do ISS é o valor total
recebido pelo prestador dos serviços, sem exclusão de nenhum valor: EDREsp n. 123.528 (DJ de
779
302
Na hipótese de o prestador de serviços auferir várias receitas, a única, dentre
todas, cujo valor pode ser erigido como base de cálculo para o ISS é aquela que
corresponde à remuneração recebida pela prestação do serviço. Para identificar com
precisão qual é a base de cálculo em tais casos, imprescindível é a análise do contrato de
prestação de serviços, pois os serviços tributáveis pelo ISS necessariamente têm como
pressuposto um negócio jurídico bilateral e oneroso, entre o tomador e o prestador. Esse
raciocínio é relevante quando se está diante de casos como o das subempreitadas de
obras civis, já tributadas pelo ISS, como era previsto no artigo 9º, § 2º, “b”, do Decretolei n° 406/68, pois a análise dos contratos demonstra que a empreitada e a
subempreitada são dois negócios jurídicos distintos, não se fundindo em um único
contrato.
O empreiteiro é parte contratante nos dois contratos, mas só terá essa
qualificação, de empreiteiro, no contrato de empreitada, pois no outro contrato, com o
subempreiteiro, passa a ser qualificado como comitente. No contrato de subempreitada,
o tomador dos serviços é o empreiteiro do outro contrato, o original, e a base de cálculo
do ISS devido pelo subempreiteiro será o preço desse serviço. Com base nesse
raciocínio, ANNA EMILIA CORDELLI ALVES entende não ser possível adotar a
receita do contrato de subempreitada para compor a base de cálculo do ISS, devido em
razão do serviço prestado por força do primeiro contrato, pois nesse caso a base de
cálculo não estaria mais medindo o fato tributário ao qual está vinculada, e, como
conseqüência, seria irreal.782 Entendemos, todavia, que, a afirmação é apenas
parcialmente verdadeira, em especial quanto ao raciocínio sobre a independência dos
contratos. Ocorre que, por força de sua matriz constitucional, para fins de apuração da
base de cálculo do ISS, o valor do “preço do serviço” de que fala a lei deve ser
entendido como o valor da efetiva remuneração percebida pelo prestador, o que não se
compatibiliza com outros valores recebidos pelo prestador e que não dizem respeito à
exata retribuição devida pela atividade desenvolvida.
Ora, considerar como base de cálculo o valor total recebido implicaria tributar,
além da remuneração da empreiteira, a remuneração da subempreiteira, a qual já sofreu
a incidência devida. Não se pode perder de vista que o único raciocínio coerente com a
supremacia constitucional é no sentido de que, por corresponderem a valores de
16/03/1998, Relator Ministro JOSÉ DELGADO); REsp n. 226.747/SP (DJ de 13/04/2000, Relator
Ministro JOSÉ DELGADO); REsp n. 254.863/SP (DJ de 18/02/2002, Relatora Ministra ELIANA
CALMON) – Disponível em <http:www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
303
terceiros, estes não equivalem à remuneração de serviço próprio, como adverte
HUMBERTO ÁVILA, que acrescenta: “A previsão de dedução seria inócua, pois
implicaria o direito de retirar da base de cálculo um valor que não a integra”.783 Esse
pensamento também foi adotado por MARCELO CARON BAPTISTA e JOSÉ
ROBERTO VIEIRA.784
O Projeto de Lei Complementar n° 1/91, que deu origem à Lei Complementar
n° 116/2003, previa, em seu texto original, dispositivo semelhante em relação às
subempreitadas no inciso II do § 2º do artigo 7º, o qual dispunha que “Não se incluem
na base de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza o valor de
subempreitadas sujeitas ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza”. Esse
dispositivo foi vetado quando da sanção pelo Presidente da República sob dois
argumentos: a) a nova norma implicaria perda significativa de base tributável, uma vez
que a regra anterior, veiculada pelo artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68,
somente permitia a dedução para as subempreitadas de obras civis; b) a redação da nova
norma seria imperfeita, pois enquanto a norma anterior somente permitia a dedução de
subempreitadas já tributadas pelo ISS, a nova fala em subempreitadas sujeitas ao ISS,
não exigindo que haja o efetivo pagamento do imposto pela subempreiteira, bastando
que o referido serviço esteja sujeito ao ISS, o que contraria, na dicção do veto, o
interesse público.
Diante do aludido veto, surgiu a indagação da subsistência da norma anterior,
uma vez que a cláusula revogadora presente no artigo 10, da Lei Complementar n°
116/2003, revogou expressamente todos os artigos relativos ao ISS do Decreto-lei n°
406/68, com exceção justamente do artigo 9º, onde está situada a referida regra em seu §
2º, “b”, e, assim o fazendo, renunciou o legislador à possibilidade de utilizar a
revogação global das normas anteriores, conforme inteligência conjunta dos §§ 1º e 2º
do artigo 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil e do artigo 9º da Lei Complementar
n° 95/98.785 Conclui-se, portanto, que o veto presidencial não teve nenhum efeito
782
A base de cálculo..., op. cit., p. 182-184.
O Imposto Sobre Serviços e a Lei Complementar nº 116/2003. In: ROCHA, Valdir de Oliveira
(coord.). O ISS e a LC 116, p. 182.
784
BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 617; VIEIRA, José Roberto. Prefácio. A Dupla
Personalidade do ISS..., op. cit., p. 25.
785
Ҥ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2o A lei nova,
que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei
anterior.”; “Artigo 9o A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou
disposições legais revogadas.” (Redação dada pela Lei Complementar nº 107, de 26 abr. 2001)
783
304
restritivo na vigência e na eficácia do artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68,
permanecendo assim a possibilidade de excluir da base de cálculo do ISS os valores das
subempreitadas já tributadas pelo ISS. O mesmo posicionamento é defendido por
GABRIEL LACERDA TROIANELLI e JULIANA GUEIROS.786
Ainda subsiste o argumento de que o artigo 9º, § 2º, “b”, teria sido revogado
indiretamente, por força da revogação do inciso IV, do artigo 3º, do Decreto-lei nº
834/69, pelo artigo 10, da Lei Complementar n° 116/2003. Esse raciocínio, apesar de
aparentemente consistente, sucumbe quando confrontado com a Teoria Geral do Direito.
A eficácia jurídica do inciso IV, do Decreto-lei n° 834/69, consubstanciou-se na nova
redação do artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68. É princípio geral de direito
que a revogação de uma norma não lhe atinge a eficácia já produzida, mas, tão-somente,
extingue a validade da norma jurídica.
Com efeito, a revogação do inciso IV, do Decreto-lei n° 834/69, em nada afeta
o artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68, tendo sido regra criada para surtir
apenas aquela eficácia específica, não deflagrando, após esse momento, mais nenhum
efeito jurídico – o mesmo raciocínio é aplicável ao artigo 9º, § 3º, do Decreto-lei n°
406/68, conforme será analisado a seguir). Registre-se a posição contrária de JOSÉ
EDUARDO SOARES DE MELO, entendendo pela extinção da possibilidade de
dedução das subempreitadas já tributadas pelo ISS, pela revogação expressa do inciso
IV, do Decreto-lei n° 834/69.787
Outro tema polêmico é o que trata da tributação fixa das sociedades
profissionais. O artigo 9º, § 1º, do Decreto-lei n° 406/68, estabelece que, para os
serviços prestados sob a forma de trabalho pessoal do contribuinte, o ISS é calculado
por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros
fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração
do próprio trabalho. Por sua vez, o § 3º do mesmo artigo 9, estendeu esse sistema de
tributação às sociedades profissionais que prestem determinados serviços constantes da
lista anexa.788
A Lei Complementar n° 116/2003, em seu artigo 10, revogou de forma
expressa os artigos 8º, 10, 11 e 12 do Decreto-lei n° 406/68, não fazendo menção ao
precitado artigo 9º. Entretanto, a Lei Complementar n° 116/2003, no mesmo artigo 10,
786
787
O ISS e a Lei Complementar..., op. cit., p. 123-124.
ISS…, op. cit., p. 131.
305
revogou o inciso V do artigo 3º do Decreto-lei n° 834/69, dispositivo que deu a segunda
redação ao § 3º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, e também revogou integralmente
a Lei Complementar n° 56/87, que, em seu artigo 2º, deu a terceira e última redação ao
citado § 3º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68. Como visto, a forma confusa como foi
redigida a revogação dos dispositivos do Decreto-lei n° 406/68, pelo artigo 10 da Lei
Complementar n° 116/2003, aliada à omissão dessa lei em relação ao regime jurídico
tributário do ISS aplicável aos profissionais autônomos e às sociedades uniprofissionais,
fomentou os debates sobre se teriam ou não sido revogados os referidos dispositivos da
legislação anterior.
Pugnando pela subsistência do regime de tributação fixa, ALBERTO XAVIER
e ROBERTO DUQUE ESTRADA consignam argumentos relevantes para fundamentar
esse posicionamento.789 Em primeiro lugar, a intenção da Lei Complementar n°
116/2003 teria sido clara em não revogar o artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, pois
salvo esse artigo, todos os demais que versavam sobre o ISS foram expressamente
revogados – artigos 8º, 10, 11 e 12 – raciocínio que vem ao encontro da Lei
Complementar n° 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a
consolidação das leis, que, em seu artigo 9º, dispõe que “A cláusula de revogação
deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”.
Em segundo lugar, defendem os citados autores que a revogação integral da
Lei Complementar n° 56/87 não afetou a vigência do citado artigo 9º, § 3º, do Decretolei n° 406/68. A razão estaria na circunstância de que a Lei Complementar n° 56/87,
assim como o Decreto-lei n° 834/69, não teriam alterado a substância do regime jurídico
previsto na redação original do artigo 9º, § 3º, do Decreto-lei n° 406/68, pois não teriam
retirado ou acrescentado condições para a aplicação do regime de tributação fixa aos
profissionais autônomos e às sociedades profissionais, que continuou a exigir, em
síntese, a responsabilidade pessoal do profissional prevista em lei. As adaptações ter-seiam restringido tão-somente a adaptar os itens da lista de serviços, não havendo
inovação jurídica em relação ao comando normativo, pelo que tal dispositivo não
constitui, formalmente, preceito autônomo, mas sim preceito que se incorporou à lei
original da qual passa a fazer parte integrante, o que impediria a revogação indireta da
legislação anterior.
788
Os itens são os seguintes: 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92, de acordo com a redação dada ao § 3º do
artigo 9º do Decreto-lei n. 406/68 pela Lei Complementar n. 56/87.
306
Por fim, defendem os autores que os §§ 1º e 3º do artigo 9º, do Decreto-lei n°
406/68, por veicularem inequívocas normas de caráter especial, não teriam sido
revogadas pela Lei Complementar n° 116/2003, devido ao seu nítido caráter de norma
geral, ex vi dos §§ 1º e 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei
n° 4.657, de 04 set. 1942), os quais prescrevem, respectivamente, que “A lei posterior
revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível
ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”, e que “A lei
nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga
nem modifica a lei anterior”. Raciocínio semelhante encontra-se nos artigos de
CONDORCET REZENDE, GUSTAVO BRIGAGÃO e ALISSON CARVALHO DE
SOUZA790, e de MARIA DO ROSÁRIO ESTEVES791.
O Superior Tribunal de Justiça já possui decisões sobre o tema, como ilustra a
transcrita abaixo, a que entendeu pela não revogação do artigo 9º, §§ 1º e 3º, do
Decreto-Lei n. 406/68, pelo artigo 10 da Lei Complementar nº 116/2003. Obviamente, a
questão da constitucionalidade da tributação fixa não é apreciada, por força da função
desse tribunal estar limitada ao exame de questões infraconstitucionais:
TRIBUTÁRIO. PROCESSO CIVIL. ISS. REVOGAÇÃO. ART. 9º, §§ 1º E
3º, DO DECRETO-LEI N. 406/68. REVOGAÇÃO. ART. 10 DA LEI N.
116/2003. NÃO-OCORRÊNCIA. 1. O art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei n.
406/68, que dispõe acerca da incidência de ISS sobre as sociedades civis
uniprofissionais, não foi revogado pelo art. 10 da Lei n. 116/2003. 2. Recurso
especial improvido.792
BETINA TREIGER GRUPENMACHER, com sólidos argumentos científicos,
defende entendimento diverso. Para a jurista paranaense, não há como negar ter a Lei
Complementar n° 56/87 modificado o § 3º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68,
mantendo em preceito novo e autônomo o regime da tributação fixa às sociedades
profissionais, o que equivaleria a tê-lo revogado parcialmente (derrogação), atraindo,
com efeito, o caput do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, o qual dispõe que
“Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou
revogue”. Nesse ponto de vista, a revogação da Lei Complementar n° 56/87 pela Lei
789
O ISS das Sociedades de Serviços Profissionais e a Lei Complementar nº 116/2003. In: ROCHA,
Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 9-18.
790
A base de cálculo do ISS devido pelas sociedades profissionais. In ibidem, p. 407-409.
791
O ISS das sociedades de profissionais: análise da LC n. 116/2003, in ibidem, p. 443-449.
792
REsp 713.752/PB, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em
23.05.2006, DJ 18.08.2006 p. 371 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev.
2007.
307
Complementar n° 116/2003 teria excluído do sistema jurídico o benefício antes
aplicável às sociedades profissionais. Por outro lado, em face da vedação de
repristinação constante do § 3º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, essa
revogação não teria o poder de ressuscitar o artigo 9º, § 3º do Decreto-lei n° 406/68. No
entanto, devido à pacífica não revogação do regime de tributação fixa para os
profissionais autônomos, a autora defende que, por força do Princípio da Isonomia
Tributária, tal regime deve ser estendido às sociedades profissionais, posto que a
distinção entre ambos os contribuintes – trabalho pessoal ou mediante a reunião em
sociedade não empresarial – não autoriza a instituir tratamento tributário desigual, pelo
que conclui que as sociedades profissionais ainda fazem jus ao regime de tributação
fixa.793
JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, não obstante em um primeiro
momento ter afirmado que o artigo 10 da Lei Complementar n° 116/2003 revogou
expressamente o preceito legal que dispunha sobre a diferenciada tributação das
sociedades uniprofissionais – inciso IV do Decreto-lei n° 834/69 – chegando mesmo a
afirmar que a partir de janeiro de 2004 “[...] os Municípios deverão cobrar o ISS das
sociedades uniprofissionais, com a estipulação de alíquotas com limites específicos
(mínima de 2%,e máxima de 5%)”, logo após assinala que “[...] esta situação não é
tranqüila sob a assertiva de que o artigo 10 da Lei Complementar n° 116/03 não
revogou expressamente o artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, mas distintos preceitos
(arts. 8º, 10, 11 e 12)”, assim como, por força da Lei de Introdução ao Código Civil,
não vislumbra o autor incompatibilidade entre a lei nova e o dispositivo anterior, nem
regulação integral na norma posterior.794
Quer parecer, entretanto, que melhor razão assiste ao entendimento pela
subsistência do regime de tributação fixa às sociedades profissionais. Em excelente
artigo, EDUARDO FORTUNATO BIM reúne argumentos que entendemos como os
únicos válidos na solução da questão.795 Em primeiro lugar, o deslinde da questão exige
consignar a distinção conceitual entre “validade” e “eficácia”, atributos da norma
jurídica que não se confundem. Conforme ALFREDO AUGUSTO BECKER, a
validade da regra jurídica decorre da natureza do órgão que a criou e está condicionada
793
Sociedades de profissionais e tributação fixa frente à Lei Complementar nº 116/2003. In: ROCHA,
Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 36-51.
794
ISS..., op. cit., p. 134-135.
308
à harmonia, não contrariedade, com a totalidade do sistema jurídico do qual passa a
fazer parte. A eficácia jurídica refere-se aos efeitos jurídicos prescritos pela regra
jurídica.796 Uma conseqüência relevante dessa distinção resulta em que a revogação de
uma norma não lhe atinge a eficácia já produzida e que continua protegida pelo Direito,
mas tão-somente a sua validade. Conforme ensina TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ
JÚNIOR, a eficácia não se revoga, anula-se.797 A anulação da eficácia jurídica ocorre,
por exemplo, com a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal
Federal, ainda que tal decisão, que torna a norma inválida, tenha somente efeitos “ex
nunc”, mantendo sua eficácia no mundo jurídico por razões de segurança jurídica,
excepcional interesse social – artigo 27 da Lei n° 9.868, de 10 nov. 1999 – ou ainda
outro
valor
que
a
Suprema
Corte
entenda
relevante,
em
um
juízo
de
proporcionalidade.798
Com efeito, as redações posteriores do Decreto-lei n° 406/68 são resultado da
eficácia, primeiro do Decreto-lei n° 834/69, e depois, da Lei Complementar n° 56/87.
Com a revogação, não anulação, dessas duas normas pela Lei Complementar n°
116/2003, não houve revogação do Decreto-lei n° 406/68 com sua nova redação, pois é
produto da eficácia, e não da validade, da legislação revogada, passando, portanto, a ter
existência autônoma. Disso decorre ainda outra conclusão importante: a revogação
verificada não resulta na “repristinação” da redação original do Decreto-lei n° 406/68,
pois isso somente ocorreria na hipótese de que a legislação que o alterou fosse declarada
inválida (inconstitucional) pelo Supremo Tribunal Federal, mediante o controle
concentrado de constitucionalidade.799
Não ocorreu, ainda, a revogação tácita, pois não há incompatibilidade entre o
artigo 7º da Lei Complementar n° 116/2003 – único artigo que trata sobre a base de
cálculo – e a norma anterior, ainda vigente; e, por outro lado, a Lei Complementar n°
116/2003 não regulou inteiramente a matéria, mas, tão-somente, limitou-se a reproduzir
o caput do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68 e regulamentar os serviços dos itens 3.04,
7.02 e 7.05, os quais em nada dizem respeito ao regime de tributação fixa. Fica afastada,
portanto, a aplicação do § 1º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, pelo
795
A subsistência do ISS fixo para as sociedades uniprofissionais em face da Lei Complementar 116/03: a
plena vigência do § 3º do artigo 9º do DL 406/68. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS...,
op. cit., p. 85-98.
796
Teoria..., op. cit., p. 79-80.
797
Introdução ao Estudo do Direito, p. 202.
798
BIM, Eduardo Fortunato. A Subsistência do ISS..., op. cit., p. 89-90.
799
Ibidem, p. 91-92.
309
qual “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei
anterior”.800
Também se poderia argumentar que o caput do artigo 7º da Lei Complementar
n° 116/2003, quando dispõe que a base de cálculo é o preço do serviço, teria revogado,
com base no critério cronológico –“lex posterior derogat priori” – a norma que prevê o
regime de tributação fixa. Ocorre que essa norma é de caráter inequivocamente especial
em relação àquela, porque trata de uma situação “sui generis”, ou seja, da definição da
base de cálculo das sociedades profissionais, a qual é diferente em relação ao regime
geral. Diante do critério da especialidade – “lex specialis derogat generalis” – não
houve, assim, a revogação alegada.
De acordo com a doutrina, no problema da antinomia entre o critério da
especialidade e o cronológico prevalece o primeiro, conforme a dicção do brocardo “lex
posterior generalis non derrogat priori specialis”. A Lei Complementar n° 116/2003
(artigo 7º), lei posterior e geral, não revogou o Decreto-lei n° 406/68 (artigo 9, § 3º),
lei anterior e especial, em observância ao § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao
Código Civil, pelo qual “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a
par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.801
Por fim, a posterior supressão do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, no artigo
10 da Lei Complementar n° 116/2003, o qual constava na redação original do Projeto de
Lei Complementar nº 01/91 da Câmara dos Deputados, demonstra que sua ausência não
representa uma lacuna, um simples esquecimento do legislador, pois ele tinha plena
ciência da exclusão do artigo 9º do artigo revogador, o que evidencia a intenção de
manter o regime de tributação fixa para as sociedades profissionais. EDUARDO
FORTUNATO BIM designa essa atitude de “silêncio eloqüente do legislador”,
propositado e relevante para o Direito, por representar uma manifestação de vontade do
legislador que está presente no contexto, mas não no texto normativo. O silêncio do
legislador ultrapassou a “mens legis” ou a “mens legislatoris”, passando a integrar a
norma jurídica.802
Registre-se, no entanto, que a importância do exame da tributação fixa é de
aspecto prático, do qual não podemos nos furtar, e decorre apenas da equivocada
800
Ibidem, p. 92-93.
Ibidem, p. 93-95.
802
Ibidem, p. 96-97.
801
310
orientação jurisprudencial, a qual entendeu, ao longo dos anos, pela sua
constitucionalidade. Entretanto, a discussão juridicamente mais relevante reside no teste
de sua constitucionalidade.
O tema dos tributos fixos foi estudado de forma acentuada na doutrina
estrangeira, tendo, a maior parte dos países, aceito essa sistemática como válida. O
Direito Comparado, infelizmente, influenciou desmedidamente a doutrina do Direito
Tributário em nosso país. JUAN RAMALLO MASSANET, por exemplo, distingue os
tributos fixos dos tributos “variáveis”, estando o discrímen, em síntese, na prévia
atribuição, quanto aos primeiros, do valor da prestação pela norma jurídica, e na
identificação desse valor, quanto aos segundos, apenas com a ocorrência do fato
tributário, o que por si só já revela, entendemos, a potencial violação do Princípio da
Isonomia Tributária:
Por cuota fija o tributo fijo podemos entender aquel en que la norma jurídica
prevé el montante o cuantia de la prestación. Junto al presupuesto de hecho
hipotético, y para cada uno de ellos, se establece, como consecuencia
jurídica, el pago de una concreta cantidad de dinero. Por cuota variable o
tributo variable, por el contrario, se entiende aquel en que la norma jurídica
no suele establecer un mandato o consecuencia concretamente cuantificada,
sino los elementos para llegar a ella, y, en el supuesto en que la prestación se
halle cuantificada, no se hace de modo individual para cada hecho imponible,
sino que a un hecho imponible le siguen varias consecuencias jurídicas
hipotéticas y alternativa, que dependerán o variarán según alguna
circunstancia del citado hecho.803
Interpretando os §§ 1º e 2º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, RUBENS
GOMES DE SOUSA, em parecer específico sobre o tema, entende, em síntese, que, da
norma geral (nacional) em comento não se extrai a autorização para que o município
possa restringir o regime de tributação fixa apenas e tão-somente às sociedades cujos
sócios sejam todos integrantes de uma mesma categoria profissional legalmente
regulamentada, desde que o objeto da sociedade abranja o exercício de todas elas.804 Em
outro ângulo da questão, entende o autor que tal norma não ofende o Princípio da
Isonomia, uma vez que, pelo fato de todas as sociedades prestadoras de serviços
profissionais constituírem uma só categoria jurídica, todas devem ser tratadas de igual
forma, seja para fins tributários ou outros quaisquer.
Para o autor, o discrímen dessa categoria jurídica específica deve-se ao regime
jurídico federal a que estão submetidas as sociedades cujos sócios exerçam profissões
803
804
Hecho Imponible..., op. cit., p. 11
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 355-356.
311
legalmente regulamentadas, cujo ponto comum, pode-se destacar, é a presença da
responsabilidade pessoal de cada sócio pelos serviços individualmente prestados,
irrelevante, para esse fim, o fato de integrar uma sociedade (pessoa jurídica). Como tais
sócios, ainda que pertencentes ao quadro societário de uma pessoa jurídica, exercem sua
atividade de forma pessoal, ela não teria caráter empresarial, donde se conclui que a
manifestação da capacidade contributiva teria a mesma intensidade caso o sócio
prestasse os mesmos serviços como profissional autônomo, onde a tributação, conforme
prevê o § 1 do mesmo artigo 9, é calculada com base no mesmo regime fixo.
MARÇAL JUSTEN FILHO, apesar de concordar ser inconstitucional exigir
ISS de quem não prestou nenhum serviço, a causa da inconstitucionalidade não é
diretamente a ofensa da isonomia, mas a inocorrência de fato “imponível” desse tributo,
do que resulta o legislador municipal estar agindo sem competência. A ofensa à
isonomia caracterizar-se-ia, efetivamente, com a adoção da predeterminação da
prestação tributária em relação aos que prestem serviços. 805 Amparado na célebre obra
de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO sobre o Princípio da Igualdade 806, o
autor entende haver ofensa à isonomia positivada constitucionalmente “[...] quando a
lei trata igualmente situações e se verifica: a) um traço diferencial entre elas, residente
nas pessoas, coisas ou situações identificadas; b) esse traço diferencial conduziria,
logicamente, à necessidade de um tratamento jurídico diverso e inconfundível; e isto
porque; c) os interesses constitucionalmente tutelados exigem a diversidade de
tratamento”. Em especial no campo tributário, o interesse jurídico fundamental é o de
que a carga tributária seja distribuída em equilíbrio com a riqueza existente, para que
onde haja maior riqueza, maior seja o valor da prestação tributária e vice-versa. Com
efeito, será inválida norma que dê tratamento idêntico a situações díspares, ou que, ao
contrário, dê tratamento diverso a situações idênticas.807
Adverte ainda o autor que com a defesa da capacidade contributiva relativa,
acabaríamos por ingressar no questionamento da justiça ou injustiça do valor da
prestação tributária, perquirindo, em cada caso, qual a riqueza que cada contribuinte
possui e a proporcionalidade da carga tributária a ele imposta, tema puramente político
805
O imposto..., op. cit., p. 165-166.
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO
analisou a isonomia somente do ponto de vista do tratamento desigual adotado pela lei, mas não se
deteve no outro ângulo da isonomia, que veda tratamento igual para os desiguais. É nesse sentido que
MARÇAL JUSTEN FILHO expõe seu entendimento em relação ao ISS.
807
O imposto..., op. cit., p. 166-167.
806
312
e, portanto, refutado pelo autor. Quando a lei estabelece, portanto, uma quantia fixa e
invariável a título de ISS para uma categoria de serviços, acaba por tratar de forma
idêntica diferentes situações jurídicas. Vejamos seu entendimento:
Se o núcleo da hipótese de incidência é dado pelo conceito de “prestação de
serviço”, não há como negar que a prestação tributária há de ser condicionada
pelo caráter e pela intensidade da atividade de “prestação de serviço”. Logo,
não há fundamento jurídico para atribuir idêntico tratamento a quem
desempenhe inúmeras prestações de serviço, altamente relevantes, e a quem
desempenhe umas poucas prestações de serviço, economicamente
irrelevantes.808
O jurista paranaense vê ainda outro fundamento para a inconstitucionalidade da
sistemática de tributação fixa. É que, pela Constituição, o critério material do ISS, que é
o núcleo da hipótese de incidência, é a “prestação de serviço”, pelo que a prestação
tributária deve obrigatoriamente quantificar essa materialidade. E isso não ocorre
quando se tributa com valores fixos, pois nesses casos deixa-se de tributar a prestação
de serviços para se tributar a “habilitação para a prestação de serviços” ou o “exercício
de profissão”, desnaturando o formato original do ISS previsto na Constituição. A
materialidade do ISS é um fato (ato) jurídico, e não um estado, de fato ou de direito. “O
ISS não incide sobre uma seqüência de situações homogêneas verificadas durante um
espaço de tempo – sua incidência recai sobre cada ato jurídico qualificável como
execução de obrigação de fazer”.809
Com relação aos serviços gratuitos, ou seja, aqueles que não têm a
remuneração – benefício economicamente avaliável – como contraprestação direta e
objetiva da prestação do serviço, entendemos pela não incidência do ISS sobre os
mesmos. Não se entenda remuneração como valor em dinheiro, muito menos aquele
recebido com intuito de lucro. O ISS, portanto, só incide sobre serviço qualificável
juridicamente como execução de obrigação de fazer decorrente de contrato bilateral.
Perceba-se que, caso o tributo incidisse, a obrigação tributária nem poderia nascer, pois
não há como fixar a prestação devida, já que a base de cálculo teria valor zero.
Qualquer valor exigido representaria confisco estatal de bens privados, pela
inexistência de fato signo-presuntivo de riqueza. O mesmo não ocorre no caso de a
remuneração ser mínima, para fins, por exemplo, de compensação de despesas do
prestador, posto que a incidência do ISS não está condicionada à existência de lucro –
808
809
Ibidem, p. 168-170.
Ibidem, p. 170-171.
313
aumento patrimonial, renda líquida. E se tal condição fosse possível, seu critério
material confundir-se-ia com o do imposto de renda.810
O § 1º, do artigo 7º, da Lei Complementar n° 116/2003, dispõe que para os
serviços de “Locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de
uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de
qualquer natureza”, quando prestados no território de mais de um município, “[...] a
base de cálculo será proporcional, conforme o caso, à extensão da ferrovia, rodovia,
dutos e condutos de qualquer natureza, cabos de qualquer natureza, ou ao número de
postes, existentes em cada Município”.
Em uma primeira leitura já se verifica a inconstitucionalidade do preceito, pois
trata, como prestação de serviço, o que na verdade é cessão de direito, o que impede a
incidência de ISS. Por outro lado, quando vincula a base de cálculo, de forma
proporcional, “[...] à extensão da ferrovia, rodovia, dutos e condutos de qualquer
natureza, cabos de qualquer natureza, ou ao número de postes, existentes em cada
Município”, o dispositivo legal acaba por admitir a própria inconstitucionalidade, pois é
cristalino que a maior ou menor extensão de uma ferrovia, por exemplo, não é critério
que possa mensurar qualquer execução de obrigação de fazer.
4.4.2.2 Alíquota
Com o advento do Ato Complementar nº 34, de 30 jan. 1967 – baixado,
portanto, no intermédio entre a promulgação da Constituição de 24 jan. 1967 e a data de
sua vigência, em 15 mar. 1967 – através de seu artigo 9º, foram estabelecidas alíquotas
máximas para a tributação do ISS, visando acabar com os abusos cometidos por
algumas municipalidades811, em que pese a competência tributária para a instituição do
ISS tenha sido outorgada originalmente aos municípios sem limite algum, quando da
aprovação da Emenda Constitucional nº 18/65. Ou seja, ressalvados os Princípios da
Capacidade Contributiva e da Vedação de Tributo com efeito de Confisco, o formato
original do ISS conferia, ao legislador municipal, total discricionariedade na fixação de
suas alíquotas, o que torna discutível o teor do referido ato complementar.
810
811
Ibidem, p. 171-172.
“Artigo 9º Ficam estabelecidas as seguintes alíquotas máximas para a cobrança do imposto
municipal sobre serviços: I – execução de obras hidráulicas ou de construção civil, até 2%; II –
jogos e diversões públicas, até 10%; III – demais serviços, até 5%.”
314
A Constituição de 1967 também não trouxe nenhuma limitação máxima para as
alíquotas do ISS e, por ter entrado em vigor após o Ato Complementar nº 34/67, não
recepcionou seu conteúdo, com o que se conclui pela sua revogação. Vindo à luz o
Decreto-lei nº 406/68, cujo teor compreendeu a regulação total do ISS em nível
infraconstitucional, ratificou-se mais uma vez a inexistência de limites máximos às
alíquotas desse imposto, desde que não havia, nessa lei, nenhum dispositivo nesse
sentido.
A Emenda Constitucional nº 01/69, embora também não tenha trazido, de
forma direta, qualquer limitação quanto às alíquotas do ISS, autorizou, em seu artigo 24,
§ 4º, o legislador complementar, a estabelecer as alíquotas máxima desse imposto. Esse
quadro levou BERNARDO RIBEIRO DE MORAES a concluir pela inexistência, em
1975, de quaisquer limites máximos para a determinação da alíquota do ISS pelos
municípios812; posição que, inclusive, foi encampada à época pelo Supremo Tribunal
Federal – RE nº 81.222-SP, Acórdão de 15/09/76, Tribunal Pleno, Relator Ministro
Xavier de Albuquerque – conforme anota MARILENE TALARICO MARTINS
RODRIGUES.813
A Constituição Federal em vigor, em seu artigo 156, § 3º, I, na antiga redação
dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 17 mar. 1993, já previa caber à lei
complementar fixar as alíquotas máximas para o ISS. Até o advento da Lei
Complementar nº 100, de 22 dez. 1999, não havia limitação alguma para os municípios
nesse sentido, salvo na hipótese de configurar efeitos confiscatórios. Com essa lei, ficou
estabelecido o percentual de cinco por cento como alíquota máxima do ISS.
Interpretando o dispositivo, AIRES BARRETO advoga a inconstitucionalidade
das leis municipais que estabeleçam, para qualquer espécie de serviço, percentual
superior a cinco por cento.814 Sob a égide da Lei Complementar nº 116/2003, a alíquota
máxima continua sendo de cinco por cento. O inciso I do artigo 8º, que previa alíquota
máxima de dez por cento para alguns serviços de diversão pública, foi vetado quando
submetido à sanção pelo Presidente da República.
