Uma ciência que círcula, a medicina tropical
Ilana Löwy
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LÖWY, I. Vírus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre ciência e política [online].
Tradução de Irene Ernest Dias. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. 427 p. História e Saúde
collection. ISBN 85-7541-062-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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Uma Ciênciaquecírcula, a Medicina Tropical
Uma Ciência que Circula
No o u t o n o de 1 9 0 1 , três pesquisadores do Instituto Pasteur, os d o u tores A. Taurelli Salimbeni, E. M a r c h o u x e P.-L. S i m o n d - estes dois eram,
então, m e m b r o s do corpo médico das colônias - partem para o Brasil. S ã o
incumbidos pelo Ministério das Colônias de verificar a conclusão dos t r a balhos desenvolvidos e m Cuba pela Comissão Reed ( 1 9 0 0 - 1 9 0 1 ) , c o m p o s ta por médicos militares americanos. S u a hipótese, segundo a qual a febre
amarela, e x a t a m e n t e c o m o a malária, seria transmitida por u m m o s q u i t o
n ã o deixaria, u m a vez confirmada, de ter importantes repercussões práticas. A febre a m a r e l a havia sido considerada até então c o m o u m a doença
c o n t a g i o s a clássica, p r o p a g a d a fosse por c o n t a t o direto c o m u m doente,
fosse por c o n t a t o c o m suas roupas, alimentos e roupa de c a m a , o u ainda
c o m qualquer o u t r o objeto contaminado. O surgimento repentino da doença
n o s portos europeus que recebiam navios provenientes de países tropicais
havia reforçado a idéia de que a febre amarela era u m a doença contagiosa;
as epidemias o c o r r i d a s f o r a dos t r ó p i c o s - e m S a i n t - N a z a i r e ( 1 8 6 6 ) o u
S w a n s e a ( 1 8 6 5 ) - t i v e r a m , é verdade, c u r t a duração, m a s o desaparecim e n t o do foco epidêmico foi atribuído à fragilidade do agente (suspeitavase fortemente, n o fim do século X I X , de que este era u m m i c r o r g a n i s m o
patogênico) e à sua incapacidade de sobreviver n u m clima temperado.
1
A p o i a n d o - s e n a s o b s e r v a ç õ e s a n t e r i o r e s do m é d i c o c u b a n o Carlos
2
F i n l a y , as p e s q u i s a s dos médicos m i l i t a r e s n o r t e - a m e r i c a n o s m o d i f i c a r a m r a d i c a l m e n t e a p e r c e p ç ã o da febre a m a r e l a , a c r e s c e n t a n d o u m elo
s u p l e m e n t a r à s u a cadeia de t r a n s m i s s ã o . Segundo a expressão figurada
de Georges Canguilhem, tal descoberta acrescentou u m a n o v a representa¬
3
ç ã o à s figurações da M o r t e : a M o r t e q u e t e m a s a s . A descoberta dessa
n o v a f o r m a de t r a n s m i s s ã o podia ser percebida c o m o algo ao m e s m o t e m po inquietante e tranqüilizador; c o m efeito, é m a i s fácil evitar o c o n t a t o
c o m p e s s o a s a t i n g i d a s do q u e c o m m o s q u i t o s , onipresentes n o s c l i m a s
quentes, m a s os especialistas esperavam que o m o s q u i t o se revelasse o elo
fraco da cadeia, e que s u a eliminação levasse à erradicação da p a t o l o g i a
cujos agentes ele veicula.
As pesquisas dos especialistas n o r t e - a m e r i c a n o s sobre a t r a n s m i s são da febre amarela interessaram vivamente os colonos franceses. Se b a s t a v a a t a c a r os m o s q u i t o s p a r a e x t i r p a r a doença, a q u a r e n t e n a ,
muito
onerosa, dos navios provenientes de portos em que a doença grassava deix a v a de ser necessária. T r a t a v a - s e , n o e n t a n t o , de convencer o s serviços
militares da confiabilidade desses trabalhos, segundo os quais o agente da
febre amarela não se podia transmitir por c o n t a t o c o m mercadorias c o n t a minadas. A associação dos comerciantes franceses do Senegal, país d u r a m e n t e atingido por epidemias recorrentes, dirigiu-se em 1 9 0 0 ao governo
francês p a r a solicitar a criação de u m a c o m i s s ã o de especialistas encarregada de confirmar o u invalidar os resultados obtidos pelos médicos a m e r i c a n o s e m C u b a . O p a r l a m e n t o francês, após subscrever o r e q u e r i m e n t o ,
e n c a m i n h o u - o ao I n s t i t u t o Pasteur e, e m 1 9 0 1 , três de seus especialistas
p a r t e m para o Rio de Janeiro, levando n a b a g a g e m o equipamento c o m p l e t o de u m laboratório de bacteriologia: microscópios, pipetas, corantes, meios
de c u l t u r a e estufas.
A p e s a r de a ciência b a c t e r i o l ó g i c a ser ainda e m b r i o n á r i a e m 1 9 0 1
(suas bases f o r a m estabelecidas a o l o n g o dos a n o s 1 8 7 0 - 1 8 8 0 ) , seu c o n h e c i m e n t o j á estava, então, relativamente b e m codificado, e isto g r a ç a s
às trocas realizadas n o s congressos internacionais, à atividade das publicações especializadas, ao seu ensino e à circulação dos especialistas - p r o pícia à c o m p a r a ç ã o dos diferentes métodos de t r a b a l h o . A circulação dos
especialistas e dos laudos dos peritos n ã o se limitava, de resto, aos países
o c i d e n t a i s ; estendia-se, i g u a l m e n t e , a o s países t r o p i c a i s . N a a u r o r a do
desenvolvimento da bacteriologia, as colônias c o n s t i t u í r a m , p a r a os m é dicos europeus e o c a s i o n a l m e n t e n o r t e - a m e r i c a n o s , u m a das regiões p r i vilegiadas p a r a a elaboração da n o v a disciplina, a observação das doenças
infecciosas e de seus agentes, assim c o m o para a experimentação de t r a t a m e n t o s preventivos e curativos. Desse p o n t o de vista, a m i s s ã o do Institut o Pasteur n o Rio de J a n e i r o diferia m u i t o p o u c o da m i s s ã o das demais
expedições de especialistas enviadas p a r a estudar u m a patologia local - a
n ã o ser pelo fato de o Brasil n ã o ser, à época, u m a colônia, m á s u m país
independente, d o t a d o de i n f r a - e s t r u t u r a s
m é d i c a s e científicas a u t ô n o ¬
m a s , c o m o hospitais, faculdades de medicina o u instituições de pesquisa,
ainda que incipientes.
