O amor da tradução1
Marco Antonio Coutinho Jorge
Não é possível falar sobre qualquer assunto, cada sujeito fala daquilo que o acossa e,
de certa forma, o sintomatiza (o que por si só serviria para dar um basta em certos
ecletismos). É o que vem dizer Freud desde o início, ao introduzir o conceito de
sobredeterminação a partir da experiência psicanalítica, através do qual se infere que não há
nenhuma liberdade de associação: basta falar, não importa o que, para se falar de si mesmo.
É dessa perspectiva de simbolização do próprio trajeto teórico que parte Potiguara M.
da Silveira Jr., editor e tradutor de livros de psicanálise há muitos anos, ao escolher a tradução
como tema de sua dissertação de mestrado em comunicação na Escola de Comunicação da
UFRJ. Se, por um lado, este tema tem despertado grande interesse não só no Brasil como em
todo o mundo, por outro, é preciso ressaltar o fato de que pela primeira vez, ele é abordado a
partir do referencial teórico psicanalítico. Novidade que se justifica de saída pela tese lacaniana
fundamental do Discurso de Roma: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Tese
que, desde então, não deixa de promover seus efeitos nos mais diversos campos do saber.
O autor percorre, inicialmente, os tradutores/teóricos da tradução mais expressivos: no
Brasil, P. Rónai, os irmãos Campos, D. Pignatari, G. Rosa e seu tradutor italiano E. Bizzarri, G.
Figueiredo, G. Campos e E. Vasconcelos, entre outros. No estrangeiro, G. Mounin e J.C.
Carford, principalmente. Em todos, detecta os modos próprios de confronto com as
dificuldades que a tradução oferece, as quais apontam, em última análise, para a
impossibilidade que aí vigora. Essa impossibilidade, que não deixa de ser nomeada enquanto
tal por estes autores, é aquela mesma que no discurso psicanalítico surge enquanto lei
fundamental que rege o ser falante: a relação sexual é impossível. Daí as metáforas utilizadas
por estes autores serem freqüentemente da ordem do sexual – um exemplo eloqüente: “The
translation is one language making love to another” (Keith Bosley, tradutor inglês de
Mallarmé).
Em seguida, a partir da abordagem que faz M.D. Magno do kitsch como uma má
tradução, Silveira Jr. retira subsídios que estariam na base de uma contribuição do discurso
psicanalítico à teoria da tradução: “A tradução é impossível. A tentativa de tradução passa a
ser, então, uma relação amorosa: não há relação sexual entre as línguas, é impossível, não se
pode fazer uma cópula lingüística. Existe relação amorosa como tentativa de alteração.” (M.D.
Magno). É o amor, e o que ele comporta de alteridade, de alteração, que vem suprir a
inexistência da relação sexual. Se não há cópula entre as línguas, do mesmo modo na
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Resenha de A tradução – dados para uma abordagem psicanalítica, de Potiguara Mendes da Silveira Jr.. Rio de
Janeiro, Aoutra Editora, 80 páginas, 1983. Publicada originalmente em “Livros”.
chamada relação analítica trata-se de destacar a alteridade radical que é constitutiva do
sujeito do inconsciente, o que Lacan chamou de alíngua, termo que equivoca com a língua.
Então, a questão que se coloca para o autor é: qual a diferença entre traduzir o sentido
e traduzir a significação? Ele responde dizendo que o sentido “não se confunde com orientação
ou direção” e traduzir o sentido importa “no que a ele é barrada a completude e no que se
produz a denúncia da existência radical da barra”. A barra que separa irrevogavelmente o
significante do significado, a barra que abre o campo do Outro – mais, ainda, o Amor.
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