ANÁLISE DA OBRA “O ESTRANGEIRO” DE ALBERT CAMUS SOB A
ÓTICA DA TUTELA PROCESSUAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
THE BOOK “L´ÉTRANGER”, FROM ALBERT CAMUS, AND THE
PROCEDURAL PROTECTION OF FUNDAMENTAL RIGHTS
Nestor Eduardo Araruna Santiago
Francisco Alexandre de Paiva Forte
RESUMO
O presente trabalho trata do clássico L’Étranger de Albert Camus. O romance foi escrito
em 1941 e publicado em 1942. A análise jurídico-literária de uma obra clássica como
essa de Camus tem o mérito de despertar inúmeras reflexões. A mutação da acusação no
processo penal diante dos discursos dos diversos atores da Justiça criminal e dos
membros da sociedade e o papel, nem sempre ético, da imprensa. Outra reflexão
importante é o papel do acusado na formação do convencimento do juiz. O processo
penal ao qual é submetido o personagem Meursault em muito assemelha-se ao de
Cristo. Desenvolve-se a idéia de que o processo penal reclama uma maior participação
do acusado. O acusado não pode ficar inerte à espera de um julgamento justo, pois o
Direito, dentro do qual se insere o processo penal, não é uma ilha isolada de outros
fatores sociais. A indiferença do acusado em relação às convenções sociais conspira
para sua condenação. Por conseguinte, o acusado tem o direito-dever de interagir com o
juiz, bem como com os demais atores da persecução criminal, seja silenciando, quando
entender conveniente para sua defesa, seja respondendo às indagações, a fim de
concretizar o devido processo legal.
PALAVRAS-CHAVES: DIREITO E LITERATURA. PROCESSO PENAL.
PARTICIPAÇÃO DO ACUSADO. ALBERT CAMUS. NECESSIDADE DE
AUTODEFESA.
ABSTRACT
This paper examines the classical work of French author Albert Camus, L’Étranger,
written in 1941 and published in 1942, from a juridical outlook, relevent to stir up
several discussions on many Law-related issues. Some of these issues include the
changes in prosecution and their relation to the ideas of the different players involved in
Criminal Courts and of society, as well as the press, whose actions are not always based
upon ethic values. Another important issue is the role of the defendant in shaping the
conviction of the judge. The criminal procedure against Meursault very much resembles
the procedures taken against Jesus Christ. The authors of this paper present the idea that
criminal procedure requires a more intense participation of the accused individuals, who
cannot remain careless, barely waiting for a fair trial, especially because Law is not
completely independent of other social factors. The indifference of the defendants
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regarding social covenants contributes to their conviction. Consequently, the accused
has the right and the duty of interacting with the judge, as well as with the other players
in criminal lawsuits, including the possibilities of being silent, if suitable for their
defense, or of answering to the inquiries presented, in order to make the due process of
law a reality.
KEYWORDS: LAW AND LITERATURE. CRIMINAL PROCEDURE.
PARTICIPATION OF THE DEFENDANT. ALBERT CAMUS. SELF-DEFENSE.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho trata do clássico L’Étranger de Albert Camus. O romance foi
escrito em 1941 e publicado em 1942. Sobre o estrangeiro, o próprio Camus deu sua
versão no prefácio de 1955: "Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no
funeral de sua mãe, corre o risco de ser sentenciado à morte" (CAMUS, 1999, prefácio).
Com isso Camus quis dizer que o indivíduo que não joga o jogo das convenções sociais
está fadado de plano à condenação, máxime em um processo penal, onde a
personalidade do indivíduo é dissecada para revelar a adaptação a tais conveniências.
A análise jurídico-literária de uma obra clássica como essa tem o mérito de despertar
várias reflexões. A primeira delas é a da mutação da acusação no processo penal diante
dos discursos dos diversos atores da Justiça criminal e dos membros da sociedade, sem
descurar do papel, nem sempre ético da própria imprensa. É natural que o jornalista
queira chamar a atenção. Esse é um dado relevante, tanto na época e circunstâncias em
que se desenrola a trama do personagem Meursault quanto na época atual,
supermidiática, onde os próprios leitores são também potencial fonte de informação,
embora nem sempre desenvolvam a necessária reflexão crítica, comportando-se, não
raro, como elementos de uma manada, ora sonâmbula e pacata, ora histérica e raivosa.
