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VALORIZAÇÃO DA ESCRITURA PÚBLICA
João Teodoro da Silva
6º Tabelião de Notas de Belo Horizonte – MG
Especialista em Direito Notarial e Registral
[Memória escrita para a palestra proferida no III SEMINÁRIO
LUSO-BRASILEIRO DE DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO, realizado a 16 e 17 de outubro de 2008, na Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, discorrendo sobre INSTRUMENTO PÚBLICO x
INSTRUMENTO PARTICULAR – VANTAGENS, DESVANTAGENS,
COEXISTÊNCIA – REFLEXO NA SEGURANÇA JURÍDICA, na temáti-
ca da CONTRATAÇÃO DOS NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS E SEUS REFLEXOS NA SEGURANÇA JURÍDICA]
SUMÁRIO
1. Introdução
2. Importância da escritura pública
3. Vantagens da escritura pública e desvantagens do instrumento particular
4. Coexistência entre escritura pública e instrumento particular
5. Menosprezo à escritura pública – um mal a combater
6. Conclusão: enfim, uma luz ao fim do túnel
1. Introdução
No rol dos instrumentos públicos, para o interesse desta exposição, sobressaem
os instrumentos públicos notariais. Os atos notariais ou atos do ofício de tabelião, segundo o linguajar tradicional brasileiro, se materializam mediante instrumentos públicos
notariais. E, numa visão esquemática, podem ser eles classificados assim:
1.1 – INSTRUMENTOS NOTARIAIS ORIGINÁRIOS
1.1. 1 – escritura pública, incluindo a de testamento e a de procuração;
1.1.2 – ata notarial, incluindo o auto de aprovação de testamento cerrado (arts.
1.868 e 1.869 CCiv/2002, que correspondem ao art. 1.638, IV a XI,
CCiv/1916), e a consequente anotação sucinta dessa ocorrência em livro
de notas (art. 1.874 CCiv/2002, que corresponde ao art. 1.643 CCiv/1916).
1.2 – INSTRUMENTOS NOTARIAIS DERIVADOS, que reúnem a autenticação de documento
avulso mediante
1.2.1 – reconhecimento de firma;
1.2.2 – pública-forma (atualmente conhecida como autenticação de cópia).
1.3 – ATOS COMPLEMENTARES:
1.3.1 – traslado;
1.3.2 – certidão.
2. Importância da escritura pública
A classificação aqui apresentada insere a escritura pública – como não poderia
deixar de ser – entre as espécies principais do gênero dos instrumentos públicos notariais. Ressalva-se, entretanto, que, ao situá-la nesse rol ao lado da ata notarial, não há
intenção de as nivelar em importância, no mundo jurídico. Impõe-se salientar os méritos
próprios da escritura pública e reconhecer a sua superioridade, à consideração de ser ela
que qualifica o chamado notariado de tipo latino, por sua multissecular excelência já sedimentada. Pode-se mesmo asseverar que o prestígio dele se acha indissoluvelmente ligado à respeitabilidade dela e vice-versa.
Trata-se, pois, a escritura pública de documento que vale por si mesmo, ao conter
materialização de um negócio jurídico. Ao passo que a ata notarial, em regra, se restringe
à narrativa que materializa a existência de um fato jurídico.
Pela escritura pública, portanto, são formalizados os negócios jurídicos, inclusive
os de declaração unilateral de vontade. Então, no concernente à segurança jurídica dos
negócios imobiliários, é à escritura pública que cabe dar valor relevante em confronto com
o instrumento particular.
Acontece que a escritura pública não vem merecendo a devida atenção do legislador nem dos juristas brasileiros. O Código Civil de 1916 limitou-se a reconhecer-lhe a
importância (que vinha da tradição jurídica moldada no direito português oriundo das Or-
denações) e a dispor que a sua forma é essencial (forma dat esse rei) em determinados
atos jurídicos negociais (art. 134), entre eles os “contratos constitutivos ou translativos de
direitos reais sobre imóveis”.
Até 6 de novembro de 1981, quando foi editada a Lei n° 6.952, que inseriu parágrafos ao art. 134 do código de 1916 com a enumeração dos requisitos da escritura pública, o tabelionato de notas brasileiro, na formulação dela, reportava-se ao direito lusitano
do início do século XVII, pois o direito escrito daqui perdurava omisso a respeito. Assim,
eram as praxes, os usos e os costumes advindos das Ordenações Filipinas de 1603, última compilação legislativa do arcaico direito português que, até os fins do século XX, orientavam fundamentalmente o tabelião brasileiro na elaboração da escritura pública.
A proclamação da independência, que desligou o Brasil politicamente de Portugal
em 1822, não foi seguida do erguimento de um sistema de direito positivo para reger a
vida do novo País. Ao contrário, uma lei de 20 de outubro de 1823, aprovada pela primeira
Assembleia Geral Constituinte do Império do Brasil e sancionada pelo Imperador Pedro I,
determinava permanecer em vigor a legislação lusa, enquanto não se organizasse novo
código ou não fosse ela especialmente alterada.
Em trabalho preparatório à elaboração do primeiro Código Civil brasileiro, o eminente civilista TEIXEIRA DE FREITAS produziu, nos meados do século XIX, a sua famosa
Consolidação das Leis Civis e nela abrigou os requisitos da escritura constantes do título
LXXVIII do livro I das Ordenações.
Já no seu posterior e modelar Esboço do Código Civil, o mesmo jurista tratou de
equacionar a matéria dentro da sistemática por ele adotada. O caso se deu que o esboço
não vingou, por lamentáveis injunções. Prestou, porém, notável serviço à evolução do
direito privado e foi servir de modelo à obra de VELEZ SARSFIELD, autor do projeto que se
tornou o Código Civil argentino de 1869.
Em 1898, o governo brasileiro, já republicano, fez expedir a Consolidação das
Leis Civis sobre a Justiça Federal, nela tendo sido repetidas as regras vigentes, oriundas
das Ordenações, sobre os requisitos da escritura pública.