Com o objetivo de evitar a guerra fiscal entre os municípios, a Emenda
Constitucional nº 37, de 12 jun. 2002, deu nova redação ao inciso I do § 3º do artigo
156, da Constituição, o qual, a partir de então, passou a atribuir à lei complementar a
812
Doutrina..., op. cit., p. 554-556.
Imposto sobre serviços..., op. cit., p. 51.
814
ISS na Constituição..., op. cit., p. 146.
813
315
competência para fixar, ao lado da alíquota máxima, também as alíquotas mínimas do
ISS. Também estabeleceu, mediante o acréscimo do inciso III, ao § 3º do mesmo artigo
156, caber à lei complementar regular a forma e as condições como isenções, incentivos
e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, a Emenda nº
37/2002 ainda incluiu o artigo 88, dispondo que, enquanto lei complementar não
disciplinar o disposto nos incisos I e III, do § 3º, do artigo 156, da Constituição Federal,
o ISS: (I) terá alíquota mínima de 2% (dois por cento), exceto para os serviços a que se
referem os itens 32 a 34 da lista anexa ao Decreto-lei nº 406/68 – redação dada pela Lei
Complementar nº 56/87; e (II) não será objeto de concessão de isenções, incentivos e
benefícios fiscais, que resultem, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima
precitada.
As exceções à alíquota mínima referem-se a serviços de construção civil, onde
o ISS, no Decreto-lei nº 406/68, era excepcionalmente devido ao município onde se
localizam as obras, do que resultava desnecessária a definição de alíquotas mínimas por
impossibilidade de guerra fiscal entre os municípios para essa receita específica. A
fixação de alíquota mínima visa alcançar aqueles serviços em que o ISS, conforme
prescreve o artigo 12, “a”, do Decreto-lei nº 406/68, é devido ao município onde está
situado o estabelecimento prestador, por serem tais serviços os que ensejam a “guerra
fiscal” entre os municípios, pois era comum o contribuinte que tinha seu
estabelecimento prestador em município, onde a alíquota do ISS era ínfima, mas que
prestava serviços em outro município, onde a carga tributária era maior. 815
Quer parecer que a Emenda nº 37/2002, quando remete à lei complementar a
fixação de alíquotas mínimas para o ISS e a regulação da forma e as condições como
isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados, assim como
quando fixa a alíquota mínima em dois por cento, enquanto aquela lei complementar
não for editada, além de não se compatibilizar com nenhuma das funções
constitucionalmente previstas para edição de normas gerais de Direito Tributário, é
inequivocamente violadora do Princípio da Autonomia Municipal, pelo que pode e deve
ser declarada inconstitucional. DALTON LUIZ DALLAZEM tem o mesmo
entendimento, acrescendo que não vislumbra nenhum conflito de competências
tributárias entre municípios em matéria de isenções, incentivos e benefícios fiscais que
815
ALVES, Anna Emília Cordelli. A base de cálculo..., op. cit., p. 178.
316
pudesse ser resolvido pela lei complementar da União, hipótese que legitimaria sua
edição.816
Não resta a menor dúvida de que o disposto no artigo 156, § 3º, I, da
Constituição de 1988, encerra uma “limitação constitucional ao poder de tributar”. A lei
complementar de que trata esse artigo, portanto, tem a configuração de norma geral de
Direito Tributário, editável nos moldes do artigo 146, II, da Constituição, o qual dispõe
caber à lei complementar “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar”.
Mas, advirta-se, não é a própria lei complementar que limita a competência municipal,
posto que todas as “limitações ao poder de tributar”, ou, dizendo de outra forma, o
desenho já “acabado” das normas atributivas de competência, já se encontra previsto na
própria Constituição. A lei complementar em comento tem, tão-somente, a competência
de regular, e não criar ela própria qualquer limitação nesse sentido.
Partindo dessa premissa, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES – analisando o
artigo 24, § 4º, da Constituição Federal de 1969, equivalente ao inciso III do § 3º do
artigo 156, em sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 3/93 – esclarece a
contento que, à União cabe, apenas, fixar as alíquotas máximas para o ISS, não estando
previsto na Constituição competência para a União fixar as alíquotas do ISS, apesar de a
literalidade do inciso III, do § 3º, do artigo 156, poder conduzir a esse entendimento
equivocado. É que a lei complementar, ora tratada, é lei sobre leis de tributação, do
que resulta não estabelecer, de imediato, a alíquota desse imposto, mas apenas fixa os
tetos que não poderão ser ultrapassados pelas leis municipais.
Com acerto, o autor critica a doutrina que entende ter a lei complementar o
poder de, sponte sua, estabelecer limitações à competência tributária dos municípios, o
que acabaria por conferir uma supremacia jurídica e política da União Federal sobre os
municípios, o que não se compadece com a igualdade hierárquica destas pessoas
políticas, assim como ofende frontalmente o Princípio da Autonomia Municipal.
Dessume-se do exposto que, mesmo após o advento das alíquotas máximas para o ISS,
será imprescindível a existência de lei municipal cuja eficácia de suas prescrições seja
compatível com a disciplina da lei complementar.817
Em sentido contrário é o pensamento de MARÇAL JUSTEN FILHO, em
comentário ainda sobre a Constituição anterior, pelo qual a reserva de lei complementar
para fixação dos limites máximos das alíquotas do ISS, como defende JOSÉ SOUTO
816
A responsabilidade tributária..., op. cit., p. 163-164.
317
MAIOR BORGES, não tem natureza jurídica de uma “limitação constitucional ao poder
de tributar”, pois “[...] o Município não está sujeito a qualquer limitação
constitucional, no que tange à fixação de alíquotas. Apenas se o legislador
complementar nacional decidir-se a entra em atividade e impor limites é que eles
surgirão”. Acrescenta o autor que:
Somente haverá campo para a lei complementar dispor no que extravasar o
próprio interesse peculiar do Município, para configurar-se como interesse
maior, nacional. Ou seja, o interesse nacional é o de que a alíquota do ISS,
estabelecida pelos Municípios, não prejudique o interesse nacional; consiste
em que a atuação fiscal do Estado não destrua a iniciativa econômica nem
caracterize uma atividade competitiva destrutiva entre os variados
Municípios.818
Em que pesem os bons argumentos desse autor, entende-se que melhor razão
assiste ao pensamento de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, assim como pela certeza de
que toda lei complementar tributária de âmbito nacional veicula normas gerais,
dispondo ou sobre conflitos de competência, ou sobre as “limitações constitucionais ao
poder de tributar”. Em comentário sobre o artigo 24, § 4º, da Constituição de 1969, que,
como já se disse, equivale à redação dada pela Emenda nº 3/93 ao inciso III do § 3º do
artigo 156 da Constituição de 1988, esse autor ressalta que, em face da atribuição de
competência à lei complementar para fixação das alíquotas máxima para o ISS, três
alternativas podem efetivamente vir a ocorrer: (I) a alíquota da lei municipal anterior
pode ser superior ao teto previsto na lei complementar; (II) pode a lei municipal ter
fixado alíquota inferior à autorizada na lei complementar; e por fim (III) pode a lei
municipal ter isentado, total ou parcialmente, a prestação de serviços cujo teto venha a
ser fixado em lei complementar.819
Como a Constituição de 1969 não previa a competência para fixação de
alíquotas mínimas, como fez a Emenda nº 37/2002, ao dar a nova redação ao inciso I,
do § 3º, do artigo 156, da Constituição, a análise desse autor restringiu-se, obviamente,
à questão da fixação de alíquotas máximas, o que requer sejam seus comentários
adaptados ao novo contexto constitucional. Para a hipótese (I), o autor adverte para o
problema de saber se é suficiente a lei complementar reduzindo a alíquota do imposto,
para dar continuidade à sua cobrança, observados os limites da redução heterônoma, ou
se é necessária a edição de lei municipal fixando alíquota compatível com a lei
817
Lei Complementar..., op. cit., p. 208-209.
O imposto..., op. cit., p. 172-175.
819
Lei Complementar..., op. cit., p. 209-210.
818
318
complementar. O autor propõe a seguinte solução, com as quais filiamo-nos
incondicionalmente:
Ora, a lei complementar superveniente não revogará a lei municipal, mas
apenas lhe suspenderá a eficácia no tocante à parte que exceder ao teto fixado
para a tributação. A lei municipal preexistente à lei complementar regulatória
da limitação constitucional já preenche, por si só, as exigências do princípio
da legalidade. Logo, não é necessária a edição de lei municipal posterior
reduzindo a alíquota do tributo, para fins de cobrança. [...] A legislação
municipal antecedente, que excede o teto da lei complementar posteriormente
editada, perde a sua eficácia, na parte excedente. Não é necessário, para a
continuidade da cobrança do tributo, a superveniência de lei municipal
ajustando as vigentes alíquotas do imposto às alíquotas-teto autorizadas em
lei complementar.820
Como à época ainda não havia previsão equivalente sobre qual seria a alíquota
mínima, o autor entendia, então, que nas hipóteses (II) e (III) “[...] não se oferece maior
problema, porque a conseqüência da lei complementar superveniente consistirá apenas
em condicionar o exercício da atividade legislativa futura no âmbito municipal, se
entender o Município de elevar a alíquota do imposto (II) ou tributar atividade até
então isenta (III)”.821
Aplicando-se analogicamente o raciocínio expendido por esse autor à situação
originada após o advento da EC 37/2002, tem-se que, nos casos de (II) a alíquota
prevista em lei municipal ser inferior ao piso estabelecido na lei complementar; ou
ainda, (III) existir na legislação municipal concessão parcial ou total de isenção de ISS
para hipóteses para as quais também exista lei complementar prevendo o referido piso; a
lei complementar posterior também não revogará a lei municipal, a qual, na verdade,
terá sua eficácia alterada de forma a compatibilizar-se com os ditames da lei
complementar.
Não pode a União, entretanto, a pretexto de aplicação do artigo 156, III, § 3º,
da Constituição, inibir a competência tributária municipal, mediante a “[...] fixação de
alíquotas máximas de tal modo insuficientes para as necessidades públicas no âmbito
municipal que a autonomia do Município, cuja preservação deve ser por mandamento
constitucional assegurada, venha a tornar-se praticamente coartada pela legislação
complementar”.822
Há casos de isenção, no entanto, que merecem tratamento diferenciado, em
razão da existência de direito adquirido por parte do beneficiário, nos moldes do que
820
821
Ibidem, p. 210
Idem.
319
dispõe o artigo 178 do Código Tributário Nacional, pelo qual “A isenção, salvo se
concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada
ou modificada por lei, a qualquer tempo”, observado o Princípio da Anterioridade.
PAULO DE BARROS CARVALHO tece crítica à letra desse artigo, argumentando
que, em decorrência do princípio implícito da supremacia do interesse público sobre o
dos particulares, também as isenções concedidas por prazo certo e mediante condições
podem ser ab-rogadas – revogadas totalmente – ou derrogadas – revogação parcial –
desde que, no entanto, haja justa indenização advinda dos prejuízos do inadimplemento
contratual.823
LUCIANO AMARO concorda com o entendimento de PAULO DE BARROS
CARVALHO de que o artigo 178 do Código Tributário Nacional não pode ser um
obstáculo à revogação da norma legal definidora da hipótese de isenção, mas, amparado
em FLÁVIO BAUER NOVELLI, acresce que, diante da inequívoca existência de
direito adquirido à eficácia da isenção, os seus efeitos devem permanecer incólumes
para o destinatário que cumpriu as condições, até que ocorra seu termo pelo decurso do
prazo fixado. Por óbvio que, ainda que não revogada a lei, os efeitos da isenção cessarão
quando esgotado o prazo de sua aplicação.824 Não se pode recusar, contudo, os
argumentos de PAULO DE BARROS CARVALHO, pois é a própria “sobrevivência”
da eficácia da isenção, após a revogação da respectiva norma, que confere o direito à
indenização pelo beneficiário, na hipótese dessa eficácia ser cassada.
822
Ibidem, p. 211.
Curso..., op. cit., p. 495.
824
Direito Tributário Brasileiro, p. 277-278.
823
320
5. CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS
5.1 CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS
A análise dos conflitos de competência existentes pode ser resumida a duas
espécies. A primeira espécie abrange os conflitos envolvendo a chamada competência
heterogênea, também chamados de conflitos materiais, pois o problema decorre da
dificuldade, no plano pré-jurídico, de subsunção de um determinado fato a mais de uma
hipótese tributária, de pessoas políticas diversas, como, por exemplo, conflitos entre
estados e municípios (ICMS e ISS), ou entre a União e os municípios (IPI e ISS).
A segunda espécie trata dos conflitos acerca da chamada competência
homogênea, onde não há dúvida quanto ao tributo incidente sobre determinado fato
ocorrido, mas sim sobre a titularidade da competência para a tributação, envolvendo,
portanto, duas ou mais pessoas políticas da mesma órbita, como, por exemplo, conflito
entre municípios, com ambos exigindo o ISS sobre o mesmo fato. 825
O objeto de nosso estudo versa a segunda hipótese. Ainda que de modo breve,
os conflitos de competência heterogênea já foram analisados no item destinado ao
exame das relações do ISS com o ICMS e o IPI. 826 Há muitos anos, a doutrina e a
jurisprudência têm-se deparado com o problema da existência de conflitos envolvendo
municípios, mais especificamente sobre a pretensão tributária de mais de um município
sobre a ocorrência de apenas um fato tributário do ISS, ou seja, sobre uma única
prestação de serviço. Ou seja, dois municípios, simultaneamente, defendem ser a lei,
aprovada pelos seus respectivos poderes legislativos, a competente para regular o
mesmo fato ocorrido. Tais conflitos são qualificados como espaciais, pois dizem
respeito à vigência da lei no espaço.
Os conflitos, assim, somente surgem quando a prestação de um serviço envolve
mais de um município, pois se tanto as “atividades-meio”, como o serviço-fim, fossem
sempre desenvolvidos em um único município, não haveria diferença em a lei dispor
que o local em que o imposto é devido é o município onde está o estabelecimento
prestador ou que o tributo é devido no local da efetiva prestação. 827 Muitas vezes, o
conflito entre municípios ocorre não em razão de saber se existe ou não um
825
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 71.
Vide supra, subitem 4.3.1.2.
827
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 318.
826
321
estabelecimento prestador neste ou naquele município, mas, sim, do equívoco em
considerar a prestação de serviço como ocorrida em local onde somente se verificou o
desempenho de meras “atividades-meio”. Ainda que o custo dessas ações intermediárias
seja direta ou indiretamente agregado ao preço do serviço, isso não autoriza possam elas
ser consideradas de forma isolada, como se cada uma fosse uma atividade autônoma em
relação à atividade-fim, esta sim a única que se concretiza como efetiva prestação de
serviço.828 Nesse sentido é o teor do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal
no Recurso Extraordinário nº 97.804-SP.829
GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO confirmam a efetiva existência
desse problema, advertindo, no entanto, que a solução não pode ser transferida aos
próprios municípios interessados, tampouco ser relegada a decisões episódicas e
variadas a serem dadas pelos tribunais. O que se faz necessário, bem defendem esses
autores, é a existência de normas que previnam esses atritos, mediante a fixação de
critérios objetivos hábeis a evitar os conflitos, sendo que é imprescindível que a
idoneidade desses critérios possa ser aferida pela compatibilidade material com as
normas constitucionais pertinentes.830
Os conflitos sobre o local de incidência do ISS, quando resultam em dois ou
mais municípios tributando a mesma prestação de serviço, violam não só os limites
territoriais das leis tributárias, como também afrontam os princípios da Capacidade
Contributiva e da Vedação de Tributo com Efeito de Confisco, pois haverá casos em
que o prestador dos serviços, para poder receber o preço, terá que se sujeitar à retenção
na fonte efetivada pelo tomador, o qual estará obrigado a tanto pela legislação de seu
município, o que implica subtrair, do contribuinte, uma parcela da riqueza por ele
gerada, em montante bem superior àquele ao qual estaria submetido caso a tributação
ocorresse nos moldes constitucionalmente previstos.
De fato, a solução para qualquer conflito de competência em matéria tributária
não é aleatória, não podendo a escolha do respectivo critério ser arbitrária ou ilógica,
pois a Constituição prevê, para cada tributo, um arquétipo único, que permite repartir
828
Ibidem, p. 335.
“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS. ATIVIDADES BANCÁRIAS. CUSTÓDIA DE
TÍTULOS, ELABORAÇÃO DE CADASTRO, EXPEDIENTE. SERVIÇOS SEM AUTONOMIA
PRÓPRIA, INSEPARÁVEIS DA ATIVIDADE FINANCEIRA, QUE NÃO SUSCITAM O IMPOSTO
MUNICIPAL SOBRE SERVIÇOS. EXCEÇÃO CONSIGNADA NA PRÓRIA LEI MUNICIPAL PARA
AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS.” – DJ 31 ago. 1984. Disponível em <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em: 05 fev. 2007.
830
ISS – Conflitos..., op. cit., p. 53.
829
322
com precisão a competência de cada pessoa política. Disso decorre ser “[...] condição
lógico-jurídica da própria existência do sistema que uma situação fática determinada
corresponda à descrição de apenas uma categoria de hipótese de incidência
tributária”, pois, do contrário, “[...] desapareceria a sistematicidade do subsistema
constitucional tributário, indo por terra o princípio da rígida discriminação
constitucional de competências tributárias”.831
Uma simples análise da materialidade do ISS – a prestação de serviços – já
revela a facilidade com que se torna possível a existência de atritos entre municípios,
haja vista existirem, espalhados pelo país, numerosos prestadores de serviço que,
domiciliados em um município, prestam serviços em outro, resultando, portanto, no
problema de definir qual dos entes municipais tem a competência para tributar tais
prestações: ou o município onde a empresa está sediada, ou onde o serviço é
efetivamente prestado.
Ao contrário do que ocorre com o ICMS, onde são apenas duas as hipóteses de
serviços tributáveis – transporte transmunicipal e de comunicação – a tributação dos
serviços pelo ISS é complexa pela própria natureza do fato tributado, em sua maior
parte imaterial, o que torna difícil encontrar todos os elementos necessários para a
identificação de um serviço, os quais podem estar reunidos em um mesmo local, ou em
locais distintos, o que vale tanto para a sua produção como para o seu consumo. Por
outro lado, a possibilidade de conflitos para o ICMS se resume a vinte e sete estados,
enquanto que a tributação dos serviços pelo ISS alcança mais de cinco mil
municípios.832
Os conflitos surgem devido a uma aparente similitude da hipótese de
incidência de normas tributárias diversas, de forma que, um fato, embora se subsuma
perfeitamente a só uma das normas, apresenta aspectos que se encaixam em alguns dos
critérios da outra norma. Em casos como esses, deve-se realizar um cotejo analítico de
cada um dos aspectos da situação fática com os equivalentes critérios constantes das
normas tributárias, o que certamente resultará na conclusão de que o fato se subsume
completamente a uma das hipóteses e apenas parcialmente em relação à outra. “À
medida que se sabe que a hipótese de incidência é um complexo indivisível (dissecável
831
832
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 72.
BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 203.
323
apenas para efeito de análise teórica), compreender-se-á que essa desconformidade
parcial é suficiente para afirmarmos que o fato não corresponde à hipótese”.833
A solução dos conflitos envolvendo competência homogênea, em matéria de
impostos, é obtida pela utilização do critério espaço-temporal. Em primeiro lugar,
verifica-se onde se ultimou a situação fática que corresponde à materialidade da
hipótese de incidência, sendo esse local o competente para determinar a pessoa política
competente para exigir o tributo, ou seja, aquela pessoa a que se submete a
circunscrição territorial em que ocorreu o fato tributário. Para conhecer esse local, no
entanto, é imprescindível a análise do critério temporal, pois somente sabendo quando
um fato ocorreu é que resulta possível saber onde ele se concretizou. Noutro giro, a
verificabilidade do critério temporal está condicionada ao conhecimento do critério
material, ou seja, deve-se conhece a natureza da materialidade para poder saber quando
ocorre o fato tributário.834
Uma das características inerentes ao mundo jurídico é a possibilidade de o
Direito criar a sua própria realidade, independente dela corresponder à realidade do
mundo dos fatos, do mundo fenomênico. O Direito pode conferir aos fatos do mundo
relevância (eficácia) que não possuem na realidade fática. Dizendo de outra forma, os
efeitos inerentes aos fatos do mundo podem ou não ser juridicamente relevantes, tudo a
depender da opção do legislador. Ele pode, ao escolher os fatos do mundo mediante a
sua descrição abstrata, imputar as conseqüências que entender pertinentes, devendo
contudo obedecer aos limites maiores impostos pelo sistema jurídico, em especial aos
princípios constitucionais. Sob os mesmos fundamentos, o Direito pode considerar
como juridicamente existentes fatos que não ocorreram no mundo fenomênico, e da
mesma forma, considerar juridicamente inexistentes fatos que efetivamente ocorreram,
criando o que se chama de “ficção” jurídica.
Quem oferece uma valiosa distinção entre presunção jurídica e ficção jurídica é
DIOGO MARÍN-BARNUEVO FABO, cientista da Universidade Carlos III de Madri.
Para o autor, “[...] presunción es el instituto probatorio que permite al operador
jurídico considerar cierta la realización de un hecho mediante la prueba de otro hecho
distinto al presupuesto fáctico de la norma cuyos efectos se pretenden, debido a la
existencia de un nexo que vincula ambos hechos o al mandato contenido en una
norma”; e ficção jurídica, por sua vez, é uma “[...] disposición normativa que simula la
833
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 72.
324
identidad de dos hechos que se sabe diferentes, con la finalidad de atribuir al segundo
de ellos el mismo régimen jurídico que ya había sido descrito para el primero”.835
Por outro lado, é pacífico que a presunção legal é dispositivo de direito
processual que cria regra de prova, enquanto que a ficção legal é regra de direito
material, substantivo.836 Na verdade, a expressão “ficção jurídica” não é correta, pois o
raciocínio que a formula parte da perspectiva do mundo dos fatos, e não do mundo
jurídico. Resulta de confusão entre o mundo do “ser” e o mundo do “dever-ser”. Uma
vez criada a regra jurídica, seja de ficção legal ou de presunção legal, ambas não se
distinguem, pois tanta uma como outra entram no mundo jurídico como “verdades
jurídicas”.837
Amparados nesses fundamentos, alguns defendem que o legislador
infraconstitucional teria liberdade para definir, como critério espacial da hipótese de
incidência, um local que não coincidisse com aquele onde a materialidade realmente se
concretiza, ou, o que é mais grave, em local situado fora do âmbito espacial de
competência da pessoa política. Ora, ainda que nos estados soberanos haja essa
possibilidade, o mesmo não ocorre em relação às normas veiculadas por entes de uma
federação, como é o Estado Federal brasileiro, pois a ausência de soberania impede que
esses entes legislem, extrapolando o espaço geográfico permitido pela Constituição,
havendo norma constitucional impeditiva nesse sentido. Frise-se, portanto, que a
possibilidade de criar as chamadas “ficções jurídicas”, ainda que existente, não é
ilimitada, encontrando na Constituição Federal, e em especial nos princípios
constitucionais, os contornos que dimensionam o seu legítimo exercício. MARÇAL
JUSTEN FILHO ratifica nosso posicionamento:
é possível o legislador estabelecer ficções, mesmo no campo da construção
da hipótese de incidência. Isso não se nega. Entretanto, há um limite à
instituição de ficções – o limite está na Constituição. Se a ficção concretiza
ofensa à norma expressa ou a princípio constitucional, será ela inválida. Isso
é tanto mais relevante em nosso ordenamento, que se peculiariza por uma
rígida e exaustiva regulação do sistema tributário, restando margem diminuta
de liberdade para a legislação infraconstitucional.838
Em resumo, depreende-se que o exame da constitucionalidade da ficção em
matéria tributária não deve partir da ficção em si mesma, mas do exame de
834
Ibidem, p. 73.
Notas, in apud VIEIRA, José Roberto. Imposto Sobre Produtos..., op. cit., p. 187.
836
SCHOUERI, Luís Eduardo. Distribuição disfarçada de lucros, p. 121.
837
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral..., op. cit., p. 464.
835
325
compatibilidade da própria hipótese ficta com o desenho constitucional do campo de
competência tributária.839 Também nos parece correto o ponto de vista de JOSÉ
EDUARDO SOARES DE MELO, o qual ensina que “[...] dentre a gama de elementos
pertinentes ao aspecto espacial tributário – tais como domicílio, estabelecimento, fonte,
território, origem ou destinação de bens, e negócios envolvendo as partes da relação
jurídica implicadora do tributo – hão de ser perquiridas as diretrizes plasmadas na
Constituição Federal, consoante competências tributárias”.840 Dizendo de outra forma,
o legislador, quando da efetiva criação do tributo, pode eleger, como critério espacial da
sua hipótese de incidência, elementos como domicílio, estabelecimento, origem ou
destino etc., mas desde que tal escolha seja compatível cumulativamente com as
coordenadas de tempo e de espaço previstas, implícita ou explicitamente, na
Constituição, sob pena de se estar criando uma ficção sem respaldo na Lei Maior.
Outra premissa inafastável, no estudo dos conflitos de competência espacial, é
a unidade lógica da norma tributária. Assim como ocorre com qualquer outro tributo,
os critérios da hipótese de incidência do ISS não podem ser interpretados abstraindo-se
uns dos outros. A unidade lógica e indecomponível da regra-matriz tributária não o
permite. Quando dissecamos uma das partes da norma tributária, como estamos fazendo
com o critério espacial, a divisão é realizada somente no plano ideal, e tão-somente para
fins de análise isolada de cada um dos critérios, permitindo, assim, o aprofundamento da
investigação. Mas como todos os conceitos são indecomponíveis, o resultado da análise
de cada um dos critérios está umbilicalmente vinculado à coerência com o sentido
revelado pelos demais. Disso dessume-se que a eleição do critério espacial do ISS, pelo
legislador complementar, assim como de qualquer outro tributo, somente será
constitucional caso seja compatível com os demais critérios da hipótese de incidência,
ou seja, com os critérios material e temporal. Caso contrário, grandes serão os riscos de
o legislador criar nova figura tributária sem autorização constitucional ou, o que é mais
grave, legislar sobre tributo de competência de outra pessoa política.
É que o fato jurídico tributário somente ocorre no momento e no local onde se
reúnem, de forma rigorosamente integral, no mundo fenomênico, todos os elementos
previstos abstratamente no antecedente normativo. Da análise da norma tributária do
ISS pode-se concluir que, integrando a prestação de serviços o seu núcleo, o critério
838
839
O imposto..., op. cit., p. 149.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Distribuição..., op. cit., p. 130.
326
temporal só pode ser o exato momento em que se consuma a referida prestação, ou seja,
aquele átimo de tempo em que se dá por executada voluntariamente a obrigação de
fazer, ou, dizendo de outro modo, o momento em que é dado ao tomador o objeto da
prestação dessa obrigação. Ressalte-se que essa execução da obrigação de fazer deve ser
analisada única e exclusivamente sob o prisma jurídico, pois inútil para tanto serão os
critérios extraídos do exame dos fatos enquanto tais.841
Os critérios da hipótese de incidência – material, espacial e temporal – não
obstante poderem ser analisados de forma individualizada, com abstração dos demais,
no plano da Ciência do Direito, são inseparáveis no plano fático, o que implica a
impossibilidade lógica de dissociação desses critérios em relação ao fato tributário. Com
base nesse raciocínio, MARÇAL JUSTEN FILHO adverte que, se a norma jurídica
elege, para aspecto temporal ou espacial, um momento ou local dissociado da efetiva
ocorrência daquela situação base constante da materialidade, surge um fenômeno
teratológico. A norma estará determinando que o mandamento somente incidirá quando
e onde verificado determinado evento. Porém, e simultaneamente, determinará que o
evento se considerará ocorrido em momento e local diverso daquele em que
efetivamente ocorreu. Diz o autor: “A materialidade será desnaturada sempre que a
incidência normativa for condicionada a um evento distinto daquele formalmente
constante da lei. Portanto, a desnaturação pode produzir-se também quando o
legislador eleger, ao construir a hipótese, aspecto temporal, espacial ou pessoal
incompatíveis com a materialidade”.842
Nesses casos, a norma tributária estará prescrevendo que a situação descrita na
materialidade reputar-se-á ocorrida, não naquele momento ou local em que faticamente
ocorrer, mas, quando e onde se verificar outro evento ocorrido no mundo fático.
MARÇAL JUSTEN FILHO adverte que “[...] os efeitos jurídicos de uma construção
dessa ordem são graves”, pois existe o grave risco de “[...] produzir-se uma oculta
modificação da materialidade da hipótese de incidência”. Portanto, quando uma norma
elege como critério temporal ou espacial um momento ou local que não coincide com o
da ocorrência da materialidade da hipótese, inevitavelmente a ocorrência do fato
tributário estará vinculada a uma outra materialidade, a uma materialidade falsa, com
grandes chances de pertencer à competência de outra pessoa política. A criação de uma
840
Incidência do ISS no local do estabelecimento prestador. O conceito de estabelecimento. In: ROCHA,
Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 217.
841
ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 151.
327
“materialidade aparente”, diz o autor, “[...] reduz a segurança e incrementa disputas de
natureza hermenêutica”.843 Em especial quanto ao critério espacial, diante da
materialidade da hipótese de incidência do ISS, a única possibilidade é o local da efetiva
prestação dos serviços. Como o tributo não incide sobre a prestação potencial dos
serviços, nem sobre a inscrição cadastral, vincular a exigência fiscal a um evento dessa
espécie resultaria em desnaturação da incidência.844
O critério material da hipótese de incidência do ISS, portanto, traz implicações
sobre todos os demais critérios do antecedente normativo, conforme é o ensinamento de
HUMBERTO ÁVILA:
Se o aspecto material do imposto é a prestação de serviços, todos os demais
aspectos deverão refletir essa materialidade: o fato gerador deverá ser
considerado como ocorrido no momento em que se consuma a prestação do
serviço ou de uma fração autônoma sua, caso seja divisível (aspecto
temporal); o fato gerador deverá ser considerado praticado no local em que
ele for prestado (aspecto espacial); o imposto deverá ser pago pelo sujeito
que presta o serviço ou, se razões houver para isso, por aquele que, sem
prestar o serviço, mantém relação com quem o faz (aspecto pessoal); o
imposto deverá incidir sobre o montante que corresponder à remuneração
paga pela prestação do serviço (aspecto quantitativo). Qualquer afastamento
desse aspecto material da hipótese de incidência, mesmo que pela definição
dos seus outros aspectos, implica violação da regra constitucional de
competência para instituir o imposto sobre serviços.845
Impende ainda observar que os conflitos de competência tributária entre os
municípios surgem não só em decorrência da atual disciplina legislativa, mas também
como resultado da autonomia de que desfrutam os particulares prestadores de serviço,
efetivada por meio de planejamento tributário que pode ou não ser lícito, tudo a
depender do exame em cada caso.
5.2 PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA
A territorialidade é tema afeito diretamente ao âmbito espacial de vigência das
normas jurídicas e indiretamente ao critério espacial da hipótese de incidência.
Entretanto, ainda que indiretamente, sua devida interpretação é imprescindível na
fixação da competência tributária dos municípios para a instituição do ISS, tendo como
842
ISS no tempo..., op. cit., p. 55-56.
Ibidem, p. 56-57.
844
Ibidem, p. 63.
845
O imposto sobre serviços..., op. cit.,p. 169.
843
328
base o local de ocorrência do fato tributário. O critério espacial da hipótese de
incidência fornece as coordenadas de local onde se considera ocorrido determinado fato,
produzindo-se os efeitos previstos no conseqüente da norma. Por sua vez, o âmbito
espacial de vigência indica a extensão territorial sobre a qual a norma jurídica possui
eficácia, tendo por limites os do território sobre o qual a pessoa que editou a norma
possui competência. Ao âmbito de validade espacial da norma jurídica é que se
denomina de princípio da territorialidade, ou de critério territorial (ratione loci). É
nesse sentido a advertência de PAULO DE BARROS CARVALHO, quando afirma que
o critério espacial da hipótese e o campo de eficácia da lei tributária são entidades
ontologicamente distintas.846
A necessidade de conhecimento do critério territorial das normas internas de
um ordenamento jurídico é peculiaridade dos estados estruturados em uma federação,
como é o caso do Brasil. É da essência da federação a existência de um estado – ordem
jurídica global – em cujo território convivem ordens jurídicas parciais, dotadas de
autonomia política, administrativa e financeira, mas desprovidas de soberania. Como já
foi visto no início deste trabalho, a federação brasileira compreende a ordem jurídica
global (Estado Federal), ordem jurídica parcial central (União Federal), ordens
jurídicas parciais periféricas (estados-membros), e os municípios, como ordens
jurídicas parciais locais.847 Dessume-se, portanto, que, no que respeita aos limites
eficaciais das leis no espaço, é imprescindível a existência de um critério rígido para
que os entes frutos da divisão possam conviver de forma harmônica. A rigidez
constitucional do critério territorial tem, por fundamento primeiro, ser um princípio
corolário do Princípio Federativo, elevado à condição de cláusula pétrea pelo artigo 60,
§ 4º, I, da Carta Constitucional. Como decorrência disso, também é informado pela
rígida repartição constitucional de competências tributárias.