Outra reflexão - que ao cabo da leitura da obra pareceu ser a mais importante - diz
respeito ao papel do acusado na formação do convencimento do juiz, na decisão final,
seja absolvendo, seja condenando, ou considerando certas circunstâncias atenuantes do
fato típico imputado ao acusado.
Camus já foi considerado uma espécie de Santo Agostinho agnóstico. No personagem
Meursault, o processo penal ao qual é submetido em muito se assemelha ao de Cristo.
Pilatos (POTTECHER, 1982, p. 251) indagou da multidão de judeus qual a acusação
que pesava contra Jesus. Ao que responderam que ele incitava a nação à revolta e
impedia o pagamento do tributo a César, além de denominar-se o Cristo-Rei. Diante de
Cristo Pilatos pergunta se ele era rei ao que obtém a resposta de que sua única missão
era testemunhar a verdade. Ao perguntar sarcasticamente o que era a verdade, Pilatos
ficou sem resposta, como sem resposta estamos até hoje. Não obstante, Pilatos não vê
motivo de condenação, porém a turba pede a liberdade de Barrabas e a crucificação de
Cristo (POTTECHER, 1982, p. 251-253). No caso de Meursault a acusação que pesa
contra ele de fato, dentro e fora dos autos, na fala do procurador (órgão de acusação) é a
de ter enterrado a mãe com um coração de criminoso[1] (CAMUS, 2005, p. 148), de
modo que a morte do árabe funciona apenas como pretexto e no final é mera peça
secundária da tragédia pessoal do réu.
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Em relação a Meursault, considerado pelo juiz como um anti-cristo, não se indagou para crucificá-lo também - se ele era rei, assassino ou revolucionário, mas somente se
havia chorado no enterro da mãe. E aqui sobressai a nota marcante de Meursault: sem
pretensão alguma de reinado, sequer do outro mundo, mas somente como testemunha a
observar a vida tal como ela se dava, a testemunhar a verdade percebida. Uma
semelhança impressionante com a figura de Jesus.
Desenvolve-se a idéia de que o processo penal reclama uma maior participação do
acusado. Se não há uma verdade absoluta a ser reconstruída – o que é a Verdade?, ecoa
a pergunta formulada por Pilatos (POTTECHER,1982, p. 251) -, o acusado tem o
direito-dever de, na condição de cidadão e para preservar o próprio Estado Democrático
de Direito, colaborar com a melhor defesa técnica possível e até, se for o caso, efetuar
sua autodefesa nas oportunidades nas quais se lhes assegura tal prerrogativa.
1 CONTEXTO DA OBRA
O livro foi escrito em plena Segunda Grande Guerra. Camus, que estudara Filosofia, de
algum modo estava influenciado pelo existencialismo de Sartre. Segundo Orme (2008)
a obra de Camus é marcada por uma forte preocupação com a justiça, destacando-se a
compaixão e sensibilidade, numa tentativa de iluminar as concepções opostas de justiça
como retribuição e justiça como misericórdia. Além disso, Camus abraça a linguagem
da transparência moral para tentar reconciliar os conflitos entre as demandas de justiça e
de liberdade.
Aliás, foi a preocupação de Camus em provocar reflexões morais e filosóficas nas suas
obras, com maestria, que serviu de justificativa para que ele obtivesse o prêmio Nobel
de Literatura em 1957.
2 O ROMANCE
O romance é dividido em duas partes. A primeira parte é caracterizada pelo silêncio do
personagem. A segunda parte desenrola-se a partir da quebra do silêncio, marcada pelo
assassínio de um árabe, cujo autor é o personagem principal que narra a estória em
primeira pessoa: Meursault. Ao longo de toda a obra, depara-se com uma constante
dualidade. Um jogo de luz e sombras; a lógica do raciocínio de Meursault e o absurdo
de sua existência; sua extremada sinceridade e a mentira; a causalidade e o acaso; a
consciência dos atos e um certo determinismo fisiológico, até. É bom ter em mente que
Camus foi influenciado fortemente pelo fenomenologismo de Husserl. Maria Clara Duet
Chagas Martinez (2007, p. 125) afirma que Camus, como inúmeros outros pensadores e
escritores de seu tempo, adotou o método de Husserl. O resíduo da redução
fenomenológica é o eu puro, fonte de significações. Assim, segundo a estudiosa da obra
de Camus, em "O Estrangeiro" o autor prescreve a temporalidade do sujeito da escritura
através de três categorias do texto literário: herói, narrador, escritor. A temporalidade
desdobra-se em três níveis de compreensão. O herói está para o passado, o narrador no
presente e o escritor revela o futuro, que é o vazio da morte, o ser-para-a-morte no
sentido heideggeriano. As três mortes do livro têm algo em comum: a absurdidade da
existência humana.