Sobreveio o Código Civil de 1916, elaborado sob sistemática diversa, deixando à
margem a matéria em referência, talvez a pretexto de que coubesse melhor em legislação
especial, a exemplo da lei notarial francesa de 1803, da lei do notariado espanhol de 1862
e da lei de ordenamento do notariado italiano de 1913.
Envelhecendo o decantado código de 1916, aliás já nascido inatual pela sua demorada concepção, cogitou-se de reformá-lo durante mais de meio século, sem êxito. O
último projeto para um novo código, publicado no Diário do Congresso Nacional a 13 de
junho de 1975, trouxe, entre outras novidades, a de inserir preceituação que afirmava a
importância e estabelecia os requisitos gerais da escritura pública (art. 213). Mas o relevante projeto ficou a arrastar-se, em seu trâmite na Câmara dos Deputados e no Senado
Federal, durante quase trinta anos, à falta da merecida atenção dos legisladores.
Então, nos primeiros anos do longo interregno, em feliz iniciativa, foi apresentado
projeto que, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República, transformou-se na Lei nº 6.952, de 6 de novembro de 1981, mediante a qual se introduziram, em parágrafos ao art. 134 do código de 1916, as disposições já constantes do
projeto de reforma do Código Civil acerca da importância da escritura pública e dos seus
requisitos gerais, todas mantidas, mais de duas décadas após, com algumas achegas, no
art. 215 do Código Civil em vigor desde 10 de janeiro de 2003.
Foi só a partir desse aperfeiçoamento legislativo que o Código Civil brasileiro abrigou e reconheceu, em termos expressivos, o primado da fé pública qualificadora da função notarial, expressou a plena força probante da escritura pública e enumerou os seus
requisitos normais, com o cuidado de ressalvar outros constantes de legislação especial.
Todavia, a escritura pública continua desprestigiada, pois, na prática, sua utilização vai
ficando cada vez mais reduzida, ante a expansão do instrumento particular.
3. Vantagens da escritura pública e desvantagens do instrumento particular
A disseminação do instrumento particular em menoscabo à escritura pública, sob
o manto de leis extravagantes que o prestigiam e, em consequência, a desqualificam, é
um mal à segurança jurídica a exigir ferrenho combate.
Em setembro de 1974, o emérito notário CARLOS LUIZ POISL, de Novo Hamburgo,
Rio Grande do Sul, apresentou, no 3º Congresso Notarial Brasileiro, realizado em Recife,
Pernambuco, um precioso opúsculo de impressão gráfica dele próprio, seu autor, dedicado ao tema Das vantagens do instrumento público notarial sobre o instrumento particular,
depois publicado na Revista Notarial Brasileira – maio-agosto 1974/1976, ano II, nº 2.
Mais recentemente, POISL trouxe a lume algumas de suas lições de notário sob o título Em
testemunho da verdade, pequena obra-prima na qual um dos temas (2006:41-44) foi o
resumo do conteúdo do opúsculo antes citado. A esses textos me reporto neste terceiro
tópico, resenhando-os com mínimas variações e adequações, atento em não prejudicar a
excelência didática dos escritos.
Atributos primordiais
3.1 – Quanto à autoria
O instrumento produzido pelo tabelião de notas é uma das espécies de documento de cunho oficial e, por força da lei, tem presunção de veracidade, ou seja, faz prova não
só de sua formação, mas também dos fatos que o tabelião declarar que ocorreram em sua
presença (Código de Processo Civil, art. 364). É, pois, verdadeiro enquanto não for decretada, por sentença judicial, a sua falsidade.
A escritura pública, especificamente, tem autor declarado, o tabelião, responsável
pelo que nela se contém, inclusive pelos erros.
Já o instrumento particular carece da presunção de ser verdadeiro e deixa de produzir efeito não só quando decretada a sua falsidade, mas também pela simples contestação da assinatura nele aposta (CPC, art. 388, I). Para convalidá-lo, faz-se necessário o
reconhecimento judicial da autenticidade, a depender de prova a cargo de quem tiver produzido o documento (CPC, art. 389, II). São três as hipóteses em que se reputa autêntico
o instrumento particular:
a) se assinado perante o tabelião, este reconhecer a firma, declarando ter sido aposta em
sua presença (CPC, art. 369);
b) se a parte, contra quem tiver sido produzido, admitir a assinatura e a veracidade do
contexto (CPC, art. 372);
c) se vier a ficar comprovada a veracidade da assinatura contestada (CPC, art. 388, I, e
art. 389, II).
Ainda assim, o valor do instrumento particular é relativo: prova a declaração de ciência relativa ao fato, mas não o fato declarado (CPC, art. 368, §).
Então, o instrumento particular, à falta de autoria declarada, não tem responsável.
3.2 – Quanto à fé pública
Se o documento público em geral merece fé por força de lei, o que é produzido
por tabelião goza de fé num sentido muito mais amplo. A escritura notarial é dotada de
uma fé pública personalizada, ostentada na expressão dou fé.
Além dos tabeliães, os funcionários públicos em geral podem produzir documentos com fé pública. Mas a fé que os funcionários imprimem aos documentos, eles a têm
como qualidade secundária inserida nas suas funções principais. No que tange ao tabelião, a fé pública não é uma de suas qualidades secundárias, mas sim a essência mesma
de sua função.
Citações de CARLOS LUIZ POISL:
“A função notarial é, em sua essência e conteúdo fundamental, a função de dar fé”
(VILALBAWELSCH).
“Só o notário tem como atributo primordial e como poderio pessoal e configurante
a fé pública” (CARLOS NICOLÁS GATTARI).
“As atuações judiciais, administrativas e registrais, e também as notariais, fazem
fé, o que é muito diferente de dar fé, próprio do notário. E por que devem fazer fé? Porque
a comunidade precisa dessa autoridade para cobrir as necessidades de certeza e segurança. Isto é, os três primeiros ramos (judicial, administrativo e registral) têm a fé pública e
a autenticação como consequência , como um derivado necessário, como algo que advém
de seu próprio caráter público. Em resumo, as possuem como um epifenômeno. Ao invés
disso, a fé pública e a autenticação são o fenômeno notarial em sua própria essência”.