A Constituição adotou, como premissa inafastável para formular o regime
jurídico tributário, os critérios de natureza material e geográfica. A Lei Maior,
portanto, enumerou as materialidades que podem ser utilizadas pelos entes federativos e
pelos municípios, para a demarcação de suas competências tributárias, assim como
definiu o território de cada uma das pessoas políticas como o âmbito de validade da
respectiva lei tributária. Por outro lado, a lei de cada um dos entes tributantes tem
eficácia jurídica somente até os seus respectivos limites geográficos.
846
Curso..., op. cit., p. 258.
329
A atribuição, à competência tributária de uma pessoa política, da tributação de
um fato cuja concretização se completou no território de outra é incompatível com o
sistema jurídico, já que é da essência do Sistema Tributário Nacional que cada pessoa
política exerça sua competência sobre os fatos e as pessoas localizadas na circunscrição
territorial correspondente. Disso resulta ser incabível alterar a competência fixada
constitucionalmente mediante o uso ilegítimo da legislação infraconstitucional, ainda
que por meio de lei complementar.848
Pode-se até mesmo afirmar, sem receio de equívoco, que o Sistema Tributário
Nacional impõe que a competência tributária municipal, no que se refere ao ISS, seja
em primeiro lugar qualificada pelo critério territorial e, só depois, pelo critério ratione
materiae (serviços), como ensina HERON ARZUA.849 Sublinhe-se que a discriminação
constitucional de rendas, além de rígida e exaustiva, opera-se de modo exclusivo, de
forma que, pela regra geral, o fato tributável por um dos estados ou municípios não é,
em princípio e simultaneamente, tributável por outro, salvo as exceções que sempre vêm
expressas no texto constitucional.850 Dessarte, a vigência espacial das normas jurídicas,
como ensina o autor, abrange normalmente o âmbito territorial dominado pelo detentor
de cada ordenamento jurídico:
A lei tributária vige dentro do território do respectivo poder tributante, como
delineado pela Constituição. [...] A essa realidade se convencionou
denominar ‘princípio da territorialidade da lei tributária’, que se encontra
implícito na própria Constituição e procede diretamente da soberania e da
forma de organização do Estado Brasileiro. [...] A extraterritorialidade só
pode decorrer de convênios de que estas entidades participem.851
JOSÉ
EDUARDO
SOARES
DE
MELO
também
acompanha
esse
entendimento: “A territorialidade tributária significa a privatividade do direito de ser
exercida a competência no âmbito exclusivo dos territórios das específicas pessoas
políticas, segundo a rígida partilha constitucional e o respectivo âmbito material,
amoldado pelas situações contempladas nos tratados internacionais”.852
Sublinha MARÇAL JUSTEN FILHO que o aspecto espacial da hipótese de
incidência fornece o critério para a localização de um fato, cuja ocorrência, no mundo
físico, produzirá os efeitos prescritos na conseqüência da norma. Já o âmbito espacial de
847
Vide supra, subitem 2.2.1.
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 73-74.
849
Consórcios e ISS (local da prestação de serviços). Revista de Direito Tributário, n. 45, p. 254.
850
ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços e o princípio..., op. cit., p. 143.
851
Ibidem, p. 144.
848
330
validade (vigência territorial) designa os limites territoriais sobre os quais uma norma
tem eficácia, e “[...] coincide com o território sobre o qual a entidade que edita a
norma exerce poder jurídico”. Esse entendimento é relevante quando transplantado
para o federalismo brasileiro, onde, além da União, cuja competência se identifica com
os limites do Estado brasileiro, e dos estados-membros, cuja competência tem por limite
os respectivos territórios, existem também os municípios, os quais possuem autonomia
política, financeira e administrativa nos limites de seus territórios. 853
Com efeito, dentro dos respectivos territórios e da área de competência que
detêm, os estados-membros e municípios estão vinculados, única e tão-somente, às
normas por eles mesmos editadas. Por decorrência, as pessoas que ali se encontrem
também se sujeitam a essas normas com exclusividade. Diante disso, “[...] é usual a
hipótese de incidência, no que toca ao aspecto espacial, compreender a descrição de
situações fáticas exclusivamente verificadas no território sobre o qual o ente político
que legisla detenha competência”. No entanto, isso não é regra obrigatória em um
Estado federativo, a menos que a Constituição (rígida) exclua essa possibilidade. 854
BERNARDO RIBEIRO DE MORAES defende que “[...] a prática de atos que
concretiza a prestação de serviços deve ser exercida dentro do território do poder
tributante. Aqui deve o contribuinte ter seu ponto ou se estabelecer, ou mesmo exercer a
prestação de serviços. O Município, titular do Imposto Sobre Serviços, somente pode
legislar para o respectivo território”.855 O mesmo autor, em outra ocasião, admite, em
um primeiro momento, a possibilidade de lei complementar dispor em sentido contrário,
para que a lei de um município possa atingir fatos ocorridos em outro e, em um segundo
momento, afirma que, para fins de fixar o local de incidência do ISS, o mais acertado
seria o local de ocorrência do seu “fato gerador”.856
Ainda que em certas ocasiões o raciocínio desse autor seja compatível com a
Constituição, suas contradições levaram-no a sustentar a legitimidade do que estabelece
o artigo 12, “a”, do Decreto-lei nº 406/68. Esse posicionamento foi criticado com
propriedade por MARÇAL JUSTEN FILHO, sob o correto argumento de que o único
critério espacial válido perante a Constituição é o do local de ocorrência do fato
852
Local ..., op. cit., p. 338.
O imposto..., op. cit., p. 141-142.
854
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 142.
855
Imposto municipal sobre serviços. Revista de Direito Público, n. 1, p. 183.
856
Doutrina..., op. cit., p. 484.
853
331
tributário, seja de que tributo for.857 De fato, a Constituição, nessa questão, estabeleceu
limites rigorosamente definidos, pelos quais a descrição legal das hipóteses de
incidência dos tributos conferidos às pessoas políticas só encontra fundamento de
validade nos exatos limites territoriais dessas mesmas entidades. Nesse caminho são os
ensinamentos de AIRES BARRETO: “Fatos ocorridos além desses perímetros não
podem ser, a nenhum pretexto, por ela alcançados. [...] À míngua de exceção admitida
pelo Excelso Texto, tem-se que a lei, complementar ou ordinária, que não observe esse
limite territorial, será inconstitucional, seja por usurpação, seja por invasão de
competência alheia”.858
CLÉBER GIARDINO lembra, com propriedade, não ser correta a afirmação de
que, no sistema tributário brasileiro, haja “o” imposto sobre serviços ou “um” imposto
sobre serviços. Há no Brasil, na verdade, tantos impostos sobre serviços quantas forem
as distintas leis ordinárias municipais que tenham exercido concretamente idêntica
competência nos termos do texto constitucional.859 A identidade entre tais leis repousa,
obviamente, no aspecto material, que é o mesmo em todas elas, ou seja, todas têm como
hipótese de incidência o fato de alguém prestar serviços de qualquer natureza, não
compreendidos dentre os reservados à competência dos estados-membros e do Distrito
Federal para tributação pelo ICMS – referidos no artigo 155, II, da Constituição. Nesse
exato sentido é o entendimento de HERON ARZUA.860
ROQUE ANTONIO CARRAZZA, na esteira dos ensinamentos de CLÉBER
GIARDINO, lembra que há, no Brasil, tantos impostos estaduais, municipais e distritais
quantas são as pessoas políticas autorizadas pela Constituição Federal a instituí-los,
querendo com isso demonstrar que o critério para a repartição constitucional de
competências foi, além do material, também o territorial. “É que os Estados, os
Municípios e o Distrito Federal têm competências impositivas materialmente
concorrentes. Em razão disso, para evitar conflitos entre eles, nosso Estatuto Magno
adotou, também, um critério territorial de repartição das competências impositivas”.861
Com base nesse raciocínio, CARRAZZA defende a aplicação desse postulado
também para o ISS, pois, de acordo com o critério territorial de repartição das
857
O imposto..., op. cit., p. 75.
ISS – Conflitos de Competência. Tributação de Serviços e as Decisões do STJ. Revista Dialética de
Direito Tributário, n. 60, p. 10.
859
ISS – Competência..., op. cit., p. 218.
860
Consórcios e ISS..., op. cit., p. 254.
861
Curso..., op. cit., p. 571.
858
332
competências impositivas – princípio constitucional que exige que a única lei tributária
aplicável seja a da pessoa política em cujo território o “fato imponível” ocorreu – esse
imposto só pode alcançar os serviços de qualquer natureza – salvo os de competência
estadual – prestados no território do município tributante. Será, portanto,
inconstitucional a lei complementar nacional que vier a ofender essa diretriz, ainda que
sob o pretexto de evitar conflitos de competência entre municípios.862
Em que pese, no entanto, o elevado grau de indeterminação na normatização do
critério espacial da hipótese de incidência, certo é que sempre será possível encontrar,
também alocados na mesma hipótese de incidência, outros critérios para identificar o
local exato em que se concretiza, no mundo fenomênico, aquela hipótese. Tais são,
logicamente, os critérios material e temporal, os quais devem ser analisados, para essa
finalidade, sempre em conjunto com o critério espacial. Noutro giro, no plano fático
será igualmente imprescindível saber, em primeiro lugar, se o fato é efetivamente
tributário e, ato contínuo, conhecer o momento e o local exato de sua ocorrência.
Sublinha HERON ARZUA que, por mais complexo e prolongado que seja o
fato jurídico, existe um momento em que ele se aperfeiçoa e um determinado local em
que ele ocorre. É dizer: o imposto será sempre devido no território em que houve a
concretização do fato tributário, posto que o único critério constitucional possível é o da
verificação onde o fato tributário ocorreu. Em princípio não pode a lei tributária, diante
desse raciocínio, aplicar-se a fatos ocorridos além de seu território. A ausência de
conexão entre a coordenada espacial e o critério material do antecedente pode, na falta
de legítima norma autorizativa de superior hierarquia, implicar desrespeito ao próprio
fato tributário descrito na hipótese de incidência e que constitui o pressuposto da
obrigação tributária.863 É juridicamente falsa a afirmação de que a situação fática
correspondente à hipótese de incidência prolonga-se no tempo, havendo um local
geográfico determinado onde ocorre o aperfeiçoamento do fato tributário.864
O exercício da competência e da capacidade tributárias em relação ao ISS é
informado pelo critério do situs, o qual exige a aplicação da lei vigente sobre a base
física (território do município), dentro do qual ocorre o fato jurídico tributário (ratione
loci). Desse modo, a Constituição determina que cada município tem aptidão para
colher os fatos ocorridos em seu território, do que resulta ser o critério espacial, para o
862
Ibidem, p. 855-856.
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 147.
864
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 74.
863
333
ISS, coincidente com o âmbito de validade territorial da lei. Essa premissa impede a
pluralidade de incidências, pois, apesar de todas as leis municipais possuírem um único
e idêntico critério material em suas hipóteses de incidência (prestação de serviços), em
cada lei municipal existirá um critério espacial diferente, em razão dos diferentes limites
territoriais de vigência de cada lei.
Ensina CLÉBER GIARDINO, amparado em PONTES DE MIRANDA, que
esse critério do situs, de seleção e recíproca exclusão, determina que sobre cada um dos
fatos ocorridos (prestações de serviços), uma e só única lei, dentre as milhares
existentes pelo país, incide e irradia seus efeitos, ou seja, somente dessa lei poderá advir
o nascimento de eficácia jurídica.865 Analisando o tema sobre outro ângulo, a violação
do Princípio da Territorialidade da lei tributária, caso não contestada pela pessoa
política ofendida, implica em violação da indelegabilidade da competência tributária,
ocorrida nessa hipótese de forma passiva.
ALFREDO AUGUSTO BECKER contesta a aceitação, por parte da doutrina
tradicional, da tese da territorialidade da lei tributária, pela qual essa teria sua
eficácia jurídica limitada a um determinado território, teoria classificada pelo autor
como mais um dos fundamentos “óbvios”: “A evolução do Direito Tributário em todos
os países; a criação dos mercados comuns e das zonas de livre comércio; a tributação
de bens existentes no estrangeiro pelo imposto de transmissão ‘causa mortis’; os
problemas, no plano internacional, da dupla imposição pelo imposto de renda,
despertaram a atenção dos modernos doutrinadores para a falsa ‘obviedade’ do
fundamento da territorialidade da lei tributária”.866
Para BECKER, portanto, “[...] a lei tributária, como qualquer outra lei, tem
sempre eficácia jurídica territorial”. Em síntese, os argumentos desse autor têm por
fundamento a premissa de que a territorialidade ou a extraterritorialidade da lei
tributária é problema de política tributária – momento político – e não de
fenomenologia jurídica – momento jurídico. Como conclusão, sustenta que, salvo
quando a lei dispuser em sentido contrário – momento político – será perfeitamente
válida a regra jurídica, independente da escolha, pela mesma, do lugar de realização da
hipótese de incidência e da localização e nacionalidade dos sujeitos passivos.867
865
ISS – Competência Municipal..., op. cit., p. 219.
Teoria..., op. cit., p. 255-256.
867
Ibidem, p. 256-257.
866
334
Ou seja, pelo raciocínio de BECKER, não havendo, no antecedente da norma
jurídica tributária, previsão de critério espacial coincidente com os limites territoriais da
respectiva pessoa política tributante, a regra jurídica terá incidência automática e
infalível tão logo se concretize o fato previsto abstratamente na hipótese de incidência,
onde quer que ele ocorra e independente da nacionalidade do sujeito passivo, assim
como será conseqüência imediata e lógica dessa incidência, a irradiação da eficácia
jurídica, ou seja, o nascimento da relação jurídica com seu conteúdo jurídico. Esse
raciocínio, como se percebe, tem em vista a análise da territorialidade no âmbito do
Direito Internacional. Nesse aspecto, pensa-se que seu entendimento é irretocável.
Entretanto, o tema da territorialidade da lei tributária, como examinado neste trabalho,
não corresponde à perspectiva vislumbrada pelo jurista gaúcho.
Como fundamento para nossa afirmação, vem à baila o raciocínio lúcido de
MARÇAL JUSTEN FILHO: “O Direito Tributário, como parte inserta e indestacável
da Constituição Federal, não é uma emanação do Direito Internacional Privado. Não
se trata de o legislador de cada Estado soberano optar por um regime jurídico
qualquer para reger conflitos interespaciais de leis. O legislador complementar
tributário não é soberano, não está dotado de competência para adotar o regime
jurídico que bem entender”.868 É que os estados soberanos não estão submetidos a uma
ordem jurídica comum, que pudesse exigir a aplicação do Princípio da Territorialidade,
ou seja, com obediência de um âmbito de vigência espacial.
A
extraterritorialidade
da
lei
tributária
está
regulada,
em
nível
infraconstitucional, pelo artigo 102 do Código Tributário Nacional, pelo qual “A
legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País,
fora
dos
respectivos
territórios,
nos
limites
em
que
lhe
reconheçam
extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta ou
outras leis de normas gerais expedidas pela União”. Ou seja, de acordo com esse
dispositivo, além dos convênios de que eventualmente participem estados, Distrito
Federal e municípios, a União poderia expedir normas gerais, estabelecendo a vigência
de lei tributária de determinada pessoa política para além de seu respectivo território.
Como já foi defendido, pode-se reduzir as funções da lei complementar de
normas gerais a tão-somente uma: “regulação das limitações constitucionais ao poder
de tributar”, já que o tema dos conflitos de competência, referido no artigo 146, I, da
868
O imposto..., op. cit., p. 76.
335
Constituição, e os demais dispositivos constantes do inciso III do mesmo artigo 146,
estão ali inseridos como espécies de um mesmo gênero. Ora, se a competência tributária
de cada uma das pessoas políticas é atribuída com base não só no critério material,
como também no territorial, é lógico que os lindes territoriais dos estados e municípios
se constituem em inequívoca “limitação constitucional ao poder de tributar”. Portanto, a
lei de normas gerais somente pode ter competência para regular o princípio da
territorialidade da legislação tributária das pessoas políticas, e nunca violá-lo. Admitir o
contrário implica admitir o absurdo jurídico de que a União estaria autorizada, mediante
lei complementar, a regular uma violação a um princípio constitucional. A violação da
Autonomia Municipal e do pacto federativo é flagrante. ROQUE ANTONIO
CARRAZZA tem o mesmo raciocínio:
o critério adotado pela Constituição na partilha das competências impositivas
dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal foi, além do material, o
territorial. Noutros termos, levou em conta, para a solução dos possíveis
conflitos neste campo, o âmbito de aplicação territorial das leis que criam os
impostos estaduais, municipais e distritais. Por conseguinte, as leis tributárias
que instituem tais gravames apenas têm voga sobre os fatos verificados no
território da ordem jurídica que as editou.869
Quem complementa é PAULO DE BARROS CARVALHO: “[...] a legislação
produzida pelo ente político vigora no seu território e, fora dele, tão-somente nos
estritos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que
participem”.870 Forte em tais razões, não se pode concordar com raciocínios como o de
MISABEL DERZI, que, com base no teor do artigo 102 do Código Tributário Nacional,
defende que “[...] a lei de normas gerais, especialmente para cumprir os desígnios
constitucionais – dirimir conflitos entre os Municípios – ou para outros fins, evitar a
bitributação, a insegurança na arrecadação, combater a fraude ou a simulação, pode
conferir efeitos extraterritoriais às normas municipais, sem com isso ofender à
Constituição”.871 Em sentido oposto, e de forma coerente com o contexto
constitucional, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO ensina que “[...] os Municípios
são dotados de privatividade para criar o ISS, o que, por via oblíqua, implica a
exclusividade e conseqüente proibição de seu exercício por quem não tenha sido
consagrado com esse direito. Trata-se de matéria de ordem pública, eivando-se de
869
Curso..., op. cit., p. 571-572.
Curso..., op. cit., p. 88.
871
O aspecto espacial..., op. cit., p. 70.
870
336
nulidade a instituição desse imposto por Município localizado em âmbito territorial
distinto daquele em que ocorrera a efetiva prestação dos serviços”.872
Poder-se-ia defender a legitimidade da extraterritorialidade, caso essa decorra
de convênios celebrados entre as pessoas políticas, porque nesse caso a vigência
extraterritorial decorreria de acordo voluntário entre as partes interessadas, as quais
estariam, portanto, escoradas na autonomia político-financeira de que gozam, conforme
a Constituição, o que não ocorre no caso das normas gerais, onde a vontade política é
apenas da União Federal. Entretanto, sendo a competência tributária indelegável e
irrenunciável, não se admite que a extraterritorialidade da lei possa fazer com que a
norma tributária municipal incida sobre prestações de serviços ocorridos em território
de outro município, ainda que com a anuência deste.873
Diante do entendimento exposto, assim como pelo forte amparo doutrinário,
conclui-se pela total impossibilidade de a lei complementar de normas gerais pretender
estabelecer vigência extraterritorial para a legislação tributária dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios. Como conseqüência, a única interpretação possível para o
artigo 102 do Código Tributário Nacional é que o mesmo, na parte acima atacada, não
foi recepcionado pelo atual ordenamento jurídico, assim como já se revelava inválido
em face da Constituição pretérita. A extraterritorialidade, em relação ao ISS, somente se
admite como manifestação da soberania nacional, e nunca como decorrência da
autonomia municipal. Soberania é, indiscutivelmente, mais do que autonomia, ensina
BETINA TREIGER GRUPENMACHER, para quem a extraterritorialidade da lei
tributária, ainda que admitida em relação a alguns tributos, não pode servir como
fundamento de validade para que os municípios a utilizem para tributar fatos ocorridos
fora de seu âmbito territorial de competência.874
5.3 ESTABELECIMENTO E ESTABELECIMENTO PRESTADOR
Depreende-se, da interpretação conjunta dos artigos 109 e 110 do Código
Tributário Nacional, que a norma tributária – cuja conseqüência prescreve somente
efeitos tributários – pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos,
872
873
ISS – Aspectos..., op. cit., p. 9.
BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 520.
337
conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela
Constituição Federal, pelas Constituições dos estados, ou pelas Leis Orgânicas do
Distrito Federal ou dos municípios, desde que tal alteração não tenha o efeito de
definir ou “limitar” competências tributárias.875 A intenção do legislador do Código
Tributário Nacional foi a de ratificar as escolhas das materialidades pelo legislador
constituinte, cuja definição obedece aos respectivos regimes jurídicos de origem, ou
seja, de onde os institutos, conceitos e formas se originam.
Por exemplo, no silêncio de uma lei municipal instituidora do IPTU, o conceito
de propriedade, presente em sua hipótese de incidência, deve ser exatamente o mesmo
existente no Direito Civil. A lei municipal pode, no entanto, alterar essa definição de
propriedade, mas desde que tal alteração tenha somente eficácia no campo tributário,
assim como a alteração não poderá, em hipótese alguma, provocar invasão em
competência reservada a outras pessoas políticas ou alterar o desenho do campo de
incidência do próprio tributo. O mesmo raciocínio deverá ser utilizado na análise dos
conceitos de “estabelecimento” e de “estabelecimento prestador”, os quais foram
utilizados tanto pelo Decreto-lei nº 406/68
– artigos 8º e 12 – como pela Lei
Complementar nº 116/2003 – artigos 3º e 4º.
Da análise do artigo 8º do Decreto-lei 406/68876, MARÇAL JUSTEN FILHO
ressalta que esse diploma não adotou o conceito de estabelecimento conforme sua
origem no Direito Comercial, pois quando ali diz que a prestação do serviço ocorre
“[...] com ou sem estabelecimento fixo”, depreende-se que o qualificativo “fixo” é
incompatível com o conceito de Direito Comercial, pois esse ramo jurídico dá o
conceito de estabelecimento como um “conjunto de bens materiais e imateriais”, o que
não se coaduna com um estabelecimento “fixo”. Partindo desse posicionamento, o autor
entende que, no contexto do referido artigo 8º, não há referência a um estabelecimento
“inamovível”, mas a um estabelecimento vinculado a um local físico definido (imóvel).
874
ISS – Local em que é devido o tributo. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; MARTINS Ives Gandra da
Silva (org.). ISS: Lei Complementar 116/2003, p. 76-77.
875
“Artigo 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do
conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos
efeitos tributários. Artigo 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance
de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela
Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal
ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
876
“Art 8º O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem como
fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo,
de serviço constante da lista anexa” .
338
O “estabelecimento fixo”, na verdade, refere-se a um local imóvel onde os serviços
seriam prestados.877
Por sua vez, no contexto do artigo 12, também do Decreto-lei nº 406/68, o
vocábulo “estabelecimento”, junto com a locução “prestador”, resulta na expressão de
novo conteúdo semântico “estabelecimento prestador”, cuja essência revela que o
estabelecimento está subjetivado em relação ao prestador, como se fosse uma
“extensão corporal” sua quando do desempenho da atividade. Diferente seria se a lei
tivesse dito estabelecimento “do” prestador, não parecendo ser o caso de equívoco
redacional, uma vez que, mais adiante utiliza a expressão “domicílio do prestador”. Já
no artigo 8º, assim como na definição original de estabelecimento, a expressão tem
inquestionável acepção objetiva, tratando-se de um conjunto de bens, não personificado,
que pode inclusive configurar-se como objeto de direito.878
O inciso III, do artigo 126, do Código Tributário Nacional, dispõe de forma a
ratificar esse entendimento. O preceito citado veicula norma pela qual “A capacidade
tributária passiva independe [...] de estar a pessoa jurídica regularmente constituída,
bastando que configure uma unidade econômica ou profissional”, o que levou vários
diplomas tributários à personalização de cada estabelecimento, como se fosse uma
pessoa jurídica diferente, como é o caso, por exemplo, da Lei Complementar nº 87, de
13 set. 1996, cujo artigo 11, § 3º, II, dispõe que, em relação ao ICMS, “[...] é autônomo
cada estabelecimento do mesmo titular”, dispositivo que se nos afigura flagrantemente
inconstitucional, pela ausência de negócio jurídico mercantil. Da mesma forma o inciso
II do artigo 127, também do Código Tributário Nacional, ao dispor que, na falta de
eleição de domicílio tributário, pelas pessoas jurídicas de direito privado ou firmas
individuais, será considerado, em relação aos atos ou fatos que derem origem à
obrigação, o de cada estabelecimento, reconhecendo, assim, a existência de domicílio
do estabelecimento.879
877
ISS no tempo..., op. cit., p. 64.
Ibidem, p. 65.
879
Pensamos, no entanto, que o artigo 127, II, do Código Tributário Nacional será inconstitucional apenas
quando a materialidade do tributo envolvido impedir a utilização da criação jurídica da autonomia dos
estabelecimentos, como é exemplo clássico o ICMS, em face da exigência de negócio jurídico
mercantil e, como conseqüência, da existência de operação com fins lucrativos. Já em relação ao IPI,
por exemplo, devido o núcleo de sua regra-matriz de incidência envolver apenas “operações com
produtos industrializados”, entendemos ser válido o expediente criado pelo pré-citado artigo 127, II.
A legislação do IPI, inclusive, prevê o Princípio da Autonomia dos estabelecimentos, tanto na regra
da escrituração fiscal autônoma – prevista no artigo 57 da Lei nº 4.502, de 30 nov. 1964 – como na
formulação explícita do artigo 51, § único, do Código Tributário Nacional, o que tem o aceite bem
878
339
MARÇAL JUSTEN FILHO ensina que, uma interpretação sistemática entre o
artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68 e os artigos 126 e 127 do Código Tributário
Nacional, resulta no entendimento de que “estabelecimento” indica a unidade – “[...]
universalidade de fato, o conjunto de bens corpóreos e incorpóreos, organizados por
um sujeito para a persecução de seu objeto” – por meio da qual se exerce uma
atividade subsumível a uma hipótese tributária. Se, na prestação do serviço, foi utilizada
uma unidade, conforme o sentido acima, o local do fato tributário do ISS será o local
dessa unidade, pois o artigo 12, I, não remete à sede do prestador para fixação da
competência, pois essa é o seu domicílio, o qual só terá relevância, conforme revela a
parte final do inciso I, na ausência de estabelecimento. Conclui com propriedade o
autor: “Não é relevante, então, a estrutura teórica da organização jurídica do
prestador do serviço. Não se examina onde se localiza a ‘sede’ ou a ‘filial’ do
prestador do serviço. Sequer se exige que o prestador do serviço indique formalmente à
Junta Comercial (ou Registro Civil) a existência de uma unidade econômica em certo
local”.880
O estabelecimento deve abranger todos os bens – como móveis, máquinas,
equipamentos, veículos etc. – e pessoas imprescindíveis para possibilitar a prestação do
serviço. Para que se caracterize um verdadeiro estabelecimento prestador de serviços,
nos termos do Decreto-lei n° 406/68, faz-se necessária a efetiva existência desses
elementos. Diante disso, o planejamento tributário de um contribuinte, no sentido de
instalar sua sede e estabelecimento prestador em município que lhe seja mais favorável,
encontra seu limite de validade jurídica na existência concreta, e não apenas formal, de
um estabelecimento, como ensina JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO.881
Esse autor observa, no entanto, que o crescimento de serviços prestados
mediante a utilização de recursos da informática, tornou difícil precisar o efetivo local
de sua realização, posto que vários municípios podem estar envolvidos nessas
atividades. Entende o autor ser coerente, em tais situações, a aplicação da figura do
“estabelecimento permanente”, em transmissões que envolvam satélites. “A pluralidade
de estabelecimentos que participam da prestação dos serviços, a diversidade de etapas
fundamentado de JOSÉ ROBERTO VIEIRA – Imposto Sobre Produtos Industrializados..., op. cit., p.
186.
880
Ibidem, p. 65-66.
881
ISS – Aspectos..., op. cit., p. 149-150.
340
pertinentes a essas atividades, ou até mesmo a sua execução sem a participação de
estabelecimento, é que torna difícil qualificar o sujeito ativo [...]”.882
A solução para as hipóteses em que a prestação de um serviço envolver várias
atividades fracionadas – atividades-meio – cada uma acontecendo potencialmente em
municípios diversos, somente ratifica a exigência de que o ISS incida única e
exclusivamente quando ocorrer a consumação da prestação do serviço, ou seja, no local
onde se der a execução da obrigação de fazer. É preciso admitir, no entanto, que os
serviços prestados mediante a utilização de sítios na internet tornaram difícil identificar
quais os locais onde ocorrem não só as etapas intermediárias, mas também o local onde
ocorre a conclusão do serviço.
MARCO AURÉLIO GRECO identificou nas operações vinculadas à internet
quatro realidades distintas: (a) o site enquanto tal e os softwares que se encontram
acessíveis através do site ou podem ser obtidos mediante download; (b) o computador
que hospeda esse site; (c) a pessoa jurídica – por exemplo, provedor de hospedagem –
que coloca ‘no ar’ o sítio, tornando-o acessível aos internautas; e (d) o conteúdo
disponibilizado no sítio. O autor adverte que, na análise a ser empreendida, “[...]
cumpre ter em conta estas quatro realidades, pois sua coexistência instaura múltiplas
relações conforme o conjunto formado pela sua reunião ou pela maneira pela qual é
definido o relacionamento destes diversos elementos”. Ou seja, as atividades possíveis
em um site são variadas, podendo consistir num elemento de mera difusão de serviços e
de bens, como também no recebimento de solicitações pelos possíveis clientes e, ainda,
na efetiva aceitação do pedido, emissão de ordens de pagamento, e concretização dos
negócios jurídicos, caso que ocorre no chamado sítio inteligente. 883
Com esse raciocínio, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO esclarece que
“[...] a diversificada utilização e a flexibilidade do seu desempenho, por si só, não
permitem caracterizar o site como um autêntico estabelecimento, para todos os efeitos
tributários (lançamento de impostos, emissão de notas fiscais, escrituração de livros
etc.), pois pode ser considerado como mero escritório administrativo, distinto do local
da efetiva prestação de serviços”.884 Amparado em entendimento de EMERSON
DRIGO DA SILVA, o autor entende ponderável o critério sugerido no sentido de
determinar a vinculação entre o meio virtual (site ou e-mail) utilizado na prestação de
882
Ibidem, p. 150.
Internet..., op. cit., p. 139-140.
884
ISS – Aspectos...,op. cit., p. 154-155.
883
341
serviços e o estabelecimento físico do prestador dos serviços, em um determinado
município, através do número do Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas – CNPJ e a
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, o órgão
responsável pela efetivação do registro como detentor do domínio do meio virtual.885
Para a fixação do município competente em relação ao ISS, não é relevante o
cumprimento da exigência de inscrição em cadastro municipal. Como essa formalidade
administrativa se constitui em dever instrumental – obrigação “acessória” – não tem o
condão de influir na obrigação tributária “principal”. A inobservância dos deveres
instrumentais resulta na imposição de sanção pecuniária, vinculada não à capacidade
econômica do contribuinte, mas sim à reprovabilidade da infração.
O local da efetiva prestação do serviço será o critério relevante sempre que o
prestador utilizar um estabelecimento como instrumento para o exercício de sua
atividade.886 No entanto, nada impede que um serviço seja prestado sem que seja
necessário um estabelecimento como meio para tanto. Nessa hipótese, incluir-se-iam
não só os serviços exclusivamente intelectuais, como também aqueles em que o
concurso de bens materiais – insumos ou equipamentos – é irrelevante ou secundário.
Exemplo clássico é o de um advogado domiciliado em um município, e que é
contratado para apenas sustentar oralmente um recurso, em tribunal localizado em
município diverso.
É pacífico que o conceito de estabelecimento tem origem no Direito de
Empresa, regulado no Brasil pelo Código Comercial e, após, pelo atual Código Civil –
Lei nº 10.406, de 10 jan. 2002 – já que esse diploma instituiu nova classificação das
sociedades em “simples” e “empresárias”, em substituição às antigas sociedades “civis”
e “comerciais”. Em síntese, as atuais sociedades são classificadas não mais pelo
exercício de atividade econômica civil ou mercantil, mas pelo modo – simples ou
empresarial – de exercer a atividade, seja ela civil ou mercantil. Em que pese a nova
formulação legal, não há alteração na análise dos conceitos de “estabelecimento” e de
“estabelecimento prestador”. Tendo em vista, portanto, a nova realidade jurídica das
sociedades no sistema jurídico pátrio, o conceito de “estabelecimento” é fornecido pelo
atual Código Civil, cujo artigo 1.142 define como “[...] todo complexo de bens
organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade
885
886
Ibidem, p. 155.