O que aparece na superfície da narração não é a vida mundana dos heróis da história,
mas, sobretudo, a interpretação que o narrador dá à existência empírica de cada um. Diz
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Martinez (op. cit., p. 124) que a questão fundamental é a própria linguagem e não o
contato com as coisas. A partir de uma escuta atenta do mundo, o homem ensaia
produzir sua fala autêntica expondo a compreensão de sua existência.
As revelações que Meursault faz acerca de suas crenças ou não crenças choca todos os
demais personagens e, claro, o leitor.
O romance começa com o telegrama da morte da mãe de Meursault. Embora essa
primeira parte seja a mais silenciosa, como dissemos, já que a segunda inaugura uma
quebra do silêncio, verifica-se de plano que a morte da mãe, tanto quanto a morte do
árabe e, no final, a morte do próprio personagem, condenado à forca, é um
acontecimento que leva o personagem a entrar em contato com o outro. Martinez (op.
cit., p. 185-186) entende que na obra em comento a morte aparece como o único
acontecimento capaz de reagrupar a sociedade dos homens.
A relação entre Maria e Meursault, logo após a morte da mãe, no dia seguinte ao enterro
da mãe, em que os dois saem para assistir a um filme cômico, revela o extremo da
sinceridade do personagem e sua ausência de valores. Ele jamais confessa que ama
Maria. E afirma que tanto faz casar com ela, como não casar, ou casar com qualquer
outra. Isso lhe é indiferente. Poderá casar se ela achar que isso tem alguma importância.
O fato de não tomar posição seja para o casamento, seja no emprego ante a oferta de
uma promoção para Paris, promoção esta que contava com o entusiasmo de Maria,
denota um personagem ausente de ambição ou, por outro lado, dotado da mais elevada
ambição, a ambição de um faquir, capaz de viver bem de qualquer forma absurdamente,
com prazeres ou sem prazeres. A resignação é a armadura do personagem. A tudo ele se
adapta. Ficar ou partir, diz ele (CAMUS, 2005, p. 91) acerca do momento em que
retornou à praia e consumou o homicídio, era tudo a mesma coisa[2].
Mas, essa sinceridade e ausência de ambição, muito mais do que de valores, denota que
o personagem, no fundo, mente contra si mesmo, ou tenta experimentar o limite até
onde as convenções humanas podem censurar um indivíduo.
A quebra do silêncio no dia da morte do árabe[3], a qual fecha a primeira parte do livro,
repete-se no dia do julgamento com o discurso institucionalizado pela sociedade
(CAMUS, 2005, p. 130); e, de certo modo, no dia da execução do condenado[4]
(CAMUS, 2005, p. 185).
Meursault narra o momento do homicídio deixando a entender que tudo foi muito mais
obra do acaso. E o acaso se repete, quase como uma lei. Num dos interrogatórios, o
advogado atrasou-se por um contratempo (CAMUS, 2005, p. 104) e o juiz indagou ao
acusado se ele gostaria de esperar que o advogado chegasse. Ele respondeu que não. O
interrogatório foi realizado sem a presença do advogado. Estava tudo indo muito bem,
quando novamente o acaso, um erro do escrivão, fez com que o juiz reperguntasse
acerca dos tiros deflagrados contra o árabe. O acaso, portanto, do erro do escrivão fez
com que o juiz perguntasse o porquê de o acusado ter esperado entre o 1° e o 2° tiro,
ponto extremamente delicado para a defesa. O acusado jamais respondeu. Além disso, o
jogo de luz solar, o calor, todos os fenômenos naturais e fisiológicos conspiram para os
acontecimentos. Assim, da mesma forma que no dia do enterro da mãe estava quente,
com um sol ardente, também no dia da morte do árabe. E por conta do calor foi que ele
decidiu-se a retornar à praia após a briga com os árabes. Como a luz do sol incomodava
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resolveu ele apressar um passo mesmo divisando o árabe que se aproximava. Foi então
que o árabe tirou sua faca. A luz do sol refletiu sobre o aço da faca e como uma forte
onda atingiu o rosto dele. Na sequência, consuma-se o homicídio, sendo de destacar que
bastou um tiro para matar o árabe. Quando ele deflagrou mais quatro tiros o fez sobre o
cadáver. E isso, em tese, deveria ser a parte mais gravosa de todo o processo penal.