(CARLOS NICOLÁS GATTARI, in “El Objeto da la Ciencia del Derecho Notarial”, Depalma,
1969).
“A escritura pública é documento autêntico por natureza, porque lavrado por tabelião”. “A escritura pública tem fidedignidade, inerente à fé pública do notário” (W ASHINGTON
DE BARROS MONTEIRO, in “Curso de Direito Civil”, ed. Saraiva, 1º vol., págs. 156 e 164;
[....]).
Outras vantagens diferenciadoras
3.3 – Quanto ao lugar
A escritura pública dá certeza do lugar de sua realização, necessariamente no território de competência do tabelião de notas.
Já o instrumento particular pode omitir o local ou indicar outro.
3.4 – Quanto à data
A escritura pública dá certeza da data de sua realização. Já o instrumento particular pode omitir a data, ser pré-datado ou pós-datado. A lei processual assinala essa precariedade, ao estatuir que ele se considera datado, em relação a terceiros (CPC, art. 370):
a) no dia de seu registro;
b) desde a morte de algum dos signatários;
c) a partir de impossibilidade física sobrevinda a qualquer dos signatários;
d) a partir da sua apresentação em repartição pública;
e) a partir do ato ou fato que estabeleça a anterioridade certa de sua formação.
3.5 – Quanto à identidade das pessoas
A escritura pública dá certeza, pela fé de conhecimento do tabelião, de que é a
própria e não outra a pessoa que se lhe apresenta.
Já a identidade do signatário, no instrumento particular, sendo questionada, depende de prova a cargo de quem tiver produzido o documento, como visto sob nº 1 a respeito de assinatura falsa.
3.6 – Quanto à capacidade das pessoas
A escritura pública dá certeza quanto à capacidade jurídica de quem dela participa, por ser inerente à função notarial essa prévia verificação.
Já no instrumento particular, ninguém responde pela capacidade de quem o assina, a ser aferida aleatoriamente.
3.7 – Quanto à personalização jurídica da parte
A escritura pública dá certeza quanto à existência legal da parte que é pessoa jurídica.
Já no instrumento particular, a parte pode ser uma pessoa jurídica fantasma. A
existência legal da pessoa jurídica fica a depender de comprovação posterior.
3.8 – Quanto à legitimidade da representação
A escritura pública dá certeza de que o representante de uma pessoa natural ou
jurídica tem poderes ou atribuições bastantes para a prática do ato, conforme verificação
prévia do tabelião. Há certeza da legitimidade do mandato, da identidade e da capacidade
do procurador.
Já no instrumento particular, ninguém responde pela legitimidade da representação, a ser verificada aleatoriamente.
3.9 – Quanto à expressão da vontade
A escritura pública dá certeza de ter sido outorgada por alguém no domínio de sua
vontade, isto é, lúcido, livre de constrangimento ou ameaça. O tabelião é fiscal vigilante da
voluntariedade consciente das partes.
Ao contrário, o instrumento particular pode facilmente ser subscrito por pessoa
coagida, com os sentidos perturbados, ou incapaz.
3.10 – Quanto ao consentimento
A escritura pública dá certeza de que a pessoa que a tiver assinado o fez conscientemente, porquanto, ao lavrá-la, o tabelião tem o dever de dar, com imparcialidade,
esclarecimento às partes sobre o significado e as consequências do ato que pretendem
praticar.
Ao invés, o signatário do instrumento particular pode não tê-lo entendido ou não
alcançar os efeitos a produzir.
3.11 – Quanto ao conteúdo
A escritura pública dá certeza do seu conteúdo imutável e plenamente conhecido
do signatário, mediante a obrigatória leitura que este faz ou lhe é feita pelo tabelião.
O instrumento particular pode, ao invés: ser firmado em branco, ser assinado sem
leitura, ter conteúdo diferente do que haja sido lido ao signatário e até ser alterado depois.
3.12 – Quanto à titularidade e à disponibilidade
A escritura pública dá certeza da titularidade dos direitos negociados e da disponibilidade do objeto, uma vez que, para lavrá-la, o tabelião exige a comprovação desses
direitos, examinando o título ou os títulos de modo a não deixar dúvida.
Já no instrumento particular, o negócio pode ser feito mesmo por quem não tenha
título ou referir-se tanto a objeto alheio quanto indisponível. A titularidade fica a depender
de verificação posterior.
3.13 – Quanto à licitude do objeto
A escritura pública dá certeza de ser lícito o objeto da negociação, porque é de
autoria de um técnico que a lavra em conformidade com a lei.
Já o instrumento particular pode contrariar a lei e conter convenções ilícitas.
3.14 – Quanto às obrigações fiscais
A escritura pública dá certeza do cumprimento das obrigações tributárias concernentes ao negócio jurídico realizado, porque o tabelião é fiscal rigoroso na exigência do
pagamento dos tributos.
Já no instrumento particular, é facilitada a sonegação fiscal.
3.15 – Quanto à redação
A escritura pública dá certeza de estar redigida com técnica adequada, em linguagem clara, concisa e precisa, que não deixa dúvidas.
Já a redação do instrumento particular não está submetida a uma técnica especial. Pode ficar ele ambíguo, com expressões que permitem diversidade de entendimento.
3.16 – Quanto à conservação
A escritura pública dá certeza de perenidade, porque o tabelião é zeloso depositário dos livros que a contêm.
Já o instrumento particular pode ser extraviado ou destruído.
3.17 – Quanto à publicidade
A escritura pública, como sua designação já indica, dá certeza de sua publicidade
e de ser acessível, via de regra, em qualquer tempo.
O instrumento particular, ao invés, pode ser sonegado ao conhecimento de outros
interessados.
3.18 – Quanto à orientação das partes
O autor da escritura pública é jurista especializado que orienta as partes com imparcialidade.
Todavia, no instrumento particular, as partes, à falta de assessoramento jurídico
profissional, costumam convencionar sem o cumprimento de inúmeras disposições legais
dispersas, pondo em risco o negócio e encarecendo-o.
3.19 – Quanto ao custo
Na escritura pública, a remuneração do seu autor é conhecida e fixada em lei.