JUSTEN FILHO, Marçal. ISS no tempo..., op. cit., p. 67.
342
empresária”. Como o dispositivo não fez restrição, o complexo de bens, a que se refere,
abrange os materiais e os imateriais.
Dessume-se que o estabelecimento é um instrumento, um meio, de que se vale
a pessoa, física ou jurídica, para o exercício da atividade econômica, não se
confundindo com o imóvel, nem exigindo a presença dele, assim como é irrelevante a
integração no estabelecimento dos bens e direitos, conforme, aliás, já é pacífica a
doutrina em relação ao estabelecimento mercantil.887 Poder-se-ia se indagar a razão de o
diploma civil ter restringido o conceito de estabelecimento às sociedades empresárias,
posto que se o § 1º do artigo 75 do próprio Código Civil estabelece que “Tendo a
pessoa jurídica diversos estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será
considerado domicílio para os atos nele praticados”, poderia disso resultar que, em
razão desse artigo 75 estar inserido no “Título III - Do Domicílio”, e esse, por sua vez,
integrar o “Livro I – Das Pessoas”, toda pessoa jurídica de direito privado – onde se
incluem as sociedades simples e as empresárias – pode vir a ter estabelecimentos.
Entretanto, essa interpretação parte de premissa falsa e, como conseqüência,
chega a resultado igualmente falso. A razão está na insuficiente análise literal, isolada,
do § 1º do artigo 75, sem levar em consideração o restante do ordenamento jurídico. O
próprio Código Civil fornece subsídios para a solução do problema. No artigo 966,
dispõe que “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, e, no
seu parágrafo único, complementa a prescrição, esclarecendo que “Não se considera
empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou
artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da
profissão constituir elemento de empresa”. Da análise desses dispositivos, depreende-se
que a essência da diferença entre a atividade exercida de forma simples, e a
desempenhada de forma empresária, está, em relação à última, na reunião dos fatores de
produção, ou seja, capital e trabalho, para o exercício de uma atividade cujo resultado –
bens e serviços produzidos, circulados e/ou prestados – não decorra somente da
capacidade física ou intelectual do respectivo exercente.
Ou seja, os bens e serviços produzidos ou circulados na atividade empresária
dependem de outros fatores, além daqueles inerentes ao próprio exercente, como o
trabalho e a tecnologia de terceiros, o financiamento de capital etc. Já em uma atividade
887
COELHO, Fábio Ulhôa, Manual de Direito Comercial, p. 57 et seq.
343
exercida de forma “simples”, o que será relevante, no seu resultado, são as
características individuais e peculiares daquele que a desempenha. Exemplo clássico
ocorre com as clínicas médicas. Enquanto a atividade médica for desempenhada
exclusivamente pelos sócios médicos, assim como enquanto a clientela tenha em vista
sempre o atendimento daquele profissional específico, a sociedade será considerada
juridicamente simples, sendo irrelevante, nesse sentido, o fato de possuir uma grande
estrutura, com vários atendentes, equipamentos modernos etc.
Mas, se a mesma clínica, em razão de aumento da demanda, resolve ampliar
seu quadro de médicos, contratando outros profissionais na qualidade de empregados ou
terceirizados,
desvinculando-se,
da
atividade,
o
nome
da
sociedade,
antes
desempenhada somente pelos sócios, com os clientes sendo atendidos não mais por esse
ou aquele médico em especial, mas pela empresa de medicina, a partir desse momento,
então, aquela sociedade deixou de ter natureza jurídica simples, passando a manifestar
nítido caráter empresarial. Aplicando o raciocínio ao assunto que nos interessa, é
inequívoco que uma sociedade que, além de sua sede – domicílio – possua
estabelecimento(s), não pode ser qualificada como da espécie “simples”, pois a
existência de estabelecimento produtor, circulador ou prestador de bens ou serviços
configura a existência de atividade empresarial. Uma sociedade de advogados, por
exemplo, cuja natureza jurídica é simples, possui somente uma sede, um domicílio. Se
vier a prestar um serviço em município diverso de sua sede, não há, na dicção do artigo
12 do Decreto-lei nº 406/68, nenhum “estabelecimento prestador”, ainda que leve junto
consigo todos os sócios, munidos de laptops, cd-roms etc.
Se, ao contrário, a mesma sociedade de advogados resolver abrir uma filial em
outro município, onde trabalharão advogados não sócios, contratados, celetistas ou não,
é óbvio que estaremos, neste caso, diante de uma filial que possui um estabelecimento,
passando essa sociedade de advogados a ter natureza empresarial. Reforça essa idéia o
artigo 1.143 do Código Civil, quando faculta ao estabelecimento “[...] ser objeto
unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam
compatíveis com a sua natureza”. Na primeira hipótese, onde não há estabelecimento
prestador, a dicção da parte final do inciso I do artigo 12 considera como local da
prestação do serviço o do domicílio do prestador, o que constitui incontornável
inconstitucionalidade, como será melhor examinado adiante.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é contrário a esse raciocínio,
pois essa Corte defende como relevante, em qualquer caso, o local da efetiva prestação
344
do serviço, independente de onde esteja a sede ou o estabelecimento do prestador. Mas
não se pode negar que o entendimento dessa Corte dificulta a exigência do ISS, por um
município, em relação aos serviços exclusivamente intelectuais, ou daqueles prestados
sem o concurso de um estabelecimento, quando os respectivos prestadores possuírem
domicílio ou estabelecimento em outro município. A complexidade da questão levou
MARÇAL JUSTEN FILHO a defender que: “Não há uma solução precisa e definida
no tocante a serviços preponderantemente intelectuais, havendo forte apoio para
solucionar a questão pelo critério do domicílio do prestador do serviço”.888
ROQUE ANTONIO CARRAZZA, em interpretação do artigo 12 do Decretolei nº 406/68, defende que é possível compatibilizá-lo com a Constituição, mas somente
quando o serviço for prestado efetivamente no município onde estiver sediado o
estabelecimento prestador. Caso contrário, o artigo 12 deveria ter sua aplicação
negada.889 Somente com o objetivo de demonstrar a possibilidade de realização de um
planejamento tributário inválido, o autor argumenta uma eventual validade do artigo 12
em quaisquer situações:
Outra postura levar-nos-ia forçosamente à aceitação do juízo de que se o
‘contrato social’ de uma empresa prestadora de serviços dispõe que ela está
sediada no Município ‘X’ (onde a tributação, por via do ISS, é menos
gravosa) é lá que o ISS deve ser pago, ainda que: a) mantenha, no Município
‘X’, um simples quarto; b) possua, no Município ‘Y’, prédios, depósitos,
escritórios etc.; e, c) venha, deveras, a prestar, no Município ‘Y’ (onde a
tributação, por meio de ISS, é maior) serviços de qualquer natureza.
Com a devida vênia, esse raciocínio revela-se nitidamente inconsistente. É que,
aplicando o Decreto-lei nº 406/68 sobre a situação fática acima hipotetizada, o ISS será
devido no município “Y”, pois se lá existem “prédios, depósitos, escritórios”, é
inequívoca a presença de um legítimo estabelecimento, e com relação aos serviços
prestados nesse município, essa estrutura configura verdadeiro estabelecimento
prestador. Com efeito, o artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68 somente deslocaria o local
de ocorrência do fato tributário do ISS para o município do domicílio (sede), caso não
houvesse um estabelecimento prestador, o que não se verifica nessa hipótese. Disso
resulta que o artigo 12 em comento, ainda que possa merecer críticas, essas não são tão
merecidas como se tem propalado, pois a única situação que ainda apresenta problemas
reside, como acima já se defendeu, nos casos de serviços exclusivamente intelectuais,
888
889
ISS no Tempo..., op. cit., p. 69.
Breves considerações sobre o artigo 12 do Decreto-Lei n. 406/68. Revista de Direito Tributário, n. 6,
p. 156.
345
ou daqueles prestados sem o concurso de um estabelecimento, quando os respectivos
prestadores possuírem domicílio ou estabelecimento em outro município.
A Lei Complementar n° 116/2003, em seu artigo 4º, definiu o “estabelecimento
prestador”, como sendo “[...] o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de
prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade
econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de
sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou
contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas”. Para que o preceito se
harmonize com a Constituição, há que se entender por “estabelecimento prestador”
somente aquele onde efetivamente os serviços são prestados, e com isso atrair a
aplicação da regra geral prevista no artigo 3º da mesma lei, onde se diz que “O serviço
considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na
falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador [...]”. Se um serviço for
prestado de forma desvinculada a determinado estabelecimento, ele deixará de ser
“prestador”.
AIRES BARRETO, na mesma trilha, em interpretação conforme à
Constituição, sublinha que estabelecimento prestador é qualquer local em que,
concretamente, der-se a prestação de serviços. O porte do estabelecimento e o modo
pelo qual se desenvolve a prestação são fatores irrelevantes para caracterizar um
estabelecimento como prestador. “Estabelecimento prestador é, pois, o local em que a
atividade (facere) é efetivamente exercida, executada, culminando com a consumação
dos serviços”.890 Um estabelecimento somente se caracterizará como prestador quando
nele, e por meio dele, os serviços sejam consumados.891 Se os serviços forem prestados
de forma independente, desvinculada de um estabelecimento, esse não será prestador,
mas tão-somente um estabelecimento do prestador. É imprescindível que o
estabelecimento seja um instrumento, um meio, através e mediante o qual se torna
possível a execução dos serviços contratados.
A circunstância de a legislação definir o que seja “estabelecimento prestador”,
como fez o artigo 4º da Lei Complementar n° 116/2003, e como fazem muitas leis
municipais, indicando elementos que, de forma conjugada, caracterizariam a sua
existência, somente atribui a um estabelecimento a potencialidade de poder vir a ser
890
891
O ISS na Constituição..., op. cit., p. 316.
Ibidem, p. 339.
346
prestador de serviços.892 Ainda que um estabelecimento, com essa qualificação, possa
ser relevante, não comprova que os serviços foram, ali, efetivamente prestados. Com
efeito, a discussão acerca do conceito de estabelecimento, para fins de incidência do
ISS, resume-se na verificação de que só será estabelecimento prestador aquele onde se
ultimar a prestação dos serviços.893
5.4 O ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI N 406/68894
Após o surgimento do ISS, com a Emenda Constitucional nº 18/65, a Lei
5.172, de 25 out. 1966, Código Tributário Nacional, foi o diploma que conferiu a
primeira complementação normativa em relação ao ISS, tendo sido, nessa ocasião,
silente quanto à estipulação do local de ocorrência do fato tributário do ISS. 895
Implicitamente, portanto, adotou-se o princípio territorial da incidência tributária, ou
seja, o ISS seria devido no local (município) onde se efetivou (consumou) a prestação
do serviço, o que revelava grande aplicabilidade prática diante da qualidade e da
pequena quantidade dos serviços considerados tributáveis.896
Posteriormente, o Ato Complementar nº 36, de 13 mar. 1967, em seu artigo 6º,
definiu o critério legal para identificar o local da prestação, para efeito de incidência do
ISS, dispondo que “No caso de empresas que realizem prestação de serviços em mais
de um município, considera-se local de operação para efeito de ocorrência do fato
gerador do imposto municipal correspondente: I – o local onde se efetuar a prestação
do serviço: a) no caso de construção civil; b) quando o serviço for prestado, em caráter
892
Como, por exemplo: a) existência de pessoal, máquinas, móveis, equipamentos, necessários à
execução dos serviços; b) estrutura gerencial, organizacional e administrativa compatível com a
atividade desenvolvida; c) existência de inscrição no cadastro municipal e previdenciário; d)
identificação do local como domicílio fiscal, para efeitos de outros tributos; e) divulgação do endereço
do estabelecimento em nome do prestador.
893
BARRETO, Aires Fernandino. O ISS na Constituição..., op. cit., p. 320-321.
894
Ainda que o artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68 não esteja mais em vigor, entende-se necessária e
relevante a pesquisa doutrinária e jurisprudencial acerca de seu conteúdo, como forma de estabelecer
comparações e premissas com o atual regime inserido pela Lei Complementar nº 116/2003. Além
disso, ainda existem situações fáticas reguladas por esse dispositivo e que inclusive estão sub judice.
895
Conforme se infere do caput do artigo 71, pelo qual “O imposto, de competência dos Municípios,
sobre serviços de qualquer natureza tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional
autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço que não configure, por si só, fato gerador de
imposto de competência da União ou dos Estados”. No artigo 72, ficou estabelecido que “A base de
cálculo de imposto é o preço do serviço” e, no artigo 73, que “Contribuinte do imposto é o prestador
do serviço”.
896
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina..., op. cit., p. 486.
347
permanente, por estabelecimentos, sócios ou empregados da empresa, sediados ou
residentes no município; II – o local da sede da empresa, nos demais casos”.
BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, comentando esse dispositivo, afirma. em
síntese, que ele acompanhou a regra geral do princípio territorial da incidência tributária
(inciso I), tendo como única exceção, prevista no inciso II, a regra do local onde se situa
a sede da empresa, para os casos de prestação de serviços em mais de um município,
desde que tais serviços não sejam os previstos nas letras “a” e “b” do inciso I, acima
transcritas.897
Essa legislação revelou-se insatisfatória para identificar, de forma precisa, onde
um serviço era prestado, o que resultou no advento do artigo 12, no Decreto-lei nº
406/68, o qual revogou os dispositivos acima citados, relativos ao ISS, estabelecendo,
nas letras “a” e “b”, a definição do local da prestação do serviço como sendo: “a) o do
estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador;
b) no caso de construção civil o local onde se efetuar a prestação”.898
A partir de então, a regra geral para o critério espacial do ISS passou a ser a de
que o imposto seria devido no local onde está situado o estabelecimento prestador do
serviço, conforme a letra “a”, primeira parte. Como regra supletiva, o ISS seria devido
no domicílio do prestador, desde que inexistente o estabelecimento prestador, nos
moldes da segunda parte da mesma letra “a”. Por fim, como regra excepcional, a letra
“b”, desse artigo, previa que o ISS seria devido no local da prestação do serviço, no
caso dos serviços de construção civil – município de localização da obra.899 Grande
parte da doutrina entendeu que o Decreto-lei n° 406/68 simplificou o problema, então
existente, acerca dos conflitos de competência, como é o caso de ALIOMAR
BALEEIRO.900 Critica-se, contudo, tal posicionamento, uma vez que a praticidade da
solução não pode ser justificativa para contrariar a regra-matriz do imposto, conforme
delineada na Constituição.
897
Ibidem, p. 486-487.
A Lei Complementar nº 100, de 22 dez. 1999, incluiu a alínea “c” no artigo 12 do Decreto-lei n°
406/68, a qual dispõe que se “Considera local da prestação do serviço: [...] no caso do serviço a que
se refere o item 101 da Lista Anexa, o Município em cujo território haja parcela da estrada
explorada”. O item 101 da lista, também incluído pela Lei Complementar nº 100/99, inclui o serviço
de “exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de
serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de
trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de
concessão ou de permissão ou em normas oficiais”.
899
A razão principal, para excepcionar os serviços de construção civil, deve-se à circunstância de que as
respectivas obras devem ser autorizadas previamente pelo município, o que resolve o problema da
fiscalização sobre o ISS em relação a esses serviços.
898
348
Na vigência do artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68, e com exceção dos serviços
de construção civil, o que interessava aos fiscos municipais, na hipótese de serviços
prestados em diversos locais, era a existência ou não de diversos “estabelecimentos
prestadores”, pois em cada um deles haveria uma inscrição e uma incidência de ISS,
sendo então irrelevante que os efetivos locais de prestação de serviços existissem em
maior número. Ou seja, existindo um único estabelecimento prestador e diversas
prestações de serviços, a incidência seria uma, para um único local.
O Decreto-lei nº 406/68 teve parte de seus dispositivos revogados de forma
expressa pelo artigo 10 da Lei Complementar nº 116/2003.901 Outros dispositivos foram
revogados por incompatibilidade com a lei nova, nos termos do que prevê o § 1º do
artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil – Decreto-lei nº 4.657, de 04 set. 1942 –
o que, no entanto, não é o objeto de estudo neste item. Dentre os dispositivos
expressamente revogados do Decreto-lei n° 406/68, está o artigo 12, o qual dispunha
sobre o local onde se considerava prestado o serviço.902 A norma veiculada pelo
Decreto-lei n° 406/68, portanto, teve vigência de 1º jan. 1969 até 31 jul. 2003 – durante
mais de três décadas – pois, a partir do dia 1º ago. 2003 entrou em vigor a Lei
Complementar nº 116/2003, cujo artigo 3º regulamenta de forma integral o tema do
local de ocorrência do fato tributário do ISS. Nesse longo período, muitos foram os
estudos dedicados a investigar a legitimidade do conteúdo do precitado artigo 12,
quando em confronto tanto com a Constituição Federal de 1967, como diante da atual
Constituição, já que se pacificou o entendimento, para nós equivocado, da recepção do
Decreto-lei pela Emenda de 1969 e pela Constituição Federal de 1988, em seu aspecto
material e não formal, já que passou a ser necessária, para essa matéria, a forma da lei
complementar.
O artigo 12, “a”, do Decreto-lei n 406/68, visando dirimir os conflitos de
competência no âmbito do ISS, estabeleceu critério espacial com alto grau de
objetividade, pois dissociou completamente o local de pagamento do ISS do local de
efetiva ocorrência de seu fato tributário, ou seja, do local onde a prestação de serviço se
900
901
Direito Tributário..., op. cit., p. 508.
“Artigo 10. Ficam revogados os arts. 8º, 10, 11 e 12 do Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de
1968; os incisos III, IV, V e VII do artigo 3º do Decreto-Lei no 834, de 8 de setembro de 1969; a Lei
Complementar nº 22, de 9 de dezembro de 1974; a Lei nº 7.192, de 5 de junho de 1984; a Lei
Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987; e a Lei Complementar nº 100, de 22 de dezembro
de 1999”.
349
considera consumada, ultimada. Parte da doutrina não se conformou com o disposto no
artigo 12, em especial pela inexistência de liberdade do legislador complementar em
definir qual seja o critério espacial do ISS, assim como não há liberdade em definir toda
a regra-matriz de qualquer tributo. O que a lei complementar pode é proceder a um
refinamento dos arquétipos dos tributos, já previamente existentes no texto
constitucional.
A eleição do estabelecimento prestador como o local hábil a definir o
município competente para figurar como sujeito ativo da relação jurídica tributária,
resultou em indevida alteração da regra-matriz do ISS nos moldes constitucionais,
devido ao critério espacial ser local diverso daquele onde se dá a efetiva prestação do
serviço, considerado esse local como aquele onde juridicamente o serviço se
concretizou, ou seja, onde se considera adimplida a obrigação do prestador para com o
tomador. Por óbvio que, quando da aplicação dessa lei, nos casos em que o
estabelecimento prestador, ou, na sua falta, o domicílio tributário, estivessem situados
no mesmo município onde se ultimou a prestação do serviço, a criação e a exigência do
ISS davam-se pelo destinatário constitucional da competência tributária. Mas isso
ocorria por mera coincidência no plano fático, permanecendo, essa lei, contaminada
pelo vício da inconstitucionalidade.
A Constituição, ao eleger a prestação de serviços como materialidade da
hipótese de incidência do ISS, simultaneamente definiu, ainda que de forma implícita, o
local e o momento em que essa prestação ocorre. A discussão, em rigor, nem mesmo
teria razão de existir, pois, apesar da eleição dos critérios espacial e temporal não ter
ocorrido de forma expressa, ocorreu de forma tácita, e o raciocínio lógico impede, com
clareza, que sejam designados para tanto outros dados que não o exato local e o
momento preciso em que se consuma o fato “prestação de serviços”, como fez o
Decreto-lei n 406/68. Assim, o critério espacial do ISS, extraído da Constituição, não
tem vínculo jurídico algum com a existência de um estabelecimento ou de um domicílio
relacionado ao prestador.
Comentando o teor do artigo 12, “a” e “b”, do Decreto-lei n° 406/68, JOSÉ
EDUARDO SOARES DE MELO assevera que, “[...] considerando o princípio da
territorialidade – que deflui do texto constitucional em razão do tributo só poder ser
902
“Art 12. Considera-se local da prestação do serviço: a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de
estabelecimento, o do domicílio do prestador; b) no caso de construção civil o local onde se efetuar a
prestação.”
350
exigido no espaço geográfico da geração da riqueza – não havia que se discutir a
respeito da legitimidade da norma no que concerne aos serviços de construção civil”.
Observa, no entanto, que a territorialidade não fora prestigiada para as todas as demais
espécies de serviços. Conclui o autor que o comando inserto na alínea “a” se
consubstancia em ficção jurídica, que padece de vício de inconstitucionalidade, pois
restringe o exercício da competência pelos municípios, violando a Autonomia
Municipal que lhes é conferida para legislar sobre assuntos de interesse local, o que
abrange os tributos que lhes são exclusivos, conforme artigo 30, I e II, da
Constituição.903
CLÉBER GIARDINO anota que, ao que lhe parece, “[...] a ubiquação do
serviço ao estabelecimento prestador, e não ao local onde efetivamente desempenhado,
decorre da aplicação de simples e singelos critérios de direito privado”. A opção pelo
critério do domicílio do prestador, para o autor, deve-se apenas à razão de que, para
efeitos privados, esse é em geral o local onde a prestação é exigível, onde se encontra o
devedor e o seu patrimônio, assim como é o local onde é arquivada a escrituração
contábil e seus respectivos documentos, tudo, enfim, conforme exige a legislação civil
ou comercial. Embora seja de rigor interpretar o fato “prestação de serviço” com
supedâneo no Direito Privado – seu regime jurídico original – isso não autoriza a
recorrer a esse grande setor do Direito para tirar conclusões infundadas em torno do
local de ocorrência do fato tributário.904
Não há, portanto, liberdade alguma para a lei complementar no momento da
escolha do local de ocorrência do fato tributário do ISS, pois o único critério espacial
consentâneo com o arquétipo constitucional do ISS será o local onde efetivamente
ocorre a prestação do serviço.905 O mesmo raciocínio aplica-se quando a legislação
complementar à Constituição elege o estabelecimento prestador como o local de
ocorrência do fato tributário do ISS, pois não raro o serviço tem a sua prestação
consumada em município diverso de onde está situado o referido estabelecimento.
Vigorosa também é a crítica de MARÇAL JUSTEN FILHO:
A Constituição, ao adotar a materialidade da hipótese de incidência do ISS,
impôs a escolha de um critério espacial que em nada se relaciona com o tema
do domicílio ou da sede do estabelecimento do prestador do serviço O
critério espacial do ISS está vinculado não ao critério pessoal, mas ao critério
903
Incidência do ISS..., op. cit., p. 218-219.
ISS – Competência..., op. cit., p. 221.
905
ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 147.
904
351
material da hipótese de incidência do mesmo tributo. O local da prestação
não é aquele em que tem domicílio o prestador do serviço, eis que inexiste
qualquer vínculo entre o local da prestação e o domicílio do prestador. Pelo
menos, nenhum vínculo jurídico. A vinculação dá-se entre o local e a
prestação (ou seja, é o local da prestação).906
Depreende-se que a eleição do estabelecimento prestador, como critério para
definir o local de ocorrência do fato tributário do ISS, resultou em criação de ficção
jurídica indevida, uma vez que, na instituição do tributo, o legislador não goza de
nenhuma discricionariedade em relação ao núcleo da regra-matriz que já se encontra
plasmada no contexto constitucional. Cabe a ele, tão-somente, declará-la conforme
determina a Constituição. A lei complementar, em rigor, nada teria a acrescentar, sob
pena de resultar inócua ou redundante. Porém, diante da expressa previsão contida no
inciso III, “a”, do artigo 146 da Constituição, pelo qual cabe à lei complementar de
normas gerais, dentre outras coisas, definir o “fato gerador” dos impostos, não resta
outra alternativa senão render-se à verificação de que a lei complementar pode, no
máximo, “reforçar”, “ratificar”, a “regra-matriz constitucional” dos impostos, tendo em
vista uma harmonização nacional das leis tributárias municipais com o conteúdo
constitucional.
Registre-se, em contrário, o pensamento de BERNARDO RIBEIRO DE
MORAES, para quem a lei tributária pode ser aplicada a fatos ocorridos fora do
território do município, desde que a matéria seja disciplinada por lei complementar, o
que equivale a aceitar a ficção jurídica do estabelecimento prestador como local de
ocorrência do “fato gerador” do ISS, transformando-o em verdade abstrata (jurídica).907
SÉRGIO PINTO MARTINS também entende que o artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68
não contraria a Constituição, pois a previsão constitucional, constante do inciso I do
artigo 146, que remete à lei complementar dispor sobre conflitos de competência em
matéria tributária, legitimaria a regra constante do artigo 12, “a’, do Decreto-lei n°
406/68, como uma exceção ao Princípio da Territorialidade, tornando-a compatível com
a Constituição.908 Não há como concordar com tal posicionamento, já que não se
vislumbra qualquer liberalidade constitucional na criação de ficções jurídicas a esse
respeito, assim como não se admite que um princípio constitucional possa sofrer uma
exceção.
906
O imposto..., op. cit., p. 148.
Doutrina..., op. cit., p. 484.
908
Manual do Imposto Sobre Serviços, p. 212-213.
907
352
JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, após definir ficção jurídica como a
“[...] instrumentalização (criação legal) de uma situação inverídica (falsa), de forma a
impor uma certeza jurídica, consagrando uma realidade (jurídica), ainda que não
guarde consonância com a natureza das coisas, ou mesmo que altere títulos ou
categorias de direito”; adverte que não há poderes absolutos no uso desse artificialismo
jurídico, o qual “[...] não pode arranhar, comprometer, sequer tisnar os princípios e
normas insculpidos na Constituição, de modo a alterar os elementos estruturadores da
norma tributária, muito menos invalidar seu regime jurídico e os princípios
esparramados ao longo de seu texto, inclusive, e especialmente, implicar invasão de
competência tributária”.909
Infelizmente, renomados tributaristas têm defendido a validade da ficção
jurídica criada pelo artigo 12, “a”, do Decreto-lei nº 406/68. Em praticamente todas
essas manifestações, percebe-se a existência de basicamente três argumentos como
defesa da validade da eleição do estabelecimento prestador como critério espacial da
hipótese do ISS. Um primeiro argumento, pretensamente jurídico, está na sustentação de
uma validade intrínseca na figura da própria ficção jurídica, como se esse fenômeno
jurídico em si mesmo justificasse qualquer conteúdo material, ainda
que
manifestamente incompatível com o ordenamento jurídico. Admitir tal absurdo jurídico
implicaria reduzir a pó a sólida dogmática construída pela Ciência do Direito,
consistente na prevalência hierárquica dos princípios constitucionais. São os princípios
que devem orientar a criação de ficções jurídicas, e não o inverso, sob pena de destruir a
coerência e a harmonia do sistema jurídico.
O segundo argumento pretende, ainda que às vezes de forma não declarada,
justificar o critério escolhido pelo Decreto-lei nº 406/68, tendo por fundamento a
normatização vigente para os países da União Européia, onde o IVA – Imposto sobre o
Valor Agregado – incidente inclusive sobre a prestação de serviços, também considera
como local de ocorrência do fato tributário o local onde o prestador tenha a sede da
atividade econômica ou um estabelecimento estável a partir do qual os serviços são
prestados.910 Trata-se, como já cediço, de indevida utilização do Direito Comparado,
freqüentemente invocado nas teorias sobre o IVA europeu. Não discorda a doutrina
quanto à pouca ou quase nenhuma validade do direito alienígena na busca de subsídios
909
910
Local da Incidência..., op. cit., p. 336.
É o que dispõe atualmente o artigo 9º da 6ª Diretiva, válida para os países integrantes da União
Européia. O assunto será analisado mais detidamente no subitem seguinte.
353
normativos quando da interpretação do sistema jurídico pátrio, posto que “[...] só
depois de fixadas certas linhas mestras – captáveis diretamente da observação do texto
da Constituição – será útil qualquer consideração desse tipo, para sublinhar as
peculiaridades do nosso sistema, a fim de melhor compreendê-lo”.911
Ora, se a interpretação mais eficaz é aquela que termina no sentido sistemático
do ordenamento jurídico, os limites interpretativos estão dentro do sistema jurídico de
um determinado país. Apesar de o objetivo do Direito Comparado, que nada mais é do
que “[...] estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças entre ordens
jurídicas”912, ser extremamente útil naquilo que acusa sua própria denominação –
comparar ordens jurídicas (macrocomparação) ou institutos jurídicos afins em ordens
jurídicas diferentes (microcomparação)913 – será inútil ou até mesmo inconveniente sua
utilização para a análise da regra-matriz de algum tributo existente no sistema tributário
nacional, como é o caso do ISS.
HERON ARZUA ensina que, como conseqüência da rígida repartição
constitucional das competências tributárias, decorrente do pacto federativo e da
Autonomia Municipal, pouca ou quase nenhuma utilidade terá o recurso às doutrinas
estrangeiras para a solução dos problemas de funcionamento do nosso sistema,
advertência útil para evitar o vezo comum de se querer interpretar as normas dos
impostos brasileiros, em particular do imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e serviços nominados (ICMS) e do imposto sobre serviços (ISS), a partir do
imposto sobre o valor agregado (IVA) europeu.914
O terceiro argumento é completamente ajurídico, e portanto, ainda mais
criticável, consistindo na alegação da existência de problemas práticos de
operacionalização na arrecadação do ISS, caso o critério espacial seja definido como o
local da efetiva prestação dos serviços. Salta aos olhos que a mesma doutrina que se
utiliza desses argumentos, simultaneamente admite a validade e supremacia do
Princípio Territorial da lei tributária. É como se dissessem: “realmente, a Constituição
impede que a lei municipal tenha eficácia além de seus limites territoriais, mas na
‘prática’ é mais ‘fácil’ considerar o serviço prestado no município onde tenha o
contribuinte o seu estabelecimento prestador”. Nesse sentido é o posicionamento de
911
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 27.
ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Direito Comparado, p. 7.
913
Ibidem, p. 7-9.
914
O imposto sobre serviços e o princípio..., op. cit., p. 142-143.
912
354
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS915 e de HUGO DE BRITO MACHADO. É
deste último autor o seguinte raciocínio:
É razoável, portanto, dizer-se que os serviços prestados no território de um
determinado Município são por este, e só por este, tributáveis. Por outro lado,
adotado esse entendimento, tem-se na prática grande número de problemas.
Um advogado, domiciliado e com escritório em São Paulo, que é contratado
para fazer uma sustentação oral perante o STF, teria de pagar ISS no Distrito
Federal. [...] Foi, certamente, em face de tais problemas práticos que o
Decreto-lei n° 406/68 estabeleceu a norma segundo a qual considera-se local
de prestação do serviço aquele em que é estabelecido, ou domiciliado, o seu
prestador. Não se cuida de uma presunção legal, a comportar prova em
sentido contrário. Nem mesmo de uma presunção legal absoluta. Cuida-se na
verdade de uma ficção jurídica. [sic]916
Com o devido respeito ao autor, depreende-se de suas palavras acima que, em
um primeiro momento, afirma o primado do Princípio da Territorialidade. Entretanto,
ato contínuo, para tentar justificar o injustificável artigo 12, a, do Decreto-lei nº 406/68,
invoca problemas “práticos”, como se eles, em si mesmos, pudessem legitimar a
malsinada ficção legal veiculada por esse dispositivo. Em outra ocasião, o mesmo autor
tece outros comentários:
As ficções jurídicas – é bom ressaltar este aspecto – impõem a certeza
jurídica da existência de um fato cuja ocorrência, no mundo fenomênico, não
é certa. Uma vez criada a regra jurídica, porém, a ficção penetra na ordem
jurídica como verdade. Descabe, portanto, aferir-se, no caso concreto, se o
serviço foi – ou não – efetivamente realizado no local do estabelecimento
prestador, pois o legislador serviu-se da ficção de que o serviço é prestado no
local do estabelecimento prestador. É importante destacar que é ficto o local
onde ocorreu a prestação, não o local onde estabelecido o prestador. Sobre
este último cabe ampla discussão e dilação probatória. Onde for demonstrado
e provado estar o estabelecimento prestador é que, por ficção, será
considerada ocorrida a prestação do serviço.917
Na primeira afirmação, não há o que contestar, posto o renomado jurista ter
fornecido definição exata da técnica da ficção legal. Em seguida, contudo, verifica-se
que defende ser a ficção criada pelo Decreto-lei nº 406/68 válida, tão-só por ser ficção
legal. Caso assim fosse possível, os entes políticos poderiam, através de suas respectivas
leis, criar ficção jurídica para “desenhar” uma nova competência tributária, no formato
que melhor lhes conviessem, com a conseqüência inevitável da invasão de competência
alheia. Ou, o que é estatisticamente mais provável, a União, mediante o uso abusivo e
ilegítimo da lei complementar de normas gerais, poderia criar “verdades jurídicas” com
915
O local da prestação..., op. cit., p. 91-93.
