Ficha Técnica
BOLETIM DE SOCIOLOGIA MILITAR
Diretor: Coronel de Infantaria Fernando Manuel Oliveira da Cruz
Periodicidade: Anual
Conselho Científico: Maria de Lurdes Fonseca, Helena Carreiras, António Teixeira Fernandes,
António Firmino da Costa, Gen Silvestre Porto, Francisco Moita Flores, João Sedas Nunes, Maria
da Saudade Baltazar.
Chefe da Redação: Tenente-Coronel de Artilharia Amílcar José Teixeira da Cunha
Redação: Alferes RC Hélder Rafael dos Santos Moreira, Alferes RC Vítor Miguel Silva Gonçalves,
Rui Farelo
Autores: Alexandre Moura, Helena Carreiras, Isabel Ribeiro, Helena Jerónimo, Pedro Pinheiro,
Adelino Costa Cabral, Thiago Moraes, Rui Eusébio, Andreia Filipa Duarte Pires, Cândido Peixoto
Fernandes.
Edição: Centro de Psicologia Aplicada do Exército
ISSN: 2182 – 6226
BOLETIM DE SOCIOLOGIA MILITAR
N.º 3
CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA DO EXÉRCITO
CPAE 2012
INSTRUÇÕES AOS AUTORES
O Boletim de Sociologia Militar publica artigos e
notas de investigação, revisão ou discussão
teórica, nos domínios da Sociologia e de outras
Ciências Sociais, Humanas e do Comportamento,
que de alguma forma contribuam para o estudo ou
desenvolvimento da Instituição Militar.
Os artigos recebidos estão sujeitos à apreciação
do Conselho Científico e da Redação, sendo o seu
conteúdo da inteira responsabilidade dos autores.
Na apresentação dos artigos os autores devem
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1. Os artigos não deverão ultrapassar as 25
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2. Os originais deverão ser enviados num ficheiro
Word, Arial, tamanho 11 (espaço 1,5 cm), para o
Centro de Psicologia Aplicada do Exército, Praça
do Comércio, 1100-148 Lisboa, dirigido aos
Coordenadores de Redação, ou através de email:
[email protected].
3. Os artigos devem ser acompanhados de um
resumo em português e outro em inglês não
devendo ocupar mais que 10 linhas, cada um,
dessa mesma página. Deverá ser feito em letra
Arial, tamanho 9, com espaçamento de 1 linha. As
palavras- chave (Keywords) são obrigatórias e
colocadas a seguir ao Resumo (Abstract), (mínimo
3 palavras e máximo 7 palavras).
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título definitivo e a referência ao(s) seu(s) autore(s)
(instituição, categoria, área de especialização e
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se contribuírem fortemente para a clarificação do
artigo. Devem ser representados em folhas,
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claramente indicada. As figuras devem possuir
elevada qualidade gráfica, de modo a permitir a sua
reprodução sem perda apreciável de nitidez e a sua
eventual redução.
6. As referências e autores de obras devem obedecer
ao seguinte: (Robinson, 1978); (Piaget & Szeminka,
1941); (Bronckart, Papandropoulou & Kilcker, 1976);
(Van der Pligt et al., 1982); Freud (1924 a; 1924 b),
devendo ser listadas alfabeticamente, no final do
artigo, as referências bibliográficas (apenas as obras
referidas no texto), obedecendo ao seguinte formato:
Andersen, N. & Schalk, R. (1998). The psychological
contract in retrospect and prospect. Journal of
Organizational Behavior, 19, pp.637-647.
Chambel, M.J. (2005). Stress e Bem-Estar nas
Organizações. In A., Marques Pinto & A.
Lopes da Silva (2005). Stress e Bem-Estar.
Lisboa: Climepsi Editores.
Lazarus, R., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal
and copping. New York: Srpinger.
CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA DO EXÉRCITO (CPAE)
Contatos: 213 260 680, 916103247, 916103371
Correio Eletrónico: [email protected]
Sítio da Internet: http://www.exercito.pt
ÍNDICE
Gestão do desempenho dos militares do Exército: Uma proposta de mudança ..................... 3
Alexandre Moura, Isabel Ribeiro e Pedro Pinheiro
Do uniforme militar ao desvio e à reclusão – Um olhar sobre o Estabelecimento Prisional
Militar. .......................................................................................................................................... 22
Alexandre Moura e Helena Carreiras
Gestão de carreiras no Exército Português: Uma proposta de modelo aplicado .................. 66
Helena Jerónimo e Isabel Ribeiro
Gestão e desenvolvimento de carreiras: O caso da Marinha Portuguesa .............................. 86
Adelino Costa Cabral
Porque os homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres? Por
uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo ............................................ 121
Thiago Moraes
A incerteza do risco: ensaio relativamente ao tema sociedade de risco de acordo com
Ulrich Beck e Anthony Giddens............................................................................................... 142
Rui Eusébio
Dois olhares sobre a mesma perspectiva – sociedade do risco - Ulrich Beck E Anthony
Giddens ..................................................................................................................................... 152
Andreia Filipa Duarte Pires
O desemprego estrutural em Portugal (2001-2011): dois conceitos em conflito, devido às
mudanças da economia política .............................................................................................. 163
Cândido Peixoto Fernandes
Editorial
Coronel de Infantaria Fernando Manuel Oliveira da Cruz
Caros leitores,
Trazemos até vós o número 3 do Boletim de Sociologia Militar. O terceiro número
de uma publicação anual que procura reunir o que de qualidade se realiza numa área que
é cada vez mais desafiante, intensa e motivadora.
Tendo em conta as dificuldades financeiras que o País, o Exército e o Centro de
Psicologia Aplicada atravessam, foi tomada a decisão de se efetuar a presente publicação
em suporte informático. Não quisemos deixar de publicar os trabalhos que, no último ano,
foram sendo realizados no âmbito da investigação em Sociologia neste Centro e noutros
com os quais temos excelentes relações de amizade e cooperação.
O Boletim de Sociologia Militar pretende ser um espaço de encontro e de partilha.
É nossa intenção cumprir um desígnio científico e cultural no meio civil e militar, dando um
contributo epistemologicamente humilde mas esforçado e honesto.
A ligação à sociedade, designadamente através das Instituições de Ensino
Superior e Centros de Investigação, é um desígnio e uma realidade deste Centro.
Queremos cada vez mais mostrar a nossa Instituição à comunidade e interagir com ela,
contribuindo, na nossa área de atividade, com tudo aquilo que estiver ao nosso alcance. É
disso exemplo este Boletim de Sociologia.
Termino, agradecendo a todos os Militares e Civis que tornaram possível a
concretização deste Boletim de Sociologia.
Aos leitores, desejamos uma agradável e proveitosa leitura.
O Diretor
Fernando Manuel Oliveira da Cruz
Coronel de Infantaria
Boletim de Sociologia Militar
N.º 3 – 2012
PP. 3 a 21
GESTÃO DO DESEMPENHO DOS MILITARES DO EXÉRCITO:
UMA PROPOSTA DE MUDANÇA
Alexandre Moura*, Isabel Ribeiro** e Pedro Pinheiro ***
RESUMO
Este artigo faz parte de uma investigação desenvolvida no Centro de Psicologia Aplicada do Exército. A investigação
tem como principal objetivo constituir um contributo para um sistema de avaliação e gestão do desempenho que seja
adequado à especificidade militar, procurando reter a filosofia e o paradigma subjacente ao Sistema Integrado de
Gestão e Avaliação do Desempenho da Administração Pública (SIADAP).
Palavras-chave: Avaliação de desempenho; Gestão de desempenho; Competências; SIADAP; Exército
ABSTRACT
This article makes part of an investigation developed in Centro de Psicologia Aplicada do Exército. The research have
the main goal of constitute a contribution towards an evaluation system and performance management that suits to the
military specificity, seeking retain the philosophy and the underlying paradigm of Sistema de Gestão e Avaliação do
Desempenho da Administração Pública (SIADAP).
Keywords: Performance evaluation; Performance management; Skills; SIADAP; Army
INTRODUÇÃO
Em qualquer organização, a procura da excelência e do mérito devem estar sempre
presentes. Neste contexto, a avaliação e gestão do desempenho constituem um suporte essencial
para a gestão dos recursos humanos, contribuindo para a validação do recrutamento e da
seleção, em sintonia com os objetivos organizacionais e estratégicos da Organização,
possibilitando a identificação da evolução dos colaboradores, diagnosticar necessidades de
formação e melhoria dos postos e processos de trabalho, tendo sempre em vista dinâmicas de
evolução profissional numa perspetiva de distinção do mérito e da excelência. Todavia, estes
processos não poderão ser efetuados sem o reforço da intervenção dos colaboradores no
processo de avaliação dos serviços e das suas ações.
A Avaliação do Desempenho (AD) é uma necessidade imperiosa em qualquer instituição.
Deve ser justa, ponderada e baseada num modelo válido e actual. Deve privilegiar a excelência, a
qualidade e o mérito, visando contribuir para a coerência e harmonia dos serviços/acções dos
*
Major de Cavalaria, Centro de Psicologia Aplicada, Sociólogo
Alferes RC, Centro de Psicologia Aplicada, Socióloga
***
Alferes RC, Centro de Psicologia Aplicada, Sociólogo
**
3
Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
Comandantes/Dirigentes e demais colaboradores, promover a motivação e o desenvolvimento de
competências.
A satisfação, a motivação organizacional, o desenvolvimento de competências, o interesse,
a pró-actividade, o cumprimento rigoroso dos objectivos da Organização, podem ser mais
facilmente atingíveis se o Exército conseguir antecipadamente percepcionar os problemas, as
aspirações, expectativas de carreira e motivações, tendo em vista a definição de um modelo de
gestão de desempenho que consiga aliar as perspectivas organizacionais/institucionais, definidas
pela Instituição e a carreira individual desenvolvida pelo próprio militar, promovendo-se a
compatibilização dos interesses institucionais e individuais.
Com a avaliação dos colaboradores procurar-se-á contribuir para a melhoria da gestão dos
Recursos Humanos, desenvolver e consolidar práticas de avaliação, identificar as necessidades
de formação e desenvolvimento pessoal adequados à melhoria do desempenho dos serviços, dos
dirigentes e dos trabalhadores. A promoção da motivação, o desenvolvimento de competências e
qualificações, a formação ao longo da vida, são factores que também não devem ser descurados.
Neste contexto, procuramos investigar, discutir e propor um sistema de Gestão do
Desempenho adaptado ao Exército Português e à sua especificidade, que comungue das
orientações, perspectivas e filosofia do Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho
na Administração Pública (SIADAP). Este foi de uma forma sucinta, o objecto de estudo da nossa
investigação, contribuindo para a constituição de um sistema que motive, avalie e desenvolva os
militares na Organização.
Neste sentido apresentaremos um modelo conceptual, assente na gestão por objectivos e
num modelo por competências, permitindo o desenvolvimento dos recursos humanos em
conjugação com os objectivos gerais e estratégicos do Exército.
Esta investigação, autorizada por despacho de 24 de Maio de 2010 de S. Ex. General
CEME, pretende constituir, assim, um contributo para um sistema de avaliação e gestão do
desempenho. Vamos, aqui, apresentar uma proposta de um modelo conceptual, assente na
gestão por objetivos e num modelo por competências, permitindo o desenvolvimento dos recursos
humanos em conjugação com os objetivos organizacionais, estratégicos, de gestão e operacionais
do Exército.
Pretendemos um sistema de avaliação de desempenho contextualizado com a Missão e a
Visão da Organização e interligado com todas as práticas de Recursos Humanos da Organização
(Formação, Recompensas, Recrutamento e Selecção, Desenvolvimento de Carreiras, Gestão de
Competências).
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Boletim de Sociologia Militar n.º 3
AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO E/OU GESTÃO DO DESEMPENHO
Na perspetiva de alguns autores, o desempenho pode ser concebido enquanto
comportamento (meios) ou enquanto resultados (fins) (Caetano, 2007: 74), ou como um ato de
cumprir (…) uma determinada missão ou tarefa aprioristicamente delineada… (Chiavenato, 2004:
98). Na perfectiva destes autores, o desempenho está intimamente relacionado com a motivação
e com os conhecimentos, capacidades e habilidades demonstradas.
Marras (2000) define desempenho como o acto ou efeito de cumprir ou executar
determinada missão ou meta previamente traçada.
Para António Caetano (1998), o desempenho pode, por um lado, ser entendido como um
comportamento, sendo que nesta perspetiva de ação centra-se nas exigências das funções. Por
outro lado, na perspetiva dos resultados, focaliza-se nos resultados que derivam das atividades
levadas a cabo pelos colaboradores num determinado período de tempo.
A avaliação de desempenho profissional constitui certamente um dos fenómenos que
maior perturbação introduz no funcionamento regular de qualquer organização (Caetano, 2008).
Ainda assim, vários autores têm evidenciado esta prática dos recursos humanos como um agente
de sucesso nas organizações e da qual depende tanto o seu sucesso estratégico como a sua
capacidade competitiva, pressupondo-se que o desempenho da organização deriva da
confluência do desempenho individual de todos os seus colaboradores.
O conceito de avaliação de desempenho pode ser entendido como um processo de análise
metódica pelo qual uma organização identifica em que medida o desempenho de cada trabalhador
contribui para atingir os objectivos estratégicos e alcançar os resultados, a fim de se identificar
quais os aspectos positivos e negativos, tentando, simultaneamente, encontrar oportunidades de
evolução, proporcionando ao avaliado a possibilidade de tomar conhecimento acerca do
desempenho que é espectável.
Quando bem conduzida, a avaliação de desempenho, pode representar mais-valias tanto
para a organização, como para o avaliador, como ainda para o avaliado, uma vez que, em
conjunto, as diferentes partes envolvidas podem estabelecer processos e procedimentos mais
eficazes que conduzam a níveis de desempenho superior, adaptados aos diferentes
departamentos e funções. Permite, também, definir objectivos claros para o futuro, avaliar o
potencial de desenvolvimento e estabelecer os meios apropriados para motivar os indivíduos
(Yemm, 2005).
Assim, torna-se imperioso determinar como qualificar/medir/quantificar o desempenho,
sendo esta uma das questões mais críticas de qualquer gestor de recursos humanos. A
quantificação/medição do desempenho, segundo Rui Gonçalves (2008), é um acto de avaliação
que obriga a uma comparação que aferirá o grau de concordância entre as partes em avaliação,
exigindo uma recolha de indicadores que permitam realizar comparações com níveis de
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Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
desempenhos anteriores e desempenhos pretendidos. Nesta sequência, podem-se utilizar
inúmeros critérios de comparação para efeitos de avaliação de desempenho numa determinada
organização. Os mais frequentes alicerçam-se em objetivos e em competências. Todavia, existem
situações em que é muito difícil encontrar critérios ou medidas objetivas, pelo que tem de se optar
por indicadores qualitativos, os quais, na maioria das vezes, são avaliados de uma forma mais
subjetiva. Consequentemente, julgamos ser consensual admitir que a componente subjetiva na
medição do desempenho é difícil de excluir totalmente.
De acordo com inúmeros autores, a Avaliação do Desempenho (AD) tende a ser inserida
num conceito mais abrangente denominado de Gestão do Desempenho (GD).
A Gestão do Desempenho poderá ser entendida como um processo societal de influência,
comunicação e negociação entre avaliador e avaliado, que ocorre no âmbito de uma qualquer
atividade com o objetivo de estabelecer entendimentos mútuos em relação às tarefas que o
avaliado tem de efetuar, aos resultados esperados, ao contributo desses resultados para os
objetivos da organização, à forma como vai ser medido o desempenho e à identificação e
correção de desvios no desempenho efetivo. As componentes de um sistema de gestão do
desempenho são as que se enumeram: O planeamento do desempenho; o feedback/comunicação
contínua sobre o desempenho; a(s) reunião(ões) de desempenho propriamente ditas; a
diferenciação; a harmonização; o diagnóstico de ensino e desempenho e, cumulativamente a
todas as anteriores, o registo/observação contínua e recolha de dados.
Não podemos considerar a avaliação de desempenho, conforme argumentam Cascão &
Cunha (1998), um fim, mas antes um meio para melhorar os resultados dos recursos humanos na
organização. Nesta perspectiva, não pode restringir-se ao julgamento superficial e unilateral das
chefias a respeito do comportamento funcional dos subordinados. Consequentemente, emerge a
necessidade de estabelecer perspectivas de comum acordo com o avaliado.
Independentemente do que está em causa, terá de se considerar, sempre, a cultura
organizacional e o contexto enquanto fatores delimitadores do desempenho, uma vez que o
sujeito adota determinados comportamentos na execução de tarefas, num contexto particular, com
vista na obtenção de resultados específicos (Caetano, 2008)
MÉTODOS PARA A AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO
O desenvolvimento de um processo de avaliação do desempenho deve ter em conta os
intervenientes, internos e externos, importantes para a organização, bem como o contexto que
influencia a tomada de decisão. Neste sentido, podemos identificar diferentes métodos para a
avaliação de desempenho de desempenho, dos quais Caetano (2008) destaca os que se
focalizam na pessoa, no comportamento, no contexto e nos resultados.
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Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Os sistemas tradicionalistas procuram avaliar o desempenho focalizando-se “nas pessoas”,
nas suas características ou traços de personalidade. No entanto, a validação do sistema, a sua
praticabilidade e a investigação demonstraram fragilidades e alguma perversidade, pois a
avaliação baseava-se em julgamentos acerca dos atributos da personalidade do avaliado, não
estando alicerçado em qualquer critério relacionado com o desempenho na função. Todavia, a
avaliação do desempenho através do julgamento destes atributos voltou a surgir nos últimos anos,
agora sob a designação de avaliação por competências, interessando não a avaliação da
competência em si mas a demonstração efetiva e indubitável dessa competência no desempenho
das tarefas que estão atribuídas avaliado.
Como alternativa ao sistema mencionado anteriormente, surgiu o sistema focalizado “nos
comportamentos”. As escalas de observação comportamental consistem em descrições precisas
de comportamentos a adotar ou adotados pelos colaboradores, os quais podem ser adequadas
em certo tipo de funções pouco complexas e relativamente padronizados.
Um outro sistema de avaliação e gestão do desempenho preocupa-se com a “comparação
de pessoas no contexto social”. Consiste num método de avaliação que compara pessoas com
cargos semelhantes para apurar quem são os melhores, procedendo-se a ordenações de
avaliados. É um método que acarreta uma grande dose de subjetividade, pelo que acreditamos
que apenas deve ser tomado em consideração em conjugação com outros métodos.
O sistema de medição do desempenho focalizado “nos resultados”, também conhecido por
avaliação por objetivos, é o que se encontra mais generalizado no presente momento. Diversos
autores consideram-no como a melhor forma de avaliar o desempenho. A avaliação por objetivos
mede o desempenho do colaborador de acordo com uma série de objetivos/resultados/metas
negociadas individualmente para cada colaborador. Os objetivos e os resultados são definidos
durante a fase de planeamento da avaliação e assumidos de forma a serem medidos
objetivamente.
A organização comunica ao colaborador quais são as expectativas relativas ao seu
desempenho para o ciclo avaliativo que e vai seguir. O conhecimento destas metas, resultados e
expectativas pode permitir ao colaborador regular a sua própria atividade, organizar o seu trabalho
e estabelecer prioridades, aumentando assim a sua autonomia e responsabilidade. O
conhecimento das metas a atingir possibilita-lhe a identificação dos desvios que está a cometer e,
eventualmente, identificar os fatores que o determinaram e as medidas de correção a concretizar,
ficando mais predisposto para aceitar feedback e/ou aconselhamento por parte do avaliador
As nossas propostas, de acordo com o praticado na maioria das organizações atuais,
focaliza-se em mais do que um aspeto do desempenho pelo que se pode designar de “sistema de
gestão misto”. Na verdade, as propostas que mais à frente apresentaremos, combinam
essencialmente dois métodos de avaliação (desempenho focalizado nos resultados e
demonstração efetiva de um certo número de competências obrigatórias e complementares) e,
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Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
marginalmente, um terceiro método (comparação em contexto laboral) ao procedermos à
comparação de pares.
METODOLOGIA
Um trabalho de investigação visa acima de tudo, compreender melhor os significados de
um acontecimento ou de uma conduta, fazer inteligentemente o ponto da situação, captar com
maior perspicácia as lógicas de funcionamento de uma organização, reflectir acertadamente sobre
as implicações de uma decisão política, ou ainda compreender com mais nitidez como
determinadas pessoas apreendem um problema e a tornar visíveis alguns dos fundamentos das
suas representações (Quivy, 1992).
Em termos metodológicos, efectuamos um estudo de carácter exploratório de natureza
essencialmente qualitativa, utilizando técnicas documentais modernas - segundo a visão de
António Firmino da Costa (1986) - recorrendo à análise de conteúdo e a revisões bibliográficas e
documentais específicas quer nacionais quer estrangeiras, sobretudo na área da gestão dos
Recursos Humanos, com incidência na Gestão do Desempenho. A análise documental
caracteriza-se por ser uma fonte rica e segura de informação, tem um baixo custo e trata-se de
um excelente utensílio para estimular o espírito crítico ajudando a perceber algumas questões.
Note-se que a análise documental é uma técnica muito utilizada na maioria das investigações em
Ciências Sociais, o que revela ser uma boa técnica, sempre em mudança e muito precisa (Quivy,
1992). Convém, porém, referir que nem tudo se apresenta como vantagem, dado que pode trazer
alguns constrangimentos, como a falta de objectividade dos documentos ou a omissão de
informação relevante.
Com o intuito de sustentar ainda mais o nosso trabalho, captámos determinadas
representações e narrativas, utilizando técnicas não documentais como a observação não
participante, realizando entrevistas semi-directivas e directivas a Informantes Privilegiados,
designadamente: ao Exmo. Chefe da Divisão de Recursos do Estado Maior do Exército, ao Exmo.
Director da Direcção de Administração de Recursos Humanos, ao Exmo. Chefe da Repartição de
Pessoal Militar/DARH, aos Exmos. Comandantes e Oficiais de Pessoal das três Brigadas do
Exército, ao Exmo. 2º Cmdt AM e ao Exmo. Coordenador Área Ensino Específico do Exército
(IESM)
A deslocação de uma equipa de investigadores a outros Exércitos -Espanhol e Holandês possibilitou o contacto com a realidade avaliativa destes, permitindo obter uma maior riqueza de
informação. A escolha dos referidos Exércitos deveu-se fundamentalmente a aspectos
relacionados com a proximidade geográfica e a alguma comunhão/partilha de valores e modos de
actuação (Exército Espanhol) e o número aproximado de efectivos (Exército Holandês).
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Boletim de Sociologia Militar n.º 3
PROPOSTA DE INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO APLICADO AO EXÉRCITO
De seguida, gostaríamos de salientar alguns aspetos que, de acordo com Adalberto
Chiavenato (2004), são fundamentais durante a investigação e eventual implementação de um
sistema de avaliação do desempenho e que nortearam a nossa ação. O primeiro aspeto que
tivemos em consideração consistiu em verificar se a organização necessitaria, efetivamente, de
um novo método/sistema de avaliação. Tendo em conta as intenções do Comando do Exército, e
análise das entrevistas exploratórias, julgamos que a resposta é positiva. Neste caso, passa a
existir a obrigatoriedade de clarificar qual a relação do sistema de avaliação com a estratégia
global da organização e com os valores organizacionais/estratégicos pretendidos, tornando-se
necessário que a alta direção da organização (neste caso o Comando do Exército) esteja
envolvida neste processo.
O segundo aspeto que pretendemos clarificar, foi os “objetivos da avaliação”. Tentámos
definir com alguma clareza qual a finalidade do sistema de avaliação a criar, uma vez que não nos
foram transmitidas essas intenções. Apesar disso, acreditamos que o Exército Português terá este
pormenor equacionado. De facto, julga Chiavenato (2004), é importante definir se o sistema de
avaliação do desempenho se destina a justificar/fundamentar decisões sobre gestão de carreiras,
escolhas, nomeações; a identificar as necessidades de formação; a promover os mais aptos; a
recompensar monetariamente os que se distinguem. Os objetivos equacionados para o sistema
de avaliação condicionam e influenciam o tipo de sistema a criar, nomeadamente no que se refere
aos critérios e processos de medição, aos seus intervenientes, aos procedimentos e aos
processos de comunicação. Neste aspeto, julgamos que existe a necessidade de definir como é
que este sistema de avaliação vai interagir com os outros sistemas de gestão em uso, de forma a
implementar as necessárias alterações ou ajustamentos em cada um deles. Este é um trabalho
que necessitará de ser iniciado e complementado futuramente e que não mereceu a nossa
atenção.
Como qualquer sistema de avaliação é um meio para se gerirem os trabalhadores de uma
qualquer organização de modo promover-se a sua coordenação e desenvolvimento, só se atingirá
esta premissa se o sistema de avaliação e gestão do desempenho for aceite, bem conhecido e
assumido como adequado pelas diversas hierarquias. Este é um facto que necessitará de uma
especial atenção no caso do Exército Português.
Outro aspeto que tivemos em consideração foi “o que avaliar”. Como já foi referido,
existem diversos aspetos relacionados com o desempenho que podem ser, ou não, utilizados.
Referimo-nos a resultados/objetivos, comportamentos, atitudes, conhecimentos, habilidades,
atributos de personalidade. Após decidir o que avaliar, tivemos de decidir o que medir. Decidimos
que a avaliação contemplaria critérios mistos – objetivos e competências – sendo necessário
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Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
definir eventuais combinações e respetivas ponderações para a avaliação global. Sobre estes dois
pontos falaremos mais à frente.
“Quem deve estar envolvido na avaliação” foi o aspeto seguinte que mereceu a nossa
atenção. Usualmente, a conceção de um sistema de avaliação e gestão do desempenho deve ser
liderado pelo seu departamento de recursos humanos e formado por uma equipa multidisciplinar
que envolva representantes de outras unidades orgânicas – na maioria das vezes recebendo a
apoio de investigadores/consultores externos à organização – de modo a acompanharem todo o
processo, contribuindo-se assim para a diminuição das desconfianças e promovendo-se a
adaptação do futuro sistema de avaliação às efetivas necessidades e objetivos da organização.
Com esta participação “multidisciplinar e universal” de todos os departamentos estimula-se e
motiva-se os colaboradores para a mudança e facilita-se a difusão e aceitação do sistema. O
Comando do exército não entendeu, devido a critérios de privacidade e descrição, alargar a grupo
de trabalho a mais intervenientes, apesar da nossa proposta mencionar essa intenção. Assim, o
grupo de trabalho ficou apenas constituído por elementos pertencentes ao CPAE.
Outro aspeto que mereceu a nossa atenção foi quais os “alvos da avaliação”. Sabendo que
a filosofia do SIADAP 1, subsistema de avaliação do desempenho dos serviços da Administração
pública e SIADAP 2, avaliação dos dirigentes superiores e intermédios, contribuem para o
reconhecimento de que as equipas e as organizações devem ser também avaliadas, sentimos a
necessidade de determinar até onde iria o nosso trabalho. Com efeito, tentámos efetuar duas
Fichas de Avaliação do Desempenho (FAD para Oficiais e Sargentos e FAD para Praças) que se
preocupam fundamentalmente com a avaliação do desempenho dos militares (equivalente à
filosofia subjacente ao SIADAP 2 – Oficias e Sargentos e SIADAP 3 - Praças) e não tanto sobre a
organização, pois seria efetuar um trabalho que não nos foi pedido.
Depois preocupámo-nos com a decisão de “quem avalia, quais os avaliadores”. Para esta
decisão tivemos em consideração a cultura organizacional da nossa instituição, a sua história e
valores, os custos associados, a burocracia a criar, a sua futura eficácia e eficiência. Alguns
destes aspetos necessitarão de ser esclarecidos futuramente, caso a nossa proposta seja aceite.
Usualmente, a principal fonte de informação na nossa instituição é o chefe imediato do
avaliado, apesar do RAMME apenas admitir como primeiro avaliador um Capitão. Julgamos que
na avaliação dos postos mais baixos da hierarquia militar – Cabos e Soldados – o primeiro
avaliador possa ser Oficial Subalterno, o Sargento de Pelotão ou mesmo um dos demais
Sargentos do Pelotão, desde que tenha a maturidade organizacional para o fazer.
Todavia, tendo em consideração as alterações organizacionais que têm ocorrido, é usual o
próprio avaliado ser fonte de informação, o que se designa por auto-avaliação. Assim, na
generalidade dos sistemas em uso são consideradas três fontes de informação: O avaliado, o
chefe imediato e o chefe seguinte. Na nossa proposta, tendo em consideração a cultura
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Boletim de Sociologia Militar n.º 3
organizacional da Instituição, adicionámos o Comandante/Diretor/Chefe ao conjunto de
avaliadores.
Após as definições anteriores, tentámos criar o(s) documento(s) que registará(ão) o
processo de avaliação – o “formulário(s) de avaliação” que designámos por FAD. Tentámos
manter o formulário o mais simples possível, tomando como referência vários formulários como o
do SIADAP, FAI da Marinha Portuguesa, do Exército Português, da Força Aérea Portuguesa, do
Exército dos Estados Unidos da América, do Exército Espanhol, das Forças Armadas dos Países
Baixos, do Exército Brasileiro, international evaluation report usado em ambiente OTAN, entre
outros formulários como o do Banco Santander Totta e da Caixa geral de Depósitos.
CRITÉRIOS DE ESCOLHA DAS COMPETÊNCIAS
A definição de uma linha estratégica a que uma organização se compromete para levar a
cabo a sua missão, permite a identificação de um conjunto de actividades e tarefas indispensáveis
para a concretizar. Essas actividades são agrupadas em cargos e funções com determinada
complexidade e grau de responsabilidade. É então, preocupação de qualquer organização, que os
seus colaboradores detenham um conjunto de conhecimentos, capacidades, atitudes e
comportamentos que permitam atingir um bom desempenho. Este conjunto de conhecimentos e
comportamentos denominam-se competências.
A identificação das competências numa organização deve assentar em diversos tipos de
metodologias de análise e descrição de funções. Como exemplos podem ser identificados os
incidentes críticos, os questionários estruturados, a observação, as descrições de funções
anteriores, as entrevistas, os formulários de avaliação de desempenho, etc. (Cunha, M.P, et al,
2010, p.558).
Desta forma, teremos que assumir, que para fazer correctamente o levantamento das
competências seria necessário uma análise e descrição de funções de todos os cargos do
Exército, que permitiria identificar o conjunto de actividades e tarefas que o integram, bem como
os factores críticos do seu sucesso. No entanto, devido a limitações temporais, para a realização
do presente Estudo, não foi utilizada essa metodologia.
Para a identificação das competências tivemos como ponto de partida o modelo utilizado
no estudo realizado sobre o Perfil do Oficial do Exército oriundo da AM no qual os autores
consideraram que o modelo que o Exército Português poderia adoptar, deveria por um lado
sustentar-se nos valores e características, qualidades pessoais, e incluir competências definidas
como acções, mas também como processos, o que vem de acordo com Spencer e Spencer
(1993), referido anteriormente, uma vez que procura representar a totalidade do iceberg. Levando
em conta Cascão (2004), o autor define três aspectos essenciais em relação ao tratamento a dar
às competências:
11
Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
- Uma orientação prioritária para o trabalho e para as suas exigências funcionais;
- Uma orientação, que embora parta das exigências do trabalho, se concentre na
interacção constante entre o sujeito e a função no sentido de mobilizar as características
individuais para a construção de desempenhos;
- Uma orientação centrada essencialmente na pessoa e nos comportamentos
evidenciados, nomeadamente os baseados em desempenhos superiores;
- A necessidade de um modelo de competências, aparece na maior parte das
organizações ligada à gestão e por isso muito centrada nas acções e nos desempenhos, porém o
Exército como escola empresa, quando pensa em acções, pensa em simultâneo em formação e
selecção. O modo de descrição das competências no Exército, deve por isso incluir as descrições
comportamentais, acções concretas, mas também os processos, uma vez que é a partir destes
que se podem desenhar curricula ou desenvolver requisitos para a selecção de pessoal (in Silva,
et al, 2006, p.31).
As competências podem ser transversais às organizações, sendo uma ferramenta
poderosa ao serviço de outras práticas e políticas de gestão de pessoas. Segundo esta
perspectiva procuramos identificar um conjunto de competências para os militares do Exército
Português compatíveis com os valores, a missão e a estratégia da Organização combinado com
outros modelos. Para tentarmos obter uma seleção o mais rigorosa e o mais criteriosa possível
procuramos fazer uma análise e uma comparação entre:
- As competências identificadas nos vários ramos das Forças Armadas, Exército, Marinha
e Força Aérea;
-As competências avaliadas no Exército Espanhol, Exército Holandês e na Ficha de
Avaliação Internacional (Nato);
- O perfil de competências para cada um dos grupos profissionais da Administração
Pública definidos no SIADAP.
- As competências requisitadas, actualmente, por outras organizações (por exemplo,
resiliência e adaptabilidade). Tendo em conta a conjectura económica e social que o País
atravessa, as empresas procuram-se adaptar às constantes mudanças para que possam
continuar a manterem-se competitivas, as Forças Armadas também têm essa necessidade de
procurar novas respostas e de se adaptar às crescentes exigências.
Após o estudo, a comparação e a discussão para chegarmos ao Perfil de competências
que propomos para Oficiais/Sargentos e para as Praças tivemos em consideração os seguintes
aspectos:
- Os valores e as atitudes por que, Oficiais, Sargentos e Praças, pautam a sua acção;
- As actividades desempenhadas bem como o grau de exigência;
- As competências que mobilizam na realização dessas actividades;
- Os conhecimentos que necessitam de possuir;
12
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
- Em que condições ambientais ou outras e sob que exigências físicas, sensoriais ou
Psico-motoras desenvolvem a sua actividade profissional.
Procurámos definir um número de competências que torne possível a sua observação
eficaz e objectiva. Em regra, o perfil de uma função deve ter entre 8 e 12 competências, no
somatório das genéricas e específicas (Camara, P, 2007, p.359).
Através da análise referida em cima, construímos um modelo de desempenho que define
critérios de competências a diferentes níveis tendo em conta o grau de complexidade das tarefas
e o nível de responsabilidade. Debruçamo-nos, então, sobre a identificação de competências
específicas de alguns postos e as competências comuns a todos - competências transversais.
As competências transversais a todos os militares (Oficiais, Sargentos e Praças) estão
sobretudo, ligadas à cultura da Organização: missão, objectivos e valores, como já referimos.
Para Oficiais e Sargentos identificamos o seguinte conjunto de competências comuns:
resiliência, inteligência prática, trabalho em equipa e cooperação, conhecimento técnicoprofissional, comunicação, adaptabilidade, relações interpessoais, sentido de responsabilidade e
autonomia e iniciativa.
Contudo, as funções do Sargento e do Oficial requerem, por vezes, exigências diferentes.
Desta forma definimos algumas competências específicas, complementares, que só serão
observados em determinados casos e por isso escolhidas e negociadas (duas das cinco) entre
avaliador e avaliado. Assim foram definidas: liderança, planeamento e organização, negociação e
persuasão, capacidade de decisão, desenvolvimento pessoal.
No caso das Praças foram identificadas as seguintes competências transversais:
resiliência, trabalho em equipa, conhecimento técnico-profissional, relações interpessoais,
adaptabilidade, sentido de responsabilidade, disponibilidade, apresentação pessoal.
Também aqui, tendo em consideração algumas funções mais exigentes que outras, foram
definidas as seguintes competências complementares: iniciativa, capacidade de decisão e
desenvolvimento pessoal.
Ainda que algumas competências sejam comuns entre Oficiais/Sargentos e as Praças, as
descrições são diferentes, variando segundo o nível de responsabilidade. Diferencia-se, também,
a descrição dos indicadores comportamentais observáveis para cada nível.
Chegámos a um perfil de competências que deverá ser observado em todos os militares
das respectivas categorias. No entanto, alguns deverão, tendencialmente, ser apoiados para
conseguir
o
desenvolvimento
pretendido:
formação
on
the
job,
acompanhamento
e
aconselhamento pela chefia (coaching), etc.
A avaliação das competências será feita numa escala de um (1) a cinco (5): 1“Competência não demonstrada ou inexistente”, 3- “Competência demonstrada”, 5- “Competência
demonstrada a um nível elevado”.
13
Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
O processo de desenvolvimento de competências é um processo de aprendizagem
organizacional que pedirá um certo tempo até ser interiorizado pelos seus destinatários
(Câmara,P., 2007, p.359). É importante referir que o Perfil de competências não é estático e
definitivo, terá que ser reformulado e actualizado.
CICLO DE GESTÃO DE DESEMPENHO: ADAPTAÇÃO DO SIADAP AO EXÉRCITO
O novo sistema de avaliação de desempenho na função pública apresenta alguns
pressupostos que poderiam ser úteis à instituição militar, no entanto, não podemos esquecer que
o Exército não é um serviço público comum. Vimos que a carreira militar assenta em princípios e
critérios que não são equiparáveis aos definidos para a Administração Pública comum.
No entanto, não quer dizer que o Exército não se deva reger por princípios idênticos aos
serviços do Estado, embora adaptados à sua medida. Aqui os princípios da transparência, da
diferenciação do mérito por resultados devem ser analisados.
O Exército desde cedo desenvolveu e implementou um sistema de avaliação dos seus
militares (RAMME), que já contempla algumas especificidades mencionadas. No entanto, de
acordo com o Comando do Exército, a precisar de uma revisão.
Entende-se que a revisão do actual Sistema de Avaliação dos Militares do Exército
(avaliação individual) deverá ter como referência o modelo de avaliação utilizado na administração
pública, o SIADAP.
De acordo com o mencionado anteriormente, podemos aludir que apenas um sistema que
se baseie na GPO, modelo por competências e orientação para resultados permitirá seguir o
modelo conceptual do SIADAP e, simultaneamente responder às necessidades de garantir um
sistema de gestão do desempenho moderno, focado no desenvolvimento dos recursos humanos e
no progresso organizacional.
O SIADAP assenta numa concepção de gestão dos serviços públicos centrada em
objectivos previamente fixados. Este sistema define objectivos como o “parâmetro de avaliação
que traduz a previsão dos resultados que se pretendem alcançar no tempo, em regra
quantificáveis” (Art.4º,alínea e).
Também no RAMME, está explícito que a avaliação deve ter como principal preocupação
os objectivos propostos, ou seja, deve assentar na avaliação dos resultados. Deveremos ter em
conta que os objectivos a que se propõe medir devem ser flexíveis, claros e adequados aos meios
disponíveis. Neste sentido, tanto a avaliação da administração pública como a avaliação militar
estão em harmonia.
Desta forma, insistimos num sistema de gestão do desempenho que desenvolva uma
cultura de confiança e que estimule a participação de todos. Assim, consideramos essencial uma
14
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
avaliação de desempenho que envolva superiores hierárquicos, subordinados e a própria
organização em todo o processo.
Apresentamos um modelo misto que combine resultados do desempenho e indicadores
comportamentais. Os modelos mistos “avaliam e recompensam o desempenho e a competência:
aquilo que efectivamente os colaboradores fizeram no último ano e como fizeram; as
características mostradas que predizem um desempenho superior no trabalho actual ou no futuro”
(Cascão, F, 2005, p.93).
Sabemos que o tema “avaliação de desempenho” é bastante delicado pelo que temos que
ter cuidado para que o programa de avaliação não se torne mais prejudicial que benéfico,
procurando não cair no erro de em vez de motivar os colaboradores, contribuir para a
desmotivação e consequente quebra de rendimento.
PROPOSTA DE CICLO DE GESTÃO DE DESEMPENHO DO EXÉRCITO
A avaliação de desempenho individual deve estar integrada no ciclo de gestão de uma
organização. Tal como se encontra previsto no SIADAP, o sistema de avaliação no Exército deve
funcionar de uma forma integrada, em que os objectivos individuais resultam do desdobramento
dos objectivos da organização. A literatura atribui a este método a definição de “cascata” onde os
objectivos vão sendo decompostos do topo até à base.
É importante que toda a organização se envolva no processo de gestão do desempenho.
Cada individuo deve ter presente que para que a organização cumpra os seus objectivos é
necessário que cada um, individualmente e/ou em equipa cumpra os objectivos que lhe estão
atribuídos. Assim, a definição dos objectivos e resultados a atingir pelas unidades orgânicas deve
envolver superiores hierárquicos e subordinados, assegurando as prioridades e o alinhamento
interno da actividade de serviço.
A planificação em cascata deve evidenciar o contributo de cada unidade orgânica para os
resultados finais pretendidos. Podemos dizer, que neste sentido, já existe uma adaptação do
Exército materializada na directiva do Exército para o Biénio 2010-2011 apresentada por Sua Ex.ª
o General CEME.
A partir dos objectivos operacionais, os organismos ou serviços, elaboram o seu plano de
actividades para o ano seguinte, incluindo os objectivos, actividades, indicadores de desempenho
do serviço e de cada unidade orgânica (UO). Com a elaboração do plano de actividades, inicia-se
o ciclo de gestão do serviço, que para além do plano de actividades, e conforme o art.º 8º do
SIADAP, inclui a fixação dos objectivos do serviço para o ano seguinte, elaboração e aprovação
do mapa de pessoal, elaboração e aprovação da proposta de orçamento, monitorização e revisão
dos objectivos do serviço e das UO e elaboração do relatório de actividades (Saraiva, 2010, p.75).
15
Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
Propomos uma GD que contemple o alinhamento entre os resultados individuais e os
objectivos organizacionais a par dos valores, da missão e da estratégia da organização. A
avaliação do desempenho pode ajudar a perceber essa relação entre desempenho organizacional
e desempenho individual.
Numa organização é difícil assegurar que todos avaliem com o mesmo rigor e equidade.
Desta forma, antes de partirmos para a avaliação individual devemos ter em conta uma das
principais etapas do processo de avaliação, o planeamento, onde serão uniformizados e
definidos os critérios de avaliação.
Após todo o planeamento, o ciclo de desempenho deve, então, iniciar com a reunião de
contratualização dos objetivos onde se procede à fixação, entre avaliador e avaliado, do
conjunto de objectivos a atingir. Deve ainda ser acordado entre as partes o conjunto de meios de
apoio de que o avaliado possa necessitar para poder atingir os objectivos.
Iniciado o ciclo de desempenho, o superior hierárquico deve fazer o acompanhamento do
seu colaborador, dando-lhe aconselhamento e orientação (coaching) e , pelo menos, duas vezes
durante esse ciclo, através das entrevistas de feedback, fazer o ponto de situação com o
colaborador acerca do seu desempenho (feedback), calibrando os objectivos, se necessário, e
corrigindo desvios que tenham surgido, de forma a optimizar a contribuição do colaborador para
que os objectivos sejam atingidos.
O sistema de avaliação por objectivos permite que estes sejam reajustados, por diversos
motivos que impeçam a concretização dos mesmos. A reformulação dos objectivos, no entanto,
deve ser evitada pelo que será importante ter em conta em que circunstancias devem ocorrer.
A reformulação dos objectivos decorre do processo de acompanhamento e feedback
consistindo na alteração dos objectivos ou mesmo na eliminação dos mesmos.
O avaliado deverá proceder à sua auto-avaliação, onde este deve indicar os seus pontos
fortes e as suas necessidades de desenvolvimento. Esta realiza-se através do preenchimento de
uma ficha a ser analisada pelo avaliador conjuntamente com o avaliado. Servirá apenas de apoio
para a avaliação não se constituindo como um critério vinculativo na avaliação.
A harmonização é outro passo a ter em conta. É difícil assegurar que, numa organização
com a dimensão do Exército, todas as chefias utilizem os mesmos critérios com o rigor a que
procedem. Assim, a “calibragem” das classificações deve ser feita por quem tenha uma visão
global da instituição.
O ciclo de desempenho é encerrado com a entrevista de avaliação que, agendada com
antecedência e preparada com o devido cuidado, conduzirá à avaliação global do desempenho do
avaliado. Esta etapa poderá revelar-se bastante útil para aumentar o grau de envolvimento entre
avaliador e avaliado.
16
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
RECOMPENSAS
No final do ciclo avaliativo não nos podemos esquecer de recompensar os melhores
desempenhos. Quando discutimos um sistema de avaliação e de gestão do desempenho dos
colaboradores não podemos deixar de falar do sistema de recompensas. A avaliação de
desempenho tem que ter consequências. Os colaboradores devem saber que o seu
comportamento será recompensado, ou punido, de acordo com seu bom ou mau desempenho.
Consideramos que as recompensas intrínsecas serão as que mais se adequarão à
realidade militar. Apesar de algumas já existirem como é o caso dos louvores, e outras, como já
vimos anteriormente, estas devem ser atribuídas pelo desempenho meritório e digno de referência
do militar e não pelo tempo de serviço que este detém.
Os mecanismos de reconhecimento do mérito consistem essencialmente em formas de dar
visibilidade
ao
contributo
dos
colaboradores,
prestigiando,
distinguindo
e
premiando
comportamentos e acções que contribuíram para atingir os objectivos, constituindo um reforço
positivo na motivação. Julgámos que o desempenho relevante (nota superior ou igual a 4) deveria
ser recompensado. As recompensas poderão materializar-se em: Quadros informativos nos
espaços físicos comuns da organização onde se podem incluir menções honrosas para os
melhores desempenhos; Informações na intranet ou no site da internet da Organização;
recompensas de carácter temporal, onde em função do desempenho, correspondem a regalias
traduzidas, por exemplo, em dias suplementares de férias, isenções de horário, dias de mérito,
condecorações, etc.
CONCLUSÕES E PROPOSTAS
A implementação de um novo sistema de avaliação não será uma tarefa fácil e exigirá o
consumo de uma grande quantidade de recursos financeiros, formativos, temporais e espaciais,
por parte de avaliadores e avaliados. Todavia, julgamos ser indispensável a sua execução.
Desenvolver e implementar um novo sistema de gestão de desempenho implicará uma
mudança nas rotinas e susceptibilidades, promovendo a adequação das acções às novas
dinâmicas avaliativas. Adoptar um modelo ainda que válido e desafiante, tendo em consideração
práticas anteriores, poderá ser um processo moroso necessitando de algum tempo para
interiorizar os seus efeitos, exigindo-se uma nova postura para avaliados e avaliadores, induzida
ou não por acções de formação que desenvolvam as necessárias competências nos
intervenientes no processo.
Afigura-se como primordial a consciencialização real da importância da avaliação de
desempenho no percurso do militar. Esta deverá ser encarada como uma forma de medir e
diferenciar o desempenho e, sobretudo, deverá ter um objectivo pedagógico. Através da avaliação
pretende-se analisar a competência do indivíduo no exercício do cargo. O objectivo será o de
17
Gestão do Desempenho dos Militares do Exército
aferir os pontos fracos e fortes, as áreas passíveis de melhoria e as necessidades de formação
prioritárias, promovendo, por um lado, o contínuo desenvolvimento pessoal e profissional, e, por
outro, o progresso institucional.
Deverá ter-se em consideração um requisito basilar para um sistema de avaliação de
desempenho eficaz: os objectivos. Afigura-se como imprescindível a fixação clara de objectivos
de desempenho. Esses objectivos deverão ser quantificáveis através de indicadores simples e
fáceis de medir, devidamente calendarizados. Para que a avaliação seja o mais pormenorizada
possível, os objectivos terão de ser formulados de forma individualizada para cada cargo/função o que pressupõe, desde logo, a elaboração da análise de funções para todos os cargos do
Exército.
Da forma como se processa a avaliação actualmente assiste-se, em determinados casos,
a um distanciamento entre avaliador e avaliado. O modelo ora proposto promove a
aproximação entre avaliador e avaliado. Este facto proporciona objectividade avaliativa, e o
conhecimento mais incisivo acerca do desempenho e do potencial do avaliado. Para que o
distanciamento diminua, principalmente no caso concreto das Praças, deveria ser formalizado na
prática o que acontece informalmente: a avaliação por parte do Sargento. Tal situação permitirá
uma proximidade real e efectiva entre avaliador e avaliado. A avaliação deverá ser feita por um
militar com, pelo menos, 5 anos na categoria de Sargento.
No sentido da uniformização/estandardização da avaliação será de todo imprescindível
facultar aos avaliadores uma formação de base. Essa formação permitirá diminuir as
discrepâncias avaliativas não só entre diferentes avaliadores como entre U/E/O distintas. Tal
formação deverá ser ministrada ao longo da formação de Oficiais na Academia Militar e Sargentos
na Escola de Sargentos do Exército. Seria importante, também, proceder a sucessivas
actualizações ministrando módulos de Avaliação de Desempenho nas diferentes etapas da
carreira, nomeadamente nos cursos de promoção. O CPAE está dotado de meios humanos que
permitem dar o apoio técnico que se julgue necessário.
A problemática das quotas que existe no SIADAP não deverá ser indiscriminadamente
aplicada ao Exército, pois determinadas áreas ou cargos/funções, pela sua especificidade,
implicam previamente uma escolha alicerçada no mérito e em elevados índices de motivação e
realização, sendo estas características incongruentes e incompatíveis com a filosofia das
percentagens e quotas.
A Educação Física Militar deveria constituir-se como elemento fundamental durante toda a
carreira militar e não apenas nos processos de formação. É algo inerente à dinâmica institucional
e é, entre outros, um aspecto que estabelece a distinção entre o meio castrense e a sociedade
civil. A aptidão física afigura-se como indispensável para o cumprimento das missões atribuídas
a qualquer militar. Esta consciencialização da importância da actividade física terá de ser
18
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
assumida e valorizada, consubstanciando-se numa avaliação (com atribuição de uma “nota”) em
oposição do sistema “go/no go” existente.
Para facilitar o registo e a gestão da avaliação de desempenho propomos a aplicação de
uma ferramenta informática para que o preenchimento das fichas de avaliação, bem como todo
o processo, seja feito electronicamente.
As propostas supracitadas e as que foram sendo lançadas no decorrer da investigação
influenciarão, de forma marcante, a cultura e as práticas de gestão do Exército, podendo contribuir
para o surgimento de determinadas resistências senão for assumida pelos líderes estratégicos,
implicando que esta integração seja comunicada, assumida e interiorizada como uma ferramenta
de desenvolvimento individual e, por consequência, colectivo e organizacional.
Através deste estudo foi-nos possível investigar, discutir e propor um sistema de Gestão do
Desempenho adaptado ao Exército Português e à sua especificidade, que, de uma forma
sintética, comungue das orientações, perspectivas e filosofia do SIADAP. Procurámos contribuir
para a constituição de um sistema que motive, avalie e desenvolva os militares na Organização.
Julgamos que todo o conhecimento inerente a esta investigação é imprescindível
para se poder constituir uma base de trabalho para a gestão, formação, selecção,
recompensas e deve ser objecto de posterior actualização.
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20
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
LEGISLAÇÃO
Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho de 1999, Estatuto Dos Militares Das Forças Armadas
(EMFAR).
Decreto-Lei nº 66-B/2007, 28 de Dezembro de 2007, sistema integrado de gestão e avaliação do
desempenho na Administração Pública (SIADAP).
Portaria n.º 1246/2002, 7 de Setembro, Regulamento de Avaliação do Mérito dos Militares do
Exército (RAMME).
21
Boletim de Sociologia Militar
N.º 3 – 2012
PP. 22 a 65
Do Uniforme Militar ao Desvio e à Reclusão – Um Olhar sobre o
Estabelecimento Prisional Militar.
Alexandre Moura*
Helena Carreiras**
RESUMO
O Estabelecimento Prisional Militar tem determinadas especificidades que lhe configuram uma
singularidade própria no panorama nacional das prisões. Esta "micro-sociedade" possibilita que
determinadas identidades exteriores sejam transpostas para o interior da prisão conferindo uma hierarquia
formal que é induzida pelas instituições de origem.
Por conseguinte, é nosso objetivo determinar quem é o cidadão-recluso que se encontra no EPM, em
função de um conjunto de características sócio-demográficas e jurídico-prisionais, designadamente a
idade, posto, habilitações literárias, situação na profissão, instituição de origem, duração e tipo de pena.
Pretendemos, inclusivamente, perceber quais as condições de vida dos reclusos – tipo de tratamento
dado pelo staff, horários, fardamento, rotinas, comportamentos, alojamentos e habitabilidade,
alimentação. Procurámos analisar, entre outros fatores, as situações penais e prisionais, designadamente
as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a particularidade de serem indivíduos oriundos
de instituições de cariz eminentemente militar, que comungam de orientações semelhantes. Analisámos
as preocupações, avaliações, comportamentos, rotinas, horários, condições de vida dos reclusos. Foram
objeto de apreciação as condições gerais da prisão, o tratamento dado pelo «staff prisional», o acesso à
saúde, as principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos perceber se as hierarquias internas
decorrem das patentes que cada um possui e se os diferentes estatutos, papéis ou posições prévias ao
encarceramento orientam as posições e as interações locais.
Palavras Chave: Reclusão Militar, Preso Militar, Comportamentos a Atitudes.
ABSTRACT
The Portuguese Army Prisoner Facility has certain aspects that makes it unique in the national prisons
environment. This “imprisoned micro-society” with military uniforms allows that certain exterior aspects
appear inside prison walls.
The present study aimed to explore and describe the military prisoners regarding their socio-demographic
and juridical characteristics such as rank, age, unit, sentences and type of crime committed. We wanted to
understand the military prisoner’s daily routine – kind of treatment given by Staff, internal schedules,
routines, concerns, behaviors, food quality, facility conditions, criminal and imprisoned dynamics .
Keywords: Military Prison, Military Prisoner, Behaviors and Attitudes.
*
Major de Cavalaria, Mestre em Sociologia, Chefe do Gabinete de Estudos e Formação do Centro de
Psicologia Aplicada do Exército.
**
Ph.D., Professora do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE).
22
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
NOTA INTRODUTÓRIA
O presente Artigo surge como corolário de um Mestrado em Sociologia
efetuado no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE),
especialidade em Família, Educação e Políticas Sociais e incide sobre a população
prisional encarcerada no único Estabelecimento Prisional Militar (EPM) nacional sendo, por conseguinte, um estudo de caso. Decorre da actividade profissional
desenvolvida pelo autor no meio castrense desde há alguns anos a esta parte,
cruzando-se com o seu interesse pelas instituições totais (em termos Goffmanianos),
tendo consciência que falar de punições e encarceramentos são temas que, sobretudo
no meio militar, se evitam abordar, discutir e comentar.
É nossa intenção caracterizar sociologicamente o cidadão-recluso-militar que
se encontra no EPM. Perceber quais as suas condições de vida, rotinas,
comportamentos, o que pensam, que aspectos mais os preocupam e qual o tipo de
tratamento dado pelo «Staff». Constituem o «Staff Prisional» o comando do
estabelecimento e o seu estado-maior, os técnicos de saúde e reeducação, elementos
constituintes do pelotão de guarnição e segurança (PGS) (não são designados de
guardas pois, efectivamente, não o são. São militares com o curso de Polícia do
Exército (PE), pessoal administrativo e de manutenção. A reclusão é muitas vezes
entendida como um intervalo na vida dos indivíduos sendo encarada como uma
suspensão, um parênteses ou uma fragmentação no tempo, representada como se de
uma outra vida paralela se tratasse e que terminará dentro de algum tempo mais ou
menos longo.
Além de procurar responder a estas questões, a nossa pesquisa procurou
conhecer a realidade de outras prisões portuguesas, de forma a comparar e tornar
mais inteligíveis os resultados obtidos. São estes factores específicos e as suas
interconexões que se procuram evidenciar neste trabalho.
O artigo é constituído por uma nota introdutória, quatro capítulos e a conclusão.
No primeiro capítulo, faremos alusão a algumas referências teóricas fundamentais que
enquadram este estudo. No segundo, a par de uma explicitação metodológica sobre
os
procedimentos,
métodos
e
técnicas
utilizados,
procederemos
a
uma
contextualização e caracterização do objecto de estudo. No terceiro capítulo, inicia-se
a apresentação dos resultados através da caracterização demográfica e social dos
reclusos. Analisa-se, entre outros factores, as situações penais e prisionais,
designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a
particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente
23
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
militar1, que comungam de orientações semelhantes. No quarto capítulo, são
analisadas
as
preocupações,
avaliações,
comportamentos,
rotinas,
horários,
condições de vida dos reclusos militares. São objecto de apreciação as condições
gerais da prisão, o tratamento dado pelo «Staff» prisional, o acesso à saúde, as
principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos perceber se as hierarquias
internas decorrem das patentes que cada um possui e se os diferentes estatutos,
papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as posições e as interacções
locais. Tendo consciência da estigmatização social provocada pela prisão, das
vulnerabilidades societais que estes cidadãos-reclusos apresentam, exponenciadas
pelo uniforme que usam e poderão continuar (apenas alguns, dependendo da
natureza do crime) a envergar, torna-se imprescindível determinar como os internos se
relacionam
com
estas
questões,
que
noções
orientam
as
suas
atitudes,
comportamentos e emoções. Apresenta-se, ainda, algumas notas conclusivas.
1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO PRINCIPAL
1.1.
Dos Cárceres à Prisão
As prisões são, de acordo com alguns teóricos, os locais que, por excelência,
permitem aliar o sofrimento que a perda da liberdade implica com a possibilidade de
regeneração do delinquente pelo trabalho/ocupação, pela educação e pela autoreflexão e auto-crítica. Porém, vozes discordantes afirmam o contrário, defendendo
que as prisões propiciam outros riscos e ameaças. Os abolicionistas imaginam uma
sociedade sem prisões, sem privação da liberdade, sem exclusões institucionais,
considerando que os cárceres podem não ser a forma “...institucional ideal para