Entretanto, no instrumento particular, quando redigido por técnico, a remuneração
é variável e, via de regra, muito superior à do tabelião.
3.20 – Quanto à comodidade
Para a escritura pública, o tabelião, via de regra, providencia a documentação necessária.
Mas, para a confecção do documento particular, a parte perde dias na busca de
documentação ou arca com os custos adicionais desses serviços.
3.21 – Quanto ao registro
Se a eficácia do negócio depende do registro da escritura pública, o tabelião pode
incumbir-se de promovê-lo. Caso seja obstado o registro por erro, o tabelião providencia a
retificação. Tudo sem custos adicionais.
Porém, relativamente ao registro público do instrumento particular, as partes devem dispor de tempo para providenciá-lo e, em caso de erro, suportar o ônus da retificação, correndo ainda o risco de o negócio ser prejudicado por falta de registro a tempo.
Considerações complementares de CARLOS LUIZ POISL
Na segunda metade do citado opúsculo de CARLOS LUIZ POISL, o paradigmático
notário gaúcho assinalou que, devido a essas tantas e tão importantes vantagens, a conferirem segurança e estabilidade ao ato jurídico que se configura com o documento notarial, a lei o exige para diversos atos que, pela relevância dos efeitos que devem produzir,
não se recomenda fiquem à mercê de prova falível e precária como a que emerge do documento particular.
A seguir, afirmou que, na verdade, tão acentuadas são as vantagens do instrumento notarial em relação ao particular, que é de estranhar o fato de não se contratar só
por escritura pública...
E prosseguiu, explicando que a razão primária e mais relevante é que a escritura
pública se completa com o cumprimento de um conjunto de formalidades que dela retiram
a ligeireza de feitura, possível no escrito particular: presença de tabelião, identificação e
qualificação das partes, verificação de sua capacidade jurídica, verificação dos poderes,
exame de títulos, esclarecimento às partes, exigência do cumprimento prévio das obrigações fiscais, redação técnica, leitura obrigatória e assinatura com resguardo da unidade
do ato, autenticação, extração de traslado, sua conferência e autenticação.
Trouxe à colação o mesmo notário o dizer de CARLOS EMÉRITO GONZÁLEZ, (“Teoría General del Instrumento Público”, ed. Ediar, 1953), segundo o qual o inconveniente do
formalismo é a sua incomodidade, mas com a ressalva de que, “se essa incomodidade é
para proteger o nosso direito, bem vale a pena sofrê-la”.
Invocou, em seguida, a lição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, para quem,
com a ampliação da cultura humana, foi sendo dispensado o formalismo, verdadeiramente
um tropeço à facilidade e rapidez das transações, ressaltando, porém, que, na atualidade,
paradoxalmente, se assiste ao renascimento do formalismo, como já o acentuou P LANIOL,
de quem tanto o civilista nacional como C. E. GONZÁLEZ citam: “O momento do apogeu
dos atos meramente consensuais está passando. As relações complicadas que nascem
de uma civilização avançada multiplicam as possibilidades de fraude e de erro a que estão
expostas as partes nos atos desprovidos de formalismo. O princípio da solenidade dos
atos reaparece em todas as partes sob os nomes de registros, transcrições, escrituras
públicas, autenticações, etc.”.
Constatou POISL, entretanto, que se nota no Brasil a teima em não perfilhar esse
rumo apontado pela nova tendência universal, e se subtraem, ao invés de somar, atribuições ao tabelião.
Pareceu a POISL que uma das razões desse descompasso reside no fato de não
se exigir a necessária formação do notário, cujo mister é a prática de atos que se devem
revestir de alta precisão técnica e jurídica. Essa opinião, expressada pelo notário gaúcho
antes da exigência legal de diploma de bacharel em Direito como pré-requisito para o
concurso público de ingresso na atividade notarial, continua, contudo, lamentavelmente
válida, embora os poucos concursos públicos realizados nos últimos vinte anos venham
contribuindo, com alguns bons resultados, no aprimoramento da qualificação profissional.
A experiência de POISL o fez ver que, no geral, o tabelião vai aprendendo empiricamente as sutilezas das exigências técnicas de sua profissão, sem qualquer método e
sem o indispensável embasamento teórico, no trato diário dos casos concretos, tangido
pela necessidade de resolvê-los. Daí que ao próprio agente da função notarial pode faltar
a consciência do valor dos documentos que ele produz, no que representa em segurança
e tranquilidade.
Prognosticou POISL que, se ao próprio agente da função pública pode faltar a
consciência do valor da escritura notarial, com muito maior agudeza falecerá essa consciência no mundo jurídico e negocial em geral.
Por outro lado, chamou POISL a atenção para o fato de que os ofícios notariais
não se têm multiplicado no Brasil na mesma proporção das necessidades advindas do
aumento populacional e do aumento das negociações que se verificam no tráfico jurídico,
mormente se se considera o surto de desenvolvimento que sacode o país. No seu entender, isso impele o tabelião de notas, no afã de dar vazão ao que lhe é solicitado, a delegar
funções, a organizar-se sob forma empresarial, impossibilitando o exame pessoal e acurado de todos os casos que lhe são expostos, ou, outras vezes, a descurar a observância
rigorosa das exigências de que se deve cercar a escritura pública.
Como consequência, viu POISL que se vai gerando uma imagem distorcida do significado do documento notarial, pois o público deixa de sentir os benefícios do assessoramento e do aconselhamento que deveriam preceder e informar todas as intervenções
notariais, para, ao invés, ver nos tabelionatos meras repartições públicas em que se devem cumprir aborrecidas formalidades burocráticas que são perdas de tempo e entraves à
agilidade requerida para as transações comerciais.
Em contraponto a tais desvios causadores de desprestígio do tabelionato de notas
e da escritura pública no Brasil, POISL indicou o rumo certo a perseguir:
> fortalecimento da escritura pública, a provir como resultado lógico do aprimoramento do notariado;
> correção de rumos;
> uma formação científica metódica do notário, que lhe possibilite exercer a sua
função com a devida qualidade técnica e – o que é da mais alta importância – com independência, necessária para que se lhe atribua a plena responsabilidade dos seus atos.