Entretanto, o que ele constatou foi que o não ter chorado no dia da morte da mãe parecia
muito mais grave do que o ter atirado quatro vezes sobre o cadáver do árabe.
Com a prisão, a obra deixa de ser silenciosa. Os diálogos são mais freqüentes. E o
personagem admira-se primeiramente com a comodidade de ter um advogado dativo, ao
que o juiz da instrução responde que a lei era bem feita.
No início da prisão o mais duro, segundo o narrador (CAMUS, 2005, p. 191) era ter o
pensamento de homem livre. Com o tempo ele passou a ter pensamentos somente de
prisioneiro. Tudo era questão de matar o tempo (CAMUS, 2005, p. 122). Do que sentira
mais falta no início foi do corpo de mulher, mas isso também foi só uma questão de
tempo para se acostumar.
De acordo com Renata Conde Vescovi (2008) nessa obra Camus questiona os limites
éticos de um formalismo rigorosamente estruturado do Direito Penal, convocando a
reflexões importantes a respeito de um processo e de um julgamento. Afinal, o que de
fato é julgado, como o próprio advogado de Meursault também o fizera: um crime ou o
criminoso?
O livro deixa transparecer que o fato criminoso é secundário. Relevante é o passado do
acusado. Não ter chorado no velório e enterro da mãe; no dia seguinte ter iniciado uma
relação amorosa, indo ao cinema assistir a um filme cômico; a amizade com uma
espécie de cafetão, Raymond; o fato de não acreditar em Deus, nem em qualquer
sistema de crenças e valores.
O contato pessoal do acusado com o juiz, tête a tête faz com os horizontes de
compreensão de cada qual entrem em contato. A simpatia para com o juiz e deste para
com o acusado é estremecida somente quando o magistrado tenta convencê-lo que o
normal é arrepender-se diante do crucifixo de Jesus Cristo. No diálogo entre o acusado e
o juiz, em que este último revela toda a sua subjetividade, a ponto de transparecer até
mesmo um certo fanatismo religioso, mostrando-se inclusive disposto a ajudar o
acusado, desde que ele se arrependesse, houve quase uma inversão de papéis. Embora o
juiz não chegue a ficar na posição de interrogado, o réu assume a posição de
observador, mais imparcial, mais racional. Para o réu isso parecia ridículo[5]. Na cena
do crucifixo (CAMUS, 2005, p. 106-107), o juiz disse de forma passional que
acreditava em Deus e que sua convicção era a de que nenhum seria tão culpável que não
pudesse receber o perdão divino, mas era preciso que o homem se arrependesse
sinceramente. O acusado que contempla tudo com imparcialidade e atenção, inclusive à
maneira informal com que o juiz passou a tratá-lo, sentiu um pouco de medo, não do
crucifixo, mas do juiz, porém isso parecia ridículo, afinal o criminoso era ele, Meursault
(CAMUS, 2005, p. 107).
Por outro lado a introjeção do estigma do criminoso transparece na obra. Aliás, no fim
desse mesmo interrogatório (CAMUS, 2005, p. 109), o juiz disse que todo criminoso a
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quem ele mostrava o crucifixo acabava chorando, mas Meursault era o único que não
chorava. O acusado então teve vontade de dizer - mas, não o fez - que eles choravam
porque de fato eram criminosos. Recuou da fala porque se apercebeu se que era como
eles.
Nota-se, assim, que a imparcialidade do acusado, além de impossível na sua inteireza, é
comprometida pela introjeção, se não do sentimento de culpa - sentimento que ele não
demonstra ter, pois em relação ao árabe sentiu muito mais aborrecimento do que culpa mas, do estigma social de ser criminoso. E desta forma, sempre que surge a
oportunidade de falar algo em sua defesa, acaba recuando de fazê-lo, donde se conclui
que, no íntimo, o acusado deseja mesmo ser o bode expiatório da estória.