Local da ocorrência do fato gerador do ISS. Repertório IOB de Jurisprudência, nº 1, p. 15.
917
O local da ocorrência do fato gerador do ISS. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 58, p. 48.
916
355
o propósito de aumentar o seu “poder” centralizador, e não se poderia confrontá-las com
a Constituição tão-somente porque são ficções jurídicas! Quanto ao último raciocínio,
sobre ser ficto o local onde ocorreu a prestação, e não o local onde é estabelecido o
prestador, não há do que discordar, a não ser quanto à inconstitucionalidade da ficção
legal criada.
O dispositivo em comento, durante o período de sua vigência, também é
inconstitucional pela ofensa ao Princípio da Territorialidade das leis tributárias – norma
constitucional que, aplicada ao ISS, subordina a exigência desse imposto somente ao
município onde são prestados os serviços – já que estabelece critério espacial que
permite a invasão, por um município, de área de competência de outro município, onde
os serviços são prestados. Entender em sentido contrário implica atribuir à lei municipal
eficácia extraterritorial, admitindo que a lei de um município possa ser eficaz em outro,
afastando a competência deste, onde foram prestados os serviços.918 Pode-se, sob outro
ângulo, tentar extrair da letra “a” do artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68, uma
interpretação que revele uma possível compatibilidade com a Constituição. Nesse
sentido é o entendimento de ROQUE ANTONIO CARRAZZA, o qual defende que o
supracitado dispositivo não seria inconstitucional quando o serviço for prestado
efetivamente no município onde estiver sediado o estabelecimento prestador. Caso
contrário, o artigo 12 deveria ter sua aplicação negada.919
No mesmo caminho, AIRES BARRETO defende que, antes de qualquer
conclusão seria necessário buscar uma definição do gênero “estabelecimento” para, na
seqüência, obter um conceito legítimo da espécie “estabelecimento prestador”. Mas
advirta-se que o conceito isolado de estabelecimento, em si mesmo, é irrelevante para os
efeitos de incidência do ISS, pois somente terá relevância para tanto o estabelecimento
prestador, e não o estabelecimento “do prestador”. Após definir estabelecimento como
todo complexo de bens utilizados no exercício de atividade econômica, sublinha o autor
que “Estabelecimento prestador, por sua vez, é qualquer local em que, concretamente,
se exercitem as funções de prestar serviços. O porte do estabelecimento, a dimensão
dos poderes administrativos, a existência de subordinação, sendo elementos
irrelevantes para a caracterização de estabelecimento, também o são para a tipificação
de estabelecimento prestador”.920
918
BARRETO, Aires Fernandino. ISS – Conflitos..., op. cit., p. 11.
Breves considerações..., op. cit., p. 156.
920
ISS: serviços de despachos..., op. cit., p. 117.
919
356
Acrescenta ainda o autor que o estabelecimento principal – sede ou matriz –
difere-se dos demais – filiais, agências, sucursais – em razão dos últimos exercerem a
atividade econômica de forma subordinada àquele primeiro. “A representação, com
poderes gerais, amplos, só existe nas matrizes ou sedes. Exatamente o traço tipificador
das filiais, agências, sucursais, é terem poderes parciais de representação. Basta o
tenham. O grau, a intensidade são irrelevantes. Estabelecimento prestador é, pois, o
local em que o serviço é prestado, independentemente do seu porte, grau de autonomia,
ou qualificação específica”.921
Diante de tais premissas, assim como pelo entendimento de que o ISS sempre é
devido no local, município, onde os serviços forem prestados, AIRES BARRETO
conclui pela não validade do artigo 12, a, do Decreto-lei n° 406/68, “[...] salvo nos
casos em que coincidem o local em que é prestado o serviço e o do estabelecimento
prestador”, hipótese em que o preceito é inócuo ou, no mínimo, redundante. Nos
demais casos, em que o estabelecimento prestador está situado em município diverso
daquele onde o serviço foi prestado, o dispositivo é inconstitucional.922
Raciocínio relevante foi construído por MARÇAL JUSTEN FILHO, em
resposta a duas indagações formuladas na mesa de debates sobre tributos municipais no
IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário. A questão era no sentido de saber se é
necessária a criação de uma filial para a prestação de um serviço em município diverso
do da matriz, ao que o autor responde ser essa uma “[...] questão que não se subordina
exatamente à disciplina da Lei Tributária, por ser matéria de Direito Comercial, e não
há regra no Direito Comercial que obrigue a existência de uma filial no local da
prestação de serviço. A filial é uma faculdade organizacional interna do comerciante,
que cria ou não cria filiais, como melhor lhe aprouver”. A segunda indagação seria
sobre a obrigatoriedade de inscrição no cadastro municipal de cada município onde
houver prestação de serviço. O autor defende, quanto a essa questão, que cada prestador
de serviço deverá se cadastrar não só no município onde tem sede, como também no
local onde vier a prestar serviços. 923
Reconhecer competência para a tributação da prestação de serviços a um
município, onde essa prestação não ocorre, repugna à estrutura do ordenamento jurídico.
E isso se dá porque, em primeiro lugar, conduz a uma ampliação e conseqüente
921
922
Ibidem, p. 117-118.
Ibidem, p. 124.
357
desnaturação do critério material da hipótese de incidência. A tributação não mais
incidiria sobre a prestação do serviço, mas sobre o fato de manter-se um domicílio ou
estabelecimento em dado município. Como resultado, violar-se-ia a repartição
constitucional de competências, pois tributo com essa materialidade somente poderia
estar compreendido na competência residual da União Federal, conforme inciso I do
artigo 154 da Constituição.924
Em relação ao Decreto-lei nº 406/68, afirma MARÇAL JUSTEN FILHO que,
ao pretender fixar critérios para solução de conflitos de competência tributária, o
legislador infringiu, dentre outros, os princípios da Isonomia das Pessoas Políticas, o da
Autonomia dos Municípios, e o da rígida discriminação de competências. Além disso,
alterou, indiretamente, a própria materialidade do ISS, ao pretender vincular a
competência tributária a evento incompatível com a materialidade da hipótese de
incidência do ISS. “A lei complementar atuou como se outra fosse a estrutura do
ordenamento. Influenciou-se pelo vezo de afirmar que o ISS nada mais seria do que o
antigo imposto sobre indústrias e profissões, previsto na Carta de 1946 e extinto com a
EC 18”.925
Em que pese a invalidade dos dispositivos que elegeram o estabelecimento
prestador como local de ocorrência do fato tributário do ISS, é preciso, antes de afirmar
peremptoriamente a inconstitucionalidade dos mesmos, verificar a possibilidade de
alguma interpretação que os harmonize com o critério espacial da regra-matriz de
incidência desse imposto, o que pode ser possível com a utilização, por exemplo, da
interpretação conforme à Constituição, como será demonstrado nos subitens seguintes.
O entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema teve, de certa
forma, essa perspectiva, ainda que, em alguns aspectos, os argumentos utilizados
possam merecer críticas.
5.5 A JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF
A definição do critério espacial constante do artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68
teve o efeito nefasto de iniciar a guerra fiscal entre os municípios, os quais, buscando
923
IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário: mesa de debates - tributos municipais. Revista de
Direito Tributário, n. 67, p. 147.
924
JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 148.
358
atrair para os seus territórios estabelecimentos prestadores de serviços tributáveis pelo
ISS, passaram a fixar alíquotas reduzidas para esse imposto. Ocorre que não raro esses
estabelecimentos não apresentavam vínculo fático algum com as atividades
desempenhadas pelo prestador, revelando o propósito isolado de evasão tributária.
O Superior Tribunal de Justiça, instado a manifestar-se sobre o tema, logo se
dividiu em duas correntes, conforme a posição doutrinária adotada. Uma primeira
corrente entendeu que o ISS incide e é devido no local, município, onde os serviços são
prestados, afastando, portanto, o artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, com exceção
das hipóteses em que o serviço é prestado no mesmo local onde está situado o
estabelecimento prestador.926 A segunda corrente defendeu como válida a eleição, pelo
artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, do estabelecimento prestador como local de
incidência e arrecadação do ISS.927 Neste segundo posicionamento, parte das decisões
defende a inaplicabilidade do Princípio da Territorialidade das leis, e a outra parte
defende que esse princípio foi afastado de forma legítima pela norma nacional do ISS.
A esse propósito, AIRES BARRETO demonstra a existência de equívoco em
ambas as posições, porque, de um lado, não há como se possa afastar a aplicação de um
princípio, e de outro, não se pode considerar válida norma infraconstitucional
incompatível com uma norma constitucional.928 As decisões conflitantes continuaram
por anos no Superior Tribunal de Justiça, o que contribuiu para aumentar a insegurança
jurídica entre os contribuintes, assim como fomentou a guerra fiscal entre os
municípios. Após várias decisões divergentes, aquela corte entendeu, em sede de
Embargos de Divergência pela 1ª Seção – que reúne as 1ª e 2ª Turmas, especializadas
em Direito Público – que o ISS é devido no local onde os serviços forem prestados,
sendo irrelevante o local, município, em que estiver situado o estabelecimento
prestador, conforme demonstra a seguinte ementa:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – ISS – COMPETÊNCIA – LOCAL DA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇO – PRECEDENTES – I – Para fins de
incidência do ISS – Imposto Sobre Serviços -, importa o local onde foi
concretizado o fato gerador, como critério de fixação de competência do
Município arrecadador e exigibilidade do crédito tributário, ainda que se
925
O imposto..., op. cit., p. 150.
Recurso Especial nº 168.023/CE, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, DJ 03 ago. 1998, p. 137 –
Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
927
Recurso Especial nº 16.033/SP, Rel. Ministro HÉLIO MOSIMANN, DJ 13 fev. 1995 – Disponível em
<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
928
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 326-327.
926
359
releve o teor do artigo 12, alínea "a" do Decreto-lei n° 406/68. II – Embargos
rejeitados.929
Esse posicionamento consolidou a interpretação nacional sobre qual seja o
critério espacial da hipótese tributária do ISS, assim como, por conseqüência, do sujeito
ativo da relação jurídica tributária, o que inegavelmente conferiu aos contribuintes do
ISS alguma previsibilidade na gestão de seus negócios, o que, de resto, é imprescindível
para a conquista da tão almejada segurança jurídica. Houve entendimentos no sentido de
que a decisão do STJ ter-se-ia se assentado somente nos casos em que, pela natureza dos
serviços, é imprescindível a presença física do prestador no local onde os serviços são
desempenhados, como é o caso dos serviços de limpeza ou vigilância, por exemplo.
Esse posicionamento teria seguido, então, orientação equivalente firmada pelo Tribunal
de Alçada Civil de São Paulo. Diante disso, parte da doutrina sustentou não ser possível
afirmar que o Superior Tribunal de Justiça ainda adotaria o fundamento da
territorialidade, para os serviços que não exigissem a presença física do prestador em
município diverso daquele em que estivesse estabelecido.
Parece ser improvável que o Superior Tribunal de Justiça adote duas
interpretações totalmente distintas para o local da prestação dos serviços, com base em
um único dispositivo, o artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68. AIRES BARRETO,
da mesma forma, não vê como possa aquela corte admitir, com fulcro na referida letra
“a”, que o ISS é devido no local da prestação dos serviços, mas que não o é, com base
na mesma letra “a”, quando os serviços não exigirem a presença física de pessoas no
município em que forem prestados. “É pouco crível que o STJ venha a adotar duas
interpretações para a mesma norma”, conclui o autor.930
Há entendimento doutrinário que vê como altamente criticável a forma como
foi afastada, pelo Superior Tribunal de Justiça, a aplicação do artigo 12, “a”, do
Decreto-lei n° 406/68.931 É que em vários acórdãos dessa Corte, sobre o local de
ocorrência do fato tributário do ISS, consta o seguinte trecho: “Embora o artigo 12,
letra a, considere como local da prestação de serviço o do estabelecimento prestador,
pretende o legislador que o referido imposto pertença ao Município em cujo território
929
ERESP nº 130792/CE, Relª p/o Ac. Minª NANCY ANDRIGHI, DJ 12 jun. 2000, p. 66 – Disponível
em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
930
ISS na Constituição..., op. cit., p. 334.
931
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O local de prestação de serviços no DL n. 406/68 e na LC n.
116/2003. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei
Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 90-92.
360
se realizar o fato gerador” – como exemplo, o Recurso Especial nº 72.398/SP.932 A
expressão “pretende o legislador” teria sido infeliz, pois assim como admite ter o texto
normativo expressamente falado em “estabelecimento prestador”, afirma que essa
expressão do legislador deve ser desconsiderada, pois na verdade ele “pretenderia” outra
coisa.
Os que criticam a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça argumentam
que, ainda que se tenha em conta a necessidade de observância do princípio da
presunção de constitucionalidade das leis, pelo qual o intérprete não deve medir
esforços para tentar compatibilizá-las com os ditames maiores contidos na Constituição,
tal esforço, no caso do dispositivo mencionado, revelar-se-ia infrutífero, por duas
razões: em primeiro lugar, porque (a) ou se considera o estabelecimento prestador, ou,
na sua falta, o seu domicílio, como o local de ocorrência do fato tributário do ISS,
violando-se, nessa hipótese, o Princípio da Territorialidade das leis tributárias; ou (b)
defende-se que, não obstante a regra expressamente remeter ao local do
estabelecimento prestador, o intérprete deve ignorar tal previsão e entender que, “na
verdade”, o local é aquele onde o serviço é prestado, opção que implica interpretar a lei
em total desacordo com o seu expresso teor, como se estivéssemos diante de atividade
legislativa ilegítima.
A única solução, para essa corrente, seria a declaração de inconstitucionalidade
da letra “a”, do artigo 12, do Decreto-lei n° 406/68, tarefa que, todavia, compete, em
última instância, exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal. Tal declaração só não
ocorreu justamente porque o Superior Tribunal de Justiça não declarou a precitada
norma inconstitucional, “[...] embora para não dizê-lo tenha trilhado caminho
extremamente tortuoso”, nas palavras de AIRES BARRETO.933 Esse mesmo autor, no
entanto, acabou por rever seu entendimento, e hoje entende que a posição do Superior
Tribunal de Justiça é a mais acertada. Como fundamento para tanto, argumenta que é
possível interpretar a expressão “local do estabelecimento prestador”, como sendo o
local em que o serviço for prestado, sendo irrelevante, ainda, a circunstância de haver,
ou não, a presença física do prestador.934 Esse também é o entendimento de BETINA
TREIGER GRUPENMACHER.935
932
Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, DJ de 10 jun. 1996. Disponível em <http://www.stj.gov.br>.
Acesso em: 05 fev. 2007.
933
ISS – Conflitos..., op. cit., p. 16.
934
ISS na Constituição..., op. cit., p. 334.
935
ISS – Local…, op. cit.,p. 89.
361
MISABEL DERZI defende que a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça negligenciou pontos essenciais da questão, sob o argumento de que o legislador
complementar poderia eleger critério espacial diferente do local da execução do serviço,
desde que se mantenha conexão com o território municipal, como, por exemplo, o local
do estabelecimento prestador. Como resultado, entende que o Decreto-lei n° 406/68 não
teria desnaturado a regra-matriz constitucional do ISS, nem violado o Princípio da
Territorialidade. O seu único argumento, ao que parece, é a aceitação incondicional de
que a ficção jurídica criada pelo citado diploma é válida.936 No mesmo caminho é o
posicionamento de CRISTIANO ROSAS DE CARVALHO.937
Mas a autora não oferece nenhum argumento que demonstre a legitimidade
irrestrita na criação de ficções jurídicas, ou ainda de presunções juris et de jure. Como
já defendemos anteriormente, não há liberdade absoluta no uso desses expedientes
legislativos, em especial no trato de matéria tributária prevista constitucionalmente,
pois, do contrário, teríamos que admitir a flexibilização da Constituição justamente
onde ela é mais rígida.938 A autora sustenta, ainda, que a norma geral criada pelo
Superior Tribunal de Justiça também não resolve a questão da correta distribuição de
receita entre os municípios envolvidos, pois “[...] nem sempre o lugar onde se prestou
ou executou o serviço será o lugar onde deveria permanecer a receita do imposto”.
Complementa: “Sendo o ISS um imposto sobre o consumo de serviços, em princípio o
produto da arrecadação deveria pertencer ao Município em que foram adquiridos”,
“[...] pois em geral são os seus beneficiários-adquirentes que acabam suportando o
encargo do imposto, que lhes é transferido no mecanismo dos preços”.
Em que pese a excelência das reflexões da renomada jurista, a sua conclusão
acerca do município que se deve beneficiar da receita do ISS parte de uma perspectiva
exclusivamente pré-jurídica, além do que incorre em manifesto equívoco ao defender
ser o ISS um imposto que incide sobre o “consumo” de serviços, quando é pacífico que
o contexto constitucional demonstra que o destinatário constitucional tributário do ISS
não é outro senão o prestador do serviço. Em outro trecho do mesmo artigo a própria
autora parece afirmar o oposto: “A Carta Magna preferiu considerar os serviços sob o
936
O aspecto espacial do imposto municipal sobre serviços de qualquer natureza. In: TÔRRES, Heleno
Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na
Constituição, p. 57-59.
937
Responsabilidade tributária do tomador do serviço. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; MARTINS,
Ives Gandra da Silva (org.). ISS: Lei Complementar 116/2003, p. 96-99.
938
Vide supra, item 5.1.
362
ângulo do prestador (não do usuário) no âmbito de incidência do ISS, fato igualmente
indicativo de capacidade econômica”.939
Por outro lado, a autora invoca como premissa o argumento comprovadamente
falível da repercussão econômica do ISS, critério baseado na classificação ajurídica dos
impostos em diretos e indiretos, oriunda da Ciência das Finanças e que tem recebido
justas e acirradas críticas por parte da doutrina. Dentre vários, podem-se citar os
excelentes argumentos de FRANCISCO PINTO RABELLO FILHO:
Pela característica legal desse imposto (ISS), as qualidades de sujeito passivo
de fato e sujeito passivo de direito estão concentradas na mesma pessoa, o
prestador do serviço (contribuinte). É consideração de matiz exclusivamente
econômico, completamente irrelevante no campo da repetição do indébito, a
que pretender argumentar com a circunstância de que de fato o prestador do
serviço incorpora, no valor deste, o do imposto.940
HERON ARZUA entende que a única conclusão plausível é a de que o artigo
12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68 nem mesmo chegou a ser recepcionado pela
Constituição Federal de 1988, seja por ter perdido a eficácia, seja por ter sido revogada,
ou porque perdeu seu fundamento de validade.941 Para o autor, quando esse dispositivo
elege, como regra geral, o local do estabelecimento prestador, e como regra subsidiária
o local do domicílio do prestador, está a criar novo imposto, pois esse critério espacial
implicitamente traz em seu seio materialidades diversas da prestação de serviços, com a
qual somente se identifica no que tange à base de cálculo. Criar-se-ia uma teratologia
tributária, pois o seu critério material e a sua base de cálculo revelam-se incompatíveis
entre si.
Com base nesse raciocínio, restaria inequívoco que a eleição, pela lei, do
domicílio do prestador como apto a indicar o município legitimado para a imposição do
ISS resulta em inobservância da norma constitucional que prevê o núcleo da regramatriz desse imposto. Ao invés de “prestação de serviços”, a lei complementar que
assim dispuser estará definindo como materialidade a conduta de alguém manter um
domicílio.
Poder-se-ia ainda defender-se que as decisões proferidas pelo Superior
Tribunal de Justiça, sobre o artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, estariam em
desacordo com o artigo 105, III, da Constituição, onde se prevê que a esta Corte cabe
939
O aspecto espacial..., op. cit., p. 76.
Consideração do ISS como imposto direto ou indireto, para efeito de repetição do indébito tributário:
breve revisitação do tema. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 55, p. 156-157.
941
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 152.
940
363
tão-somente proferir decisões – pela via do Recurso Especial – que contrariem norma
infraconstitucional. Assim, as únicas decisões compatíveis com a função constitucional
dessa Corte seriam a de que determinada lei municipal observa ou não observa o
Decreto-lei n° 406/68. Se a decisão recorrida ataca o Decreto-lei n° 406/68 porque
entende ser ele inconstitucional, então o Superior Tribunal de Justiça não deveria
conhecer do recurso, pois caberia ao Supremo Tribunal Federal decidir a questão, em
sede de Recurso Extraordinário. Inconstitucionais, portanto, seriam as decisões como a
que segue abaixo, onde a fundamentação foi o Princípio Constitucional da
Territorialidade, implícito na repartição das competências tributárias:
RECURSO ESPECIAL – TRIBUTÁRIO – ISS – COMPETÊNCIA –
MUNICÍPIO DO LOCAL – Da prestação do serviço. Entendimento
pacificado neste Superior Tribunal de Justiça. A egrégia primeira seção desta
colenda corte superior de justiça pacificou o entendimento de que o
município competente para realizar a cobrança do ISS é o do local da
prestação dos serviços, onde se deu a ocorrência do fato gerador do imposto.
‘De acordo com a constituição, este imposto só pode alcançar os serviços de
qualquer natureza (exceto os referidos no artigo 155, II, da Constituição)
prestados no território do município tributante. Por quê? Porque nossa Carta
Magna adotou um critério territorial de repartição das competências
impositivas que exige que a única Lei Tributária aplicável seja a da pessoa
política em cujo território o fato imponível ocorreu' (Roque Antonio
Carrazza, in ‘Curso de Direito Constitucional Tributário’, 18ª ed., Malheiros
Editores, São Paulo, p. 844). Recurso Especial provido.942
Entende-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça adotou a
chamada “interpretação conforme a Constituição”, a qual indica como vetor
hermenêutico a necessidade de optar, dentre as possíveis interpretações em torno de um
texto normativo, aquela que melhor se ajusta aos ditames constitucionais, dentro de um
limite de razoabilidade. Somente depois de exauridas as tentativas nesse sentido é que
será legítima a conclusão pela inconstitucionalidade insanável da norma. No caso em
exame, quer-se dizer que, ainda que a dicção literal do artigo 12 do Decreto-lei n°
406/68, em um primeiro momento, remeta à conclusão da impossibilidade de interpretar
a expressão “estabelecimento prestador” como tendo o sentido de “local onde os
serviços são prestados”, a sua inserção no contexto constitucional poderia vir a autorizar
esse entendimento.
Nesse sentido, FERNANDO OSÓRIO DE ALMEIDA JÚNIOR conceitua a
interpretação conforme a Constituição como sendo “[...] aquela que, entre outras
possíveis interpretações, se impõe sobre as demais, em razão de revelar na lei a sua
364
validade em face da Constituição”. Complementa o autor nos termos seguintes: “[...] a
interpretação conforme a Constituição aproxima-se dos métodos clássicos de solução
de antinomias na medida em que busca a realização do princípio da unidade do
ordenamento jurídico e da supremacia da Constituição, este último em comparação
como método hierárquico”.943
O único método hermenêutico válido para compatibilizar a norma veiculada
pelo artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, portanto, é a interpretação conforme a
Constituição. Com efeito, dentre as várias interpretações possíveis acerca desse
dispositivo, deve prevalecer aquela que manifesta compatibilidade com o contexto
constitucional, o que exige concluir que a única interpretação possível será aquela que
prestigie o critério espacial da hipótese de incidência do ISS, conforme a matriz
constitucional desse imposto. Como já foi insistentemente defendido, o critério espacial,
no caso do ISS, não é outro local senão aquele onde os serviços foram prestados de
forma definitiva. Para tanto, interessa onde se ultimou a atividade-fim contratada entre
tomador e prestador, sendo irrelevantes para tanto a eventual existência de outros locais,
municípios, onde tenham ocorrido ações intermediárias (atividades-meio), ainda que
necessárias à conclusão do serviço.
O referido autor esclarece que a interpretação conforme a Constituição implica
a “[...] derrogação de certos efeitos jurídicos da lei”, ou seja, resulta na “redução de
seu conteúdo”. A lei, no entanto, é mantida tendo em vista a necessidade de que as
demais situações ou pessoas, que não foram atingidas pela inconstitucionalidade da lei,
permaneçam sujeitas a ela de forma válida.944
Depreende-se, assim, que a interpretação conforme a Constituição permite ao
intérprete e aplicador da norma restringir a amplitude de um dispositivo de forma que
ele se compatibilize com a Lei Maior. Essa técnica interpretativa, portanto, permite
solucionar, de forma legítima, os problemas da dicção literal do artigo 12, a, do
Decreto-lei n° 406/68, para concluir que o contexto constitucional exige redução
semântica para a expressão “estabelecimento prestador”, a fim de que ela corresponda
única e exclusivamente ao local em que os serviços são efetivamente prestados,
consumados. Nesse sentido é o raciocínio defendido, com acerto, por BETINA
942
RESP nº 525067/ES, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO, DJ de 28 out. 2003 – Disponível em
<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
943
Interpretação conforme..., op. cit., p. 16-18.
944
Ibidem, p. 47.
365
TREIGER GRUPENMACHER, a respeito dos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n°
116/2003.945
Para a autora, a interpretação conforme a Constituição, nesse caso, não viola o
Princípio da Legalidade Tributária, uma vez que ele somente se aplica caso a lei que
cria ou aumenta o tributo seja constitucional. Por outro lado, o novo sentido do texto
normativo decorreria também do primado da Segurança Jurídica sobre a Legalidade, por
ser aquele princípio dotado de maior densidade semântica. Conclui que a
jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça adotou essa técnica de
interpretação, a fim de tornar o dispositivo compatível com a Constituição Federal.946
A ressalva que se entende necessária diz respeito à redação existente em
diversos julgados, onde se diz que “embora o artigo 12, letra a, considere como local
da prestação de serviço o do estabelecimento prestador, pretende o legislador que o
referido imposto pertença ao Município em cujo território se realizar o fato
gerador”.947 Não restam dúvidas de que a redação poderia ser melhor elaborada, em
especial consignando a utilização da “interpretação conforme a Constituição”, técnica
hermenêutica cujos limites de aplicação são definidos com precisão por KARL
LARENS, cujo raciocínio é, em grande parte, amparado na jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal da Alemanha:
A interpretação conforme à Constituição, se quer continuar a ser
interpretação, não pode ultrapassar os limites que resultam do sentido literal
possível e do contexto significativo da lei. O Tribunal Constitucional Federal
tem dito repetidamente que uma interpretação conforme à Constituição não é
possível “em face do claro teor literal” da disposição. E tão-pouco deve a
interpretação conforme à Constituição deixar de atender ao escopo da lei.
Quando, no entanto, o legislador tenha intentado um efeito mais amplo do
que o permitido nos termos da Constituição a, lei pode, no parecer do
Tribunal Constitucional Federal, ser interpretada restritivamente “conforme à
Constituição” [sic].948
O raciocínio sobre os limites “literal” e “teleológico”, contido na tese de
LARENZ, foi adotado por FERNANDO OSÓRIO DE ALMEIDA JÚNIOR, para quem
“[...] a aplicação da interpretação conforme resulta do reconhecimento pelo tribunal
de que a aplicação da lei na forma pela qual foi posta pode implicar em vício de
945
ISS – Local..., op. cit., p. 84-85.
Ibidem, p. 89.
947
REsp nº 72.398/SP, Rel. Ministro DEMÓCRITO REINALDO, DJ de 10 jun. 1996 – Disponível em
<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
948
Metodologia da Ciência do Direito, p. 480-481.
946
366
inconstitucionalidade”.949 Registre-se que o Supremo Tribunal Federal, na esteira do
Tribunal Constitucional Federal alemão, tem reiteradamente aplicado a interpretação
conforme a Constituição, com os limites acima identificados, como ilustra a seguinte
decisão:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. SERVIDOR PÚBLICO. VENCIMENTOS. REAJUSTE. RESÍDUO
DE 3,17%. PARCELAMENTO. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.225-45/2001. INTERPRETAÇÃO
"CONFORME", SEM REDUÇÃO DE TEXTO. O Supremo Tribunal Federal declarou, por meio de
interpretação "conforme", sem redução de texto, a inconstitucionalidade parcial do art. 11 da Medida
Provisória nº 2.225-45/2001. Com isso, excluiu do alcance da MP as hipóteses em que o servidor se
recusasse, explícita ou implicitamente, a aceitar o parcelamento previsto no dispositivo. Agravo
regimental a que se nega provimento.950
Como era esperado, as decisões do Superior Tribunal de Justiça, já sob a égide
da Lei Complementar nº 116/2003, permaneceram no mesmo sentido e com os mesmos
argumentos, tendo-se mantido, inclusive, os precedentes criados com base no Decretolei nº 406/68. Os acórdãos a seguir ilustram esse posicionamento:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ISS. COBRANÇA.
LOCAL DA
PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. 1. ‘O Município competente para cobrar o ISS
é o da ocorrência do fato gerador do tributo, ou seja, o local onde os serviços
foram prestados’. Precedentes: EREsp 130.792/CE; Primeira Seção, Relator
para acórdão Min. NANCY ANDRIGHI; DJ de 12/6/2000, p. 66; AgRg no
AgRg no Ag 587.918/RJ; Primeira Turma, Relator Min. TEORI ALBINO
ZAVASCKI; DJ de 1°/7/2005, p. 373; AgRg no Ag 607.881/PE; Segunda
Turma, Relator Min. FRANCIULLI NETTO; DJ de 20/6/2005, p. 209; AgRg
no Ag 595.028/RJ; Primeira Turma, Relator Min. JOSÉ DELGADO; DJ de
29/11/2004, p. 239. 3. Agravo Regimental desprovido. 951
TRIBUTÁRIO. ISSQN. LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. ART.
12 DO DECRETO-LEI Nº 406/68. 1. Mesmo na vigência do art. 12 do
Decreto-Lei nº 406/68, revogado pela Lei Complementar nº 116/03, a
Municipalidade competente para realizar a cobrança do ISS é a do local da
prestação dos serviços, onde efetivamente ocorre o fato gerador do imposto.
2. Recurso especial improvido.952
Não há decisões recentes no Supremo Tribunal Federal sobre o tema, que
possam ser comparadas com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. A título de
ilustração, seguem duas decisões sobre o tema: (a) no Recurso Extraordinário nº
71.307/PE, foi decidido que o ISS “(…) não pode ser exigido com base no valor de
949
Interpretação conforme..., op. cit., p. 42.
RE-AgR 399249/DF, Rel. Ministro CARLOS BRITO, julgamento em 25 maio 2004 – Disponível em
<http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 20 fev. 2007.
951
AgRg no Ag 747.266/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, DJ 19 jun. 2006 – Disponível em
<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
952
REsp 882.913/PE, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, DJ 12 dez. 2006 – Disponível em
<http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
950
367
transações efetuadas fora do município”.953 O recurso referia-se ao caso de listas
telefônicas de outros municípios, cujas edições foram objeto de contratos realizados por
vendedores da filial do Recife. Mas, como as listas foram produzidas e impressas pela
matriz no Rio de Janeiro, a Suprema Corte decidiu que o ISS é devido nesse município;
(b) no Recurso Extraordinário nº 82.997/GO, a discussão envolvia a incidência de ISS
sobre a locação de máquinas copiadoras por uma filial situada em Goiânia, cuja matriz
era localizada em Brasília, local onde eram tão-somente celebrados os contratos. Ficou
decidido que Goiânia é o município competente para exigir o ISS.954
Ao que parece, as decisões do Supremo Tribunal Federal não tocaram
especificamente no tema, da forma como fez o Superior Tribunal de Justiça. Dos
acórdãos acima, pode-se tirar duas conclusões sobre o posicionamento do STF: a) é
irrelevante o local onde se aperfeiçoa o contrato de prestação dos serviços; e b) o ISS
será devido ao município onde o serviço for efetivamente prestado, caso a execução
coincida com a existência de um estabelecimento prestador nesse local, sendo
irrelevante que etapas iniciais tenham sido realizadas no município da sede do
prestador. Não há, portanto, como antever qual será o posicionamento do Supremo
Tribunal Federal, caso seja provocado em relação aos serviços prestados fora de
qualquer estabelecimento do prestador.