cumprir os desígnios modernizadores desejados...” (Dores, 2003: 80). Desde sempre,
houve registos de torturas, abusos e desrespeito pelos direitos humanos mais
elementares no interior destes locais. Com efeito, mesmo no século XIX, adverte Maria
João Vaz (2003), a prisão não executava o papel que lhe era atribuído e “...em vez de
contribuir para a regeneração dos que eram condenados pela prática do crime, ela era
antes de mais considerada como uma verdadeira “escola” do crime...” (Vaz, 2003 :
12). Foi essencialmente durante os últimos trinta anos do século XIX que se
começaram a procurar concretizar as principais medidas reformadoras do sistema
penal Português, transformações estas que procuraram respeitar as formulações
teóricas defendidas desde o iluminismo 2. Nos finais do século XIX, os principais
estabelecimentos prisionais existentes na cidade de Lisboa eram as cadeias do Aljube
1
Forças Armadas (Marinha, Exército, Força Aérea) e Guarda Nacional Republicana.
Confiança nas capacidades da razão acreditando-se que era possível a regeneração dos indivíduos desviantes
através do pensamento, meditação, reflexão interna, ajudado com as benéficas influências da educação e do trabalho,
forças disciplinadoras de corpos e mentes.
2
24
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
e do Limoeiro. Maria João Vaz (2003) salienta que no distrito de Lisboa existiam cerca
de 40 cadeias, tratando-se na sua grande maioria de pequenos cárceres e não de
prisões adequadas para o cumprimento de penas de longa duração. Apenas em 1885
surgiu o primeiro estabelecimento prisional - a Cadeia Geral Penitenciária do Distrito
da Relação de Lisboa - considerada como o modelo mais adequado para se
alcançarem os objectivos essenciais das penas - a recuperação dos indivíduos
delinquentes para o convívio em sociedade. As prisões impuseram-se, por inerência,
como elementos centrais dos sistemas penais. Surgiram, neste contexto, problemas
por demais conhecidos, como a sobrelotação, a falta de higiene, corrupção,
promiscuidade, exploração de uns sobre os outros, inexistência de separação por
idade, grau de perigosidade, tipo e duração da pena. Surgem também revoltas
prisionais como a do Limoeiro em 1891, a obrigatoriedade do uso de capuz que cobria
o rosto dos condenados de modo a não serem identificados nem haver diálogo entre
pares, surgindo a loucura e a tuberculose como principais doenças, dando a
impressão de que se contribuía mais, segundo cronistas da época, para o desarranjo
mental e enfraquecimento dos reclusos do que para a sua regeneração. Quando
acabavam de cumprir a suas penas (...) não pareciam mais do que cadáveres
galvanizados que se restituem à sociedade, que se colocam além do portão e se
mandam caminhar para a cidade... (Vaz, 2003: 18). No virar para o século XX, pouco
se tinha alterado no débil estado das prisões nacionais, até que em 6 de Fevereiro de
1913 foi alterado o regime penitenciário, passando os reclusos a trabalhar em comum
durante o dia, mantendo-se em isolamento nas suas celas durante a noite.
Mais recentemente, no período do Estado Novo, era frequente haver a
aplicação de uma outra pena denominada de transportação - o chamado «degredo» para as colónias Portuguesas em África, fundamentalmente, para o Tarrafal em Cabo
Verde. Esta ocorria ora como alternativa ao insuficiente número de estabelecimentos
prisionais que não conseguiam acolher toda a «população condenada», ora como
complemento após o cumprimento do período da pena de prisão em território nacional.
1.2.
A Prisão
A investigação sobre prisões não é um campo desenvolvido das ciências
sociais, em parte causada pela dificuldade no acesso a estas instituições por parte do
público. Os estudos realizados por Michel Foucault proporcionaram uma maior
visibilidade do panorama prisional, aliado aos inúmeros problemas mediáticos que,
nas últimas décadas, têm surgido no interior e em torno destes estabelecimentos.
Como salienta Pedro Dores (2003), a persistência de queixas sobre atentados aos
direitos dos reclusos em todos os sistemas prisionais conhecidos, a selectividade
25
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
social que acolhe nas prisões fundamentalmente os indivíduos das classes sociais
mais baixas e os mais desprotegidos socialmente - o acesso à justiça é, ele próprio,
fortemente condicionado pela situação socio-económica do cidadão - os mecanismos
de estigmatização eficazes e inflexíveis, as maiores taxas de doenças e mortes nas
prisões do que no seu exterior, a idade precoce da população encarcerada, as
elevadas taxas de reincidência, permite-nos retirar, segundo este autor, algumas
ilações: a necessidade de estudos científicos mais aprofundados e alargados, o facto
das prisões limitarem fortemente as condições de habitabilidade dos reclusos, não se
devendo esperar que sejam elas a resolver eventuais conflitos sociais.
No década de 60 do século passado, Erving Goffman debruçou-se sobre as
“instituições totais 3 “ (onde os estabelecimentos prisionais se incluem) e salientou que
nestes universos isolados se encontram removidas as barreiras que habitualmente
separam as várias esferas da vida do indivíduo – lúdica, familiar, residencial,
ocupacional, privada, íntima – estando estas submetidas a uma autoridade e a uma
gestão comuns e onde existem outros participantes que partilham destas condições.
Daí a faceta totalizante que contrasta com as sociedades urbanas e complexas,
dotadas de diferenciação social e espacial nos mais variados domínios de relações, de
pertenças e de identidades.
Efectivamente, todos os aspectos da vida dos indivíduos reclusos são
conduzidos no mesmo local, sob a mesma vigilância e autoridade. As rotinas diárias
de cada interno são realizadas em co-execução com todos os demais companheiros
de reclusão, submetidos a idêntico tratamento e exigência. As tarefas são rigidamente
escalonadas, estruturadas, impostas, suportadas por um sistema rígido de normas
formais (e informais, como veremos mais adiante), cujo cumprimento é legalmente
fiscalizado por agentes dotados de autoridade. A iniciativa, o livre-arbítrio, a
criatividade são balizadas, reguladas e delimitadas.
Apesar de supostamente estas considerações pretenderem ser factos
incontestáveis, o tratamento prisional é, defende Pedro Dores (2003), marcadamente
diferenciado consoante o estatuto de cada cidadão. Este autor recorre a Pierre
Bourdieu ao afirmar que as prisões não foram concebidas para acolher outras classes
sociais que não as menos desfavorecidas – a dos marginais marginalizados.
Goffman afirma que os actores sociais na qualidade de actuantes e de seres
racionais dotados de razão, preocupam-se em manter a impressão de que cumprem
as normas intrínsecas pelas quais são julgados (até pelo que os seus maiores ou
menores «direitos reclusos», dependem desta aceitação e do cumprimento latente das
3
”...lugar de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos, separados do mundo exterior por um período
relativamente longo, levam em conjunto uma vida reclusa cujas modalidades são explícita e minuciosamente reguladas.”
(Goffman, 1987: 62)
26
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
regras internas, enfim, para alcançarem o «almejado bom comportamento» que é
decisivo para se implementarem as saídas precárias, o RAVI, o RAVE 4, a liberdade
condicional). Reiterando estas considerações, a acção social, no sentido Weberiano,
pode ser racional por relação a fins, condicionado pelas expectativas dos
comportamentos de outrém, utilizando estas mesmas expectativas como condições ou
meios para a prossecução de objectivos próprios, racionalmente estruturados e
reflexivos, o que demonstra que, não poucas vezes, os reclusos «actuam no palco dos
comportamentos», realizando acções, cumprindo normas, regras que, na ausência de
controlo institucional, seriam incumpridas. Parafraseando mais uma vez Erving
Goffman (1987), os actores sociais estão despreocupados com a questão moral de
cumprir as normas, focalizando-se, em vez disso, com o “...o problema amoral de
construir a impressão convincente de que satisfazem as normas...” (Goffman, 1987:
221). Na mesma linha de pensamento, Tom Burns (2000) salienta que toda a
actividade humana é gerida, em grande parte, por sistemas de regras sociais. Todavia,
os actores sociais, dada a sua inteligibilidade, interpretam e accionam essas mesmas
regras de acordo com os seus intuitos. Além de um constrangimento, as regras sociais
normativas são também oportunidades de acção. Articulando o pensamento à acção,
o indivíduo pode permitir-se alterar as regras já existentes. De facto, é inegável que os
actores sociais, no âmbito da sua acção, tentam manter ou modificar as normas que
encontram estabelecidas nas instituições. Na opinião de Tom Burns (2000), se os
indivíduos não tentassem adaptar ou transformar as regras com que se deparam nas
instituições, não haveria possibilidade de existir inovação normativa e institucional. As
prisões não constituem excepção.
O intuito dos estabelecimentos prisionais é, em última análise, o da punição
com o encarceramento das pessoas, garantindo a protecção dos bens jurídicos
ameaçados, entendidos como essenciais à vida em sociedade dos que estão em
liberdade e com a finalidade, sempre reiterada mas quase nunca cumprida, de
regeneração e reinserção dos delinquentes após a pena. A prisão pretende evitar os
“contactos funestos dos condenados com os modos de vida social degradados que
sustentaram a sua delinquência...” (Dores, 2003: 63), procurando reunir todos os
condenados em espaços de execução de penas de cariz industrializado, afastando-os
de todas as tentações que a situação em liberdade estimulava, controlando-se os
custos orçamentais que provêm dos impostos públicos.
A prisão apresenta-se, por inerência das suas condições, como uma instituição
invulgarmente abrangente, dotada de dinâmicas específicas que a constituem como
4
RAVI – Regime Aberto Virado para o Interior; RAVE – Regime Aberto Virado para o Exterior.
27
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
uma «micro-sociedade». É uma tecnologia social feita por medida, com uma finalidade
delimitada e delineada. Por conseguinte, uma prisão constitui uma comunidade
artificial, dada a separação que impõe à pessoa-reclusa, privando-a do seu meio
natural e obrigando-a a permanecer nesse ambiente ao qual terá de se adaptar. Neste
novo meio, o cidadão é submetido a um rigoroso controlo formal e informal do tempo e
do espaço, onde a maioria das actividades se transformam em rotinas e se igualizam.
Espaço e tempo confundem-se em adjectivações locais que restringem a autonomia
individual dos internos.
Anthony Guiddens (1994) refere-nos que em instituições do tipo prisional, as
esferas de competência e os níveis de autoridade do Staff, além de se desenvolverem
numa base regular, encontram-se claramente demarcadas e delimitadas por uma
hierarquia de funções. Todavia, como o reconheceu Goffman (1987), as dinâmicas
recriadas na prisão não anulam nem substituem as exteriores, permanecendo estas
como referências para os internados. As cadeias não existem isoladas e, de algum
modo, as lógicas internas reenviarão para dinâmicas extra-prisionais, quer nos
preocupemos apenas com o núcleo recluso, quer abrangendo a instituição como um
todo.
Michel Foucault (2004), por seu turno, transmite-nos que ”...se conhecem todos
os inconvenientes das prisões e sabe-se o quanto são perigosas quando não inúteis.
E entretanto não vemos o que pôr no seu lugar. Elas são a detestável solução de que
não se pode abrir mão...” (Foucault, 2004: 191). Em termos Durkheimianos, o aumento
do número de prisões e prisioneiros numa determinada sociedade é um sintoma de
«Anomia».
A instituição prisional, segundo Pedro Dores (2003), poderá ser um refúgio de
ressocialização para os actores sociais que coloquem em causa as normas societais
que possibilitam a vida quotidiana. É a garantia da igualdade formal como resposta às
“...transgressões e aos transgressores, através de um sistema de transformação em
tempo de prisão da culpa abstracta dos crimes cometidos em concreto; (...) espaço de
investimento filantrópico e de espírito de solidariedade para com os seres humanos
caídos...” (Dores, 2003: 77).
Loic Wacquant (2000), fala de uma sub-cultura prisional que se desenvolveria
no interior das prisões e que permitiria o crescimento de ideologias desviantes,
enaltecendo o tema recorrente de «prisão como escola do crime». Menciona inúmeras
vezes D. Clemmer que introduziu o conceito de “Prisonization” (teoria da prisionização
retomada por S. Messinger e G. Sykes em 1960), no qual todos os reclusos seriam
afectados pelas influências criminosas inerentes à própria cultura prisional, ainda que
este processo não ocorra de modo uniforme. Factores como a solidariedade entre
28
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
reclusos, a oposição ao Staff, a duração da pena, os laços de convivialidade afectiva
com o meio exterior, a inclusão em determinados grupos desviantes, originam
diferenças neste processo “tanto mais ténues e tardias quanto menos intenso e
exclusivo se revele o contacto com os valores desviantes da sub-cultura
penitenciária...” (Wacquant, 2000: 28).
Os membros da população reclusa não
constituem um mero agregado de indivíduos. Comunicam, interagem, reflectem, num
quadro temporário de vida comunitário distinto do anterior. Esta sub-cultura tenderia a
desenvolver-se como reacção às «pains of imprisonment» (dores da prisão),
designadamente privações de ordem material, afectiva, autonómica, sexual,
degradação do estatuto e papel do cidadão. A cultura penitenciária surgiria como uma
adaptação às novas condições do internamento, funcionando como uma plataforma
para a recuperação da auto-estima e da auto-imagem que constituiria um entrave à
reintegração e regeneração societal dos delinquentes.
Todavia, trabalhos posteriores como os de Stanton Weeler (1961), demonstram
que no período inicial o recluso conforma-se com as normas e valores do
estabelecimento prisional. No intermédio, constata-se uma adopção sustentada,
voluntária e estruturada da sub-cultura prisional. Porém, nas etapas que antecedem a
libertação iniciar-se-ia uma «desprisionação», abandonado-se gradualmente os
valores do código-recluso, procurando retomar-se as regras, atitudes, práticas em uso
no exterior. Estas três fases descreveriam uma trajectória em «U», tendo ficado
conhecido como o Padrão U (Teoria U ou da privação). Outros autores colocaram em
causa a ideologia de Weeler, afirmando que os “comportamentos em U» apenas foram
verificados em instituições cuja tónica se baseava na segurança e disciplina, sendo
diminutos nas que privilegiavam o tratamento e a regeneração. Contudo, é inegável a
importância dos seus estudos para aclarar as teorias sobre as prisões.
Posteriormente, surgiram várias outras perspectivas salientando-se a que ficou
conhecida como o «modelo da importação directa», onde o prévio estilo de vida dos
internos (em pré-reclusão) constituiria um factor fundamental para se poder
compreender os comportamentos durante a reclusão, os quais seriam reflexos de
várias conjugações, práticas e representações antes da condenação. Enquanto no
«modelo da privação» as representações e valores dos reclusos surgiam como
reacção às privações de vária ordem originadas pelo cárcere, na perspectiva do
«modelo da importação directa», as atitudes e condutas dos reclusos são transpostas
do meio extra-prisional para intra-muros, devendo olhar-se também para os factores
extrínsecos nas abordagens institucionais sobre a prisão.
29
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
Procurámos evidenciar nas páginas anteriores algumas correntes de
pensamento sobre as instituições prisionais que suportaram teoricamente o nosso
trabalho.
2.
O ESTABELECIMENTO PRISIONAL MILITAR
2.1. Breve Contextualização Histórica 5
O EPM foi criado pelo despacho n.º 12555/2006 de 24 de Maio do Ministro da
Defesa Nacional que determinou a mudança de designação de Presídio Militar para a
actual designação. Assume-se o EPM, deste modo, como herdeiro do Presídio Militar
criado por Decreto-Real de 7 de Fevereiro de 1895, em Santarém, numa Cadeia
Penitenciária do Ministério da Justiça então cedida à Secretaria de Estado dos
Negócios da Guerra para o cumprimento de pena de presídio militar, medida coerciva
inovadora criada pelo Código de Justiça Militar, a qual obrigava a um regime
penitenciário que envolvia segregação celular durante a noite e comunidade de
trabalho durante o dia.
No dia 8 de Maio de 1895 assumiu o Comando do Presídio Militar, o General
de Brigada João Batista da Silva e em 25 de Maio desse mesmo ano deu entrada o
primeiro condenado – o Soldado António de Campos, aprendiz de músico. O Presídio
Militar funcionou em Santarém durante 105 anos, ao longo dos quais cumpriram pena
5.435 presos, sendo 484 da Marinha, 4.537 do Exército, 328 da Força Aérea e 86 da
Guarda Nacional Republicana (GNR).
Em 1998, as instalações foram desafectadas do domínio Militar e restituídas ao
Ministério da Justiça. Por consequência, em Janeiro de 2001, o Presídio Militar foi
transferido de Santarém para Tomar, instalando-se definitivamente nas instalações da
Casa de Reclusão desta cidade, desactivada para possibilitar a realização de obras de
remodelação e ampliação. Este facto, obrigou a que os reclusos da Casa de Reclusão
de Tomar e do Presídio Militar fossem transferidos para a Casa de Reclusão de Elvas,
de onde viriam sucessivamente a ser transferidos entre 2002 e 2005, ano em que
também foi desactivada aquela Casa de Reclusão. Extintas as Casa de Reclusão de
Elvas e de Tomar, o EPM passou a ser o único Estabelecimento Prisional Militar em
Portugal.
5
Adaptado de Estado Maior do Exército (1997) – História do Encarceramento Militar Português. Lisboa: Estado Maior do
Exército.
30
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
2.2. A Singularidade do EPM
O Estabelecimento Prisional Militar tem determinadas especificidades que lhe
configuram uma singularidade própria no panorama nacional das prisões. É dirigido e
controlado única e exclusivamente por militares do Exército - e não por civis ou por
militares de outro qualquer ramo - está na dependência do Ministério da Defesa
apesar de alguns reclusos serem da GNR que é tutelada pelo Ministério da
Administração Interna. Os presos são exclusivamente militares das Forças Armadas
ou da GNR, já que a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Judiciária, os Guardas
Prisionais, Florestais ou membros de outras instituições policiais de “cariz civil" são
encaminhados para outros estabelecimentos.
Por conseguinte, esta "micro-sociedade" dotada de uma faceta específica e
totalizante, induz a que determinadas identidades exteriores sejam transpostas para o
interior da prisão – até pelo que os reclusos continuam a envergar os seus uniformes
6
com as patentes militares explícitas que todos conhecem e são obrigados a continuar
a aceitar – conferindo uma hierarquia formal que é induzida pelas instituições extraprisionais de origem. É interessante verificar que esta hierarquia formal é
aparentemente respeitada, na maioria das ocasiões, apesar de todos terem
consciência que muitos dos guardas são soldados cuja função é vigiar, controlar,
estabelecer regras e emanar ordens que têm de ser seguidas e cumpridas por
reclusos Sargentos ou Oficiais
7
(portanto, com um posto mais elevado na hierarquia
formal militar). Deste modo, as lógicas internas reenviam (como veremos mais
adiante) para realidades extra-prisionais que constrangem a diminuta liberdade dos
reclusos e o seu livre-arbítrio.
Do ponto de vista institucional, o universo em questão faz constantemente
apelo a um referente que pode ser considerado como identitário, no qual se funda
desde o início – a componente militar. Mais propriamente, uma ideologia militarista de
virtudes e de honra, que se acentua e polariza quando conjugamos o desvio, a
delinquência com o uso de uniforme representativo de uma qualquer instituição ou
país. A relação da prisão com esta ideologia, que se manifesta em inúmeros sentidos
materiais, simbólicos e organizacionais (desde as formaturas, o cabelo aparado, a
barba escanhoada, os sapatos engraxados, o uso de símbolos militares, a prática da
continência e da ordem-unida), nem sempre é pacífica e apaziguadora. Como afirma
Pedro Dores (2003), as prisões seriam melhor “...observadas se fossem tratadas
6
Continuam a usar o seu uniforme se estiverem no activo, o que abrange a quase totalidade dos reclusos. Se os militares
estiverem na situação de reserva ou reforma, trajam à civil.
7
Ver hierarquia formal militar no anexo C.
31
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
através de uma análise institucional, (...) observando os detidos mas também todos os
outros agentes sociais envolvidos, como guardas, funcionários, técnicos, autoridades
judiciais e penitenciárias, agentes sociais exteriores, familiares e amigos, organizações
não governamentais. Observando-os não como quem observa um aquário ou uma
jaula de jardim zoológico ...” (Dores, 2003: 84).
Deste modo, as relações de pertença, a estratificação social, os diferentes
papéis e estatutos sociais, a patente e a classe militar a que cada um pertence, a
reduzida ou elevada formação académica, originam clivagens e demarcações que se
acentuam com a ideologia e cultura militar. Para estes homens militares para os quais
a ordem, a disciplina, o respeito, a hierarquia, os deveres cívicos sociais e militares
são (ou foram em tempos) primordiais e respeitados acima de qualquer outro
sentimento, é difícil aceitar e compreender o seu novo estatuto social que lhe configura
um inovador papel e uma nova posição na sociedade.
Com efeito, esta prisão apresenta particularidades que a demarca das demais.
Não só pelos reclusos que não pertencem ao universo generalista prisional – onde as
fracas qualificações abundam e a taxa de reincidência é enorme – como também eles
não pertencem a profissões ou estratos da sociedade económica e socialmente pouco
valorizados, nem a classes sociais mais desfavorecidas normalmente situadas na
base da estrutura social. Efectivamente, há um afastamento dos padrões da
população reclusa. Até a própria prisão militar não compadece de sobrelotação.
Por outro lado, como se trata do único estabelecimento prisional central para
militares (não existe outro local para onde se possa pedir transferência), muitos dos
reclusos encontram-se demasiado afastados dos locais de residência e dos parentes o
que fragiliza, ainda mais, a ligação com o meio familiar e social.
Para preencher os dias e as horas, os reclusos podem efectuar, caso assim o
desejem, algumas tarefas que estão ao seu dispor. Como não podem ser obrigados a
trabalhar, aderem voluntariamente a serviços na lavandaria, na cozinha, jardinagem,
carpintaria, mecânica automóvel, biblioteca (e outros inopinados e expontâneos). A
este pseudo-voluntarismo, não será alheio o facto de contribuir para acesso a saídas
precárias (evidentemente, após decisão do conselho técnico, formado pelo núcleo de
apoio ao Comandante 8 (NAC), pelo Juiz responsável do Tribunal de Execução Penal
9
(TEP) e por Técnicos da Direcção Regional de Inserção Social). Todos sabem para
que locais se devem dirigir após o pequeno-almoço e a formatura de início de
trabalhos pelas nove da manhã, à excepção de um interno que optou por não efectuar
8
O NAC é constituído pelo Comandante, 2º Comandante, Chefe da Secção de Pessoal, Oficial de Justiça, Psicólogo,
Comandante da Companhia de Comando e Serviços (em representação do Comandante do PGS) e o Sargento-mor do
Estabelecimento.
9
Existem Tribunais de Execução Penal em Lisboa, Porto, Évora e Coimbra.
32
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
quaisquer actividades. Estão permanentemente acompanhados por um militar PE do
PGS, caso se encontrem em Grau de Confiança limitado
10
ou se estiverem em locais
que possuam materiais perigosos (contudo, todos os reclusos, por decisão do actual
Comandante, são acompanhados permanentemente quando se encontram no exterior
do bloco prisional).
Todavia,
estas
tarefas
efectuadas
pelos
internos
contribuem,
fundamentalmente, para a manutenção e reprodução do sistema prisional assumindo
apenas uma dimensão mecânica e elementar, não se revestindo de um carácter
formativo e qualificativo que seja facilitador de uma futura reinserção ou
ressocialização profissional, aumentando as hipóteses de empregabilidade (para os
internos que não possam ser re-inseridos nas suas instituições profissionais de
origem). Deste modo, num contexto desta natureza torna-se difícil a um cidadãorecluso, dadas as vulnerabilidades sociais de que é detentor, exponenciadas pela
estigmatização que a prisão confere, garantir a sua empregabilidade se, na prisão, não
existir uma dinâmica direccionada para esse objectivo. Esta é uma temática que
poderá gerar futuras investigações e que não será abordada no decorrer desta
dissertação.
O EPM está fisicamente dividido em dois grandes sectores: o bloco Prisional,
onde co-habitam os reclusos e a ala do Comando, Estado-Maior e Serviços, onde
funcionam todas as áreas de apoio, suporte e sustentabilidade do estabelecimento.
Estas duas alas apenas têm comunicação através de uma enorme porta que se
encontra vigiada presencialmente por um militar do PGS vinte e quatro horas por dia
(apenas a ala do Comando, Estado-Maior e dos Serviços tem ligação aos pátios
exteriores). Curiosamente, o comandante e o 2º comandante não podem estar
simultaneamente no interior do bloco prisional, devido a condicionalismos de
segurança.
O EPM tem capacidade para 78 reclusos sem, contudo, haver qualquer
sobrelotação, dividido em ala prisional para reclusos condenados e ala prisional para
preventivos. Nestas duas áreas existem alojamentos específicos para Oficiais,
Sargentos e Praças e, dentro destes, separação entre militares masculinos e
femininos
11
. A dimensão das celas, os materiais utilizados, as camas e os armários
mudam conforme visitamos cada um destes locais. Passamos de camas de ferro para
10
Os reclusos envergam junto ao galão ou divisa do ombro direito uma “braçadeira” com uma cor específica. Reclusos com
“grau de confiança reservado” – cor vermelha; não podem sair do bloco prisional; “grau de confiança limitado” – cor amarela;
estão autorizados a sair do bloco prisional com vigilância física permanente; “grau de confiança pleno” – verde; estão
autorizados a circular sozinhos, dentro de determinados locais que não possuem materiais considerados perigosos. A
alteração do grau de confiança é da responsabilidade do NAC, é proposto à consideração do Comandante e, em caso
afirmativo, é publicado em Ordem de Serviço Interna.
11
A Constituição Portuguesa obriga a que haja separação física entre reclusos preventivos e condenados. Não existem
militares femininos em situação de reclusão. Porém, os alojamentos destinados para este efeito estão libertos e prontos a
serem ocupados a qualquer momento. Também existe uma cela preparada para receber um Oficial-general.
33
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
camas de madeira. O chão deixa de ser mosaico para passar a ser também de
madeira. A alimentação, todavia, é igual para todas as pessoas, sejam elas reclusas
ou funcionários do estabelecimento. É confeccionada pelos mesmos indivíduos (com
auxílio de alguns reclusos), utilizando-se os mesmos géneros alimentícios e os
mesmos utensílios e quantidades.
Como não há necessidade de aumentar a lotação de cada cela que deverá
estar sempre pronta para inspecção (pronta para revista), cada preso tem o seu
próprio quarto com casa de banho, não havendo necessidade de partilha de quaisquer
bens desta natureza. “...As camas devem estar sempre feitas e a área da casa de
banho limpa e agradável.(...) Os reclusos devem deixar a porta da cela fechada
quando se ausentam por qualquer motivo. Pode ser efectuada revista a qualquer hora
do dia ou da noite...” (Estabelecimento Prisional Militar - Normas de Execução
Permanente, 2004: 3). O convívio deverá fazer-se no bar dos reclusos ou nos
corredores, devendo evitar-se a entrada na cela de outros internos.
Encontrámos dispositivos organizacionais que marcam de maneira recorrente o
seu quadro de vivência. Por um lado, há a constante preocupação com o bem-estar
físico e mental dos reclusos. Consultas médicas com periodicidade no local ou no
hospital militar (existe ainda a possibilidade de haver deslocamentos a clínicas
privadas na área da cidade, desde que seja o recluso a suportar os seus custos), um
enfermeiro que faz parte do quadro orgânico, possibilidade diária da prática de
desporto, acompanhamento psicológico e jurídico. Desta forma, existiam indícios que
o estabelecimento, aparentemente, tinha adoptado um modelo que se orienta por
aspectos terapêuticos, tendo por objectivo o tratamento dos delinquentes, como
salienta Stanton Wheeler (1991), relegando para segundo plano outra tendência que
se centra na disciplina, controle e segurança. O EPM estaria mais próximo do
denominado modelo terapêutico, em declínio desde os anos setenta do século
passado dado não haver produzido os resultados esperados. Contudo, à medida que
se desenvolvia a “observação”
12
e fomos notando um aumento considerável na
quantidade e qualidade de informação contida nas pequenas conversas informais,
concluímos que seria inevitável não haver uma componente de segurança, controle e
disciplina que não se sobrepusesse ao teor terapêutico, ainda mais sabendo que se
trata de um estabelecimento de cariz essencialmente militar.
Estes argumentos servem de base a que um vasto leque de actividades
quotidianas sejam sujeitas a uma gestão minuciosa que estabelece formalmente a
restrição da autonomia individual dos reclusos. Mesmo no meio exterior, a fronteira
que delimita o domínio privado do público é flexível e não se estabelece de maneira
12
Passagem da fase de identificação e de adaptação, à fase de integração, segundo António Firmino da Costa (1986).
34
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
idêntica para todos os indivíduos. Na prisão, ela é institucionalmente diluída e
legitimada pelo argumento da segurança. A regulamentação variada e minuciosa
através de “normas de execução permanente” (NEP) é um destes dispositivos que
contribui para que outros regulamentos vão aparecendo a um nível inferior,
procurando responder a novas situações da vida prisional.
No EPM conseguimos encontrar certos aspectos apontados na literatura sobre
a sub-cultura prisional de que falámos nas primeiras páginas deste trabalho. Porém,
apresentam-se mais fluídos e sem organizar os quadros extremos que foram
apresentados. Existe alguma coesão e formação de grupos entre alguns reclusos,
havendo uma nítida demarcação de uns para com outros. Julgamos que a
aproximação é fundamentalmente baseada no interesse e não induzem à constituição
de grupos com grande intensidade (excepção feita a um pequeno grupo de três
elementos de que falaremos mais adiante), providos de alguma identidade colectiva e
funcionando em regra de forma coesa. Neste sentido, existe um fenómeno de
“ausência de solidariedade generalizada” já que os reclusos pouco mais têm em
comum do que serem militares e estarem recluídos. E no EPM, esta circunstância não
se manifesta no sentido de os unir. Ela significa o facto de terem delinquido, avaliado
de modo diverso consoante seja questão do próprio recluso ou dos restantes (todos os
reclusos são sabedores, por via directa ou indirecta, do crime dos outros e da sua
extensão). A desqualificação mútua é modulada pela gravidade do tipo de crimes que
varia com o ponto de vista de quem os avalia (excepto pedofilia e violação que reúne a
reprovação geral, não existindo nenhum recluso a cumprir pena desta natureza).
Vinculado ao tipo de acto desviante cometido pela pessoa que se pronuncia sobre os
de outrém, os modos de hierarquização são múltiplos e por isso nem sempre
coincidem com a hierarquia formal militar ou a ordenação jurídico-penal (contudo,
quando pretendem fazer chegar algum pedido especial ao comandante é respeitada a
hierarquia militar e é o recluso com patente mais elevada que dirige esse pedido em
nome de todos os outros). No capítulo quatro, teremos oportunidade de abordar estes
condicionalismos de maneira mais pormenorizada.
De seguida, iremos debruçar-nos sobre questões de índole metodológico.
2.3. Explicitação Metodológica
A finalidade deste capítulo reside na justificação do caminho percorrido no
âmbito dos métodos e técnicas utilizadas no decorrer da investigação. Por
conseguinte, é nosso objectivo determinar quem é o cidadão-recluso que se encontra
no EPM, em função de um conjunto de características sócio-demográficas e jurídicoprisionais, designadamente a idade, posto, habilitações literárias, situação na
35
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
profissão, instituição de origem, duração e tipo de pena. Pretendemos, inclusivamente,
perceber quais as condições de vida dos reclusos – tipo de tratamento dado pelo
staff/guardas,
horários,
fardamento,
rotinas,
comportamentos,
alojamentos
e
habitabilidade, alimentação.
Procurámos analisar, entre outros factores, as situações penais e prisionais,
designadamente as que se inserem em dinâmicas de reincidência criminal, a
particularidade de serem indivíduos oriundos de instituições de cariz eminentemente
militar, que comungam de orientações semelhantes. Analisámos as preocupações,
avaliações, comportamentos, rotinas, horários, condições de vida dos reclusos. Foram
objecto de apreciação as condições gerais da prisão, o tratamento dado pelo «staff
prisional», o acesso à saúde, as principais reivindicações dos encarcerados. Tentámos
perceber se as hierarquias internas decorrem das patentes que cada um possui e se
os diferentes estatutos, papéis ou posições prévias ao encarceramento orientam as
posições e as interacções locais.
Tendo consciência da estigmatização social provocada pela prisão, das
vulnerabilidades societais que estes cidadãos-reclusos apresentam, exponenciada
pelo uniforme que usam e poderão ou não continuar a envergar, torna-se
imprescindível determinar quem é o cidadão-recluso-militar. Quais as vulnerabilidades
a que estão sujeitos? Como são tratados pelo staff prisional? Quais as condições em
que
co-habitam?
Que
direitos
e
deveres
possuem?
Serão
reclusos
com
especificidades próprias? A natureza dos seus crimes é singular? Que noções
orientam as suas atitudes, comportamentos e emoções?O estudo visa a população do
EPM, sendo portanto, um estudo de caso. Salientamos o facto de termos optado por
uma estratégia metodológica traduzida numa pesquisa de carácter quantitativo,
recorrendo fundamentalmente a técnicas de pesquisa “não documentais” como a
“observação participante”. Apenas desta forma conseguimos alguma profundidade de
análise ao observar os locais, os objectos, símbolos, as pessoas, actividades,
comportamentos e interacções, acontecimentos, situações, ritmos e dinâmicas sociais.
Assim, conseguimos alguma flexibilidade e permitiu-nos alternar de estratégia e seguir
novas pistas que entretanto apareceram. Apenas deste modo conseguimos ter acesso
oportuno a determinados espaços sociais que se revelaram de extrema pertinência.
Procurámos sempre ter presente o risco de envolvimento do observador que algumas
vezes se tornou excessivo, não se salvaguardando o necessário distanciamento
científico-metodológico. Admitimos que nem sempre conseguimos manter esse
distanciamento. Todavia, julgamos que as desvantagens e os riscos desta estratégia
metodológica foram superados face aos resultados obtidos.
36
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Utilizámos também a “observação não participante” recorrendo à “entrevista
não directiva, semi-directiva e directiva” e ao “inquérito por questionário” de modo a
aumentar a intensidade de análise. Efectuámos, inicialmente, uma “entrevista nãodirectiva” ao Comandante do Estabelecimento quando ainda nos encontrávamos numa
fase exploratória. Posteriormente, à medida que o conhecimento se foi intensificando,
realizámos “entrevistas semi-directivas” ao Comandante do Pelotão de Guarnição e
Segurança, ao Sargento deste Pelotão e à Psicóloga do Estabelecimento. Numa fase
mais avançada da investigação, voltámos a entrevistar estes três últimos
intervenientes, recorrendo à “entrevista directiva”, onde se intensificou o grau de
directividade das questões, procurando-se estruturar e descodificar alguns sentidos.
Pareceu-nos igualmente útil, para o melhor conhecimento da realidade
prisional, inquirir todos os reclusos, apesar de termos consciência, como nos adverte
Pedro Dores (2003), que também deveríamos inquirir outros protagonistas como o
estado-maior, os elementos do posto de socorros e outros agentes sociais envolvidos
como os familiares e amigos, técnicos do instituto de reinserção social e organizações
não governamentais, de modo a poder compreender os comportamentos e a
especificidade reclusa de uma forma mais abrangente e completa, tendo por base
também factores extrínsecos que não podem ser dissociados das abordagens
institucionais sobre as prisões. Todavia, tivemos consciência, desde a primeira hora,
que não conseguiríamos ser tão ambiciosos. Não houve recusas, em parte devido à
acção do comandante que, pessoalmente, explicou aos reclusos os objectivos que se
pretendiam alcançar.
Formulámos algumas hipóteses, nomeadamente:
H1 - O tratamento dado pelos guardas/staff aos reclusos-militares terá
especificações e orientações diferentes, tornando-se mais respeitoso, formal e cordial
à medida que se sobe na hierarquia militar. Este factor será preponderante
relativamente aos demais, designadamente a duração da pena e tipo de crime;
H2 - as rotinas, fardamentos, alimentação, horários serão idênticos para todos
os reclusos. Admitimos, contudo, que a hierarquia militar formal corresponderá à
hierarquia informal/subterrânea no relacionamento entre pares;
H3 - partimos do pressuposto que a quantidade de reclusos será inversamente
proporcional ao seu escalão etário, ou seja, haverá uma maior percentagem de
reclusos jovens e solteiros;
H4 - acreditamos que os reclusos apresentam habilitações literárias baixas,
sendo maioritariamente pertencentes à classe de praças.
Procurámos desenvolver conversas informais com praticamente todos os
reclusos em variadíssimas situações e em distintas horas do dia. Ouvimos as suas
37
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
histórias de vida, apesar de alguns não quererem abordar nem a sua vida pessoal
nem a da sua família, refugiando-se na evasão e no silêncio. Alguns destes indivíduos
possuem grandes conhecimentos ainda que a maioria não tenha frequentado mais do
que os primeiros ciclos do ensino básico - conhecimentos que não foram aprendidos
nem nas escolas nem nas bibliotecas e que nem sempre são positivos ou benéficos.
As habituais preocupações de fiabilidade e validade dos dados obtidos na
realização de inquéritos tiveram de ser reforçadas, garantindo de forma especialmente
cuidadosa a total confidencialidade das condições de inquérito e o anonimato das
respostas, bem como prevenir a utilização da informação para outros fins que não o
meio académico. De realçar a fuga quase sistemática a questões abertas que
requeriam a opinião dos internos, especialmente quando se referiam aos co-reclusos,
ao PGS e ao comando do EPM. O meio prisional é, com efeito, um contexto muito
específico, contribuindo para situações de fechamento e de defesa, a começar pelo
próprio acesso a esta realidade.
Todos, porém, não se inibiram de dar a sua opinião sincera, honesta, de uma
forma
directa
ou
não,
sobre
as
instalações,
comida,
injustiças,
mágoas,
ressentimentos, resignações, meditações.
3. ANÁLISE SOCIO-DEMOGRÁFICA DOS RECLUSOS
3.1.
Feminilidade Ausente, Escalão Etário Mediano
A amostra é composta pela totalidade dos reclusos do EPM à data da
aplicação do questionário, não tendo havido quaisquer recusas. A análise da figura 1
permite observar a dimensão verdadeiramente assimétrica que existe entre os dois
sexos. De facto, a população é totalmente
composta por homens não tendo havido, na
Figura 1 – Sexo dos Inquiridos
Sexo
história das prisões militares portuguesas, a
ocorrência de quaisquer encarceramentos de
militares do sexo feminino. A esta ausência de
mulheres militares encarceradas ao longo da
história nacional não será alheio o facto do seu
ingresso nas FA ter ocorrido praticamente na
N=26
Masculino
última década do século passado
13
. De facto,
as FA têm secularmente desempenhado um
papel normativo de masculinidade que tem
13
A primeira experiência militar de mulheres portuguesas ocorreu com as enfermeiras paraquedistas da Força Aérea
Portuguesa (FAP) em 1961, apesar desta colaboração ter sido circunscrita ao desempenho de tarefas fundamentalmente de
apoio.
38
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
vindo a sofrer alterações nos últimos anos. Com efeito, “... a presença da mulher
(...)tem vindo a constituir um elemento estruturante do universo simbólico-cultural
sobre o qual se desenham, em contexto militar, valores e representações sobre os
papéis socialmente adequados a homens e mulheres...” (Carreiras, 1997: 49). Esta é
uma matéria aliciante que poderá ser desenvolvida em futuros trabalhos.
A idade dos inquiridos está compreendida entre os 26 e os 56 anos e a média
de idades é de aproximadamente 46. Como podemos depreender pela análise da
figura 2, a maioria dos internos situaFigura 2 – Escalões etários dos inquiridos
se no escalão etário dos 46-55 anos
(17 indivíduos), enquanto os restantes
26- 35 Anos
4
36- 45 Anos
4
dividem-se,
sensivelmente,
por
categorias mais jovens (4 elementos
em cada), havendo apenas um interno
46- 55 Anos
17
que possui mais de 55 anos. Ao
Mais de 55 Anos
0
compararmos estes dados com os da
5
10
Frequências
15
20
população
portuguesa
reclusa
14
masculina
que ocupa as prisões
civis, verificamos que a maioria situa-se no escalão etário dos 26-35 anos (38,0%)
enquanto apenas 8,7% se encontra no grupo dos 46-55 anos. Deste modo, assistimos
a uma diferenciação entre os reclusos militares e os civis. Os primeiros são, de uma
forma geral, mais velhos que os segundos. Esta evidência coloca em causa uma das
nossas hipóteses de partida, uma vez que pressupúnhamos a existência de uma maior
percentagem de reclusos militares jovens, o que não se verifica.
A população do EPM apresenta baixos níveis de escolarização, apesar de
todos terem completado o 1º ciclo do ensino básico. Porém, ter o 1º ciclo incompleto
ou não saber ler e escrever eram factores de exclusão, mesmo na altura em que os
indivíduos mais velhos passaram pelo processo de admissão na instituição respectiva.
Se somarmos os que possuem o 1º e o 2º ciclos, a frequência aumenta para 13
indivíduos (50,0%). À medida que vamos subindo no escalão etário, vamos tendo uma
maior frequência de indivíduos que apenas possuem o 1o ou 2º ciclos do ensino
básico. Inversamente, nos reclusos mais jovens verificámos uma subida da
escolarização que se situa, todavia, ao nível do secundário, havendo apenas um
recluso que possui frequência universitária (pós-graduação). O facto da frequência
escolar variar na razão inversa da idade, traduz o incremento da escolarização na
sociedade portuguesa dos últimos anos. Estas baixas qualificações têm uma intima
14
Para mais informações consultar TORRES, Anália; GOMES, Maria do Carmo (2002) – Droga e Prisões em Portugal.
Lisboa: CIES/ISCTE. p. 29.
39
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
relação com a predominância das patentes que se situam nos postos mais baixos da
hierarquia militar. Apenas dois elementos não pertencem à classe de praças (1 oficial
superior e um sargento). Os restantes vinte e quatro internos apresentam o posto de
soldado (dezasseis), marinheiro (três) e cabo (cinco). Por consequência, uma das
nossas hipóteses de partida foi corroborada, ou seja, os reclusos apresentam
habilitações literárias baixas pertencendo maioritariamente à classe de praças.
Quando comparamos as habilitações
literárias dos presos militares com as da
população reclusa civil, temos consciência que
Figura 3 – Classe Social de ascendência
14
existem cerca de 11,7% de presos civis que
12
12
nunca frequentaram a escola, apesar de 4,6%
saberem
ler
e
escrever.
Como
Frequência
destes
mencionado anteriormente, os militares não
10
8
podem ser admitidos nestas condições, pelo
6
que,
a
efectuar
4
condições
prévias
2
dissemelhantes. Todavia, excepção feita a
0
à
partida,
paralelismos
com
estamos
estes, cerca de 27,3% têm o 1o ciclo e 29,3%
7
4
3
EDL
TI
EE
OO
Classe social de ascendência
o 2º ciclo do ensino básico (somam 56,6%
enquanto os militares se situam nos 50%), não existindo uma clara demarcação neste
ponto. No que se refere ao secundário, assistimos a uma nítida desvantagem dos
reclusos civis (7,5%) contra os 30,8% dos militares que possuem este nível de ensino.
Os baixos níveis de escolarização atingidos pela população reclusa aproximam-se dos
valores existentes na generalidade da população residente. Este reduzido capital
escolar característico da população reclusa permite antecipar algumas dificuldades de
re-integração social - pelo menos para aqueles que não serão re-incluídos nas suas
instituições de origem - tendo em consideração as exigentes condições do mercado de
trabalho em termos de competências e qualificações.
A maioria dos internos militares pertence à GNR (19 elementos), seguido da
Marinha (4 internos) e do Exército (3 reclusos). A Força Aérea, presentemente, não
está representada neste universo recluso.
3.2.
Classe Social, Nacionalidade, Residência
O agregado familiar de ascendência dos reclusos pertence maioritariamente ao
«Operariado»
15
, como podemos verificar na figura 4.o que se refere à nacionalidade,
15
Segundo António Firmino da Costa (1999), existem variáveis primárias de categorização de classe (profissão e situação na
profissão), as variáveis primárias complementares de categorização de classe (meios de vida, situação perante o trabalho,
20
40
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
dezoito internos nasceram em Portugal, o que perfaz a grande maioria, tal como
verificado nas prisões civis. Seis reclusos declararam nascer nas ex-colónias
portuguesas - Angola, Moçambique e Guiné-Bissau com três, dois e um elemento
respectivamente – e dois inquiridos nasceram em países da União Europeia. De
salientar que por exigência de admissão às respectivas instituições, todos os militares
possuem nacionalidade portuguesa. Por outro lado, relativamente ao distrito de
nascimento e residência, assistimos a uma distribuição geográfica relativamente
assimétrica, não havendo indícios de estarmos em presença de uma tipologia que
relacione o sujeito ou acto desviante a determinada região do país. O distrito de
residência mais representado é Faro com cerca de cinco indivíduos, seguido de Lisboa
e Leiria, ambos com quatro e Setúbal com três internos. Esta especificidade contraria
o que observamos nas penitenciárias civis, onde existe uma sobrerepresentação das
regiões de Lisboa, Vale do Tejo, Porto e Algarve. Os recluídos militares não residem,
de uma forma geral, em grandes centros urbanos devido à grande dispersão
geográfica das unidades e postos militares, o que lhes proporciona outras alternativas
de residência que não as grandes metrópoles. Neste pressuposto, as características
sociais, culturais, económicas, típicas dos grandes centros urbanos e que
normalmente se constituem como catalisadores para a prática de actos desviantes não
parecem, neste universo militar, contribuir de forma directa para o aumento do número
de prevaricadores.
Outro pormenor que necessita de realce é o elevado número de presos
preventivos, sendo cerca de doze num universo reduzido de reclusos militares. Esta
situação penal incerta, indefinida, origina situações de alguma ansiedade pois reflecte
uma indefinição jurídico-penal que poderá levar a uma eventual condenação ou
libertação. Esta angústia da incerteza leva a que muitos dos preventivos se
mantenham pseudo-ausentes, pensativos, abstraídos nos seus pensamentos e
tarefas, preocupando-se quase exclusivamente com a sua defesa jurídica. Nas prisões
civis, de acordo com Anália Torres e Maria do Carmo Gomes (2002), o número de
preventivos ronda os 28% enquanto o de condenados situa-se nos 72%, havendo um
grupo residual de 0,3% que acumula as duas situações. O número de condenados é
substancialmente superior ao de preventivos, o que não acontece no EPM, havendo
quase uma sobreposição ou replicação destas duas quantidades.
escolaridade, posição hierárquica, dimensão da empresa, ramo de actividade) e as variáveis adicionais de categorização de
classe (idade, sexo, residência, naturalidade, composição e dimensão do agregado doméstico). Na construção do indicador
socioprofissional de análise (Costa, 1999: 276), levou-se em linha de conta as variáveis primárias “situação na profissão” e
“profissão” tendo-se chegado a uma matriz de construção do indicador socioprofissional individual (ISPI) e familiar de classe
(ISPF). Com efeito, no primeiro caso temos cerca de sete lugares de classe distintos: EDL (empresários, dirigentes e
profissionais liberais), PTE (profissionais técnicos e de enquadramento), TI (trabalhadores independentes), AI (agricultores
independentes), EE (empregados executantes), O (operários), AA (assalariados agrícolas); no segundo caso, temos a
acrescentar mais três lugares de classe: os TIpl (trabalhadores independentes pluri-activos), AIpl (agricultores independentes
pluri-activos) e os AEpl (assalariados executantes pluri-activos).
41
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
Os casados representam a quase totalidade da amostra com cerca de
dezanove indivíduos, seguido dos divorciados/separados com cinco, dos solteiros e
viúvos, ambos com apenas um caso (não existem casos de vivência em «união de
facto/juntos»). Esta singularidade distancia-se da predominância de solteiros que
representam quase 51% da amostra de reclusos que se encontram a cumprir pena em
estabelecimentos prisionais civis. Mesmo que somemos aos casados (20,0%) a
percentagem dos que declaram viver em união de facto/juntos (14,4%) obtemos
apenas 34,4% diferindo substancialmente do valor percentual dos solteiros. O que
sobressai de forma mais evidente é o facto dos laços formais, como o casamento, ter
uma expressão elevada no EPM, o que não será alheio ao facto dos reclusos terem a
vida relativamente estável, sólida e organizada, apresentando idades superiores aos
46 anos e mais de vinte e um anos de trabalho desenvolvidos na instituição respectiva.
Efectivamente, dezassete internos declaram estar na instituição há mais de vinte e um
anos, havendo três reclusos, inclusivamente, que ultrapassam os trinta e um anos de
serviço.
Por conseguinte, a realidade
Figura 4. Tipo de agregado familiar
medida
16
14
em
que
no
EPM
predominam os casados, enquanto
14
12
Frequência
reclusa militar difere da civil na
nas prisões civis os solteiros estão
10
substancialmente
em
maior
Tendo
em
8
quantidade.
6
6
5
4
consideração o tipo de agregado
familiar, cerca de quatorze internos
2
1
0
família nuclear
Fam.nuclear alargada
Família monoparental
outr modelo familiar
Agregado familiar
declaram viver em família nuclear e
seis numa família nuclear alargada;
doze assumem ter apenas um filho
enquanto nove têm dois. A grande maioria habita em casa própria (vinte e um
internos), apesar de dois pernoitarem na unidade onde prestam serviço e outros dois
viverem em casa dos progenitores. Em termos do número de elementos que compõem
o agregado familiar, dezoito indivíduos estão incluídos em agregados compostos por
duas ou três pessoas (nove internos quer no primeiro quer no segundo caso). De
destacar a elevada frequência de indivíduos (dezanove) que declaram viver com a sua
companheira/esposa antes da reclusão. Por conseguinte, podemos concluir que a
maioria dos reclusos estava inserida em redes familiares e sociais relativamente
próximas e estáveis. Tal facto não difere substancialmente do que encontramos nas
penitenciárias civis. Efectivamente, de acordo com Anália Torres e Maria do Carmo
42
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Gomes (2002), apenas 21,6% dos reclusos civis admitem viver sozinhos ou com
terceiras pessoas não afectivas, 46% vivia em casa própria e 39% na companhia dos
pais.
O tempo médio de permanência na prisão militar é de 1 ano e três meses.
Nove elementos encontram-se entre o primeiro e o segundo ano de reclusão,
enquanto seis internos situam-se no segundo semestre da pena. Apenas um elemento
se encontra no estabelecimento há mais de três anos (mais concretamente há quatro
anos e um mês). Nas prisões civis, o tempo médio de permanência é 29 meses e
meio, encontrando-se 38,9% entre o primeiro e o terceiro ano da pena e 31,9%
recluídos há menos de um ano, perfazendo quase 71% dos internos que se encontram
encarcerados há menos de três anos. No EPM, se somarmos todos os militares com
menos de três anos de permanência atingimos os 96% (cerca de vinte e cinco
elementos), o que comprova que as duas realidades apresentam algumas diferenças
neste pormenor.
3.3.
Avaliação do EPM, Adaptação, Diferenciação de Tratamento
Vejamos então, como se distribuem as opiniões sobre o EPM relativamente a vários
domínios. Ao serem convidados a posicionarem-se numa escala de «Mau,
razoável» até ao «bom»
insuficiente,
16
, verificamos pela análise das figuras que a alimentação, a saúde,
o relacionamento entre reclusos, a relação com o PGS e com o comando do estabelecimento
reúnem o maior desagrado por parte dos internos. Deste conjunto, destaca-se a relação com
Figuras 5 e 6. Como avalia cada um dos aspectos sobre o EPM?
o
comando
que
reúne
a
opinião de vinte e três internos
que
Aliment ação
5
classificam
«insuficiente
20
Desport o
como
ou
má».
O
5
22
Act ividades
Saúde
a
21
mesmo poderá ser dito em
4
7
Bom/ razoável
Insuf icient e/ mau
19
relação à alimentação com um
Visit as
26
0
rácio de vinte e um para cinco.
Higiene
26
0
Em contraposição, o sistema
de visitas, as condições de
higiene gerais, a sala de convívio e o alojamento reúnem o consenso em torno do
«razoável/bom».
Ao serem interrogados sobre se estariam ou não adaptados à vida prisional, apenas
três elementos responderam afirmativamente. Praticamente todos admitem ter saudades da
família e não ter acesso a determinados bens materiais que lhe causam alguma necessidade,
16
Esta variável foi recodificada e aglutinou-se as respostas em «insuficiente/mau e razoável/bom».
43
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
o que seria de esperar. Todos, sem excepção, afirmam não sofrer qualquer tipo de maltrato.
Contudo, é de ressalvar o elevado número que declaram «não se dar bem com outros
reclusos», o que nos permite antever o ambiente vivido em co-reclusão. No capítulo seguinte
falaremos mais em pormenor deste assunto.
Procurámos saber se, na opinião
dos reclusos, haveria diferenças de
Relacão com Comando
Relacão com PGS
Relacão entre reclusos
3
23
10
tratamento institucional no EPM. Cerca
16
11
de
vinte
e
três
responderam
Uma
análise
Bom/razoável
14
Insuficiente/mau
Sala convívio
24
2
Alojamento
24
2
afirmativamente.
de
conteúdo dos questionários permitiu
concluir, curiosamente, que dois dos
três internos que declararam «não haver
diferenças de tratamento» possuem os postos mais elevados, o que poderá proporcionar uma
falsa percepção dos favorecimentos a que eventualmente estejam sujeitos. A patente e «ser
graxista» são os dois factores que, na opinião dos reclusos, mais contribuem para a diferença
de tratamento (ambos com vinte e três respostas afirmativas e três não-respostas), seguido
da familiaridade com o PGS (dezanove) e o bom comportamento (dezassete). Em oposição,
o tempo de pena, a instituição de origem e a idade, são os pontos que menos contribuem
para alterações no tratamento institucional. Parece ser claro que, tendencialmente, estamos
em presença de uma inequívoca analogia entre os postos dos reclusos, o modo como
reagem às ordens e solicitações do PGS e as relações sociais e institucionais que daí
resultam.
Ao serem interrogados sobre a sua percepção de actividade/inactividade apenas um
elemento se assumiu como «inactivo». Com efeito, vinte reclusos classificam-se como
«activos» e dois assumem-se mesmo como «muito activos». Nas actividades de livre
iniciativa desenvolvidas pelos reclusos nas horas livres, destacam-se tarefas como a leitura, a
prática do desporto e a visualização de programas televisivos. O coleccionismo, o estudo e a
escrita são as actividades que menor adesão têm entre os recluídos, seguido das práticas
religiosas e do uso do computador.
4. SITUAÇÕES PRISIONAIS – PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES
4.1.
Modos de Vida Encarcerados – a Chegada
As fronteiras materiais e imateriais da prisão delimitam um quadro temporário
de vida específico dotado de relativa autonomia e, cumulativamente, um corolário de
relações sociais com dinâmicas próprias. A nossa própria permanência no interior dos
locais de lazer e de habitabilidade causava alguns constrangimentos que foram
44
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
sofrendo alterações ao longo das semanas. Da desconfiança inicial silenciosa e quase
absoluta, onde os reclusos procuraram por à prova a nossa fiabilidade, supondo que
trabalhávamos de acordo com orientações do Staff, dada a nossa razoável liberdade
de circulação, deparámo-nos com alguns relatos (muitas vezes próximos da calunia
que na maioria das vezes, sabemo-lo agora, eram infundados) de actividades ilícitas
quer de militares do PGS quer de alguns co-reclusos. Fomos ouvindo uma série de
lamentos e argumentações contra a má alimentação, a falta de actividades
ocupacionais mais dinâmicas, a ausência de reinserção social, saídas precárias para
uns e não para outros, a repressão, o tipo de desvio de uns e de outros, as injustiças
do PGS, as diferenças de tratamento e de condições, as excessivas formaturas, o
desmesurado atavio, as horas de desporto insuficientes. Deste modo, as primeiras
situações mais formais de entrevista foram algo desapontantes. A permanência no
terreno e as sucessivas conversas individuais (ou em grupo) foram contribuindo para
que a deambulação inicial, onde pouco se apurou e produziu, desse lugar a uma maior
precisão das questões (e também das respostas), demonstrando algum interesse subreptício de que as suas queixas chegassem além-muros ou fossem, efectivamente,
escutadas.
Em praticamente todos os momentos que estivemos mais próximos, sentimos
uma necessidade premente de afirmação de uma identidade não desviante e de clara
demarcação face aos demais co-internos. Apesar de não se falar abertamente do teor
e da duração das penas, denotámos uma inequívoca tentativa de recomposição de um
carácter ou de uma identidade positiva (porventura, perdida ou enfraquecida) e de
requalificação da sua ordem social legítima em que se pretendem re-inscrever. Uma
das facetas preponderantes do dispositivo estigmatizante que encontrámos no interior
da cadeia foi, precisamente, este processo de demarcação individual face ao conjunto
de co-internados, a par de outros aspectos como o repúdio e a condenação dos
crimes alheios.
Quando um cidadão militar entra no EPM e se «transforma» em recluso, após
decisão do TEP, é recebido pelo graduado de serviço e inicia um período de
«quarentena» (que poderá durar, no máximo, até 72 horas) numa cela individual e
específica para esse fim. Ali, afastado dos demais reclusos e despojado dos seus
pertences que ficam à guarda do PGS, recebe apoio psicológico e médico (pela
psicóloga e pelo médico do estabelecimento), tendo em vista avaliar o estado físico e
mental do indivíduo. Nesse período, são-lhe transmitidas as regras básicas que lhe
balizarão os próximos tempos. Horas de formaturas, refeições, fardamentos, enfim,
restrições e liberdades. São lidas e relidas as NEP do EPM.
45
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
Após algum tempo de observação e de conversas informais, chegámos à
conclusão que houve alguns casos em que o período de 72 horas se alargou por
vários dias a mais, sob justificação de que os outros reclusos não gostavam do tipo de
desvio que tinha sido cometido pelo novo interno. Com receio de algumas represálias,
os responsáveis alargaram este período de clausura individual. Outros casos houve
em que, devido ao mau comportamento, à revolta interior que se materializava em
injúrias contra os militares do PGS e a algumas acções, porventura, irreflectidas como o próprio veio a admitir - foi tomada a decisão de perpetuar esta condição até
que os ânimos esfriassem. De realçar que nesta «quarentena» inicial, é permitido ao
novo recluso apenas algumas horas no pátio interior.
Algumas queixas contradiziam, contudo, aquilo que me tinha sido assegurado,
apesar de, no início, não se revelaram como tendo muita credibilidade. Porém, com a
insistência
vindo
de
diferentes
internos,
resolvi
não
negligenciar
estas
considerações:“...assim que entramos, tiram-nos tudo e põem-nos no buraco. Estive lá
5 dias e uma noite. Já estava farto. Não via ninguém, só o soldado da guarda. Queria
ir-me embora, mas não podia. Chamei alguns nomes aos soldados – vinha com a
cabeça perdida. Estava lixado. Nunca vi o médico nesses dias. A Alferes Drª.
[referindo-se à psicóloga] vinha muitas vezes falar comigo. É boa pessoa e ajuda-nos.
Só falei com o sargento-enfermeiro na 2ª ou 3ª manhã (já não me lembro bem). Só
queria saber se consumia drogas ou se era alcoólico. Disse que não, que só fumava
tabaco, mas ele continuava a perguntar o mesmo e a olhar-me de cima para baixo...”.
Confirmámos presencialmente que o médico deveria vir ao estabelecimento um dia
por semana e sempre que chegam novos reclusos. Muitas vezes não o faz. Aparece
quando tem indicações do staff para o fazer. É um médico civil que exerce a profissão
