EXCELENTÍSSIMO MINISTRO TEORI ZAVASCKI
Recurso Extraordinário n.º 635.659
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO,
PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL, INSTITUTO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS CRIMINAIS, CONECTAS DIREITOS HUMANOS, INSTITUTO
TERRA, TRABALHO E CIDADANIA; COMISSÃO BRASILEIRA SOBRE
DROGAS E DEMOCRACIA, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS
SOCIAIS SOBRE PSICOATIVOS, INSTITUTO SOU DA PAZ, ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA
DE
GAYS,
LÉSBICAS,
BISSEXUAIS,
TRAVESTIS
E
TRANSEXUAIS e VIVA RIO​
, por seus representantes, vêm, respeitosamente,
apresentar os presentes MEMORIAIS, nos seguintes termos.
O voto do relator, Ministro Gilmar Mendes, declara a
inconstitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343 por entender que a incriminação da posse
de drogas para uso pessoal “​
afeta o livre desenvolvimento da personalidade, em suas
diversas manifestações, (...) os diferentes modos de desenvolvimento do sujeito, como o
direito à autodeterminação, à autopreservação e à autorepresentação​
”, ofendendo “​
de
forma desproporcional, o direito à vida privada​
” e a “​
margem de autonomia do indivíduo​
”.
Afirma Sua Excelência “​
que tanto o conceito de saúde pública, como, pelas mesmas razões,
a noção de segurança pública, apresentam-se despidos de suficiente valoração dos riscos a
que sujeitos em decorrência de condutas circunscritas a posse de drogas para uso
exclusivamente pessoal​
”.
De forma clara, o voto do Ministro relator invalida a conhecida
tentativa de responsabilizar o usuário por “financiar” o tráfico: diz não ser possível acusar
quem usa drogas pelos “​
malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita​
” (tráfico), pois
“​
esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário. A ligação é
excessivamente remota para atribuir a ela efeitos criminais​
”. Por isso, “​
esse resultado está
fora do âmbito de imputação penal. A relevância criminal da posse para consumo pessoal
dependeria, assim, da validade da autolesão. E a autolesão é criminalmente irrelevante​
”. O
voto afirma ainda que a criminalização da posse de drogas desrespeita “​
a decisão da pessoa
de colocar em risco a própria saúde​
”.
Aqui, um dos pontos centrais do voto:
Ainda que se afirme que a posse de drogas para uso pessoal não
integra, em sua plenitude, o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade, isso não legitima que se lance mão do direito penal
para o controle do consumo de drogas, em prejuízo de tantas
outras medidas de natureza não penal, como, por exemplo, a
proibição de consumo em lugares públicos, a limitação de
quantidade compatível com
administrativa
de
certas
o uso pessoal, a proibição
drogas
sob
pena
de
sanções
administrativas, entre outras providências não tão drásticas e de
questionáveis efeitos como as sanções de natureza penal​
.
2
Finalmente, o voto afirma a incompatibilidade entre a Constituição
da República e o art. 28 da Lei 11.343/06:
Nesse contexto, a criminalização do porte de drogas para uso
pessoal afigura-se excessivamente agressiva à privacidade e à
intimidade. Além disso, o dependente de drogas e, eventualmente,
até mesmo o usuário não dependente estão em situação de
fragilidade, e devem ser destinatários de políticas de atenção à
saúde e de reinserção social, como prevê nossa legislação – arts. 18
e seguintes da Lei 11.343/06. Dar tratamento criminal a esse tipo
de conduta, além de andar na contramão dos próprios objetivos
das políticas públicas sobre o tema, rotula perigosamente o
usuário, dificultando sua inserção social.
(...)
Da mesma forma, a percepção geral é de que o tratamento criminal
aos usuários de drogas alcança, em geral, pessoas em situação de
fragilidade econômica, com mais dificuldade em superar as
consequências de um processo penal e reorganizar suas vidas
depois desqualificados como criminosos por condutas que não vão
além de mera lesão pessoal.
Assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso
pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e
desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da
3
personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto,
claramente desproporcional.
Após o voto do Ministro Gilmar Mendes, acima citado, os
Ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso acompanharam, em parte, o relator,
apenas no que diz com a maconha, excluindo do âmbito de incidência da declaração de
inconstitucionalidade as demais drogas ilegais.
De todo modo, a declaração de inconstitucionalidade
proposta pelos três Ministros da Suprema Corte que já votaram no referido recurso,
alcança não apenas a cabeça do art. 28 da Lei n.º 11.343/06, mas também o seu § 1º.