Na primeira vez em que foi interrogado, diante da simpatia do juiz, o acusado teve
ímpeto de apertar a mão do juiz, mas recuou ao lembrar-se de que havia matado um
homem. Esse comportamento denota que o acusado assimilou o emblema de criminoso,
ainda que não tivesse ele arrependido-se, ou, quiçá, exatamente, por não ter se
arrependido. Assim como certa culpa por não ter chorado no enterro da mãe irá
percorrer toda a sua via crucis até os instantes imediatamente próximos de sua
execução, quando então ele tem a clareza de que na verdade ninguém deveria ter
chorado no enterro da mãe, de sorte que ele comportara-se de maneira adequada. Aliás,
nesse momento final ele compreendeu que todos eram privilegiados: a turba por
aplaudir e deleitar-se com a execução; e o condenado também tinha seu privilégio: o de
liberar-se da culpa por não ter chorado no enterro da mãe.
A simpatia para com o juiz, no entanto, será restabelecida, embora o acusado prefira
sempre a sua cela.
A visita do advogado coloca o acusado cada vez mais em contato com os argumentos
estranhos ao fato criminoso que serão usados para postular a sua condenação. O
advogado relata todo o dossiê que consta no processo. E pede, ele, advogado, que o
acusado ajude-o na defesa, a dizer e a encontrar algo que rebata a tese da insensibilidade
no dia do enterro da mãe. Aqui novamente há uma inversão de papéis: o advogado passa
à condição de alguém que pede socorro ao seu próprio constituinte, exatamente pela
singularidade do caso. Mas, o acusado não está disposto a mentir. E o advogado fica
desapontado. Sem dúvida Meursault amava a mãe, mas isso não significa nada. Além
disso, todas as pessoas sãs terão desejado com maior ou menor intensidade a morte
daqueles a quem amam (CAMUS, 2005, p. 102). O advogado pediu a ele que, pelo
menos, evitasse dizer isso em audiência. Mas, o acusado rebateu que sua natureza
predominava sobre os sentimentos, isto é, sobre a razão.
Verifica-se aqui que o esforço do acusado de ser sincero ao extremo leva-o à mentira,
contra sua própria sorte; e o que, em princípio, poderia ser uma autodefesa, toma-se
uma auto-acusação. Quando ele silencia no interrogatório, por exemplo, na explicação
jamais dada, acerca dos quatro tiros deflagrados contra o cadáver do árabe, silencia
sempre em seu próprio prejuízo; e quando fala, também fala em prejuízo de si mesmo.
Em suma, a postura do acusado é a de alguém que decide contemplar o processo com
certa indiferença, buscando ser isento. A isenção e imparcialidade que se espera do juiz,
bastante comprometida em face do fervor religioso do magistrado, na realidade,
transborda no acusado. O acusado é imparcial além da conta. Não pede para ser preso,
nem para ser condenado. Mas, se o for, aceita e acostuma-se de tal modo que todo o
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desejo que tem é de ficar na sua cela e o instante de maior felicidade, em que pese a
simpatia do juiz, é quando este diz que o interrogatório acabou e os guardas carcerários
levam-no pelas mãos, como prisioneiro.
Outra prova da imparcialidade do acusado é quando ele narra que gostaria de ter dito ao
advogado - e não disse porque o advogado ficou zangado com sua falta de colaboração
na defesa - que gostaria de ser defendido naturalmente e não da melhor forma[6].
Na sessão de julgamento, a pressão popular e da imprensa, aliado a um fator também do
acaso - o julgamento imediatamente anterior ao de um acusado por parricídio - fez com
que a mesma fosse suspensa várias vezes. E a própria cobertura jornalística do caso
Meursault na sessão de julgamento era também obra do acaso, pois o principal alvo da
imprensa era o caso do parricídio (CAMUS, 2005, p. 131). Como tudo já estava
montado aproveitaram a oportunidade para dar cobertura ao julgamento do personagem
central, um verdadeiro estrangeiro.