A transferência para o Brasil de u m laboratório bacteriológico m u i t o
aperfeiçoado para a época e cujo equipamento e funcionamento foram rigorosamente copiados de u m centro de excelência europeu contribuiu para
o d e s e n v o l v i m e n t o de u m a tradição brasileira de pesquisa e m medicina
tropical e para a fundação, n o Rio de J a n e i r o , de u m c e n t r o de estudos
mundialmente reconhecido na área. Esse centro deve m u i t o à personalidade de seu fundador,
O s w a l d o C r u z , médico brasileiro que fez c u r s o s de
b a c t e r i o l o g i a n o I n s t i t u t o Pasteur. De v o l t a a o Brasil e m 1 9 0 0 , ele foi
n o m e a d o diretor do I n s t i t u t o S o r o t e r á p i c o de M a n g u i n h o s , i n s t i t u i ç ã o
dedicada à fabricação de a n t i - s o r o e vacinas. C o m o diretor do Serviço de
Saúde do Rio de J a n e i r o em 1 9 0 2 , C r u z r e a l i z o u n o a n o seguinte u m a
c a m p a n h a de grande envergadura, cujo objetivo era a erradicação da febre
a m a r e l a . O sucesso dessa c a m p a n h a r e f o r ç o u sua posição política e lhe
p e r m i t i u obter os r e c u r s o s necessários à t r a n s f o r m a ç ã o do I n s t i t u t o de
M a n g u i n h o s (rebatizado, em 1 9 0 8 , c o m o Instituto Oswaldo Cruz) em u m
instituto de pesquisa em medicina tropical, que m u i t o rapidamente c o n q u i s t o u notoriedade i n t e r n a c i o n a l .
Os êxitos aleatórios do Instituto Oswaldo Cruz, seus triunfos precoces
e suas dificuldades ulteriores f o r a m analisados nos a n o s 1 9 6 0 - período
marcado pela confiança na capacidade da ciência e da tecnologia ocidentais
de melhorar o futuro das populações - c o m o experiência bem-sucedida de
transferência da ciência dos países industrializados para a periferia.
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Estu-
dos recentes s u b l i n h a m a ausência de ligações evidentes e lineares entre a
presença, n u m país em desenvolvimento, de pesquisadores que d o m i n a m
conhecimentos científicos de ponta e o sucesso local de operações práticas
baseadas nesse saber, nos campos da indústria, da c o m u n i c a ç ã o , da defesa
o u , ainda, da saúde. A história da luta c o n t r a a febre a m a r e l a n o Brasil
ilustra b e m a complexidade das relações entre c o n h e c i m e n t o s e práticas.
Por volta de 1 9 1 0 , os especialistas brasileiros h a v i a m adquirido os m e s m o s c o n h e c i m e n t o s em m a t é r i a de t r a n s m i s s ã o da febre a m a r e l a que os
m e l h o r e s especialistas da F r a n ç a , Inglaterra, A l e m a n h a o u Estados U n i dos, prevalecendo-se de u m a longa experiência prática nessa doença. Além
disso, c o n t a v a m em seu ativo c o m u m a c a m p a n h a de erradicação b e m sucedida. Os brasileiros d i s p u n h a m ,
p o r t a n t o , do saber necessário para
extirpar a febre amarela do seu país; na prática, contudo, a execução desse
p r o g r a m a revelou-se mais difícil do que esperavam.
C o m efeito, a eliminação da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro não foi suficiente para livrar o Brasil desse flagelo. Apesar das tentati¬
vas de intervenção do Departamento Nacional de Saúde Pública brasileiro,
a doença perdurou nas cidades portuárias do nordeste do país. Foi então
que u m segundo grupo de cientistas estrangeiros interveio: os pesquisadores n o r t e - a m e r i c a n o s da Fundação Rockefeller, cuja c o n t r i b u i ç ã o c o m b i nava a i m p o r t a ç ã o de i n s t r u m e n t o s e técnicas de laboratório e a transferência de savoir-faire
organizacional e administrativo, considerado por eles
u m c o m p o n e n t e indispensável na luta c o n t r a as doenças transmissíveis.
A primeira tentativa de erradicar a febre amarela no Brasil ( 1 9 2 3 - 1 9 2 8 )
resultou n u m fracasso. A ocorrência inesperada de u m a importante epidemia no Rio de J a n e i r o ( 1 9 2 8 - 1 9 2 9 ) , seguida da reaparição da doença em
várias localidades brasileiras, levou-os a repensar os princípios de base de
sua c a m p a n h a e a prestar maior atenção aos conhecimentos epidemiológicos
e patológicos a c u m u l a d o s pelos médicos brasileiros.
Por volta de 1 9 3 0 , a identificação do agente da febre amarela, a elaboração dos modelos animais da doença e a perfeição dos métodos diagnósticos l e v a r a m a u m q u e s t i o n a m e n t o radical dos c o n h e c i m e n t o s até então
considerados c o m o adquiridos. A febre amarela, que os especialistas da Fundação Rockefeller só esperavam encontrar em a l g u m a s cidades portuárias
do Nordeste brasileiro, era a partir de então reconhecida c o m o u m a afecção
endêmica - u m a doença p e r m a n e n t e m e n t e presente - que atingia regiões
m u i t o extensas. A hipótese segundo a qual tratava-se de u m a doença que
a c o m e t i a os a n i m a i s da floresta, acidentalmente t r a n s m i t i d a ao h o m e m
por m o s q u i t o s , substituiu paralelamente a convicção precedente de que a
febre a m a r e l a era u m a doença e x c l u s i v a m e n t e h u m a n a . Desistindo da
erradicação da febre amarela, por ser esta patologia indissoluvelmente ligada à subsistência da floresta no Brasil, os especialistas decidiram, então,
privilegiar sua contenção por dois meios: o controle dos m o s q u i t o s que a
p r o p a g a m nas zonas de alta densidade habitacional e a produção de u m a
vacina capaz de proteger as pessoas em contato c o m os insetos da floresta.
Os especialistas da Fundação Rockefeller importaram, assim, para o Brasil o
savoir-faire administrativo capaz de orquestrar u m a campanha antimosquitos
de grande envergadura e o savoir-faire científico capaz de identificar os focos
de doença e produzir a vacina; depois, modificaram e adaptaram seu savoirfaire no trabalho de c a m p o . O resultado foi o desaparecimento, nos anos
1 9 3 0 , da ameaça de epidemias de febre amarela no Brasil -
triunfalmente
alardeado pelos especialistas da Fundação Rockfeller c o m o a "vitória contra
a febre amarela". M a s houve, realmente, "transferência de conhecimentos"
do centro para a periferia, o u aclimatação das práticas científicas ocidentais
a u m país em desenvolvimento? Qual foi o objeto da transferência, em que
direção ela se deu, e de acordo c o m que modalidades?
Aqui, trata-se de clarificar essa noção de "transferência dos conhecimentos e das práticas científicas" e, em termos mais gerais, o conceito de
u m a ciência que circula entre países desenvolvidos e em desenvolvimento,
c o m b i n a n d o métodos emprestados da história geral, da história da medicina tropical, dos estudos sociais e culturais da ciência, e da antropologia.