Este tópico se encerra com a anotação de que, sob o prisma da segurança jurídica, não há como cogitar de vantagens e desvantagens da escritura pública em confronto
com vantagens e desvantagens do instrumento particular. A realização da paz social impõe contrapor as vantagens da escritura pública às desvantagens do instrumento particular.
4. Coexistência entre escritura pública e instrumento particular
Ao focalizar a escritura pública sob a óptica da segurança jurídica e o tabelião de
notas como o agente dessa segurança que se insere na função autenticadora do Estado,
perde significado tratar da coexistência entre ela e o instrumento particular, talvez cogitável em situações muito especiais que não vem a cabo esmiuçar quando se esforça em
valorizar a escritura pública.
Todavia, em vez de dar primazia à escritura notarial com o fito de preservá-la e
robustecê-la, o que se observa no Brasil é – com amparo em legislação extravagante e
beneplácito da doutrina e da jurisprudência – a proliferação do instrumento particular em
detrimento da escritura pública. Esta vem sofrendo os percalços de uma trajetória declinante, embora se vislumbre uma luz ao fim do túnel a partir do início do ano de 2007.
5. Menosprezo à escritura pública – um mal a combater
5.1 – Retrospecto legislativo
O notariado ainda não vicejou e se sedimentou no Brasil como instituição apta a
dar publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos negócios jurídicos, o que é a sua
destinação expressa no art. 1º da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, ou seja, a Lei
dos Notários e dos Registradores.
Atrelado que ficou, durante quase dois séculos, ao Poder Judiciário, este, no geral, jamais despendeu esforços para lhe conferir um estatuto normativo condizente com as
necessidades do povo e as potencialidades desse serviço público, inclusive para assumir
várias tarefas não jurisdicionais, desnecessariamente atribuídas à magistratura.
De outro ângulo, o modo tradicionalmente viciado de provimento das serventias
quase sempre alimentou o desinteresse de seus titulares pelo aprimoramento jurídico.
Nesse contexto, a escritura pública, que reflete o ato notarial por excelência, não
goza do devido prestígio nos meios jurídicos: é pouco estudada na doutrina e desqualificada na jurisprudência. Daí o legislador brasileiro dar-lhe um tratamento de produto descartável, como vem ocorrendo em nossa atribulada história republicana.
5.1.1 – Código Civil de 1916
Haja vista o Código Civil de 1916 que, em vez de contribuir para o aprimoramento
do notariado, tomou simplesmente como referência aquele que então existia, disforme e
submisso às praxes, aos usos e aos costumes provindos do ordenamento jurídico lusitano
dos séculos XIV, XV, XVI e XVII.
Evidenciando uma visão elitista do legislador, que ainda hoje perdura, o artigo
134, inciso II, do Código Civil de 1916, ao dispor sobre a obrigatoriedade da escritura
pública nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis, a estipulou apenas para os contratos acima de certo valor, que vem mudando no tempo e por
vezes ficou defasado, mas que, em última análise, expressa o preconceito elitista de os
negócios jurídicos de pequeno valor, ou seja, os de interesse da grande maioria da população, prescindirem de melhor qualificação documental, bastando-lhes o instrumento
particular, sob o pretexto aparente de se evitar despesa, mas, na realidade, deixando a
maioria do povo à mercê dos inescrupulosos e gananciosos, como evidenciam os inumeráveis escândalos imobiliários presenciados no país, em assalto à economia popular, favorecidos pela facilidade enganosa dos contratos particulares.
O descaso pela escritura pública ficou patente ao final do inc. II do art. 134 do
CCiv/1916, nestes desprimorosos termos:
Art. 134. É, outrossim, da substância do ato, a escritura pública:
I. [....].
II. Nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre
imóveis de valor superior a um conto de réis, excetuado o penhor agrícola.
CLÓVIS BEVILAQUA, em seu comentário à citada disposição do código de 1916
(1959:316), informou que ela mantinha os traços gerais do direito anterior, mas alterava o
valor dos bens imóveis, cuja alienação pedia escritura pública, de duzentos mil reis para
um conto de réis, isto é, cinco vezes mais. Esse valor foi atualizado para dez mil cruzeiros,
de acordo com a Lei nº 1.768, de 18 de dezembro de 1952, e para cinquenta mil cruzeiros,
já em outro padrão monetário, mediante a Lei nº 7.104, de 20 de junho de 1983, valor
esse corrigível anualmente.
5.1.2 – Decreto-Lei nº 58/1937
Depois do Código Civil, o Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, dispondo sobre o loteamento e a venda de lotes de terreno com pagamento do preço em prestações, veio a lume com o declarado propósito, constante de suas considerações preambulares, de combater os loteamentos clandestinos e de amparar os numerosos compradores
de lotes contra a falta de seriedade, a má-fé e a insolvabilidade de empresas promitentes
vendedoras. Ao regular, todavia, para esse efeito o contrato de promessa (ou de compromisso) de compra e venda, o fez aceitando a validade tanto da escritura pública quanto
do instrumento particular, o que significou a disseminação deste último, sob manipulação a bel-prazer das empresas loteadoras, mantidas as portas abertas às mazelas que se
afirmava pretender coibir, assim contribuindo para corroborar o desprezo à primeira (escritura pública), cuja qualificação notarial, decorrente do cumprimento de exigências legais,
poderia vir de encontro aos interesses escusos das raposas do mercado de loteamento
imobiliário, mantidas então estas à vontade no controle dos galinheiros, como se diz no
linguajar comum. Os loteamentos clandestinos continuaram a proliferar com mera aparência de legalidade estampada nos contratos também clandestinos.