A cena do julgamento com os jurados - que o acusado inicialmente não reconhecera
senão como visagens -, em meio ao circo de jornalistas e espectadores fazia tudo
parecer ridículo na percepção do acusado. E mesmo ciente de que eles não buscavam o
ridículo, mas o crime, a diferença entre o crime o ridículo não era tão grande na
percepção do acusado (CAMUS, 2005, p. 129).
O advogado de defesa diz: "Vejam a imagem desse processo. Tudo é verdadeiro e nada
não é verdadeiro" (CAMUS, 2005, p. 141). E indagou ainda se estavam acusando o réu
de ter enterrado a mãe ou de ter matado um homem (CAMUS, 2005, p. 148).
Entretanto, o procurador acusa-o de ter enterrado a mãe com um coração de criminoso.
A sessão é suspensa por urna intervenção do acaso. Um dos parentes da vítima do
parricídio, cujo réu seria julgado logo em seguida, intervém da platéia clamando por
justiça. A sessão é suspensa.
Quanto ao veredicto, o acusado sente mais pena do advogado do que de si mesmo.
Aliás, ele fora premiado. Sua execução é sua vingança: como se a grande cólera da
turba raivosa o tivesse purificado do mal (CAMUS, 2005, p. 185-186), desejoso que
houvesse muitos espectadores no dia da execução com gritos de ódio.
3 A BUSCA DA VERDADE REAL E O DIREITO-DEVER DO ACUSADO DE
PARTICIPAR DO PROCESSO A FIM DE POSSIBILITAR A DECISÃO MAIS
JUSTA
Explica Rangel (2007, p. 7) que a verdade formada nos autos do processo criminal é
uma verdade consensual diante das provas coligidas. Mas, tal consenso não é o
consenso do melhor argumento no sentido habermasiano, uma vez que a liberdade e a
vida são valores com os quais não se pactual consensualmente, “pelo menos enquanto
eticamente considerados”.
Não é exatamente o que vislumbramos no caso penal de Meursault. Ora, o julgamento
de Meursault desenrolou-se num embate de argumentos recheados de falácias e, ainda
que verdadeiros, no que pertine ao caráter esquisito do acusado, em nada aproveitariam
em termos lógicos e razoáveis para aferir a verdade acerca da motivação assassina em
relação ao árabe. E tudo isso deságua numa sentença muito ao gosto dos presentes, da
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platéia ansiosa pela condenação, ou seja, resultou numa sentença, digamos
“consensuada”, onde prevaleceu o melhor argumento, o que soou mais agradável ao
povo.
Mas, diz Rangel (2007, p. 7) a verdade “obtida, consensualmente, somente terá validade
se o for através da ética da alteridade”. Importante apontar desde logo que “os
princípios constitucionais de proteção e garantia da pessoa humana impedem que à
procura da verdade utilize-se de meios e expedientes condenáveis dentro de um Estado
Democrático de Direito” (RANGEL, 2007, p. 407). Nesse tópico, o art. 5º, inc. LVI da
Constituição Federal, declara como inadmissíveis as provas obtidas de forma ilícita.
Seria o caso de indagar, transpondo o caso penal de Meursault para o atual ordenamento
constitucional brasileiro, se o dossiê acerca do velório da mãe do personagem seria uma
prova lícita ou não.
Não guardando o fato tratado no dossiê, qual seja o comportamento do acusado no dia
do enterro da mãe, e seu caráter taciturno, com o fato investigado no processo penal (a
morte do árabe), é bastante óbvio deduzir que tal dossiê constituiria a mais aberrante e
inadmissível das provas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já decidiu:
Ilicitude da prova — Inadmissibilidade de sua produção em juízo (ou perante qualquer
instância de poder) — Inidoneidade jurídica da prova resultante da transgressão estatal
ao regime constitucional dos direitos e garantias individuais. A ação persecutória do
Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se
de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob
pena de ofensa à garantia constitucional do due process of law, que tem, no dogma da
inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções
concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. A Constituição da
República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza,
por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases
democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de
transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer
elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do
direito processual)... A exclusão da prova originariamente ilícita — ou daquela afetada
pelo vício da ilicitude por derivação — representa um dos meios mais expressivos
destinados a conferir efetividade à garantia do due process of law e a tornar mais
intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que
preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual
penal. (RHC 90.376, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-07, DJ de 18-5-07).