na cidade e que, por avença, ministra consultas na prisão. Quanto às funções de
enfermeiro, previstas como permanentes no EPM, são asseguradas pelo sargentoenfermeiro de uma unidade militar das proximidades, fazendo, por inerência e em
acumulação, também serviço no estabelecimento.
Após o período de quarentena, é colocada a todos os novos reclusos a
braçadeira vermelha no ombro direito (símbolo do grau de confiança reservado),
sendo alojados na parte do bloco prisional que se adequa à sua situação jurídica-penal
e à sua patente. Presos preventivos separados dos condenados e ala prisional
respectiva consoante se trate de um Oficial, Sargento ou Praça. Fala-se de um caso
que, todavia, já não se encontra no EPM, em que um sargento manifestou o desejo de
ser alojado junto dos seus camaradas soldados, pois o desvio tinha sido consumado
em conjunto. Apesar dos pedidos verbais e escritos, o comandante em exercício não
autorizou a mudança de instalações, afirmando que “...não ajudaria na manutenção da
46
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
auto-imagem, postura e conduta-militar do sargento e que iria abrir um precedente que
a meu ver [no do comandante] seria injustificável e imprudente...” (retirado do dossier
de despachos do antigos comandantes).
As alas destinadas a condenados e preventivos não diferem substancialmente
uma da outra. O mesmo não poderá ser dito quando comparamos as celas de Oficiais,
Sargentos e Praças. Enquanto que as destinadas a estes últimos têm camas de ferro,
chão em mosaico e, caso a lotação seja máxima, poderão alojar seis reclusos
dividindo a utilização da casa de banho, as clausuras destinadas a Sargentos e
Oficiais possuem o chão, camas e armários de madeira. Um interno, comparando as
instalações, salientava:“...o chão deles é em madeira. Eles deviam por os pés neste
chão durante o inverno. A humidade é tanta que o chão nunca seca. O meu armário
está empenado e não fecha há um ano. Ainda não o vieram consertar. Mas o armário
do ............. foi logo arranjado...”. Em caso de lotação máxima, as celas destinadas a
Oficiais e Sargentos ocupam, no máximo, dois internos
17
, diferindo apenas no seu
tamanho – a de oficiais é ligeiramente maior. A ala feminina que se encontra vazia por
inexistência de reclusas, é sensivelmente semelhante à destinada aos Oficiais. O
bloco de Oficiais-Generais possui apenas uma cela que é composta por um quarto e
uma pequena sala de estar. De salientar que as celas de praças ocupam todo o rés de
chão, enquanto os restantes blocos situam-se no primeiro andar: “...é impossível não
ter humidade aqui em baixo. O sol não bate aqui. Até nisso eles pensaram. O sol
apenas bate nas celas deles. Porque é que não nos deixam ocupar as celas que estão
vazias no 1º andar? Se entrar alguém, nós descemos. Todas as celas, sem excepção,
têm televisão por cabo. Porém, queixavam-se alguns, não podem ligar qualquer tipo
de aquecimento sendo difícil aquecer nos dias de inverno. Acusavam o PGS de deixar
ligar aquecedores no bloco dos graduados
18
: “...eles fecham os olhos. Fazem que
não vêm. Mas para nós estão sempre com má cara e não permitem nada. Os
graduados têm as celas sempre quentes e nós temos de vir para a sala de convívio,
se queremos aquecer...” Esta proibição, como outras, não se encontra escrita em lado
algum. As NEP são omissas relativamente a este ponto. Todavia, é do conhecimento
de todos que é estritamente proibido utilizar aquecedores que não seja nas salas de
convívio. Apurámos junto do PGS e do estado-maior a razão de tal proibição.
Disseram-nos que, antigamente (não se sabendo bem quando), alguns reclusos teriam
deixado o aquecimento ligado vinte e quatro horas por dia, estando ou não na cela,
originando-se gastos exagerados de electricidade. Um dos militares do PGS dizia
17
Para evitar situações do foro homossexual, é evitado a colocação de apenas dois elementos numa mesma cela. Deste
modo, as clausuras são ocupadas por um só indivíduo ou por três ou mais.
18
Oficiais e Sargentos.
47
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
“...trabalho aqui há seis anos e já existia essa proibição. Eu não deixo ligar os
aquecedores mas nunca ninguém me disse para fazer isso. Eu faço aquilo que ouço
dizer e não quero problemas com ninguém. Ao princípio, eu perguntava e os meus
colegas não me diziam nada. Brincavam comigo. Agora já sei como é que isto
funciona. São os outros que me vêm perguntar a mim”. Depois de constatarmos que
um dos aquecedores estava muitas vezes ligado na cela do recluso mais graduado,
questionámos o PGS sobre esta alegada irregularidade: “...não queremos arranjar
problemas com o ....Ele fala muitas vezes com o comandante e não sabemos do que
falam. Como ele está noutra ala, os outros presos não sabem disso. Ninguém deles lá
pode ir. É melhor assim. Ninguém sabe e não há problemas com ninguém.”
Para além das normas e regulamentações reunidas nas NEP e das inúmeras
ordens de serviço interno que anulam outras ordens anteriores, são produzidas outras
proibições a outros escalões inferiores que vão reduzindo o livre-arbítrio e as
liberdades individuais dos reclusos. Assim, por exemplo, a existência de um recluso
com uma doença terminal obrigou a que a quantidade de medicamentos consumidos
fosse exponencialmente maior do que até então. Havendo a necessidade de se tomar
mais medicamentos, a quantidade de dinheiro semanal gasto por este interno foi
maior. Foi dada autorização para se aumentar a cedência de dinheiro para este
indivíduo. O sentido desta ordem é claro para todos mas o mesmo não acontece
quando é descoberto um telemóvel no interior de uma cela (é proibida a posse de
equipamentos desta natureza pois os internos têm cabinas telefónicas no interior do
bloco prisional que funcionam com cartões pré pagos) o que justificou o aumento
exponencial de revistas exaustivas a todas as clausuras, especialmente aos internos
que não adquiriram cartão pré-pago. A interdição de dispor de um telemóvel é também
objecto de especulação, dividindo-se as opiniões quanto ao seu sentido: impedir que a
bateria e fios sejam utilizados para outros fins ou que seja usado para comércio
interno e favorecimentos. Estas e outras especificações não constam das normas
internas, fazendo com que os reclusos (e também os militares mais novos do PGS) se
vão inteirando das normas à medida que as infringem. Em contrapartida, o
conhecimento da rotina, a antiguidade, a velhice, proporcionam estratégias para
contornar algumas delas. Por conseguinte, a proliferação de normas e regulamentos
constrangem tanto os internos como os militares do PGS, ainda que de forma distinta.
Para estes, a margem de conhecimento dos regulamentos, as ilações que retiram
deles e a própria experiência pessoal aliada à maior ou menor capacidade de
improvisação e decisão, originam situações de alguma imprevisibilidade e flexibilidade,
de modo a que se cumpra o que está escrito e não se contradiga o que não está. A
inexistência de um código ou regulamento que descreva todas as regras e normas em
48
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
uso, faz depender do «costume e do hábito» a gestão, decisão e resolução de muitos
dos problemas diários, pelo que a autoridade dos militares do PGS mais antigos e
«com mais tempo de casa» é inequivocamente superior.
4.2.
A Cadeia de Comando e os Grupos
Sabendo das diferenças de atitude e de resposta às solicitações, os internos
dirigem-se a determinados militares da vigilância para fazerem alguns pedidos ou
aguardam que certa pessoa esteja de serviço para executar determinadas acções que
não fariam com outros. Por conseguinte, a tradição, o hábito e o costume não
uniformizam os métodos utilizados, havendo discrepâncias entre diferentes militares
do PGS que, desconhecendo uma ordem prévia de um colega, permitem o que
anteriormente já havia sido interditado.
Para os pedidos de maior envergadura, que englobam o bem estar de todos
(ou pelo menos o da maioria), os reclusos utilizam a cadeia de comando formal e
dirigem-se verbalmente e numa primeira fase ao comandante do PGS que, por norma,
consulta o comando do estabelecimento. Se as intenções não forem satisfeitas,
procuram comunicar directamente com o comandante (muitas vezes modificando o
teor do pedido ainda que o produto final seja o mesmo) que, de uma forma geral,
sempre se mostrou comunicativo e receptivo. Nas alturas em que houve necessidade
de dar resposta a estes pedidos mais formais, o comandante utilizou sempre a cadeia
de comando reclusa: solicitou a presença do interno com maior patente ao seu
gabinete, na companhia do estado maior e do comandante do PGS e transmitiu-lhe as
considerações que julgou pertinentes, sabendo que seriam relatadas aos demais.
Contudo, verificámos que a cadeia de comando entre os presos era quase
sempre desrespeitada, apesar dos reclusos o negarem e não o assumirem
abertamente É um facto que eles encontram-se sujeitos ao Código de justiça Militar
(CJM) e ao Regulamento de Disciplina Militar (RDM), como se permanecessem no
serviço activo. E eles sabem-no perfeitamente. Como tal, para evitar problemas do
foro disciplinar, afirmam respeitar a hierarquia esquecendo que os seus actos não
estão em sintonia com as afirmações. Em primeiro lugar, existem pequenas
conversas, mexericos, relatos, novidades que não são transmitidas entre ramos das
Forças Armadas e, mais especificamente entre os diferentes grupos, o que contraria a
lealdade e a frontalidade que deve existir entre militares quer da mesma patente, quer
de patentes distintas. Os elementos da GNR guardam para si algumas informações e
não as transmitem aos militares da marinha. O mesmo se passa com os do exército e
vice-versa. Um pequeno sub-grupo de 3 fuzileiros que prevaricaram em conjunto e que
49
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
se encontram no estabelecimento há apenas dois meses, evitam mesmo falar com
todos os restantes - inclusive com o interno mais graduado que pertence ao mesmo
ramo - apenas executam os cordiais cumprimentos «obrigatórios». Um destes três
elementos dizia: “não tenho vontade de falar com ninguém. Aqui somos todos iguais.
Somos todos presos. Apenas confio nos meus dois amigos. Fiz a recruta com eles. Sei
quem são e o que valem. O ...........[referindo-se ao interno mais antigo
19
] está na sua
cela a ler e eu estou aqui a ver televisão. Ele é intelectual [sorriso em tom jocoso] e eu
sou do povo. Não gosto dele. Já o conheço do Alfeite. Tem a mania; mas aqui somos
iguais. Não tenho de falar com ele. Digo bom dia e mais nada”. Um dos fuzileiros
destaca-se nitidamente quando o comparamos com os outros dois. É excessivamente
educado, cordial e protocolar. Tem habilitações literárias mais elevadas e preocupa-se
com a imagem e com as respostas que fornece. Reflecte muito, “mede” as suas
palavras ao milímetro, sabendo o que deve e não deve dizer. Os outros dois estão
dependentes do que este decide sendo facilmente manipuláveis, o que os leva a
aceder às suas orientações. Antevemos uma eventual competição com o recluso
considerado como líder. Seria interessante, caso o tempo disponível o permitisse,
verificar a alteração de identidades, representações, rotinas, diálogos e os focos de
tensão que certamente se processarão entre estes dois protagonistas.
Outros elementos deixaram transparecer que não confiam no interno mais
graduado para defender os seus interesses junto do comando do estabelecimento,
afirmando que este apenas está preocupado em defender a sua imagem junto do
comando e do estado maior, não se preocupando com os outros. Realçam que
preferiam que fosse o ............. a dirigir-se ao comando em nome de todos eles mas o
comandante não permite, pois só recebe o mais antigo. Referem-se a um elemento da
GNR que já havia sido referenciado pela psicóloga e pelos militares do PGS, como
sendo o recluso que domina todos os outros. Calmo, sereno, ponderado, reservado,
perspicaz, observador, confiante, foram alguns dos termos utilizados para o descrever.
A este propósito, a psicóloga salientava: “ele é meticuloso, frio, calculista e os outros
seguem-no quase inconscientemente. Ele é o verdadeiro porta-voz do grupo pelo àvontade e pela maneira como se exprime. Consegue manipulá-los e eles, cordeirinhos,
seguem-no”. De facto, apurámos que os outros elementos, de uma forma geral,
aceitam as suas ideias à excepção do recluso mais antigo que se mantém neutro,
refugiando-se nas leituras e na meditação no interior da sua cela. O nível de
habilitações do recluso considerado como líder situa-se ao nível do secundário, sendo
superior à média da classe de praças. Tem um negócio legal, na área hoteleira, que
gere à distância através do telefone, sendo alvo de alguns comentários que envolvem
19
Militar com patente mais elevada.
50
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
um misto de admiração e inveja. Não se expõe demasiadamente. Conversa com os
outros internos, sobretudo nas áreas de lazer e em períodos de actividade reduzida
20
,
quando o estabelecimento tem menos militares de serviço e poucos «olhares
indiscretos», mantendo o silêncio quando subitamente aparecem elementos do PGS
em redor. Esta atitude, juntamente com outras, levou a que um outro recluso o
apelidasse de cobarde, originando-se algumas agressões verbais (e alguns
empurrões) que foram interrompidos pela entrada do graduado de serviço. Transmite
as suas opiniões, procura convencê-los através da persuasão e da argumentação e
geralmente consegue-o. Porém, na hora de se empregarem medidas que envolvam a
consciência colectiva, ele permanece calado na retaguarda deixando que os outros se
envolvam, a não ser que os motivos sejam remuneradores para a conservação do
status e do poder acumulado.
Por conseguinte, podemos assumir que a hierarquia formal militar é respeitada
pelo comando do estabelecimento. Porém, o mesmo não acontece com os reclusos
que preferem, ainda que de uma forma não assumida e camuflada, valorizar uma
outra hierarquia informal e subterrânea no relacionamento entre pares, privilegiando
outros valores que não a antiguidade ou o posto.
Após uma observação mais cuidada, conseguimos apercebermo-nos de alguns
grupos que se mantém a uma «distância de segurança» dos outros. Não partilham
informação (a não ser que ela seja desprovida de qualquer valor de troca),
praticamente não dialogam e evitam permanecer muito tempo sem estar na
companhia dos que têm afinidades. Julgamos que não se sentem seguros quando
estão isolados e não há outro elemento do grupo à vista, apesar de não se
conhecerem episódios de agressões violentas no EPM. Os três fuzileiros são os que
mais se isolam, não procurando esconder essas intenções solitárias mesmo na altura
das refeições em que o espaço é exíguo e há a necessidade obrigatória de partilha de
mesas. Os militares da GNR, enquanto grupo mais numeroso e provavelmente o
menos coeso, não procuram problemas tentando, de uma forma geral, apaziguar
certos focos de tensão. Assim, por exemplo, um dos elementos deste grupo está a ser
acompanhado clinicamente no sentido de deixar de consumir álcool, estando
autorizado a beber apenas uma pequena porção a cada refeição. Ao princípio
verificámos que essa proibição não era cumprida e que procuravam esconder esse
facto da nossa observação. Porém, quando finalmente concluíram que não
trabalhávamos ao serviço do estabelecimento, multiplicaram por três ou quatro o
número de copos permitidos, chegando mesmo a oferecer-nos uma garrafa de vinho
20
Nas Unidades Militares e relativamente ao teor das tarefas, existem dois períodos, designadamente os de actividade plena
(normalmente coincidente com os dias úteis) e os de actividade reduzida (fins de semana e feriados).
51
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
do estabelecimento que se encontrava sub-repticiamente escondida no interior de um
blusão
do
uniforme.
A
embriaguez originou
alguns
desacatos
envolvendo,
especialmente, o interno que se encontrava em recuperação alcoólica, chegando a
haver injúrias e empurrões contra elementos de outros grupos. Alguns reclusos da
GNR separaram os militares em disputa e pediram prontamente desculpa aos demais
em nome do seu camarada que não se encontrava nas «melhores condições», não
necessitando de haver intervenção formal do PGS. Este incidente originou que todas
as celas fossem inspeccionadas minuciosamente e todos os presos consumissem
apenas um copo a cada refeição, estando ou não em abstinência alcoólica. Este facto
contribuiu para esfriar, ainda mais, as fracas relações entre grupos.
No interior dos internos da GNR, há um relacionamento relativamente forte
entre aqueles que provêm do Algarve (cerca de cinco elementos), chegando mesmo a
haver algumas famílias que trazem alimentos e outros bens para entregar a terceiros.
Este pormenor apenas acontece neste sub-grupo. Não é algo que seja considerado
usual, já que os internos não partilham os artigos que são trazidos pelas famílias, nem
mesmo dentro de cada grupo.
Um dos reclusos é, de certa maneira, discriminado pelos outros, não por ser o
mais velho ou ter a pena com maior duração mas por ter cometido um «crime de
sangue», como alguns resolveram denominar. Este interno vive para ser reconhecido
socialmente pelo staff prisional. Deseja ser visto como um elemento apaziguador,
respeitador das normas e regulamentos. Aparenta ser educado, cordial, simpático,
formal, humilde, muitas vezes aproximando-se do exagero. É voluntário para tudo o
que é sugerido, desde pintar alguns compartimentos do estabelecimento até cuidar
dos animais e das plantas que preenchem os espaços tornando-os mais aprazíveis e
acolhedores. Por estas razões é apelidado de «graxista e lambe-botas» pelos coreclusos. É um indivíduo excessivamente meticuloso apresentando, segundo a
psicóloga, elevados índices de psicopatia. É apontado como tendo a «mania das
limpezas». Tem a cela sempre arrumada e ordenada, sendo dos poucos que tem a
roupa da cama impecavelmente esticada e engomada, chegando a tomar vários
banhos por dia. Não cria conflitos com os restantes internos nem com o staff. Procura
dar igual atenção a todos os que o rodeiam. Respeita as ordens sem murmurar e
apresenta-se sempre com um dinamismo e uma energia interior que incomoda os
internos que o observam. Cumprimenta todos com igual consideração, apesar de
poucos lhe devolverem igual sinergia. É um dos principais denunciantes. Comenta
com o staff que os outros internos não limpam convenientemente os corredores e as
celas, discriminando os nomes de quem prevarica. Numa ocasião, ao ver passar o
comandante e após pedir para falar em particular, queixou-se que não suportava tanto
52
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
fumo nas salas e nos corredores, o que ia contra as normas internas (só se pode
fumar no pátio). Esta faceta denunciante é sobejamente conhecida pelos demais, o
que lhe exponencia o abandono a que é sujeito. Porém, com o passar do tempo não
demonstrou indícios de estar afectado por este pseudo-isolamento, mantendo-se
convicto nas suas decisões.
No interior do estabelecimento, desaparecer um pouco de manteiga ou
algumas bolachas é motivo para zangas e amuos. Ali dentro, os mais pequeno
incidente assume proporções gigantescas e não é esquecido com facilidade. A
diminuição da autonomia individual, tendo em consideração as restrições directas de
determinados bens por imposição do sistema (restrições que não existem além-muros)
originam perturbações e obsessões por pequenos pormenores. Um dos militares mais
novos do PGS dizia-nos: “não sei porque é que eles são tão invejosos. Não partilham
nada uns com os outros. Contam as bolachas que têm no pacote, põem marcas na
manteiga para saberem se alguém a utilizou. Estão sempre a ver o que cada um tem;
o que as visitas trouxeram. Não percebo...”
Acreditamos que a pseudo aproximação entre indivíduos não é desprovida de
interesse, a não ser a do pequeno sub-grupo de três fuzileiros que confiam e
protegem-se mutuamente. Julgamos que estamos perante um fenómeno de «ausência
de solidariedade generalizada e abrangente» já que os reclusos pouco mais têm em
comum do que envergarem um uniforme - que até difere consoante o ramo das FA a
que pertencem - e estarem recluídos. Paradoxalmente, esta ausência de
camaradagem e solidariedade viola um dos princípios militares.
À medida que os reclusos interiorizam os limites e os detalhes da rotina, zelam
por ela de maneira minuciosa. Qualquer facto susceptível de a alterar gera
perturbação e ganha uma importância inusitada, produzindo comentários para vários
dias. O anúncio de mudanças nos modos de vida - como a alteração da hora das
formaturas e do uniforme – são recebidas com desconfiança e receio, pondo em risco
a «segurança e a previsibilidade» que a rotina proporciona.
4.3.
Os objectos, as Visitas, a Correspondência
Existem dois bares e duas salas de estar onde os reclusos podem conviver
(bar e sala para preventivos e condenados). Nestes locais, existe uma convivência, à
primeira vista, salutar entre reclusos. Nos primeiros dias, chegámos a pensar que não
haveria quaisquer atritos ou diferenças de opinião e que estes reclusos seriam um
exemplo de tolerância e de gratidão. Alguns viam televisão, outros liam os jornais,
jogavam às cartas ou às damas. Um deles bordava e mostrou-nos, prontamente,
alguns trabalhos que já havia concluído. O bar e a sala são geridos pelos próprios
53
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
presos, exceptuando os materiais à responsabilidade do estabelecimento (móveis,
cadeiras, jogos, computador sem acesso à internet, aquecedores). Os jornais, o leite,
o café, as revistas, as bolachas, enfim, tudo o que é material de consumo, é comprado
com o dinheiro dos reclusos ou então trazido pelas visitas. Como já foi referido, os
internos não mexem nos artigos de outros, apesar de estarem reunidos no interior do
mesmo armário ou frigorífico.
Verificámos que durante alguns períodos de actividade reduzida havia uma
completa convivência entre preventivos e condenados. O «muro» que separa os dois
bares podia, afinal, ser «facilmente transposto», bastando para isso que os militares
de serviço o permitissem. E esta permissão era dada quase todas as noites. Um dos
graduados de serviço do PGS dizia-nos: “...é melhor deixá-los estar assim. Falam uns
com os outros e aliviam a cabeça. Dão-nos menos problemas, andam mais calmos...”
As visitas decorrem no horário fixado para o efeito, havendo uma diferenciação
entre os preventivos e os condenados. Dizem as NEP que os primeiros podem ter
visitas todos os dias das 10h00 às 12h00 e das 14h00 às 16h00, enquanto os
segundos apenas recebem familiares e amigos às quartas-feiras, sábados, domingos
e feriados no mesmo horário. Porém, constatámos que esta diferenciação não se
efectua na realidade. Todos os presos estão autorizados a receber visitas todos os
dias, mesmo fora destes horários. Algumas vezes verificámos que era permitido aos
reclusos almoçar com os familiares numa sala para o efeito, desde que a refeição
ficasse a seu cargo e fosse solicitada autorização nesse sentido. Todos os visitantes
estão sujeitos a uma revista pessoal efectuada através de um detector de metais, de
palpação ou, no limite, por desnudação. A sua não colaboração inviabiliza a
concretização da visita. Os seus objectos pessoais ficam guardados num cacifo
próprio existente na sala de revista cuja chave apenas é manuseada pelo próprio.
Todos os produtos oferecidos pelos familiares (existe uma lista que discrimina os
alimentos autorizados e a sua quantidade – ver anexo E) não podem ser entregues
directamente ao recluso, pois necessitam de ser inspeccionados pelos militares do
PGS. Alguns presos manifestaram o seu desagrado ao lhes serem entregues,
alegadamente, alguns artigos completamente destruídos após a inspecção. Um deles
afirmava: “...eles fazem de propósito. Se um queijo tem bom aspecto, eles amassamno e cortam-no. (...) Desaparece metade dos bolos. O mel fica com um sabor
estranho. Não vale a pena dizer nada...” Ao ser confrontado com estas acusações, o
comandante do PGS, mostrando-se indignado, transmitiu-nos que antigamente teriam
havido alguns abusos. Disse-nos que as revistas aos alimentos passaram a ser feitas
na presença dos reclusos que observam o modo como são inspeccionados. Frisou
que não tem havido queixas, não percebendo como essa informação teria chegado até
54
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
nós. Presenciamos as inspecções aos alimentos e, efectivamente, os reclusos
estavam presentes e verificavam in loco, o que era efectuado. Após algum tempo,
soubemos que o recluso que se tinha lamentado sobre o mau tratamento dos
alimentos, tinha tentado que entrasse, algumas semanas antes da nossa conversa,
uma quantidade de alimentos superior ao permitido. Por consequência, tiveram que
diminuir as quantidades recorrendo ao corte de bolos e de queijos pela metade, tendo
o resto sido devolvido às visitas, o que deixou o interno profundamente revoltado.
Após a revista pessoal, os visitantes são dirigidos à sala de visitas. Sala ampla,
arrumada, com mesas e cadeiras de madeira onde as famílias podem conversar com
alguma privacidade. Os soldados do PGS aguardam no exterior, apesar de poderem
visualizar e controlar as interacções através dos vidros. Nesta sala também existem
alguns brinquedos e um pequeno escorrega (material oferecido pelos militares que ali
prestam serviço) para que as crianças, durante o período da visita, possam brincar e
divertir-se, tornando o ambiente mais descontraído e relaxante. Se o recluso assim o
entender, pode solicitar autorização para dar um passeio nos jardins do
estabelecimento, apesar da vigilância, neste caso, passar a ser mais estreita e rígida.
Se o interno for casado ou viver em união de facto, pode receber a sua companheira
numa «visita íntima», havendo um alojamento para esse efeito. Namoradas, «ligações
extra-conjugais
21
» ou outro tipo de conquistas não estão autorizadas a ser
consideradas como «íntimas». A este propósito, um dos internos dizia-nos:“...nunca
colocarei a minha esposa numa situação deste género. Não há intimidade nenhuma.
Os soldados olham para as mulheres dos reclusos e sabem para o que vêm. Falam,
comentam. Não quero que a minha mulher se sujeite a isso...”
Como se trata do único estabelecimento prisional para militares, muitos
reclusos encontram-se afastados dos seus locais de residência e dos seus familiares
para que possam receber, com regularidade, a sua visita. Este constrangimento de
ordem geográfica foi largamente mencionado no decorrer das entrevistas e das
conversas informais. Todos os reclusos que não recebem visitas regulares encontramse privados de um fundamental suporte afectivo e material. A inexistência de visitas
repercute-se nas relações sociais internas e na maior ou menor dependência de uns
reclusos em relação a outros. A própria reinserção social é enfraquecida por este
afastamento familiar e comunitário.
As visitas trazem produtos que, de outro modo, teriam de ser comprados com
dinheiro de cada recluso que é administrado por um graduado do PGS. Os internos
estão autorizados a levantar da instituição de crédito onde têm dinheiro depositado,
21
Entende-se por relações extra-conjugais como sendo as ligações amorosas que são mantidas em paralelo com a da
esposa ou da companheira com quem se vive.
55
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
cerca de 50€ por mês
22
. São levados sob escolta a um multibanco, levantam a
quantia autorizada e entregam-na na totalidade à guarda de um graduado do PGS que
anota num registo a quantidade de dinheiro que cada preso possui. É estritamente
proibido a posse de qualquer tipo de valores no interior do bloco prisional (dinheiro,
ouro, anéis – excepto aliança – fios, etc). Quando o interno pretende adquirir um
jornal, tabaco, um medicamento que não seja da responsabilidade do posto de
socorros ou comprar alimentos para saborear entre refeições, solicita estes préstimos
ao PGS que, numa primeira oportunidade, adquire esses produtos, descontando o seu
valor à quantia que estava amealhada. Quando o dinheiro atinge os 10 €, os reclusos
são informados da situação e, no mês seguinte (caso assim o decidam), repete-se a
operação no multibanco com o levantamento de mais 50 €. Se esta quantia não for
suficiente, terão de solicitar por escrito a razão de tal insuficiência e apenas o
comando do estabelecimento tem autoridade para alterar esta rotina.
De um modo geral, aplica-se à correspondência controlo idêntico ao dos
visitantes. As cartas são fechadas e abertas pelo PGS na presença do recluso
respectivo, salvo as que se destinam e provenham do seu advogado ou de outras
entidades previstas na lei. Não existe interdição de destinatários, podendo o interno
receber e enviar cartas a quem desejar. Todavia, o conteúdo da correspondência é
examinado em ambos os sentidos. Esta tarefa é executada unicamente pelo sargento
e pelo comandante de PGS, tendo em vista a preservação da segurança do
estabelecimento e questões de reinserção social, uma vez que esta acção não visa
apenas controlar determinados projectos de fuga, exercendo-se igualmente sobre
queixas várias a respeito do estabelecimento. Comentários sobre o tratamento dado
pelo staff, a qualidade da comida ou das celas, rotinas ou comportamentos de
terceiros são alvo de censura, obrigando a uma reformulação dos conteúdos. Alguns
reclusos mantêm uma relação de influência, fundamentalmente, devido ao seu posto,
facto que lhes proporciona uma examinação menos cuidada e um controlo mais fraco
(algumas vezes mesmo inexistente). Por este e outros acontecimentos, onde a
diferença de alojamentos e de condições entre categorias assume um ponto fulcral,
acreditamos que o tratamento dado pelos staff aos reclusos tem especificações e
orientações diferentes, tornando-se mais respeitoso, distante, receoso à medida que
se sobe na hierarquia militar. Este factor é preponderante relativamente a outros como
a duração da pena e tipo de crime, tal como mencionámos numa das nossas
hipóteses.
22
Este valor foi alterado para o recluso que se encontra com uma doença terminal, tendo sido acrescido aos 50 € o valor dos
medicamentos. Os reclusos em prisão preventiva têm direito à totalidade do vencimento. Os condenados recebem um quarto
do vencimento, conjuntamente com os descontos decididos em tribunal.
56
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Julgamos que esta censura não se limita apenas aos princípios defendidos
pela instituição, designadamente a segurança e a reinserção social. Defendemos que
por detrás destas acções, existe uma tentativa mais lata e abrangente, ainda que subreptícia e camuflada, de promover a disciplina, a moralização para as boas práticas e
o encaminhamento para escolhas e decisões onde predomine o legal em detrimento
do desviante. As sucessivas censuras, inspecções e revistas onde tudo é observado
cuidadosamente, induz a uma descaracterização da personalidade, procurando
originar seres desprovidos de iniciativa que acatem as ordens de um modo
inconsciente, sem recorrer a contestações, murmúrios ou reivindicações.
4.4.
O Fardamento e o Atavio
Quando um interno se encontra no período de «quarentena», é-lhe transmitido
que deverá usar uniforme e manter hábitos de higiene que promovam a auto-imagem
do militar e da instituição que representa. Os reclusos não devem usar, em qualquer
circunstância, roupas de índole civil como calças de ganga ou outro vestuário similar.
A limpeza e a correcta apresentação dos uniformes (tal como do seu alojamento, do
bar e da sala de convívio, excepto a roupa da cama) é da sua directa
responsabilidade.
O uso obrigatório de uniforme é defendido como medida preventiva destinada a
facilitar a sua identificação no interior e no exterior do estabelecimento, como factor
personalizador e uniformizador, como recondução dos desviantes à sua normalidade e
como continuidade da sua condição militar. Todavia, independentemente da sua
patente, os reclusos perdem a acção de comando, mesmo se tiverem um posto
superior ao do comandante do estabelecimento. Como já foi mencionado, os reclusos
em situação de reserva ou reforma trajam à civil, havendo apenas um nestas
condições. Esta indumentária civil obedece a algumas considerações: “...deve ser
discreta, sóbria, respeitosa e adequar-se às situações respectivas...” (Estabelecimento
Prisional Militar - Normas de Execução Permanente, 2004: 19).
Existem formaturas nas quais devem comparecer todos os reclusos. Formatura
do pequeno-almoço (7h30), início de trabalhos da manhã (9h00), almoço (12h30),
início de trabalhos da tarde (14h00), jantar (19h00) e recolher (21h30), salvo outras
entendidas como pertinentes. Às 22h00 recolhem às celas que são fechadas pelo
PGS, permanecendo nesta situação até às 7h00 do dia seguinte. Às 02h00 todas as
luzes são apagadas no interruptor central ficando apenas as de emergência no interior
das clausuras, permitindo o controlo visual através da janela de vigia das portas.
57
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
Os internos devem apresentar-se com os uniformes engomados
23
, limpos,
botas ou sapatos devidamente engraxados, cabelo e barba aparados. Esta é uma
situação que, salvo casos pontuais, não origina qualquer atrito pois não constituem
novidade, tratando-se apenas de um prolongamento da sua atividade laboral, embora
noutra situação e com constrangimentos diferentes. Às terças e quintas-feiras, dias em
que têm educação física, podem comparecer à formatura do pequeno-almoço e da
manhã com o fato de treino em uso em cada instituição. Nas alturas em que se
encontram a executar tarefas ocupacionais voluntárias, podem vestir uma bata
protectora ou despir algum tipo de fardamento que dificulte estas acções.
Quando nos deslocámos no primeiro fim-de-semana ao estabelecimento,
verificámos que alguns dos reclusos envergavam roupa civil, outros encontravam-se
meio uniformizados, envergando chinelos, sapatilhas, etc. O nivelamento dos reclusos
estabelecido pelo carácter estereotipado do uso do uniforme e pela estandardização
do corpo a que estávamos sobejamente habituados durante a semana, contrastava
agora com esta imagem aparentemente desordenada e desorganizada, fazendo
relembrar, ainda que por breves momentos, o teor e o carácter das penas. Após o
nosso espanto inicial, tentámos descortinar a razão de tal desiderato ao que nos foi
dito pelo graduado de serviço que ao fim de semana os reclusos têm autorização para
andar assim e aliviar o fardamento. Podem lavar e passar a ferro as fardas para que
não hajam desculpas durante a semana...
Os reclusos não podem ser obrigados a trabalhar. Aderem voluntariamente a
serviços na lavandaria, jardinagem, na cozinha, carpintaria, mecânica, biblioteca. A
esta voluntariedade, não será alheio o facto de contribuir para o acesso a saídas
precárias. A psicóloga argumentava que ... se um interno não coopera, não se mostra
interessado nas actividades ocupacionais, é um foco de tensão e de ansiedade, o que
resulta numa informação negativa...
O recluso identificado como líder é o único que se recusa a desempenhar
qualquer tarefa. Este é um facto que contribui para o aumento da sua credibilidade
junto dos co-reclusos, ao verem nele um indivíduo que não tem problemas em assumir
as suas escolhas mesmo quando essa situação lhe pode trazer profundas
desvantagens pessoais. Ao ser questionado sobre a razão de tal escolha, retorquiu em
tom irónico...pensei que vinha para a prisão apanhar sol e dormir. Não quero trabalhar.
Isso é uma segunda pena...
Após autorização do conselho técnico e do NAC, o comandante tem autoridade
para conceder duas saídas precárias por trimestre para a sua área de residência, com
23
Existe uma máquina de lavar e outra de secar roupa, com os respectivos detergentes cedidos pelo estabelecimento e
algumas tábuas de passar a ferro, para que não haja impedimentos ao bom estado e conservação dos uniformes.
58
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
a duração de um fim de semana
24
. Se a situação o justificar, o comandante pode
autorizar um recluso condenado a ausentar-se do estabelecimento até 12 horas - não
o pode fazer para os preventivos que apenas podem ser autorizados pelo Juiz do TEP.
Dois reclusos encontram-se matriculados em estabelecimentos de ensino próximos do
EPM, na esperança de poder assistir às aulas tendo em conta essa possibilidade de
ausência. A este propósito, o comandante afirmou que, além das saídas precárias que
são fundamentais para a reinserção familiar e social, não concedia outro tipo de
autorização a nenhum recluso, defraudando as expectativas de assistência das aulas
e futuro aproveitamento escolar, originando alguma frustração e irritação que se
materializa em constantes amuos e desabafos entre pares.
É dado aos reclusos a possibilidade de personalizarem as suas celas,
tornando-as lugares mais acolhedores e familiares, estando longe de constituir um
espaço próprio e reservado. Podem colocar cachecóis, fotografias, posters, desde que
não perfurem a parede nem danifiquem o material que se encontra à carga de cada
cela. Evidentemente que não poderá constituir um espaço privado dado as constantes
entradas de soldados do PGS e as revistas inopinadas que são efectuadas como
rotina de segurança. É, inclusivamente, um espaço inseguro, tendo em conta uma
potencial transferência de cela por ordem superior. A autonomia individual é reduzida,
havendo uma fragilização das fronteiras individuais dadas as restrições de tempo e de
espaço impostas pela rotina do estabelecimento, aliadas aos condicionalismos
monetários e à privação do livre-arbítrio nas mais variadíssimas ocasiões. Estas
regulações integram um processo de “Mortificação do Eu” de que nos fala Erving
Goffman (1987), em favor de uma consciência colectiva de obediência que tende para
o servilismo, ainda que a instituição defenda que se enquadram em objectivos
puramente institucionais auto-disciplinares que visam uma futura reinserção societal
sólida e adequada.
5. PONTO DE CHEGADA - NOTAS CONCLUSIVAS
A reclusão militar tem particularidades distintivas e específicas que a distingue
das demais. Esta é uma das principais conclusões da pesquisa. Conclusão também
relevante é a que identifica, claramente, uma tentativa premente de afirmação de uma
identidade não desviante e de diferenciação face aos co-internos. Em todas as
conversas, esteve sempre presente uma tentativa, poucas vezes sub-reptícia, de
recomposição de uma identidade positiva e de reposicionamento numa ordem social
legítima onde se pretendem re-inscrever. Trata-se de procurar convencer que não
24
Cumulativamente, o Juiz do TEP pode conceder até dezasseis dias por ano e o General Director do Serviço de Justiça e
Disciplina pode conceder até seis dias.
59
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
houve prevaricação, que se cometeram injustiças, tentando-se revisitar, ainda que por
breves momentos, situações e episódios vividos de modo a originar-se um
afastamento ou desvinculação do seu novo papel social. Identidades e sociabilidades
que se articulam em oposição a um carácter desviante que a grande maioria procura
afastar. O sentido improvisado em que evitam uma solidariedade e uma consciência
colectiva é disso um sinal inequívoco, alicerçado num conjunto de práticas,
representações e rotinas quotidianas que se antagonizam com o estigma desviante
que os une e contratualiza. A cooperação quando existe é estratégica, não sendo
isenta de favorecimentos e intenções.
Outro factor a ter em consideração é o afastamento dos padrões hierárquicos
formais entre os reclusos. Foi inequivocamente identificado que os internos não são
fiéis à cadeia de comando imposta pelos vínculos institucionais exteriores e preferem
seguir, ainda que não o assumam claramente, ideias, opiniões, ideologias, opções que
lhes forneçam confiança, mesmo que para isso tenham que reformular determinados
valores militares como a lealdade, a camaradagem, o espírito de corpo, a frontalidade.
Identificam e seguem quem lhes pareça proporcionar melhores condições de sucesso,
independentemente de patentes ou escalão etário. Aliás, o recluso identificado como
líder é dos que possui patente e idade mais reduzida, contrariando certas ideologias
de senso comum que procuram aliar a uma maior idade, uma maior capacidade de
persuasão e maiores conhecimentos e experiência. Consequentemente, umas das
minhas hipóteses não foi corroborada, isto é, a hierarquia militar formal não
corresponde à hierarquia informal subterrânea no relacionamento entre co-internados.
Apenas funciona de maneira irrepreensível no sentido comando-reclusos.
Outro pormenor a ter em consideração é a proliferação de ordens e proibições
escritas ou não, que originam zonas dúbias de decisão, quer para os reclusos quer
para os elementos do PGS, constituindo-se o hábito, a rotina, a antiguidade e o
costume como factores decisores na conduta e livre-arbítrio dos actores sociais em
causa.
O tratamento institucional dado pelo staff aos reclusos não é idêntico. A
começar pelas condições de alojamento que são distintas consoante a classe a que se
pertence, a conivência do PGS para com os reclusos-graduados ao deixar passar
algumas proibições que são impostas a outros, são indícios que possibilitam a
confirmação de uma das hipótese de partida. A diferença nas condições dos
alojamentos é um factor, por si só, perturbante e causador de afastamento entre os
internos. O respeito e o receio dos militares do PGS pela graduação dos reclusos é
inequívoca, diminuindo a sua exigência e rigor à medida que se sobe na hierarquia
militar.
Em suma, o tratamento dado pelo staff tem orientações e especificações
60
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
diferentes, tornando-se mais permissivo, benevolente, respeitoso à medida que se
sobe na hierarquia formal militar, sendo um factor preponderante relativamente aos
demais.
Em traços gerais foi ainda possível identificar outras características dos
reclusos. A grande maioria pertence à classe de Praças e apresentam qualificações
escolares relativamente baixas ao nível do 1º e 2º ciclos do ensino básico, o que
confirma uma das hipótese de partida. Trata-se de uma população de indivíduos
masculinos a rondar os 47 anos de idade e casados, o que a distingue das populações
maioritariamente jovens e solteiras que se encontram recluídas nas penitenciárias civis
nacionais. A esmagadora maioria está presa pela primeira vez, sendo quase marginal
o número de reincidentes. O tempo médio de permanência na prisão é de um ano e
três meses havendo apenas um indivíduo que se encontra detido há mais de três
anos. Não se encontram indícios da tríade «homossexualidade, drogas, violência»,
contrapondo-se aos números que encontramos mencionados na literatura sobre as
prisões civis. A inexistente presença de mulheres, corresponde também à diminuta
quantidade de elementos do sexo feminino que, percentualmente e em comparação
com os homens, se encontram recluídas em Portugal. Este facto não poderá ser
dissociado dos modelos de construção da identidade masculina e feminina. A
socialização dos rapazes tende a ser mais desregrada, mais afirmativa e identitária,
apelando a uma maior consciencialização de aspectos exteriores ao domicílio - como
os grupos ou a violência física entre pares - e a um menor controlo dos progenitores
como meio de expressão da masculinidade. O género feminino tende a ser socializado
em torno de práticas que favorecem a organização, as regras, a obediência, o
retraimento, a docilidade e o fechamento doméstico.
A maioria dos crimes está relacionado com o roubo e o furto, seguido do tráfico
de droga, havendo quase uma replicação com o tipo de crimes que prevalecem na
sociedade civil. A instituição mais representada é a GNR, não sendo irrelevante a sua
proximidade a actos e acções desviantes devido à natureza da sua missão, factores
que contribuem para a permeabilidade e susceptibilidade dos agentes a situações
marginais.
As tarefas ocupacionais efectuadas pelos internos, apesar de se constituírem
como actividades facilitadoras de interacções sociais e relacionais, não são
verdadeiros espaços de aquisição de competências profissionais com vista a uma
futura reinserção laboral. Elas contribuem, essencialmente, para a manutenção e
reprodução do sistema prisional, assumindo apenas uma dimensão mecânica e
repetitiva. Este poderia ser um ponto de partida para novos e futuros trabalhos.
61
Um Olhar sobre o Estabelecimento Prisional Militar
Com efeito, a especificidade do papel social desempenhado pelos reclusos é
ainda agravado por estarem em causa longos anos de encarceramento e de, não raro,
as visitas dos familiares serem pouco assíduas uma vez que se trata da única cadeia
para militares. Os poucos pedidos de transferência ou são indeferidos pelo general
director de justiça e disciplina ou são interrompidos pelos próprios ao se aperceberam
das condições de habitabilidade que os esperariam, caso fosse aceite a transferência.
Os relatos pouco abonatórios dos que perderam a «condição militar» e foram
transferidos para estabelecimentos civis e o próprio conhecimento destas realidades
pelos internos da GNR, configuram e auxiliam a formulação de imagens que os levam
a reflectir sobre as boas condições de habitabilidade que usufruem no EPM.
A cadeia militar parece ser um meio particular dotado de códigos e papéis
sociais constituintes de uma micro sociedade que potencia diferenças e distâncias
sociais, não contribuindo para a união, reforço ou solidariedade entre os recluídos que
não se revêm nesta micro cultura encarcerada, enfatizando sentimentos de estranheza
e ausência. Sobre os internos recai um estigma que se intensifica quer pelo uso de
uniforme quer pelo peso das estruturas sociais militares que continuam a organizar a
vida intra-muros. A este propósito não esqueçamos, como salienta Pedro Dores
(2003), que“...os sistemas prisionais não são entidades estranhas às sociedades a que
estão associados. (Dores, 2003: 9) e como tal, a vida na prisão militar não pode ser
dissociada das realidades que continuam a ocorrer nas instituições de origem dos
reclusos.
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64
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
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http://mdn.gov.pt - Ministério da Defesa nacional
65
Boletim de Sociologia Militar
N.º3 – 2012
PP. 66 a 85
Gestão de Carreiras no Exército Português:
Uma Proposta de Modelo Aplicado
Helena Jerónimo*
Isabel Ribeiro**
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo principal compreender a forma como as carreiras militares são
geridas no Exército Português. Em termos metodológicos, realizámos entrevistas semiestruturadas a
interlocutores-chave, com o intuito de compreender a situação atual do Exército Português em matéria da
gestão das carreiras. Com base na análise de conteúdo a essas entrevistas, é apresentada uma proposta
de modelo de intervenção ao nível da gestão de carreiras passível de ser implementado no Exército
Português.
Palavras-chave: Exército Português, Carreiras Militares, Gestão de Carreiras, Planeamento de Carreiras.
ABSTRACT
The aim of this work is to understand how the military careers are managed in the Portuguese Army.
Therefore, in methodological terms, we made semi-structured interviews with key interlocutors, in order to
understand the current situation of the Portuguese Army regarding the management of careers.
Furthermore, based on these interviews, we have prepared an intervention which integrates a career
management model that can be implemented in the Portuguese Army.
Keywords: Portuguese Army, military careers, career management, Career planning.
INTRODUÇÃO
As organizações desenvolvem as suas atividades num ambiente marcado pela
incerteza e turbulência, no qual os recursos humanos (RH) se constituem como um
dos seus ativos mais valiosos (Carvalho, 2003). Nesta era de informação e de
conhecimento, a gestão das pessoas assume um papel central no sucesso,
desenvolvimento e progresso das organizações.
A Instituição Militar, enquanto estrutura social e agregadora de pessoas,
enquadra-se naquele contexto geral (Nunes, 2004). Ainda que a motivação principal
das Unidades Orgânicas não seja a mesma que a generalidade das organizações, a
sua estratégia organizacional e os desafios que diariamente se lhe colocam assumem
grandes similaridades. A gestão de RH numa Unidade, Estabelecimento ou Órgão
(U/E/O) começa a assumir, cada vez mais, que os militares são “clientes internos”. Ou
seja, as suas necessidades e aspirações são essenciais para que se identifique uma
*
Profª. Doutora do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).
Mestre em Gestão de Recursos Humanos, Socióloga no Centro de Psicologia Aplicada do Exército
**
66
Gestão de Carreiras no Exército Português
resposta adequada para atrair, reter e desenvolver este recurso estratégico (Câmara,
Rodrigues e Guerra, 2010).
As pessoas são, cada vez mais, exigentes no que respeita à sua carreira
profissional, devido aos desequilíbrios constantes e imprevisíveis que ocorrem entre o
mercado de recursos humanos1 e o mercado de trabalho2 (Chiavenato, 2002), pelo
que atrair, reter e desenvolver os colaboradores torna-se numa tarefa complexa e num
desafio constante para os gestores de RH. O Exército Português é uma organização
que desde sempre teve como preocupação a gestão dos seus recursos humanos,
procurando desenvolver-se e adaptar-se às novas exigências e condicionalismos civis
e militares. No que diz respeito à gestão de carreiras, esta assume-se, contudo, como
uma gestão meramente administrativa, baseando-se em promoções automáticas com
base na antiguidade.
Verificamos que o modelo de gestão de carreiras aplicado no Exército
Português é o modelo tradicional de carreira que tem por base o princípio da ascensão
vertical na estrutura da organização (Câmara et al, 2010), associando-se às
características de lealdade, dedicação, defesa da pátria, emprego para toda a vida,
entre outros. Este modelo é atualmente questionado, se não mesmo ultrapassado.
Enquanto colaboradores do Centro de Psicologia Aplicada do Exército – como
é o caso de uma autora deste estudo – apercebemo-nos quer da importância da
gestão de carreiras para os trabalhadores do Exército, quer da ausência de uma
estrutura específica que se ocupe de uma gestão de carreiras ancorada na análise e
descrição das funções, garantindo não só a identificação do potencial dos militares,
como também a sua adaptação a novas funções, assegurando, consequentemente, a
sua motivação e satisfação. Desta forma, com o presente estudo pretendemos
compreender a forma como as carreiras militares são geridas no Exército Português, e
do mesmo passo, entender como é que o Exército desenvolve e retém os seus RH.
Este estudo visa contribuir para um maior conhecimento da realidade do
Exército e preencher uma lacuna e propor um modelo de gestão de carreiras para os
Oficiais do Quadro Permanente.
DEFINIÇÃO DE CARREIRA
O conceito de carreira tem vindo a ser usado de forma muito diversificada e
ampla, pelo que emergiram diversas conceções sobre o mesmo. No entanto, a aceção
mais comum é a de carreira como caminho, i.e., um trilho que se segue de forma
1
Mercado de Recursos Humanos constitui-se pelo conjunto de indivíduos munidos de capacidades e de aptidões que
se encontram aptos para o trabalho, num determinado tempo e lugar (Chiavenato, 2002).
2
Mercado de Trabalho refere-se ao conjunto das oportunidades de trabalho existentes num determinado momento e
lugar (Chiavenato, 2002).
67
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
segura e visível (Tieppo, Gomes, Sala e Trevisan, 2011). Esta aceção integra a noção
de mobilidade, ascensão ou estabilidade profissional de algumas funções, como por
exemplo, a carreira de executivo para caraterizar a mobilidade e a carreira militar,
como profissão (Dutra, 1996).
Segundo Hall (2002), a carreira é apresentada como sendo uma sequência de
atitudes e de comportamentos, que se encontram associados às experiências e
atividades que o indivíduo exerceu e que estão relacionadas ao trabalho. No fundo,
esta definição de carreira assume-a como resultante das opções do indivíduo e exclui
as variáveis não controladas que dizem respeito às necessidades das organizações.
Por isso, segundo Hall (2002) a carreira possui, basicamente, quatro sentidos
diferentes:
a)
Carreira como avanço – que integra a noção de mobilidade vertical
numa organização;
b)
Carreira como profissão – que se liga com determinadas profissões de
prestígio, que possuem algum estatuto na sociedade (e.g., médicos, advogados);
c)
Carreira como sequência de trabalhos realizados – conceito que acolhe
como carreira qualquer trabalho realizado pelo indivíduo. Esta é uma conceção
objetiva de carreira;
d)
Carreira como sequência de experiências relativas a uma função – tida
como a forma como a pessoa experimenta a sequência de trabalhos e de atividades
que constituem a sua história profissional. Esta assume uma dimensão subjetiva de
carreira.
No entanto, uma carreira desenvolve-se em função de dois prismas de análise:
de um lado, as expectativas pessoais do indivíduo e do outro, da organização (Dutra,
1996). Todos temos a noção de que o indivíduo não é estático. Ele desenvolve-se em
função das necessidades de adaptação aos contextos e situações. Todos sabemos,
também, que face às situações de incerteza e de desenvolvimento, as organizações
têm que encontrar formas ajustadas de se adaptarem às necessidades emergentes da
sociedade. Neste sentido, o conceito de carreira ao nascer da relação entre a pessoa
e a organização, acaba por admitir a noção de movimento, já que perspetiva não só o
ponto de vista do indivíduo e da organização, como também da relação entre estes
(Tieppo et al, 2011).
Por conseguinte e tal como refere Hall (2002), o conceito de carreira deve ser
focalizado na experiência subjetiva de carreira do indivíduo, na forma como este
constrói a sua carreira, nas relações que estabelece com cada trabalho na vida,
observando os aspetos subjetivos e objetivos em conjunto e na forma como assume
68
Gestão de Carreiras no Exército Português
os up and down, como parte natural do processo de carreira. Daí que as suas
aspirações, motivações e expectativas sejam importantes no decurso do processo.
O CONCEITO DE CARREIRA MILITAR E O SEU QUADRO LEGAL
O conceito de carreira militar encontra-se definido no art.º 27 do Decreto-Lei n.º
236/99 de 25 de Junho (que se constitui como o Estatuto dos Militares das Forças
Armadas - EMFAR). Nesse artigo, carreira militar é “o conjunto hierarquizado de
postos, desenvolvida por categorias, que se concretiza em quadros especiais e a que
corresponde o desempenho de cargos e o exercício de funções diferenciadas entre si”.
No art.º 28 desse mesmo documento, verifica-se que os militares se agrupam por
ordem decrescente de hierarquia, nas categorias de Oficiais, Sargentos e Praças.
As subcategorias referem-se ao subconjunto de postos que se diferenciam em
função da autonomia, da complexidade funcional e da responsabilidade (art.º 28,
Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). O posto refere-se à posição que, na respetiva
categoria, o militar ocupa no âmbito da carreira militar fixada de acordo com o
conteúdo e qualificação da função ou funções. Os cargos militares são definidos como
“lugares fixados na estrutura orgânica das Forças Armadas, a que correspondem as
funções legalmente definidas” e também os “lugares existentes em qualquer
departamento do Estado ou em organismos internacionais a que correspondem
funções de natureza militar” (art.º 33, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho). As
funções militares são as que implicam o exercício de competências legalmente
estabelecidas para os militares, agrupando-se estas em: Comando, Direção ou Chefia;
Estado-maior e Execução (art.º 34, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).
A Lei n.º 11/89 de 1 de Junho instituiu as Bases Gerais do Estatuto da
Condição Militar, estabelecendo os direitos e os cumprimentos dos deveres pelos
militares dos quadros permanentes em qualquer situação e dos restantes militares
enquanto na efetividade de serviço, definindo os princípios orientadores das respetivas
carreiras.
O art.º 2 desse documento define que a condição militar se carateriza pela
subordinação ao interesse nacional; pela permanente disponibilidade para lutar em
defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; pela sujeição aos
riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação,
instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz quer em tempo de
guerra; pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei; pela aplicação de um
regime disciplinar próprio; pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que
com sacrifício dos interesses pessoais; pela restrição, constitucionalmente prevista, do
69
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
exercício de alguns direitos e liberdades; pela adoção, em todas as situações, de uma
conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e
valorização moral das Forças Armadas; pela consagração de especiais direitos,
compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social,
assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação.
Nesse documento, nomeadamente no seu art.º 11, está explicito que é
garantido a todos os militares o direito de progressão na carreira, nos termos fixados
nas leis e orientando-se o desenvolvimento das carreiras em função dos seguintes
princípios básicos: relevância de valorização da formação militar; aproveitamento da
capacidade profissional, avaliada em função da competência revelada e da
experiência; adaptação à inovação e transformação decorrentes do progresso
científico, técnico e operacional e; harmonização das aptidões e interesses individuais
com os interesses das Forças Armadas.
Da mesma forma, verifica-se no art.º 12 (Lei n.º 11/89 de 1 de Junho) que os
militares têm o direito e o dever de receber formação de atualização, reciclagem e
progressão, com vista à valorização humana e profissional e à sua progressão na
carreira.
O EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho), originalmente aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro, já sofreu diversas alterações e aplicase a todos os militares das Forças Armadas (art.º 2), independentemente do posto, da
carreira, da forma de prestação de serviço, do ramo ou da situação administrativa em
que se encontram. Este é o documento que regula a gestão das carreiras militares.
O EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho) no seu Preâmbulo define
objetivos fundamentais: “Reequacionar o desenvolvimento da carreira militar através
da introdução de mecanismos reguladores que permitam dar satisfação às legítimas
expectativas individuais e assegurem um adequado equilíbrio da estrutura de pessoal
das Forças Armadas”. Alguns dos mecanismos foram “o estabelecimento de tempos
máximos de permanência em alguns dos postos da hierarquia militar, a exclusão da
promoção por efeitos de ultrapassagens, durante certo período, por um ou mais
militares da mesma antiguidade, a possibilidade de passagem à reserva por
declaração do militar ao ter completado 55 anos de idade e ainda a adoção da norma
de aumento geral de serviço em 25% para efeitos de passagem à reserva ou à
reforma”.
As formas de prestação do serviço efetivo são: serviço efetivo nos quadros
permanentes (QP); serviço efetivo em regime de contrato (RC); serviço efetivo em
regime de voluntariado (RV) e serviço efetivo decorrente de convocação ou
mobilização (art.º 3, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).
70
Gestão de Carreiras no Exército Português
No art.º 4 do EMFAR (Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho) é referido que o
serviço efetivo nos QP compreende a prestação de serviço pelos cidadãos que, tendo
ingressado voluntariamente na carreira militar, adquirem vínculo definitivo às Forças
Armadas.
O serviço efetivo em RC compreende a prestação de serviço voluntário por um
período de tempo limitado, com vista à satisfação das necessidades das Forças
Armadas ou ao seu eventual ingresso nos QP. Também o serviço efetivo em RV
compreende a prestação de serviço militar voluntário por um período de 12 meses,
com vista à satisfação das necessidades das Forças Armadas, ao ingresso ao RC ou
ao eventual recrutamento para os QP (art.º 5, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).
O serviço efetivo decorrente de convocação ou mobilização compreende o
serviço militar prestado na sequência do recrutamento excecional, nos termos
previstos na Lei do Serviço Militar, sendo que o conteúdo e a forma de prestação do
serviço efetivo por convocação ou mobilização são regulados por diploma próprio (art.º
6, Decreto-Lei n.º 236/99 de 25 de Junho).
PLANEAMENTO DAS CARREIRAS MILITARES
Quando falamos de desenvolvimento de carreiras temos que ter em conta o
planeamento de recursos humanos. A organização tem de prever que movimentos
poderão ocorrer, quais as funções que serão necessárias ocupar, quantas vagas
existirão ao longo do tempo e quais os recursos humanos disponíveis para as ocupar.
Aqui, a organização terá que ter atenção a uma perspetiva integrada de recursos
humanos, bem como uma visão estratégia e proativa, como o recrutamento interno e a
descrição de funções para cada cargo.
O planeamento das carreiras militares é realizado com base na avaliação,
constituindo-se esta como uma importante fonte de dados no planeamento dos RH.
Assim, toda e qualquer avaliação deve ter como principal preocupação os objetivos
propostos, devendo estes ser flexíveis, claros e adequados aos meios disponíveis
(Oliveira, 2009).
Os objetivos de carreira devem reunir certas características de forma a
poderem ter uma utilidade. É comum usar-se a sigla SMART para os definir, que
significa:

Específicos (Specific) – não devendo ser vagos e devem ser definidos em
pormenor. Os objetivos generalistas tendem a ser menos eficazes;
71
Boletim de Sociologia Militar n.º 3

Mensuráveis (Measurable) – devem ser definidos de forma a poderem
ser medidos e analisados em termos de valores ou volumes. Os objetivos
devem ser quantificáveis;

Atingíveis (Attainable) – devem ser formulados de forma a serem
alcançáveis, por isso devem ser propostos em consonância com os
intervenientes para que estes possam sentir-se motivados para os atingir;

Realistas (Realistic) – devem permitir alcançar metas tendo em
consideração a disponibilidade dos recursos existentes;

Temporizáveis (Time bound) – devem ser definidos em termos de
duração e de prazos.
O Plano de RH (PRH) de uma Unidade Orgânica pretende desenvolver
militares
que
se
encontram
ao
serviço,
traçando-lhes
planos de
carreira,
reconvertendo-os ou dando-lhes formação para que possam adquirir as competências
que se anteveem como fundamentais. Trata-se de um exercício complexo, mas
fundamental para o desenvolvimento estratégico da instituição militar (Nunes, 2004).
O PRH pode ser visto como um palco no qual se situam os interesses e
perspetivas organizacionais e as aspirações e desejos de desenvolvimento dos
militares, sendo que só a articulação perfeita destes dois polos, permite uma
compatibilização dos objetivos individuais e organizacionais (Nunes, 2004).
De facto, é unanimemente aceite que só concedendo aos militares uma
perspetiva de desenvolvimento pessoal e profissional, é que se consegue que uma
U/E/O possa aspirar a construir uma opção de permanência mais ou menos
prolongada para os seus quadros. No fundo, revela a sua capacidade para reter e
desenvolver os RH (Câmara et al., 2010). Se o PRH for desajustado, terá
repercussões nos planos de carreira dos quadros. Se esses planos não forem ao
encontro dos desejos e aspirações dos militares, existe uma forte probabilidade de
estes abandonarem a sua U/E/O ou mesmo a instituição (Ribeiro, 2010).
Por conseguinte, um dos objetivos das U/E/O é projetar as necessidades
futuras de RH, a sua calendarização, o perfil, o número e a sua localização nessa
estrutura. No fundo, é permitir a identificação antecipada dos pontos críticos em que é
mais provável que ocorram falhas, excessos ou uso ineficiente de militares (Ribeiro,
2010).
Neste sentido, a responsabilidade pela construção de um PRH tem que ser
centralizada na Secção de Pessoal, para permitir o desenvolvimento equilibrado e
harmonioso, garantindo a coordenação e sinergias interfuncionais que se encontram
implícitas nele. Trata-se pois, de um processo dinâmico e em constante
aperfeiçoamento (Ribeiro, 2010).
72
Gestão de Carreiras no Exército Português
O planeamento das carreiras operacionaliza o princípio de um recrutamento
interno, ao procurar identificar no interior de uma U/E/O pessoas capazes de
satisfazerem as necessidades projetadas. O planeamento de carreiras deve permitir a
satisfação das necessidades da U/E/O pelo desenvolvimento das pessoas que a
compõem. São, no fundo, um conjunto de ações programadas que têm por objetivo
permitir o desenvolvimento pessoal e profissional do militar, de modo a que o mesmo
consiga atingir o potencial que lhe foi detetado (Oliveira, 2009).
Por outro lado, quando um militar se candidata para uma nova função na
organização, significa que manifesta um desejo de mudança do lugar que naquele
momento ocupa. A principal vantagem do processo de recrutamento interno será o
facto de permitir o desenvolvimento das pessoas que já pertencem à organização e de
lhes proporcionar perspetivas de carreira (Chiavenato, 2002), mas existem outras
vantagens, como: a diminuição dos custos do processo; a oferta de oportunidades e
de planos de carreira promovendo a motivação dos militares; índice de validade e de
segurança superior, já que se conhecem os militares e pode ser um processo de
identificação mais rápido do que o recrutamento externo (Cherrington, 1995).
Nunes (2004) assinala que as principais razões para se optar por um
recrutamento interno são normalmente focalizadas no cumprimento dos planos de
carreira para o qual o candidato está preparado; utilização do talento disponível na
organização e retenção, na organização, de elementos-chave considerados
indispensáveis, concedendo-lhes oportunidades de progredirem na organização. Por
conseguinte, neste processo, devem ser consideradas todas as candidaturas de forma
igual, procurando-se que a condução seja feita de forma mais transparente possível,
para não haver distorções ou emergência de sentimentos de injustiça.
Neste sentido, o recrutamento interno no Exército pode albergar três soluções:
uma escolha direta, um concurso interno ou o método do tipo “recomendar um
amigo”3. A escolha direta é aquela que tem normalmente mais reações negativas
dentro da organização, pelo facto de ser percecionada como uma ação de favoritismo,
em detrimento de outras candidaturas igualmente valiosas, não abrindo a
oportunidade para todos os potenciais interessados (Ribeiro, 2010).
Não obstante as vantagens deste procedimento, existem desvantagens. Uma
das primeiras é aquela que poderá levantar algumas questões éticas, que se prendem
com a transmissão do potencial individual atribuído a um militar, que poderá criar
expectativas que podem ser impossíveis de satisfazer, levando à desmotivação
(Nunes, 2004). Cherrington (1995) assinala ainda o facto de ser necessário a
existência de colaboradores que possuem potencial de desenvolvimento para
3
Correspondente ao método de Referências em Recrutamento.
73
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
poderem ser movimentados; o facto deste tipo de recrutamento poder constituir-se
como uma fonte de conflito entre os colaboradores e o facto de não permitir a entrada
de novos saberes e competências na instituição.
O planeamento de carreiras é um exercício limitado na medida em que
depende da estrutura da própria U/E/O e da pequena percentagem de militares que
esta pode albergar. Para além deste aspeto, ainda se sublinham os custos associados
e a complexidade relativamente a determinadas necessidades das U/E/O. Se não se
transmite essa informação, pode-se também perder um argumento que permite reter e
motivar um militar e; por outro lado, a justiça face ao facto de se ter que excluir uma
parte elevada de militares das oportunidades de carreira (Nunes, 2004).
De facto, o grau de exigência dos militares é cada vez maior, quer para com a
instituição, esperando que esta lhes proporcione os direitos que estão consignados na
Lei, quer para com as U/E/O a que pertencem, que se encontram condicionadas pelas
missões que têm que cumprir (Nunes, 2004).
Paralelamente, a gestão de carreiras está ainda associada à rotação de
pessoal, que se constitui como um fenómeno complexo, no qual radicam inúmeras
causas, nomeadamente salariais. Na instituição militar, a solicitação voluntária de
rotação de pessoal encontra-se associada a fatores de motivação, às condições de
trabalho, satisfação na função, nível de stress, estilo de gestão, reconhecimento,
oportunidade de desenvolvimento pessoal, acesso à formação, entre outros (Nunes,
2004).
Esta rotação pode ainda dever-se a causas naturais, tais como a incapacidade
para o trabalho, a morte, atingir a idade da reserva, o fim do contrato, por iniciativa da
U/E/O (geralmente por questões disciplinares), ou ainda, por iniciativa do próprio
militar. Pode, também, ser decorrente de causas endógenas, relativas a aspetos
particulares da vida da unidade (e.g., motivos de promoção, formação), ou causas
exógenas (e.g., natural desenvolvimento da carreira dos militares).
No entanto, a taxa de rotação dos militares constitui-se como uma poderosa
condicionante do PRH, pelo que deve ser tida em consideração, uma vez que: a
rotação dos militares baixa à medida que a idade ou anos de serviço aumentam e é
maior nos militares com nível de qualificação mais baixo (Ribeiro, 2010). Por outro
lado, a rotação de efetivos nas U/E/O é um problema que o Comandante/Diretor/Chefe
e o seu conselheiro na área de pessoal (Chefe da Seção de Pessoal ou equivalente)
se debatem, no sentido de conciliarem as necessidades de serviço e os interesses
individuais dos militares. Cada vez mais se verifica a multiplicidade e a polivalência de
funções por parte dos militares, procurando fazer face às restrições orçamentais e aos
condicionamentos relacionados com a falta de RH (Nunes, 2004).
74
Gestão de Carreiras no Exército Português
O DIAGNÓSTICO: ETAPAS E PROCEDIMENTOS
Procuramos com o presente estudo compreender a forma como as carreiras
militares são geridas no Exército Português, com o intuito final de apresentar uma
proposta de intervenção a este nível. Por conseguinte, o diagnóstico que serviu de
base ao presente estudo constitui-se com uma natureza qualitativa. A abordagem
qualitativa foi preconizada com base em entrevistas semiestruturadas, conduzidas a
três colaboradores do Exército, que são interlocutores e fontes de informação
privilegiadas: Major General, Coronel e Tenente Coronel, detentores de sólidos
conhecimentos ao nível da Gestão de Recursos Humanos4.
Estes militares foram convidados a responder a sete questões relacionadas
com a gestão de carreiras e que fazem parte do guião de entrevista. Este guião
permitiu recolher dados para uma análise compreensiva sobre a gestão de carreiras
em contexto do Exército.
Com intuito de utilizar de forma adequada o guião de entrevista, garantindo
uma recolha de informação pertinente ao presente estudo, revisitámos vários autores
com intuito de preparar, adequadamente, os momentos que precederam o início da
entrevista, o decurso e o seu término (Lessard-Hébart, Goyette e Boutin, 1994). A
confidencialidade e o anonimato das respostas foram garantidos através do uso de
codificações para a análise das respostas às questões.
Para se analisar e tratar a informação recolhida através das entrevistas
realizadas, o procedimento eleito foi a análise de conteúdo (Bogdan e Biklen, 1999).
Após a análise das respostas dos entrevistados, foi possível realizar-se uma
análise SWOT5 da situação do Exército Português, com a qual se pretendeu
consolidar as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças existentes na gestão de
carreiras. A análise SWOT é apresentada na Figura 1.
Pela análise da Figura 1, verificamos que as respostas dos entrevistados
forneceram pistas interessantes para a elaboração de uma análise SWOT, que nos
permitiu caraterizar a situação atual que define o Exército Português. Após a análise
das entrevistas exploratórias e leitura de alguns estudos realizados no âmbito militar
verificamos que, a par do que acontece em várias organizações, também no Exército
Português emerge a necessidade de repensar os modelos de gestão de carreiras dos
militares.
4
Inicialmente estava previsto serem realizadas mais entrevistas (a três Generais e a três Coronéis) no entanto, devido
a constrangimentos temporais, e a alguma burocracia, fomos forçados a conduzir apenas três entrevistas.
5
A análise SWOT (Strenght, Weaknesses, Oportunities, Threats) consiste no estudo da envolvente interna (forças e
fraquezas) e externa (ameaças e oportunidades) de uma organização.
75
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Ambiente Externo
Ambiente Interno
Figura 1. Análise SWOT
Forças
Fraquezas
 Modelo atual é um modelo simples que
permite a promoção do máximo de
oficiais aos postos mais elevados da
hierarquia
 Modelo legislado ao pormenor (cf.
detalhe normativo do EMFAR), transmite
uma ideia de grande transparência e
objetividade
 Ausência de um sistema eficaz de gestão
de carreiras
 Escassez de RH
 Ausência de perfis funcionais totais, de
um sistema de avaliação de potencial e
de análise de funções
 Antiguidade – inibe as pessoas de serem
escolhidas em função das competências;
 Limitação
geográfica
–
economia
financeira. Oficiais escolhidos conforme a
área geográfica
 Financeira
 Quebra de expetativas
Oportunidades
Ameaças
 Abertura à sociedade civil e às práticas
de gestão de carreiras realizadas em
outras instituições
 Protocolos com centros de formação;
 Pressão externa poderá proporcionar
uma implementação de um novo sistema
com menor resistência à mudança
 Conjuntura económica (congelamento
das promoções).
 Crescente constrição orçamental poderá
originar uma diminuição dos postos
superiores
Fonte: Análise das Entrevistas
PROPOSTA DE INTERVENÇÃO
O principal objetivo deste projeto é desenvolver um plano de carreiras, tendo
em conta, os objetivos e expetativas de carreira dos militares e as perspetivas da
própria instituição, promovendo-se a compatibilização dos interesses institucionais e
individuais.
O modelo de intervenção proposto pode ser dividido em dois pontos de análise
essenciais: (i) o ponto de vista da instituição e (ii) o ponto de vista do militar. Apesar
destes dois pontos de análise numa primeira instância surgirem separadamente na
verdade são interdependentes, isto é, o desenvolvimento de um está intimamente
condicionado com o desenvolvimento do outro.
A Figura 2 apresenta, de forma esquemática, o modelo de Gestão de Carreiras
que propomos. Por conseguinte, abordaremos os diversos aspetos propostos para
cada um dos prismas de análise e procuraremos conciliá-los numa perspetiva comum.
76
Gestão de Carreiras no Exército Português
Assim sendo, como já vimos anteriormente, o modelo de gestão de carreiras
que se encontra em vigor é um modelo tradicional, onde a tónica é colocada na
carreira vertical. Este modelo é, atualmente, ultrapassado, já que os imperativos e as
necessidades emergentes sublinham aspirações e expectativas de carreiras
congruentes com as motivações de cada um dos colaboradores em função dos seus
próprios objetivos individuais, fortalecendo a necessidade de compatibilização entre os
interesses individuais e organizacionais.
Apesar da necessidade de compatibilização destes dois interesses, não existe
ainda um consenso relativamente a quem pertence a responsabilidade da gestão da
carreira, se ao individuo, se à organização. De acordo com a literatura, parece
razoável propor que a gestão de carreiras seja uma responsabilidade partilhada pelos
indivíduos e pelas organizações (Cunha et al, 2010, p. 616). O desenvolvimento de
carreira organizacional não «morreu», parecendo antes assistir-se a uma espécie de
«dança organizacional» - isto é, um processo de influência mútua entre indivíduos e
organizações, em que cada parte é simultaneamente agente e alvo de influência (Herr,
2001, in Cunha et al, 2010, p. 616).
Neste sentido, sob o ponto de vista organizacional emergem os objetivos, as
oportunidades e as necessidades da organização, na sua íntima relação com o meio
envolvente. Do outro lado, emergem igualmente os objetivos individuais dos militares,
as suas expectativas e desejos ao nível da carreira, em função dos contextos onde se
inserem.
Entre estas duas lógicas de ação, aparentemente contraditórias, é necessário
estabelecer-se uma ponte que permita a troca de sinergias entre ambas as partes.
Essa troca é possível ser realizada se for criada uma figura mediadora entre as duas
partes, cuja missão se insere não só na defesa dos objetivos organizacionais, mas
também na orientação dos objetivos individuais face às oportunidades existentes na
instituição. Essa figura é assumida por nós como um Gestor de Carreiras, que deverá
exercer a sua função dentro do Gabinete de Apoio às Carreiras, a ser criado para o
efeito. No Exército existe a Repartição do Pessoal Militar onde se gerem as carreiras
militares. No entanto, este apoio é meramente administrativo.
77
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Figura 2. Modelo Proposto
Objetivos da Organização
Necessidades e oportunidades
da Organização
Objetivos do militar
Gabinete de
apoio às
carreiras:
Desejos e expetativas do militar
Gestor de Carreiras
Focus on Growth
Funções
Vagas
Questionário
de expetativas de
carreira
Competências
Mentoring e Coaching
Manager as career coach
Identificar o potencial do
colaborador
Análise dos recursos humanos
disponíveis
- Recrutamento e
Seleção;
- Análise de
Funções
Desempenho e performance do
militar
Planos de evolução na carreira
- Avaliação de
desempenho
- Formação
General
Tenente-General
Major
Capitão
M
Coronel
Tenente-Coronel
Carreira Vertical
Brigadeiro-general
~
Major-General
(Modelo existente atualmente)
Candidato
Fase de
admissão/Entrada na
AM
Testes Psicológicos;
conhecer o potencial
de cada candidato
Carreira Horizontal
Tenente
Alferes
Durante o
4º ano da
AM
Âncoras
de carreira
Aspirante a Oficial
Soldado Cadete
78
Gestão de Carreiras no Exército Português
Por conseguinte, quando falamos de desenvolvimento de carreiras, a
organização deverá ter em conta o planeamento de RH, os movimentos que podem
ocorrer, as funções que serão necessárias ocupar, o número de vagas existentes,
quais os RH disponíveis, seu potencial, entre outros. Neste sentido, a organização
deverá preconizar uma perspetiva integrada de RH, socorrendo-se dos subsistemas
de gestão de RH ao dispor, nomeadamente, o recrutamento interno e a descrição de
funções para cada cargo.
O recrutamento permitirá a identificação das vagas e a análise dos RH
disponíveis, enquanto a descrição de funções, permite ter um perfil previamente
configurado e determinado, que inclui as hard e as soft skills necessárias ao
desenvolvimento do cargo em análise.
Por outro lado, a organização deve também atender aos objetivos pessoais de
carreira dos militares e, para tal, é necessário recolher informação relativa à avaliação
de desempenho do militar e ao plano de formação delineado. Estes indicadores
permitem recolher informações sobre as competências e sobre o desempenho do
militar, identificando o seu potencial.
Em suma, consideramos que a gestão de carreiras em contexto militar deve
albergar os vários subsistemas de RH existentes, para que possa assumir-se como
eficaz.
Tendo estes aspetos em consideração, entendemos que a gestão de carreira
deve constituir uma preocupação desde o início da admissão na Academia Militar. Por
conseguinte, a instituição deve desde o início, registar em base de dados, os testes
psicológicos que permitem dar a conhecer o estado cognitivo atual do militar e o seu
potencial de desenvolvimento.
Já vimos que a gestão da carreira atual no Exército é a vertical, caraterizandose pela sucessão de postos. No entanto, devemos ter em conta que os militares,
sendo colaboradores da Instituição militar, não se regem pelas mesmas motivações,
aspirações nem pelos mesmos desejos de carreira. Neste sentido, propomos
igualmente uma gestão horizontal. A proposta indicada sugere que a partir do posto de
Capitão, o militar, juntamente com o seu “aconselhador” ou gestor de carreira, escolha
o seu percurso de carreira. A carreira horizontal implicaria uma progressão mais lenta
nos postos, até ao posto de Tenente-Coronel mas em contrapartida, o militar estaria a
desempenhar funções do seu agrado, sem mobilidades geográficas. Neste sentido, o
militar poderá escolher o que mais o motiva, ou a componente operacional, ou então,
uma estabilidade emocional, familiar e geográfica.
O desenvolvimento de uma carreira horizontal encontra-se intimamente
relacionada com o desenvolvimento de competências que devem ser transversais a
79
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
toda a organização. Por esse motivo, consideramos aqui fundamental o papel da
formação profissional e dos development centres, com o objetivo de potenciar
competências nos militares que possam ser uma mais-valia no desenvolvimento de
uma carreira horizontal.
Durante o 4º ano da Academia Militar, propomos a administração de um
questionário de Âncoras de Carreira, para que antes de iniciar a sua carreira
propriamente dita, tanto o militar como a instituição se comecem a aperceber das
orientações de carreira daquele.
Este conceito de Âncora de Carreira foi desenvolvido a partir dos estudos de
Schein, que explora a forma com que alguns aspetos pessoais podem ser
determinantes nas escolhas profissionais, criando assim, uma padronização (1990a).
Dos seus estudos resultou uma descrição de um conjunto de autoperceções
relativas a talentos e habilidades, motivações e atitudes, necessidades e valores,
baseadas nas experiências efetivas de cada sujeito, criando-se, assim, rumos que
norteiam as escolhas desse profissional. A este conjunto Schein (1990a), designa de
Âncoras de Carreira e estas afetam a forma com que o indivíduo acolhe e percebe o
seu trabalho e a sua carreira. As Âncoras de Carreira apresentam características
diferentes, segundo Schein (1990b):

Competência Técnica/Funcional – nesta âncora o profissional adquire sentido
de identidade através da aplicação das suas habilidades técnicas. A realização
profissional vem através da possibilidade de enfrentar desafios;

Competência de Gestão Global – o profissional orientado para a gestão global
possui a capacidade de realizar um contrato psicológico com a organização,
para que o sucesso da organização seja o seu sucesso;

Autonomia e Independência – aqui encontram-se as pessoas que possuem um
nível reduzido de tolerância pelas regras estabelecidas por outras pessoas, por
procedimentos e outros tipos de controlo que venham a cercear a sua
autonomia;

Segurança e Estabilidade – a principal preocupação é a sensação de bemestar gerada pela baixa volatilidade na sua carreira. Para isso, o profissional
aqui ancorado irá guiar as suas decisões de carreira na segurança e
estabilidades oferecidas;

Criatividade Empreendedora – aqui encontramos os profissionais focados na
criação de novas organizações, serviços ou produtos;

Serviço/Dedicação a uma causa – integram os indivíduos que não estão
dispostos a renunciar, em nenhuma hipótese, aos seus valores pessoais.
Executam, assim, atividades profissionais que possam integrar esses valores;
80
Gestão de Carreiras no Exército Português

Desafio – a superação de obstáculos aparentemente impossíveis e a solução
de problemas ‘insolúveis’ definem o sucesso para os profissionais aqui
ancorados.

Estilo de Vida – nesta âncora, o profissional procura encontrar uma forma de
integrar as necessidades individuais, familiares e as exigências de carreira.
Grande parte das pessoas, possivelmente, preocupa-se com várias destas
questões, mas em diferentes graus. Uma Âncora de Carreira poderá fazer todo o
sentido hoje e amanhã emergir uma outra (Schein, 1990a). O reconhecimento da
Âncora de Carreira possibilita ao profissional o desenvolvimento de estratégias de
carreira que combinem as suas habilidades e valores, com as oportunidades que a
organização possui.
Como referido inicialmente, acreditamos que a figura de um Gestor de
Carreiras faz todo o sentido no Exército Português, na medida em que este deverá
preocupar-se,
essencialmente,
com
três
procedimentos
de
desenvolvimento
fundamentais:
Figura 3: Procedimentos de intervenção
Focus on growth
 A focalização deve ser
nos valores, aspirações e
interesses pessoais, com
vista ao crescimento;
 É necessário identificar as
competências pessoais e
as oportunidades de
desenvolvimento e de
melhoria;
 Consolidar a informação
recolhida num plano de
desenvolvimento de
carreira estruturado e
consonante com as
orientações estratégicas
da organização;
 Implementação de uma
entrevista anual de
avaliação dos projetos de
carreira.
Preocupações de carreira
Mentoring e Coaching
 As pretensões e objetivos
de carreira alteram-se
constantemente, por isso a
gestão das
preocupações/expectativas
de carreira pode ser
realizada em vários
momentos ao longo da vida
militar: na avaliação de
desempenho; questionários
e inquéritos de motivação,
clima e satisfação no
trabalho.
 Coaching consiste no
desenvolvimento de
competências e de
habilidades para que
resultados planeados
possam ser alcançados
com êxito. Um coach,
auxilia e apoia o coachee
(cliente) a sair do seu
estado atual e atingir um
estado desejado.
 Mentoring é uma espécie
de tutoria onde um
profissional mais velho e
mais experiente orienta e
partilha com profissionais
mais jovens, experiências e
conhecimentos no sentido
de dar-lhes orientações e
conselhos para o
desenvolvimento das suas
carreiras.
Fonte: Baseado em van de Ven (2007).
Neste sentido, a sua atuação deverá ser vista como um “manager as career
coach”, atuando como um coach, realizando discussões construtivas com o militar e
atuando como seu “advogado” de carreira, tal como sugere van de Ven (2007).
81
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Para tal, deverá preconizar papéis diversos como: (a) desafiar e ajudar o militar
sobre as suas aspirações de interesses em matéria da carreira, por forma a testar que
as mesmas são robustas, realistas e fortalecidas; (b) deve proporcionar feedback ao
militar e discutir com ele o desempenho, o potencial, as forças e as oportunidades de
melhoria; (c) comunicar aberta e francamente com o militar sobre o facto de as suas
expectativas serem ou não realistas; (d) motivar e ajudar o militar a gerar opções e a
traduzi-las num plano de ação exequível (van de Ven, 2007).
Após esta análise individual realizada pelo Gestor de Carreira, torna-se
imperativo a existência de uma reunião de revisão global do desenvolvimento de
carreira, a ser preconizada pelos diversos Gestores de Carreira, com intuito de
combinar as oportunidades de desenvolvimento (e.g., vagas em aberto, rotação das
funções, missões especiais, etc.), com as aspirações e necessidades dos militares.
Desta reunião, deverá resultar um plano de desenvolvimento integrado, que contém as
ações a realizar para cada militar, as suas responsabilidades e orientação necessária.
As decisões inicialmente tomadas nesta reunião devem ser comunicadas, em
forma de partilha com o militar, procurando que este dê a sua opinião sobre a opção
encontrada. Todos os procedimentos devem ser claramente expressos e todos os
colaboradores devem ter acesso a toda a informação de igual forma.
Em suma, apresentamos na Figura 4 os instrumentos que podem ser utilizados
na gestão de carreiras dos militares do Exército Português.
Figura 4. Instrumentos de Gestão de Carreiras
Avaliação das Expectativas
Avaliação de desempenho
Questionário/Inventário das preocupações de carreira
Âncoras de Carreira
Instrumentos de Ação
Planos de Carreira
Mentoring
Coaching
Planos de desenvolvimento pessoal
Mobilidade Horizontal
Mobilidade Vertical
Recrutamento Interno
Desenvolvimento de Competências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Formação
Development Centres
CONSIDERAÇÕES FINAIS
82
Gestão de Carreiras no Exército Português
O presente trabalho teve como principal objetivo compreender a forma como as
carreiras militares são geridas no Exército Português. Da auscultação que realizámos
através das entrevistas, concluímos que:

A gestão de carreiras no Exército não é realizada com base numa análise de
funções, por forma a orientar melhor os desempenhos dos militares para
funções de maior responsabilidade e adequação;

O Exército Português carece de uma estrutura específica que se dedique à
gestão de carreira dos militares;