5.1.3 – Lei nº 4.380/1964
Com a extensão da aplicabilidade do contrato particular de promessa de compra e
venda aos negócios que tenham por objeto imóveis de qualquer natureza, em consequência do disposto no art. 22 do citado DL nº 58/37, alvo de várias alterações, adveio a Lei nº
4.380, de 21 de agosto de 1964, criadora do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e do
Banco Nacional da Habitação (BNH), com a qual o desprestígio da escritura pública atingiu seu mais baixo nível, pois a disposição do § 5º acrescentado a seu art. 61 pela Lei nº
5.049, de 29 de junho de 1966, ao abrir a possibilidade de os contratos imobiliários, no
âmbito do SFH, poderem ser celebrados por instrumento particular, abrigou o disparate
de atribuir a este o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, ou seja,
criou a escritura pública fora do livro de notas e sem a fé pública personalizada do tabelião, subvertendo o sistema jurídico a pretexto de simplificação, maior rendimento dos
serviços, rapidez, segurança e economia de emolumentos, objetivos todos esses inalcançados e notoriamente desmoralizados, como se veio mostrando tempo afora, até o declínio do SFH.
5.1.4 – Lei nº 4.591/1964
Quando surgiu a Lei de Condomínios e Incorporações (Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964), era de se esperar ao menos alguma resistência ao contrato particular de
promessa de compra e venda de frações ideais de terreno e unidades autônomas de edifícios, porquanto, já naquela época, configurava questão social grave a quantidade de
incorporações imobiliárias lançadas, mas com edifícios inacabados, em prejuízo da economia popular, ficando os promitentes compradores à mercê das empresas que promoviam os empreendimentos. Todavia, ao contrário, a referida lei não só permitiu a feitura de
um ato complexo, qual seja a instituição e convenção de condomínio, por instrumento
particular, como continuou prestigiando o contrato particular de promessa de compra e
venda, e, apesar de todo o aparato da lei destinado a proteger os adquirentes, as incorporações imobiliárias fraudulentas continuaram grassando, a exemplo do escândalo da ENCOL, na última década do século passado, com prejuízo a aproximadamente 42.000 brasileiros, nos mais diversos Estados da Federação, munidos de contrato particular confeccionados pela empresa incorporadora, mas à maneira de “contratos de gaveta”, para não
serem registrados na serventia imobiliária, de acordo com a conveniência e no interesse
da empresa, o que evidentemente não aconteceria com a escritura pública, dado que ela
é feita para ser registrada.
5.1.5 – Lei nº 6.766/1979
Com a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, o parcelamento de solo urbano
recebeu novo tratamento, regulado sob as modalidades de loteamento e desmembramento, a darem origem a lotes de terreno destinados a edificação. O escopo principal da lei
nova foi coibir os parcelamentos clandestinos, causadores de sérios problemas urbanísticos e de graves problemas sociais, refletindo em contratos de promessa de compra e
venda e de cessões de direitos também clandestinos. No tocante, porém, aos instrumentos particulares de promessa e de cessão, nada foi legislado com o fito de evitar os abusos das empresas loteadoras inescrupulosas.
5.1.6 – Lei nº 9.514/1997
No que concerne ao desprezo pela escritura pública, e, por tabela, ao desprestígio do tabelião de notas no Brasil, as coisas continuaram vindo de mal a pior: a Lei nº
9.514, de 20 de novembro de 1997, criadora do Sistema Financeiro Imobiliário e, com ele,
da alienação fiduciária de bens imóveis em garantia, facultou a contratação por instrumento particular (art. 38), com a cláusula de a ele não se aplicar a norma do art. 134,
II, do Código Civil então vigente (de 1916).
5.1.7 – Lei nº 9.785/1999
As considerações até aqui expendidas levam a uma digressão sobre mais uma
estranha interferência legislativa desprestigiadora da escritura pública. Mediante a Lei nº
9.785, de 29 de janeiro de 1999, foi inserido um § 6º ao art. 26 da Lei nº 6.766/1979, que
trata do parcelamento do solo urbano e que, reformulando o Decreto-Lei nº 58/1937, manteve, entretanto, a facilidade enganosa da admissão do contrato particular para a promessa de compra e venda de lote de terreno e suas cessões. O caput do citado art. 26 e
seu acrescido § 6º estão assim redigidos:
Art. 26. Os compromissos de compra e venda, as cessões ou promessas
de cessão poderão ser feitos por escritura pública ou por instrumento particular,
de acordo com o modelo depositado na forma do inciso VI do art. 18, e conterão,
pelo menos, as seguintes indicações:
[....].
§ 6º – Os compromissos de compra e venda, as cessões e as promessas
de cessão valerão como título para o registro da propriedade do lote adquirido,
quando acompanhadas da respectiva prova de quitação.
O âmbito de sua incidência, pela própria natureza do preceito, está limitado, na
aplicação, à finalidade da referida lei.
Então, ao cuidar de parcelamento de solo urbano, a Lei nº 6.766/1979, com o duplo objetivo de impor limitações de interesse urbanístico e ao mesmo tempo proteger os
adquirentes de contra os abusos de empresas loteadoras, estabelece, em seu art. 26,
regras impositivas acerca dos requisitos mínimos que devem conter os contratos de promessa de compra e venda, de cessão ou de promessa de cessão, que tenham por objeto
lotes de terreno urbanos regulares, ou seja, resultantes de loteamento ou de desmembramento aprovado pelo Município e registrado na serventia imobiliária
A inovação constante do citado § 6º, inserto no art. 26, redigida, ademais, com defeituosa técnica legislativa, se afigura exacerbação do disposto no art. 41 da mesma Lei nº
6.766/1979, onde, para o caso raro de regularizar-se o loteamento ou o desmembramento
por atuação de Prefeitura Municipal, abriu-se ensejo a que o adquirente do lote de terreno,
comprovando o depósito, feito em represália ao loteador relapso, das prestações vencidas
do preço ajustado, pudesse obter o registro de propriedade do lote adquirido, valendo para tanto o compromisso de compra e venda devidamente firmado.
A inovação em foco visou, primeiramente, apenas a contratos de promessa de
compra e venda, de cessão ou de promessa de cessão que tivessem por objeto lotes de
terreno vagos para edificação, pois é a regularidade deles o que a lei modificadora tem
em mira. A regra nova, que é restritiva, não pode, por isso, ser ampliada para aplicar-se
aos contratos preliminares imobiliários em geral.