Os trabalhos dedicados à medicina tropical - e, em termos mais gerais, à propagação da ciência fora do Ocidente na época m o d e r n a e c o n temporânea - c e n t r a r a m o foco, na maioria dos casos, nos aspectos políticos e administrativos dessa difusão da ciência, o u nas condições técnicas
da p r o d u ç ã o de c o n h e c i m e n t o s p o s t o s em c i r c u l a ç ã o ; m u i t o
raramente
nos dois aspectos ao m e s m o t e m p o . Este t r a b a l h o pretende
demonstrar
que as diferentes dimensões da transferência dos conhecimentos e práticas
científicos estão indissoluvelmente ligadas. Para a c o m p a n h a r u m a ciência
que se desloca, é necessário retraçar as ações que se desenvolvem em m ú l tiplos espaços: n o l a b o r a t ó r i o e em c a m p o , nos debates p a r l a m e n t a r e s e
deliberações m u n i c i p a i s , nas publicações especializadas e na grande i m prensa. Esses espaços não têm u m a hierarquia predeterminada. U m a m u dança de orientação pode ocorrer após u m a decisão política, sob a pressão
popular o u c o m a introdução de u m a n o v a técnica laboratorial, de u m a
m o d i f i c a ç ã o na o r g a n i z a ç ã o das i n s t â n c i a s profissionais, o u ainda pelo
d e s e n v o l v i m e n t o de f e r r a m e n t a s a d m i n i s t r a t i v a s m a i s aperfeiçoadas. O
estudo da transferência da ciência implica, portanto, a necessidade de circular permanentemente entre os múltiplos lugares em que ela se efetuou e
entre as c u l t u r a s nela envolvidas.
"Febre Amarela" ou "Febres Amarelas"?
Em voga entre os historiadores e os sociólogos da ciência nos anos
1 9 6 0 - 1 9 7 0 , o c o n c e i t o de t r a n s f e r ê n c i a unidirecional dos saberes e das
tecnologias do centro para a periferia se viu nuançado por estudos de casos
c o n c r e t o s que c o n s t a t a v a m que n ã o se t r a t a v a , em regra geral, de u m a
t r a n s m i s s ã o passiva, m a s antes de u m a verdadeira i n t e r a ç ã o .
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Poderíamos reformular u m dos temas centrais deste livro da seguinte maneira: "Estudo da circulação dos saberes entre o centro e a periferia,
por meio do estudo de tentativas visando a controlar a febre amarela no
B r a s i l " . Esta frase pode, de início, parecer m e r a m e n t e descritiva. V i s t a
mais de perto, percebe-se que ela engloba, na realidade, u m grande n ú m e ro de noções problemáticas.
Em primeiro lugar, a dialética "centro" e "periferia". Os problemas
ligados à significação dos termos "ciência do centro" e "ciência da periferia" estão no cerne dos debates sobre a ciência fora do Ocidente. Após ter
c o n s t a t a d o que as fronteiras entre " c e n t r o " e "periferia" estão longe de
serem estáveis o u b e m definidas, os pesquisadores se q u e s t i o n a r a m sobre
a validade heurística desta distinção e sobre os riscos ligados à definição
de u m lugar identificado c o m o "centro" o u "periferia". Tal debate u l t r a passa l a r g a m e n t e o escopo deste t r a b a l h o . Convém, entretanto, observar
que os pesquisadores franceses (do Instituto Pasteur) e n o r t e - a m e r i c a n o s
(da Fundação Rockefeller) que a t u a r a m
no Brasil consideraram, de modo
geral, seu país de origem c o m o o "centro", o Brasil c o m o a "periferia", e a
maior parte de sua atividade c o m o u m m o v i m e n t o unidirecional de transferência dos saberes do centro para a periferia. Em compensação, os médicos b r a s i l e i r o s que e s t u d a r a m a febre a m a r e l a t i v e r a m
freqüentemente
u m a percepção mais complexa das relações científicas entre seu país e os
países i n d u s t r i a l i z a d o s . Eles h e s i t a r a m entre a v o n t a d e de " c i v i l i z a r " o
Brasil pela transposição dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos
ocidentais e a vontade de desenvolver u m a a p r o x i m a ç ã o científica o r i g i nal, e entre o reconhecimento da existência de u m a ciência do "centro", a
única capaz de legitimar seus esforços (só se é reconhecido c o m o cientista
pela comunidade científica internacional, o u seja, na prática, a dos países
ocidentais) e a aspiração a relativizar sua i m p o r t â n c i a .
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O t e r m o "Brasil" t a m b é m coloca u m problema. Alguns pesquisadores brasileiros a c h a r a m que seria mais exato falar dos "Brasis", para levar
em c o n t a as m ú l t i p l a s entidades que c o m p õ e m esse v a s t o país. Pode-se,
c o m efeito, dividir o Brasil segundo critérios geográficos e, desse m o d o ,
fazer distinção entre a Amazônia, o Sertão (as regiões semi-áridas do Nordeste), o interior, a costa, o Sul; ou em virtude de critérios econômicos: o
país da cana-de-açúcar, o país da borracha, o do café, da pecuária, ou da
indústria; pode-se igualmente enfatizar o a n t a g o n i s m o entre o Norte, p o bre e subdesenvolvido, e o Sul, mais rico e industrializado. Visto que u m a
parte deste livro se propõe a estudar u m serviço de saúde pública que depende do g o v e r n o federal brasileiro, legitimado pelas leis do país e que
aplicou (ou pelo m e n o s se esforçou em aplicar) em todo o território os
m e s m o s métodos sanitários, a opção pelo t e r m o "Brasil" reflete a importância atribuída ao papel do Estado brasileiro na área da saúde pública,
e n q u a n t o que as diferenças locais e regionais aparecem através dos e s t u dos de caso específicos.
A terceira dupla de noções problemáticas é constituída por "saberes"
e "febre amarela", ou antes pelas relações que eles m a n t ê m . Esses concei¬
tos estão n o próprio cerne de nossa pesquisa, que, apoiando-se em noções
desenvolvidas pela tradição dos estudos sociais e culturais da ciência (science
studies),
t e m c o m o objeto a gênese, o desenvolvimento, a multiplicação e a
c i r c u l a ç ã o das entidades produzidas pelos cientistas, tais c o m o a "febre
a m a r e l a " e suas conseqüências sociais, culturais e políticas. Essas entidades são moldadas a t r a v é s das interações entre c o n h e c i m e n t o s considerados c o m o adquiridos (por exemplo, a definição da febre a m a r e l a , de seu
agente causal, o v e t o r que a t r a n s m i t e ) , as atividades concretas dos pesquisadores e dos médicos (notadamente os exames utilizados para estabelecer o diagnóstico desta doença, os estudos de c a m p o sobre a disseminação, o i s o l a m e n t o e a c u l t u r a de seu agente etiológico, o t r a t a m e n t o das
doenças, a p r o d u ç ã o de u m a v a c i n a ) e a a ç ã o das a d m i n i s t r a ç õ e s e dos
poderes públicos (como, por exemplo, as reações das autoridades sanitárias
diante de u m a epidemia de febre a m a r e l a , a s a ç õ e s empreendidas
prevenir futuras
para
epidemias).
A q u i , i m p õ e - s e u m e s c l a r e c i m e n t o . A a f i r m a ç ã o de q u e a "febre
amarela" tal c o m o ela é percebida hoje em dia é, em grande medida, resultado da atividade de cientistas n ã o significa que a doença n ã o exista o u
que ela seja m e r a "construção de especialistas". A doença, o sofrimento e a
m o r t e são fenômenos que pertencem à experiência c o m u m do gênero h u m a n o e que, por isso, t ê m u m a existência própria, fora de qualquer c o n t e x t o científico. No e n t a n t o , se todas as sociedades h u m a n a s se c o n f r o n t a r a m c o m a experiência da doença e todas elaboraram ferramentas práticas e simbólicas para reagir a ela, tais ferramentas n ã o são idênticas. Os
trabalhos dos antropólogos, dos historiadores e dos sociólogos c o l o c a r a m
em evidência a enorme variabilidade nas interpretações do sofrimento e da
m o r t e , as diferentes percepções dos s i n t o m a s m ó r b i d o s p r o d u z i d o s p o r
sociedades diferentes, a s s i m c o m o a r i q u e z a das p r á t i c a s individuais e
coletivas desenvolvidas para se proteger das doenças. Para r e t o m a r a definição do historiador da medicina Charles Rosenberg,
a doença é ao mesmo tempo u m acontecimento biológico, u m repertório de construções verbais que refletem a história intelectual e
institucional da medicina numa dada geração, u m aspecto da política e
uma legitimação desta política, uma entidade que potencialmente define
u m papel social, u m componente das normas culturais e u m elemento
que estrutura as relações médico/doente.