Durante o processo de gestão de carreiras (entendido pelo Exército como uma
movimentação vertical decorrente da antiguidade) não são auscultadas as
expectativas, aspirações e motivações dos militares perante a sua carreira.
Por conseguinte e atendendo a estas constatações, consideramos ser possível
avançar com a proposta de um modelo de gestão de carreiras, passível de ser
implementado no Exército Português.
Este modelo coloca a tónica na existência de um Gestor de Carreiras e de um
Departamento para o efeito, no qual haverá uma preocupação de conciliação e
compatibilização dos interesses individuais dos militares e os da organização. Neste
processo, serão auscultadas as expectativas, aspirações e motivações dos militares,
bem como será considerada uma movimentação horizontal de carreira que permita
desenvolver competências transversais a toda instituição.
É nossa expectativa que este trabalho se venha a constituir como uma maisvalia para o Exército Português ao nível da gestão de carreiras. Em termos pessoais,
este trabalho assumiu-se como um grande desafio, na medida em que nos levou a
procurar informação que fosse pertinente para o Exército, refletir sobre a mesma e
sistematizá-la num modelo de carreiras que possa ser útil e aplicável. Alguns
obstáculos e constrangimentos surgiram (dificuldades na obtenção das entrevistas;
dificuldade em se aceder a determinados documentos do Exército, entre outros), e
cujos efeitos tentámos minimizar sem prejuízo para o trabalho final. Esperamos, por
conseguinte, que este trabalho possa servir de ponto de partida para novas
investigações relativas à avaliação da implementação deste modelo de gestão de
competências.
83
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
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Gestão de Carreiras no Exército Português
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85
Boletim de Sociologia Militar
N.º3 – 2012
PP. 86 a 120
GESTÃO E DESENVOLVIMENTO DE CARREIRAS
- O caso da Marinha Portuguesa -1
Adelino Costa Cabral*
RESUMO
A Gestão e Desenvolvimento de Carreiras assumem, numa sociedade em constante mutação, onde o
paradigma deslocou o centro da acção da organização para o indivíduo, papel preponderante na
sustentação e desenvolvimento das organizações.
As pessoas, ao longo do último século, preponderaram como charneira dinamizadora do acto
organizacional e principal factor de competência a uma adaptação, consequente, às alterações da
envolvente, assumindo, progressivamente, uma gestão individual da carreira.
A Marinha Portuguesa, como instituição inserida numa sociedade global, não pode estar desatenta
perante as melhores práticas, de modo a manter competitividade num mercado de trabalho onde todos
querem conservar, nas suas fileiras, indivíduos satisfeitos e motivados, que concorram de forma indelével
para o cumprimento da missão.
O propósito deste estudo referenciou-se numa aspiração da Marinha de “conceber um sistema
generalizado e sistemático para o acompanhamento individualizado dos Recursos Humanos e o
aconselhamento de percursos funcionais coerentes, motivadores e com potencial de carreira”. Para esse
fim, adoptou-se a metodologia “Estudo de Caso”, ajustada a uma situação em contexto real, tendo-se
recorrido, para um eficaz diagnóstico, a diferentes técnicas de recolha e análise de dados.
Para responder à questão base, desenhou-se um plano de intervenção, assente no evidenciado e
consubstanciado num conjunto de acções que perfilhem a edificação de um programa de Gestão e
Desenvolvimento de Carreiras participado e cooperativo, onde a conciliação de interesses, individuais e
organizacionais, seja um desiderato a alcançar.
Palavras-Chave: carreiras; acompanhamento; evolução; sucesso
ABSTRACT
The career’s management and development, inside a constantly moving society, where the paradigm have
changed the organizational action centre to the individual, assume a preponderant role in the
organization’s maintenance and development.
During the last century the people has the dynamic strength of the organization’s activity and was the main
factor of a skilled adaptation to the environment changes. Furthermore, they assumed, in a progressive
way, the management career as an individual task.
The Portuguese Navy, as an institution integrated in a global society, have to to maintain the
competitiveness level in the labour market where all (institutions/organizations/enterprises) want to have
motivated and satisfied collaborators who guarantee the accomplishment of the mission. Because of that,
the Portuguese Navy could not have an attitude of inattention to the best practises.
This study took as reference the Portuguese Navy’s ambition of “creating a generalized and methodical
system to allow the human resources’ individualized attendance and the specialized career consulting”.
The adopted methodology was the “Case Study”, adjusted to a real context, and to efficacy diagnostic,
different techniques of analyses and gathering data were used.
The structure of the conceptual framework was essentially based on the literature’s review, which
sustained all the study.
In order to answer to the central question, it was elaborated a plan of action to implement an interactive
management and development career’s program. The proposal of action assumes the organizational and
individual interest’s conciliation as a goal to achieve during the program implementation.
Key-words: careers; monitoring; evolution; success
1
Este artigo é baseado num projeto, defendido pelo autor, em 23 de janeiro de 2012, no ISCTE, no
âmbito do Mestrado em Gestão de Recursos Humanos.
*
Capitão-de-fragata da Marinha.
86
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
1.
INTRODUÇÃO
A sustentação das organizações, na sociedade contemporânea, torna
premente a adopção e edificação de políticas, modelos e práticas de Gestão de
Recursos
Humanos
(GRH)
potenciadores
na
atracção,
manutenção
e
desenvolvimento dos activos humanos mais bem preparados, tendo em conta que são
os únicos actores capazes de responder, em tempo e de forma eficiente, a qualquer
alteração da envolvente.
Com a globalização e evolução tecnológica, as organizações adaptaram-se à
realidade da sociedade económica e posteriormente do conhecimento, ficando mais
flexíveis e permeáveis à entrada e saída dos colaboradores (Hall, 1996; Sullivan,
1999; King, 2004; Baruch, 2004a e 2004b).
Este fenómeno tem vindo a passar a responsabilidade da gestão da carreira da
organização para o trabalhador, que hoje procura no trabalho motivações e
recompensas distintas do passado. O trabalho para a vida já não é uma ambição de
todos, o importante será, a título de exemplo, a realização pessoal, o desenvolvimento
de aptidões e competências e o equilíbrio entre o trabalho e a família (Baruch, 2004b e
2006; Ng et al., 2005)
Se a capacidade de gestão de carreiras passou da organização para o
indivíduo, a responsabilidade também. Contudo, as organizações continuam a
necessitar de pessoas que lhe permitam alcançar os objectivos estratégicos e a
potenciação da sua imagem e implementação de produtos num mercado, que advindo
da globalização, apresenta níveis de incerteza bastante elevados, onde existem cada
vez mais actores e concorrência.
Desta forma, a gestão e desenvolvimento de carreiras que respondam a essas
questões base são práticas de extrema relevância para o progresso das organizações
e para o alcançar do sucesso de cada um e de todos, num principio colectivista em
que a organização é a potenciação da soma do valor dos seus membros. Não existe
satisfação individual separada do sucesso organizacional (Greenhaus, Callagan e
Godshalk, 2010; Tams e Arthur, 2010).
No contexto militar essa necessidade é premente e contínua, devido ao fim do
serviço militar obrigatório, no final do século passado. Essa alteração fez diminuir o
número de elementos disponíveis, que levou a que as Forças Armadas fossem para o
mercado de trabalho recrutar os seus activos em concorrência directa com os
restantes intervenientes do tecido empresarial. Mas o fenómeno de trazer as pessoas
para o contexto castrense é apenas o inicio do processo de atrair, manter e
desenvolver pessoas. Após a contratação dos indivíduos torna-se necessário
87
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
consagrar uma cativante opção de carreira, de forma a manter os melhores nas
fileiras.
A realidade tecnológica que hoje constituí as plataformas militares carece de
especificidades, comportamentos e competências exigentes, tornando necessárias
práticas de gestão de desenvolvimento de carreira que acomodem os interesses
individuais, numa conciliação, na maior expressão possível, com os da organização.
A evolução das carreiras militares assente em dois eixos – progressão
horizontal e promoção vertical, conforme estatuído no Estatutos dos Militares das
Forças Armadas (EMFAR), carece de ser contemplada de forma a permitir uma
clareza de definição na responsabilidade e participação de cada elemento na definição
da sua carreira que poderá progredir de forma mais ou menos linear, considerando a
participação do indivíduo e as circunstâncias de oportunidade.
Nestes pressupostos, um processo efectivo de gestão de carreiras, no âmbito
da Marinha, é algo a prosseguir e fortalecer de modo a permitir manter e desenvolver
os que evidenciem melhores capacidades e valências, num enquadramento dos
valores e cultura organizacional vigentes e objectivos estratégicos projectados.
Podemos aferir que todas as organizações necessitam de indivíduos para a
sua actividade. Em contrapartida, a maioria dos indivíduos necessitam das
organizações para desenvolverem o seu trabalho. O desafio nesta interacção emerge
na procura do equilíbrio entre as solicitações individuais e a oferta institucional. As
organizações querem os melhores para os seus quadros e os indivíduos pretendem
integrar as organizações mais conceituadas. O cruzamento destas aspirações será o
factor crucial para o sucesso das carreiras e para o êxito das actividades
organizacionais. A carreira é um percurso de vida e cada um é construtor do seu
caminho. Como proferia Peter Drucker “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo.”
As carreiras dos militares regem-se por normativo legislativo, determinado
superiormente, que enquadra formalmente e com alguma rigidez a sua gestão e
desenvolvimento. Nessa decorrência, torna-se necessário proceder a alguma
agilização deste processo com vista a torná-lo mais participado e efectivo,
nomeadamente por recurso às novas tecnologias de informação e comunicação.
Partindo deste pressuposto, que existe necessidade de uma avaliação e
reestruturação, importa identificar os factores críticos do actual sistema de gestão de
carreiras na estrutura castrense da Marinha, com o propósito de debelar as falhas
identificadas, visando uma gestão mais eficiente do desenvolvimento de carreiras, que
propicie um desempenho ajustado do potencial humano e articulado acréscimo de
valor em sentido biunívoco.
88
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Conforme relevado, torna-se necessário intervir ao nível das práticas de
Gestão de Carreiras da Marinha, de modo a ir ao encontro do propósito traçado
superiormente, através dos documentos estruturantes, de determinação interna para a
execução das políticas de Recursos Humanos perspectivadas para esta matéria, e
que se materializa em “Conceber um sistema generalizado e sistemático para o
acompanhamento individualizado dos RH da Marinha e o aconselhamento de
percursos funcionais coerentes, motivadores e com potencial de carreira” (DSRH). É
com este objectivo que iniciámos o desenho do presente projecto numa perspectiva de
colmatar uma necessidade da organização numa dimensão de adaptação das políticas
instituídas às boas práticas organizacionais.
Desta forma, propusemo-nos desenhar um modelo aplicado, no âmbito da
gestão e desenvolvimento de carreiras, na estrutura da Marinha Portuguesa, assente
numa perspectiva de sucesso individual e organizacional, numa participação colectiva
e com a maior conciliação de interesses possível.
O trabalho desenvolvido estrutura-se a partir de uma revisão de literatura sobre
a temática em causa de gestão e desenvolvimento de carreiras, que permite conhecer
a grandeza teórica enquadrante desta matéria e as práticas preconizadas para a
envolvente contemporânea na perspectiva pessoal e da organização.
Para se atuar é necessário conhecer a realidade vigente de forma a gizar um
eficiente e eficaz rumo da intervenção. Assim, procedeu-se a um estudo de caso, cujo
método e técnicas de recolha de dados necessários ao diagnóstico se evidenciam e
explanam no capítulo três deste trabalho.
Para que uma intervenção seja efectiva, é fundamental analisar o
diagnosticado, a fim de projectar um plano baseado no patenteado e contribuinte para
a resolução da questão evidenciada. Assim, estruturou-se o plano de intervenção que
se pretende adequado na forma, aceitável na estrutura e exequível na dimensão.
Em suma, a estruturação do trabalho assenta numa metodologia de
identificação do problema através de um diagnóstico ajuizado nos dados evidenciados
no estudo de satisfação efectuado aos elementos da Marinha, complementado por
uma análise de conteúdo às contribuições abertas que os respondentes poderiam
colocar no âmbito do questionário elaborado.
Finalmente, compôs-se o caminho que poderia colmatar a necessidade
patenteada, propondo-se um plano de intervenção que vá de encontro à política da
organização para este área funcional e tenha o patrocínio do vértice estratégico para a
sua implementação, contribuindo para essa factor a entrevista efectuada ao vicealmirante superintendente dos serviços do pessoal, que permitiu ter presente a
vontade para a acção, numa perspectiva que enquadrasse todos os parâmetros da
89
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
questão, tendo em conta a dimensão da instituição, cultura organizacional vigente e
capacidade de implementação do plano, na conjuntura atual.
2.
2.1.
ENQUADRAMENTO TEMÁTICO
Definição e caracterização de carreira
As questões sobre a definição de carreira têm obtido resposta, pelos
estudiosos desta matéria, de acordo com várias perspectivas. Em alguns campos de
estudo, a carreira é tida como o conjunto de experiências, relacionadas com o
trabalho, ocorridas ao longo da vida de uma pessoa (Greenhaus, Callanan e
Godshalk, 2010). Outras ópticas atribuem como significado de carreira uma sequência
evolutiva da experiência do trabalho ao longo do tempo (Arthur, Hall e Lawrence,
1989). Podemos, no entanto, considerar que uma carreira é a sequência de papéis e
experiências, em ambiente de trabalho, na vida das pessoas, que ocorrem numa
envolvente social específica, nomeadamente em organizações (Baruch, 2004a).
Logramos então aferir que a carreira pode ser olhada sob quatro referenciais
distintos (Hall, 2002):
a)
Como desenvolvimento profissional, numa mobilidade interna que
possibilita uma ascensão hierárquica na organização;
b)
Como ocupação profissional, que pressupõe uma série de movimentos
verticais ascendentes, ao longo do tempo de trabalho, independentemente
da organização em que ocorrem;
c)
Como uma sequência de empregos e funções ao longo da vida, em que
todas as pessoas com uma história de trabalho, possuem uma carreira;
d)
Como uma sequência de experiências profissionais ao longo da vida, cuja
carreira representa um conjunto de vivências nos empregos e actividades
que constituem a sua história de trabalho.
Neste desígnio, o desenvolvimento de carreiras constitui-se em dois patamares
indissociáveis (Hall, 1996):
a)
Planeamento
de
carreira:
numa
auto-consciência
individual,
das
oportunidades com que se deparam, das escolhas que efectua, dos
condicionamentos e consequências que daí advêm; da definição dos
objectivos de carreira e do planeamento que giza do trabalho, da formação
e
outras
experiências
vivenciadas
para
parametrizar
o
sentido,
oportunidade e a sucessão das acções a adoptar para atingir os objectivos
de carreira;
90
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
b) Gestão da carreira: método de preparação, promoção e monitorização do
planeado para a carreira de forma individual ou em conjunto com os
sistemas de carreiras da organização em que se insere.
Para Greenhaus, Callanan e Godshalk (2010), a gestão da carreira de um
sujeito pressupõe um conjunto de acções que passam por diversos estádios e que
facilitam observar a complexidade dos actos que concorrem para a carreira individual:
Também a evolução do conceito de carreira, tem vindo a ajustar-se ao longo
dos tempos. No passado a imagem era de as organizações possuírem estruturas
hierárquicas rígidas que operavam num ambiente estável. O plano de carreiras, neste
contexto, era previsível, seguro e linear. Em contraste, o actual sistema organizacional
está caracterizado num modo de total mudança, dinamismo e fluidez. As carreiras são
imprevisíveis, vulneráveis e multidimensionais. Estes dois cenários estão em extremos
opostos. No entanto nenhum reflecte uma representação completa, verdadeira e justa
do estado vigente (Baruch, 2006).
Deste modo, alguns autores definem modelos que habilitam uma abordagem
plural no conceito de carreira, Brousseau, Driver e Eneroth (1996) enunciaram quatros
hipóteses fundamentais de experiências de carreira. Os padrões definidos diferem,
basicamente, em termos de direcção e frequência do movimento dentro e entre
diversos tipos de trabalho ao longo do tempo.
Ainda segundo os mesmos autores, os indivíduos que adoptem carreiras de
perito ou lineares têm vantagem em organizações burocráticas com estruturas
mecanicistas. Enquanto que os indivíduos que desenvolvam carreiras em espiral ou
transitórias não se enquadrarão neste tipo de organizações.
A caracterização dos modelos de carreiras emergentes distingue-se pelas
competências de cada elemento, necessárias no contexto de trabalho em que se
insere ou num incremento da sua empregabilidade. As valências conseguidas pela
passagem em várias organizações, a identificação com o trabalho que desenvolve, a
aprendizagem em ambiente organizacional, o estabelecimento de redes sociais de
suporte e a responsabilidade individual de gestão da sua carreira (Sullivan, 1999). A
escolha, da actividade ocupacional e decorrentes resultados, têm como principal factor
os valores culturais e de trabalho de cada indivíduo (Brown, 2002).
Todavia,
só
uma
decisão
intuitiva
não
é
efectiva,
carecendo
do
acompanhamento de uma decisão racional. Por outras palavras, os indivíduos
necessitam de usar a sua “cabeça” (racionalidade) e o seu “coração” (intuição) para
tomarem uma decisão de carreira efectiva. Esta conjunção tende a produzir diferentes
tipos de percepções complementares entre si (Singh e Greenhaus, 2004).
91
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
O compromisso que um individuo desenvolve no seio da empresa e que pode
ser:
afectivo,
reflectindo
um desejo
de
continuar
membro da
organização,
desenvolvido em grande parte como resultado de experiências de trabalho que
criam sentimentos de conforto e competência pessoal; de continuidade, espelhando
uma necessidade de se manter na organização, devido aos custos associados à
saída (e.g. falta de alternativas); ou normativo no sentido de uma obrigação
de permanecer,
resultante da interiorização de uma preceito de fidelidade ou o
recepção de favores que exigem um determinado reembolso. A intenção de sair da
organização diminui em correlação com o aumento do factor compromisso. Contudo, o
comportamento do indivíduo será distinto em função da componente compromisso
mais evidenciada (Meyer e Allen, 1991)
O desenvolvimento desta temática, tem mostrado que o controlo da carreira se
presencia, cada vez mais, sobre a influência do individuo do que da organização
(Baruch, 2004b e 2006). Esta tendência para a gestão de carreiras individualizada
pode decorrer em vantagens para as organizações e para os sujeitos. Para os
elementos identifica-se na hipótese de poderem ter um leque alargado de opções de
carreira. As organizações concentram-se na possibilidade de externalizar serviços, em
vez de efectuarem despedimentos, contratando ex-colaboradores como consultores
(Baruch, 2004b). Mas deve-se ter sempre como principio a criação de compromisso
nos indivíduos que potencie um bem-estar pessoal e uma vontade de trabalhar em
conjunção de critérios com os objetivos organizacionais (Meyer e Allen, 1991).
Como se observou, existe no contexto actual uma necessária auto-gestão da
carreira que se relaciona com os comportamentos dos indivíduos e que de acordo com
King (2004) se dividem em três grandes grupos: de posicionamento, focados no
alcançar dos objectivos de carreira através da uma escolha criteriosa nas
oportunidades de mobilidade, num investimento estratégico no desenvolvimento do
seu capital humano e numa rede social desenvolvida e activa; de influência, no sentido
de influenciar as decisões dos elementos chave, para alcançar os resultados
desejados; de gestão de fronteiras, num balanço de solicitações entre o domínio
laboral e a vida extra-trabalho.
Em contraste com as anteriores gerações, actualmente os membros das
organizações são responsáveis pelas suas próprias carreiras, não considerando
qualquer hipótese de uma carreira para a vida numa só organização (Kuijpers, Schyns
e Scheerens, 2006). Existindo, possibilidade, de em conjunto com a ambição e astúcia
individual, alcançar o topo da carreira, independentemente de onde se começa. Com a
oportunidade vem a responsabilidade, sendo que o sucesso, na actual sociedade,
baseada na economia, é induzido pelo conhecimento que cada um tem de si mesmo,
92
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
os seus factores de competitividade, valores e forma de alcançar bons resultados
(Drucker, 2005). Muito do que se apelida de desenvolvimento de carreira deveria, com
mais acuidade, ser caracterizado como comportamento vocacional, as escolhas
individuais são mais do foro educacional e vocacional do que, efectivamente, uma
escolha de carreira, onde a interacção coma envolvente está, permanentemente,
presente (Savickas, 2002).
A abertura dos mercados e da competição à escala global, à beira do século
XXI, criou a necessidade de organizações em rede e consequentemente carreiras
muito mais flexíveis (Hall, 1996). A principal modificação verifica-se na mudança de
carreiras que ofereciam emprego seguro para todos, para carreiras que proporcionam
oportunidades de desenvolvimento (Baruch, 2004a). Contudo, no presente, as
perspectivas profissionais parecem ser muito menos definíveis e previsíveis, sendo a
transição entre empregos mais frequente e difícil. Estas mudanças requerem dos
trabalhadores o desenvolvimento de aptidões e competências, substancialmente,
diferentes das requeridas no século XX, necessitando as pessoas de enfatizar a
capacidade de flexibilidade humana, a adaptabilidade e a aprendizagem ao longo da
vida (Savickas et al., 2009).
Entre estas novas carreiras podemos identificar as proteanas, autodeterminadas e definidas pelos valores do indivíduo em contraposição às
recompensas organizacionais, servindo a pessoa, a família e o propósito de vida (Hall,
2004). Este padrão de carreira assente na individualidade enfatiza a adaptabilidade do
próprio e a definição da direcção que deseja seguir surgindo em contraposição à
carreira
sem
fronteiras
(boundaryless)
que
se
encontra
numa
perspectiva
organizacional de maior permeabilidade à entrada e saída dos colaboradores
(Sullivan, 1999). A predisposição individual para uma carreira tipo proteana é um
antecedente significativo para uma carreira de sucesso (Vos e Soens, 2008). Mas não
devemos descurar, que as pessoas permanecem mais tempo nas firmas que
apresentam boa reputação, num princípio de identidade interna (Chun, 2005).
2.2.
Sucesso na carreira
De acordo com Baruch (2004b), a organização deve ser capaz de proporcionar
aos seus colaboradores opções que lhes permitam ter sucesso nas suas carreiras. No
entanto, se a essência das carreiras tem vindo a mudar, também o significado de
sucesso têm evoluído, diferenciando-se conforme o referencial:
O factor satisfação na carreira, assim como o relacionado com benefícios
tangíveis, como altos salários e promoções frequentes estão relacionados com uma
postura proactiva (Seilbert, Crant e Kraimer, 1999). Os comportamentos de
93
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
proactividade que contribuem de forma intrínseca e extrínseca para criar condições
para uma carreira de sucesso consubstanciam-se: em ser inovador, em vez de manter
uma orientação para o status-quo; em assumir princípios de astúcia política e
empenho activo no planeamento de carreira, procurando um retorno. Estas acções
específicas aumentarão a probabilidade de uma maior recompensa extrínseca e
intrínseca (Seibert, Kraimer e Crant, 2001).
Os indivíduos, que se mobilizam numa perspectiva de mudança de carreira,
aumentam as suas possibilidades se construírem relações em variados contextos
sociais. Devendo edificar uma alargada matriz de relações de aconselhamento.
Incrementando dessa forma o grau de acesso à informação, mas mais importante, a
flexibilidade cognitiva e a capacidade para ponderar de forma alargada e criativa um
amplo campo de possibilidades (Higgins, 2001).
A relação entre satisfação na carreira e conflito trabalho-família é uma
mediação que poderá evidenciar-se como moderador negativo, devendo ter em conta
diversos factores como são o género, o estado parental e marital, as fontes de
suporte, a comunidade em que se está inserido e os recursos financeiros. Sendo a
retenção de talentos um importante objecto para as organizações, compreender os
factores que influenciam a satisfação individual com a carreira é de extrema
importância (Martins, Eddleston e Veiga, 2002).
A questão de como efectuar o balanceamento das actividades e interacções
trabalho-família, torna-se saliente na reflexão sobre as competências e aspirações de
cada indivíduo. Gerir as interacções entre os diferentes domínios da vida tornou-se
uma preocupação primordial para os trabalhadores periféricos, cujo trabalho é
contingencial, free-lance, temporário, externo, part-time ou casual (Savickas et al.,
2009).
O modo como sempre foi pedido o incremento de capacidades, competências e
enfrentar estratégias para estar num mercado de trabalho flexível, é agora
suplementado por um entendimento profundo e alargado de como as pessoas devem
agir de forma a serem as escolhidas. O pensamento do novo século deve entender a
carreira como uma questão de autonomia pessoal num mercado de trabalho livre
(Law, Meijers e Wijers, 2002).
As pessoas podem recorrer a múltiplos pontos de referência para avaliarem o
seu sucesso na carreira, medindo-o relativamente às expectativas que têm com o seu
trabalho e em relação ao resultado das outras pessoas (Heslin, 2003). Sendo as
variáveis de reconhecimento de sucesso distintas para cada indivíduo (Ng et al.,
2005).
94
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Podemos então notar que, o sucesso na carreira é resultado das práticas
individuais interiorizadas de forma subjectiva, podendo ser definido como o alcançar
dos resultados desejados ao longo da experiência de uma pessoa, no tempo dedicado
ao trabalho. As pessoas têm diferentes aspirações de carreira, considerando distintos
factores de realização, como são exemplo, a segurança no trabalho, a localização do
trabalho, o status, a progressão através de diferentes funções, acesso à formação, a
importância do trabalho versus tempo para si e para a família. Por outro lado,
encontra-se a perspectiva externa que considera, em maior ou menor dimensão,
indicadores tangíveis de forma objectiva e reflecte o entendimento social partilhado em
contraposição ao sentimento individual (Arthur, Khapova e Wilderom, 2005).
Considera-se, então, que, existe uma “grande divisão” entre factores
subjectivos e objectivos no evidenciar do sucesso de carreira. Os objectivos podem
verificar-se através de manifestações exteriores de sucesso, como por exemplo: a
remuneração; a posição hierárquica que a pessoa atingiu com uma determinada
idade, ou que quantidade de recursos a pessoa tem sobre a sua coordenação.
Alternativamente, podemo-nos concentrar nas questões subjectivas como as pessoas
sentem a sua experiência de trabalho ao longo da vida profissional (Gunz e Heslin,
2005). Na mesma linha de pensamento Seibert e Kraimer (2001) definem sucesso
extrínseco como o aferido em termos de salário e promoções, associados a resultados
de recompensas instrumentais que advêm do trabalho ou ocupação e que são
objectivamente observáveis.
O sucesso extrínseco é então o medido em termos de satisfação no âmbito dos
factores que estão inerentes no trabalho ou ocupação e dependem de uma avaliação
subjectiva, do próprio relativamente aos seus objectivos e expectativas. No entanto, ter
uma personalidade proactiva contribui para o sucesso na carreira, com um efeito
significativo na satisfação, no salário auferido e no número de promoções conseguidas
ao longo da carreira (Seibert, Crant e Kraimer, 1999).
2.3.
Acompanhamento e aconselhamento
Na forma de as organizações ajudarem os seus colaboradores a terem
sucesso na carreira, é crucial considerar os seus desejos e planos. Embora as
carreiras estejam, presentemente, nas mãos dos colaboradores, as organizações
podem ter como objectivo aconselhar os seus elementos no desenvolvimento de
carreira, com incidência nos factores associados às características pessoais como a
motivação, reflexão e redes sociais em que se inserem, atendendo à situação no
trabalho e à dinâmica do ambiente em correlação com os factores de sucesso interno
e externo da carreira (Kuijpers, Schyns e Scheerens, 2006). Todavia, a tutoria poderá
95
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
não ser directamente relacionável com o sucesso ao longo da carreira, no respeitante
ao sucesso objectivo, os profissionais com aconselhamento relevam altos índices de
produtividade no início e no fim da carreira, sendo assim positiva a intervenção nessas
fases, já no estádio intermédio da carreira, não é tão evidente. Relativamente ao
sucesso subjectivo, os colaboradores com tutores apresentam sentimentos de
sucesso ao longo de toda a carreira (Peluchette e Jeanquart, 2000).
Afirmar às pessoas que são os responsáveis pelas sua carreira, pode ser mais
fácil de dizer do que de fazer. As pessoas precisam de suporte, e nem sempre têm o
conhecimento e a força mental para se dirigirem sem aconselhamento e orientação. É
aqui que entra o aconselhamento de carreira, que pode ajudar as pessoas a identificar
a sua vocação e percurso, assim como o contexto em que a pessoa está mais
preparada para prosperar. O aconselhamento é um canal de comunicação de dois
sentidos com o empregado e pode ocorrer de duas formas. A primeira é através do
seu supervisor directo, ou de um elemento hierarquicamente superior que conheça as
atitudes, comportamentos e aptidões do colaborador, a segunda é pelo responsável
pela Gestão dos Recursos Humanos. Dependente da complexidade da organização e
dos seus recursos financeiros, o aconselhamento externo pode ser uma opção
(Baruch, 2004a).
Nas organizações onde os colaboradores são orientados para alcançarem
objectivos ambiciosos, atingem mais facilmente esses propósitos do que aqueles que
têm tutores que não compartilham um elevado nível de ambição. Esses princípios
potenciam os factores de motivação, a interligação entre o orientado e o orientador e o
sucesso na carreira (Godshalk e Sosik, 2003), devendo existir um reconhecimento da
alargada matriz dos pontos referenciais que se podem adoptar para avaliar as
carreiras, por recurso a um elevado grau de controlo das experiências relacionadas
com a falha e com o sucesso (Heslin, 2003).
O aconselhamento de carreira pode acontecer, de forma mais comum, através
de quatro métodos: aconselhamento individual; aconselhamento de grupo; orientação
de grupo; em interactividade através de ferramentas informáticas e através de páginas
electrónicas via internet. O primeiro é o mais dispendioso, mas é igualmente o mais
utilizado, estando implantado na tradição de potenciação de apetências. O contexto
destas entrevistas inclui tópicos como auto-conceito, interesses, valências, valores,
regras de vida e objectivos. O aconselhamento de grupo está, normalmente, mais
limitado às questões da carreira. A orientação de grupo está mais interligada ao
encontrar de uma vocação de carreira. As ferramentas informáticas e o recurso à
internet, pressupõe uma utilização individual, sendo efectivos quando é efectuado um
registo das interacções e das expectativas do colaborador ou se torna necessário um
96
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
apoio profissional à distância. No futuro deve-se ter em conta a realidade tecnológica
existente, conhecendo que colaboradores podem ser aconselhados desta forma, que
tópicos podem ser endereçados e que eficiência tem este método (Bowlsbey, 2003).
Para Eby (1997) o aconselhamento será uma valiosa fonte de informação para
os indivíduos sobre as mudanças na natureza das carreiras (e.g. menor segurança no
trabalho; necessidade de ser mais proactivo no desenvolvimento da sua carreira). Na
posse desta informação, os colaboradores estarão mais aptos para participar e
encontrarem o apoio necessário para o desenvolvimento da sua carreira.
2.4.
O futuro
O pandemónio que, presentemente, se vive nas carreiras, cria alguma
confusão e frustração para muitas pessoas, mas pode ser gerador de um ímpeto de
oportunidades para desenvolver sistemas de carreiras inovadores, que vão além dos
do passado, motivando comportamentos estratégicos que correspondam às
necessidades da maioria e não só de alguns (Brosseau, Driver e Eneroth, 1996). As
organizações e os indivíduos desempenharão um papel relevante na gestão de
carreira, devendo partilhar informação sobre oportunidades e possibilidades,
contribuintes para o benefício comum (Baruch e Peiperl, 2000).
As carreiras contemporâneas são bastante diferentes das carreiras tradicionais,
mas nem tudo mudou. Os padrões desenvolveram-se, de sistemas de carreiras
estáveis e lineares para sistemas transaccionais e dinâmicos. Todavia, a mudança
nem sempre fez evoluir para melhor. Um sistema de carreiras deve estar balanceado
entre o instrumentalismo do sucesso dos indivíduos e das organizações onde
trabalham (Baruch, 2006). Contudo, há muito a ganhar se tivermos, sempre, presente
a expansão do conceito de carreira para além dos modelos tradicionais (Sullivan,
1999). Devem-se projectar trajectórias nas quais os indivíduos progressivamente
desenham e constroem as suas próprias vidas, incluindo a carreira (Savickas et al.,
2009).
Mas não podemos escamotear os efeitos directos e os de longo termo, que o
actual estado da economia mundial tem sobre o desenvolvimento das carreiras dos
indivíduos e concomitantemente nas suas vidas, podendo tornar a definição de
progressão de carreira, ao longo de diversos estágios, um conceito obsoleto. Mas ao
longo do século XXI, iremos manter a premência de carreiras estruturadas e
evolutivas, porque as experiências, necessidades e situações dos indivíduos mudam
com o tempo em correspondência como a sua idade. O que pode tornar apropriado
ver a carreira como uma série de estágios ou fases únicos. É facilmente aceitável que
as questões e expectativas de um indivíduo de 25 anos, em inicio de carreira, sejam
97
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
diferentes de um colaborador com 45 anos, a meio da sua carreira ou com 65 anos no
fim da sua vida activa. Os indivíduos encaram ao longo da vida um conjunto de
diversas e múltiplas situações, tarefas e factores de motivação. O entendimento desta
evolução e associadas necessidades e implicações nos diferentes estágios da carreira
pode contribuir para uma gestão mais efectiva da carreira pelo indivíduo, ajudando,
igualmente, as organizações a gerirem e desenvolverem os seus recursos humanos
(Greenhaus, Callanan e Godshalk, 2010).
É impossível antecipar como irão evoluir as carreiras nos próximos anos. Os
desafios, tais como os riscos sistémicos dos mercados financeiros globais, as
mudanças na provisão dos serviços sociais e a delapidação dos recursos naturais,
aumentam a vulnerabilidade das carreiras, que estão incorporadas nos modelos de
produção económica estabelecidos. No entanto, emergem oportunidades para
carreiras associadas à inovação social (incluindo a sustentabilidade no uso dos
recursos). Estes desenvolvimentos podem tornar algumas áreas de especialização
profissional obsoletas, mas criam possibilidades para novas valências e colaborações.
Existem bastantes questões sobre a adaptabilidade individual e organizacional em
resposta a estas transições (Tams e Arthur, 2010).
Como disse Drucker (2005), se os bulldozers movem montanhas, as ideias
mostram onde é que as máquinas devem actuar. O importante, são as mentes
brilhantes.
2.5.
A particularidade das carreiras militares – o caso da Marinha
A definição, nacional, de carreira militar encontra-se no artigo 27.º do Estatuto
dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), sendo definido como “o conjunto
hierarquizado de postos, desenvolvida por categorias, que se concretiza em quadros
especiais e a que corresponde o desempenho de cargos e o exercício de funções
diferenciadas entre si”.
A descrição do desenvolvimento da carreira militar encontra-se estatuído nos
artigos 125.º e 126.º do EMFAR, orientando-se pelos seguintes princípios: primado da
valorização militar; universalidade; profissionalismo; igualdade de oportunidades;
equilíbrio; flexibilidade; mobilidade; credibilidade.
Traduzindo-se, em cada categoria, na promoção dos militares aos diferentes
postos, de acordo com as respectivas condições gerais e especiais, tendo em conta as
qualificações, a antiguidade e o mérito revelados no desempenho profissional e as
necessidades estruturais das Forças Armadas. Deve possibilitar uma permanência
significativa e funcionalmente eficaz nos diferentes postos que a constituem.
98
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
No inerente aos direitos dos militares o EMFAR no seu artigo 25.º refere que “O
militar
tem,
nomeadamente,
direito:
A
ascender
na
carreira,
atentos
os
condicionalismos previstos no presente Estatuto, e à progressão no posto, nos termos
do respectivo estatuto remuneratório”.
Temos assim, uma perspectiva de evolução horizontal e vertical que conforme
Baruch (2004a) as pessoas têm que evidenciar o seu melhor para uma progressão na
carreira. Na sociedade anteriormente vigente a promoção era um acto administrativo,
hoje é uma recompensa de desempenho.
Ao nível da Marinha, o documento estruturante da estratégia de topo, a Diretiva
de Política Naval de 2011 (DPN), define como prioridade para a gestão: a valorização
permanente dos recursos humanos, em especial ao nível da liderança, da formação
académica dos quadros superiores e da qualificação e certificação técnico-profissional,
promovendo um ensino de qualidade e reforçando a individualidade dos órgãos de
base com essa missão, para dispor de quadros mais bem preparados, elevar os níveis
de motivação e influenciando positivamente o recrutamento e a retenção; o
envolvimento dos escalões intermédios de chefia nos processos de tomada de decisão
utilização dos sistemas e das competências, para optimizar o emprego dos recursos
humanos e das respectivas competências, numa lógica de desconcentração criteriosa
dos processos, como factores contribuintes para uma carreira de sucesso numa
instituição que conhece o valor dos seus membros e defende o seu desenvolvimento e
reconhece a particularidade dos seus activos humanos.
No inerente à política de gestão de pessoal, nomeadamente, no relativo à
informação de carreira de todos os indivíduos, militares, militarizados e civis, que
prestam serviço na Marinha, o Despacho do vice-almirante superintendente dos
Serviços do Pessoal n.º 09/2006, de 19 de Abril, determina que tendo presente os
princípios estatutários da carreira militar e os gerais da gestão do pessoal cria o
Gabinete de Gestão de Carreiras, a que incumbe, particularmente, a promoção de
sessões de atendimento e aconselhamento do pessoal no âmbito do desenvolvimento
das respectivas carreiras. A acção deste Gabinete será proporcionar informação, com
o objectivo de os elementos da Marinha obterem, em tempo oportuno, um melhor
conhecimento acerca das respectivas carreiras, em termos de oportunidades
prováveis de desenvolvimento. Estas indicações devem, em regra, ser prestadas uma
vez em cada posto e/ou sempre que julgado conveniente.
Os militares que prestam serviço na Marinha têm, ainda, a capacidade de
aquando do processo inerente à sua Avaliação Individual, de acordo com o normativo
constante na Portaria n.º 502/95 de 26 de Maio, de opinar sobre a forma como
gostariam que fosse orientada a sua carreira, referindo a área funcional onde
99
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
gostariam de desempenhar funções, tais como: Estado-Maior; Gestão de Pessoal;
Navios;
Instrução;
Autoridade
Marítima;
Manutenção/Reparação;
Abastecimento/Logística.
Na Directiva Sectorial de Recursos Humanos, que se assume como um
documento estruturante da estratégia da organização, considera-se a evolução de um
ambiente externo cada vez mais exigente e dos novos desafios emergentes nos
planos internos e externos, com incidência nos Recursos Humanos (RH) e na sua
gestão. Constituindo-se, esta diretiva, como um elemento central da definição do
desenvolvimento e da concretização da política de RH da Marinha, referenciando-se
que gestão dos RH, deve assumir-se como um referencial no domínio das Forças
Armadas e no universo da Administração Pública, refletindo elevadíssimos níveis de
comprometimento e satisfação, por parte dos militares e dos comandos, direcções e
chefias das unidades e organismos aos quais aqueles estão alocados, definindo,
ainda, que a GRH, na Marinha deve pautar-se por elevados padrões de qualidade e
por uma melhoria contínua, na conciliação e consecução, permanentes, dos requisitos
estratégicos da Instituição e das necessidades e dos objectivos individuais do seu
pessoal.
No contexto dos objetivos estratégicos sectoriais para a área funcional do
pessoal é identificada como prioridade: “Proporcionar ao pessoal da Marinha carreiras
equilibradas, atrativas e motivadoras. Tornando-se necessário desenvolver um
trabalho que responda a esta questão de forma organizada e metódica.
3.
MÉTODO E TÉCNICAS DE RECOLHA E ANÁLISE DE DADOS
3.1.
Método
O método a perseguir neste projecto é o estudo de caso, relevando-se nos
seguintes pontos, de acordo com a definição de Yin (2003) o estudo de caso baseia-se
nas características do fenómeno em estudo e num conjunto de características
associadas ao processo de recolha de dados e às estratégias de análise dos mesmos.
Foi neste conceito que baseamos o nosso estudo num princípio de parametrização da
informação que nos diagnosticasse de forma precisa a situação que carecia de
intervenção, para desenharmos, com os alicerces do quadro teórico de referência
evidenciado um projecto de intervenção capaz de debelar a necessidade patenteada.
3.2.
População/Amostra
Para realização do presente estudo, e considerando a população de todos os
indivíduos que prestam serviço na Marinha (cerca de 12500), tomou-se como amostra
100
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
o conjunto restrito de oficiais com o posto de primeiro-tenente (1TEN); capitão-tenente
(CTEN) e capitão-de-fragata (CFR), cuja carreira média expressa-se em cerca de
dezoito anos no conjunto dos três postos, com diversas progressões horizontais e
promoções verticais, sendo desse modo representativo da carreira organizacional em
estudo e cujas conclusões obtidas podem ser transportadas para outros postos e
categorias.
A amostra, em causa, foi constituída por 746 elementos, distribuídos por 279
1TEN, 254 CTEN e 213 CFR.
De acordo com as tabelas de Arkin e Colton (“Tables for Statisticians”), para
esta população finita (abaixo de 15000), assumindo uma margem de erro de 5% e um
intervalo de confiança de 95,5%, a amostra requerida fixa-se em 390, pelo que a de
746 indivíduos é adequada para o objectivo em causa.
Obtiveram-se 501 respostas (193 1TEN; 183 CTEN; 116 CFR; 9 NR),
representando 67,16% do universo. Dos respondentes, 21 elementos são do género
feminino e 448 do género masculino (32 NR). Encontram-se, igualmente,
representadas todas as classes de oficiais existentes na amostra. Relativamente ao
tempo de permanência nos quadros da Marinha, estamos perante indivíduos entre os
dez anos e os quarenta anos de serviço, com idades entre os 28 e os 61 anos, com
uma média de 40,06 anos (s.d. 6,628). As habilitações literárias evidenciadas
encontram-se num espectro abrangente do ensino básico (1) ao mestrado (25), com
maior frequência ao nível da licenciatura (347).
A amostra advém de diversas áreas funcionais da Marinha2, com maior
incidência nas áreas do Material (78), Pessoal (99) e Operacional (139).
3.3.
Técnica de recolha de dados
3.3.1. Questionário
A base para o diagnóstico da situação vigente na Marinha ao nível da
dimensão da Gestão e Desenvolvimento de Carreiras, assenta num estudo efectuado
aos militares que prestavam serviço na organização e decorreu nos anos de
2008/2009, por aplicação de um questionário de satisfação, desenvolvido no âmbito do
projecto de Certificação do Sistema de Gestão de Recursos Humanos da Marinha de
acordo com a Norma Portuguesa (NP) 4427:20043, que estabelece na sua cláusula
2
Autoridade Marítima (47); Cultura (6); Estado-Maior (45); Financeira (28); Formação (1); Instituto
Hidrográfico (1); Material (78); Operacional (139); Pessoal (99); Tecnologias da Informação (38); Fora
da matriz interna da Marinha (1); NR (18).
3
O Sistema de Gestão de Recursos Humanos da Marinha (SGRHM), encontra-se certificado pela APCER
(Associação Portuguesa de Certificação) desde 31 de Agosto de 2009.
101
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
normativa 8.1.2 - Satisfação interna, que “A organização deve medir, periodicamente,
o nível de satisfação interna, estabelecendo a metodologia e os instrumentos
adequados”.
Para esse fim foi elaborado um questionário, que medisse a satisfação interna
em várias dimensões, a partir da definição de satisfação de Locke (1976: 1304) “um
estado emocional positivo ou de prazer, resultante da avaliação do trabalho ou das
experiências proporcionadas pelo trabalho”. Podendo as facetas da satisfação serem
agrupadas de forma lógica, proporcionando uma compreensão das suas causas e
natureza, permitindo entender como e porquê certos eventos/agentes assumem um
carácter positivo ou negativo.
As questões foram elaboradas de forma que fossem claras e percebidas
correctamente pela população a inquirir e fossem ao encontro do que se pretendia
averiguar, tendo sido construída uma versão preliminar do Questionário. Esta versão
preliminar foi pré-testada, visando verificar as seguintes proposições: todas as
questões são compreendidas da mesma forma pelos inquiridos? As listas de respostas
abrangem todas as respostas possíveis? Há alguma questão que origina recusa na
resposta? A ordem das questões é aceitável? Qual a reacção dos inquiridos
relativamente à extensão do questionário e nível de dificuldade? Qual a duração do
tempo de resposta ao questionário? Da análise das sugestões apresentadas foi
elaborada a versão definitiva.
O questionário apresenta dez dimensões de observação, sendo que para o
presente projecto centramo-nos na correspondente ao desenvolvimento de carreira
que se consubstancia nos seguintes cinco itens:
I 1.
As oportunidades para progressão na carreira;
I 2.
Os requisitos e exigências para progressão na carreira;
I 3.
As possibilidades que tem de intervir na progressão de carreira;
I 4.
A forma como tem progredido na carreira;
I 5.
A utilização do mérito relativo na progressão da carreira.
Foi utilizada uma escala de Likert de quatro níveis (Nada Satisfeito; Pouco
Satisfeito; Satisfeito; Muito Satisfeito), existindo, ainda, a possibilidade de resposta de
não aplicável.
Em cada dimensão foi, ainda, solicitado aos respondentes que indicassem
algumas sugestões para que a Marinha pudesse melhorar a satisfação nesta área.
3.3.2. Entrevista à Gestão de Topo
De forma a aferir a aceitação da gestão de topo para acomodar a intervenção
que se preconizava, e cumulativamente recolher uma opinião, sobre esta matéria,
102
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
abalizada pela experiência de algumas dezenas de anos de Marinha, em diversos
cargos de relevo, em unidades em terra e navios no mar, solicitou-se uma entrevista
situacional ao vice-almirante António José Bonifácio Lopes que desempenha,
actualmente, o cargo de superintendente dos Serviços do Pessoal, responsável
máximo pela esta área funcional na organização.
3.3.3. Análise Documental
Para um conhecimento mais adequado do normativo enquadrante deste
processo, na Marinha, procedeu-se a uma análise de todos os documentos
estruturantes desta matéria.
3.4.
Técnica de tratamento de dados
Para o tratamento dos dados obtidos, no âmbito das questões fechadas
procedeu-se a uma análise estatística descritiva com recurso à ferramenta informática
SPSS4, para determinação das médias e desvio padrão dos itens em questão, e
índices de satisfação evidenciados.
Na decorrência do solicitado na questão aberta do questionário de satisfação
interna, no inerente aos itens relativos à Gestão e Desenvolvimento de carreira, no
sentido da melhoria contínua do sistema em concordância com as melhores práticas.
No inerente à entrevista à Gestão de Topo, procedeu-se a uma análise de conteúdo,
que permitiu enquadrar os aspectos mais relevantes que poderão ser objecto de uma
estratégia de intervenção que os diminua ou elimine.
Nesse sentido, procedeu-se de acordo com o método de inferições sequenciais
expresso por Bardin (2008), tendo-se agrupado os contributos obtidos por parâmetros
correlacionáveis com os itens associados às questões fechadas, modelando-se numa
desconstrução da unidade de análise inicial (frase) para um indicador de tema
(expressão ou palavra) que permitisse, por discriminação quantitativa, aferir áreas de
intervenção preferencial.
4
Statistical Package for the Social Sciences
103
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
4.
4.1.
RESULTADOS
Questionário – Questões fechadas
Os resultados apurados no questionário são os abaixo explanados (Tabela 1),
relevando-se que numa escala de quatro níveis, se consideram positivos os valores
superiores a 2,5 de média, que correspondem a 50% de satisfação absoluta:
Tabela 1 - Resultados da dimensão satisfação com as promoções/carreira
Item
Média
Desvio Padrão
I 1. As oportunidades que lhe são oferecidas para progressão na
carreira
2,43
0,80
I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira
2,60
0,71
I 3. As possibilidades que tem para intervir na progressão na
carreira
2,09
0,75
I 4. A forma como tem progredido na carreira
2,72
0,82
I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira
2,39
0,86
No entanto, importa referir, que foi considerado, superiormente, avaliar como
valor mínimo aceitável um índice de satisfação - IS = (n.º de satisfeitos + n.º de muito
satisfeitos) / n.º de respondentes), adequado aos objetivos estratégicos da
organização, aquele que se apresentasse igual ou superior a 70%. Este nível de
ambição, que desloca a distribuição normal para a direita, intenta que a maioria dos
elementos se encontre numa faixa de satisfação superior.
Tabela 2 - Índice de Satisfação da Dimensão Satisfação com as promoções/carreira
(em %)
Itens
IS
I 1. As oportunidades que lhe são oferecidas para progressão na
carreira
50,6
I 2. Os requisitos e exigências para progressão na carreira
62,4
I 3. As possibilidades que tem para intervir na progressão na
carreira
29,6
I 4. A forma como tem progredido na carreira
67,5
I 5. A utilização do mérito relativo na progressão da carreira
49,2
104
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Pela análise dos dados obtidos e presentes na Tabela 2, não se verificam
índices de satisfação superiores a 70% em relação aos itens analisados. Pelo que
todos são identificados como críticos e com potencial de análise e intervenção.
Os itens com mais baixo nível de satisfação - o item I 3., inerente à satisfação
para com “as possibilidades que tem para intervir na progressão na carreira” (29,6%),
deverá ser alvo de uma, mais aturada, análise.
Não se podendo, ainda, descurar como factores de análise, nesta dimensão, o
Item I 1. e I 5., que apresentam resultados inferiores a 60%.
Neste articulado, afere-se a necessidade de elaborar um projecto que eleve o
índice de satisfação nesta dimensão, o qual deverá incidir na possibilidade de as
pessoas intervirem de forma mais dilatada na sua progressão de carreira, utilizando o
mérito
como
factor
de
diferenciação
e criando
oportunidades
de
carreira
multidisciplinares e preditoras de sucesso, evidenciando-se que os indivíduos com
posto mais elevado na hierarquia (CFR) apresentam maiores índices de satisfação,
com excepção do I 4. – A forma como tem progredido na carreira.
4.2.
Questionário – Questão Aberta
Da análise de conteúdo efectuada à questão aberta de sugestões para elevar o
nível de satisfação nesta dimensão, releva-se, em correlação com o parâmetro aferido
em cada item das questões I. 1 a I. 5, o seguinte (Tabela 3):
Tabela 3 - Análise de Conteúdo às Questões Abertas
Parâmetro
Indicador (expressão ou palavra)
Oportunidades para
Promoção/Progressão





Não atendimento de pretensão de diversificar a carreira;
Comandos no mar, quem necessita de horas de navegação;
Diferença de carreiras;
Nivelar condições de progressão;
Classe, factor impeditivo;












Carreiras planeadas no médio/longo prazo;
Requisitos não claramente identificados;
Divulgação dos critérios usados, e do peso relativo;
Divulgar as possibilidades de carreira;
Definir "Carreira”;
Regras transparentes, objectivas;
Comandos no mar a quem necessita de horas de navegação;
Homogeneizar os quadros;
Equilibrar os diversos quadros;
Estabilidade de regras;
Quadros alterados;
Aumentar o tempo de permanência nos postos, subindo os
vencimentos e incrementando a diferenciação para o mesmo
posto;
Requisitos e
exigências
105
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
Parâmetro
Indicador (expressão ou palavra)
Possibilidade de
intervir





Intervenção na carreira casuística e fruto da oportunidade;
Carreiras discutidas com cada um;
Envolvidos os elementos;
Escolhas passar pelo próprio;
O próprio tem de ter capacidade de intervir;












Promoção/Progressão
na carreira
Uniformizar o acesso a cargos por nomeação, escolha;
Não à simples antiguidade na carreira.
Promoções por escolha todos os postos;
Progressão não por antiguidade;
Promoção para a função;
Promoções nos períodos de tempo previstos;
Classe, factor impeditivo de progressão na carreira;
Minimizar a discrepância promoções diferentes classes;
Clarificação das regras;
Atraso na progressão das carreiras;
Progressão na carreira mais célere;
Aumentar o tempo de permanência nos postos, subindo os
vencimentos e incrementando a diferenciação para o mesmo
posto;
 Normalização nas promoções das classes;
 A classificação da EN, não deveria perdurar para toda a vida;
 Concorre a um lugar do posto acima;
Mérito demonstrado