Em segundo lugar, a inovação só concerne a contratos de promessa de compra e
venda, de cessão ou de promessa de cessão com preço estipulado para pagamento
em prestações, pois é à proteção dos adquirentes com preço parcelado que a Lei nº
6.766/1979 se destina (art. 25, IV e V).
E, em terceiro lugar, alcança a inovação apenas contratos de promessa de compra e venda, de cessão e de promessa de cessão firmados por adquirentes com empresas loteadoras, uma vez que unicamente a elas se dirige o caput do art. 26 da Lei nº
6.766/1979, combinado com o inc. VI do art. 18 da mesma lei, no qual se prevê a obrigato-
riedade de um contrato-padrão, em cujo conteúdo se inserem cláusulas de proteção aos
adquirentes. Em assim sendo, a regra nova tem aplicação circunscrita ao primeiro contrato
da empresa loteadora com seu adquirente e ao contrato ou aos contratos de cessão firmados como desdobramento daquele, o que significa, em outras palavras, não ser ampliável para abranger os contratos preliminares firmados por adquirentes com pessoas jurídicas ou físicas proprietárias de lotes de terreno vagos, mas que não tenham sido as suas
loteadoras.
Agora, mesmo a aplicabilidade da inovação, no restrito contexto em que ela se inseriu, é problemática, por causa de sua redação ambígua, como que partindo do pressuposto de os contratos preliminares ficarem sem registro imobiliário até o adquirente obter a
prova de quitação do seu preço pago em prestações.
Esse pressuposto, infelizmente, corresponde à realidade dos fatos, pois é público
e notório que os adquirentes portadores de contratos preliminares de negociação imobiliária não os registram de pronto, seja a fim de evitar ou protelar gastos, seja por má orientação quanto à importância do registro no tocante à segurança de seu direito.
Mas se, na prática, assim é, a sistemática legal adotada em nosso direito positivo
trilha no exato sentido oposto de conduzir o adquirente ao registro imobiliário de imediato,
como o meio de criar-se um direito real a seu favor, acobertando-o de intempéries e
desmandos de promitentes alienantes inescrupulosos.
Portanto, o de que se deve cogitar é que os contratos preliminares sejam levados
a registro imobiliário o mais rápido possível após sua feitura. Prevalecendo esta orientação, contudo, poderia ficar praticamente letra morta a inovação constante do § 6º do art.
26 da Lei nº 6.766/1979, pois ela, interpretada ao pé da letra, pressupõe a transmutação
de contrato preliminar em título definitivo de transferência de propriedade, quando aquele
contrato preliminar venha a ser levado a registro a posteriori, acompanhado da prova de
quitação, ao final do pagamento das prestações pelo adquirente.
Do jeito que o art. 26 da Lei nº 6.766/1979 ficou, a aplicação de seu § 6º, ao que
tudo indica, deve restringir-se à hipótese do registro de contrato preliminar, como título
definitivo de transmissão de propriedade, na circunstância remota de reunir ele as seguintes características:
a) que o seu objeto seja lote de terreno vago destinado a edificação;
b) que o preço tenha sido estipulado para pagamento em prestações;
c) que o alienante tenha sido o loteador;
d) que esteja formalizado por escritura pública;
e) que tenha sido apresentado à serventia imobiliária só após cumpridas todas as obrigações do adquirente;
f) que o adquirente esteja portando a prova de quitação do transmitente.
Dificuldade maior, para se colocar em prática a inovação, o que vale também para
o disposto no art. 41 da mesma Lei nº 6.766/1979, é o Oficial do Registro de Imóveis fazer
operar a transmutação do contrato preliminar em definitivo, ou seja, realizar esse “passe
de mágica” sem ter o poder, que não é próprio do sistema registrário, de atribuir a um
título que lhe seja apresentado qualificação jurídica nova, de alcance superior ao que expressa o seu conteúdo.
Eis aí um tema desafiador: delinearem os registradores de imóveis – com substrato doutrinário – a linha de atuação que possibilite fazer cumprir a lei incongruente, no limite
do possível e com a necessária adequação ao sistema jurídico em vigor.
Tudo indica que o legislador brasileiro, ao patrocinar a inovação ora em comentário, pautou-se pelo direito francês, no qual a promessa de venda quitada se torna venda
definitiva (promesse de vente vaut vente). Mas, no afã de imitar, não se deu conta de que
a sistemática brasileira de Direito Civil, no concernente aos contratos imobiliários, à translação de domínio e à constituição dos direitos reais, é toda diferente da francesa, na qual
o próprio contrato é translativo ou constitutivo de direitos reais, independentemente do
registro imobiliário, o que, se fosse adotado no Brasil, seria o caos em matéria de segurança jurídica, dado o desinteresse que se tem aqui tanto pela qualidade do contrato como
pelas exigências legais.
5.1.8 – Lei nº 10.188/2001
Pela Medida Provisória nº 1.823, de 29 de abril de1999, e por várias outras medidas que lhe deram continuidade, afinal convertidas na Lei nº 10.188, de 12 de fevereiro de
2001, foi criado o Programa de Arrendamento Residencial e com ele a opção pela compra
do imóvel arrendado. Em seu art. 8º, não apenas se permitiu mas até se chegou ao desplante de determinar que o contrato de aquisição de imóveis pelo arrendador, as cessões de posse e as promessas de cessão, bem como o contrato de transferência do
direito de propriedade ou do domínio ao arrendatário, serão celebrados por instrumento particular com força de escritura pública e registrados em Cartório de Registro de Imóveis competente. Aí está: mais uma vez se propõe dar força de escritura pública a um contrato particular, como se isso fosse juridicamente possível, considerando
que nenhum contrato particular é dotado de fé pública, nem assegura certeza de data e do
lugar de sua realização, ao mesmo tempo em que não contém verificação de identidade
das partes contratantes, nem de sua capacidade para a prática do ato, além de estar desprovido do exame de licitude de seu objeto, atribuições essas que são inerentes à atividade do tabelião de notas, como portador da fé pública notarial.