Não obstante, na prática processual penal brasileira, sobretudo em julgamentos perante
o Tribunal do Júri, sobejam exemplos em que se analisa tanto a biografia
comportamental do acusado, quanto a da vítima, constituindo o fato penalmente
relevante apenas um pretexto para a punição ou absolvição, conforme o “consenso
social” em torno da pessoa escolhida (ou excluída) para bode expiatório, especialmente
quando se descobre que o escolhido tinha alguma tara sexual, um comportamento
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incestuoso, por exemplo, ainda que não guarde relação com o fato criminoso submetido
ao veredicto.
No plano normativo não podemos ignorar que “o desinteresse do acusado pela ação
penal pouco favorece a acusação” (BARROS, 2002, p. 170), diferentemente do que
ocorre no processo civil. Mas, ao acusado não se pode exigir a imparcialidade, diz
Marco Antonio de Barros (op. cit., p. 170).
É exatamente a imparcialidade que constatamos no personagem do romance ora em
análise, justamente porque a parcialidade “é essencial na defesa da liberdade e demais
direitos do réu, sendo manifesto o interesse público de sua preservação” (BARROS,
2002, p. 170).
A parcialidade do acusado é o que previne os excessos do Estado.
Assim, por maiores que sejam as garantias constitucionais, o acusado não pode ficar
inerte à espera de um julgamento justo, pois o Direito, dentro do qual se insere o
processo penal, não é uma ilha isolada de outros fatores sociais.
O direito ao silêncio que, em princípio e por princípio (da garantia do devido processo
legal), não deve ser causa para agravar a situação do acusado, deve ser utilizado pelo
acusado sempre em seu próprio benefício. Jamais o inverso. No presente caso,
Meursault teve oportunidade de silenciar em relação ao fato criminoso do qual estava
sendo acusado (a morte do árabe), mas não silenciou. Pelo contrário, descreveu
minuciosamente os fatos. Entretanto, quando “acusado” de não ter chorado no enterro
da mãe, de ser taciturno, esquisito, estranho, estrangeiro ao padrão que se espera como
sendo de uma pessoa normal, Meursault acabou silenciando quando poderia ter revelado
que era um bom filho, que amava Maria e estava comprometido a casar-se com ela, que
sentiu muito quando a mãe faleceu, etc.
A indiferença do acusado em relação às convenções e, por conseguinte, em relação ao
dossiê que se fez de sua psicologia e caráter taciturno explicam em parte o resultado
final do processo, a condenação à morte. Quiçá tenha o autor da obra tentado passar a
mensagem de que não basta confiar na segurança do sistema jurídico, por mais perfeito
que ele seja ou pareça ser. É certo que o personagem tenta a todo tempo ser sincero e
não fazer o jogo das convenções, mas fica também uma reflexão político-filosófica:
seria de todo mal fazer o jogo das convenções para assegurar a própria liberdade?
Poderíamos, por outro lado, indagar: e se o personagem tivesse feito o jogo das
convenções e, ainda assim, tivesse sido condenado à morte? A mesma indagação poderse-ia fazer, voltando ao paralelo que se fez na introdução, em relação a Jesus diante de
Pilatos: qual teria sido o resultado de seu julgamento se ele tivesse respondido a Pilatos
que seu reino era pacífico, sem poder temporal, e que em vez de prejudicar o
imperialismo romano ajudaria a consolidar o império? Com mais razão, adiantamos a
resposta, teriam os judeus motivos para crucificá-lo por traição. Mas, pelo menos ele
teria tentado libertar-se vivo se fosse esse o seu intento.
Uma coisa é certa: se o juiz não é um ser insensível, mas, pelo contrário, imerso numa
teia de relações sociais está sujeito a uma série de interferências no ato de julgar, sem
zerar de todo a meta a ser perseguida que é a da imparcialidade e do julgamento justo, o
acusado tem o direito-dever de interagir com o juiz, seja silenciando, quando entender
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conveniente para sua defesa, seja respondendo às indagações, bem como com os demais
atores da persecução criminal a fim de concretizar o devido processo legal. A idéia de
um acusado tão inerte quanto o juiz não se coaduna com o moderno Estado
Democrático de Direito. Um novo Cristo diante de um novo Pilatos haveria de
responder de forma fundamentada a que reino o povo atribuía-lhe o comando, além de
questionar ponto por ponto a acusação que lhe fosse imputada. Não por acaso na no
art.2º. da Constituição italiana está expresso que “a República reconhece e garante os
direitos invioláveis do homem, tanto como indivíduo quanto nas formações sociais onde
se desenvolve a sua personalidade, e requer o adimplemento dos deveres inderrogáveis
de solidariedade política, econômica e social”.