Segundo Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luis Roberto
Barroso, casos envolvendo não apenas a posse para uso pessoal, mas também o
plantio de alguns poucos pés de maconha para fins de consumo pessoal, não
legitimam a intervenção penal. Condutas autolesivas, como as descritas no art. 28,
caput ​
e seu § 1º, da Lei n.º 11.343/06, não afetam bem jurídico de terceiro.
Sendo, portanto, impunível a autolesão, não há alteridade, não há
espaço para a aplicação da lei penal.
Pois bem. O provimento jurisdicional perseguido no caso em tela
– declaração de inconstitucionalidade do artigo 28, ​
caput ​
e § 1.º, da Lei n.º 11.343/06 – não
4
é inédito, merecendo destaque, entre tantos julgados de ontem e de hoje, a decisão abaixo
colacionada:
Vistos. [...] ​
A criminalização do porte de drogas para uso
próprio afronta o princípio da alteridade, na medida em que
pune conduta inofensiva a bem jurídico de terceiro, lesando,
outrossim, o direito fundamental à liberdade, já que subtrai
do indivíduo a prerrogativa inalienável deste de gerenciar sua
própria
vida
da
maneira
que
lhe
aprouver,
independentemente da invasiva e moralista intervenção
estatal​
.
Por fim, saliento que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio
da 6ª Câmara de Direito Criminal, em acórdão relatado pelo
Desembargador José Henrique Rodrigues Torres, recentemente
esposou posição no mesmo sentido da ora defendida:
‘1.- A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para
a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o
acusado seria um traficante. 2. - O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006
é inconstitucional. A criminalização primária do porte de
entorpecentes
para
uso
próprio
é
de
indisfarçável
insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de
conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade,
afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade
e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do principio
da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados
5
internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil’.
(Apelação Criminal n. 993.07.126537-3; Data do julgamento:
31/03/2008; Data de registro: 23/07/2008).
Ante o exposto, por ofensa ao princípio da alteridade,
declaro, incidentalmente, a inconstitucionalidade do artigo
28 da Lei 11.343/06​
, e, conseqüentemente, rejeito a denúncia, por
atipicidade manifesta do fato. ​
P.R.I. – BRUNO CORTINA
CAMPOPIANO, Juiz de Direito” (fls. 98/99, grifos da
reprodução)
Frise-se ainda que o Tribunal Constitucional argentino (​
Corte
Suprema de Justicia de la Nación​
) também e a Suprema Corte da Colômbia (​
Corte
Suprema de Justicia​
), em 2009, declararam inconstitucional a incriminação do porte de
drogas para consumo pessoal nas respectivas normas internas de cada uma destas nações,
pelas mesmas razões aqui sustentadas.
O principal argumento proferido pela Suprema Corte Argentina na
análise é que a criminalização do usuário invade a esfera íntima da pessoa, violando o
direito à privacidade protegido pela Constituição do país:
[…] como principio, al Estado —en tanto organización del poder
político dentro de una comunidad nacional— le está impedida
toda injerencia sobre el individuo —cuando como en el caso se
desenvuelve en el marco de su autonomía—, soberano en su obrar,
en su pensar y en su sentir. Esta protección alcanza a todos los
6
individuos y es por ello que el propio artículo 19 citado habilita al
Estado a intervenir sólo a fin de proscribir interferencias
intersubjetivas. Restablecido en su quicio el principio de señorío
sobre la persona, es claro entonces que no se trata simplemente de
la tensión entre dos intereses contrapuestos, pues no debe
soslayarse que lo que aquí realmente se cuestiona es la intervención
del Estado nada menos que sobre la esfera íntima del individuo
—en cuanto ámbito de ejercicio de su autonomía personal—, la
que a diferencia de la esfera pública —y aun de la privada— no
admite ningún tipo de intromisión. La aceptación de esa injerencia
convertiría al poder estatal en una verdadera deidad.1
No mais, aquela Corte entendeu que não há porquê criminalizar a
posse de drogas para uso pessoal uma vez que não causam danos a terceiros:
“[...] este tipo penal genera innumerables molestias y
limitaciones a la libertad individual de los habitantes que llevan a
cabo conductas que no lesionan ni ponen en peligro bienes
jurídicos ajenos, sin que los procesos originados lleguen a término
en la forma que se supone que deben hacerlo todos los procesos
penales. Al mismo tiempo, importa un enorme dispendio de
esfuerzo, dinero y tiempo de las fuerzas policiales, insumidos en
procedimientos inútiles desde el punto de vista político criminal,
1
Carlos
S.
Fayt.
Caso
“Arriola”.
Pg.
48.