5.6 O CRITÉRIO ESPACIAL NA LEI COMPLEMENTAR N 116/2003
A Lei Complementar n° 116/2003 foi editada com a justificativa de
“implementar a justiça tributária”, através da amenização da guerra fiscal entre os
municípios, fenômeno que deu origem aos chamados “paraísos fiscais” para os
prestadores de serviços.955 Em seu conteúdo, verifica-se que o legislador complementar
não encampou, como regra geral, a orientação firmada pelo Superior Tribunal de
953
DJ 05/06/72 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
DJ 08/07/76 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
955
Anteriormente à edição dessa lei, a Emenda Constitucional n. 37, de 12 jun. 2002, visando minorar os
efeitos desse planejamento tributário, muitas vezes ilegítimo, inseriu o artigo 88 no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, determinando que o ISS, enquanto não adviesse lei
complementar para disciplinar as suas alíquotas máximas e mínimas, assim como para regular a forma
e as condições da concessão e revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais, teria (I) alíquota
mínima de dois por cento, exceto para serviços de construção civil e demolição, e (II) não seria objeto
de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resultasse na redução da alíquota
954
368
Justiça, ainda que a tenha utilizado em um grande número de exceções. Como se verá, a
complexidade da definição do critério espacial levada a efeito pelo novo diploma
resultou no ressurgimento das disputas entre os municípios. O critério espacial, variável
conforme a espécie do serviço, está definido no artigo 3º da nova lei, assim como em
seus incisos e parágrafos:
Artigo 3º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou,
na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos
incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:
I – do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de
estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, na hipótese do § 1º do artigo
1º desta Lei Complementar;
II – da instalação dos andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas, no
caso dos serviços descritos no subitem 3.05 da lista anexa;
III – da execução da obra, no caso dos serviços descritos no subitem 7.02 e
7.19 da lista anexa;
IV – da demolição, no caso dos serviços descritos no subitem 7.04 da lista
anexa;
V – das edificações em geral, estradas, pontes, portos e congêneres, no caso
dos serviços descritos no subitem 7.05 da lista anexa;
VI – da execução da varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento,
reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos
quaisquer, no caso dos serviços descritos no subitem 7.09 da lista anexa;
VII – da execução da limpeza, manutenção e conservação de vias e
logradouros públicos, imóveis, chaminés, piscinas, parques, jardins e
congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.10 da lista anexa;
VIII – da execução da decoração e jardinagem, do corte e poda de árvores, no
caso dos serviços descritos no subitem 7.11 da lista anexa;
IX – do controle e tratamento do efluente de qualquer natureza e de agentes
físicos, químicos e biológicos, no caso dos serviços descritos no subitem 7.12
da lista anexa;
X – (VETADO)
XI – (VETADO)
XII – do florestamento, reflorestamento, semeadura, adubação e congêneres,
no caso dos serviços descritos no subitem 7.16 da lista anexa;
XIII – da execução dos serviços de escoramento, contenção de encostas e
congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.17 da lista anexa;
XIV – da limpeza e dragagem, no caso dos serviços descritos no subitem
7.18 da lista anexa;
XV – onde o bem estiver guardado ou estacionado, no caso dos serviços
descritos no subitem 11.01 da lista anexa;
XVI – dos bens ou do domicílio das pessoas vigiados, segurados ou
monitorados, no caso dos serviços descritos no subitem 11.02 da lista anexa;
XVII – do armazenamento, depósito, carga, descarga, arrumação e guarda do
bem, no caso dos serviços descritos no subitem 11.04 da lista anexa;
XVIII – da execução dos serviços de diversão, lazer, entretenimento e
congêneres, no caso dos serviços descritos nos subitens do item 12, exceto o
12.13, da lista anexa;
XIX – do Município onde está sendo executado o transporte, no caso dos
serviços descritos pelo subitem 16.01 da lista anexa;
XX – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na falta de
estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, no caso dos serviços descritos
pelo subitem 17.05 da lista anexa;
mínima precitada. A prática, no entanto, demonstrou não ter a referida emenda solucionado
integralmente os conflitos entre os municípios.
369
XXI – da feira, exposição, congresso ou congênere a que se referir o
planejamento, organização e administração, no caso dos serviços descritos
pelo subitem 17.10 da lista anexa;
XXII – do porto, aeroporto, ferroporto, terminal rodoviário, ferroviário ou
metroviário, no caso dos serviços descritos pelo item 20 da lista anexa.
§ 1º No caso dos serviços a que se refere o subitem 3.04 da lista anexa,
considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município
em cujo território haja extensão de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e
condutos de qualquer natureza, objetos de locação, sublocação,
arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou
não.
§ 2º No caso dos serviços a que se refere o subitem 22.01 da lista anexa,
considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município
em cujo território haja extensão de rodovia explorada.
§ 3º Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no local do
estabelecimento prestador nos serviços executados em águas marítimas,
excetuados os serviços descritos no subitem 20.01.
Verifica-se que o artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003 é semelhante à
norma válida para o IVA – Imposto sobre o Valor Agregado – nos países da União
Européia, veiculada pelo artigo 9º da “6ª Diretiva”, que prevê um critério espacial como
regra geral – “lugar onde o prestador dos mesmos tenha a sede da atividade econômica
ou um estabelecimento estável a partir do qual os serviços são prestados” –, outro
como regra supletiva – “na falta de sede ou de estabelecimento estável, o lugar do seu
domicílio ou da sua residência habitual” –, mas estabelece várias exceções que
consideram como critério espacial o local efetivo onde o serviço é prestado. 956
A nova legislação veicula norma onde existem três possibilidades distintas
quanto ao critério espacial. Em primeiro lugar, como regra geral, o critério espacial será
o local onde está situado o estabelecimento prestador. Em segundo, na falta de
estabelecimento prestador, o critério espacial, como regra supletiva, será o local do
domicílio do prestador, ou seja, o imposto municipal poderá ser exigido pelo
município no qual o contribuinte possua seu domicílio tributário, cuja definição segue
as regras gerais veiculadas pelo artigo 127 do Código Tributário Nacional. 957 É
inequívoca a adoção, tanto na regra geral, como na supletiva, do princípio da origem,
956
957
DERZI, Mizabel de Abreu Machado. O aspecto espacial..., op. cit., p. 62.
“Artigo 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma
da legislação aplicável, considera-se como tal: I - quanto às pessoas naturais, a sua residência
habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade; II - quanto às
pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos
atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento; III - quanto às pessoas
jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade tributante. § 1º
Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerarse-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da
ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação. § 2º A autoridade administrativa pode
recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do
tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior.”
370
tido por alguns como economicamente mais adaptável aos mercados integrados, como é
o caso do mercado interno brasileiro.958
A regra geral e a regra supletiva, portanto, são as mesmas antes existentes no
artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, mas com a diferença da criação de um extenso rol de
exceções, à semelhança do que dispõe a pré-citada “6ª Diretiva”, o que constitui a
terceira possibilidade em relação ao critério espacial. Assim, da mesma forma como foi
sustentado em relação ao Decreto-lei n° 406/68, o caput do artigo 3º da Lei
Complementar n° 116/2003 mantém os mesmos vícios de inconstitucionalidade da regra
anterior, já que estabelecimento prestador e domicílio do prestador não coincidem,
necessariamente, com o local onde os serviços são concretizados. Ressalta-se, contudo,
uma sensível evolução quanto aos serviços arrolados que consideram a incidência do
ISS no local onde se dá a efetiva prestação dos serviços.
O artigo 4º da mesma lei, por sua vez, define como estabelecimento prestador
“[...] o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo
permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo
irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de
atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que
venham a ser utilizadas”. Verifica-se a existência de dois requisitos cumulativos para
que o estabelecimento seja considerado prestador e, com isso, tornar-se apto como local
indicativo do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, pois se trata de uma
conjunção, operação lógica que articula dois enunciados simples mediante a utilização
do conectivo “e”, resultando em um enunciado composto.
Com efeito, o enunciado composto somente será verdadeiro caso os enunciados
simples que o constituem também o sejam. Ou seja, o estabelecimento, para ser
prestador, deve ser (a) “[...] o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de
prestar serviços, de modo permanente ou temporário”; e simultaneamente, (b) “[...]
que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizálo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório
de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas”.
Em uma dada situação fática, caso não haja subsunção conjunta das condições
previstas em “a” e “b”, não incide a regra jurídica que considera o local como
estabelecimento prestador. Dessume-se que o critério adotado pelo artigo 4º da Lei
958
DERZI, Misabel de Abreu Machado. O aspecto espacial..., op. cit., p.65.
371
Complementar n° 116/2003, ao exigir o cumprimento da condição material da unidade
econômica, acaba por não se harmonizar com o encampado pela jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça, pois, nessa corte, o local da prestação identifica-se com
aquele onde se dá a execução da obrigação de fazer. A amplitude semântica da
expressão “unidade econômica ou profissional” abrangerá a grande maioria dos
estabelecimentos que, de alguma forma, estejam vinculados à atividade desenvolvida
pelo prestador de serviço.
Dentre os autores que se debruçaram sobre a definição de estabelecimento
prestador, constante do artigo 4º da Lei Complementar n° 116/2003, BETINA
TREIGER GRUPENMACHER entende que a definição de institutos não é tarefa do
legislador, mas da doutrina. Diante disso, e considerando a autorização do artigo 106, I,
do Código Tributário Nacional, o dispositivo em comento seria meramente
interpretativo.959 O raciocínio dessa autora parece restringir-se apenas à definição, pela
lei tributária, do estabelecimento prestador, e não ao conceito de estabelecimento
empresarial, dado pelo artigo 1.142 do Código Civil, pelo qual se considera “[...]
estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por
empresário, ou por sociedade empresária”. Com a devida vênia, entendemos que a
definição de “estabelecimento prestador” constitui, na verdade, um exercício da
faculdade do legislador tributário, fundamentada na exegese conjunta dos artigos 109 e
110 do Código Tributário Nacional.
Nas eventuais e futuras decisões sobre o tema, já à luz da Lei Complementar nº
116/2003, caso o Superior Tribunal de Justiça entenda por manter o atual entendimento
aplicável ao artigo 12, “a’, do Decreto-lei nº 406/68, deverá desconsiderar a exigência
de unidade econômica ou profissional para definir quem seja o sujeito ativo,
observando, apenas, o local onde é efetivamente prestado o serviço permanente ou
temporário, o que é altamente criticável, pois para tanto será necessário, da mesma
forma como já vinha fazendo nas decisões sobre o Decreto-lei n° 406/68, negar vigência
e aplicação ao dispositivo, sem declarar-lhe a inconstitucionalidade, o que se afigura
incompatível com as suas funções, conforme consta do artigo 105 da Constituição
Federal. A única forma de decidir contrariamente à Lei Complementar nº 116/2003 é
através de declaração de inconstitucionalidade, função que cabe precipuamente ao
959
“Artigo 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I - em qualquer caso, quando seja expressamente
interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados”.
GRUPENMACHER, Betina Treiger. ISS – Local..., op. cit., p. 85.
372
Supremo Tribunal Federal. Caso contrário, o Superior Tribunal de Justiça deverá rever
radicalmente seu posicionamento.
Com relação à regra geral, MISABEL DERZI defende que, por ser a hipótese
de incidência do ISS prestar serviços – e não adquirir serviços – o contribuinte será o
prestador de serviços, do que conclui não agredir a natureza do imposto municipal o
fato de o legislador escolher como critério espacial da hipótese o local em que se situa o
estabelecimento prestador.960 Com a devida vênia, a premissa utilizada, que é
verdadeira, não permite, contudo, chegar a essa conclusão. Ora, se é verdade que o
critério material da hipótese de incidência do ISS é prestar serviços, então a conclusão é
a de que o critério espacial, que com aquele está umbilicalmente vinculado, somente
pode ser o local onde esse serviço é prestado, pois a Constituição em nenhum momento,
expressa ou implicitamente, dispôs em sentido diverso.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e MARILENE TALARICO
MARTINS RODRIGUES também defendem a legitimidade da definição do critério
espacial da hipótese de incidência do ISS como sendo o local do estabelecimento
prestador, justificando, para tanto, que seria inviável conceder ao legislador municipal a
liberdade de legislar sobre o tema, de acordo com suas conveniências e interesses,
circunstância que seria agravada pela existência de mais de 5.500 municípios no Brasil.
Diante disso, louvam a regra anterior veiculada pelo artigo 12 do Decreto-lei n°
406/68.961
Quanto ao artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003, defendem, os citados
autores, que, pela nova regra, restarão poucas hipóteses em que o ISS será devido no
local do estabelecimento prestador dos serviços, pois embora essa tenha sido a regra
geral, muitas são as exceções, constantes nos incisos I ao XXII do referido artigo, onde
o critério espacial ou é o local onde os serviços são efetivamente prestados (maioria), ou
onde está estabelecido o tomador dos serviços, o que seria agravado ainda pela técnica
de retenção na fonte prevista no artigo 6º.962
Entende-se que, de fato, o número elevado de municípios exige uma lei de
caráter nacional que harmonize as legislações municipais sobre o ISS. Isso, contudo,
não autoriza o legislador complementar a estabelecer um critério espacial em ofensa ao
núcleo da regra-matriz do ISS, constitucionalmente estabelecido. Por essa razão é que se
960
O aspecto espacial..., op. cit., p. 77.
O ISS e a Lei Complementar n. 116/2003..., op. cit., p. 189.
962
Ibidem, p. 194.
961
373
defende que, quanto ao artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, somente a letra “b”, que
define o critério espacial do ISS em relação aos serviços de construção civil, harmonizase com a Constituição Federal, pois define corretamente que esse será o local onde se
efetuar a prestação.
A maior parte da doutrina que se debruçou sobre o artigo 12, “a”, do Decretolei n° 406/68, teve posicionamento no sentido de ser devido o ISS no município em que
está localizado o estabelecimento prestador, ainda que os serviços sejam prestados em
outro município. Como bem salienta AIRES BARRETO, essa posição é respeitável
porque, como se presume constitucional a lei, é necessário que o intérprete se esforce
por compatibilizá-la com a Constituição. No caso do artigo 3º da Lei Complementar n°
116/2003, tal esforço, em princípio, parece resultar infrutífero, porque: ou a) considerase como local o do estabelecimento prestador – ou, na sua falta, o do domicílio do
prestador – o que viola-se o Princípio da Territorialidade das leis tributárias; ou b)
afirma-se que, não obstante a regra dispor que o local é do estabelecimento prestador,
deve-se entender como sendo o local da efetiva prestação do serviço. Nessa hipótese,
porém, ocorre uma interpretação em desarmonia com o texto normativo.963
Entretanto, da mesma forma como se defendeu, no item anterior, a chamada
“interpretação conforme a Constituição” é o único método hermenêutico válido para
compatibilizar a norma veiculada pelos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n°
116/2003 com o Texto Maior. Com efeito, dentre as várias interpretações possíveis
acerca desses dispositivos, deve prevalecer aquela que manifesta compatibilidade com o
contexto constitucional, o que exige concluir que a única interpretação possível será
aquela que prestigie o critério espacial da hipótese de incidência do ISS, conforme a
matriz constitucional desse imposto.
O critério espacial da hipótese de incidência do ISS, portanto, não é outro local
senão aquele onde foram os serviços prestados de forma definitiva. Para tanto, interessa
onde o prestador consumou a atividade-fim, sendo irrelevante que as atividades-meio
tenham ocorrido em outros municípios, ainda que necessárias à conclusão do serviço. A
interpretação conforme a Constituição permite solucionar, de forma válida, os
problemas da interpretação literal dos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n° 116/2003,
para concluir que o contexto constitucional exige redução semântica para a expressão
“estabelecimento prestador”, a fim de que ela corresponda única e exclusivamente ao
963
ISS na Constituição..., op. cit., p. 318.
374
local em que os serviços são efetivamente prestados, consumados, conforme defende,
com acerto, BETINA TREIGER GRUPENMACHER.964
Conforme se verifica do artigo 3º acima transcrito, os serviços excepcionados
estão listados em rol exaustivo (numerus clausus), nos seus incisos I a XXII965, assim
como nos parágrafos 1º ao 3º do mesmo artigo, para os quais a Lei Complementar n°
116/2003, fazendo remissão a itens da lista anexa à própria lei, prevê critérios espaciais
específicos para cada uma das hipóteses ali mencionadas, o que exige, para uma correta
interpretação, a análise individual de cada espécie de serviço. Em sua grande maioria,
contudo, o critério espacial é o local da efetiva prestação dos serviços, com apenas
duas hipóteses em que o serviço se considera prestado no local do estabelecimento do
tomador da mão-de-obra ou, na sua falta, no local do seu domicílio. O inciso I, que trata
do critério espacial do serviço prestado ou com prestação iniciada no exterior, será
analisado após os demais.
Nos serviços previstos nos incisos II966, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XII, XIII,
XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXII, por serem necessariamente prestados
fora do estabelecimento prestador, o legislador entendeu por bem considerar o serviço
prestado no local em que se deu a respectiva prestação, como é o caso, por exemplo, das
obras de construção civil, serviços de demolição, limpeza, coleta de lixo etc. No caso do
fornecimento de mão-de-obra, previsto no inciso XX, a lei considera o serviço prestado
no estabelecimento do respectivo tomador, ou, na sua falta, no local de seu domicílio.
A justificativa, quer parecer, deve-se ao fato de, que nesses casos, o trabalhador
terceirizado presta serviço no local do estabelecimento do tomador. No entanto, tais
razões são inconsistentes, pois o local da prestação de serviços da empresa –
fornecimento da mão-de-obra – não se confunde com o local onde os trabalhadores
desenvolverão suas atividades. O mesmo raciocínio aplica-se ao inciso XXI, que trata
do serviço de “planejamento, organização e administração de feiras, exposições,
964
ISS – Local..., op. cit., p. 84-85.
Os incisos X e XI do artigo 3º da Lei Complementar n. 116/2003, assim como os itens equivalentes
7.14 (saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário e congêneres) e
7.15 (tratamento e purificação de água) da lista anexa, foram vetados pelo Presidente da República
quando submetidos à sua sanção. Conforme as razões do veto, a incidência do ISS sobre tais serviços
não atende ao interesse público.
966
O serviços de que trata o inciso II são os descritos no subitem 3.05 da lista anexa à Lei Complementar
nº 116/2003: “Cessão de andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas de uso temporário”. Por se
caracterizarem como atividades que se exercem mediante a cessão de direitos, configuram execução
de obrigação “de dar”, e não “de fazer”, pelo que não sofrem a incidência do ISS.
965
375
congressos e congêneres”, listado no subitem 17.10, pois nem sempre o local da feira,
exposição, congresso, será o mesmo local onde se dá a prestação desses serviços.967
O § 2º, do artigo 3º, da Lei Complementar n° 116/2003, à semelhança do que já
previa o § 4º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, incluído pela Lei Complementar n°
100/99, estabelece que, nas concessões ao setor privado, do serviço de exploração de
rodovias mediante a cobrança de pedágio dos usuários, o critério espacial do ISS, de
forma equânime, é o território de cada município onde haja extensão de rodovia
explorada.
Os serviços executados em águas marítimas, conforme prevê o § 3º do artigo
3º, consideram-se ocorridos no local do estabelecimento prestador, excetuados os
serviços descritos no subitem 20.01, os quais serão devidos no local onde os serviços
foram prestados.968 No entanto, quando serviços forem prestados em área marítima, não
haverá vinculação, nesse local, com nenhum município, não sendo, portanto, exigível
nenhum imposto em tais hipóteses. Mas, em razão da grande abrangência das exceções
previstas no subitem 20.01, pouco ou quase nada restará para a regra.969
Por outro lado, a Lei Complementar n° 116/2003, ainda que estabeleça ser o
prestador do serviço o contribuinte (artigo 5º), em seu artigo 6º, facultou aos municípios
a instituição da sistemática da retenção do ISS na fonte pelos tomadores dos serviços:
Artigo 6º Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir
de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa,
vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a
responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo
do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se
refere à multa e aos acréscimos legais.
§ 1o Os responsáveis a que se refere este artigo estão obrigados ao
recolhimento integral do imposto devido, multa e acréscimos legais,
independentemente de ter sido efetuada sua retenção na fonte.
§ 2o Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, são
responsáveis:
I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou
cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País;
II – a pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária
dos serviços descritos nos subitens 3.05, 7.02, 7.04, 7.05, 7.09, 7.10, 7.12,
7.14, 7.15, 7.16, 7.17, 7.19, 11.02, 17.05 e 17.10 da lista anexa.
967
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 319.
“Serviços portuários, ferroportuários, utilização de porto, movimentação de passageiros, reboque de
embarcações, rebocador escoteiro, atracação, desatracação, serviços de praticagem, capatazia,
armazenagem de qualquer natureza, serviços acessórios, movimentação de mercadorias, serviços de
apoio marítimo, de movimentação ao largo, serviços de armadores, estiva, conferência, logística e
congêneres”.
969
BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 319.
968
376
Sem prejuízo da faculdade atribuída aos municípios de instituir a retenção na
fonte a cargo do tomador, o § 2º do mesmo artigo 6º, como norma destinada aos
legislativos municipais com o modal deôntico “obrigatório”, estende imperativamente a
sujeição passiva pelo pagamento do tributo, também na modalidade da retenção na
fonte, ao tomador ou intermediário dos serviços importados (inciso I) e à pessoa
jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária de vários serviços
(inciso II), cuja maioria coincide com os previstos nos incisos constantes do artigo 3º.
No entanto, dentre os serviços constantes nos incisos do artigo 3º, e que, portanto, têm
como critério espacial o local da efetiva prestação dos serviços, não estão sujeitos à
retenção obrigatória na fonte os seguintes serviços: “decoração e jardinagem, inclusive
corte e poda de árvores” (inciso VIII e item 7.11 da lista); “limpeza e dragagem de
rios, portos, canais, baías, lagos, lagoas, represas, açudes e congêneres” (inciso XIV e
item 7.18); “guarda e estacionamento de veículos terrestres automotores, de aeronaves
e de embarcações” (inciso XV e item 11.01); “armazenamento, depósito, carga,
descarga, arrumação e guarda de bens de qualquer espécie” (inciso XVII e item
11.04); “serviços de diversões, lazer, entretenimento e congêneres” (inciso XVIII e
item 12, exceto o item 12.13); “serviços de transporte de natureza municipal” (inciso
XIX e item 16.01) e “serviços portuários, aeroportuários, ferroportuários, de terminais
rodoviários, ferroviários e metroviários” (inciso XXII e item 20). O serviço de
“acompanhamento e fiscalização da execução de obras de engenharia, arquitetura e
urbanismo” (item 7.19 da lista), não consta dentre as exceções do artigo 3º, mas está
sujeito obrigatoriamente à retenção na fonte pelo seu respectivo tomador.
Os municípios, em cujo respectivo território sejam prestados os serviços para
os quais a Lei Complementar nº 116/2003 considera como critério espacial o local da
efetiva prestação, terão dificuldades maiores quando houver obrigatoriedade de retenção
pelo tomador e esse for pessoa física. É que nesses casos as leis municipais não obrigam
à manutenção de escrituração contábil ou fiscal ou à inscrição em cadastro municipal.
Caso não se adote uma solução eficaz, de nada adiantará nomear o tomador pessoa
física como substituto tributário. Como resultado, um prestador de serviço não estará
obrigado a recolher o ISS ao município onde está estabelecido, assim como poderá
facilmente fugir à tributação no município onde o serviço seja prestado.
É certo que a Lei Complementar nº 116/2003 trouxe avanços, em especial pelo
vasto rol de exceções em que o critério espacial coincide com o implícito no núcleo da
regra-matriz constitucional, tornando reduzida, na prática, a regra geral que considera o
377
estabelecimento prestador como o local da prestação dos serviços. Noutro giro, a
sistemática da retenção na fonte certamente será objeto de abuso por algumas
municipalidades, no sentido de atribuir-se a todo e qualquer tomador, estabelecido em
seu território, a responsabilidade pela retenção do ISS, ainda que se trate de serviço cujo
critério espacial é o local onde está o estabelecimento prestador. Nesses casos, a
instituição do tomador como substituto tributário será inconstitucional, pois tais sujeitos
passivos não estarão vinculados ao mesmo critério espacial a que estão submetidos os
contribuintes.
Essa exigência, que é ditada de forma implícita pela Constituição, está
expressamente contida no artigo 128 do Código Tributário Nacional, norma geral que
permite à lei atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a
terceira pessoa, mas desde que “[...] vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação
[...]”. Ora, se o critério espacial é da hipótese de incidência, então a atribuição de
responsabilidade tributária, no caso do ISS, para os serviços prestados fora do município
onde está o estabelecimento prestador, está sujeita a essa regra.
Com efeito, as únicas hipóteses válidas de atribuição de responsabilidade ao
tomador, por meio da retenção na fonte, serão: (a) quando o tomador estiver situado no
mesmo município em que se verifique o critério espacial para aquele serviço específico;
e (b) quando, obviamente, o serviço seja prestado em município onde estejam situados
tomador e prestador. Com exceção desses dois casos, a figura do substituto tributário
será violadora, tanto da Constituição, como do Código Tributário Nacional. Certamente
haverá muitos casos de bitributação, fruto de uma indevida interpretação da nova
norma, o que forçará os prejudicados a ingressarem em juízo para que o Poder
Judiciário solucione a questão.
Em relação aos serviços provenientes do exterior do País ou cuja prestação
tenha iniciado no exterior do País, o inciso I do artigo 3º da Lei Complementar n°
116/2003, prevê que o local da prestação será o “[...] do estabelecimento do tomador ou
intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado
[...]”. Complementando a regra, o artigo 6º, § 2º, I, da mesma lei, elege o tomador como
sujeito passivo, na condição de responsável, ou seja, ao tomador residente foi atribuída a
posição de substituto tributário. Como conseqüência, o prestador, residente ou nãoresidente, figura como substituído tributário, não participando, portanto, da relação
jurídica tributária.
378
No entanto, a incidência do ISS sobre os serviços prestados ou com início de
prestação no exterior têm suscitado forte polêmica. De um lado, parte da doutrina
entende que o ISS sobre tais serviços é constitucional tendo em vista que a própria
Constituição, no artigo 156, § 3º, II, teria encampado o princípio do destino, ao remeter
à lei complementar a faculdade de excluir da incidência do ISS as exportações de
serviços para o exterior. Nesse sentido é o entendimento de HELENO TAVEIRA
TÔRRES, autor que destaca essa como uma das principais inovações jurídicas trazidas
pela nova lei complementar. Com base nisso, defende que o dispositivo não é
inconstitucional, tendo como único agravante o surgimento de mais um imposto a
onerar os serviços prestados por não-residentes, além do Imposto sobre a Renda, PIS,
COFINS e a CIDE-tecnologia.970
O autor adverte que os serviços prestados por não-residentes podem ser puros
ou vir acompanhados de transferência de tecnologia, o que exige, em cada caso,
tributação compatível com a natureza do serviço e com a espécie de contrato de
propriedade industrial, conforme prevê a legislação e os tratados internacionais
aplicáveis. Quer o autor consignar que a precisa definição da natureza dos contratos de
serviços e da transferência de tecnologia é fundamental para identificar quando o fato
tributário do ISS estará consumado.971 Acrescenta que não basta, tão-somente, a
circunstância de o tomador estar estabelecido ou domiciliado no território do município,
para que este tenha competência em relação a essa modalidade de incidência do ISS,
elegendo aquele como sujeito passivo, na condição de responsável tributário. Diante do
que prevê o artigo 5º da Lei Complementar n° 116/2003 – “Contribuinte é o prestador
do serviço” – o sujeito passivo natural do ISS é o sujeito que realiza o ato pertinente ao
fazer que se oferece à incidência material. A matriz constitucional do ISS somente
autorizaria o exercício de competência pelo município caso o serviço prestado, por
residente ou não-residente, possa ter a respectiva materialidade vinculada ao seu
território.972
Assim, quando o serviço tivesse sua prestação iniciada no exterior, a
incidência do ISS estaria condicionada à sua consumação no território da pessoa política
970
Prestações de serviços provenientes do exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior. In:
TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n.
116/2003 e na Constituição, p. 281.
971
Ibidem, p. 281-282.
972
Ibidem, p. 284.
379
tributante. O serviço prestado exclusivamente no exterior, ainda que por residentes, não
se subsumiria à hipótese de incidência do ISS. Conclui que:
o tomador de serviços (residente) somente pode ser definido como
responsável pelo débito do imposto (artigo 6º, § 2º, I), mas exclusivamente
quando, previamente, se tenha por aperfeiçoada a relação jurídica
obrigacional, entre Município do local do domicílio do tomador e o sujeito
não-residente, a partir do fato jurídico tributário consubstanciado num evento
qualificado na lista de serviços, concluído pelo efetivo contribuinte no
território nacional, ou melhor, no território do respectivo Município, mesmo
que se tenha iniciado no exterior.973
O posicionamento de MISABEL DERZI também é pela legitimidade da nova
exação, tendo o novo diploma aplicado o princípio do destino na importação de
serviços, a exemplo da 6ª Diretiva na União Européia, norma que prevê várias exceções,
em que a arrecadação do IVA cabe aos países onde o destinatário do serviço tenha a
sede de sua atividade econômica ou um estabelecimento estável. Lembra a autora que,
em recente consulta feita pela Comissão Européia às partes interessadas, aprovou-se a
meta de abandonar o princípio da origem como regra geral – local do estabelecimento
prestador – nas prestações de serviços envolvendo mais de um país, em favor do
princípio do destino – local onde ocorre o efetivo consumo do serviço – que, na maior
parte dos casos, coincide com o do estabelecimento tomador.
O princípio do destino, para a autora, seria característico dos mercados não
integrados, onde o usual é a desoneração das exportações e a incidência nas
importações. O principal argumento é que, nas relações internacionais, seria mais
coerente que o produto arrecadado com o imposto beneficie o país onde o serviço é
prestado e, portanto, consumido, por ser ele que lhe suporta o ônus.974 Afirma ainda que
a incidência do ISS nas importações não tem nenhum objetivo protecionista, mas visa
assegurar a isonomia e a eqüidade entre os mercados não completamente integrados,
assim como garantir que os produtos e serviços exportados cheguem ao país de destino
desonerados da carga tributária.975
Em sentido contrário, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO sublinha que
não há amparo constitucional para exigir o ISS relativamente a serviço proveniente do
exterior ou em que ele tenha sido iniciado no exterior. Como fundamento, defende o
autor que o ISS não está entre as hipóteses para as quais a Constituição prevê incidência
973
Ibidem, p. 284-285.
O aspecto espacial..., op. cit., p. 65-66.
975
Ibidem, op. cit., p. 68.
974
380
tributária sobre fatos, estados, negócios e situações ocorridas no exterior, ou delas
decorrentes, como é o caso do Imposto de Renda, ICMS e Imposto de Importação. 976 O
raciocínio do autor foi acatado ainda por BETINA TREIGER GRUPENMACHER,
porém somente no que tange aos serviços provenientes do exterior, ou seja, consumados
fora do país. Quanto aos que tenham sido iniciados no exterior, mas ultimados em
território nacional, o ISS será devido, para a autora, no município onde a prestação de
serviço se concretizou.977 Semelhante é o posicionamento de AIRES BARRETO, o qual
defende que somente a prestação de serviços integralmente proveniente do exterior se
afigura inconstitucional, pois se o ISS incide no local da prestação, a incidência é
impossível fora do território nacional. O mesmo não ocorreria, para o autor, no caso dos
serviços iniciados no exterior e aqui consumados.978
Para CLÉLIO CHIESA, o legislador complementar ampliou a incidência do
ISS para alcançar materialidade diversa daquela autorizada constitucionalmente.
Ressalta que a materialidade possível do ISS é “prestar serviços” e não “tomar
serviços”. Refuta a argumentação de que o evento submetido à tributação continua
sendo a prestação de serviços, e que apenas estaria ocorrendo uma modificação do
sujeito passivo. Com propriedade esclarece que, “[...] na substituição tributária, o
regime jurídico que rege o dever do substituto em relação à obrigação do substituído é
o desse e não o daquele” [sic]. A nova lei ignora o regime do prestador (substituído),
atribuindo ao tomador a obrigação de reter o ISS quando do pagamento ao prestador, o
que denunciaria que o evento tributado não é o ato de prestar serviços, mas o de tomar
serviços provenientes do exterior.979
A nova legislação, para o autor, teria indevidamente autorizado a instituição de
ISS sobre a importação de serviços, avançando os limites autorizados pela Constituição,
por três razões: primeiro, porque teria autorizado a tributar fato que não se perfaz
integralmente no território nacional. Segundo, porque a materialidade possível do ISS é
“prestar serviços” e não “importar serviços”, sob pena de ofensa ao princípio da
tipicidade. Terceiro, porque a importação de serviços é fato que se insere na
competência residual da União, nos termos do artigo 154, I, da Constituição.980
976
Inconstitucionalidades..., op. cit., p. 303-305.