Valorização do mérito relativo;
Mais importância ao desempenho de mérito;
Maior peso ao mérito relativo;
Mais aptos e capazes, acelerada a sua progressão;
Progressão por mérito;
Mérito sobrepor;
Mérito relativo não é usado;
Promover o mérito relativo;
O não mérito não é usualmente reprovado;
Considerando o desempenho individual dos militares;
Podemos, assim, apreciar um conjunto de factores contribuintes para o projecto
de intervenção, no sentido de incrementar o Índice de Satisfação nesta dimensão.
O modelo a estruturar deverá evidenciar as acções necessárias para responder
às questões levantadas.
4.3.
Entrevista à Gestão de Topo
Da entrevista realizada à gestão de topo da Marinha, na pessoa do
superintendente dos Serviços do Pessoal, vice-almirante António José Bonifácio
Lopes, que consistiu num conjunto de 16 questões, podemos evidenciar alguns
factores que cimentam o diagnóstico preconizado pelos restantes instrumentos de
recolha de dados, assim como um levantamento indicadores de acção passíveis de
106
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
implementação e suportados pelo vértice estratégico da organização, cujas grandes
áreas evidenciadas se consubstanciam no quadro seguinte (Tabela 4):
Tabela 4 - Análise de Conteúdo à Entrevista à Gestão de Topo
Parâmetro
Indicador de acção
Oportunidades para
Promoção/Progressão
 Incrementar o processo de comunicação sobre as oportunidades
de carreira, informando o individuo sobre as suas possibilidades,
num contexto de caracterização e posicionamento na sua
categoria e classe;
 Potenciar a identidade organizacional, num princípio de
envolvimento individual.
Requisitos e
exigências
 Desenvolver processos de comunicação, nomeadamente, no
referente ao planeamento perspectivado;
 Alicerçar as melhores práticas de forma transparente e
cooperativa;
 Elaborar um estudo que permita avaliar a ampliação do
actualmente implementado.
Possibilidade de
intervir
 Estruturar um sistema de Aconselhamento e Acompanhamento
que permita uma orientação sistémica dos indivíduos, através da
criação de um Órgão de Acompanhamento e Aconselhamento de
Carreira (OAAC);
 Instituir a figura do tutor de carreira;
 Incrementar as acções de participação das pessoas, no processo
de carreira.
 Parametrizar uma ferramenta informática para interacção
pessoa/organização;
 Desenvolver estratégias de conciliação entre os interesses
pessoais e organizacionais, de forma a permitir pontos de
avaliação e, eventual, saída da organização.
Promoção/Progressão
na carreira
 Estruturar carreiras diversificadas que permitam uma superior
empregabilidade, ao nível interno e externo;
 Divulgar o exemplo como factor de motivação conjunta.
Mérito demonstrado
 Avaliar as actuais regras de promoção e progressão, centradas na
meritocracia.
 Perspectivar canais de promoção, progressão e desenvolvimento
de carreira que permitam valorizar o mérito.
Desta
forma,
aprecia-se
um
conjunto
de acções
que
poderão
ser
implementadas na organização em convergência com a questão base de
implementação de um modelo sistémico de gestão e desenvolvimento de carreiras
sustentadas e motivantes que permita um envolvimento de todos os meios humanos e
pondere uma definição de objectivos comuns e tendentes para um rumo único de
todos os intervenientes nesta acção. A convergência de interesses será o fator chave,
para um aumento do índice de satisfação percebido de modo a atingir valores
consentâneos com o nível de ambição desejado pela organização.
107
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Tendo-se concluído o levantamento dos dados definidores do diagnóstico
organizacional vigente, através dos índices de satisfação evidenciados, assim como as
hipóteses de intervenção patenteadas por recurso à questão aberta de sugestões,
para potenciação do índice de satisfação, torna-se necessário sistematizar um plano
de intervenção, consistente e enlevado de níveis de eficiência e eficácia, que permita
desenvolver as acções de intervenção de forma substantiva e contribuintes para o
propósito traçado, com base numa análise sistematizada e progressiva do
evidenciado.
Este processo encontra-se devidamente sustentado pelo vértice estratégico da
organização, conforme verificado através da Entrevista à Gestão de Topo, de onde se
infere um conjunto de acções passíveis de serem promovidas no sentido do objectivo
macro de obtenção de elevados padrões de satisfação, transversais a todas as
categorias dos militares da Marinha.
5.1.
Áreas/Acções de Intervenção
Da análise de conteúdo, efectuada à questão aberta, das sugestões para
elevar o nível de satisfação nesta dimensão, releva-se abaixo exposto em interligação
com cada item das questões I. 1 a I. 5, permitindo um levantamento das hipotéticas
áreas de intervenção para inclusão no plano de implementação, que habilite como
referiram Greenhaus, Callanan e Godshalk (2010) uma gestão da carreira com um
conjunto de acções que passam por diversos estádios e que facilitam observar a
complexidade dos actos que concorrem para a carreira individual
Podemos, assim, considerar um conjunto de factores que deverão ser alvo do
projecto de intervenção, com o objectivo de incrementar o Índice de Satisfação nesta
dimensão. Num significado de desenvolvimento profissional e numa mobilidade interna
que proporcione uma ascensão hierárquica na organização (Hall, 2002).
O modelo de projecto de intervenção a delinear deve estruturar-se a partir das
acções evidenciadas que permitam responder, de forma consistente, às questões
levantadas. Esta tendência para a gestão de carreiras individualizada decorre em
vantagens para as organizações e para os sujeitos (Baruch, 2004b).
Da análise efectuada à entrevista à gestão de topo, infere-se um conjunto de
Acções de Intervenção, no âmbito do universo definido como Áreas, passíveis, de
Intervenção, susceptíveis de sustentação e patrocínio de implementação pelo vértice
estratégico da organização. Na forma de as organizações ajudarem os seus
108
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
colaboradores a terem sucesso na carreira, é crucial considerar os seus desejos e
planos (Kuijpers, Schyns e Scheerens, 2006).
Nesta sequência, parametrizamos, através da evolução do diagnóstico
efectuado, um conjunto analítico e evolutivo com origem nos aspectos críticos
identificados, áreas de intervenção modeladas pelos respondentes ao Inquérito de
Satisfação e decorrentes acções derivantes para o desiderato em causa, em
convergência com a vontade estratégica da organização, vertida nos documentos
estruturantes da política de Recursos Humanos e demonstrada na entrevista à gestão
de topo.
Esta estrutura, de resposta, consubstancia-se no arrolado na Tabela 5:
Tabela 5 – Ações de Intervenção
Objetivando-se, nesta configuração, um aumento dos índices de satisfação
evidenciados, por recurso a um conjunto de acções que se consideram adequadas,
aceitáveis e exequíveis, para alcançar o nível de ambição patenteado para esta área.
Considerando que o entendimento da evolução e associadas necessidades e
implicações nos diferentes estágios da carreira pode contribuir para uma gestão mais
efectiva da carreira pelo indivíduo, ajudando, igualmente, as organizações a gerirem e
desenvolverem os seus meios humanos (Greenhaus, Callanan e Godshalk, 2010).
109
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
Nestes termos e em conjunção com a estratégia organizacional observado,
permitirá desenvolver um plano de intervenção consonante e delineador de acções
que prossigam o objectivo traçado.
6.
6.1.
FORMA DE IMPLEMENTAÇÃO
Acções de Intervenção
Concluído o diagnóstico organizacional da matéria identificada e tendente
processo de sustentação por parte da gestão para o desenho de um mecanismo
sistémico que permita abranger na maior extensão exequível as questões identificadas
nesta dimensão da satisfação com as promoções e carreiras.
Desta forma, torna-se necessário projectar um conjunto de acções que
permitam contribuir para os objectivos organizacionais nesta matéria, conforme nos
propusemos efectuar com a feitura deste projecto no sentido de incrementar o índice
de satisfação colectivo nesta dimensão, patrocinando modernas práticas de Gestão de
Recursos Humanos tendo como linha de rumo as melhores práticas identificadas na
teoria como sendo as potenciadoras da satisfação e criadoras de motivos para que
todos os elementos que prestam serviço na instituição aumentem o seu compromisso
organizacional e se sintam envolvidos como parte de uma engrenagem em que todos
são peças basilares para um desenvolvimento sustentado e coerente na senda da
eficácia organizacional, sem descurar a optimização e a necessária, cada vez mais,
economia de meios num produto operacional constante.
O perspectivado tende a cobrir todos os parâmetros teóricos identificados –
Possibilidade
de
Intervir;
Mérito
Demonstrado;
Oportunidades
para
Promoção/Progressão; requisitos e exigências; Promoção/Progressão na carreira, sem
descurar o nível crítico de índice de satisfação evidenciado. Foram, igualmente, tidas
em conta as áreas de intervenção identificadas nas sugestões analisadas, assim como
as acções de intervenção sustentadas pela gestão de topo, sem envolvimento da
gestão num processo de mudança organizacional como este, o sucesso estará
sempre pendente.
Neste contexto, assume-se que o ora perspectivado poderá criar novas
condições e oportunidades, num envolvimento de todos os elementos, concebendo
capacidades de intervenção e comunicação que possibilitem uma conciliação de
interesses a todos os níveis e nos diversos patamares de decisão, num processo de
apoio à gestão enleante e motivante, onde todos tenham o seu papel.
110
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
6.1.1. Órgão de Aconselhamento e Acompanhamento de Carreira
Numa sociedade concorrencial em que as instituições dependem dos seus
colaboradores numa simbiose de conciliação de interesses, a prática de Gestão de
Pessoas elevadas nas organizações onde, como se verificou na análise teórica,
afirmar às pessoas que são os responsáveis pelas sua carreira, pode ser mais fácil de
dizer do que de fazer. As pessoas precisam de suporte, e nem sempre têm o
conhecimento e a força mental para se dirigirem sem aconselhamento e orientação
(Baruch, 2004a).
Nessa envolvente e no sentido de alavancar os objectivos estratégicos
delineados num paradigma organizacional contemporâneo, preconiza-se como
contribuinte para o sucesso cooperativo a existência de um órgão específico, de
aconselhamento e acompanhamento de carreiras, que assegure os regimentos de
acompanhamento e aconselhamento sistémico da carreira, em pressuposto de
convergência dos interesses organizacionais, em soberania, e dos pessoais na maior
dimensão possível. Sem descurar a necessária proactividade que deve ser incentivada
a cada elemento como parte da sua gestão de carreira.
Neste envolvente, potencia-se o parâmetro de participação das pessoas, que
assim têm possibilidade de intervir directamente no processo, conhecendo a sua
realidade, oportunidades, requisitos e exigências traçadas.
6.1.2. Tutoria de Carreira
Conforme acima plasmado, o OAAC deve ser complementado, no âmbito das
responsabilidades atribuídas, pela figura do Tutor de Carreira.
Estes elementos deverão ser identificados num espectro restrito de militares
que pelo seu exemplo, factor primordial neste processo, como evidenciou o
superintendente dos Serviços do Pessoal na sua entrevista, atribuindo-lhe ponderação
relevante no seu próprio sucesso, podendo proceder como factores de motivação
conjunta, que possibilitem aos mais jovens um referencial de experiência e
competência, promotor de dinâmicas de carreira.
6.1.3. Portal Intranet (www.marinha.pt/carreiras)
A interacção institucional deve explorar todas as possibilidades existentes de
modo a que as decisões organizacionais assentem em informação precisa, actual e
correspondente, na maior sobreposição possível com o interesse evidenciado pelas
pessoas. A Marinha possui, há alguns anos, uma plataforma de comunicação interna
que permite veicular um conjunto de informação de forma célere e eficaz, assumindo
como público-alvo todos os elementos da organização – a Intranet. Esta ferramenta
111
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
tem a capacidade de, igualmente, servir para recolher informação dos militares,
militarizados e civis que prestam serviço na Marinha, no sentido do individual para o
organizacional.
No contexto do actual plano, preconiza-se a criação e implementação de uma
ferramenta informática, na plataforma tecnológica da Intranet, avalizando uma eficaz
interacção entre as pessoas e a organização, de acordo com os adequados requisitos
de segurança da informação e baseado num princípio de confiança e probidade de
processos. Não descurando uma definição de conteúdos ajustada ao fim em causa e
em processo de fácil acção do utilizador.
As ferramentas informáticas e o recurso à internet pressupõem uma utilização
individual, sendo efectivos quando se realiza qual o conjunto de tópicos que podem
ser endereçados e que eficiência tem este método (Bowlsbey, 2003).
6.1.4. Programa “PARTICIPE”
Neste contexto, não é suficiente edificar mecanismos que possibilitem uma
interacção entre os actores deste processo. É determinante desenvolver instrumentos
de mobilização colectiva que possibilitem afectar graus de sucesso, contribuintes para
uma dinâmica constante que rentabilize o investimento da organização.
Nesse âmbito, estruturou-se uma campanha promocional para potenciação da
participação das pessoas na actividade organizacional, nomeadamente, nesta fase, na
aderência e sensibilização para a exploração das capacidades disponibilizadas na
página electrónica das carreiras (www.marinha.pt/carreiras), a qual assenta numa
visão inspiradora de envolvimento de todos os elementos, que se apelidou de
programa “PARTICIPE”.
6.1.5. Regras de promoção e progressão / selectividade e mérito
Conforme aferido no questionário de satisfação interna um dos itens com
menor índice de satisfação é o associado à questão da utilização do mérito relativo na
progressão de carreira (49,2%). Igualmente, nas respostas recolhidas pela questão
aberta de observa uma grande preocupação com a valorização do mérito nos
processos de promoção. Aquando da entrevista à gestão de topo, o superintendente
dos Serviços do Pessoal foi peremptório em sublinhar a carência perspectivar canais
de promoção, progressão e desenvolvimento de carreira, sendo premente revisitar as
actuais regras de promoção, designadamente em alguns dos postos intermédios, onde
a promoção não ocorre por escolha, assim como as inerentes à colocação,
nomeadamente, nos cargos de referência para a organização.
112
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Neste envolvimento, torna-se necessário criar um Grupo de Trabalho, que
revisite a estrutura mestra deste parâmetro (promoção e progressão), ponderando
uma apreciação que suceda numa proposta de alteração do vigente, em consonância
com os factores de sucesso pessoal e organizacional, atentos os seguintes preceitos:
6.1.6. Interligação de sistemas
Para um apoio à decisão, de cada elemento da organização, informado e
avisado torna-se fundamental que a informação esteja disponível a todos os níveis e
contribua para uma eficaz análise e assuma princípios de qualidade e transparência
considerando que, pessoas permanecem mais tempo nas firmas que apresentam boa
reputação, num princípio de identidade interna (Chun, 2005).
Os sistemas de informação arrogam na sociedade actual um papel
preponderante no exercício das organizações, assumindo-se como uma base de
trabalho contínua para o desenrolar da acção produzida.
Noutro ângulo, a actual difusão de sistemas, de forma desgarrada, não
habilitará a um consenso harmónico no obtido, podendo enviesar a análise e ulterior
decisão.
Neste enquadramento, considera-se fundamental que a organização explore os
seus sistemas num molde de interligação e consonância que potencie a firmeza no
modelo, perspective a confiança e apresente a celeridade adequada, sem descurar
como envolvente de fundo a indispensável característica de fiabilidade.
Por outro lado, as ferramentas tecnológicas devem ter presente uma
indispensável facilidade de operação, baseada no nível inferior dos utilizadores finais.
Presente o que precede, intentou-se como uma das acções de implementação,
neste campo de actuação, a interligação do existentes no âmbito do Sistema de
Gestão de Recursos Humanos da Marinha, preferencialmente, em plataforma única de
exploração directa e numa uniformização de processos e procedimentos.
De referir que, este objectivo encontra-se identificado, no âmbito do Ministério
Defesa Nacional, através do projecto do Sistema de Informação de Gestão (SIG-DN),
que inclui uma parte dedicada aos Recursos Humanos – Carreiras.
7.
CONCLUSÕES
A questão de gestão e desenvolvimento de carreiras nas Forças Armadas é
algo que, desde que existem corpos militares, com carácter regular, tem sido encarado
como um desígnio enquadrante da promoção e progressão na sociedade castrense.
No entanto, na sociedade contemporânea onde a prestação do serviço militar
deixou de ser obrigatório, sendo agora o mercado de trabalho o universo de aquisição
113
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
de elementos para as fileiras, fez com que esta matéria assumisse uma vertente
central no desenvolvimento da organização e na sua sustentação ao nível das
características e capacidades inerentes às pessoas como parte de um corpo
organizacional autoproduzido e auto-sustentado, onde o elemento humano é o factor
diferenciador da acção produzida, num ambiente em constante alteração e evolução.
Neste enquadramento, a Marinha identificou como premente uma intervenção
construtiva, que habilitasse a concepção e implementação de um sistema
generalizado e sistemático para o acompanhamento individualizado dos recursos
humanos, em consonância com o aconselhamento de percursos funcionais coerentes,
motivadores e com potencial de carreira.
O evidenciado permitiu referenciar uma organização baseada e estruturada
com base num normativo/legislação com alguma rigidez, mas com aptidão e vontade,
conforme demonstrado nos diversos documentos estruturantes e na entrevista à
gestão de topo, de acolher e patrocinar novos processos e modelos que provejam
assolar o problema em causa. Há espaço e empenho para uma intervenção de
adaptação à sociedade.
Nesta decorrência, reconheceu-se que o paradigma de carreira mudou, na
actual sociedade do conhecimento, as pessoas são parte activa do processo, num
princípio de auto-satisfação e motivação, onde os valores de envolvimento entre o
indivíduo e a organização mudaram e evoluíram para um compromisso biunívoco de
comprometimento
e
acompanhamento
mútuo.
As
pessoas
necessitam
das
organizações para se realizarem e as organizações carecem dos indivíduos para
desenvolverem valor e alcançarem objectivos estratégicos sustentados.
A análise da realidade institucional revelou-nos que existem índices de
satisfação bastante positivos, mas com valores abaixo do nível de ambição
ambicionado, o que levou à necessidade de esquematizar um plano de intervenção,
alicerçado nos princípios teóricos patenteados e que correspondesse ao pretendido,
sem colapsar, mas em harmonia com a cultura e liderança organizacional
identificadas. Sabendo-se que só com o envolvimento do vértice estratégico pode ser
edificado um plano com capacidade, efectiva, de implementação, estando essa ideia,
sempre, presente na proposta elencada.
Se o nível de pretensão organizacional é elevado, o plano de implementação
têm que ser ambicioso de modo a alcançar os objectivos delineados, de forma
evolutiva e consonante com as sugestões enlevadas. No presente estudo tomou-se
esta questão como central e determinante, num futuro participado e cooperativo,
potenciado em elevados índices de satisfação e compromisso organizacional.
114
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Neste domínio, elaborou-se um plano de implementação, que derivasse do
evidenciado na recolha de dados efectuada. As hipóteses de intervenção estruturadas
derivaram do apresentado na questão fechada de sugestões para melhorar o índice de
satisfação numa plataforma de acção convergente e demonstrada, obtendo-se desta
forma uma conjectura de trajecto. Através da entrevista à gestão de topo, cimentou-se
o anteriormente obtido e identificaram-se as acções de intervenção passíveis de
sustentação e adopção pela organização.
Este exercício levou-nos a um conjunto de seis acções de intervenção base,
contribuintes para os aspectos subsequentes à meta considerada: uma acepção da
transparência e compreensão das regras e requisitos; elevar as oportunidades,
incrementar a possibilidade de intervir, acentuar o mérito como base selectiva da
promoção e progressão esperada, numa dimensão de acompanhamento e
aconselhamento autêntico e perspicaz, onde o exemplo seja tomado como padrão e a
participação, individual e grupal, seja o princípio geral orientador, numa plataforma de
interligação de sistemas e práticas e incremento da comunicação organizacional
ascendente e descendente.
O planeado segue o estruturado nas melhores práticas referidas na sociedade
civil e militar. Desta maneira espera-se contribuir para um incremento da qualidade do
sistema e facilitar os propósitos de satisfação, comprometimento e motivação de todos
os elementos.
O delineado pressupôs, ainda, um conjunto de acções que permitissem compor
um plano, onde o sujeito seja a pessoa e assuma o centro do acto, este plano tende a
estar em consonância com o modelo Baruch e Peiperl (2000) que sobressaiu num
conjunto de práticas de gestão de carreiras num modelo bidimensional, que
correlaciona a sofisticação das mesmas com o envolvimento dos indivíduos. Numa
conciliação de interesses individuais e organizacionais, onde o objecto trabalhofamília, não pode ser descurado, como não tem vindo a ser na Marinha, na maior
extensão possível.
A exploração das capacidades estruturais e tecnológicas existentes, por
recurso, nomeadamente à plataforma intranet disponível, esteve sempre presente no
arquitectar do plano.
Espera-se que esta acção potencie o envolvimento da área funcional do
pessoal com as diferentes direcções, comandos e chefias, num programa participado
e cooperativo, centrado numa intervenção conjunta e destinado a todos, num intento
de corpo unívoco, onde os diferentes órgãos só se vivenciam com a contribuição de
todas as suas células - homens e mulheres.
115
Gestão e Desenvolvimento de Carreiras: O caso da Marinha Portuguesa
Perspectivando-se que o ora idealizado seja acolhido pela organização como
resposta ao problema identificado e concorra para um eminente nível de satisfação,
onde a presença no local de trabalho seja um factor de agrado e envolvimento com a
organização, numa perspectiva de carreira com intuitos e recompensas.
Estando o processo desenvolvido de forma una, inevitavelmente, existirá uma
forte relação entre as dimensões, que importa aferir e ponderar. A focalização apenas
numa das dimensões poderá não coincidir com os resultados, eventualmente,
evidenciados numa análise substantiva de todas as dimensões em presença. Em
consonância, enlevar cada dimensão num estudo singular será benéfico para um
conhecimento preciso da realidade existente e habilitar a parametrização de planos de
intervenção que relevem cada dimensão e facultem uma evolução sustentada, caso se
verifique a necessidade, a fim de alavancar os índices de satisfação para os
ambicionados pela gestão superior da Marinha.
Por outro prisma, uma das limitações evidenciadas, centra-se na escassez de
hábitos de participação activa dos elementos que prestam serviço na Marinha,
evidenciado no reduzido número de respostas à questão aberta de sugestões para
uma melhoria na dimensão “carreiras”. Esta acepção decorrerá da imagem, que ainda
perdura, de as Forças Armadas serem uma organização de princípios e hierarquia
rígida e não convivente com a participação de todos os indivíduos em todos os níveis.
Esta representação mental tem que ser debelada de modo a permitir um envolvimento
de todos perante a organização e da organização para com todos.
Algumas das acções de intervenção supracitadas, concorrerão para este
objectivo, mas não se esgotam em si, é necessário ao longo de toda a estrutura
organizacional continuar a erguer métodos e processos de participação cooperativa e
trabalho colaborativo. Só nestes moldes poderão as organizações enfrentar um futuro
incerto e de mutação constante.
Esta matéria, do envolvimento das pessoas, poderá ser alvo de futuros
projectos
que
permitam
evidenciar
programas
e
práticas
potenciadores
e
determinantes de uma participação mais activa de todos em conceito de envolvimento
estrutural e grupal.
Releve-se, que a convicção interiorizada arroga que o ora apresentado
contribuirá para um incremento dos índices de satisfação, com custos de investimento
limitados. Por reorganização dos recursos existentes, num princípio de optimização e
perspectivação de eficiência e eficácia, onde a economia resultante da edificação do
plano, colmatará o investimento, sem necessidade de alocação de novos recursos
subsidiários.
116
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Neste domínio, embora se possa afirmar que o facto dos custos, da operação,
não se encontrarem contabilizados poderá ser objectivada como uma limitação do
produzido, aquilata-se que esta opção poderá evidenciar o núcleo do perspectivado na
extensão inerente às alterações prescritas para as práticas de gestão de recursos
humanos, em detrimento dos custos financeiros daí decorrentes, sem perda de uma
focalização precisa nos objectivos estratégicos a alcançar na organização.
Uma organização optimizada, eficiente e eficaz, pressupõe elementos
envolvidos e prontos para desempenharem a sua missão com sucesso e desejarem
estar, sempre, presentes como actores de um desenvolvimento sustentado e
participado.
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120
Boletim de Sociologia Militar
N.º3 – 2012
PP. 121 a 141
Porque os homens apresentam maior comportamento
agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
Thiago Perez Bernardes de Moraes*
RESUMO
A violência é uma constante em todas as diversas sociedades, em maior ou menor medida. Entretanto,
em todas elas, os homens apresentam maior comportamento agressivo do que as mulheres. Nesse
sentido, há evidencias de que essa realidade tenha correlação com o passado evolutivo de nossa
espécie. Assim esse trabalho atua com duas hipóteses explicativas para tal disparidade. Uma diz respeito
à divisão sexual do trabalho e outra a seleção sexual, no que diz respeito ao ônus parental e a
seletividade das fêmeas. Ambas parecem ter exercido pressões no sentido de compor tendências
psicológicas agressivas.
Palavras Chave – Violência masculina, antropologia evolucionaria, seleção natural, seleção sexual.
ABSTRACT
Violence is something that several societies carry among its cultures as a common characteristic, some in
larger ways, and some in smaller measures. However, in all of them, men show a more aggressive
behavior than women. In that way, there are evidences, that this reality has a correlation with the
evolutionary past from our specie. So, this studies, acts with two explanatory hypotheses for this case.
One concern to the labor sexual division; the other to the sexual selection in the parental charge and the
selectivity of the females. Both seem to have exercised pressures in a way of composing psychological
aggressive tendencies.
Key-words: Male violence, evolutionary anthropology, natural selection, sexual selection.
1 – INTRODUÇÃO
A violência na sociedade contemporânea é um dos mais graves problemas
sociais, atingindo em maior ou menor medida todas as sociedades e todos os estratos
sociais. Apesar de alguns autores apontarem para uma relativa diminuição da
violência ao longo dos últimos séculos é inegável que a violência ainda espanta, não
só pelo volume, mas também em muitos casos, pelos requintes de crueldade.
Um dado interessante é que, ao que tudo indica, os homens estão muito mais
inclinados, do que as mulheres, ao comportamento agressivo. Essa propensão é
visível numericamente quando analisamos os dados demográficos dos cárceres do
mundo todo. Segundo dados das Nações Unidas de 2002, dos 8.570.051 presos
recentes, apenas 4,4% são mulheres enquanto uma esmagadora maioria de 95,6%
são homens. Apesar da variação cultural, essa proporção desigual entre homens e
mulheres em cárcere se reflete em todo mundo. Nesse sentido, as ciências sociais
*
O autor é cientista político, e doutorando em psicologia social pela Universidade Argentina John
Kennedy.
121
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
não tem dado uma grande inteligibilidade para essas singularidades entre gênero e
comportamento feminino. No limite, as ciências sociais tradicionalmente se aportam
num determinismo cultural onde a estrutura social molda o comportamento dos
diferentes indivíduos. Mas nesse caso as ciências sociais geralmente não explicam de
onde surgem as estruturas sociais, e nem por que homens e mulheres recebem de
maneira distinta tais influências estruturantes.
Nesse sentido, esse artigo caminha no rumo de uma antropologia
evolucionária, onde o comportamento dos diferentes sexos varia por conta das
disposições psicológicas distintas, que foram construídas em resposta a problemas
adaptativos distintos. Trabalhamos com duas hipóteses explicativas para elucidar a
diferença entre os sexos, para a prática do comportamento violento. A primeira é de
que a divisão sexual do trabalho, no passado evolutivo humano, gerou adaptações
físicas e psicológicas distintas em homens e mulheres. A segunda hipótese diz
respeito à seleção sexual, nesse caso, como o cuidado parental gera um ônus muito
maior a mulher, do que ao homem, esta tende a ser sexualmente mais seletiva. Nesse
caso, os homens desenvolveram estratégias para competir pelas mulheres, para
indicar aptidão e também para afastar possíveis rivais.
Esse artigo se divide em cinco partes. Na segunda parte desse trabalho,
abordamos algumas deficiências das ciências sociais e introduzimos o debate sobre
teoria evolucionária em antropologia. Na terceira parte realizamos uma breve
abordagem teórica sobre comportamento agressivo. Na quarta parte discorremos
sobre a disparidade entre homens e mulheres no que diz respeito o comportamento
agressivo, e também trabalhamos com nossas hipóteses explicativas. Na última parte
do trabalho fazemos algumas considerações finais.
2 - A LIMITAÇÃO DA ANTROPOLOGIA E DAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Cultura é por tradição a basilar central da antropologia. Entretanto a
antropologia tem adotado uma abordagem onde questões sobre a universalidade da
cultura, ou por que elas apresentam uma grande variedade não se tornam inteligíveis,
sobretudo no que diz respeito às causas proximais dos indivíduos. Os antropólogos
(assim como a maior parte dos cientistas sociais, infelizmente), tem feito uso do
determinismo infra estrutural, nesse sentido, o materialismo cultural tende a exagerar
quanto o peso de variáveis como estrutura social, meio ambiente, condições
ecológicas. É inegável que essas variáveis oferecem um bom ponto de partida,
entretanto a antropologia tem feito deles um fim em si mesmo, a revelia de outras
explicações, como a biológica. A antropologia pode nesse sentido, por exemplo,
122
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
explicar o porquê algumas pessoas em determinadas culturas comem carne e vaca, e
em outra apenas de porco, entretanto, ela não consegue explicar o porquê a carne é
consumida em praticamente todas as culturas (Kanazawa, 2006).
Há três mitos filosóficos plantados nas cátedras de séculos atrás que ainda
permeiam as ciências sociais, a psicologia, e outras ciências pautadas no estudo do
comportamento humano, como a economia. O primeiro é o de Descartes, do fantasma
na mente; o segundo é o plantado por Locke, o da távola rasa e o terceiro foi
promulgado por Rousseau, o bom selvagem. O primeiro mito postula que no interior de
cada individuo há uma entidade metafisica que direciona o sujeito para a capacidade
de viver e interagir com o mundo. Dito de outra forma, a filosofia de Descartes propõe
que dentro de cada cérebro, hás uma alma, e essa sempre é capaz de tomar decisões
acertadas. Foge do escopo dessa discussão espraiar todas as arestas dessa
discussão mas a neurobiologia, assim como a genética comportamental, a
antropologia, a primatologia, e outras ciências cognitivas já postularam que o cérebro
é um instrumento adaptado para resolução de problemas específicos e que sua
estrutura guarda uma relação simbiótica com o nível comportamental (Pinker, 2004).
O segundo mito, levantado por John Locke, entende que o homem é fruto de
suas experiências. Ou seja, todo seu comportamento, gostos, vontades, enfim, todos
os processos psicológicos que colocam todas as ações em curso são advindos das
impressões posterizadas pelo ambiente. É indubitável o poder de influencia que o
meio exerce sobre nós humanos, as diferenças culturais tendem ora a incentivar, ora a
reprimir nossos gostos e anseios. Entretanto, a psicologia evolucionaria ancorada nas
demais ciências cognitivas vêm postulando que o cérebro já tem em si um
background, pois o mesmo é nada mais que a síntese de muitos cérebros que em
escala evolutiva se adaptaram para melhor se adaptar frente a problemas seletivos
(Pinker, 2004).
O terceiro mito, foi promulgado por Rousseau, segundo ele todos os homens
são bons por natureza, entretanto, é o meio sombrio e infértil quanto à bondade que
degrada a essência humana. Ele propunha, em parte baseado na noção de távola
rasa, que a criança no desenvolvimento de seus sentidos devia ser privada do contato
social afim de não ter suas qualidades comportamentais degradadas. Novamente,
podemos concordar que o meio tem efeitos expressáveis sobre o comportamento e a
personalidade; entretanto, é duvidoso que o romântico bom selvagem da literatura de
Rousseau realmente tenha existido. Como já mencionado, somos influenciados por
uma serie de variáveis, boa parte delas são biológicas e ligadas aos problemas
adaptativos. No modus operandi promovido pela ética evolucionaria a logica biológica
criou padrões totalmente antagônicos aos promulgados conceitualmente na leitura do
123
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
bom selvagem. A violência aqui é um paradoxo interessante, pois comumente
explicações advindas das ciências sociais colocam esta como um fruto do meio, uma
degradação do bom selvagem. Isso por que os intelectuais tendem a ignorar os
ditames evolucionistas. É indubitável que a violência seja um problema de ordem
social, e representa um grande problema politico, mas não podemos esquecer que ela
se manifesta e advêm de vias psicologias e biológicas. A violência, antes de ser
somente um fruto da logica social, decorre de razoes evolutivas, onde no limite, ela foi
útil no contexto evolutivo (Pinker, 2004).
Todas essas noções, somadas as noções advindas dos preceitos religiosos,
em maior ou menor medida permeiam toda a sociedade. Esses modelos teóricos
levam a crer que o individuo não tem características inatas, propensões, e que todos
os indivíduos tendem a serem iguais. Para além dessas afirmações, Steven Pinker
realiza algumas postulações, com base no resultado de suas pesquisas, referente às
bases biológicas do comportamento humano. A primeira é a de que todas as
características comportamentais humanas são essencialmente hereditárias, em todas
as circunstancias. A segunda lei se ancora na primeira, e diz que o fato de ser criado
em uma mesma família tem uma influencia menor do que a advinda do efeito genético.
A terceira lei é a de que uma parte significativa das variações comportamentais
complexas entre humanos não pode ser entendida nem pelo efeito genético, nem pelo
efeito socializante.
O estruturalismo assim como a analise de redes sociais e também a teoria de
redes de troca, são perspectivas dominantes nas ciências sociais1, e também na
antropologia. Essas teorias explicam como se formam os laços sociais (ou a ausência
desses), em um ambiente onde o comportamento individual é emoldurado por
variáveis exógenas. Essas teorias tem tido relativo sucesso em explicar o
comportamento como fruto da estrutura social, entretanto, essas teorias não avançam
em igual medida no sentido de esclarecer de onde surgem as estruturas sociais
(Kanazawa, 2001, 2005).
Apesar de o estruturalismo representar um sucesso acadêmico empírico, ele é
dotado de uma serie de falhas teóricas. Primeiro, ele assume que o comportamento é
moldado pela estrutura social, entretanto, ele não explica de onde vem à estrutura
social e também não avança no sentido de determinar quais são as causas
psicológicas do sujeito para que ele se deixe moldar pelo meio social. Nesse sentido, o
1
Como na sociologia de Parsons. Nela, as ações são conjuntos de estruturas pelas quais os seres humanos formam
suas preferencias e intenções e que, com maior ou menor êxito conseguem concretizar suas intenções, nesse caso é
afirmar que ações humanas são ações culturais, pois são balizadas pelos valores advindos dos sistemas simbólicos,
onde são formadas as intenções (Parsons, 1968, p.5-9). Nesse caso, ação, não pode ser entendida como um reflexo
de resposta ad hoc em relação a algum estimulo, mas sim como um agente, ativo na formação de interesses e
expectativas. Nesse sentido, o eixo da teoria da ação é o cidadão individual, nesse caso aqui entendido como ator, e
sua ação e relação para com seus pares, os outros atores (Parsons, 1968, p40-2).
124
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
estruturalismo trabalha com algumas suposições, muito pobres, onde ele assume
algumas tendências sociopsicologicas dos indivíduos, mas não explica o porquê
destas inclinações. Outro problema é que o estruturalismo não atribui características
sociais ou psicológicas individualmente aos humanos, ignorando as diferencias
biopsicossociais entre os homens onde em um limite eles são teoricamente tratados
como “estruturalmente equivalentes”. Nesse caso os intervenientes são tratados como
equivalentes e intercambiáveis dentro de um modelo de rede social, nesse caso, os
atores tendem a se comportar todos de maneira parecida. Mesmo as estruturas sendo
as principais razões causais do estruturalismo, esta, e as preferencias (como as do
individualismo metodológico da escolha racional) são deixadas como variáveis
exógenas (Kanazawa, 2001, 2004).
No mesmo sentido o estruturalismo não faz distinção entre os indivíduos, nesse
caso não importa sexo, idade, etnia. Assim como ele também não leva em conta as
variáveis sociodemograficas, como a própria linguagem. Aqui devemos lembrar que
para muito além das esforças estruturantes, as diferenças inerentes entre os atores
influenciam o comportamento dos mesmos, nesse caso, mesmo os indivíduos sendo
“estruturalmente equivalentes” segundo a teoria, eles tendem a desenvolver
comportamentos diferentes (ex: homens e mulheres convivem na mesma estrutura e
desenvolvem gostos e comportamentos distintos) (Browne, 1998; Miller, 2000;
Kanazawa, 2001).
Há pelo menos quatro pontos críticos que devemos nos ater em relação à
condução de experimentos comportamentais contemporâneos. Primeiro, a rotulagem
“aprendido” não é mais satisfatória que a rotulagem “evoluída”, nesse sentido há de se
considerar que o ambiente fornece um input causal que influencia o organismo, de
alguma forma. Em segundo lugar, essas duas rotulagens não devem ser postas em
competição, vide que a aprendizagem exige componentes psicológicos evoluídos sem
os quais não poderia ocorrer. O terceiro ponto, os mecanismos de aprendizagem são
mais complexos qualitativamente e mais numerosos quantitativamente do que a
psicologia tradicional faz parecer ser, para muito além das teorias como a do
condicionamento operante clássico, há de se considerar o design especializado dos
domínios gerais cognitivos. Por fim, para além da simples ideia de socialização como
único vetor do comportamento, num cenário de tabula rasa, a psicologia evolucionaria
vem sinalizando que o desenvolvimento dos mecanismos de aprendizagem fora uma
resposta evolutiva aos distintos dilemas adaptativos (Confer et al., 2010; Mace, 1996ª;
Mithen, 1998).
125
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
2.1 POR UMA ANTROPOLOGIA EVOLUCIONARIA
A antropologia evolucionaria é um ficheiro interdisciplinar que tem como
principal foco a evolução fisiológica e comportamental do homem. Nesse sentido, ela
não se concentra apenas no estudo do homo sapiens, mas também em outros
primatas não humanos. Ela por excelência é uma convergência entre as ciências
naturais e sociais e por isso recebe contribuições de diversos campos como a
genética, a neurociência cognitiva, a primatologia, a etologia, a paleontologia, a
arqueologia, a psicologia social e outras.
Pode se dizer que a teoria evolucionaria evolutiva é uma disciplina emergente
interessada, sobretudo em entender como os mecanismos psicológicos e as
estratégias comportamentais evoluíram frente aos problemas adaptativos que nossa
espécie enfrente a milhões de anos. A teoria evolutiva vem trazer para a teoria da
personalidade um novo fôlego se ancorando na natureza humana (e nas causas
proximais2) entendendo que os seres humanos, assim como os demais seres vivos,
certamente, não estão e nunca estiveram longe das forças organizadoras da seleção
natural (Buss, 1991, p.459-460).
A teoria evolucionista introduz duas grandes generalizações nas ciências
sociais. A primeira é a de que o homo sapiens não tem nada de especial em relação
às outras espécies biológicas. Humanos são únicos, entretanto, não são os únicos.
Cada espécie evoluiu de maneira singular, no intuito de resolver os desafios
ambientais. Os seres humanos são como os outros animais, e estão sujeitos a todas
as leis da natureza, em especial estão dependentes da dinâmica própria da seleção
natural e sexual. A segunda grande generalização é em relação a nosso cérebro3 e
nossas capacidades cognitivas. Em perspectiva evolutiva, nosso cérebro nada mais é
do que um substrato das forças e pressões evolutivas, um órgão, que assim como
qualquer outro, evoluiu por milhões de anos, até o período Pleiostoceno na savana
africana, onde os serres humanos viveram a maior parte da historia evolutiva. Nesse
ponto, entendemos que o cérebro humano, assim como o dos outros organismos é
dotado de capacidades, mas também de limitações. No caso de humanos, parece
claro que temos dificuldades cognitivas de exercermos funções que não exercíamos
no período Pleistoceno (Kanazawa, 2001, 2004, 2005).
2
Definimos causa proximal como o conjunto de fatores ligados ao background do funcionamento biológico dos
organismos, incluindo, por exemplo, as vias metabólicas, fisiológicas e comportamentos a nível molecular, celular, e
também populacional. Como causa final em outro ponto entendemos os fatores evolutivos responsáveis pela origem ou
proposito de um sistema biológico (Hickman, Robert & Larson, 2004, p797).
3
Em seu modelo de estruturação de mente, Mithen propõe que nossos ancestrais, primeiro acumularam conhecimento
comum através de uma inteligência genérica e a posteriori desenvolveram módulos mentais que o permitiram obter
mais conhecimentos. Mithen divide em três as principais capacidades humanas que propiciaram o desenvolvimento
social: 1)a de ter conhecimento natural, 2)a de conseguir fabricar instrumentos, e 3)a de produzir artefatos culturais e a
capacidade de viver balizado por regras sociais. (Mithen, 1998).
126
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
É importante que entendamos que todo comportamento observável é fruto de
mecanismos que estão alocados no organismo e que combinado com influencias
ambiental e orgânico definem como esses mecanismos agiram. Esses mecanismos
foram criados pela seleção natural, que cria respostas fisiológicas, anatômicas e
psicológicas. Há pelo menos duas direções em estudos que confirmam essas
hipóteses evolutivas, uma de cunho empírica, outra teórica. Primeiro 25 anos de
experimentos vêm mostrando que a psicologia humana envolve muitos mecanismos
complexos e de domínios específicos que tem funções especificas; a segunda ordem
de cunho empírica nos remete a analogia em relação aos animais, pois todos eles
desenvolveram mecanismos para seus problemas adaptativos, como por exemplo,
para doenças (desenvolveram sistema imunológico), para o calor (glândulas
sudoríparas), nesse diapasão os psicólogos evolutivos entendem a mente como
também provida de especialidades (Buss, 1991, p.461).
As diversas ciências que hoje compõem o universo do que se entende como
ciências psicológicas abrangem uma serie de ferramentas úteis para a compreensão
do comportamento. Nesse sentido podemos analisar o comportamento á partir da
analise de quatro basilares básicos: 1)como o comportamento se desenvolve, 2)quais
mecanismos fisiológicos agem para tirar o comportamento exequível, 3)se o
comportamento guarda relação positiva com o sucesso reprodutivo, 4)se o
comportamento originou-se ou foi alterado ao longo da historia evolutiva. Esses quatro
níveis de analise oferecem instancias úteis seja para a formulação de novas hipóteses,
seja para a equipação metodológica para testes empíricos de hipóteses evolutivas.
Podemos segmentar esses quatro níveis de analise em dois grupos sendo o primeiro o
aquele que guardam relação com as causas proximais ou imediatas do
comportamento e o segundo com os que guardam relação com as causas distais. O
primeiro grupo se concentra nos sistemas de desenvolvimento interno e nas bases
fisiológicas; enquanto o segundo grupo lida com as perspectivas evolutivas de longo
prazo do comportamento, ou seja, analisam sobretudo o valor adaptativo dos
processos e também as modificações em perspectiva histórica. Ambas as causas,
distais e proximais estão inter-relacionadas em um ciclo interrupto. (Alcock, 2011,
p.11-57).
A base mental de toda teoria evolucionaria4 são os preceitos de Darwin e a
teoria sintética da evolução biológica. Aqui, os traços variantes podem ser herdados
4
A teoria evolutiva aplicada ao comportamento é como uma tendência sumariamente interdisciplinar. Ela é por assim
dizer um resultado bem sucedido da agregação de valores da filosofia, com os preceitos da psicologia, com os
conhecimentos da antropologia, da linguística e também das ciências biológicas, como a biologia evolutiva, a
neurociência e também a matemática e as ciências da computação. A antropologia, em particular vem oferecendo uma
base teórica consistente aos preceitos da psicologia evolutiva, ao trazer a campo uma serie de estudos empíricos
sobre a evolução natural e cultural da humanidade. Nesse ponto, a psicologia evolutiva é inovadora, ao estudar o
127
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
pelos pais, essas variantes por sua vez auxiliam no desenvolvimento funcional, na
reprodução e na sobrevivência, consequentemente, mais gerações vão herdar tais
características, a revelia de outras. Esse processo resulta em três produtos;
1)adaptações5 relacionadas aos problemas ancestrais, 2)produtos não funcionais, que
persistem pois foram acopladas como adaptações (exemplo medo de cobras e
escorpiões sem veneno) e 3)ruídos,
são variações dadas a eventos aleatórios
ambientais ou mutações genéticas. Historicamente esses preceitos vêm sendo
aplicados para a compreensão da fisiologia e das adaptações funcionais corporais. E
mais recentemente esses preceitos vêm fornecendo elementos “de ponta” para a
condução teórica a epistemológica de estudos sobre comportamento psicológico.
Adaptações psicológicas são circuitos de armazenamento e processamento de
informações, com saídas funcionais arquitetadas para a resolução de uma gama de
problemas adaptativos (Miller, 2007; Confer et al., 2010).
Os seres humanos indubitavelmente tem capacidades culturais, nos últimos
anos uma serie de pesquisadores através de modelos de co-evolução estão
descrevendo e testando hipóteses sobre a herança genética e cultural. Ao expormos a
discussão em um nível mais técnico, podemos definir em 4 pontos relevantes para a
compreensão da transmissão cultural via memes: 1)a transmissão na verdade orienta
o comportamento, 2)esta transmissão está susceptível a integração hierárquica, 3)os
memes são transmitidos através das interações sociais. A interação social permite
transmissão, recepção e assimilação cultural, pois os seres humanos possuem
adaptações cognitivas especificas que permitem a comunicação entre mentes, pois
toda cultura para ser assimilada demanda de uma grande capacidade de
aprendizagem, num diapasão onde as informações são extraídas do ambiente e
interpretadas na mente. As adaptações cognitivas evoluíram ao longo das gerações,
pois ela sofreu graduais alterações (Boyer, 2000).
Dito de outra forma é bem verdade que é o ambiente que oferece as principais
variáveis referencias para os indivíduos, entretanto, os mesmos só podem assimilar
tais estímulos se tiverem plenas capacidades cognitivas. Estas capacidades tornam
possíveis que os humanos através de crenças, símbolos e convenções criem e
manifestem as mais diversas representações culturais. Isso permite que nós seres
humanos, para muito além de reproduzirmos alguns poucos hábitos ao longo da vida,
comportamento, e o próprio cérebro, á partir de uma perspectiva integrada com a teoria da evolução (Buss, 2005;
Cosmides & Tobby, 2005).
5
É importante destacarmos que toda adaptação deve ser enxergada dentro de suas limitações, sob o viés de seu
problema adaptativo e, sobretudo, há de se entender que a adaptação é um sinal um adicionamento de um
equipamento para resolução de problemas outorgadas pela seleção natural, entretanto, não podemos dizer que todas
as adaptações são do tipo ótimas, todas guardam relação com o período específico, com problemas específicos. E
não é qualquer mudança que a seleção natural promove, mas, sobretudo aquelas ligadas ao “fitness darwiniano”
(Buss, 1989, 2008).
128
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
sejamos capazes de extrair informações através de praticas já vivenciadas, técnicas
ensinadas, por meio de rituais, por normas e outros meios diversos. Em suma a
cultura adquirida, e suas representações parecem se desencadear por meio de
episódios vivenciados, como as interações sociais e atividades comunicativas. E por
mais interessante que são as diferenças e os gostos humanos, resultados do
multiculturalismo, é mais impressionante ainda as semelhanças encontradas entre os
hábitos, preferencias e atitudes. Podemos dizer que cada cultura traz para seus
indivíduos uma serie de singularidades sobre a construção do que é atraente,
entretanto, mesmo a construção social sendo um dos pilares fundamentais para a
fundamentação das preferencias, podemos identificar traços universais, quanto à
preferencias. Logo, para além das capacidades de modulação cultural, entendemos
que as preferencias também guardam relação todas com o passado evolutivo (Boyer,
2000; Miller, 2000; Haviland et al, 2011).
Podemos dizer que a mente humana é um complexo integrativo de funções
especializadas, onde
as adaptações psicológicas evoluíram como soluções para
problemas qualitativamente distintos, quantitativamente numerosos. Essa máxima é
valida tanto para humanos e não humanos. É enorme a lista de adaptações
psicológicas, para muito além de medo de cobras a animais perigosos, outros
problemas que enfrentamos são a seleção de alimentos, o investimento parental,
relações de parentesco, amizades, coalizões, agressividade seletiva, negociação
hierárquica, e muitos outros (Confer et al., 2010).
3 - COMPREENDENDO A AGRESSÃO
Em quase todo reino animal (exceto na sociedade humana) a agressão guarda
uma relação positiva com demandas, ou seja, ela é sumariamente de caráter
instrumental e não um fim em si mesmo. Ela é um meio, seja para a obtenção de
parceiros, suprimentos alimentares, defesa territorial e outras demandas afins. No
reino animal há pouca propensão por parte da maioria dos animais para se
envolverem em lutas sem sentido, por vezes, as diversas espécies executam meios
ritualísticos para evitar conflitos perigosos. A maioria dos animais não demonstra
inclinação em humilhar seu adversário e nem demonstra sentir prazer em derrota-lo
(Johnson, 1972, 33-4).
Devemos entender que a agressão em si é um processo muito complexo e esta
sob gerencia multifocal. Tanto a caça, quanto a luta pela sobrevivência são processos
distintos que podem levar a violência. Mas são distintos, tanto quanto a motivação,
quanto aos fins. Tais motivações podem ser proximais como a fome, a sede, a
129
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
vontade de fazer sexo ou distais, como um potencial adversário. Ela pode derivar de
um comportamento genético, aprendido, pode ser de ordem instrumental como um
meio para se atingir um fim. O termo agressão desafia definições simples, por conta
de sua dinâmica e complexidade, sendo assim um fenômeno que demanda analise em
diferentes níveis. A agressão não é um acidente do século XX, tão pouco fruto de
alguma
intervenção
de
ordem
teológica.
Ela
representa
uma
adaptação
comportamental evolutiva, pautada na necessidade de sobrevivência e de reprodução
das diferentes espécies. Mas claro que como as espécies são diferentes, os processos
de agressão também variam entre as diferentes espécies (Johnson, 1972, p.31-2;
Alcock, 2011).
Há de se considerar que mesmo em um ambiente largamente cooperativo, há
sempre um nível de competição mais ou menos mensurável entre os organismos que
tende a gerar conflitos que por vezes são resolvidos por vias de hostilidade.
Entretanto, a maior parte das lutas, entre os organismos biológicos são mais de
caráter simbólico do que fisicamente nocivas, tem mais a intenção de machucar do
que propriamente matar. Com exceção da espécie humana, poucos organismos
demonstram satisfação em ter que matar um individuo da mesma espécie, ou de
outra; e quando fazem, geralmente não o fazem como um fim em si mesmo, mas
como uma via funcional para obtenção de um fim, como alimento. Por vezes, a
agressão também é uma via utilitária entre os organismos para o estabelecimento de
estratificações hierárquicas de dominância social, por vezes, estabelecendo preceitos
de territorialidade, mais ou menos expressáveis e mensuráveis (Hickman, Robert &
Larson, 2004).
3.1 - DESAFIOS DO PASSADO, AGRESSÃO NO PRESENTE
No que diz respeito aos problemas adaptativos reprodutivos, nossa espécie6
enfrentamos pelo menos oito problemas distintos, sendo eles: 1) a competição
intrasexual, 2)a seleção dos parceiros, 3)engajamento bem sucedido na via social e
sexual, 4)preservação do companheiro, 5)formação de alianças de reciprocidade,
6)manutenção de coalizões, 7)cuidados parentais e socialização e 8)investimento
6
Uma relação interessante, quando estudamos as relações proximais do comportamento humano, é entender o seu
próprio passado evolutivo, e também nesse sentido, o tamanho do cérebro. O primeiro primata da nossa cadeia
evolutiva fora o ardipithecus, e seu cérebro tinha pouco mais de 300 gramas, pouco depois temos o australopithecus
com um cérebro variando de 310 gramas até 530 gramas. Mais tarde na cadeia evolutiva temos o homo erectus, com
um cérebro variando entre 775 gramas e 1.225 kg e depois temos o homo sapiens arcaico, o neandertal com um