Disponível
http://servicios.csjn.gov.ar/confal/ConsultaCompletaFallos.do?method=verDocumentos&id=671140 em:
7
como lo demuestran los casi veinte años transcurridos desde que
esta Corte revirtiera la jurisprudencia sentada en el caso
"Bazterrica" (Fallos: 308:1392), con el dictado del fallo
"Montalvo" (Fallos: 313:1333).”2
Na Colômbia, já em 1994, a Corte Suprema afastou a
constitucionalidade da criminalização do uso de drogas, considerando que a disposição
normativa violava o texto da Constituição Colombiana de 1991 com o seguinte
fundamento:
“Si a la persona se le reconece esa autonomia (esfera de liberdade
individual) no puede limitárse sino en la medida en que entra en
conflito com la autonomia ajena. El considerar a la persona como
autónoma tiene sus consecuencias inevitables e inexorables, y la
primera y más importante de todas consiste em que los assuntos
que sólo a la persona atañen, sólo por ella deben ser decididos.
Decidir por ella es arrebatarle brutalmente su condición ética,
reducirla a la condición de objeto, cosificarla, convertirla em
médio para los fines que por fuera de ella se eligen. Cuando el
Estado resuelve reconocer la autonomía de la persona, lo que ha
decidido, no más ni menos, es constatar el ámbito que le
corresponde como sujeto ético: dejarla que decida sobre lo más
2
Ministro
Raul
Zaffaroni.
Caso
“Arraiolo”.
Pg.
73.
Disponível
http://servicios.csjn.gov.ar/confal/ConsultaCompletaFallos.do?method=verDocumentos&id=671140 em:
8
radicalmente humano, sobre lo bueno y lo malo, sobre el sentido
de su existencia”3 .
Em 2009, por iniciativa do Governo de Álvaro Uribe, o Congresso
colombiano desafiou a mais alta instância jurídica do país e alterou a Constituição,
criminalizando o porte pessoal de qualquer droga. Por conta dessa mudança, novo caso foi
julgado pelo plenário da Corte Suprema de Justiça da Colômbia em 2012, no qual o
entendimento anterior foi ​
reafirmado​
, no sentido de que o porte de quantidade de
qualquer droga para uso pessoal não pode ser criminalizado por violar liberdades
individuais4 ​
.
Os precedentes oriundos do direito comparado reforçam a tese
aqui sustentada, demonstrando não possuir o direito penal legitimidade/idoneidade para
atuar em situações nas quais não há ofensa a bem jurídico de terceiro, como é o caso do
porte de drogas para uso pessoal, que no Brasil encontra-se tipificado no art. 28, ​
caput e
§1º, da Lei nº 11.343/06.
Por fim, há que se mencionar a conveniência de ficar explícito
nesse julgamento que cabe ao Ministério Público comprovar a imputação quando a
acusação for de tráfico de entorpecentes, conforme já decido no HC 107.448, não cabendo
que indícios frágeis sejam válidos para um crime considerado tão gravoso.
3
Trechos da decisão de 1994 transcrita na decisão de 2012 disponível na integra em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2012/c­491­12.htm 4
Idem ao anterior. 9
Em assim sendo, pugnam os abaixo subscritos para que Vossa
Excelência acompanhe, na íntegra, o voto do eminente relator.
Brasília, 09 de novembro de 2015.
Leandro de Castro Gomes
Rafael Folador
Strano
Rafael Ramia
Muneratti
Defensor Público do
Estado de São Paulo
Defensor Público do
Estado de São Paulo
Defensor Público do
Estado de São Paulo
Núcleo Especializado de
Cidadania e Direitos
Humanos
Núcleo Especializado
de Situação
Carcerária
Núcleo de Tribunais
Superiores
Bruno Girade Parise
Defensor Público do
Estado de São Paulo
Assessoria Criminal
10
Michael Mary Nolan
Francisco de
Barros Crozera
Pastoral
Carcerária do
Estado de São
Paulo (CNBB)
Ivan Marques
Instituto Sou da
Paz
Andre Pires de
Andrade Kehdi
Presidente do
Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais
(IBCCRIM)
Rubem Cesar
Fernandes
Viva Rio
Rafael C. G. Custódio
Coordenador do
Programa de Justiça da
Conectas Direitos
Humanos
Presidente do Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania – ITTC
Luciana Boiteux
Paulo Gadelha
Comissão Brasileira
sobre Drogas e
Democracia – CBDD
Associação Brasileira de
Estudos Sociais sobre
Psicoativos - ABESUP
Emílio Figueiredo
Growroom
11
e
ABGLT
12
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ministro relator