ISS – Local..., op. cit., p. 75.
978
ISS na Constituição..., op. cit., p. 322.
979
Inconstitucionalidades da LC n. 116/2003. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre
serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 333-334.
980
Ibidem, p. 334.
977
381
A inconstitucionalidade da incidência do ISS na importação de serviços
afigura-se mais flagrante em razão da necessidade de que o regime jurídico a ser
aplicado em casos de substituição tributária obrigatoriamente seja o do substituído, e
não o regime do substituto. Isso é lógico, quando lembramos que o substituído, por estar
na condição de devedor de tributo alheio, deverá pagar exatamente o que deveria o
substituído caso a relação de substituição não houvesse sido adotada pela lei, ou seja, o
tributo é calculado nas condições pessoais do substituído. Assim, por exemplo, se o
substituído tem direitos como imunidade, isenção, desconto, remissão, anistia etc, o
substituto exercitará tais direitos na mesma medida. 981 SIMONE RODRIGUES
DUARTE COSTA também defende, com procedência, que a incidência do ISS na
importação de serviços viola o Princípio da Territorialidade, pois o fato tributário, nessa
hipótese, ocorre integralmente no exterior.982
A Lei Complementar n° 116/2003 também disciplinou, em relação ao ISS, o
tema da exportação de serviços. Investigando o capítulo destinado ao Sistema
Tributário Nacional, encontramos no inciso III do artigo 151 da Constituição, um
dispositivo que veicula regra pela qual “É vedado à União [...] instituir isenções de
tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”, ou seja, a
União Federal está impedida de instituir as chamadas isenções heterônomas. Mais
adiante, o inciso II, § 3º, do artigo 156 da Lei Maior, na redação dada pela Emenda
Constitucional n° 37, de 12 jun. 2002, dispõe que, em relação ao ISS, “cabe à lei
complementar excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior”.
Os dispositivos parecem inconciliáveis, tendo em vista o teor literal de um
estar em sentido diametralmente oposto ao do outro. Enquanto o primeiro estabelece
uma vedação expressa, tendo como destinatário a União Federal, o segundo outorga
competência ao legislador complementar para desonerar as exportações de serviços para
o exterior do ISS. A razão para a antinomia estaria em que ambas as regras teriam como
destinatário o Congresso Nacional, órgão legislativo da União Federal, sendo que na
primeira hipótese a vedação é em relação à lei ordinária, e na segunda, a competência
facultativa deve ser exercida por lei complementar.
Como já se demonstrou, quando da análise do princípio federativo, na
federação brasileira convivem de forma harmônica a ordem jurídica global, inerente
981
ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino. Substituição e Responsabilidade Tributária,
Revista de Direito Tributário, n. 49, p. 75.
982
ISS..., op. cit., p. 146-147.
382
ao Estado Brasileiro, ou, de outra forma, à República Federativa do Brasil, e as ordens
jurídicas parciais. As ordens jurídicas parciais subdividem-se em: uma ordem
jurídica parcial central, resultante do vínculo de todas as ordens parciais, razão pela
qual recebeu a denominação de União Federal – artigo 18 da Constituição Federal –,
ordens jurídicas parciais periféricas, denominadas de estados-membros e ordens
jurídicas parciais locais, representadas pelos municípios.983 O Estado brasileiro é
pessoa de direito público internacional, resultado da soma das ordens jurídicas parciais,
enquanto que a União é a pessoa de direito público interno, que se constitui do vínculo
entre as ordens jurídicas parciais. Esse raciocínio, originado em KELSEN, é defendido,
entre outros, por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES 984, ROQUE ANTONIO
CARRAZZA985 e SACHA CALMON NAVARRO COELHO986.
HELENO TAVEIRA TÔRRES também se posiciona no mesmo sentido,
esclarecendo que a União, na qualidade de pessoa de direito público internacional, não
sofre os limites do princípio federativo, tendo em vista que, nessa condição, está
exercendo, com exclusividade, a soberania nacional, devendo, no entanto, obediência
aos princípios constitucionais que informam sua atuação, como os que disciplinam os
direitos humanos e as relações internacionais, por exemplo.987 Na verdade, é mais
apropriado dizer que a pessoa de direito público externo é o Estado brasileiro, o qual é
representado pela União Federal, posto que ela, em si mesma, é apenas a pessoa
política interna, que coexiste com os demais entes federados em regime de igualdade.
Dessarte, a União desempenha, no ordenamento jurídico, duas relevantes
funções. Uma, quando atua em nome próprio – é a União propriamente dita – e outra
quando representa a República Federativa do Brasil, “emprestando” a sua estrutura
político-administrativa. O Congresso Nacional, portanto, edita tanto leis do Estado
brasileiro como da própria União. No primeiro caso, a norma veiculada é de âmbito
nacional, e no segundo, apenas federal. Conforme examinamos, as leis nacionais não
se confundem com as leis complementares, assim como as leis federais não são
necessariamente leis ordinárias.988
983
Vide supra, item 2.1.1.
Lei Complementar..., op. cit., p. 64-66.
985
Curso..., op. cit., p. 126.
986
Curso..., op. cit., p. 96.
987
Prestações de serviços..., op. cit., p. 296.
988
Vide supra, item 2.2.
984
383
Apesar de as leis nacionais e federais possuírem o mesmo âmbito territorial de
validade, seus destinatários não são os mesmos. As leis nacionais destinam-se a todas as
pessoas políticas, inclusive à própria União, caracterizando-se, regra geral, como
normas de estrutura, ou seja, “normas sobre normas”, porque destinadas aos
legisladores da União, estados, Distrito Federal e municípios. As leis federais, que em
geral são normas de conduta, vinculam somente a União Federal, assim como seus
jurisdicionados. No âmbito tributário, os compromissos assumidos, no plano
internacional, de forma soberana, pela União, na qualidade de representante do Estado
brasileiro, suplantam as regras que repartem a competência tributária entre os entes
políticos, desde que tal ocorra tendo em vista a proteção de interesses de cunho
nacional, prestigiados constitucionalmente. Não há, nesses casos, conflito de
competência, por força da soberania que pressupõe a edição dessas normas. O artigo 98
do Código Tributário Nacional, de forma didática, prevê que “Os tratados e as
convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e
serão observados pela que lhes sobrevenha”. É óbvio que não há aqui nenhuma
inovação jurídica trazida pelo legislador infraconstitucional, pois, como se demonstrou
acima, a supremacia do Estado brasileiro decorre diretamente da Lei Maior.
Conclui-se, portanto, que não há incompatibilidade entre a regra do artigo 151,
III, da Constituição Federal, com o dispositivo previsto no artigo 156, § 3º, II, também
da Constituição, pois as pessoas jurídicas a que se destinam tais normas não são as
mesmas. A vedação prevista na primeira regra tem a União Federal como destinatária,
pessoa de direito público interno, e a autorização constante da segunda regra dirige-se
ao Estado brasileiro.
Quem ratifica nossas afirmações é CLÉLIO CHIESA, o qual acrescenta, com
proveito, que a faculdade prevista no artigo 156, § 3º, II, da Constituição, é uma
competência especial atribuída ao Estado brasileiro para conceder isenções, que
objetivam proteger interesses nacionais relevantes, interesses que transcendem os das
ordens jurídicas parciais, sem que disso possa resultar qualquer ofensa aos princípios do
Federalismo e da Autonomia Municipal. Adverte o autor, no entanto, que, somente em
casos excepcionais, está o Estado brasileiro autorizado a editar regras destinadas a
proteger os interesses da ordem jurídica total, como se dá na hipótese de conflito entre
os interesses nacionais e os interesses das ordens jurídicas parciais. Em verdade, nessas
384
circunstâncias, mais do que um poder, o Estado brasileiro tem o dever de editar as
regras necessárias à preservação do ordenamento jurídico.989
A competência, atribuída ao Estado brasileiro, para instituir desonerações e
normas gerais tributárias configura, lato sensu, uma exceção ao sistema de repartição de
competências tributárias, e como tal, deve ser interpretada restritivamente, somente
sendo legítimo o exercício dessa prerrogativa caso seja absolutamente necessário para
proteger interesses nacionais relevantes, e desde que o exercício dessa competência
respeite as demais diretrizes constitucionais.990
HELENO TAVEIRA TÔRRES, em relação ao ISS, defende que a
interpretação que melhor se coaduna com a realidade normativa e constitucional
brasileira é no sentido de que qualquer que seja a espécie de benefício fiscal – como
isenção ou deduções, por exemplo – concedido por meio de convenção internacional,
“[...] torna-se, tal norma, cogente e plenamente vinculante para o Município quanto ao
reconhecimento da isenção, conforme pactuado”.991 Ou seja, esse autor parece defender
que todo e qualquer benefício fiscal é válido, desde que concedido pelo Estado
brasileiro.
Em sentido contrário, CLÉLIO CHIESA, para quem a competência para
desonerar não se estende a toda e qualquer prestação de serviço, mas somente àquelas
que se destinem ao exterior, em razão de que tal técnica objetiva utilizar a tributação
como controle das importações e exportações. A finalidade é, com efeito,
eminentemente extrafiscal. O controle da tributação no comércio exterior, visando
direcionar condutas, ou seja, variar a carga tributária para interferir nas exportações de
serviços, não pode, diz o autor, ser transferida aos municípios, mas ao Estado brasileiro,
posto os interesses envolvidos, de caráter nacional, suplantarem os interesses regionais.
Esse parece ser o raciocínio mais coerente com o contexto constitucional, pois privilegia
uma interpretação nitidamente sistemática da questão.992
Em nível infraconstitucional, o artigo 156, § 3º, II, da Constituição foi
disciplinado pelo artigo 2º, I, da Lei Complementar n° 116/2003, o qual prevê que “O
imposto não incide sobre [...] as exportações de serviços para o exterior do País” e o
parágrafo único do mesmo artigo 2º estabelece que “Não se enquadram no disposto no
989
O imposto sobre serviços de qualquer natureza e aspectos relevantes da Lei Complementar nº 116/03.
In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 60-61.
990
Ibidem, p. 62-63.
991
Prestações de serviços..., op. cit., p. 297.
992
O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 64.
385
inciso I os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que
o pagamento seja feito por residente no exterior”. Da análise do dispositivo percebe-se
facilmente que não houve nenhum condicionamento quanto à necessidade de assegurar
valores nacionais por meio desse benefício fiscal.
Entendemos que o Congresso Nacional somente poderia conceder isenções de
ISS, nos serviços prestados para o exterior, nas hipóteses em que se caracterizasse a
existência de relevante interesse nacional em incentivar o aumento das exportações, e
desde que tal desoneração não viole a Autonomia Municipal, conforme bem defende
CLÉLIO CHIESA, que, com base em tais relevantes argumentos, conclui não ter o
artigo 2º, I, da Lei Complementar n° 116/2003, respeitado esses parâmetros, pois toda e
qualquer prestação de serviço destinada ao exterior foi contemplada com a isenção. 993
Por outro lado, registre-se que a não-incidência veiculada pela Lei
Complementar 116/2003, é exemplo inequívoco de isenção, e não imunidade, uma vez
que a não-incidência de ISS para os serviços exportados para o exterior não está prevista
na Constituição. A Lei Maior somente estabeleceu o aspecto formal a ser observado
pela lei que efetivamente viesse a instituir a isenção. A norma constitucional não cria
nenhuma desoneração tributária porque é regra constitucional de eficácia limitada. A
opção em desonerar tais serviços somente se efetivou pela pessoa do legislador
complementar. Enfim, a não-incidência do ISS em comento constitui-se em isenção,
lastreada em dispositivo constitucional de eficácia limitada.
Com base nesses argumentos, entendemos ser constitucional a restrição
veiculada no parágrafo único do artigo 2º, não tendo a Lei Complementar 116/2003,
nessa parte, extrapolado sua função de regulamentar a Constituição, pela razão de que,
não instituindo a desoneração, a Constituição remeteu ao legislador complementar a
competência para decidir pela estrutura da norma isentiva. Com efeito, a circunstância
de a lei exigir que o resultado do serviço se concretize no exterior não padece de
inconstitucionalidade, pois esse parece ser o entendimento que melhor se coaduna com
o Princípio da Isonomia, pois confere igual tratamento para todos os prestadores cujos
serviços sejam concretizados e utilizados em território nacional.
Ao contrário, a isonomia seria violada se a não-incidência permanecesse no
caso de serviços cuja vinculação com o exterior se restringisse, tão-somente, ao
pagamento feito por residente no exterior. Por outro lado, a lei complementar é coerente
993
Ibidem, p. 64-65.
386
com a finalidade constitucional, pela qual só deve existir desoneração de ISS na efetiva
exportação de serviços, tendo em vista as benesses maiores para a economia nacional. 994
5.7 A REGRA DO DOMICÍLIO DO PRESTADOR
Nos casos onde o serviço é prestado através de um estabelecimento prestador,
não há dificuldades em reconhecer o município competente para tributar a respectiva
prestação, pois, nesses casos, mediante a utilização da interpretação conforme a
Constituição, incidirá a regra geral prevista no artigo 3º da Lei Complementar n°
116/2003, o que resultará na devida observância do núcleo constitucional da regramatriz de incidência do ISS e, em conseqüência, de seu critério espacial.
Entretanto, a situação de maior complexidade ocorre em casos nos quais,
embora existente um estabelecimento potencialmente prestador – ou seja, o
estabelecimento é do prestador, e não prestador – o mesmo não se constitui em
instrumento para a prestação de certos serviços, os quais seriam consumados
independentemente de sua existência e, cumulativamente, em município diverso do
local onde está o mencionado estabelecimento, ou ainda o domicílio do prestador. O
mesmo acontece nas hipóteses em que não há nenhum estabelecimento do prestador,
mas apenas o seu domicílio tributário. É que nada impede que um serviço seja prestado
sem que seja necessário um estabelecimento como meio para tanto. Nessa hipótese
incluir-se-iam não só os serviços exclusivamente intelectuais, como também aqueles
em que o concurso de bens materiais – insumos ou equipamentos – é irrelevante ou
secundário.995
No problema proposto, a regra subsidiária para a falta de estabelecimento,
tanto na legislação anterior como na atual, desloca a competência para o município onde
está localizado o domicílio do prestador, sendo irrelevante o fato de o serviço ter sido
prestado em município diverso. Diante do que temos defendido até aqui, a única
conclusão válida parece ser a de que esse dispositivo está em flagrante contradição com
a matriz constitucional do ISS, de onde se extrai que o critério espacial da hipótese de
994
MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. As exportações de serviços e o ISSQN. Revista Tributária e
de Finanças Públicas, n. 56, p. 137-139.
995
JUSTEN FILHO, Marçal. ISS no tempo..., op. cit., p. 67.
387
incidência, por estar vinculado ao critério temporal, só poderia indicar o local em que se
consumou a prestação do serviço.
Como exemplo, pode-se citar um serviço prestado por um advogado
estabelecido em Curitiba-PR, consubstanciado na obrigação de protocolar uma petição
no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF, para um cliente domiciliado ou
estabelecido em São Paulo-SP. Como se vê, o exemplo envolve três municípios
diferentes. A definição do local onde deverá ser recolhido o ISS, nesse caso, terá como
solução a percepção das diferenças entre as atividades-meio e a atividade-fim. Com
efeito, é comum a confusão, pelos leigos, do exercício de atividades-meio com a efetiva
prestação de serviço (atividade-fim), juridicamente considerada, devido à não distinção
da consistência do esforço humano prestado a outrem, sob o regime de Direito Privado e
com conteúdo econômico, das ações intermediárias que tornam possível o “fazer para
terceiros”.
No exemplo dado, caso a prestação contratual se esgote com a simples
protocolização da peça processual no respectivo balcão do tribunal, sem a necessidade
de sua comprovação junto ao cliente, não restam dúvidas de que o ISS deverá ser
recolhido em Brasília-DF, pois é onde o serviço foi efetivamente consumado, ainda que
etapas anteriores e necessárias à sua consumação tenham sido realizadas em local
diverso. No entanto, caso o cumprimento do contrato exigisse, além do simples
protocolo, a sua comprovação junto ao tomador, o município competente para exigir o
recolhimento do ISS seria aquele onde ocorresse, efetivamente, esse fato, o que poderia
ocorrer em Curitiba, no escritório do advogado, ou em São Paulo, onde está localizado o
cliente/tomador, tudo a depender do local exigido pelo contrato para essa comprovação.
É que a tributação atinge o esforço humano prestado a terceiros como fim ou
objeto, e não as suas etapas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. Essas, as
etapas, são realizadas para o próprio prestador, e não para terceiros, os quais somente as
aproveitam de forma indireta e mediata, por se beneficiarem das condições que
tornaram possível o resultado final. Somente a atividade-fim tem relevância jurídica
para o ISS, pois só ela é qualificável como serviço tributável.996
O fato de o cliente estar sediado no município de São Paulo é irrelevante, pois
a materialidade do ISS é a prestação de serviços, e não a sua utilização pelo tomador.
Como já demonstrado, ainda que a Constituição não preveja explicitamente a expressão
996
BARRETO, Aires Fernandino. ISS – Atividade-Meio..., op. cit.,p. 83.
388
“prestar serviços”, resulta de seu contexto que só é tributável a prestação de um serviço,
e não o seu consumo, fruição, ou utilização, o que cabe ao tomador do serviço. 997
Quando a Constituição, ao distribuir as competências tributárias, descreve uma
materialidade, está se referindo à pessoa produtora do fato, conforme adverte AIRES
BARRETO, pois o consumidor, como tomador do serviço, nem sempre, nem
necessariamente revela qualquer capacidade contributiva, como é o caso da pessoa que
tem que recorrer, por exemplo, a um advogado ou a um médico.998
Como já vimos, anteriormente, o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça, em qualquer caso, tem sido no sentido de considerar ocorrido o fato tributário
do ISS no município em que o serviço foi efetivamente prestado. Um dos argumentos
invocados contra esse posicionamento é o de que a arrecadação, em todo o território
nacional, seria muito complexa, diante da existência de mais de 5.500 municípios.999
Nessa ocasião, AIRES BARRETO demonstra que essa alegação, sobre não ser jurídica,
nem mesmo é verdadeira, pois nada impede que as leis municipais criem norma
estabelecendo a responsabilidade solidária entre prestador e tomador dos serviços, ou
seja, o tomador seria responsável de forma solidária pelo pagamento do imposto,
sempre que não lograsse comprovar o recolhimento do tributo no município onde o
serviço foi efetivamente prestado.1000 Defende, ainda, com acerto, que “[...] problemas
de ordem prática não podem atropelar a Constituição”.1001
A complexidade da questão alusiva aos serviços intelectuais e/ou prestados
sem a utilização de um estabelecimento prestador levou a melhor doutrina a sucumbir
ao entendimento pela aplicação da regra do domicílio do prestador, servindo, como
justificativa, a inviabilidade de fiscalização e cobrança do ISS no município onde o
serviço tenha sido efetivamente prestado. MARÇAL JUSTEN FILHO, após concluir
não haver uma solução precisa e definida no tocante a serviços preponderantemente
intelectuais, afirma haver “[...] forte apoio para solucionar a questão pelo critério do
domicílio do prestador do serviço”, apesar de não ter consignado qual seria a
fundamentação científica para demonstrar o acerto de sua assertiva. 1002 Em sentido
997
Vide supra, subitem 4.3.1.
ISS na Constituição..., op. cit., p. 32.
999
MARTINS, Ives Gandra da Silva; RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. O ISS e a Lei
Complementar nº 116/2003 – Aspectos Relevantes. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e
a LC 116, p. 189-190.
1000
ISS – Conflitos..., op. cit., p. 13.
1001
ISS na Constituição..., op. cit., p. 334.
1002
ISS no tempo..., op. cit., p. 69.
998
389
semelhante, AIRES BARRETO, após defender que “[...] o equacionamento dessas
questões deve dar-se também pelo exame do aspecto espacial da hipótese de incidência
do ISS”, conclui que, seja considerando a regra do domicílio, seja entendendo que o ISS
é devido no município em que os serviços forem prestados, “[...] o certo é que ambas
as posições conduzirão à mesma conclusão: o imposto será devido no Município em
que domiciliadas as pessoas prestadoras de serviço para o tomador, porque ali, a um
só tempo, a) estará situado o domicílio do prestador e, b) concomitantemente, ali e só
ali, serão prestados os serviços respectivos”.1003
Nesse trecho, quer parecer ter o autor afirmado que, em todos os casos em que
não há um estabelecimento, o ISS incide no local do domicílio do prestador. Mais
adiante, afirma que, “[...] inexistindo estabelecimento prestador, a regra é a de que o
ISS será devido, no lugar (Município) em que essas pessoas estiverem domiciliadas,
desde que ali prestem os serviços”. Já nesta parte, o autor excepciona de sua afirmação
anterior os serviços que não forem prestados no mesmo município onde está situado o
domicílio, o que parece encerrar, com a devida vênia, franca contradição, que se
comprova em outra afirmação, consignada logo em seguida:
Deveras, a efetiva prestação dos serviços dar-se-á nos Municípios em que
ultimarem, concretizarem, o serviço. O que só ocorrerá no Município em que
mantêm seus domicílios (ou o centro de suas atividades). [...] Em assim
sendo, restará induvidoso que esse ‘fazer’ completar-se-á apenas no
domicílio do prestador ou no centro de seus negócios. [...] Só aquele
Município em que domiciliado o prestador inscrito será competente para
exigir o ISS por ele devido, porque, a um só tempo, a) os serviços só nele
serão prestados e b) nele também – e só nele – estará localizado o domicílio
que realiza aquele ‘ato do devedor’ (no qual a prestação de serviço consiste).
O ISS é devido no lugar (Município) em que a atividade (facere) é exercida,
concretizada e concluída. Só não incidirá ISS no Município em que
domiciliados os autônomos no caso de a prestação ultimar-se em Município
diverso. [...] Não nos parece que o mecânico autônomo, que atua na própria
casa e que é chamado para socorrer motorista cujo carro quebrou na rua
qualquer de outro Município possa ser chamado a recolher o ISS no
Município onde isso ocorreu, se diverso do seu domicílio.1004
Em que pese os argumentos desse renomado mestre, não se pode concordar
com suas conclusões. No exemplo dado, caso o mecânico cumpra com sua obrigação no
local onde está o carro, ou seja, em município diverso de onde está domiciliado, foi ali
que a prestação de serviço se consumou. Com o devido respeito, não se vislumbra,
também nesses argumentos, uma demonstração científica segura que possa sustentar o
raciocínio expendido.
1003
ISS na Constituição..., op. cit., p. 341.
390
De tudo quanto até aqui foi exposto, não há como negar a existência de
dificuldades na fiscalização e na cobrança do ISS, nas hipóteses de serviços meramente
intelectuais, ou seja, prestados sem a intermediação de um estabelecimento prestador,
assim como nos serviços onde seja difícil a identificação do local onde ocorre a
atividade-fim. Entretanto, as premissas adotadas no presente estudo, em especial o firme
e inalienável posicionamento em relação à supremacia constitucional, exigem nossa
conclusão no sentido de que as questões administrativas e de política tributária – apesar
de extremamente relevantes dos pontos de vista pré e pós-jurídico – não podem
interferir no resultado da interpretação dos textos normativos e, portanto, não são
passíveis de análise no presente estudo.
Verifica-se, assim, que, ao contrário da regra geral do estabelecimento
prestador, a qual é passível de uma interpretação conforme a Constituição, a regra
prevista tanto no artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68, assim como no artigo 3º da Lei
Complementar nº 116/2003, que desloca o local de ocorrência do fato tributário do ISS
para o domicílio do prestador, em virtude da ausência do pré-citado estabelecimento,
padece de incontornável inconstitucionalidade, pois não há nenhum elemento que
vincule o local do referido domicílio à materialidade do ISS.
São, nesse sentido, os argumentos precisos de BETINA TREIGER
GRUPENMACHER: “Se é certo que a determinação legislativa para recolhimento do
tributo no local do estabelecimento prestador comporta questionamentos, a regra que
estabelece a alternativa do domicílio do prestador é absolutamente repudiável perante
o ordenamento jurídico por estar em total desconformidade com os preceitos
constitucionais”. A autora acrescenta, com propriedade, que “[...] ao estabelecer o
domicílio do prestador como local em que é devido o ISS, nada mais fez o legislador
complementar do que estabelecer uma ficção jurídica, e as ficções, embora haja
respeitáveis posições em sentido contrário, são, segundo entende-se, proibidas no
direito tributário”. A correção desse raciocínio repousa na certeza de que a ficção
jurídica consubstanciada na regra do domicílio do prestador resulta em clara ofensa do
princípio da legalidade tributária e, por conseqüência, também do princípio da
segurança jurídica, “[...] pois, gerando imprevisibilidade no exercício do poder de
1004
Ibidem, p. 342-343.
391
tributar, levam à surpresa, a qual é, nesta hipótese, afrontosa ao Estado de Direito”.
1005
A prevalecer esse dispositivo, o critério material da hipótese de incidência do
ISS seria o de “possuir domicílio do qual decorra prestação de serviço” ou, ainda,
“prestar serviço no domicílio do prestador”, o que está em flagrante contradição com o
fundamento constitucional do ISS.1006
5.8 A AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO
5.8.1 Características do direito processual tributário brasileiro
Não há, no sistema processual brasileiro, regime jurídico próprio para a
disciplina judicial das lides tributárias, havendo falta tanto de sistematização legal como
doutrinária. O regime utilizado pelo processo judicial tributário é o do processo civil,
cujo regime foi construído essencialmente para a disciplina da lide civil – entre
particulares – e, portanto, nem sempre é eficaz para bem solucionar os conflitos entre a
Fazenda Pública e o contribuinte, providência inafastável no atendimento das exigências
constitucionais, nos âmbitos administrativo, processual e tributário.
Entretanto, ainda que sob a perspectiva exclusivamente jurisdicional, as
características próprias do fenômeno tributário peculiarizam o Direito Processual
Tributário, pois, ao contrário do que ocorre com as lides civis, o contribuinte não busca
a afirmação de um direito subjetivo a determinada prestação ou a um certo
comportamento, mas um direito subjetivo a um certo comportamento do fisco, que, por
estar estritamente vinculado à lei, em sua atividade exacional, faz com que os conflitos
tributários se constituam, via de regra, na invocação de violação a normas
constitucionais e infraconstitucionais pela Fazenda Pública, o que peculiariza o formato
do pedido feito judicialmente. 1007
JAMES MARINS classifica as ações tributárias sob duas perspectivas. Uma
primeira, leva em consideração a posição das partes na relação processual, ou seja, a
posição ativa ou passiva dos sujeitos – fisco e contribuinte – nas ações tributárias, pelo
1005
ISS – Local..., op. cit., p. 79-81.
BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 527.
1007
MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro: (Administrativo e Judicial), p. 379-380.
1006
392
que classifica as ações em exacionais e antiexacionais. Serão exacionais as ações
tributárias em que a Fazenda Pública – Federal, Estadual, Municipal e Distrital – esteja
no pólo ativo da relação processual, e serão antiexacionais as ações tributárias em que o
pólo ativo seja ocupado por contribuinte. Numa segunda, classifica as ações tributárias
como próprias e impróprias, tendo como perspectiva a existência ou não de disciplina
autônoma para determinada espécie de ação.1008
Quase todas as ações exacionais são próprias, com exceção daquelas de
eficácia erga omnes – ADIN, ADC, Ação Popular – enquanto que são impróprias quase
todas as ações antiexacionais, com a exceção dos embargos à execução fiscal,
disciplinadas pela Lei de Execução Fiscal – Lei nº 6.830, de 22 set. 1980 – de onde se
percebe a motivação política do legislador em conferir à Fazenda Pública instrumentos
processuais mais eficazes, especiais em relação ao Código de Processo Civil, mais
hábeis na cobrança dos tributos, ao passo que, aos contribuintes, restaram tão-somente
os instrumentos processuais ordinários, com a exceção já citada dos embargos à
execução fiscal.1009
Na hipótese de uma exigência tributária, a título de ISS, por pessoa política
incompetente, tanto para legislar sobre o fato tributário praticado, como para
conseqüentemente exigir o recolhimento do imposto, poderá o prestador de serviços
alvo dessa incidência, por força do Princípio Constitucional da Inafastabilidade do
Controle Jurisdicional (direito de ação), previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição,
buscar no Poder Judiciário a tutela de seu direito material.1010 E diante do notório
caráter agressivo dos tributos, nas esferas da liberdade e da propriedade do cidadãocontribuinte, exige ainda a Constituição, agora no inciso LIV do mesmo artigo 5º, que
“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, ou
seja, o processo iniciado pelo contribuinte deve ter seu trâmite rigorosamente vinculado
à legislação processual válida e vigente.
Portanto, qualquer que seja o tipo de ação escolhido pelo contribuinte para a
defesa de seu direito, o respectivo processo judicial deverá observar todos os princípios
do processo civil, corolários do devido processo legal (due process), encampados pela
Constituição Federal de 1988, que, na classificação de NELSON NERY JÚNIOR 1011
são os seguintes: a) Princípio da Isonomia; b) Princípios do Juiz e do Promotor Natural;
1008
Ibidem, p. 387-390.
Ibidem, p. 390-391.
1010
“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”
1009
393
c) Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional (princípio do direito de ação);
d) Princípio do Contraditório; e) Princípio da Proibição de Prova Ilícita; f) Princípio da
Duplicidade dos Atos Processuais; g) Princípio do Duplo Grau de Jurisdição; h)
Princípio da Motivação das Decisões Judiciais.
5.8.2 Tutela do direito à observância da regra-matriz do ISS
A tutela judicial do direito do contribuinte à observância, pelo legislador
municipal, dos critérios da regra-matriz do ISS, conforme sua feição constitucional,
pode efetivar-se de várias formas. Dizendo de outro modo, não há uma só espécie de
ação antiexacional que permita ao prestador de serviços pleitear em juízo a proteção
judicial ao seu direito subjetivo de somente integrar uma relação jurídica tributária que
seja desenhada nos moldes rigorosamente constitucionais. Dentre tais ações, podem-se
citar as principais, como, por exemplo:
a) ação declaratória de inexistência de relação jurídica tributária: ação
antiexacional imprópria, de rito ordinário, proposta com o objetivo de ver
declarada a inexistência de vínculo entre o autor da ação e determinado
ente tributante, por entender não ocorrido o fato tributário de sua
competência;
b) ação anulatória de lançamento tributário: ação antiexacional imprópria,
de rito ordinário, de natureza constitutivo-negativa, que vise obter sentença
que anule total ou parcialmente ato administrativo de exigência tributária
(lançamento tributário) ou de aplicação de penalidades (auto de infração);
c) ação de repetição do indébito: ação antiexacional imprópria, de rito
ordinário e de natureza condenatória, proposta pelo contribuinte contra ente
tributante que tenha recebido valores indevidos a título de tributos, visando
condená-lo a devolver tais valores;
d) ação de consignação em pagamento de crédito tributário: ação
antiexacional imprópria, de rito especial, de natureza declaratória – pois
declara que o depósito satisfaz os requisitos legais para substituir o
pagamento como forma de liberação do devedor1012 – que visa o efeito
1011
1012
Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, p. 39 e ss.
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil: Lei nº 5.869, de 11 de
janeiro de 1973, v. VIII, t. III: arts. 890 a 945, p. 44.
394
liberatório do contribuinte consignante, que tem fundadas dúvidas acerca
de quem seja o sujeito ativo da relação jurídica tributária, através do
depósito judicial do valor devido e da citação dos entes tributantes que se
intitulam simultaneamente credores em relação ao mesmo fato tributário.
Entendemos ser a ação consignatória a melhor alternativa, na hipótese de dois
municípios exigirem o ISS sobre a mesma prestação de serviços. Como já dito acima,
essa ação se identifica, na classificação de JAMES MARINS, dentre as antiexacionais
impróprias, posto que, além de visar a liberação do contribuinte consignante da
obrigação tributária, não possui regramento próprio, sendo disciplinada pelo Direito
Processual Civil, aplicando-se, no que couber, os artigos 890 ao 900 do Código de
Processo Civil.