cérebro variando entre 1.2 kg e 1.450 kg. Por fim temos o homo sapiens moderno com um cérebro de 1.350 kg que
gasta em media 1/5 de toda a energia consumida por nosso corpo. Assim o homo sapiens possui um cérebro grande,
cerca de seis vezes maior do que se espera de um mamífero comum e com áreas corticais associativas maiores, em
comparação a primatas antropoides e não antropoides. Há também de se considerar que o cérebro humano não é só
grande, mas também bastante compacto, ou seja, possui mais neurônios por regiões em vista de outras espécies
(Dalgalarrondo, 2011, p.170-184).
130
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
extra-parental. Cada um desses dilemas trouxe consigo uma serie de subproblemas
que provocaram adaptações evolutivas (Buss. 1991, p.645).
Muitos vestígios arqueológicos apontam que a violência entre homens vem de
uma longa trajetória. Por exemplo, um cemitério em Jebel Sahaba, note de Sudão, que
se remonta a mais ou menos 13 mil anos atrás fornece uma grande quantidade de
evidencias sobre forte violência e talvez guerra entre os primeiros seres humanos.
Para se ter ideia, dos 59 corpos dispostos nesse cemitério, mais da metade apresenta
sinais de morte por violência (por exemplo, continham pedaços de farpas de flechas
entre os ossos. Os corpos de criança encontrados também indicam que essas foram
assassinadas, com violentos golpes no pescoço. Mais vestígios arqueológicos na
Alemanha, Baviera e França sinaliza que também lá houveram violentos assassinatos,
destacamos aqui que muitos foram mortos com violentos golpes no crânio.
Infelizmente, temos uma limitação quanto aos vestígios arqueológicos, seja na
quantidade, seja na dificuldade de seu trato. Talvez, a violência entre os primeiros
humanos seja ainda mais comum do que faz crer a arqueologia (Liddle, Schackelford
& Shackelford, 2012).
Mas fora os restos mortais há outras evidencias arqueológicas interessantes,
como os machados de pedra e madeira, e lanças confeccionadas a mais de 40 mil
anos atrás, mas evidente que essas ferramentas foram uteis para outras finalidades
como a caça. Pinturas do período Paleolítico na França, Espanha, e Itália descrevem
com precisão seres humanas morrendo através de violência e conflito, como por
exemplo, com flechas. Podemos dizer também que desde o inicio da civilização
também se presenciam relatos de violência, como por exemplo, no Egito, Suméria,
Grécia, Roma, índia, e Mesopotâmia. Finalmente, na transição de vida do estilo
nômade para assentamentos permanentes que começaram no período neolítico
(impulsionada pela agricultura e pela criação de animais) a mais ou menos 10 mil anos
também encontraram evidencias de violência entre humanos. Os assentamentos
permanentes7 trouxeram a acumulação de recursos8, tecnologia e também a violência.
Dado os esforços que foram demandados no passado em construir paredes e
proteções destes assentamentos contra outros indivíduos, é provável que os ataques
7
No decorrer da historia da nossa espécie houveram diversos sistemas sociais, desde os mais simples em períodos
muito remotos, até sistemas altamente complexos como os que vemos na sociedade contemporânea. Em períodos
remotos, os sistemas sociais aos poucos influenciaram os rumos da seleção natural, impuseram novos problemas
adaptativos, e consequentemente, sofremos adaptações por conta desses novos problemas, sejam elas psicológicas
ou fisiológicas. A cultura, apesar de não ser uma única determinante, exerce uma pressão muito forte sobre o
comportamento humano e ao que tudo indica, essa capacidade de se influenciar pela cultura guarda relação com um
subproduto do desenvolvimento das inteligências. (Mace, 1996a,b).
8
Uma serie de psicólogos evolutivos postulam que a agricultura é tão recente que, em perspectiva evolutiva, pode-se
dizer que não houve tempo desta mudança cultural ter gerado mudanças adaptativas evolutivas. Entretanto, há
evidencias de adaptações genéticas relacionadas à agricultura e a pecuária, por exemplo, a tolerância ao consumo da
lactose parece ser uma adaptação genética de menos de 10.000 atrás, relacionada com a criação de gado (Mace,
1996a,b).
131
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
de outros seres humanos constituíssem uma ameaça. Podemos em alguma medida
dizer que existem evidencias de violência entre homens durante toda nossa historia
evolutiva, o que é um lembrete interessante de que a violência humana de hoje, não é
um fenômeno novo (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012).
Mas não podemos falar de violência entre homens sem nos remetermos ao
fenômeno da guerra. Entretanto, é difícil precisar com exatidão em que momento os
humanos passaram a se envolver em guerra. Nesse ponto a primatologia oferece
interessantes insigts, por exemplo, o comportamento belicista e politico dos
chimpanzés, sinalizam que ao que tudo indica os humanos se envolvem em conflitos a
muito tempo. Com a migração do estilo nômade para os assentamentos permanentes,
a acumulação de recurso parece ter sido um dos pivôs para guerras no passado, vide
que as evidencias arqueológicas aponta que a maioria das edificações para proteção
no passado coincidiu com períodos de incerteza climática e de escassez de recurso.
Assim, entendemos que esses períodos foram fartos em guerras, e furtos de recursos
(Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012; Waal, 2000, 2001).
Quanto aos crimes, em perspectiva evolutiva podemos lançar três máximas
úteis para a compreensão das barreiras e dos vetores psicológicos que se criaram
aqui através do processo de evolução e co-evolução: 1)provavelmente, o crime era
recorrente no ambiente ancestral, 2)as estratégias criminosas se desenvolveram em
padrões previsíveis e 3)por conta de tal previsibilidade, provavelmente, houveram
adaptações especificamente para motivar o crime e também combater o mesmo.
Nesse sentido quanto ao design mental, podemos dizer que o processo de coevolução formatou também mecanismos mentais para a defesa contra crimes (Duntley
& Shackelford, 2008).
4 - POR QUE HOMENS SÃO MAIS VIOLENTOS QUE MULHERES?
De acordo com a interpretação evolucionaria, existe diferença
comportamental entre os gêneros sexuais, pois ambos têm disposições psicológicas
distintas que presumivelmente foram construídas em nossa espécie por meio da
adaptação mediada geneticamente para as condições ancestrais de vida (Buss &
Kenrick, 1998).
Nesse diapasão, coletamos dados sobre a população carcerária
mundial e analisamos a disparidade numérica entre homens e mulheres que cumprem
penas. Apesar de haver uma relativa diferença entre os números, nos diversos países,
em todos eles a proporção de homens que cometeram crimes é muito maior do que a
de mulheres.
132
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Os números impressionam, segundo o oitavo levantamento das Nações Unidas
sobre tendências de crimes, de 2002, nos 159 países em que se coletaram os dados,
existe uma população carcerária (de presos recentes) de aproximadamente 8.570.051.
Deste montante, estima-se que apenas 4,4% sejam mulheres, e o restante, 95,6% são
homens (Shaw, Van Dijk & Rhomberg, 2003). Abaixo, com base dos dados das
Nações Unidas de 2002, formulamos um gráfico com os 5 países que tem maior
população carcerária, e estratificamos de forma ilustrativa a enorme desproporção
existente entre homens e mulheres que cumprem pena.
Estados Unidos
China
Mulheres
Russia
Homens
India
Brasil
0
500000
1000000
1500000
2000000
Dados adaptado pelo autor com base em: Shaw M, Van Dijk J, Rhomberg W (2003) Determining global
trends in crime and justice: an overview of results from the United Nations surveys of crime trends and
operations of criminal justice systems. In: Forum on crime and society, vol III, no. 1 &2.
4.1 - A PRESSÃO DA SELEÇÃO SEXUAL: HOMO SAPIENS COMO UM ANIMAL
POLÍTICO E SOCIAL
Estudos recentes apontam que homens, mais do que mulheres, são mais
susceptíveis a serem racistas e xenofóbicos. Essa propensão parece guardar relação
evolucionaria com as demandas dos homens que se envolviam em conflito. Quanto a
esta propensão psicológica por guerras podemos definir quatro basilares condicionais:
1)a crença de que o grupo pode ser vitorioso, 2)a expectativa de que os ganhos da
guerra superem seus custos, 3)a expectativa dos beneficiários receberem igual
contribuição (e assumirem iguais riscos) e 4)A incapacidade de prever com exatidão
qual membro irá ou não morrer (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012).
Não devemos desconsiderar as variáveis individuais, mas o papel da
abordagem interdisciplinar evolucionaria esta em desvendar os traços universais dos
homens. E nesse sentido ao que tudo indica os homens são mais propensos a se
133
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
envolverem em violência do que as mulheres. Em especial quando o futuro
demonstra-se incerto. Ao que parece ambientes insalubres com alta incidência de
parasitas induzem a condutas violentas, como também a pobreza e também grande
competição intersexual (Liddle, Schackelford & Shackelford, 2012)
Uma empresa que sempre esteve presente no passado, e mais do que nunca
hoje, é a competição por status. A psicologia evolucionaria, a antropologia, a ecologia
comportamental humana produziram uma serie de trabalhos teóricos e empíricos que
apontam que os homens que possuem mais status social são os que têm maior
acesso sexual a um numero maior de mulheres. O potencial reprodutivo ligado ao
status gerou pressões por parte da seleção natural que por sua vez estruturou
adaptações cognitivas que levam a ascensão social dentro da estratificação
hierárquica. Nesse sentido há uma correlação desproporcional entre os indivíduos,
pois para um individuo subir de status, quase que como um jogo de soma zero, algum
outro individuo deve perder status. Agora, se levarmos o alto ônus de se perder status
podemos concluir que os indivíduos são adaptados não só em adquirir status, mas
também há lutar pela manutenção do mesmo. No que diz respeito aos recursos
sexuais, podemos afirmar que em alguma medida o custo parental e biológico da
gravidez é muito maior para a mulher, do que para o homem. E também é possível
dizer que as mulheres podem ter um numero limitado de filhos9, enquanto os homens
se tiverem mais parceiras, podem ter um numero absurdamente maior. Nesse caso, a
pressão da seleção natural estruturou homens para serem mais propensos a terem um
numero maiores de parceiras e as mulheres a serem mais seletivas. Nessa dicotomia
onde o homem é inclinado a desejar um grande numero de parceiras em vista das
mulheres, sugerimos que essa discrepância ente os sexos seja o subsidio da
prostituição feminina (Browne, 1998, 2005; Duntley & Shackelford, 2008)
O mundo de nossos ancestrais forçava este a conviver com um numero muito
reduzido de pessoas, em vista de hoje. Nesse sentido, é provável que as ações
sociais neste período desencadeassem maior repercussão e consequentemente maior
sustentamento da reputação ao longo prazo. Assim, sugerimos que humanos
desenvolveram também como estratégias para galgar status, e também para ter mais
acesso ao sexo, à agressão. A violência nesse contexto proposto não é só uma
medida eficaz para combater outros competidores (e no limite tira-los da competição),
mas também poderia render possíveis ganhos de recursos com furtos e também
aumentar o prestigio social. Pesquisas em psicologia evolucionaria apontaram como
correlação positiva a competição intrasexual e a violência, nos dias atuais (e
9
Isso porque, enquanto a mulher produz ao longo da vida uma media de 400 óvulos, o homem produz por minuto 50
mil espermatozoides (três milhões por hora) (Waal, 2000).
134
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
provavelmente no passado). Tais disputas são comuns por desencadearem conflitos
violentos que podem chegar até em homicídio (Duntley & Shackelford, 2008).
As pressões evolutivas distribuem de forma desigual entre homens e mulheres
o custo do investimento parental, o que implica nesse sentido que fêmeas, em
comparação com homens, maximizam mais suas chances de sobrevivência, e de sua
prole, se forem mais seletivas na seleção sexual. Nesse caso, a uma maior inclinação
por parte dos homens para competir. Duas estratégias dicotômicas entre si são vias
comuns nesse sentido. Uma primeira diz respeito à exibição de características
apreciadas pelo sexo oposto (por exemplo, bom físico, que indicam para além da
saúde também bons genes, status social, recursos financeiros). Outra estratégia é
vencer a concorrência de maneira direta, seja através de conflitos reais ou simbólicos
dentro das diversas estruturas sociais que expressão meios diferente de dominância
social. Em ambas as estratégias, a possibilidade de que fenômenos agressivos sejam
postos em curso é bastante alta. Essa logica, parece ser uma das importantes vias
explicativas para se compreender a diferença dramática existente entre os homens e
mulheres, no que diz respeito ao comportamento físico violento, em uma via
observável em todas as sociedades humanas ao longo do tempo, durante todos os
períodos históricos (Neuberg, Kenrick & Schaller, 2010, p.28-32, Wood & Eagly, 2002).
A agressão pode ser uma via eficiente em alguma medida para o
comportamento de cúpula de curto prazo, entretanto, pode se tornar uma via não tão
eficiente para o estabelecimento de relacionamentos á longo prazo. Comparações
interespécies nesse sentido apontam que há uma correlação positiva entre poligamia e
comportamento violento, ou seja, quanto mais polígamo é o comportamento de
determinado organismo, maior são suas propensões á violência. Isso também foi
observado em sociedades humanas. Algumas espécies manifestam com maior
intensidade comportamentos violentos quando estão entrando na puberdade, quando
estão iniciando suas capacidades reprodutivas. O mesmo já foi observado em diversos
experimentos em psicologia social. Homens na puberdade tendem a manifestar mais
comportamento agressivos, maior nível de competitividade do que em qualquer outra
fase da vida (Neuberg, Kenrick & Schaller, 2010,p.31-34).
Em suma, o auto custo parental debilitava a mulher para o exercício de uma
serie de atividades. Nesse sentido, a fêmea é quem realiza a seleção. Aqui, homens
ancestrais competiam com outros homens pelo acesso sexual as mulheres, e também
pela tentativa de monopolização das mesmas. Nesse sentido, o homem desenvolveu
maior propensão adaptativa a violência do que a mulher. Podemos também aqui nos
referir as preferencias, estudos transculturais recentes demonstram que as atuais
preferencias, mesmo em modulações culturais diferentes, guarda relação com o
135
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
contexto evolutivo. Nesse caso, em todo mundo a maioria das mulheres sente maior
atração por homens mais velhos, que possuam mais recursos e/ou sejam mais
socialmente estabilizados enquanto em outro diapasão homens preferem mulheres
mais jovens, com suas capacidades reprodutivas comprovadas e confiáveis (Wood &
Eagly, 2002; Buss, 1989,2008).
4.2 - A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
Em praticamente todas as sociedades de coletores e caçadores do presente,
se observa uma nítida divisão sexual do trabalho, onde os homens se dedicam quase
que exclusivamente a caça e as mulheres a coleta (e também ao cuidado parental).
Como essas sociedades tradicionais são consideradas os melhores modelos para a
compreensão do estilo de vida dos nossos antepassados evolutivos supõem-se que
no passado também houve tal divisão também ocorria. Os homens nesse sentido
podiam ir à caça e percorrer por vezes longas distancias até obterem uma presa e a
posteriori retornarem ao acampamento. Enquanto, as mulheres não podiam se afastar
muito do acampamento, por conta do cuidado de sua prole, assim, dedicava-se a
coleta. Nesse ponto é importante destacar que as atividades reprodutivas das
mulheres criam restrições de tempo e energia, impossibilitando no passado que estas
participassem de guerras, caça, e outras atividades que demandavam muitos recursos
endógenos. (Dalgalarrondo, P. 2011, p.168-178; Wood & Eagly, 2002).
Alguns arqueólogos apontam que tal estratificação fora tão funcional que, caso
não houvesse existido, talvez nosso cérebro não tivesse se desenvolvido tanto. Isso
porque essa estratificação trouxe benefícios tangíveis para os humanos, vide que os
mesmos passaram a dispor de uma dieta alimentar muito rica contendo grandes
quantidades de proteína, gordura, carboidratos e fibras. Nessas sociedades os
homens desenvolveram complexos sistemas de distribuição de alimentos entre todos
os indivíduos10.
Em perspectiva evolucionaria, podemos dizer que as atividades de caça do
homem do período Pleistoceno exerceram uma pressão seletiva, onde o homem
adquiriu um diformismo físico e psicológico em relação às mulheres: 1)maior força,
2)maior coragem, 3)maior impulsividade, para citar apenas algumas. Todas essas
características ofereciam vantagens no período pleistoceno, onde homens, mais do
10
O exame mais critico das diversas sociedades do mundo, sobretudo as tradicionais de caçadores e coletores
(usados com frequência para modelos de nosso estio de vida no período pleistoceno) nos leva a perceber que de fato
existe evidencias que o compartilhamento de recursos, em especial alimentos, é bastante comum, assim como também
é comum o comercio seguro entre tribos vizinhas de caçadores e coletores. Entretanto, em nenhuma destas
sociedades de caçadores e coletores é presenciado o fenômeno de se dividir livremente recursos com membros de
outras tribos. Isso nos leva a crer que há barreiras mais ou menos definidas quanto à propensão do comportamento
altruísta, como já descrito (Kanazawa, 2010).
136
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
que mulheres, tinham de conviver com as incertezas da caça, e também se defender
de predadores. Tais adaptações forneceram traços positivos no passado, entretanto,
no contexto socioinstitucional contemporâneo representam em alguma medida uma
fonte de desvantagem,
vide que o homem, mais do que a mulher, é
biopsicosocialmente mais propenso ao comportamento agressivo, conduta tida hoje
como antissocial e que pode levar o individuo ao encarceramento, ou até a morte.
Entretanto há evidencias de uma flexibilização contemporânea da divisão
sexual do trabalho, impulsionada pelo avanço tecnológico e pela mudança cultural.
Numa base onde a divisão do trabalho e o próprio patriarcalismo se ancorava na
reprodução feminina, temos uma inclinação no eixo na medida em que as mulheres
passam a exercer maior controle da reprodução através de métodos anticonceptivos,
abortos, e também pela dinâmica da produção e distribuição de alimentos, onde o
homem deixa de ser o pivô. Nessa guinada, a mulher vem conquistando espaço no
mercado de trabalho, nas lideranças e também na academia (Browne, 1998, 2005;
Wood, W. & Eagly, A., 2002). Entretanto, o background psicológico humano, e também
convenções sociais, em maior ou menor medida ainda faz existir o patriarcalismo em
todas as sociedades.
4.3 - O PAPEL DA TESTOSTERONA
Os
hormônios
funcionam
associados
aos
mecanismos
neurais
de
estabelecimento de prioridades. Nesse sentido as mudanças ambientais (tanto no
físico, quanto no social) são detectadas pelo organismo e codificadas em respostas
hormonais. Os sinais químicos resultantes desse processo podem desencadear uma
cadeia
de
acontecimentos
fisiológicos
e
comportamentais,
estratificando
e
estabelecendo prioridades. Mas cada hormônio efetiva mudanças fisiológicas e
comportamentais distintas em cada espécie, entretanto, o mecanismo de organização
comportamental destas diferentes espécies apresenta similaridades. Isso reflete a
natureza da mudança evolutiva (Alcock, 2011, p.170-180).
Em algumas espécies a testosterona ativa o comportamento territorial como é o
caso do Pardal Cantor e da Escrevedeirada-lapônia. Em muitas espécies, assim como
o homem, é apontada uma alta correlação entre níveis de testosterona e
comportamento agressivo. Podemos citar os cervos, que vivem pacificamente em seus
grupos, entretanto, durante todo o verão quando seu nível de testosterona aumenta, o
seu comportamento agressivo também aumenta, causando sempre episódios
violentos (Alcock, 2011, p.173; Johnson, 1972).
137
Por que homens apresentam maior comportamento agressivo do que mulheres?
Por uma antropologia evolucionária do comportamento agressivo
Pesquisas apontam que indivíduos que tem antecedentes violentos, e que
praticam condutas antissociais geralmente (mais do que a media) possuem níveis
mais altos de testosterona. Nesse sentido podemos dizer que há uma correlação
positiva entre o inicio da adolescência e o inicio das condutas antissociais, vide que
nesse período da vida os homens possuem mais testosterona do que em qualquer
outro (Aromäki, Lindman & Erikson, 1999). Há estudos também que apontam uma alta
correlação entre altos índices de testosterona (acima da media) em mulheres, e maior
inclinação a condutas violentas (Dabbs & Hargrove, 1997; Dabbs et al. 1988). Outros
estudos corroboraram ainda mais a correlação entre testosterona e agressividade em
humanos, ao analisarem o uso de anabolizantes a base de testosterona em homens e
mulheres. No geral, há uma tendência em aumentar os níveis de excitação sexual e
também o nervosismo (Hoaken & Stewart, 2003).
Aqui concluímos que, como em geral homens possuem maiores níveis de
testosterona, eles tendem também a manifestar maior comportamento violento. Nesse
sentido, essa é uma importante variável que parece guardar relação com as duas
hipóteses deste texto. Nesse caso, o nível de testosterona em homens parece guardar
tanto relação com a seleção natural, tanto com a seleção sexual.
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência é um fenômeno universal e a disparidade quanto à inclinação a este
comportamento, entre homens e mulheres, é igualmente universal. Em todo mundo,
homens se demonstram mais violentos, praticam mais crimes, vão para guerra, tem
maior gosto por esportes violentos. Para além da antropologia cultural estruturalista,
trabalhamos com a antropologia evolucionaria e com as hipóteses que dela derivam.
Nesse sentido, entendemos que as ciências sociais possuem déficits e estes por sua
vez podem ter resposta dentro da teoria evolucionaria que tem um grande valor
heurístico no que diz respeito à compreensão das causas proximais do
comportamento (causas praticamente ignoradas dentro das ciências sociais, ou
permeada por noções muito pobres).
No que diz respeito à tendência masculina ao comportamento agressivo,
acreditamos que haja uma correlação positiva entre os desafios adaptativos do
período ancestral. Ao que parece, os desafios que mais exerceram pressão foram a
divisão sexual do trabalho e a seleção sexual.
138
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
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Wood, W., & Eagly, A. H. (2002). A cross-cultural analysis of the behavior of women
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128, 699–727.
141
Boletim de Sociologia Militar
N.º3 – 2012
PP. 142 a 151
A Incerteza do Risco: Ensaio relativamente ao tema Sociedade
de Risco de acordo com Ulrich Beck e Anthony Giddens
Rui Eusébio*
Resumo
Uma leitura diferenciada do lugar da ciência e da tecnologia no quadro institucional das sociedades
contemporâneas parece estar na base de definições divergentes de modernidade reflexiva por parte de
Ulrich Beck e de Anthony Giddens. Para ambos os autores, a noção de modernidade reflexiva constitui,
como é sabido, noção central para caracterizar o quadro contextual da crise ecológica actual.
Este artigo visa uma apresentação dos traços fundamentais das teorias destes autores e os fundamentos
dessa divergência.
Palavra-chave: sociedade de risco, sociedade industrial, modernidade reflexiva
Abstract
A different reading of the place of science and technology in the institutional framework of contemporary
societies seems to be the basis of differing definitions of reflexive modernity by Ulrich Bech and Anthony
Giddens. For both authors, the notion of reflexive modernity is, as is known, central notion to characterize
the contextual framework of the current ecological crisis.
This article aims at presenting the basic features of the theories of these authors and the reasons for the
divergence.
Key-words: risk society, industrial society, reflexive modernity
INTRODUÇÃO
Dia 26 de 1986, um dia que ficará enterrado na memória de todos, Pripyat, uma
cidade localizada na Ucrânia, não muito distante da fronteira com a Bielorrússia é alvo
de um acontecimento que viria não só a marcar a narrativa de um país como também
a história do planeta.
Informações apontam que durante uma operação de rotina, foram realizados
testes ao interior do núcleo do reator com o intuito de aumentar a capacidade de
produção energética. Contudo, os técnicos que se encontravam encarregues destes
testes, não seguiram as normas de segurança e por conseguinte o reator nº4 acabou
por entrar numa situação de instabilidade.
*
Capitão de Infantaria Licenciado em Sociologia (ISCTE), E-mail: [email protected]
142
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Pelas 01 horas e 23 minutos ocorrem as primeiras explosões, grandes
quantidades de radiação à base de urânio e grafite são libertadas para a atmosfera, tal
como sucedera em Hiroshima, mas neste caso com efeitos bem superiores, estima-se
que o acidente em Chernobyl emitiu quatrocentas vezes mais radiação que a bomba
atómica lançada sobre a cidade japonesa.
Estávamos perante um novo inimigo, invisível mas potencialmente devastador1.
Foram momentos como este, que nos fazem pensar, não só indivíduos como eu, que
acabo de iniciar a minha carreira de “aprendiz em sociologia”, como também os
grandes teóricos que se têm debruçado no estudo destas questões.
Actualmente as “questões ambientais começaram nos últimos anos a captar
cada vez mais a atenção da sociologia, especialmente nos debates sobre a
modernidade, sobretudo a partir do momento em que a escala dos problemas
ambientais assumiu uma dimensão global incontornável.” (Schmidt, 1999, p.194)
Este ensaio tem como objectivo, ainda que de uma forma sucinta possibilitar ao
leitor, inteirar-se acerca da reflexão social contemporânea, sobre a perspectiva da
sociedade de risco do ponto de vista de Ulrich Beck e Anthony Giddens.
Mas, o que levou estes autores a “olhar a sociedade desta forma”, o que levou
estes criadores a assumirem uma leitura diferenciada, do lugar da ciência e da
tecnologia no quadro institucional das sociedades contemporâneas relativamente à
noção de modernidade reflexiva?
Será com base nestas questões, que iniciarei o meu desenvolvimento sobre os
traços fundamentais das teorias destes autores.
A SOCIEDADE DE RISCO
De acordo com Beck “ a sociedade de risco significa que vivemos na idade dos
efeitos secundários, isto é, habitamos num mundo fora do controlo, onde nada é certo
além da incerteza” (Beck, 2000:166)
Do seu ponto de vista, a noção de risco encontra-se associada a um estádio
preciso do processo de modernização, incorporando a dimensão de incerteza, embora
o autor não refute a existência do conceito de risco noutros períodos da história. Para
ele, o risco também se encontra interligado aos danos produzidos pelo processo
civilizacional (modernização) (Areosa,2008), nas suas palavras “risck may be defined
as systematic way of dealing with hazards and insecurities induced and introduced by
modernization itself. Risks, as opoposed to older dangers, are consequences which
1
Documentário da BBC “Chernobyl Nuclear Disaster – Surviving Disaster (BBC Documentary)
143
A Incerteza do Risco
relate to the threatening force of modernization and to its globalization of dout. They
are politically reflexive” (Beck,1992, p.21).
Foi após o acidente de Chernobyl (já anteriormente abordado), que Ulrich Beck
desenvolve a conceptualização de sociedade de risco, com o intuito de alertar dos
possíveis riscos que se encontram inerentes á comunidade, realçando de uma forma
particular os efeitos dos meios tecnológicos sobre o ambiente biofísico.
Do seu ponto de vista, Chernobyl é o principal marco de um “choque
antropológico”, pois foi a partir deste momento que se dá uma alteração ao nível
perceptual do ser humano sobre as possíveis consequências da ciência nos seus
modos de vida.
Pripyat2 tornara-se num evento onde foi passível identificar o seu início, mas
não o seu fim, a população só tomou conhecimento da realidade dos factos 30 horas
após o desastre, e ainda hoje é alvo de marcas físicas deixadas por este
acontecimento (este foi o resultado de algumas instituições continuarem a funcionar
numa lógica semi moderna, embutida no secretismo e na confidencialidade, que não
só predominava na altura “em plena guerra fria”, como ainda hoje predomina de
alguma forma a incomunicabilidade entre a ciência, a política e a sociedade).
Esta invisibilidade e a intangibilidade dos riscos ecológicos demonstram bem o
motivo de ansiedade e angústia (Valadas, 2012) permanente em todos nós.
Pela primeira vez é sentida a necessidade de uma intervenção que supera o
conhecimento
científico
até
ao
momento
desenvolvido,
ocorrendo
“a
institucionalização da dúvida e da angústia, no qual se acentua com o crescimento da
desconfiança e da insegurança proveniente da dependência em relação aos sistemas
periciais” (Valadas,2012). Este foi o ponto decisivo na demarcação de um período de
consciencialização acerca dos prováveis efeitos da tecnologia sobre o meio ambiente,
contrariando assim a baixa probabilidade que era atribuída a instalações desta
natureza.
Entramos num período de deslegitimação da ciência e da tecnologia, começam
a surgir as primeiras dúvidas nas mentes internacionais sobre as particularidades dos
riscos ambientais. Pela primeira vez um problema local ameaça o global como um
todo, desencadeando ações de ansiedade e de reflexividade.
SOCIEDADE INDUSTRIAL VS. SOCIEDADE DE RISCO
Do ponto de vista de Beck, esta presença invasora associada ao risco deriva
essencialmente do desenvolvimento da sociedade industrial. Contudo, o autor não
2
De acordo com o documentário da BBC
144
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
desconsidera o facto da existência do risco em sociedades anteriores tal como fora o
caso das pestes, das catástrofes naturais, entre outras, que também elas eram
dotadas de um poder assolador comparável até aos poderes destrutivos actuais,
porém e ao contrário do que se sucedia no passado, o conceito de risco
contemporâneo deve-se sobretudo a deliberações de índole económico. Para Beck, o
termo risco, não provém de decisões tomadas por elementos singulares, mas sim de
opções levadas a cabo por entidades económicas e políticas organizadas (Mela,
Belloni, Davico, 2001).
“Os riscos pressupõem decisões e análises industriais, isto é, técnicoeconómicas, das vantagens. Distingue-se das consequências das guerras pelo seu
“nascimento normal”, ou melhor, pelo facto de “nascerem de forma amigável” nos
centros da racionalidade e do bem-estar, com a bênção dos garantes do direito e da
ordem; distinguem-se das catástrofes pré industriais pela sua génese decisória, que
nunca é realmente apenas dos indivíduos, mas de inteiras organizações e
associações políticas.” (Beck, 1994, p. 50)3
Numa fase inicial, esta abordagem efetuada por Beck relativamente à
sociedade de risco, teve fortes influxos na comunidade internacional, este conceito
assumia-se como resposta à obsolescência da sociedade industrial (Beck,2000).
De acordo com Areosa “A terminologia de sociedade de risco designa
essencialmente uma condição das sociedades contemporâneas, nas quais os riscos
sociais, individuais, políticos e económicos tendem, de forma crescente, a escapar à
proteção, controlo e monitorização da sociedade industrial. Segundo Beck, existem
dois estádios distintos para estas duas realidades sociais, isto é, a sociedade de risco
sucede à sociedade industrial. A transição da sociedade industrial para a sociedade de
risco é irreversível e Beck vai designar este período como modernidade reflexiva”
(Areosa,1998, p. 6).
Esta transição é dada pelo “envelhecimento” da modernidade industrial
resultante de um processo de inovação autónomo, no qual acaba por gerar a
“sociedade de risco” (adaptado de Lash et al., 1996,pp.27-230, citado por Schmidt
1999, p. 200).
Na opinião de Beck, a sociedade industrial tinha como função resolver os
problemas da escassez, assegurando as necessidades básicas e a produção de bemestar, desprovendo de certa forma os efeitos residuais remanescentes da actividade
produtiva, imperava a “lógica de produção de riqueza sobre a lógica de produção dos
riscos”, ao qual não era atribuída qualquer tensão entre as partes envolventes. Com o
3
Beck, U. (1994), “Dalla società industriale alla società del rischio. Questioni di sopravvivenza, struttura sociale e
illuminismo ecologico”, in Teoria Scoiologica, 2, 4 pp. 49-75
145
A Incerteza do Risco
aparecimento da sociedade de risco4, tudo se altera, as consequências provenientes
do processo de desenvolvimento acabam por fazer oscilar os pilares do progresso,
mergulhando instituições públicas, políticas e financeiras, no questionamento sobre os
possíveis riscos da sociedade industrial. Este tipo de sociedade foi perdendo
lentamente as suas “certezas”, sabendo que estas constituíam um dos seus principais
alicerces (Areosa, 1998).
De acordo com Valadas (2012) este momento simboliza a passagem de um
processo positivo (distribuição de riqueza) para um processo negativo (distribuição do
risco), este é o momento que marca a mudança da modernidade simples (apogeu da
sociedade industrial) para a modernidade reflexiva (emergência da sociedade de
risco).
É no choque entre estes dois momentos, que Beck edifica o conceito de
“modernidade reflexiva”, no sentido contrário da dialética entre o conceito de
“modernidade” e “modernidade reflexiva”, ele acaba por afirmar que “ modernidade
reflexiva significa acima de tudo confrontação […] autoconfrontação com as
consequências da sociedade de risco e não podem ser [adequadamente] encaradas e
ultrapassadas no sistema da sociedade industrial” (Lash et al., citado por Schmidt
1999, p.201)
Hoje, as preocupações em torno da sociedade já não recaem sobre a produção
massificada, mas sim na necessidade de resolver os problemas causados por este
sistema.
Beck identifica ainda, outro ponto muito importante na sua análise, referindo
que no decorrer da sociedade industrial a oscilação entre a desigualdade social e a
vulnerabilidade aos perigos ambientais variavam numa relação direta em favor aos
que detinham mais posses, ou seja, os habitantes das classes sociais mais altas
tinham sempre a possibilidade de contornar situações críticas ao nível ambiental
(poluição por exemplo), contrariamente ao que se verifica na atual sociedade de risco.
Neste tipo de sociedade os riscos adoptam uma postura “democrática”, isto porque
podem afetar um maior número de pessoas, independentemente da sua condição ou
classe social. Luísa Schmidt acaba mesmo por afirmar que “na sociedade de risco, a
hierarquia social e o perigo desarticulam-se, pois o risco emerge, “democratiza-se” e
estende-se a todas as classes socias, culturas, raças e nações…” (Schmidt, 1999, p.
202)
A dissolução de certezas da sociedade industrial acaba por originar as
incertezas da sociedade de risco.
4
A ameaça nuclear é um dos exemplos paradigmáticos de situação, visto que, virtualmente, paira sobre todas as
regiões do globo. Em simultâneo, o risco transformou-se num fenómeno global e globalizante.
146
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Contudo, na opinião de Ulrich Beck continua a prevalecer uma lógica de
distribuição desigual dos danos tanto ao nível social como ao nível geográfico. Na fase
atual, os riscos multiplicam-se, adquirem um alcance cada vez mais profundo, e
sobretudo assumem uma dimensão global, já não delimitável. A ameaça de
contaminação atómica e química, o efeito de estufa e outras potenciais catástrofes não
se detêm perante limites administrativos dos Estados, nem permitem que qualquer
grupo social se sinta seguro. Devemos ter em atenção que as ameaças globais
conferem propriedades catalisadoras ao aumento das desigualdades entre povos
sendo que, os mais ricos acabam por deter uma maior capacidade de atenuação
relativamente aos efeitos dos riscos ambientais, no entanto, o autor acaba por
sublinhar que “nestes casos, os países ricos não escapam – invadidos que serão
pelos “ecorefugiados”… daí a inegável “democratização” potencial dos riscos e seus
“efeitos de boomerang” ou a falta de imunidade de todos face às ameaças globais,
embora a velocidades diferentes”. (Beck,1992ª, p.23, citado por Schmidt, 1999, p.
202).
Na opinião de Beck a ciência contribuiu fortemente para o desenvolvimento do
progresso económico do mundo ocidental, contudo e com base neste desenvolvimento
nascem novos riscos, o conhecimento torna-se assim a principal fonte geradora da
instabilidade que de certa forma acaba por perdurar nos dias de hoje, traduzindo uma
noção de incontrolabilidade sobre o meio científico, técnico e social. É um facto, que a
probabilidade de acontecer algo catastrófico é muito baixa, porém Fukushima5 não
fora um acontecimento no passado, levando sempre a recordar que acidentes como
este realmente acabam por ocorrer.
Como síntese, Ulrich Beck, exporta uma imagem de um futuro ensombrado
para as sociedades modernas, afirmando que “ a sociedade de risco é então uma
sociedade catastrófica pois nela, a excepção ameaça tornar-se a norma”(Beck,1992,
p.24).
Contudo, existem mais autores que partilham desta opinião, embora de uma
forma um pouco diferente, Anthony Giddens é um deles. Este será o próximo ponto de
abordagem na prossecução do meu ensaio.
5
“Vários funcionários da central nuclear de Fukushima, fortemente atingida pelo sismo e tsunami que atingiram o
Japão neste mês, foram evacuados depois de ter sido detectado fumo a sair do reactor número três. Mesmo assim, o
governo japonês diz que a situação na central avança de forma lenta mas positiva.”
Fonte: http://www.dn.pt/inicio/globo/interior.aspx?content_id=1811257&seccao=%C1sia
“Alguns indivíduos de uma espécie de atum do oceano Pacífico capturados em Agosto de 2011 na costa da Califórnia,
nos Estados Unidos, estavam contaminados com radiação da central nuclear de Fukushima, no Japão, libertada depois
do sismo de 11 de Março do ano passado.” Fonte: http://www.publico.pt/Ci%C3%AAncias/atum-capturado-nacalifornia-tinha-radioactividade-de-fukushima-1548062
147
A Incerteza do Risco
GIDDENS E O CONCEITO DE MODERNIDADE
O impacto cultural da globalização foi alvo de muita atenção para Giddens.
Imagens, ideias, produtos e estilos disseminam-se hoje em dia pelo mundo inteiro de
uma forma muito rápida. As consequências da globalização acabam por ter uma
dispersão em todos os sentidos, no qual afecta todos os aspectos do mundo social, no
entanto, dado a globalização ser um processo aberto e intrinsecamente contraditório,
as suas consequências são difíceis de prever e mesmo controlar, representando uma
outra forma de pensar esta dinâmica assente no risco. Muitas destas alterações
provocadas pela globalização resultam em novas formas de risco, cada uma delas
associada à sua época. Ao contrário dos riscos do passado, que tinham causas
estabelecidas e efeitos conhecidos, os riscos hoje em dia são incalculáveis e de
consequências indeterminadas. (Giddens,2001)
Anthony Giddens refere, que os seres humanos sempre se depararam
directamente com riscos de várias espécies, mas, actualmente incorporam uma
natureza diferente das anteriores. Anteriormente as sociedades humanas estavam sob
a ameaça de riscos externos, como, as secas, os terramotos, as pestes, entre outros,
onde não existia uma influência por parte da acção do homem, ao qual denominava de
riscos externos. Nos dias de hoje a sociedade é confrontada por riscos que resultam
do impacto da acção da tecnologia e da ciência sobre o mundo biofísico, ao qual
advém a intitulação de riscos manufacturados (Giddens, 2001).
As questões ambientais tem vindo a ocupar um lugar de progressiva evidencia
na Teoria de Modernidade no qual acaba por surgir sempre articulada a outras, tais
como, a globalização, a alocação de recursos no âmbito do domínio militar
transnacional e a perturbação trazida pela modernidade à vida pessoal e íntima, como
sejam o medo e a ansiedade face ao risco (Schmidt, 1999).
Giddens tem vindo ao longo das suas obras a associar os problemas
ambientais com conceitos como globalização, para ele o ser humano encontra-se
rodeado por uma panóplia de escolhas e de muitas incertezas, estando de certa forma
em concordância com a teoria apresentada por Ulrich Beck, ele acaba por reconhecer
que fora na era do industrialismo capitalista que ocorrera a explosão dos problemas
ambientais como fruto do desenvolvimento da ciência que por sua vez, acabou por
levar a um conjunto de riscos elevados.
O autor tal como Beck reconhece que a passagem da sociedade industrial para
a sociedade actual assenta sobretudo num conceito de Modernidade Tardia, contudo a
sua visão não se revela tão pessimista como a de Beck, nem o seu grau de
insegurança tão elevado. Tal como irei apresentar mais a frente, Giddens reconhece
que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia perderam a sua legitimidade com os
148
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
casos já anteriormente referidos, no entanto Giddens acaba também por observar que
poderá ser através da ciência e da tecnologia que se poderá contornar esta
desconfiança.
Na opinião de Giddens a sociedade acaba por “olhar” para a ciência e
tecnologia com alguma desconfiança, é o resultado das consequências sobre o meio
ambiente provocadas pelo capitalismo industrial, contudo, o autor não assume uma
posição extrema tal como Beck, mas reconhece que é devido à conjugação entre
estes dois elementos que ocorre um processo reflexivo do conhecimento, conduzindo
à dúvida e à incerteza.
De acordo com este autor, o grau de insegurança que é gerado em torno da
sociedade, encontra-se muitas das vezes associado ao impacto social e cultural dos
riscos de elevadas consequências e baixa probabilidade, associados não só ao
ambiente, como também a outros fenómenos marcantes da realidade social
contemporânea (Valadas,2012).
Para ele, tal como fora para Beck, a perca da legitimidade por parte da ciência
e da tecnologia acabou por influenciar fortemente o sentimento de dúvida no universo
dos mais leigos. Giddens reconhece que fora o mundo industrial (capitalismo
industrial) o principal catalisador dos problemas ambientais, porém também ressalva
que poderá ser através dos fatores originários (ciência e tecnologia), que reside a
solução a essas mesmas contrariedades.
Atualmente, os meios de comunicação social assumem um papel fundamental
no processo de intermediação entre a ciência e a sociedade, “funcionando também
como formas e/ou rotinas de securização.” (Schmidt,1999, p.198) tal como o sistema
“pericial”6, No qual se encontram associados entidades como os peritos, especialistas
e técnicos que avocam, organizam e sistematizam as informações, desta forma os
“indivíduos transferem a sua confiança daquilo que eram os saberes tradicionais e
interacção com pessoas que conheciam” (Schmidt, 1999, p. 198), para um novo tipo
de sistema.
A este processo Giddens apelidava de “sistemas abstractos” sendo algo que
funciona como uma nova rede de confiança. Assim e de acordo com Valadas a
complexidade da gestão dos problemas da modernidade tardia obriga a uma acrescida
transferência de poder para os sistemas abstractos cuja lógica de funcionamento e
racionalidade é opaca à maioria dos leigos.
Outro dos pontos abordados por Giddens consistiu na importância dos
movimentos ambientalistas e nos seus efeitos sobre o discurso político, estes
movimentos que surgiram entre a década de 70 – 80 ainda que fora de uma forma
6
Por exemplo o nosso Infarmed, ao nível nacional, a organização mundial de saúde a uma escala mundial
149
A Incerteza do Risco
marginal, acabam por auxiliar a compreensão sobre a natureza ou seja, esta já não é
só vista como um recurso produtivo, possibilita ainda instalar-se como uma referência
para a experiência perturbada das vidas pessoais na condição moderna.
Giddens identificou que o indivíduo ao viver num grau de insegurança elevado
acaba por ganhar consciência sobre os riscos globais.
Do surgimento desta contraposição da perca da legitimidade pela parte da
ciência e da tecnologia, e da possível resposta de estes mesmos factores, a
modernidade tardia ou radicalizada acaba-se por definir como uma “juggernaut
Society” (de futuro incerto) (Valadas, 2000). Giddens concebe o conceito de
“juggernaut society” como resposta à sociedade de risco.
CRÍTICAS A ESTES MODELOS
Estas teorias acabaram como qualquer teoria por ser alvo de críticas, entre as
quais e de acordo com Areosa, os críticos de Beck defendem que o sucesso de
conceito de sociedade de risco deve-se mais a circunstâncias históricas (por exemplo,
Luhmann vê este conceito como uma moda) do que uma verdadeira teoria social
consistente, isto é, defende que a teoria de Beck circula entre a verdade e a profecia.
Beck foi também apelidado como o teórico da catástrofe ou apocalíptico. Uma das
críticas recorrentes à sua teoria está relacionada com o próprio conceito de risco. Na
perspetiva dos críticos de Beck, a sua noção de risco é redutora, visto que esta é
simplesmente apresentada como uma resposta às consequências imprevistas da
industrialização, particularmente no âmbito dos riscos técnicos e ambientais. São
também apontadas insuficiências nas estratégias para gestão de riscos” (Areosa,2008,
p. 4).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, foi possível visualizar o desenvolvimento da teoria de
sociedade de risco sob a perspectiva de Ulrich Beck e Anthony Giddens.
Foi para mim um enorme prazer desenvolver esta temática, pois além de ser
uma área da qual eu partilho um especial interesse, trata-se também de um território
extremamente desafiante em contextos futuros.
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Boletim de Sociologia Militar n.º 3
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r+%E2%80%93+Surviving+Disaster+%28BBC+Documentary%29&oq=Chernob
yl+Nuclear+Disaster+%E2%80%93+Surviving+Disaster+%28BBC+Documentar
y%29&aq=f&aqi=&aql=&gs_l=youtube.12...2432.2432.0.3833.1.1.0.0.0.0.82.82.
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151
Boletim de Sociologia Militar
N.º 3 – 2012
PP. 152 a 162
DOIS OLHARES SOBRE A MESMA PERSPECTIVA – SOCIEDADE DO
RISCO - ULRICH BECK E ANTHONY GIDDENS
Andreia Filipa Duarte Pires*
RESUMO
É inevitável falar em sociedade do risco, sem fazer um enquadramento sobre modernidade e pós-modernidade, assim
como consequentemente do processo de globalização e risco, e por fim a sociedade do risco em si mesma.
Ao pensarmos no desenvolvimento das sociedades não o podemos dissociar da modernidade, que segundo Giddens,
se refere aos modos de vida e organização social que surgiu no século XVII na Europa e subsequentemente teve
influência mais ou menos global.
É relevante enquadrar o tema da globalização, termo este que se refere ao processo de interdependência e relações
sociais a um nível mais alargado, no qual se pode afirmar que vivemos num “mundo único”. Associado a esta ideia,
estão os fenómenos que lhe são intrínsecos, e a emergência do risco em sociedade.
Palavras-chave: Modernidade, Globalização, Sociedade do Risco
ABSTRAT
It is inevitable to talk about risk society without referring modernity and post modernity, which led we can say to the
process of globalization and risk, and obviously the risk society itself.
When we think of the development of societies we can’t dissociate it from modernity, which , according to Giddens,
gave rise to different ways of life and social organization that emerged in Europe, in the XVII century , and globally
had a gradual increase as consequence.
It’s important talk about globalization as a frame of reference, since it is connected to the process of interdependence
and social relations to a wider level, once we live in a “one world”. Related to this process are the intrinsic events and the
rising risk in society.
Keyword: Modernity, Globalization, Risk Society
I – MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE
São diversos os autores que falam em modernidade e pós-modernidade relativamente à
sociedade.
Um destes autores é Featherstone (1989), defende que o pós-modernismo é um reflexo do
mundo Ocidental, mostrando um corte ou ruptura com a modernidade, contrapondo-se a esta.
Relativamente aos conceitos de modernidade e pós-modernidade, cito Featherstone em
que este diz: […]. A modernidade é definida geralmente como tendo surgido com o Renascimento
e foi definida em relação à Antiguidade […]. Na perspectiva da teoria sociológica Alemã dos finais
do século XIX, princípios do século XX, da qual deriva em grande parte o nosso sentido comum
*
Licenciada em Sociologia pela Universidade da Beira Interior, E-mail: [email protected]
152
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
do termo modernidade é contraposta à ordem tradicional e implica a progressiva racionalização e
diferenciação económica e administrativa do mundo social […] (Featherstone, 1989, p.95).
No entanto, Featherstone (1989) quando fala em pós-modernidade sugere uma mudança
de paradigma ou ruptura com a modernidade envolvendo a emergência de uma nova totalidade
social com princípios próprios de organização. Todavia o conceito pós-moderno deve integrar o
moderno.
Evocando Lyotard (1984) (in Featherstone, 1990, p.96) quando fala de modernidade, diz
que esta deve ser vista como qualidade da vida moderna, da qual produz um sentido de
descontinuidade no tempo. Tal como defende Giddens (1996) quando fala na descontinuidade da
modernidade, para este autor, a modernidade refere-se aos modos de vida e à organização social
que emergiu na Europa por volta do século XVII exercendo influência a nível global.
Apesar de muitos defenderem a ideia de estarmos a entrar numa nova era – a pósmodernidade, ou como alguns preferem designar esta transição, sociedade da informação ou
sociedade de consumo, pelo facto de nos encontramos a caminhar para um sistema centrado na
informação. Neste sentido, Giddens (1996) sustenta a ideia de que se está longe da época pósmoderna – pós-modernidade, mas sim no começo de uma época de consequências da
modernidade, portanto fala das descontinuidades da modernidade em que os modos de vida
nesta alteram-se tanto em extensividade como em intensividade. Em extensividade, as
transformações na modernidade criaram formas de interligação social à escala global e em termos
de intensividade, transformaram-se as características mais íntimas e pessoais da nossa vida.
As descontinuidades da modernidade apresentadas por Giddens (1996) assentam em três
factores:
a) Primeiramente o ponto a focar é o ritmo da mudança, onde na era da modernidade é
mais dinâmica do que noutros sistemas tradicionais anteriores no qual a rapidez da
mudança é extrema e é mais visível no que respeita à tecnologia mas estando presente
em todas as outras esferas;
b)
O alcance da mudança é o segundo ponto a mencionar, do qual à medida que
globalmente se interligam diferentes regiões do mundo leva a que surjam
transformações sociais à escala global;
c) Por último, o terceiro ponto a referir é a natureza das instituições modernas, isto é, ao
contrário de períodos históricos anteriores, a modernidade não se vê representada em
alguns modelos sociais modernos como é o caso do sistema político de Estado-Nação,
a dependência generalizada da produção do recurso a fontes de energia inanimadas e
ainda a completa transformação dos produtos e do trabalho assalariado em
mercadorias, enquanto noutros modelos sociais modernos preexiste uma continuidade
ilusória.
153
Sociedade do Risco
Acerca da modernidade, Giddens (1996) faz também referência ao dinamismo desta,
apresentando três factores que caracterizam as instituições modernas:
- a separação do tempo e do espaço, esta separação é a condição do distanciamento
espacio-temporal de alcance indeterminado;
- o desenvolvimento de mecanismos de descontextualização, estes mecanismos
reorganizam as relações sociais através de grandes distâncias espaço-tempo; e por último,
- a apropriação reflexiva de conhecimento, esta apropriação afasta-se da tradição, pelo
facto de a produção de conhecimento sobre a vida social ser parte integrante da reprodução do
sistema (Giddens, 1996, pp.36-37).
II – GLOBALIZAÇÃO
A globalização implica olharmos para o mundo de uma forma global. Esta apresenta-senos de uma forma diferente, passamos a estar interdependentes das relações entre países, o
local transforma-se em global, onde as nossas acções locais se repercutem ao nível global.
Tornamo-nos mais conscientes dos problemas que se passam à nossa volta a nível mundial, dado
que estes podem exercer influência nas nossas vidas, isto é, o local pode condicionar o global,
assim como o inverso.
Fazendo alusão a Giddens (2004), a globalização é um fenómeno que se transpõe para a
esfera mais íntima da vida pessoal através de meios impessoais como a internet, os media, que
nos dão a conhecer mais rapidamente, muitas vezes quase em “tempo real”, as situações que
acontecem no mundo, salientando também o contacto pessoal com indivíduos de outros países e
culturas, transformando definitivamente as experiências pessoais quotidianas dos indivíduos.
Importa frisar que as transformações que a globalização acarreta implicam uma redefinição
ao nível pessoal e mais íntimo das nossas vidas tais como os papéis de género, as interacções
com os outros, a identidade pessoal, a família e a sexualidade. Citando o autor, […]. Graças à
globalização, a forma como nos concebemos a nós próprios e a relação com as outras pessoas
estão a ser profundamente alterados (Giddens, 2004, p.61).
II.I – GLOBALIZAÇÃO, RISCO E MODERNIDADE
Como mencionado acima, a globalização é um processo caracterizado pela intensificação
das relações sociais à escala global, regiões interligadas entre si, em que os acontecimentos
locais são moldados influenciando outros locais mais distantes – cite-se aqui Giddens quando diz:
a modernidade é inerentemente globalizante (Giddens, 1996, p.44).
Voltando o discurso para o risco, o risco em sociedade surge com o “ajustar” das
sociedades à globalização em todos os seus aspectos e todas as transformações ocorridas a nível
institucional pelo advento da modernidade.
154
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Hoje quando se fala em risco, muitos dos quais estamos expostos têm origem na criação
humana e não tanto primordialmente do mundo natural como outrora.
Citando Lasch, este autor esquematiza o risco do mundo contemporâneo, olhando com
mais pormenor para a modernidade, da seguinte forma:
“1 – Globalização do risco no sentido da intensidade: por exemplo, a guerra nuclear pode
ameaçar a sobrevivência da humanidade;
2 – Globalização do risco no sentido do crescente número de acontecimentos contingentes
que afectam todas as pessoas ou, pelo menos, um elevado número de pessoas no planeta: por
exemplo, mudanças na divisão global do trabalho;
3 – Risco decorrente do ambiente criado, ou natureza socializada: a infusão de
conhecimento humano no ambiente material;