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A doença pode, p o r t a n t o , ser descrita c o m o u m "fenômeno b i o c u l t u r a l " ,
u m a m i s t u r a de e l e m e n t o s independentes da v o n t a d e h u m a n a e de elementos
elaborados
pelos
homens.
Essa
interpenetração
e
essa
interdependência de e l e m e n t o s m a t e r i a i s e c u l t u r a i s na percepção e na
c o m p r e e n s ã o das doenças t o r n a m problemática qualquer dissociação entre a noção de doença e seu contexto histórico. No século X X , se é perfeitamente legítimo estudar os esqueletos de h o m e n s pré-históricos o u as m ú mias egípcias para tentar decifrar, utilizando a terminologia c o n t e m p o r â nea, de que males eles sofreram, tais estudos não dizem m u i t o sobre a
maneira c o m o u m h o m e m de C r o - M a g n o n percebeu seu "raquitismo", ou
u m sacerdote egípcio o seu "câncer nos o s s o s " .
8
A partir do século X I X , a "materialidade" da doença, ou seja, seus
aspectos biológicos e clínicos, destaca-se gradualmente da experiência direta dos doentes; ela é percebida principalmente por meio das observações
feitas pelos pesquisadores e pelos clínicos.
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Tais o b s e r v a ç õ e s
por sua vez, do estágio dos conhecimentos e do savoir-faire
dependem,
n u m período e
n u m espaço determinados: o aspecto "bio" do fenômeno biocultural a que
c h a m a m o s "a doença" t a m b é m reflete u m a história b e m p r e c i s a .
10
Além
disso, no século X X , a definição científica das doenças orgânicas baseavase m u i t a s vezes nos fenômenos estudados nos laboratórios e / o u observados
com
a
ajuda
de
instrumentos
e de
técnicas
específicas
(o
eletrocardiograma torna visível u m a doença cardíaca, a tuberculose é revelada por u m a s o m b r a em u m a radiografia do pulmão, a imagem típica
de u m a bactéria se observa c o m u m microscópio, o diabetes é lido pela
medida do nível de açúcar no sangue e na urina, o diagnóstico definitivo
do câncer depende de u m exame citológico). Tais fenômenos são, segundo
o pioneiro da sociologia da ciência Ludwik Fleck, "tecno-fenômenos" que
dependem dos saberes e das práticas dos cientistas e das técnicas e instrum e n t o s que eles u t i l i z a m .
11
Assim, a Aids era identificada, n u m
primeiro
m o m e n t o , pela presença de n u m e r o s a s infecções o p o r t u n i s t a s , o u seja,
principalmente c o m base no sofrimento físico do paciente. A definição de
"Aids comprovada" baseou-se, em seguida, na enumeração do n ú m e r o de
linfócitos do tipo C D 4 + , método que demanda o emprego de instrumentos
m u i t o c o m p l i c a d o s (os separadores de células) e de reativos específicos
( a n t i c o r p o s m o n o c l o n a i s ) e, a p a r t i r de m e a d o s dos a n o s 1 9 9 0 , na
q u a n t i f i c a ç ã o - por técnicas o r i u n d a s da biologia m o l e c u l a r - da c a r g a
viral no sangue dos indivíduos infectados. A definição "tecnocientífica" da
"Aids comprovada" dissociou, dessa f o r m a , a doença da experiência subjetiva do indivíduo.
12
A redefinição da doença na linguagem da ciência não anula, no entanto, a formulação advinda da experiência individual.
13
U m paciente g r a -
vemente atingido não precisa, em regra, de u m profissional para disso se
conscientizar, e os doentes de hoje podem ocasionalmente reconhecer ele¬
m e n t o s de sua experiência nas descrições dos textos a n t i g o s . A definição
científica da doença pode, e n t r e t a n t o , modificar a percepção dos estados
a s s i n t o m á t i c o s ; assim, u m a pessoa que se imagina em perfeita saúde e a
q u e m se anuncia que ela está sofrendo de u m câncer ou u m a pessoa que
descobre sua soropositividade n u m e x a m e de rotina passarão, na maioria
dos casos, a perceber seus corpos de m a n e i r a radicalmente diferente. Ela
pode t a m b é m modificar a significação dos s i n t o m a s : hoje, u m a
mulher
grávida provavelmente dará pouca i m p o r t â n c i a aos casos dos "temores"
o u dos s o n h o s ruins que a t o r m e n t a r a m as mulheres grávidas do século
XVIII, m a s em compensação ela estará atentíssima ao surgimento de c o n trações u t e r i n a s .
14
Essa redefinição pode t a m b é m se integrar à experiência
subjetiva dos doentes. Por exemplo, u m a pessoa que recebe a notícia de que
sofre de hipertensão irá, por vezes, reinterpretar suas sensações corporais
em f u n ç ã o das f l u t u a ç õ e s de s u a p r e s s ã o a r t e r i a l e p r o v a r
sintomas
adicionais provocados pelas "taxas ruins".
A integração das informações produzidas pela tecnologia médica às
sensações subjetivas dos doentes n ã o é, n o e n t a n t o , simples, n ã o se faz
a u t o m a t i c a m e n t e . U m doente de leucemia relata a confusão de seus sent i m e n t o s diante da avalanche dos resultados de laboratório que s u p o s t a m e n t e descrevem o desenrolar de sua doença:
Nunca consegui sincronizar meus sentimentos com a informação
médica que eu acabava de receber. Cada fragmento de informação era
potencialmente capaz de bagunçar meus sentimentos sobre minha sobrevivência, e modificar minha posição em relação a meu futuro, e
mesmo em relação ao presente [...]. Tive medo.
15
Nos países ocidentais, os doentes podem o u dar e x t r e m a i m p o r t â n cia aos resultados de seus e x a m e s médicos, o u decidir i g n o r á - l o s t o t a l m e n t e e fiar-se u n i c a m e n t e nas sensações de seu corpo, o u ainda oscilar
entre as duas atitudes. Os doentes dos países em desenvolvimento só dispõem do segundo p a r â m e t r o ; a quase totalidade dos doentes de Aids na
África sofre, assim, de "definhamento", e não da queda do n ú m e r o de seus
linfócitos C D 4 + o u de u m a u m e n t o do n ú m e r o de partículas virais em seu
sangue. A l é m disso, em certos casos patológicos, tais c o m o a e n x a q u e c a
ou as dores crônicas, n e n h u m método confiável permite estudar essa c o n dição por meio de medidas objetivas, desligadas do indivíduo. O médico
deve, portanto - às vezes a contragosto - se fiar nas descrições subjetivas
do doente para delas fazer o principal guia de sua intervenção terapêutica.