Regra geral, a administração tributária não costuma dificultar o pagamento do
tributo pelos contribuintes, do que resulta ser inusual a utilização da consignação em
pagamento como modalidade de extinção do crédito tributário. Entretanto, têm
aumentado nos últimos anos os conflitos entre os entes tributantes, sobre a titularidade
ativa para a cobrança de certos tributos, com destaque para as regiões de sobreposição
espacial de competência entre municípios, em casos de IPTU e ISS e, mais
recentemente, também os problemas de sobreposição material entre o ISS e o ICMS. 1013
Como bem observou PONTES DE MIRANDA, a norma que admite a
consignatória abre exceção ao princípio da irrelevância do desconhecimento do Direito,
já que autoriza o seu uso também ao devedor cuja dúvida sobre o credor é de caráter
meramente subjetivo.1014 No entanto, no Direito Tributário, em face da regulação
especial dada à matéria, conclui-se não ser cabível a ação consignatória na hipótese de
dúvida subjetiva tão-só do devedor sobre quem seja o credor legítimo. A incerteza
autorizativa da ação deve ser a resultante de exigências conflitantes de mais de um ente
tributante sobre o mesmo fato tributário.1015
O Código Tributário Nacional, em seu artigo 156, VIII, arrola a consignação
em pagamento como uma das modalidades de extinção do crédito tributário, e, no artigo
164, arrola algumas situações que autorizam a sua utilização: “I - de recusa de
recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro tributo ou de penalidade,
ou ao cumprimento de obrigação acessória; II - de subordinação do recebimento ao
1013
MARINS, James. Direito Processual..., op.cit., p. 430.
Apud FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários..., op. cit., p. 60.
1015
Ibidem, p. 66-67.
1014
395
cumprimento de exigências administrativas sem fundamento legal; III - de exigência,
por mais de uma pessoa jurídica de direito público, de tributo idêntico sobre um mesmo
fato gerador”.
Nas duas primeiras hipóteses, em que o contribuinte se vê diante de obstáculos
à sua intenção de pagar o tributo, fica caracterizada a mora accipiendi, que é a mora
imputável ao Fisco em exercer, sem obstáculos artificiais, o seu poder-dever de cobrar
os créditos tributários. A terceira hipótese, ao contrário, trata da pluralidade ou
concorrência de credores, que pode ser descrita como a “[...] disputa de titularidade
ativa estabelecida entre dois entes tributantes que se apresentam, simultaneamente,
como credores da obrigação tributária nascida de um único fato jurídico-tributário”.
Isso tem ocorrido com freqüência com o IPTU, ISS e o ICMS e, quando passa a gerar
incerteza subjetiva para o sujeito passivo quanto a quem seja o verdadeiro credor da
obrigação tributária, autoriza a propositura da ação consignatória. 1016
Estabelece o § 2º do artigo 164 do Código Tributário Nacional que, “julgada
procedente a consignação, o pagamento se reputa efetuado e a importância consignada
é convertida em renda; julgada improcedente a consignação no todo ou em parte,
cobra-se o crédito acrescido de juros de mora, sem prejuízo das penalidades cabíveis”.
O contribuinte consignante deve realizar o depósito integral do crédito tributário para
que tenha direito aos efeitos liberatórios da consignação, e, quando os entes tributantes
divergirem quanto ao valor, o depósito deverá ser feito tendo por base o maior valor
exigido. Caso o depósito não seja integral, o efeito liberatório será parcial,
remanescendo a obrigação quanto à parcela não depositada, o que acarreta a incidência
de multa e juros se não paga no vencimento.
O regime processual da ação de consignação em pagamento é o do Código de
Processo Civil, onde, nos artigos 890 e seguintes, figura como um procedimento
especial de jurisdição contenciosa, e sua localização entre esses procedimentos especiais
demonstra que não se trata de um procedimento ordinário ou de uma medida cautelar.
Não há impedimentos para a utilização da consignatória nos casos de relação jurídicotributária continuativa, como ocorre com tributos como o ISS e o ICMS, pois o artigo
892 do Código de Processo Civil dispõe que “Tratando-se de prestações periódicas,
uma vez consignada a primeira, pode o devedor continuar a consignar, no mesmo
processo e sem mais formalidades, as que se forem vencendo [...]”, mas, como dispõe o
1016
MARINS, James. Direito Processual..., op.cit., p. 431.
396
mesmo artigo, “[...] desde que os depósitos sejam efetuados até 5 (cinco) dias,
contados da data do vencimento”. Caso o depósito seja efetuado após o prazo de cinco
dias estipulado no Código de Processo Civil, deverá abranger também os valores de
mora, juros e multa.
O Código Tributário Nacional, em seu artigo 164, III; o Código Civil em seu
artigo 335, IV; e o Código de Processo Civil, no seu artigo 898, prevêem expressamente
o direito de o devedor consignar judicialmente o débito na hipótese de haver incerteza
subjetiva quanto ao credor, o que abrange a dúvida quanto ao sujeito ativo da obrigação
tributária. Não se trata, nesses casos, de mora accipiendi, já que não há obstáculos ao
pagamento, mas sim conflitos entre credores que se intitulam sujeitos ativos de uma
mesma dívida. “Tal circunstância de fato justifica para o devedor a existência de
incerteza subjetiva que implica o risco de pagar a quem não poderia receber e, desse
modo, ver-se obrigado a pagar duas vezes. Logo, o interesse de agir na consignatória
reside na existência da dúvida gerada pela disputa entre entes tributários, daí nascendo
a necessidade de tutela judicial que operará sob rito especial”. 1017
Não basta a existência de mera suspeita, por parte do contribuinte, de que há
disputa sobre o crédito tributário. Há a necessidade da existência de uma dúvida
fundada, e que seja demonstrada de forma satisfatória pelo contribuinte em sua petição
inicial. A existência de outros casos sobre a mesma questão pode ser invocada, pelo
autor da consignatória, para que lhe seja dispensada a obrigação de fazer outro tipo de
prova. O artigo 898 do Código de Processo Civil estabelece um rito especial para a
consignatória proposta pela existência simultânea de dois pretendentes a um mesmo
crédito tributário: “Quando a consignação se fundar em dúvida sobre quem deva
legitimamente receber, não comparecendo nenhum pretendente, converter-se-á o
depósito em arrecadação de bens de ausentes; comparecendo apenas um, o juiz
decidirá de plano; comparecendo mais de um, o juiz declarará efetuado o depósito e
extinta a obrigação, continuando o processo a correr unicamente entre os credores;
caso em que se observará o procedimento ordinário”.
A utilidade do procedimento do Código de Processo Civil está em que, além
dos pesados ônus impostos aos entes tributantes que não integrarem a lide, possibilita ao
contribuinte liberar-se da obrigação tributária, ficando o litígio com quem compareceu à
relação processual, por lhe ter dado causa. “Isso significa que ao magistrado cumpre
1017
Ibidem, p. 436-437.
397
declarar a extinção da obrigação tão logo tenham comparecido ao processo os
credores disputantes para formalizar sua pretensão sobre o crédito consignado,
julgando extinto o processo unicamente com relação ao contribuinte, que desde logo se
vê liberado da obrigação tributária” [sic]. 1018
A extinção do processo em relação ao contribuinte consignante somente se
dará na hipótese de obrigação tributária instantânea, que prescinda da continuidade dos
depósitos até o final do processo – relação continuativa – e também desde que os réus
não tenham alegado a insuficiência da quantia consignada, caso em que o contribuinte
deverá integrar a relação processual até o seu fim. Também poderá permanecer no
processo para requerer seus direitos sobre os ônus da sucumbência, fixados quando da
sentença, ou ainda para levantar eventual crédito remanescente em seu favor.
Também há casos em que, mesmo após o depósito integral, o contribuinte
mantém interesse jurídico na lide judicial que persiste entre os entes tributantes, como
se dá no caso em que o regime tributário de um dos entes é mais vantajoso para o
contribuinte – alíquota ou base de cálculo mais favorável. Em casos como tais, “[...] o
contribuinte deverá permanecer no processo na condição de assistente litisconsorcial
uma vez que a sentença final, em sua eficácia objetiva e subjetiva, haverá de declarar a
existência ou inexistência de relações jurídicas que dizem respeito ao contribuinte
consignatore” [sic].1019 Nessas hipóteses, é aplicável o artigo 54 do Código de Processo
Civil, que trata da assistência litisconsorcial.1020
Como já demonstrado, ao longo deste trabalho, a divergência interpretativa
sobre o antigo Decreto-lei nº 406/68, assim como em relação à atual Lei Complementar
nº 116/2003, resultou em conflitos entre o município onde está situado o
estabelecimento ou a sede do prestador dos serviços e aquele onde o serviço é
efetivamente prestado, o que acarreta a sobreposição de incidências tributárias
municipais sobre um mesmo fato tributário. Com isso, nasce para o contribuinte o
interesse processual em propor a ação consignatória, em que, após o depósito do crédito
tributário pelo contribuinte e o seu conseqüente efeito liberatório em relação à obrigação
tributária, os municípios que disputam o crédito tributário serão citados para integrar a
lide e litigar entre si, salvo no caso de o contribuinte manter interesse em continuar no
processo até seus ulteriores termos, conforme já demonstrado.
1018
1019
Ibidem, p. 438.
Ibidem, p. 439.
398
É certo que a Lei Complementar nº 116/2003 avançou na tentativa de evitar os
conflitos entre os municípios, em especial porque considera a atual dinâmica dos novos
serviços, surgidos com o desenvolvimento tecnológico, com destaque para os serviços
na área da informática. Contudo, certamente ainda restarão hipóteses em que os
conceitos utilizados por essa lei serão confrontados com o texto constitucional, sendo
possível afirmar que os conflitos persistirão, ainda que, talvez, em menor escala. O uso
da consignatória, portanto, continuará sendo a melhor opção para o contribuinte que vier
a sofrer os efeitos dos conflitos entre municípios.
1020
“Artigo 54. Considera-se litisconsorte da parte principal o assistente, toda vez que a sentença houver
de influir na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido.”
399
CONCLUSÕES ESPECÍFICAS
CAPÍTULO 1:
1. Como perspectiva científica, entendemos que o único método válido para o
estudo da regra-matriz de incidência do ISS é aquele inerente à Ciência do Direito
stricto sensu, ou seja, à Dogmática Jurídica, pois a interpretação do Direito Positivo só é
válida na medida em que o objeto de análise tenha o sistema jurídico como limite de
investigação. Isso implica a necessidade de prestígio, pelo hermeneuta, apenas e tãosomente da ideologia intranormativa, inserida no ordenamento jurídico. Como
resultado, a interpretação sistemática, porque aliada à supremacia constitucional, é o
único método interpretativo eficaz na busca de conclusões seguras.
2. A construção científica da norma jurídica exige a análise dos três níveis em
que se estrutura a linguagem do ordenamento: o sintático, o semântico e o pragmático.
Em que pese a relevância dos planos sintático e semântico, entendemos que merece
destaque a interpretação da norma jurídica no plano pragmático, o que não significa o
abandono da dogmática jurídica, que ocorreria apenas na hipótese de a relação de
conhecimento ter, como perspectiva, tão-somente o sujeito cognoscente. Antes, resulta
da utilização da chamada epistemologia dialética na Ciência do Direito, defendida por
AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO, pela qual o importante – em vez de
privilegiar-se um dos pólos da relação cognitiva – é a relação entre o sujeito e o objeto
de conhecimento na construção científica.1021
3. A condição de sistema está presente tanto no Direito Positivo como na
Ciência do Direito. No entanto, somente o sistema da Ciência do Direito exige a
característica da coerência, em virtude da impossibilidade da existência de contradições
em sua linguagem. Os elementos desse sistema responsáveis pela coerência são os
princípios jurídicos e, dentre eles, destacam-se os princípios constitucionais, vetores
interpretativos de todas as normas jurídicas. A maior eficácia e legitimidade na
aplicação desses princípios resulta do preciso conhecimento dos limites existentes no
nível pragmático da linguagem jurídica.
4. A transição do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito
marcou o enriquecimento da carga valorativa existente na expressão “liberdades”, cuja
1021
A Ciência do Direito: conceito, objeto, método.
400
eficácia jurídica vem exigindo sua efetivação não só no aspecto negativo,
correspondente à clássica noção do Princípio da Legalidade no âmbito privado, mas
também e especialmente no aspecto positivo, pelo qual não basta que a atividade dos
indivíduos não esteja vedada pela lei, sendo necessário que esteja de acordo com a
proteção aos direitos sociais positivados constitucionalmente.
5. No Estado Democrático de Direito convivem, de forma harmônica, os ideais
republicanos
e
democráticos,
os
quais
ressaltam,
no
campo
tributário,
a
representatividade popular na criação dos tributos. No contexto da análise da regramatriz de incidência do ISS, essa nova perspectiva implica a necessidade de uma nova
consciência político-tributária, tanto para os representantes do povo – seja em âmbito
nacional como nos Municípios – como para os contribuintes – neste caso, os prestadores
de serviço.
CAPÍTULO 2:
6. O Sistema Tributário Nacional constitui-se em subsistema, inserido no
sistema geral do Direito Positivo. Disso decorre a exigência de que a aplicação de toda e
qualquer norma tributária seja precedida da valoração dos princípios constitucionais que
se revelem os mais adequados em cada caso concreto.
7. Os princípios Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal são
princípios gerais de Direito Público cuja aplicação, no Direito Tributário, é
constitucionalmente inafastável, pois todos se constituem em instrumentos de realização
dos objetivos do Estado Democrático de Direito.
8. No estudo da regra-matriz de incidência do ISS, ganha relevo o respeito ao
Princípio da Autonomia Municipal, posto ser vetor constitucional que impede a criação,
pela União Federal, de leis nacionais que invadam a competência tributária reservada
aos municípios, contribuindo, assim, na viabilização das autonomias política, financeira
e administrativa dessas pessoas políticas. Além disso, a Autonomia Municipal é
viabilizadora do Princípio Republicano, servindo de instrumento eficaz na aproximação
entre representantes e representados.
9. Dentre as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, o Princípio da
Legalidade Tributária é de fundamental importância, constituindo instrumento legítimo
de auto-regulação social e, ao mesmo tempo, de protetor da liberdade do contribuinte de
401
planejar sua vida econômica, de modo a sofrer o menor ônus tributário possível, sempre
dentro da licitude.
10. O novo contexto em que a Legalidade Tributária está situada resultou na
possibilidade de o fisco desconsiderar planejamentos tributários não mais ficando
restrito às tradicionais hipóteses do artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional, ou
seja, quando restarem demonstrados o dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do
atual Código Civil, que positivou as figuras do abuso de direito – como ato ilícito – e
da fraude à lei – como ato nulo –, ganhou força a tese de que o fisco passou a ter o
poder-dever de lançar o tributo também nessas novas hipóteses. Isso implica uma nova
definição dos limites em que o planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária
(lícita) para tipificar caso de evasão tributária (ilícita).
11. O Princípio da Isonomia Tributária, em relação aos impostos, efetiva-se
através da observância da Capacidade Contributiva objetiva – pela qual o legislador, ao
escolher os fatos tributários para as hipóteses normativas, deve optar pelos que
expressem signos de riqueza econômica – e da Capacidade Contributiva subjetiva, pela
qual o legislador, ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição dos
participantes de forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido. No que se
refere ao critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, é nítida a violação à
Isonomia Tributária e à Vedação de Tributo com Efeito de Confisco, quando os
prestadores de serviço sofrem a cobrança desse imposto em duplicidade, em virtude da
existência de conflitos entre municípios.
12. Com o advento do Estado Social e Democrático de Direito, a interpretação
da relação jurídica tributária deve ser feita de forma contextualizada com o valor
constitucional da solidariedade social. A efetivação desse valor constitucional tem na
Capacidade Contributiva subjetiva – viabilizada especialmente pelos critérios da
progressividade e da seletividade – um de seus instrumentos mais eficazes, o que
implica uma evolução da tradicional concepção de Legalidade Tributária, onde esse
princípio deixa de ser visto apenas como uma “limitação constitucional ao poder de
tributar”, para passar a ser visualizado como a manifestação da consciência políticojurídica do cidadão como contribuinte. Entretanto, a solidariedade social, por si só, não
autoriza a cobrança de tributos, em violação das regras constitucionais atributivas de
competência tributária.
13. A solidariedade social também encontra uma aplicação importante no tema
da “descentralização fiscal” própria do federalismo. O Princípio da Subsidiariedade, que
402
é inerente à essa descentralização, revela uma exigência democrática de eficiência e
melhor governabilidade, pois “aproxima” o cidadão da entidade pública do governo,
permitindo que com ele tenha um vínculo mais estreito, acentuando a relação entre
tributação e serviços públicos, inclusive os que revelam, em seu conteúdo, um
instrumento de busca da solidariedade social. No contexto específico do critério espacial
da regra-matriz de incidência do ISS – a solidariedade social/fiscal exige uma reiteração
da supremacia constitucional, no que tange à observância da materialidade desse
imposto, ou seja, do conceito de prestação de serviços encampado pela Constituição e,
como conseqüência, do efetivo local em que os serviços são prestados, pois é a lei desse
respectivo município que incidirá sobre os fatos ocorridos em seu território, assim como
é esse município quem deterá a capacidade tributária de exigir o recolhimento do ISS.
14. Não há, em princípio, relação de hierarquia entre as leis nacionais e as leis
editadas pelas pessoas políticas – federais, estaduais, distritais e municipais – pela razão
de que todas buscam seu fundamento de validade na própria Constituição. Somente
haverá relação de subordinação entre normas, quando uma se constituir em fundamento
de validade da outra. A diferença entre a União, Estados-membros, Distrito Federal e
Municípios não está, portanto, em um nível hierárquico, mas, nas competências distintas
que receberam da própria Constituição.
15. As normas gerais a que alude o artigo 146 da Constituição Federal têm seu
conteúdo limitado a “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar” e,
dentre elas, somente aquelas que requerem complementação, por não se constituírem
em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
CAPÍTULO 3:
16. A norma jurídica é aquela que pertence ao ordenamento jurídico, e
constitui-se em proposições prescritivas veiculadas mediante um juízo hipotético e
condicional, expresso por uma relação de dever-ser. Sua estrutura lógica é representada
pela ligação de uma hipótese de incidência a um conseqüente, em virtude da ocorrência
de um fato previamente descrito.
17. Na estrutura da regra-matriz de incidência tributária, a hipótese representa a
descrição de um fato lícito previsto em lei, e o conseqüente prescreve uma relação
jurídica que tem por objeto uma prestação pecuniária e compulsória, consistente no
403
comportamento do sujeito passivo de entregar ao sujeito ativo uma determinada quantia
de dinheiro.
18. A hipótese de incidência da regra-matriz de incidência tributária é formada
por três critérios: o material, o temporal e o espacial. O critério material é o núcleo da
hipótese, e representa uma ação humana expressa por um verbo pessoal e transitivo, que
por essa razão sempre exige um complemento. Os critérios temporal e espacial,
respectivamente, indicam o momento no tempo e o local no espaço em que o fato
tributário se reputa ocorrido, como suficiente para deflagrar o nascimento da relação
jurídica tributária.
19. A conseqüência da regra-matriz, por descrever a relação jurídica que nasce
com a ocorrência do fato tributário, é formada pelo critério subjetivo – o qual indica
quem são os sujeitos ativo e passivo daquela relação – e pelo critério objetivo – que
além dos elementos necessários à apuração da quantia devida a título de tributo – base
de cálculo e alíquota –, também contém a indicação dos dados necessários a informar o
local onde a conduta exigida deverá ser satisfeita – onde pagar –, assim como o
momento em que ela deverá ocorrer – quando pagar.
CAPÍTULO 4:
20. O ISS tem seu fundamento específico no artigo 156, III, da Constituição de
1988. Portanto, o ponto de partida para análise da sua regra-matriz, como de qualquer
tributo, deve ser a Constituição Federal. De forma especial, é nos dispositivos
constitucionais que atribuem competência tributária às pessoas políticas, resultante do
Princípio Federativo, que poderão ser encontrados os primeiros subsídios normativos
hábeis à construção da norma-padrão dos tributos. Com efeito, entende-se que a criação
do tributo tem início já no texto constitucional, sendo ultimada com a aprovação da lei
da respectiva pessoa política.
21. O conceito de serviço tributável pelo ISS, portanto, é de natureza
constitucional. A materialidade da hipótese de incidência desse imposto (núcleo) é
representada pela expressão “prestar serviço”, como objeto de uma relação jurídica
bilateral e onerosa, celebrada entre um tomador/contratante e um prestador/contratado,
em regime de Direito Privado. A obrigação do prestador é qualificada como “de fazer”,
e somente a atividade-fim contratada atrai a incidência da norma tributária do ISS.
404
22. Dos serviços passíveis de tributação, não são reservados aos municípios
apenas os de transporte intermunicipal e de comunicação, os quais foram submetidos à
incidência do ICMS estadual. As prestações de serviços tributáveis pelo ISS, por
representarem o cumprimento de uma obrigação “de fazer”, distinguem-se das
operações sujeitas ao ICMS e ao IPI, as quais indicam o atendimento de uma obrigação
“de dar”.
23. Quando o artigo 156, III, da Constituição, estabelece que os serviços
passíveis de tributação pelos municípios, através do ISS, serão aqueles “[...] definidos
em lei complementar”, está prescrevendo que essa lei complementar tem por objeto
identificar os ditos serviços, nunca, no entanto, criá-los, de forma inovadora, original,
porque os limites dirigidos ao legislador municipal já se encontram previstos de forma
suficiente na própria Constituição. A lei complementar em apreço – que venha a definir
os serviços tributáveis pelos Municípios – somente pode ter como objetivo o de dispor
sobre eventuais conflitos de competência, em virtude de um eventual erro sobre a
conceituação de um determinado fato, deslocando-o indevidamente para a esfera
tributária de ente político incompetente. É inconstitucional, portanto, a tese que defende
a taxatividade da lista de serviços, posto ser violadora do Princípio da Autonomia
Municipal.
24. Os critérios temporal e espacial da regra-matriz de incidência do ISS
podem ser descobertos a partir da análise da materialidade da hipótese de incidência e
indicam, respectivamente, o momento e o conseqüente local em que se verifica a
prestação do serviço, representada pelo cumprimento da obrigação de fazer, onde e
quando ocorre a extinção do liame jurídico que unia o tomador ao prestador. Disso
resulta que, ao legislador infraconstitucional, é vedado, por força do próprio sistema
jurídico, estabelecer que o fato ocorreu em local diverso daquele em que se verificou a
sua materialidade, pois a desvinculação do critério espacial dos critérios material e
temporal destrói a estrutura da hipótese normativa.
25. O sujeito ativo, no caso do ISS, será o município, ou o Distrito Federal, em
cujo território os serviços são prestados. Ainda que juridicamente possível, não se
conhece casos de municípios em que tenha ocorrido delegação da capacidade tributária
ativa (parafiscalidade).
26. O contribuinte do ISS, em virtude de sua materialidade, somente pode ser o
prestador do serviço, pois somente essa pessoa se identifica com o destinatário
constitucional tributário.
A eleição de um terceiro, como responsável tributário,
405
deve ser restrita à figura do tomador do serviço.
A eleição do tomador como sujeito
passivo, na condição de responsável tributário, somente poderá ser matéria da lei
complementar de que trata o artigo 146 da Constituição na hipótese dessa lei ter sido
editada com vistas a prevenir conflitos de competência em matéria tributária.
27. Decorre implicitamente da materialidade do ISS, conforme a dicção
constitucional prevista no artigo 156, III – prestação de serviços de qualquer natureza
definidos em lei complementar, com exceção dos tributáveis pelos Estados-membros e
pelo Distrito Federal – a noção de que a sua base de cálculo somente pode ser o preço
da prestação do serviço ou, em outras palavras, o valor definido como sendo a efetiva
remuneração do prestador.
28. As alíquotas do ISS são definidas pela lei de cada município, sendo que à
lei complementar nacional caberá fixar as alíquotas máximas. A Emenda Constitucional
nº 37/2002 – ao remeter ao legislador complementar a função de dispor sobre a alíquota
mínima para o ISS e fixar a alíquota mínima em 2%, enquanto tal lei não disciplinar a
matéria – é inconstitucional, por ter violado a Autonomia Municipal.
CAPÍTULO 5:
29. Os conflitos de competência existentes podem ser de duas espécies: (a)
conflitos envolvendo a chamada competência heterogênea, também chamados de
conflitos materiais, pois o problema decorre da dificuldade, no plano pré-jurídico, de
subsunção de um determinado fato a mais de uma hipótese tributária, de pessoas
políticas diversas, como, por exemplo, conflitos entre estados e municípios (ICMS e
ISS), ou entre União e municípios (IPI e ISS); e (b) conflitos acerca da chamada
competência homogênea, onde não há dúvida quanto ao tributo incidente sobre
determinado fato ocorrido, mas sim sobre a titularidade da competência para a
tributação, envolvendo, portanto, duas ou mais pessoas políticas da mesma órbita,
como, por exemplo, conflito entre municípios, com ambos exigindo o ISS sobre o
mesmo fato.
30. Os conflitos sobre o local de incidência do ISS, quando resultam em dois,
ou mais, municípios tributando a mesma prestação de serviço, violam não só os limites
territoriais das leis tributárias, como também afrontam os princípios da Capacidade
Contributiva e da Vedação de Tributo com Efeito de Confisco.
406
31. O legislador infraconstitucional não possui liberdade para definir, como
critério espacial da hipótese de incidência, um local que não coincida com aquele onde a
materialidade realmente se concretiza, ou, o que é mais grave, em local situado fora do
âmbito espacial de competência da pessoa política. O poder de criar as chamadas
“ficções jurídicas”, ainda que existente, não é ilimitado, encontrando na Constituição
Federal, e em especial nos princípios constitucionais, os contornos que dimensionam o
seu legítimo exercício. A unidade lógica da norma tributária constitui-se em premissa
inafastável no estudo dos conflitos de competência espacial. Assim como ocorre com
qualquer outro tributo, os critérios da hipótese de incidência do ISS – material, temporal
e espacial – não podem ser interpretados abstraindo-se uns dos outros.
32. Ao âmbito de validade espacial da norma jurídica é que se denomina de
Princípio da Territorialidade, ou de critério territorial (ratione loci). A Constituição
adotou os critérios de natureza material e geográfica, para formular o regime jurídico
tributário, ou seja, a Lei Maior enumerou as materialidades que podem ser utilizadas
pelos entes federativos e pelos municípios, para a demarcação de suas competências
tributárias, assim como definiu o território de cada uma das pessoas políticas como o
âmbito de validade da respectiva lei tributária.
33. A atribuição, à competência tributária de uma pessoa política, da tributação
de um fato cuja concretização se completou no território de outra é incompatível com o
sistema jurídico, já que é da essência do Sistema Tributário Nacional que cada pessoa
política exerça sua competência sobre os fatos e as pessoas localizadas na circunscrição
territorial correspondente. Disso resulta ser incabível alterar a competência fixada
constitucionalmente mediante o uso ilegítimo da legislação infraconstitucional, ainda
que por meio de lei complementar.
34. De acordo com o artigo 102 do Código Tributário Nacional – que regula a
extraterritorialidade da lei tributária em nível infraconstitucional – além dos convênios
que eventualmente participem estados, Distrito Federal e municípios, a União poderia
expedir normas gerais, estabelecendo a vigência de lei tributária de determinada pessoa
política para além de seu respectivo território. Como os limites territoriais dos estados e
municípios se constituem em inequívoca “limitação constitucional ao poder de tributar”,
a lei de normas gerais somente pode ter competência para regular o Princípio da
Territorialidade da legislação tributária das pessoas políticas, e nunca violá-lo, o que
torna esse dispositivo inconstitucional.
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35. A extraterritorialidade decorrente de convênios celebrados entre as pessoas
políticas, em que pese ser resultado de acordo voluntário entre as partes interessadas,
também é inconstitucional, pois a competência tributária é indelegável e irrenunciável,
não se admitindo que a extraterritorialidade da lei possa fazer com que a norma
tributária municipal incida sobre prestações de serviços ocorridos em território de outro
município, ainda que com a anuência deste.
36. A única interpretação possível para o artigo 102 do Código Tributário
Nacional é que o mesmo não foi recepcionado pelo atual ordenamento jurídico, assim
como já se revelava inválido em face da Constituição pretérita. A extraterritorialidade,
em relação ao ISS, somente se admite como manifestação da soberania nacional, e
nunca como decorrência da Autonomia Municipal. Soberania é, indiscutivelmente, mais
do que autonomia.
37. O estabelecimento é um instrumento, um meio, de que se vale a pessoa,
física ou jurídica, para o exercício da atividade econômica, não se confundindo com o
imóvel, nem exigindo a presença dele, assim como é irrelevante a integração no
estabelecimento dos bens e direitos.
38. O Superior Tribunal de Justiça defende como relevante, em qualquer caso,
o local da efetiva prestação do serviço, independente de onde esteja a sede ou o
estabelecimento do prestador.
39. Para que a expressão “estabelecimento prestador” se harmonize com a
Constituição, há que se entendê-la somente em relação ao local onde efetivamente os
serviços são prestados, sendo irrelevante, ainda, a circunstância de haver, ou não, a
presença física do prestador. Se um serviço for prestado de forma desvinculada de
determinado estabelecimento, ele deixará de ser “prestador”.
40. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça adotou a chamada
“interpretação conforme a Constituição”, a qual indica como vetor hermenêutico a
necessidade de optar, dentre as possíveis interpretações em torno de um texto
normativo, por aquela que melhor se ajusta aos ditames constitucionais, dentro de um
limite de razoabilidade. No caso em exame, quer se dizer que, ainda que a dicção literal
do artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, em um primeiro momento, remeta à conclusão da
impossibilidade de interpretar a expressão “estabelecimento prestador” como tendo o
sentido de “local onde os serviços são prestados”, a sua inserção no contexto
constitucional autoriza esse entendimento.
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41. O critério espacial, no caso do ISS, não é outro local senão aquele onde os
serviços foram prestados de forma definitiva. Para tanto, interessa onde se ultimou a
atividade-fim contratada entre tomador e prestador, sendo irrelevantes para tanto a
eventual existência de outros locais, municípios, onde tenham ocorrido ações
intermediárias (atividades-meio), ainda que necessárias à conclusão do serviço.
42. As decisões do Superior Tribunal de Justiça, proferidas sob a égide da Lei
Complementar nº 116/2003, mantiveram os mesmos argumentos utilizados nos
precedentes criados com base no Decreto-lei nº 406/68. Não há decisões recentes no
Supremo Tribunal Federal sobre o tema, que possam ser comparadas com o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
43. A Lei Complementar n° 116/2003, em seu artigo 3º, manteve a regra geral
prevista no artigo 12 do Decreto-Lei nº 406/68, não encampando, assim, a orientação
firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que a tenha utilizado em um grande
número de exceções. A complexidade da definição do critério espacial levada a efeito
pelo novo diploma resultou no ressurgimento das disputas entre os municípios.
44. O artigo 6º da Lei Complementar n° 116/2003 facultou aos municípios a
instituição da sistemática da retenção do ISS na fonte pelos tomadores dos serviços. As
únicas hipóteses válidas de atribuição de responsabilidade ao tomador, por meio da
retenção na fonte, serão: (a) quando o tomador estiver situado no mesmo município em
que se verifique o critério espacial para aquele serviço específico; e (b) quando,
obviamente, o serviço seja prestado em município onde estejam situados tomador e
prestador. Com exceção desses dois casos, a figura do substituto tributário será
violadora, tanto da Constituição como do Código Tributário Nacional.
45. A incidência do ISS na importação de serviços afigura-se inconstitucional,
em razão da necessidade de que o regime jurídico a ser aplicado em casos de
substituição tributária obrigatoriamente seja o do substituído, e não o regime do
substituto, assim como viola o Princípio da Territorialidade, nos casos em que o fato
tributário ocorra integralmente no exterior.
46. É legítimo o dispositivo previsto no artigo 156, § 3º, II, da Constituição,
por se tratar de uma competência especial atribuída ao Estado brasileiro para conceder
isenções, que objetivam proteger interesses nacionais relevantes, interesses que
transcendem aos das ordens jurídicas parciais, sem que disso possa resultar qualquer
ofensa ao Princípio da Autonomia Municipal.
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47. A regra subsidiária para a falta de estabelecimento – tanto na legislação
anterior como na atual, que desloca a competência para o município onde está
localizado o domicílio do prestador – está em flagrante contradição com a matriz
constitucional do ISS, donde se extrai que o critério espacial da hipótese de incidência,
por estar vinculado ao critério temporal, só poderia indicar o local em que se consumou
a prestação do serviço.
48. As dificuldades na fiscalização e na cobrança do ISS, nas hipóteses de
serviços meramente intelectuais – prestados sem a intermediação de um estabelecimento
prestador – assim como nos serviços em que seja difícil a identificação do local onde
ocorre a atividade-fim – apesar de extremamente relevantes dos pontos de vista pré e
pós-jurídico – não podem interferir no resultado da interpretação dos textos normativos
e, portanto, não são passíveis de análise no presente estudo.
49. Ao contrário da regra geral do estabelecimento prestador, a qual é passível
de uma interpretação conforme a Constituição, a regra prevista tanto no artigo 12 do
Decreto-lei nº 406/68 como no artigo 3º da Lei Complementar nº 116/2003, que desloca
o local de ocorrência do fato tributá
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