5.1.9 – Código Civil de 2002
Não trouxe o código em vigor maiores novidades a respeito do tema em foco. Explicitou a exigência de escritura pública (com a designação genérica de instrumento público) para os pais concederem emancipação a filhos menores entre dezesseis e dezoito
anos. Confirmou a necessidade de escritura pública como título causal para a constituição
do direito de superfície, criado pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de
2001, art. 21). No mais, imitou o Código Civil de 1916, mas aumentando para trinta vezes
o maior salário mínimo vigente no país o valor dos imóveis para os quais fica dispensada
a escritura pública nos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais.
5.1.10 – Lei nº11.795/2008
Seis anos e meio depois do Código Civil de 2002, eis que foi sancionada a Lei nº
11.795, de 8 de outubro de 2008, dispondo sobre o sistema de consórcios com o fito de
facilitar o acesso à aquisição de bens (inclusive imóveis) e serviços.
O parágrafo único do seu art. 45, então, permitiu que o contrato de compra e venda de imóvel no âmbito do sistema de consórcios possa ser celebrado por instrumento
particular. E, assim, a tendência ao esvaziamento da exigência de escritura pública continua inexorável.
5.1.11 – Outras distorções
Mais diplomas legais há, que desmerecem a escritura pública, como os das várias cédulas hipotecárias, das cédulas e letras de crédito bancário com suporte em imóveis e os relativos a incorporação, desincorporação ou cisão de bens imóveis integrantes
do patrimônio de sociedade de feição mercantil. A legislação e os juristas brasileiros cometem o desatino de menosprezar a escritura pública, desmerecendo-a ao equiparar a ela
o instrumento particular. Talvez seja por ignorância conceitual, ou até mesmo por falta de
noção hierárquica de valor jurídico. Pois, do contrário, não estaria escrito nas leis e nos
textos dos doutrinadores, à farta, ora que o contrato particular tem o caráter, ora que tem
força de escritura pública. Falácia lamentável, como equiparar água ao vinho, pois já ficou
demonstrado que é impossível dar força ou caráter maior ao que, por natureza, tem caráter ou força menor. Na verdade, o que as leis e a doutrina deveriam expressar é que, por
exceção, não se aplica a certos contratos particulares a regra da primeira parte do art. 108
do Código Civil, ou, noutras palavras, que a escritura pública não é essencial à validade
de tal ou qual negócio jurídico.
Ademais, embora sem legislação permissiva, diversos atos de negociação imobiliária estão prescindindo de escritura pública, como as compras feitas mediante instrumento particular sem empréstimo do Sistema Financeiro da Habitação ou do Sistema
Financeiro Imobiliário, pela simples circunstância de terem parcela do preço (às vezes
mínima) paga com levantamento de recursos do comprador no Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço (FGTS). Existem ainda doações e cessões na esfera judicial, a exemplo da doação de bens a filhos, em partilha de separação entre cônjuges, e da cessão de
meação ou de direitos hereditários formalizadas por instrumento particular ou sob disfarce de renúncia por termo nos autos, ante a complacência de alguns magistrados.
Tais e outras causas de dispensabilidade da escritura pública estão a merecer
estudos mais aprofundados e mobilização político-institucional e jurídica no sentido de
reverter o quadro desalentador, sob pena de o tabelião de notas brasileiro vir a tornar-se
mero autenticador de documentos, se a função notarial não for extinta de vez
.
6. Conclusão: enfim, uma luz ao fim do túnel
Há alvissareiro sinal de que se pode recuperar o tempo perdido: a Lei nº 11.441,
de 4 de janeiro de 2007, alterou o Código de Processo Civil, possibilitando ao tabelião de
notas brasileiro realizar, mediante escritura pública, inventário e partilha por causa de
morte, desde que não tenha havido testamento do autor da herança e participem sucessores capazes, assim como separação e divórcio consensuais de casal, não havendo filhos
incapazes.
Essa novidade mostra o caminho a trilhar: ao tabelião de notas, no Brasil, firmando o seu prestígio como qualificado profissional do direito, podem ser atribuídas outras
tarefas no âmbito da chamada jurisdição voluntária. Então, além de contribuir mais para
aliviar o Poder Judiciário de rotineiros misteres não jurisdicionais, ele há de recuperar,
pelo reconhecimento de seu valor, as atribuições legais amplas de lavrar escrituras públicas de negociação imobiliária.
Afinal, impõe-se realizar a conclamação que fecha o texto inicialmente citado de
CARLOS LUIZ POISL, do alto de sua exemplar dignidade:
Dê-se ao notariado brasileiro uma nova estrutura, consentânea com as exigências modernas da sociedade, que, já há muito, vem requerendo formação
técnica metódica e especializada para a mais variada gama de atividades.
Escoime-se o documento notarial de resquícios obsoletos das ordenações
reinóis.
Proceda-se a uma rigorosa seleção entre os candidatos à função, tendo em
vista não só a capacitação técnica, mas, também, a honorabilidade e a disposição de bem servir.
Estipule-se um número de tabeliães em consonância com as necessidades
de cada localidade. E o público acorrerá pressuroso ao tabelião, não por coação
legal, mas para, espontaneamente, se pôr ao abrigo do “agente da paz privada”,
do “confidente e conselheiro”, que, cioso, traduzirá a vontade da parte numa escritura para sempre boa, firme e valiosa, para ciência de quantos a virem, e para
plena segurança e tranquilidade de todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 11ª ed.
Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1958, v. I.
COSTA, Valestan Milhomem da. Indispensabilidade da escritura na essência do
artigo 108 do Código Civil. In: Diário das Leis Imobiliário (DLI). São Paulo: 3º
decêndio junho 2006, nº 18, p. 4-8.
POISL, Carlos Luiz. Das vantagens do instrumento público notarial sobre o instrumento particular. Novo Hamburgo – RS: opúsculo de publicação do autor, 1974.
POISL, Carlos Luiz. Em testemunho da verdade – lições de um notário. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2006, 96 p.
SILVA, João Teodoro. Menosprezo à escritura pública. In: Boletim Cartorário do
Diário das Leis Imobiliário (BDI). São Paulo: 3º decêndio dezembro 1999, nº 36,
p. 25-29.
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VALORIZAÇÃO DA ESCRITURA PÚBLICA