Essa impossibilidade de dissociar os s i n t o m a s e a pessoa é ainda m a i s
p a t e n t e n o c a m p o das d o e n ç a s m e n t a i s , a p e s a r do a r s e n a l de medidas
p r e t e n s a m e n t e "objetivas" desenvolvidas pelos p s i q u i a t r a s .
16
Mas a maio-
ria das patologias h u m a n a s é percebida por meio dos métodos utilizados
p a r a t o r n á - l a s m a i s visíveis, e s u a h i s t ó r i a n ã o pode ser dissociada da
h i s t ó r i a do desenvolvimento destes m é t o d o s . A febre a m a r e l a pertence a
essa c a t e g o r i a .
Hoje, b a s t a a b r i r u m a enciclopédia médica, u m livro de m e d i c i n a
tropical o u m e s m o percorrer u m a obra n ã o especializada para saber que a
febre a m a r e l a é u m a doença viral induzida por u m vírus b e m definido e
transmitida ao h o m e m pela picada de u m m o s q u i t o . A definição científica
da d o e n ç a baseia-se, a n t e s de tudo, n a identificação de seu a g e n t e . Para
atestar que u m a pessoa que apresenta sintomas que sugerem a febre a m a rela está efetivamente atingida por esta doença, é preciso fornecer a prova
de que ele foi infectado pelo vírus em questão. A partir de 1 9 3 0 , testes de
l a b o r a t ó r i o p e r m i t i r a m u m diagnóstico baseado n a presença desse v í r u s ;
testes indiretos p r o c u r a m anticorpos específicos n o s a n g u e do doente, ao
passo que testes mais diretos d e m o n s t r a m a presença do vírus pela indução
de u m a doença
típica n u m a cobaia na qual se injeta o sangue do doente.
A partir de meados dos a n o s 1 9 3 0 , t a m b é m se t o r n a possível cultivar o
vírus da febre amarela em ovos embrionados. M e s m o que a confiabilidade
dos testes tenha aumentado c o m o tempo, ela c o n t i n u a n ã o sendo a b s o l u ta. A l é m disso, as a m o s t r a s - sejam elas de s a n g u e o u de s o r o - devem
chegar e m b o m estado a u m laboratório c o r r e t a m e n t e equipado e dotado
de pessoal competente, condição nada óbvia n a maioria dos países e m que
a febre a m a r e l a está presente hoje. Todavia, n a ausência de identificação
f o r m a l do vírus, o diagnóstico da febre amarela fica incompleto; será, n a
m e l h o r das hipóteses, u m a forte conjectura.
A n t e s de 1 9 3 0 , e m c o m p e n s a ç ã o , a identificação da febre a m a r e l a
b a s e a v a - s e e x c l u s i v a m e n t e n o s sinais clínicos da doença ( o c a s i o n a l m e n t e
enriquecidos, a p a r t i r dos a n o s 1 9 2 0 , pela o b s e r v a ç ã o post mortem
das
t r a n s f o r m a ç õ e s patológicas das células do fígado de pacientes falecidos) e
nos indícios epidemiológicos.
17
Alexandre Humboldt descreveu e m 1 7 9 9 a
freqüência da febre amarela em Havana, e os médicos que h a v i a m participado da expedição de Bonaparte ao Egito relataram a presença de casos de
"febre amarela"; m a s todos estes observadores falam de u m a "febre a m a rela clínica", e n ã o se pode excluir a possibilidade de que a patologia que
o b s e r v a r a m fosse diferente da "febre amarela dos virólogos", o u seja, u m a
doença definida pela identificação de seu agente.
A q u e s t ã o da identidade da d o e n ç a c h a m a d a "febre a m a r e l a " n o s
séculos XVIII e X I X não é de modo a l g u m teórica, pois, segundo os especialistas, a febre a m a r e l a foi m u i t a s vezes confundida c o m o u t r a s doenças.
A l é m disso, c o m o v e r e m o s m a i s adiante, duas doenças q u e a p r e s e n t a m
s i n t o m a s clínicos semelhantes, a febre a m a r e l a (hoje definida c o m o u m a
doença induzida por u m vírus) e a leptospirose (hoje definida c o m o u m a
doença induzida por u m a bactéria), só f o r a m definitivamente dissociadas
pelos especialistas e m fins dos a n o s 1 9 2 0 . Antes disso, u m a pessoa que
tivesse s i n t o m a s de "febre amarela" poderia ter (segundo os critérios p o s teriores a 1 9 3 0 ) sofrido o u da "verdadeira febre amarela" o u de leptospirose,
o u ainda de u m a o u t r a doença a c o m p a n h a d a de febre, de a l b u m i n a n a
urina, e de icterícia. Os s i n t o m a s da febre amarela, sejam eles u m a febre
alta, icterícia - sinal de c o m p r o m e t i m e n t o severo do fígado - , o u m e s m o
v ô m i t o de sangue c h a m a d o "vômito-negro", n ã o são de m o d o a l g u m específicos. Tal dificuldade n ã o escapou aos médicos que estudaram essa doença antes do advento das técnicas virológicas e i m u n o l ó g i c a s baseadas n a
identificação de seus agentes etiológicos. Os especialistas ingleses que tent a r a m , e m 1 9 1 3 , atestar a presença da febre amarela n a África Ocidental
i n v e n t a r i a r a m u m n ú m e r o i m p r e s s i o n a n t e de d o e n ç a s
freqüentemente
confundidas c o m a febre a m a r e l a c o m base nos sinais clínicos; entre elas
e n c o n t r a m - s e a m a l á r i a , a d e n g u e , a febre p a p a t a c i , a febre tifóide, a
paratifóide, a febre ondulante. E m seguida eles propuseram testes de l a b o r a t ó r i o c a p a z e s de d i s c r i m i n a r a l g u m a s - m a s n ã o todas - dentre elas.
Estavam plenamente conscientes do fato de que suas pesquisas, conduzidas
por especialistas e financiadas por u m o r ç a m e n t o especial, t i n h a m
caráter
a b s o l u t a m e n t e e x c e p c i o n a l ; n a s condições h a b i t u a i s de t r a b a l h o de u m
médico n a s regiões tropicais, a probabilidade de se estabelecer u m diagn ó s t i c o e r r ô n e o era, s e g u n d o eles, m u i t o a l t a .
1 8
Além disso, a doença
induzida pelo vírus da febre amarela é m u i t a s vezes "atípica" e pode a s s u m i r formas m e n o s severas. C o m base apenas nas observações clínicas dessas formas, m u i t a s vezes desprovidas de icterícia pronunciada, n ã o se p o dem distinguir o u t r a s doenças febris.