A Constituição brasileira, embora não seja expressa acerca das responsabilidades
republicanas como é a Constituição italiana, no seu conjunto leva à mesma conclusão. A
propósito o STF já decidiu que diante de prisão flagrantemente ilegal o direito de
resistir é um dever de cidadania (HC 73454. 2a. Turma. Rel. Min. Maurício Corrêa. J.
em 22/04/1996, DJU I 07/06/1996, p. 19.827).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A manutenção do Estado Democrático de Direito e, no caso mais específico que
sobressai da leitura, a garantia do devido processo legal é um dever de solidariedade
política que se dirige a todos os atores do processo penal, inclusive ao acusado. Não
pode ele silenciar, mesmo diante de provas ilícitas e tanto mais se ilícitas forem, quando
o seu silêncio em nada aproveite na preservação do status libertatis, na sua condição de
indivíduo detentor da cidadania. Em suma, a era dos bodes expiatórios não se coaduna
com a civilização contemporânea. Todo aquele que esteja sendo alvo de uma
crucificação tem não apenas o direito, mas o dever, de seguir a recomendação de Raul
Seixas[7]: o melhor que se faz é fugir das causas que levarão à crucificação. Seria isto
uma recomendação para acovardar-se? Depende. O que se sugere é que a liberdade do
indivíduo e o Estado Democrático de Direito, ambiente no qual se assegura a liberdade
de todos para a realização das potencialidades humanas, requerem uma atitude mais
pró-ativa do cidadão no plano da comunicação e da interação social a fim de evitar que
o Direito, em especial o processo penal, seja contaminado por uma carga excessiva de
preconceitos ideológicos, de fanatismo, de subjetivismos arbitrários que redundarão em
decisões injustas.
O direito de espernear, direito inalienável do acusado e também do condenado,
balançando este último as grades do cárcere para que o carcereiro consulte diariamente
o seu prontuário e verifique se não é hora de libertá-lo, parece mais sagrado do que o
direito ao silêncio que o condena tacitamente aos olhos da sociedade.
Representa esta uma exigência elevada demais para um acusado, digamos, analfabeto?
Certamente. E a educação é o caminho para salvar a humanidade da crucificação. O
direito à autodefesa só há de produzir resultados efetivos plenamente numa sociedade
que esteja medianamente bem educada. Em suma, para evitar a mutação da acusação
penal decorrente do processo de comunicação social não basta confiar nas declarações
de direitos. Há que se imiscuir no jogo da linguagem e fiscalizar ativamente, de forma
interativa, a participação dos atores envolvidos na persecução criminal e na jurisdição
penal.
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BIBLIOGRAFIA
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2002. 306p.
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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 1.432p.
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VESCOVI, Renata Conde. Direito e Psicanálise: uma interdisciplinaridade absurda?
Informativo da Faculdade de Direito de Vitória. Disponível em: www.fdv.br. Acesso
em: 30 set. 2008.
[1] No original: “J’acuse cet homme d’avoir enterre une mère avec un coeur de
criminel” (p. 148).
[2] No original: “Rester ici ou partir, cela revenait au même”.
[3] No original: “J’ai compris que j’avais détruit l’équilibre du jour, le silence
exceptionnel d’une plage ou j’avais été heureux” (p. 95).
[4] No original: “A ce moment, et à la limite de la nuit, des sirènes ont hurlé. Elles
annonçaient des départs pour un monde qui maintenant m’était à jamais indifferent” (p.
185).
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[5] No original: “Je reconnaissais en même temps que c’était ridicule parce que, après
tout, c’était moi le criminel” (p. 107).
[6] No original: “J’aurai voulu le retenir, lui expliquer que je désirais sa sympathie, non
pour être mieux défendu, mais, si je puis dire, naturellement”. (p. 103).
[7] Na música Al Capone, em que diz: “ô Jesus Cristo/ o melhor que você faz/ é deixar
o Pai de lado/ foge pra morrer em paz”.
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Francisco Alexandre De Paiva Forte