4 – Desenvolvimento de ambientes de risco institucionalizado que afectam as
oportunidades de vida de milhões de pessoas: por exemplo, os mercados de investimentos;
5 – Consciência do risco enquanto risco: as “falhas de conhecimento” sobre os riscos não
podem ser convertidas em “certezas” através do conhecimento religioso ou mágico;
6 – Consciência bem difundida do risco: muitos dos perigos que enfrentamos
colectivamente são conhecidos de vastos públicos;
7 – Consciência das limitações da pericialidade: nenhum sistema pericial o pode ser
totalmente em termos das consequências da adopção de princípios de pericialidade.” (Lasch cit.
por Giddens, 1996, pp.87-88).
Ao falar-se de globalização e risco, reporta-nos irremediavelmente para as consequências
de largo alcance e de como estas são de certo modo imprevisíveis, indeterminadas, incalculáveis
e difíceis de controlar afectando todos os aspectos do mundo social. Uma das consequências que
a globalização traz são a multiplicação dos riscos manufacturados – isto é, estes riscos dependem
do impacto da acção do nosso conhecimento e da tecnologia sobre o mundo natural, ou seja,
resultam da nossa acção sobre a natureza.
O indivíduo nas sociedades humanas sempre esteve perante a ameaça de riscos, mas
estes eram externos – sucedidos de terramotos, tempestades, secas e fome, não estando
dependentes da acção do homem. Actualmente são os riscos manufacturados que estão
presentes e ameaçam as populações. Dentro destes riscos manufacturados, são-nos
apresentados por exemplo os riscos ambientais e os de saúde. Em relação aos riscos ambientais,
o crescente aumento da intervenção do homem sobre a natureza através do desenvolvimento
industrial e tecnológico aumentou o risco a nível ambiental, de tal forma que umas das causas
maiores, será a crescente preocupação com o aquecimento global, do qual se sabe que provêm
diversos problemas globais, entre os quais: o degelo dos glaciares, o aumento do efeito de estufa,
aumento da camada de ozono. Comparativamente, os riscos de saúde também tem assumido
uma preocupação crescente por parte dos meios de comunicação e campanhas para a saúde
155
Sociedade do Risco
devido às pessoas estarem cada vez mais expostas ao sol sem se lembrarem nos malefícios do
mesmo, ignorando por exemplo o risco elevado de sofrer de cancro da pele, também estes riscos
advêm do aumento do volume de emissões químicas produzidas pela indústria e mais uma vez
pela actividade humana.
Para Beck (1992) (in Giddens, 2004, pp.68-69), a globalização é a “responsável” pelo
surgimento de uma sociedade de risco global, o autor não considera apenas os riscos ambientais
e de saúde como ameaça, mas antes todas as mudanças na vida social contemporânea que
estão a surgir, os indivíduos vêem-se “obrigados” a pensar a sua posição em relação ao mundo,
isto é, temos que nos ajustar e responder constantemente a estas mudanças, desde a alteração
dos padrões de emprego à democratização das relações sociais.
Segundo Beck (1995) um aspecto importante da sociedade de risco é que os seus perigos
não são limitados espacial, temporal ou socialmente (cit. por Giddens, 2004, p.69).
O fenómeno da globalização, como é referido por Giddens (2004) também se desenha sob
a forma de desigualdade, ou seja, os países encontram-se diferenciadamente expostos a este
fenómeno, sendo sentido assimetricamente o impacto desta nos diferentes países. Os países
“desenvolvidos” ou industrializados têm maior poder e desenvolvimento económico estando este
concentrado num pequeno número de países sobre os países de “terceiro mundo”, onde persiste
um fosso de disparidade cada vez maior, vejamos que é aqui que se sofre de generalizada
pobreza, sistemas de prestação de cuidados de saúde e educação deficientes e obsoletos,
pesadas dívidas externas e sobrepopulação.
A globalização é um processo em aberto, de forma rápida e assimétrica com
consequências inesperadas e difíceis de controlar, que resulta da conjugação de diferentes
factores sociais, políticos, económicos e culturais. Caracteriza-se fortemente pelo avanço das
tecnologias de informação e comunicação e intensificação das relações sociais.
No que respeita à disparidade entre países ricos e pobres, pode dizer-se que é nos países
ricos que se concentram os recursos e o consumo, a riqueza e o rendimento, no entanto
inversamente a esta perspectiva encontra-se a dívida externa, a fome e a doença e naturalmente
a crescente situação de pobreza associada aos países mais desfavorecidos que acabam por ser
marginalizados ou mesmo acabando por ser excluídos do processo de modernização e
globalização já que se acentua a sua dependência para com os países mais ricos.
Seria um desafio para o mundo global, que neste século XXI, o processo de globalização
chegasse de forma igualitária a todos com as mesmas oportunidades ou que a cooperação
transnacional entre os países permitisse um mundo social melhor para todos, já que os que mais
necessitam de ajuda são os que correm risco de continuar no processo de exclusão global se
assim se pode dizer. Actualmente é “impensável” agir localmente sem pensar globalmente.
156
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
III – A SOCIEDADE DO RISCO – CONFRONTAÇÃO ENTRE BECK E GIDDENS
O risco é transversal a todos os sectores da sociedade como afirma Queirós, Vaz e Palma
(2006), autores como Beck (1992, 1994, 1999) e Giddens (1991, 1998, 1999) (in Queiróz, Vaz,
Palma, 2006, p. 1) centram a sua tese no facto de vivermos numa sociedade onde a
industrialização, os avanços tecnológicos emergem em prol do desenvolvimento e progresso,
modificando a natureza dos riscos e a capacidade da sociedade os gerir e compreender.
O grande paradigma da sociedade moderna é o “risco” uma vez que temos hoje uma maior
consciência dos riscos que nos ameaçam. Queirós, Vaz e Palma (2006) afirmam que as
sociedades sempre estiveram expostas ao risco mas de modos diferenciados, isto é,
primeiramente o risco estava presente como produto da acção não humana – os riscos não são
controlados pelo Homem – e actualmente os riscos são produto da acção humana dado
resultarem do processo de modernização e das alterações das estruturas de organização social.
No seguimento desta perspectiva podem esquematizar-se as características de Beck
(1992) e Giddens (1996) relativamente à evolução das sociedades. Beck fala na evolução das
sociedades composta por três períodos: sociedades tradicionais, primeira modernidade e segunda
modernidade representada no Quadro I, Giddens por sua vez fala do risco nas sociedades prémodernas e modernas representadas no Quadro II.
Quadro I – Características das sociedades tradicionais, da primeira modernidade e
segunda modernidade, segundo Beck (1992).
SOCIEDADES TRADICIONAIS
PRIMEIRA MODERNIDADE
SEGUNDA MODERNIDADE
- Estruturas comuns;
- Peso do Estado-Nação;
- Reflexividade;
- Influência da família na
- Estrutura de classes sociais;
- Destradicionalização;
construção da individualidade;
- Pleno Emprego;
- Individualização;
- Tradição;
- Rápida Industrialização;
- Globalização;
- Religião/Crenças
- Desemprego;
- Revolução de género;
-Progresso tecnológico/ Poder
tecnocrático;
- Segurança;
- Dúvida quotidiana;
- Previsibilidade;
- Incerteza;
- Confiança;
- Fragmentação Cultural;
- Norma
- Insegurança
FONTE: adaptado de Beck (1992), cit. por Queirós et. al (2006)
Assim, ao analisarmos o quadro, notamos que Beck vai ao encontro de Giddens no sentido
de se privilegiar nas sociedades tradicionais a tradição como influência da construção da
identidade, em que se vive o ambiente dos riscos previsíveis, confiança e a seguranças nas
157
Sociedade do Risco
instituições sociais ao invés do que se assiste actualmente na passagem da primeira para a
segunda modernidade – aqui é desprivilegiada a tradição, existindo uma maior individualização da
sociedade dado que a globalização de certo modo causou uma fragmentação da “essência” das
sociedades tradicionais, citando o autor, este entende pela segunda modernidade o facto de as
instituições modernas se estarem a tornar globais, enquanto a vida quotidiana se está a libertar do
jugo da tradição e dos costumes (cit. por Giddens, 2004, p.679), ainda Beck (1992) refere o
processo de perda de tradições como forma dos indivíduos tomarem as próprias decisões
resultando desse modo, novos estilos de vida. Contudo com o crescente desenvolvimento do nível
tecnológico e industrial, também se revolucionaram os papéis de género. Observe-se que com o
risco, surge a insegurança relativamente às instituições sociais uma vez que se fala sobre a
capacidade de resposta aos problemas que advêm da globalização e modernidade, a incerteza e
a dúvida, e também a crescente interacção com outras culturas e países levando à fragmentação
da própria cultura.
Complementando a ideia de Beck, Giddens (1996) faz também uma análise do risco nas
sociedades pré-modernas e modernas. Observe-se o Quadro II.
Quadro II – Ambiente de Risco nas sociedades pré-modernas e modernas segundo
Giddens
SOCIEDADES PRÉ-
SOCIEDADES MODERNAS
MODERNAS
(Segunda Modernidade)
(Primeira Modernidade)
AMBIENTE DE RISCO
-
Ameaças
e
perigos
- Ameaças e perigos emanados
provenientes da natureza, tais
da reflexividade da modernidade;
como a prevalência de doenças
infecciosas,
insegurança
climatérica, cheias ou outras
- Ameaça de violência humana à
catástrofes naturais;
industrialização da guerra;
- Ameaça de violência humana
por
parte
saqueadores,
de
exércitos
senhores
de
- Ameaça de perda de sentido
da
pessoal,
derivada
reflexividade
da
guerra locais, ladrões;
da
modernidade
aplicada ao self.
- Risco da perda da graça
religiosa.
FONTE: adaptado de Giddens, 1996, p.70.
Parafraseando Beck (1992), sobre a evolução das sociedades representadas no Quadro I,
as sociedades tradicionais podem considerar-se as existentes na Europa até ao início da
Revolução Industrial, caracterizadas pela forte influência da família e forte religiosidade. A primeira
158
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
modernidade afirmou-se na Europa nos séculos XVII e XVIII, aqui a Igreja perde poder e a família
passa a ser nuclear, substituindo a família alargada. O modelo da primeira modernidade assenta
na rápida industrialização, pleno emprego e pela grande influência do Estado-Nação, ainda assim
com todas estas alterações prevalece um ambiente de confiança, segurança e previsibilidade.
A segunda modernidade teve início no século XX permanecendo até aos dias de hoje.
Beck (1992) afirma que os riscos são uma causa do processo de modernização, em que a
industrialização não se pode dissociar da produção de risco e onde o avanço tecnológico é
apontado como um índice de causa-efeito deste processo, do qual Beck defende a ideia de que
[…] os riscos ultrapassam os limites temporal e territorial, e são produto dos excessos da
produção industrial. […] (Castiel, 2001, in Navarro e Cardoso, 2005 cit. por Queirós et al., 2006,
p.8). Já Giddens defende a perspectiva de que […] os riscos na sociedade reflexiva extrapolam as
realidades individuais e até mesmo as fronteiras territoriais e temporais em resultado do processo
de globalização (Giddens, 2001, cit. por Queirós et al., 2006, p.7). […] Na era da modernidade
reflexiva uma acção independentemente da escala – individual, social e internacional – tem
consequências a uma escala imprevisível (Slattery, 1991, cit. por Queirós et al., 2006, p.7).
Ambos os autores põem em foco o debate sobre o risco como questão fundamental das
sociedades modernas, particularmente os riscos tecnológicos e ambientais. Eles defendem que a
sociedade contemporânea se caracteriza pela radicalização dos princípios que orientam o
processo de modernização industrial, que marcam a passagem da sociedade moderna para a
sociedade de risco – onde com o início da modernidade, os riscos ambientais e tecnológicos são
complementares das sociedades industrializadas dado ser o progresso do desenvolvimento da
tecnologia e ciência que produz novos riscos de carácter global, riscos em que as consequências
são imprevistas como é o caso do já mencionado aquecimento global, escassez e poluição dos
recursos hídricos, efeito estufa. A origem da sociedade do risco é marcada pela catástrofe de
Chernobyl.
Uma das propostas de Giddens (1998) (in Guivant, 1998, pp. 26-27) para enfrentar os
riscos da modernidade, passa por uma redefinição das políticas pressupondo uma reorientação
nos valores e nas estratégias, designando este processo como “política da vida”, isto é, a
discussão assenta no modo como iremos viver as escolhas sobre o que no passado era visto
como natural e inevitável. O impacto global do desenvolvimento industrial sobre os ecossistemas
é um dos quatro tipos de crises globais diferenciais de Giddens (1994b) (in Guivant, 1998, p.27),
sendo os outros, o desenvolvimento da pobreza, a propagação de armas de destruição maciça e a
proibição dos direitos democráticos, diz ainda que não há possibilidade de pensar a natureza
excluindo-a dos ecossistemas sociais, uma vez que este é o parâmetro base dos riscos
ambientais e tecnológicos.
Beck (1994) (in Guivant, 1998, p.28) também centraliza a questão do risco no eixo político,
identificando a segunda fase da modernidade como favorável a novas estratégias políticas, onde à
159
Sociedade do Risco
primeira fase da modernidade, corresponde a passagem da sociedade industrial para a sociedade
de risco, emergente de uma dinâmica de radicalização da modernidade. À segunda fase da
modernidade, corresponde uma reflexividade sobre as consequências da modernidade industrial
sendo estas questionadas política e socialmente por organizações de interesse e pelo sistema
político.
No domínio do risco, considera-se importante citar o autor Franklin (1998), este afirma que
[…] a forma com que interpretamos os riscos, negociamos os riscos, e vivemos com as
imprevisíveis consequências da modernidade estruturará a nossa cultura, sociedade e política
pelas próximas décadas (cit. por Guivant, 1998, p.35).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em jeito de conclusão, pode afirmar-se que o risco passou a ser a questão e o debate
fundamental das sociedades modernas.
A modernidade acarretou muitas mudanças positivas como o desenvolvimento da ciência e
da tecnologia, a industrialização (mais avançada), o debate sobre questões que até então não
tinham tanta relevância tal como o inevitável debate nas agendas políticas e sociais do risco.
Beck e Giddens são dois autores incontornáveis quando se fala em sociedade do risco.
Beck foi o autor que alertou para a temática do risco a que as sociedades estão sujeitas
actualmente, tal como Giddens.
Este autor – Beck (2000) –, diz que a sociedade de risco surge como resposta à sociedade
industrial, pois “[…] a terminologia de sociedade de risco designa essencialmente uma condição
das sociedades contemporâneas, nas quais os riscos sociais, individuais, políticos e económicos
tendem, de forma crescente, a escapar à protecção, controlo e monitorização da sociedade
industrial. […]” (Beck (2000) cit. por Areosa, 2008:6), parafraseando ainda o autor, este afirma
que hoje o risco provém das incertezas criadas pelo nosso próprio desenvolvimento social tal
como o desenvolvimento da ciência e da tecnologia do que dos perigos naturais como acontecia
anteriormente.
Os autores Douglas e Wildavsky (1982) dizem que o risco é socialmente construído, e, por
vezes, afigura-se como algo incontrolável visto que nós nem sempre conseguimos saber se aquilo
que estamos a fazer é suficientemente seguro […]. Assim, a visão dos actores sociais sobre os
riscos aos quais estão sujeitos é sempre parcial ou incompleta (cit. por Areosa, 2008, p.3).
O risco é pautado pela incerteza – uma das suas dimensões – esta é vista como
omnipresente e condicional, pois não temos a possibilidade de conhecer e controlar todos os
riscos a que estamos expostos, tanto hoje – presente – como no futuro, sendo esta uma
característica da contemporaneidade como afirmam os autores Douglas e Wildavsky (1982) (in
Areosa, 2008:4). Logo, pode olhar-se para a modernidade, moldada e ajustada a um novo padrão
160
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
– o risco, a emergência de novos riscos que se transformaram num fenómeno global capaz de nos
transformar relativamente aos riscos a que nos encontramos expostos. Alguns exemplos destes
riscos “invisíveis” mas “reais e presentes” são: a diminuição da camada de ozono, a poluição
ambiental, o crime organizado, os ataques terroristas, a proliferação de arsenal bélico sofisticado,
a modificação genética dos alimentos (transgénicos). São estes os riscos contemporâneos na
nossa sociedade e aos quais devemos ter a percepção que nos podem vir a afectar.
É a partir desta “era da modernidade” em que vivemos hoje que podemos questionar, um
pouco em jeito de afirmação, que vivemos condicionados pelo medo, com a percepção do risco
sempre presente no nosso comportamento, tendo a percepção da influência que a nossa acção
individual ou colectiva poderá causar danos à escala local ou global, em que muita das vezes não
se tem poder de controlo sobre essas mesmas acções.
Não se esquecem acontecimentos, como o 11 de Setembro (2001), e 11 de Março (2004)
na Estação de Atocha em Madrid, que marcaram e iniciaram uma fase de terrorismo. Salientando
também os fenómenos ecológicos/naturais como o Tsunami na Indonésia (2004), o sismo no Haiti
(2010) e mais recentemente a erupção do vulcão da Islândia (2011). Tudo isto incentivou a
reestruturação das agendas globais tanto a nível político como social.
São fenómenos como estes que de alguma forma nos fazem ter uma percepção diferente
do mundo em que vivemos actualmente, um mundo repleto de ameaças e riscos muitas vezes
imperceptíveis mas “reais”.
BIBLIOGRAFIA
Areosa, João (2008), O risco no âmbito da teoria social, comunicação apresentada no VI
Congresso Português de Sociologia, Lisboa, Mundos Sociais: Saberes e Práticas;
Beck, Ulrich (2000), What is globalization?, Politic Press;
Beck, Ulrich, GIDDENS, Anthony., LASH, Scott. ([1994] 2000), Modernização Reflexiva: Política,
Tradição e Estética no Mundo Moderno, Volume XXXVI (Outono), Análise Social, pp. 10151020;
Castles, Stephen (2002), Estudar as transformações sociais, Revista Sociologia – Problemas e
Práticas, N.º 40, pp.123-148;
Featherstone, Mike (1989, Junho), Moderno e Pós-Moderno, Definições e interpretações
sociológicas, comunicação apresentada na Conferência do ISCTE, a convite da Revista
Sociologia – Problemas e Práticas e da Revista Crítica das Ciências Sociais, Lisboa,
Revista Sociologia – Problemas e Práticas, N.º 8, 1990, pp. 93-105;
Giddens, Anthony (2004), Sociologia, 4ª Edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian;
Giddens, Anthony (1996), As Consequências da Modernidade, 3ª Edição, Oeiras, Celta Editora;
161
Sociedade do Risco
Guivant, Julia, S. (1998), A Trajectória das Análises de Risco: da periferia ao centro da teoria
social, Revista Brasileira de Informações Bibliográficas ANPOCS, N.º 46, pp. 1-40;
Queirós, Margarida, VAZ, Teresa, PALMA, Pedro (2006), Uma reflexão a propósito do Risco,
Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pp. 1-23.
162
Boletim de Sociologia Militar
N.º 3 – 2012
PP. 163 a 176
O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011): dois conceitos em
conflito, devido às mudanças da economia política
Cândido Peixoto Fernandes*
RESUMO
Devido às transformações da economia política na derradeira década, ocorreu uma mudança radical de interpretação
socioeconómica de um conceito operativo fundamental, como é o “Emprego”. Esta mutação neo-clássica liberal,
implicou, em primeiro lugar, a eclosão de condições depressivas únicas e a mutação de perspectiva do Estado
Democrático, quanto ao fenómeno do Emprego. Assim, desta dupla transformação, negativa, segundo todos os dados
disponíveis, se gerou o seu abandono em simultâneo, por parte do Estado e do Mercado, levando ao aparecimento de
algo de novo e trágico em Portugal – e na Europa - que é o “Desemprego Estrutural”.
Palavras-chave: emprego, desemprego, estrutural, neo-clássico
ABSTRACT
Due to the transformations of political economy at the last decade, there has been a radical change in socio-economic
interpretation of a key operative concept, as is the "job". This mutation neo-classical liberal, implied, first, the emergence
of depressive conditions unique and changing perspective of the democratic state, as the phenomenon of job. Thus, this
double transformation, negative, according to all available data, its abandonment was generated simultaneously by the
state and the market, leading to the emergence of something new and tragic in Portugal - and Europe - which is
"Structural unemployment”.
Keywords: employment, unemployment, structural, neo-classical.
1. QUAL A DEFINIÇÃO ADEQUADA DE DESEMPREGO ESTRUTURAL?
O Desemprego Estrutural em Portugal caracteriza-se por ser um género de desemprego
massivo, involuntário e de longo prazo, que fundamenta o sistema capitalista neo-liberal, quanto à
política salarial e condições laborais, mesmo a nível de Estado, quanto mais, em termos de
Mercado. Já que passando a haver uma massa tão grande de trabalhadores disponível no
desemprego, sem qualquer possibilidade de sair dessa condição, estes se irão revelar dispostos a
aceitar um salário abaixo do SMN (Salário Mínimo Nacional), para poder trabalhar.
Então, o patronato pode impor o salário e as condições laborais e contratuais que
entender, com o fito, sempre, de obter maiores lucros e maior produtividade, com maiores cargas
horárias e menores condições de remuneração e para o trabalhador e menos direitos.
*
Licenciado em Comunicação Social, pela Universidade do Minho (Braga, Portugal) e jornalista de profissão.
E-mail: [email protected]
163
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Com a actual Depressão Económica, que eclodiu em 2007, o Desemprego Estrutural
tornou-se em Portugal dir-se-ia que necessário e "naturalizado", essencial à manutenção
económica do sistema capitalista neoliberal, embora já houvesse um nível alarmante de
desemprego conjuntural a partir do ano 2001, com cerca de 4,1%.
O Desemprego Estrutural caracteriza-se, assim, em traços gerais: 1º por ser um género de
desemprego de longa duração (mais de 2 anos), muito duradouro e estável; 2º por ser massivo e
sem solução à vista; 3º um desemprego involuntário, em que a grande maioria dos cidadãos
nessa condição não tem culpa, são alheios às suas causas e não desejam continuar
desempregados.
Os desempregados caíram nessa condição socioeconómica altamente desfavorável contra
vontade, já que viram os seus contratos de trabalho rescindidos pela entidade patronal, fosse por
limite de tempo contratual, desnecessidade ou por despedimento simples, individual e colectivo.
Com tão grande número de casos comprovados, logo se confirma esta característica de
“involuntário”, quanto ao recente Desemprego Estrutural. E este deve-se à enorme quantidade de
unidades de produção encerradas, por falência e bancarrota, durante o processo de
“desindustrialização” e de “destruição de emprego”, por via especulativa financeira e por decisão
administrativa.
O Governo português, dada a adopção de políticas neo-clássicas (ou ultraliberais),
abandonou deliberada e conscientemente, a anterior política de "Pleno Emprego", consagrada
constitucionalmente, para passar a confiar em exclusividade, no Mercado livre. Segundo
defendem os seus mentores, este Mercado irá alcançar um novo ponto de equilíbrio e superar a
crise a prazo, através dos seus mecanismos automáticos de auto-ajustamento (preços, salários e
taxas de juro), afastada a hipótese de intervenção do Estado, em nome do Bem Comum.
Nestas condições adversas, sem uma política de "Pleno Emprego", irá cristalizar-se o
trágico fenómeno do Desemprego Estrutural durante tempo indeterminado, na Sociedade e
Economia portuguesas, a que se deve seguir uma pauperização e precarização crescente das
condições de vida entre a População Activa.
1. DESEMPREGO ESTRUTURAL VERSUS PLENO EMPREGO
Uma das primeiras ilações a retirar da tentativa de redefinir o que seja o Desemprego
Estrutural, é que a oposição ideológica entre duas correntes, como sejam o neo-keyneseanismo e
o neo-classicismo, corresponde a dois conceitos divergentes de “Pleno Emprego”, logo à partida.
Mais do que em relação ao antigo conceito, o que o novo “Desemprego Estrutural” está a
confrontar, é o “Pleno Emprego”.
O “Pleno Emprego” era entendido como uma Economia que utilizava ao máximo a sua
capacidade tecnológica e todos os factores de produção - o trabalho, o capital e os inputs
164
O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)
(investimento, matéria-prima e bens de capital ou maquinaria). Este ponto de equilíbrio não
admitia mão-de-obra desempregada, acima dos 3% da População Activa. Devido à Depressão
Económica, essa situação de equilíbrio rompeu-se.
A interpretação sociológica do que se pode considerar legitimamente como “Desemprego
Estrutural” mudou e não no sentido progressivo, em termos científicos. O que deve alterar a
consciência social por veiculação ideológica da nova superstrutura.
Um problema tão grave deixou de ser considerado como prioritário, a nível de Estado. É,
aliás, o maior perigo subjacente, a nível teórico e na realidade concreta. Essa fracção da
População Activa deve ver-se “legalmente” abandonada – como se o “desemprego” fosse um
problema irresolúvel e não houvesse ciência para focar e atacar tal contrariedade, sequer.
Existe um grave problema de interpretação sobre o que está em causa, na actualidade,
quando vivemos no meio da mais grave fusão de crises desde a Grande Depressão de 1929. Este
problema deriva da falta de memória histórica e da ausência de uma boa interpretação política
sobre as duas grandes correntes ideológicas, o neo-classicismo liberal e o neo-keyneseanismo –
a que se pode unir a falta de um instrumento de análise tão elementar, como o “Desemprego”,
visto de forma correcta, dentro do âmbito da Sociologia.
Dado que a base teorética em causa se identificou como sendo neo-clássica, com o seu
maior fundamento na Escola Austríaca (von Mises e Hayek), nasceu uma confrontação política
muito profunda entre os ultraliberais e os ainda neo-keyneseanos. Cuja maior contribuição prática
foi a Época da Prosperidade que o Ocidente viveu a partir de 1945, o Welfare State - e a Escola
Institucional (cuja obra maior é a "Economia" de Paul Samuelson, uma síntese entre os princípios
neo-clássicos e keyneseanos, tendo aceite parte das teses do economista J. M. Keynes).
A separação entre estas duas grandes correntes continuou, havendo uma cisão entre
economistas e sociólogos, que viraram as costas à teoria contrária. Eles separaram-se,
entrincheirando-se em posições irreconciliáveis e ignorando os argumentos da outra parte.
Por esta razão, apesar dos neo-clássicos terem vencido de forma surpreendente no inicio
deste século, e construído uma nova economia de cariz regressivo e anti-democrático, os neokeyneseanos, como Krugman, Stiglitz e Roubini, apenas para citar os mais famosos - continuam a
seguir a regra de desclassificar totalmente o adversário, persistindo em dar a sua interpretação
dos factos e recusando-se a explicar o porquê da sua atitude.
A desclassificação académica dos neo-clássicos apoia-se no pressuposto que é uma
obviedade, desta corrente não funcionar. E essa condenação nasce da sua ética académica e
profissional e também, da profusão de dados negativos de cariz socioeconómicos, relacionados
com a Depressão actual e a anterior.
Eles condenam a teoria oponente e colocam-lhe o catálogo de "fuzzy economics".
Recusam-na e não a explicam: baseiam-se apenas no ensino e interpretação da realidade, a partir
dos seus próprios princípios. Se nasce ou não uma confusão deste confronto, não cabe aos
165
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
teóricos ir mais longe, pois eles estão cristalizados nas suas posições, confirmadas pela
experiência prática – a sociedade contemporânea. Romper com esta atitude é romper com a sua
ética.
O que se pode fazer, então, para tentar compreender este conflito teórico insanável? Uma
proposta seria agir como um advogado em tribunal. Ou seja, para entender um caso judiciário, e
se houver oportunidade disso, deve-se assumir alternadamente a defesa e a acusação do caso,
de modo a conhecer com profundidade as motivações, as causas e os preceitos jurídicos que
ambos utilizam para resolver o caso. Aquilo que a defesa e a acusação dizem. Apenas assim se
pode entender o que se passa na globalidade – e sociologicamente, também.
E o mesmo se aplica às duas escolas económicas em confronto - depois de conhecer as
causas que movem cada uma delas, deve-se confrontá-las, até poder formar uma opinião mais
consciente. Este esclarecimento ideológico e teórico é fundamental para criar conceitos operativos
na Sociologia. Um dos mais importantes, senão o mais importante na área – dado o enorme
impacto socioeconómico que tem e deriva, como um estilhaço, da Depressão, é o Desemprego
Estrutural. O flagelo que se está a gerar, a avolumar e a instalar na Sociedade Portuguesa devido
a causas políticas e não científicas.
2. AS MUDANÇAS OPERADAS NO CONCEITO DE “DESEMPREGO ESTRUTURAL”
A questão passou a ser a linha política de fundo, adoptada pelos países ditos "avançados",
é uma versão extrema do Liberalismo Económico Clássico. Pela chamada “terceirização”, a
Economia e o Estado continuam subjugados pelo capital financeiro.
O mais premente dos problemas actuais é, sem dúvida, desde o ponto de vista sociológico
- o Desemprego Estrutural. E para compreender a absoluta inacção dos actuais Governos e a
carência prolongada de qualquer programa, salvo medidas residuais, como manter os Centros de
Emprego abertos - ou a ligação com a Segurança Social, apenas para contabilizar os
trabalhadores ou no sentido de os ir eliminando, quando cancelados os subsídios de emprego, os
subsídios sociais, o RSI (Rendimento Social de Inserção), os abonos de família e outros
benefícios "cortados"?
Repete-se o padrão do novo Liberalismo Clássico como argumento central: apenas
revendo os seus standards atávicos, como o "desemprego friccional", se pode entender o que se
passa. Ou seja, um género de desemprego que resulta do desajustamento passageiro entre os
mecanismos automáticos de auto-ajustamento do mercado (preços, salários e taxa de juros).
Para os neo-liberais, o desemprego "não existe", em grande parte, pois é da exclusiva
competência dos agentes do Mercado - e dai não haver necessidade do Governo se mover nesse
sentido. O mercado irá resolver os atritos - dizem eles. Dai a necessidade de confirmar quais são
os conceitos operativos do liberalismo clássico agora reeditado, na área. Também não existe uma
166
O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)
crise global, é sempre sectorial e não global – e refere-se apenas ao sector da Divida. E daí
advêm, em consequência, o não reconhecimento oficial de que exista qualquer crise verdadeira,
sequer.
Alguns neo-clássicos, como Milton Friedman, tentaram moderar este conceito de
"desemprego friccional" dos clássicos, que ignorava este fenómeno - por ex. nos anos 20 do
passado século - quando os sindicatos ingleses lutavam para que se reconhecesse oficialmente o
estatuto de "desempregado".
Os monetaristas propuseram, por ex., a "taxa natural de desemprego" - a Economia tende,
a longo prazo, a criar tal taxa, ligado, entre outras coisas, a expectativas negativas em relação à
subida dos salários, que coligados à taxa de inflação, anulavam o lucro dos empresários - e por
conseguinte, iriam criar mais desemprego.
Mas, agora, nem estas explicações arrevesadas concedem: os ultraliberais vêm a público
esclarecer com naturalidade, instalada a sua ideologia a nível sistémico - que um aumento de
1,3% da Taxa de Desemprego (cerca de 50 mil novos desempregados) - se deve à descida do
Deficit Público em -3%. Estes ignoram tudo porque tais problemas não cabem no seu modelo:
especulação financeira, desemprego, crise...
A primeira é um negócio como os outros, o desemprego não existe ou de atrito e
passageiro, a Economia funciona sempre no "pleno emprego", (dentro das possibilidades do
momento, talvez?), a crise apenas pode ser parcial e não global, etc.
Os dados são contundentes: no 4º trimestre de 2011, a Taxa de Desemprego atingiu 14%
em Portugal e 10,4% na Zona Euro. A estruturação sociológica (entendida como criar uma
estrutura persistente), deste género de Desemprego é simples de comprovar, por simples ilação
percentual e se a sobrepomos ao factor tempo.
No 4º trimestre de 2001, 4,1% da População Activa permanecia no Desemprego – e
portanto, cerca de 200 mil pessoas podem, embora seja uma simplicidade estatística, estar nessa
condição há 12 anos. Enquanto, no 4º trimestre de 2005, o dobro dessa percentagem, 8%, que
corresponde a cerca de 400 mil pessoas, devem permanecer assim há 6 anos.
Depois, olhando-se para o aumento súbito do Desemprego, entre o 4º trimestre de 2010 e
o 4º trimestre de 2011, que corresponde a 2,9%, então pode-se suspeitar que a Taxa de
Desemprego oficial ainda esconde uma larga percentagem de desemprego “oculto” ou não
“declarado”.
Tudo isto indica, que se trata de um flagelo, uma estruturação social do Desemprego, que
atingirá mais de 1 milhão de portugueses, dentro de uma estimativa conservadora. E que esse
fenómeno tem as características de longa durabilidade e de ser involuntário – quando não
automático, dentro do sistema neo-clássico.
167
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
TAXA DE DESEMPREGO
Ano
Portugal
Zona Euro
2000
3,7%
8,4%
2001
4,1%
8,2%
2002
6,1%
8,7%
2003
6,5%
9,1%
2004
7,1%
9,3%
2005
8,0%
9,1%
2006
8,2%
8,2%
2007
7,8%
7,5%
2008
7,8%
8,0%
2009
10,1%
10,0%
2010
11.1%
10,1%
2011
14%
10,4%
A estruturação deste género de desemprego pode ser consciente e ter uma utilidade
política e até ser provocado – daí se falar em “destruição de emprego”, por parte do Mercado e do
Estado.
Nenhuma classificação sociológica do fenómeno do Desemprego actual descreve com
exactidão o fenómeno de desemprego massivo, insolúvel e involuntário verificado na última
década, salvo o Desemprego Estrutural, como se Portugal tivesse descido à condição de país
subdesenvolvido e ocorresse uma quebra e uma insuficiência de infra-estruturas industriais e
comerciais, que levariam à criação cumulativa de Desemprego. Ou seja, a sucessivas fases de
desocupação profissional não resolvidas.
O Desemprego Tecnológico tampouco se aplica, pois não ocorreu uma substituição de
bens de capital mais eficientes na Indústria, que levasse à especialização e o fim do trabalho
manual ou braçal (os programas tecnológicos não vieram substituir a maquinaria, e sim, a própria
Indústria…). O desemprego conjuntural ou cíclico prolongou-se além da crise oficial e vai mais
além da habitual ascendente da curva do ciclo económico.
O próprio Desemprego Friccional também parece ter desaparecido, absorvido pela grande
massa de desempregados, que se transformou num exército (pós) industrial de reserva,
168
O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)
classificado como excedentário. Este género de desemprego resulta da fricção dos mecanismos
automáticos de reajustamento económico – e daí a mudança de emprego ou actividade dos
indivíduos (é o menor dos problemas dentro do Desemprego).
Por último, o desemprego temporário, ligado à sazonalidade do trabalho, sobretudo, nos
sectores agrícolas, e à crescente precariedade laboral, ainda não foi alvo de demasiados estudos
por parte dos institutos de estatística, pelo que deve ocupar uma fracção muito significativa da
População Activa.
3. A DESMONTAGEM DA TEORIA CLÁSSICA LIBERAL POR KEYNES
Vivemos já em plena Economia Clássica. A grande maioria da população é estrangulada
pela nova "garra invisível" do ressuscitado modelo de Liberalismo Clássico. É uma tenebrosa
forma de organização social e económica, tão regressiva como o corporativismo, apossou-se do
nosso país e dos países ditos "avançados". Mais: este novo e retrógrado classicismo adquire tons
de "czarismo" e pretende reduzir a população portuguesa a servos da gleba.
A Depressão Económica fundiu-se num encadeamento de crises ininterruptas, sem apelo
nem agravo, aprofundadas por "políticas de austeridade" desajustadas, com consequências
socioeconómicas gravosas, que vêm em sequência ao Desemprego Estrutural: a pobreza
persistente, as carências alimentares, a anomia, a instabilidade social, a delinquência, o abandono
de idosos e crianças, entre tantas outras.
A melhor definição do que consiste a "Economia Clássica" encontra-se na "Teoria Geral",
de J.M. Keynes, no segundo capitulo, intitulado "Os Postulados da Economia Clássica". Nesta
obra, o economista inglês tentou com êxito, desmontar o antigo modelo liberal clássico, peça a
peça, sobretudo, o Desemprego. Este modelo prevaleceu durante o séc. XIX, até 1929, e ficou
comprometido pela gravíssima crise que se instalou em todo o mundo, após o Crash da Bolsa de
Valores de Nova Iorque.
Após a Grande Depressão, o keyneseanismo acabou por prevalecer, de uma forma mais
ou menos liberal, ainda, depois de servir de base teórica, maioritária pelo menos, ao Presidente
Roosevelt, nos EUA ou ao primeiro-ministro Clement Atlee, na Grã-Bretanha, no pós-guerra.
Muitos outros países prosperaram segundo esta teoria económica e científica, desde a socialdemocracia nórdica, até ao mais recente dos casos, o Brasil do PT, após o ano 2000.
Keynes, tal como qualquer economista do seu tempo, partia do estudo do classicismo
económico e portanto, não admira que se debruçasse sobre as eternas questões da teoria do
valor ou da produção e sobretudo, sobre o volume de recursos utilizados numa dada economia.
Esta quantidade de recursos era a preocupação fundamental dos clássicos. Com o seu livro,
Keynes acrescenta dois pontos novos - qual "a aplicação efectiva" destes recursos e as
"flutuações do emprego", tema este, que hoje, tal como nos anos trinta, é de capital importância.
169
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Na área do Emprego, a teoria clássica arrumava-o para um canto, com uma simplicidade
"sublime" e sem discussão, com duas leis:
"i. O salário é igual ao produto marginal do trabalho". Ou por outra, "o salário de um
trabalhador é igual ao valor que estaria perdido, se o emprego fosse reduzido numa unidade" após a dedução de custos da redução. Mas se a concorrência dos mercados fosse imperfeita,
esta "igualdade pode ser perturbada".
E depois,
"ii. A utilidade do salário, quando um determinado volume de trabalho foi aplicado, é igual à
não-utilidade (desutility) marginal da quantidade de emprego". Então, o salário real do trabalhador
assalariado é apenas suficiente para a sua subsistência, estando sujeito à qualificação da unidade
de trabalho - o indivíduo - pelo que a unidade das unidades empregáveis fica sujeita "às
imperfeições da concorrência". Os indivíduos podem suspender o trabalho, "em vez de aceitar um
salário que tinha para eles um valor utilitário abaixo de um determinado mínimo".
A teoria Clássica apenas admite, nestas condições, o "desemprego friccional". O Pleno
Emprego clássico não é atingido por razões colaterais e alheias ao mercado, e gera-se
desemprego devido "devido a uma temporária falta de equilíbrio entre as quantidades relativas de
recursos especializados, como resultado de erro de cálculo ou procura intermitente. Ou ao espaço
de tempo na sequência de alterações imprevistas, ou ao facto da passagem de um emprego para
outro, não pôde ser concretizada sem um certo atraso". Então, segundo o classicismo, deverá
ficar de fora sempre uma parte dos recursos humanos, pela natureza das coisas.
Aliás, para estes, o que existe é o "desemprego voluntário" por causa de uma "recusa ou
impossibilidade de uma unidade de trabalho", devido às leis laborais, por exemplo, a contratação
colectiva, de aceitar o salário conveniente à sua "produtividade marginal", quanto ao valor do
produto. Como nunca admitem o "desemprego involuntário", para os Clássicos, tanto o
"desemprego friccional" como o "desemprego voluntário" estão abrangidos na mesma categoria.
Dentro destes parâmetros, o volume de recursos utilizados é fixado pelas duas leis. A
primeira dá-nos o quadro da procura de emprego e a segunda lei, a maneira de a satisfazer.
Então, a quantidade de trabalho é fixada no ponto onde se equilibram as utilidades:
Produto marginal/ Emprego marginal
Daqui, que os Clássicos apenas previssem um crescimento do emprego, quando, citando:
"(a) A melhoria na organização ou na previdência diminuem o desemprego “friccional";
(b) Uma diminuição na não-utilidade marginal do trabalho, expressa pelo salário real, para
o qual o trabalho restante está disponível, de modo a diminuir o desemprego “voluntário";
(c) Um aumento na produtividade física marginal do trabalho nas indústrias de bens de
consumo;
170
O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)
(d) O aumento do preço de bens de não-consumo, em comparação com os bens de
consumo, o preço dos bens de consumo, associada a uma mudança nas despesas de bens de
não consumo - vistos como simples Mercadorias".
Esta simplicidade advém, aliás, da única teoria de emprego existente entre os Clássicos, já
que se tratava de um tema muito secundário para eles.
Os Clássicos partem do princípio que é um facto indiscutível, a não-existência de trabalho
suficiente para toda a população de um país, com base num dado salário. Pois a população
gostaria, não apenas, de ter o trabalho que sempre desejasse, mas também ganhando aquilo que
exigissem os sindicatos, por ex.
A escola Clássica argumenta, baseada na segunda lei, que "que, embora haja procura de
trabalho existente pelo salário nominal (ou salário em dinheiro), apenas pode ser preenchida antes
que todos os que estão dispostos a trabalhar por esse salário, sejam empregados". E que, a
existir, este ponto de equilíbrio se deve a "um acordo tácito", entre os trabalhadores, para não
trabalharem por menos deste salário. De outro, modo os trabalhadores apenas podem esperar
mais Emprego, se aceitarem "uma redução de salários" (!). Caso contrário, caem na situação de
"desemprego voluntário".
Keynes denuncia a falácia dos Clássicos, pois acontece que "dentro de uma determinada
procura de emprego, haja uma quantidade de dinheiro prevista para o salário mínimo e não para
um salário mínimo real". Este factor da existência legal de um salário mínimo nacional veio a
contribuir para equilibrar o problema produção-emprego-salários, já que "se a oferta de trabalho
não é uma função dos salários reais como única variável, o seu argumento decompõe-se
totalmente e deixa pendente a questão que o emprego real será sempre indeterminado".
Os Clássicos trabalhavam segundo um modelo de Concorrência Perfeita, considerado um
caso especial, com óbvias e muito mensuráveis flutuações de emprego no caso geral. O outro
factor que pode deslocar a curva da oferta de emprego é a do preço dos bens de consumo.
171
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
Quando ocorre um aumento no preço dos bens de consumo, os trabalhadores tem de
aguentar uma "redução dos salários nominais", mas não abandonam logo o emprego, como
propõe os Clássicos. Pois acreditavam "que seria ilógico que o trabalho resistisse a uma redução
dos salários nominais, mas não resistisse a uma redução dos salários reais". Keynes concluía, no
tempo da Grande Depressão, que a enorme taxa de Desemprego, que atingiu os 25 milhões de
pessoas nos EUA, não se devia a tais causas clássicas. Mas, sim, a outras, bem diferentes.
Daí uma das suas asserções: "São frequentes grandes variações no volume de emprego,
sem qualquer alteração aparente, quer nas exigências mínimas reais da força de trabalho ou da
sua produtividade".
Aqui, o economista inglês questiona a relação entre as mudanças reais no dinheiro e as
mudanças nos salários reais. Ou seja, entre salário nominal e salário real. E ele verifica que estes
vão quase sempre "no sentido oposto". Por uma simples razão cambial: quando a divisa sobe, os
salários reais caem e quando a divisa desce, os salários reais crescem.
Mais: pode acontecer que "a força de trabalho esteja mais disposta a aceitar cortes
salariais, quando o emprego está a cair". Mas os salários reais irão aumentar depois, devido ao
investimento feito em Bem de Capital, devido ao retorno que se ocasiona, mesmo se a produção
diminui. "Para obter mais trabalho do que é actualmente utilizado, geralmente, o capital fica
disponível para pagar salários, embora o preço dos bens de consumo esteja a aumentar e,
consequentemente, o salário real entre em queda".
Daqui se deduz que "o salário equivalente à mercadoria em divisa existente", não seja uma
indicação precisa da "não-utilidade marginal do trabalho". E a segunda lei fique sem validade.
172
O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)
"Utiliza-se o salário nominal para determinar o salário real". E a partir daqui, a teoria
Clássica assume que a força de trabalho deve estar sempre disposta a aceitar uma redução do
salário nominal e por conseguinte, do salário real. Pelo que "a força de trabalho está em
condições de decidir o salário real pelo qual trabalha, mas não a quantidade de emprego criado a
esse nível salarial". E que é a negociação entre os empresários e os trabalhadores, o que
determina o salário real.
Aliás, a partir do princípio da livre concorrência entre os empregadores e sem "nenhuma
combinação restritiva entre os trabalhadores", estes podem combinar o seu salário real - conforme
a "não-utilidade marginal do volume de emprego oferecido pelos empregadores".
Os Clássicos acreditavam também que estas leis não se alteravam, fossem quais fossem
as condições do mercado, como legislação diferente, abertura ou fecho do sistema económico, as
condições bancárias de crédito, etc. E que nem sempre a redução nominal dos salários implicava
uma redução real dos mesmos.
Segundo Keynes, o nível geral dos salários reais não podia ser obtido pela negociação
entre trabalhadores e empregadores. Os Clássicos entravam em contradição com a sua teoria,
por uma série de motivos:
i. Os preços são regulados pelo custo marginal, calculado em termos de capital;
ii. Os salários nominais apoiam primeiro no custo marginal.
Então, seria de supor que se o salário mudasse, os preços iriam mudar na mesma
proporção - deixando o salário real e o nível de Desemprego na mesma. "Então, qualquer
pequeno ganho ou perda de emprego não afectariam a despesa ou o lucro, e outros elementos de
custo marginal permaneceriam inalterados".
Mas não, os Clássicos acreditavam que os preços dependiam do capital e que a força de
trabalho determina o salário real. E que o Pleno Emprego se pode definir pela seguinte lei: a
quantidade máxima de emprego que é compatível com determinado salário real.
Para Keynes, a segunda lei da teoria Clássica cai por terra pelas objecções quanto ao
comportamento real da força de trabalho e o pressuposto que o salário real é directamente
determinado pela negociação salarial.
Primeiro, porque uma queda dos salários reais devido ao aumento dos preços, mesmo
mantendo os salários nominais iguais, não leva à "provisão de mão-de-obra", antes pelo contrário.
E que "Não existe, portanto, nenhum expediente pelo qual a força de trabalho, como um todo,
possa calcular o seu salário real, para um valor dado pela tabela e fazendo, em simultâneo,
negócios com os empresários". Essa era a tese keyneseana.
Keynes tem um objectivo diferente dos clássicos: ele pretende resistir à baixa dos salários
nominais ou reais como método de balançar a economia. Mas não o pretende “resistir como regra”
e antes, optando por novas regras, já que constata que se os salários em geral não descem, isso
não vai afectar em nada o Pleno Emprego (o emprego total). Ao contrário do que afirmam os
173
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
clássicos. Portanto, mesmo que ocorresse “uma resistência organizada”, não haveria qualquer
descida do Pleno Emprego.
Este “branqueamento dos salários” afecta, isso sim, “a distribuição do salário real
agregado, entre os diferentes grupos de trabalho, e não o seu montante médio por unidade de
emprego”. Então, “O nível geral dos salários reais depende das outras forças do sistema
económico”.
Para Keynes, nestas condições particulares, os clássicos deixavam o factor “sorte” aos
trabalhadores, na sua busca de um emprego com melhores salários ou mesmo, em encontrar um
simples emprego. E isto, devido à regra imutável da “não-utilidade marginal do emprego”, que
tudo estipula. Os próprios sindicatos, ao não calcularem o que tal significa em termos de “custo de
vida”, não iriam oferecer demasiada resistência a esta.
Esta norma implica que, em condições de livre mercado, os empresários não tem de se
preocupar com o Emprego e antes com o lucro. A Escola Clássica descrê da utilização plena dos
recursos disponíveis e podem por de parte muitos negócios, se estes não lhes garantirem os
benefícios que pretendem. Ou se os trabalhadores exigirem salários que os empresários não
estão dispostos a pagar. E ai surgiria o “desemprego friccional”, também.
Keynes rompe com a teoria clássica, ao propor esta categoria de desemprego, o
desemprego “involuntário”. A sua nova definição é: “Os homens caem no desemprego involuntário
se, no caso de um pequeno aumento no preço dos bens de consumo em relação ao salário
nominal, tanto a oferta agregada de força de trabalho disposta a trabalhar pelo salário corrente ou
combinado e da sua oferta agregada, com o mesmo salário, seria maior do que o volume de
emprego existente”.
Os clássicos continuam a insistir na sua fórmula do “salário real e a não-utilidade marginal
do emprego” da segunda lei. Não passa de um “atrito” temporário e passageiro – e o “desemprego
involuntário” não existe, quanto a eles. Podem ocorrer surtos de desemprego, por efeitos
colaterais, como a falta de “trabalhadores especializados” ou a pressão de “trabalhadores
especializados”, ao não aceitar determinado salário pela sua “produtividade marginal”.
Para Keynes, então “... se a "Teoria Clássica" só é aplicável ao caso de Pleno Emprego, é
falacioso aplicá-la aos problemas de desemprego "involuntário" – se é que existe tal coisa (…)”.
Para ele os teóricos clássicos “parecem geómetras euclidianos num mundo não-euclidiano que,
descobrem pela experiência, numa linha recta, outra linha aparentemente paralela; e que muitas
vezes, elas se encontram, traçam linhas de repreensão para não manter nessa linha as infelizes
colisões que vão ocorrendo... No entanto, na verdade, não há solução, a não ser conjugar o
axioma das linhas paralelas e elaborar uma geometria não-euclidiana”.
Não obstante o facto concreto de haver uma óbvia correlação entre “organização,
equipamento e técnica, os salários e o volume de produção (e consequentemente, o emprego” e
174
O Desemprego Estrutural em Portugal (2001-2011)
por norma, “um aumento do emprego só pode ocorrer acompanhado de um declínio na taxa de
salários reais”.
Então, para os clássicos, “ se aumenta o emprego, então, no curto prazo, a recompensa
por unidade de trabalho em termos de salários e bens deve, em geral, entrar em declínio e
aumentar os lucros”. Pois, “o produto marginal do lucro (que regula os salários reais) diminui
necessariamente o emprego, e cresce”. E segundo esta perspectiva clássica, qualquer método de
aumentar o emprego deve levar, em simultâneo, a uma “diminuição do produto marginal” – e que
então, a taxa de salário deve ser medido em termos de produto e lucro.
Aqui surgem questões anexas, não apenas quanto ao lucro, mas também ao consumo, por
parte dos trabalhadores – que no caso dos clássicos, se devia manter estritamente ao nível da
subsistência. E quanto ao lucro, este cresceria intocado. E segundo a acusação de Keynes,
“impõe-se a vontade por parte dos trabalhadores de aceitar menores salários nominais”.
Era norma clássica inatacável, que “a oferta cria a sua própria procura” no sentido “que
todos custos de produção devem necessariamente ser aplicados, no total, directa ou
indirectamente, na hora de comprar as matérias-primas.” Quanto ao rendimento que os
trabalhadores “consomem ou poupam, como resultado da sua produtividade” é apenas, “o output
em espécie dessa actividade”. Pois “A totalidade dos rendimentos de um homem é gasta na
compra de serviços e de mercadorias”, segundo Marshall. E do lado do trabalhador, não cabe a
“poupança”, portanto, a não ser na “produção de capital”. Mais capital.
E então surge “o pressuposto da igualdade entre a quantidade da procura e da produção
como um todo e a sua quantidade de oferta” que é um dos axiomas máximos da Teoria Clássica,
para o economista inglês. E que funcionam como as linhas paralelas euclidianas. Nesta base
teórica tão dogmática, se fundamenta a visão clássica da “poupança privada e nacional”, da “taxa
de juros” tradicional, “a teoria clássica do desemprego”, a sua “teoria quantitativa do dinheiro”, as
vantagens do laissez-faire quanto ao comércio exterior, etc. Tudo pressupostos que Keynes vai
desmontar na sua “Teoria Geral”, qualificando-os como “errados”.
Esta situação tão estranha sucedeu por razões exógenas? Ou o novo modelo Liberal
Clássico funcionou como sempre, ao longo do tempo? Tudo leva a crer que S=f(i) se converteu
numa falácia dentro da Economia Clássica, apesar de não o ser no quadro keyneseano. Portanto,
a questão reside no Investimento (I).)
Assim, o economista inglês aborda a Clássica de uma perspectiva nova, democrática e
progressista, contestando que:
“(1) Que o salário real é igual à não-utilidade marginal do trabalho existente;
(2) Que não existe tal coisa como desemprego "involuntário", no sentido estrito;
(3) Que a oferta cria sua própria procura, no sentido que a quantidade de procura
agregada é igual à quantidade da oferta agregada, para todos os níveis de produção e emprego.”
E quando cai uma destas leis, todas as outras são invalidadas.
175
Boletim de Sociologia Militar n.º 3
5. A VISÃO MARXISTA DO DESEMPREGO ESTRUTURAL
Por último, last but not least, aparece Marx, com uma “lei capitalista do desemprego”. O
desemprego entre os trabalhadores é consequência directa da propriedade privada dos meios de
produção e segundo ele, o processo de acumulação do capital na sociedade burguesa leva
automaticamente a que parte dos trabalhadores se tornem supérfluos. E assim, tem de ser
eliminada da produção e condenada ao desemprego e a carestia de via.
Na linguagem marxista, esta “superpopulação relativa” assume várias classificações, como
“flutuante”, que perde o trabalho durante algum tempo, até que haja novos incrementos da
produção, sem que esta a absorva por completo; “latente”, constituída pelos camponeses, a que o
progresso técnico vêm reduzir a exigência de mão-de-obra; “estagnada”, constituída por aqueles
que perderam definitivamente o emprego e se ocupam em trabalho irregular ou ocasional. Esta
visão marxista era lúcida, se olharmos para as tristemente célebres teorias demográficas
malthusianas.
BIBLIOGRAFIA
Donário, A., 2003, Economia Politica, Universidade Autónoma de Lisboa, Notas pessoais de
António
Filipe
Garcez
José,
recuperado
em
Maio,
2012,
de
http://cogitoergosun.no.sapo.pt/ecopol2sem.pdf.
Keynes, J., M., 2002, Os Postulados da Economia Clássica in M.I.A, The General Theory of
Employment, Interest and Money, (Rev.Ed.).Recuperado em Maio, 2012, de marxists.org
2002.
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Boletim 3