Portanto, se e s t a m o s falando de pessoas acometidas de "febre a m a rela", c o n v é m datar e s i t u a r esta c o n s t a t a ç ã o e explicitar a base sobre a
q u a l a afecção foi, a s s i m , definida: a f i r m a ç õ e s de não-especialistas, o p i nião dos médicos o u análises de laboratório. Na falta de a m o s t r a s de s a n gue, cortes histológicos de órgãos o u o u t r o s elementos que hoje s u s t e n t a m
u m diagnóstico de febre a m a r e l a , é impossível fazer c o m s e g u r a n ç a u m
diagnóstico retroativo. A questão n ã o t e m grande i m p o r t â n c i a q u a n d o o
objeto de estudo n ã o é a própria febre amarela; quando se lê n u m a descriç ã o feita pelos médicos das c o l ô n i a s que as t r o p a s f o r a m atingidas p o r
u m a epidemia de febre amarela, o u quando u m relato de viagem menciona
que u m a p e s s o a foi afetada p o r esta p a t o l o g i a , p o u c o i m p o r t a que ela
t e n h a sofrido de leptospirose, de m a l á r i a , de febre tifóide o u de hepatite
aguda. O m e s m o n ã o ocorre quando a pesquisa é sobre a "febre amarela"
propriamente dita; neste caso, a definição e a delimitação da entidade "feb r e a m a r e l a " pelas práticas dos médicos e dos pesquisadores n ã o são est r a n h a s ao objeto da pesquisa.
A ciência, é ocioso dizer, pode ser estudada de diversas m a n e i r a s . O
estudo de François Delaporte sobre as origens da descoberta do papel do m o s quito na transmissão da febre amarela utiliza o t e r m o "febre amarela" para
descrever ao m e s m o tempo a entidade assim designada por volta de 1 9 0 0 (e
definida c o m base nos sinais clínicos) e a doença a que hoje este n o m e se
refere (definida c o m base e m testes que revelam a presença de u m v í r u s
específico).
19
A utilização não problematizada do termo "febre amarela" pode
se explicar pelo objetivo perseguido pelo autor, que investiga as condições
que definem a possibilidade de emergência de u m novo c a m p o conceitual o s u r g i m e n t o dos vetores artrópodes n a medicina tropical. "A história da
febre a m a r e l a "
representa
uma
abordagem
enraizada
na
tradição
epistemológica francesa, que define a história das ciências c o m o "a análise
das e s t r u t u r a s teóricas e enunciados científicos, do m a t e r i a l c o n c e i t u a l e
dos campos de aplicação dos conceitos". U m a abordagem desse tipo facilita
os estudos focalizados n o desenvolvimento das idéias c i e n t í f i c a s .
20
O e s t u d o da ciência pode t a m b é m ser c o n s i d e r a d o de u m a
outra
maneira, que veria a ciência n ã o c o m o u m sistema coerente de enunciados
sobre a estrutura do m u n d o natural, m a s c o m o o conjunto indivisível das
práticas materiais, sociais e discursivas dos cientistas. A história do c o n trole da febre a m a r e l a descrita neste t r a b a l h o apóia-se e m u m a a b o r d a g e m que apreende o s o b j e t o s da ciência p o r m e i o dos i n s t r u m e n t o s
savoir-faire,
l i s t a s , o b j e t o s q u e m u d a m c o m a e v o l u ç ã o desses i n s t r u m e n t o s ,
savoir-faire
do
das maneiras de ver próprias de u m a comunidade de especiadesse
e dessas m a n e i r a s de ver. Tal visão do m u n d o n a t u r a l através
das "lentes das práticas científicas" (observação, análise, e x p e r i m e n t a ç ã o
e intervenção) gera "fatos científicos" (conceitos, objetos, técnicas, c l a s s i ficações)
que dependem do lugar e do tempo de sua produção, a s s i m c o m o
das redes nas quais estão inseridas e nas quais c i r c u l a m .
21
Em tal ótica, as
m u d a n ç a s de definição da febre a m a r e l a entre 1 9 0 0 e 1 9 5 0 c o n s t i t u e m
para o historiador u m objeto essencial de i n v e s t i g a ç ã o .
22
A definição atual da febre amarela t e m suas origens n o fim do século X I X , c o m o advento da microbiologia e a afirmação do postulado segundo o qual cada doença infecciosa é induzida por u m m i c r o r g a n i s m o específico. No princípio do século X I X , prevalecia u m a v i s ã o fisiológica q u e
sublinhava a unicidade das diversas patologias, igualmente percebidas c o m o
perturbações dos m e s m o s sistemas fisiológicos de base. Foi por v o l t a de
meados do século X I X que emergiu a idéia de u m a entidade "febres" c o m posta de unidades mórbidas muitos distintas, e desse modo diferenciou-se
a febre tifóide da difteria, da tuberculose o u ainda da pneumonia. Tratavase, de fato, da extensão às doenças endêmicas de hipóteses há m u i t o c o n sideradas válidas para n u m e r o s a s epidemias.
23
Os médicos não e n c o n t r a -
v a m m a i s dificuldades em reconhecer que a pestilência que atinge u m a
localidade após outra era u m a unidade mórbida distinta ou que u m navio
proveniente dos trópicos era portador de u m a afecção bem determinada.
24
S e , p a r a l e l a m e n t e , r e c o n h e c e r a m a e s p e c i f i c i d a d e de c e r t a s d o e n ç a s
transmissíveis c o m o a varíola, eles tiveram, em c o m p e n s a ç ã o , mais dificuldade em admitir, por exemplo, que as chamadas febres "sazonais" (tais
c o m o a gripe, a pneumonia, a febre tifóide, antes classificadas c o m o subtipos:
febres "intermitentes", "estacionárias" etc.) não eram modalidades de e x pressão diferentes da ação do m e s m o agente causal em indivíduos de c o n s tituição dessemelhante o u cujas condições de vida diferiam.
A c o n v i c ç ã o de que as doenças infecciosas são distintas n a s c e u de
sua observação apurada ao longo do século X I X . A transformação do h o s pital
em
espaço importante
para
a pesquisa
médica,
seu
rápido
florescimento, tendo por corolário o a u m e n t o do n ú m e r o de doenças (e de
cadáveres) que serviram aos médicos c o m o material de estudo e favorecer a m o d e s e n v o l v i m e n t o da a n a t o m o p a t o l o g i a e das observações clínicas
comparativas.
25
As doenças f o r a m inicialmente repertoriadas a partir da
descrição fina dos s i n t o m a s das quais eram a c o m p a n h a d a s (a nosologia);
depois, logo que possível, a partir da presença de lesões típicas dos tecidos
(a patologia, e mais tarde a histologia). Após se haverem apoiado em u m a
categoria geral "febres", os médicos a p u r a r a m a distinção entre as diferentes febres, diagnosticadas c o m base nos sintomas - sendo que os da pneum o n i a não e r a m idênticos aos da febre tifóide. A patologia permitiu, depois, que se c r i a s s e m classificações diferentes. Afecções m u i t o
distintas
que atingiam os pulmões, os ossos, os intestinos foram, desse modo, recon h e c i d a s , m u i t o a n t e s do a d v e n t o da b a c t e r i o l o g i a , c o m o o r i u n d a s da
m e s m a doença - a t u b e r c u l o s e - , c o m base na s e m e l h a n ç a de e s t r u t u r a
histológica dos tubérculos, lesões patológicas típicas desta doença.
O reconhecimento progressivo das doenças infecciosas c o m o entidades distintas levou os pesquisadores a supor que cada doença era induzida
por u m agente causal específico. A s s i m , a bacteriologia estendeu a noção
de especificidade das doenças a seus agentes: cada doença infecciosa distinta é induzida por u m m i c r o r g a n i s m o específico. Essa idéia foi c o m b a t i da por alguns médicos e biólogos que sugeriram que os m i c r o r g a n i s m o s
não formam
espécies verdadeiras,
e que todas as
transformações
morfológicas representam apenas a adaptação de u m único o r g a n i s m o (ou
u m n ú m e r o m u i t o reduzido de o r g a n i s m o s primitivos) a condições de cresc i m e n t o diferentes. A credibilidade da n o v a disciplina b a c t e r i o l ó g i c a dependia, p o r t a n t o , da capacidade dos especialistas de isolar m i c r o r g a n i s ¬
m o s patogênicos e da possibilidade de d e m o n s t r a r suas diferenças; donde
a i m p o r t â n c i a de técnicas tais c o m o as diluições seqüenciais, as c u l t u r a s
em m e i o sólido, as c o l o r a ç õ e s diferenciais e o c r e s c i m e n t o e m m e i o s de
c u l t u r a seletivos n o desenvolvimento e n a difusão da b a c t e r i o l o g i a .
26
Tal
resultado foi obtido graças à homogeneização das condições de i s o l a m e n t o e de c u l t u r a dos micróbios, c o m o objetivo de limitar ao m á x i m o s u a
variabilidade n a t u r a l : "as espécies b a c t e r i a n a s t o r n a r a m - s e
inteiramente
fixas, pois f o r a m utilizados m é t o d o s de investigação m u i t o r í g i d o s " .
27
A
u n i f o r m i z a ç ã o das t é c n i c a s b a c t e r i o l ó g i c a s p e r m i t i u a h o m o g e n e i z a ç ã o
dos m é t o d o s de estudo dos micróbios e, p o r t a n t o , in fine, a aceitação da
existência de espécies estáveis de m i c r o r g a n i s m o s . O r e c o n h e c i m e n t o da
existência de espécies m i c r o b i a n a s estáveis, por s u a vez, reforçou a idéia
de que cada doença infecciosa t e m seu agente específico.
28
A partir de en-
tão, a unidade das doenças infecciosas se f o r m o u através da unidade dos
agentes etiológicos: a sífilis e a gonorréia f o r a m definitivamente s e p a r a das, p o s t o que induzidas por m i c r o r g a n i s m o s diferentes, a o passo que a
tabe ( m a n i f e s t a ç õ e s n e u r o l ó g i c a s de sífilis terciária) foi, a c e r t a d a m e n t e ,
associada à entidade "sífilis" c o m base na presença da m e s m a bactéria.
U m a vez assumido o princípio da especificidade dos m i c r o r g a n i s m o s
patogênicos, a identidade do agente indutor de u m a doença transmissível
serviu c o m o princípio unificador dos sintomas. O desenvolvimento da b a c teriologia inverteu, assim, a ordem da prova: a etiologia tem, doravante,
primazia sobre os s i n t o m a s clínicos. A identificação do agente c a u s a l das
doenças transmissíveis assume grande importância para o pesquisador, m a s
t a m b é m para a epidemiologia, que ordena seu saber em função da identificação desses agentes; para o clínico, que aspira a aplicar em seus doentes
remédios específicos; e, enfim, para o especialista em saúde pública, que
baseia sua política em tentativas de impedir a difusão dos m i c r o r g a n i s m o s
patogênicos. M a s tal identificação - que pressupõe a "domesticação" de u m
agente patogênico e m laboratório, o u seja, sua cultura em tubo de ensaio e /
o u s u a i m p l a n t a ç ã o e m a n i m a i s - n e m sempre é fácil. A s t e n t a t i v a s de
m a n u t e n ç ã o do agente da febre amarela em laboratório só c h e g a r a m a u m
resultado inconteste após 5 0 anos de esforços ( 1 8 8 0 - 1 9 3 0 ) . Ao longo desse
tempo, os epidemiologistas e os clínicos multiplicaram as tentativas de abordagem prática dessa doença, baseados e m conhecimentos incompletos.
U m a vez reconhecido, por volta de 1 9 3 0 , de maneira consensual que
o agente da febre a m a r e l a era u m vírus, a questão da identidade da febre
a m a r e l a n a África e n a A m é r i c a pôde ser resolvida. Até então fortemente
suspeita, a despeito das vozes dissidentes que se elevavam entre os especialistas, essa identidade n ã o pudera ser evidenciada antes do desenvolvimento
dos m é t o d o s de estudo do agente e m laboratório. Foi a o l o n g o dos a n o s
1 9 3 0 - 1 9 4 0 q u e o s pesquisadores a p e r f e i ç o a r a m os m o d e l o s a n i m a i s da
febre amarela e desenvolveram o estudo imunológico desta doença (a pesquisa dos anticorpos específicos contra o vírus), antes de ajustar os m é t o dos de cultura de seu vírus em laboratório. A definição científica da febre
a m a r e l a c o m o u m a doença induzida por u m vírus específico se estabiliz o u , antes de ser elevada à condição de "fato científico estabelecido". Tal
estabilização, hoje apresentada c o m o evidente e r e s u m i d a e m u m a frase
n o s m a n u a i s de bacteriologia ("Em 1 9 2 8 , Stokes e Bauer evidenciaram a
presença do v í r u s da febre a m a r e l a n o m a c a c o " ) , requereu, n o e n t a n t o ,
esforços permanentes de m u i t a s pessoas e m diferentes regiões - na África,
n a A m é r i c a Latina, na França, n a Inglaterra, n o s Estados Unidos; ela se
consolidou c o m a circulação dos especialistas, dos reagentes, dos i n s t r u m e n t o s e das técnicas, assim c o m o c o m a elaboração das políticas de s a ú de pública que incorporavam sua nova definição aos esforços de prevenção
da febre a m a r e l a .
Os s o c i ó l o g o s da ciência f o r j a r a m a e x p r e s s ã o " c o - c o n s t r u ç ã o da
ciência e da sociedade".
29
Esta expressão, e m v o g a h á
aproximadamente
2 0 a n o s , e s b a r r o u n a r e s i s t ê n c i a de a l g u n s p e s q u i s a d o r e s e m c i ê n c i a s ,
filósofos
e historiadores da ciência interessados a c i m a de t u d o n o desen-
v o l v i m e n t o das idéias científicas, e que vêem a ciência c o m o o estudo da
n a t u r e z a i n a n i m a d a , independente da v o n t a d e h u m a n a . É i n t e r e s s a n t e
constatar, a esse respeito, que o conceito de existência de u m a
"natureza"
separada e distinta da "sociedade" foi, recentemente, mais u m a vez posto
e m xeque pelos pesquisadores que poderiam, n o entanto, estar particularm e n t e interessados e m defendê-lo, o u seja, os historiadores da ecologia.
Assim, o historiador norte-americano W i l l i a m Cronon estudou a moldagem
m ú t u a da natureza (paisagens, plantas, animais, ecossistemas) pela sociedade e da sociedade pelas condições naturais, e a interdependência entre os
e l e m e n t o s n a t u r a i s e a o r g a n i z a ç ã o e c o n ô m i c a e s o c i a l das sociedades
humanas.
3 0
A presença de terras férteis e s t i m u l a o desenvolvimento das
sociedades agrícolas; a de florestas, das sociedades fundadas sobre a e x ploração da madeira; e a de rios navegáveis, de cidades que centralizam o
comércio. A s m u d a n ç a s sociais e econômicas, por sua vez, afetam a n a t u reza: os c a m p o s podem ser t r a n s f o r m a d o s em terrenos de c o n s t r u ç ã o o u
e m parques, o u entregues aos agricultores; o leito dos rios pode ser modificado, eles podem ser secados, t r a n s f o r m a d o s e m canais de irrigação, em
estradas fluviais ou. e m espaços de n a v e g a ç ã o esportiva; as florestas p o dem ser q u e i m a d a s , desbastadas o u replantadas. Cada u m a dessas m u d a n ç a s , p o r s u a v e z , afeta as atividades h u m a n a s , e n q u a n t o q u e o r e sultado a longo prazo da interação complexa entre "meio ambiente" e " s o ciedade" é difícil de prever. Além disso, tal interação afeta t a m b é m
profun-
damente n o s s a c o m p r e e n s ã o das entidades "floresta", " c a m p o " o u " r i o " .
31
A asserção segundo a qual as florestas de hoje ( c o m exceção de certas
partes das florestas tropicais) são resultado de u m a longa coabitação entre
as plantas, os animais e os h u m a n o s , o u o fato de observar que os h a b i tantes do norte do Canadá t ê m u m a relação c o m a floresta completamente
d i f e r e n t e da q u e t ê m o s p a r i s i e n s e s q u e p a s s e i a m n a f l o r e s t a
de
Fontainebleau podem parecer m u i t o diferentes da afirmação de que a a t i vidade h u m a n a m o l d a entidades naturais c o m o o "vírus da febre a m a r e la", sendo afetado pela maneira c o m o se representa e se manipula o m u n do natural. A diferença, que efetivamente n ã o teríamos c o m o negar, entre
"floresta" e "vírus" se situa, contudo, n u m único nível: o da espessura das
mediações necessárias para t o r n a r u m a entidade visível e manipulável. A
entidade "floresta" pode ser apreendida d i r e t a m e n t e por todos; e m c o m pensação, são necessárias m ú l t i p l a s mediações para se apreender a e n t i dade "vírus". Tais mediações - aparelhos c o m o a u l t r a c e n t r í f u g a , o m i croscópio eletrônico o u o seqüenciador de nucleotídeos, reagentes q u í m i cos, animais e células, enfim, o saber especializado dos virologistas - torn a m difícil a percepção da importância da intervenção h u m a n a n a f o r m a ção dos "vírus". Determinar a medida dessa intervenção n ã o quer e m a b s o l u t o dizer que o v í r u s da febre a m a r e l a "não existe"; significa apenas
que este vírus, c o m o a floresta de Fontainebleau, n ã o pode ser entendido
c o m o u m a entidade independente da atividade dos h o m e n s . A c o - c o n s t r u ¬
ção da n a t u r e z a e da sociedade se situa nesse nível.
Ainda que a aceitação da participação h u m a n a n a formação de entidades c o m o os vírus tenha se tornado difícil pela importância e complexidade das mediações entre o "vírus" e a "sociedade", os mais ardorosos defensores de u m a ciência neutra e objetiva provavelmente hesitarão e m estender
tal percepção à saúde pública, disciplina que alia diretamente as habilidades
técnicas da ciência e as políticas de saúde. É pouco provável que os especialistas nessa área se recusem a admitir que seu trabalho produz ao m e s m o
t e m p o conhecimentos científicos fundamentais e práticas sociais fundadas
sobre a aplicação deste saber. A f ó r m u l a " c o - c o n s t r u ç ã o da ciência e da
sociedade", longe de ser u m a noção exótica que os atrapalha, pode, a s s i m ,
ser vista por eles c o m o m e r a descrição de sua atividade cotidiana. Não é,
provavelmente, por acaso que a idéia de co-dependência entre o desenvolvim e n t o dos conceitos e dos fatos científicos e o desenvolvimento das práticas
sociais tenha figurado pela primeira vez n u m estudo de 1 9 3 5 centrado n a
história de u m teste de detecção da sífilis - problema de saúde pública por
excelência - e voltado a emergir em 1 9 5 8 , o u seja, b e m antes do desenvolv i m e n t o das tendências recentes da história social da ciência, por meio das
propostas sustentadas pelo sociólogo Peter W i n c h sobre a bacteriologia:
A introdução do conceito de germe na linguagem da medicina foi [...]
a adoção, por pessoas que eram todas, direta ou indiretamente, ligadas
à prática da medicina, de uma maneira inteiramente nova de fazer as
coisas. U m a tentativa de dar conta da influência desse novo conceito
sobre a profissão médica não pode, portanto, ser separado de u m a
explicação de sua natureza e, inversamente, o conceito de germe tornase inteiramente incompreensível se for dissociado de suas relações com a
prática médica.
32
A inserção do saber sobre o germe na prática dos médicos e dos profissionais da saúde tem u m significado bem preciso: o controle dos micróbios é
inseparável do controle dos humanos que os portam e os transmitem. A coexistência estreita de fatores científicos e político-administrativos n o seio da
especialidade chamada "saúde pública" coloca, entretanto, u m problema: c o m o
se articulam as práticas de campo, que são necessariamente atividades localizadas, e as investigações de laboratório, tidas c o m o universalmente válidas
e independentes do lugar e do tempo de sua produção? A história da luta
contra a febre amarela n o Brasil ilustra as tensões entre o ideal de u m a ciência
médica universal e as práticas de saúde pública elaboradas localmente. Para
seguir essas tensões, será preciso debruçar-se inicialmente sobre as origens da
idéia - nascida no século X I X - de que o saber sobre as doenças é universal, e
pode ser facilmente transportado de u m a região para outra.
As Doenças Transmissíveis e a Universalidade da Ciência
O saber sobre as doenças sempre oscilou entre dois pólos: a unicidade
e a diversidade das m a n i f e s t a ç õ e s m ó r b i d a s . P r i m e i r o , a u n i c i d a d e : a
c o n s t a t a ç ã o de que todos os seres h u m a n o s partilham da m e s m a estrutura a n a t ô m i c a , t ê m os m e s m o s " h u m o r e s " e, c o n s t a t a ç ã o m u i t o mais t a r dia, de que t ê m os m e s m o s m e c a n i s m o s fisiológicos e bioquímicos de base
assim c o m o a observação das grandes epidemias que atravessaram os con¬
tinentes, a d v o g o u a universalidade de certas patologias h u m a n a s . Agora,
a diversidade: n u m e r o s a s afecções estiveram ligadas a sítios geográficos
precisos e / o u t i v e r a m r e p u t a ç ã o de e s t a r e m l i m i t a d o s a
determinadas
s u b p o p u l a ç õ e s . Não se t r a t a , evidentemente, de distinções a b s o l u t a s : os
médicos sempre r e c o n h e c e r a m a existência de traços c o m u n s às afecções
h u m a n a s que p e r m i t e m classificações genéricas ("febres", "indigestões",
"inflamações"), assim c o m o a grande diversidade das manifestações m ó r bidas ligadas às diferenças de " c a m p o " individual, o u seja, à constituição
única do indivíduo doente, assim c o m o à variabilidade do meio. Entretanto, conforme as épocas e os lugares, a ênfase podia estar na unicidade ou
na diversidade. Os "sistemas médicos" do século XVIII - que se prolongar a m no século X I X - se inclinaram para a unicidade, propondo explicações
monocausais ao conjunto de estados patológicos (a oposição estenia/astenia,
o excesso de sangue, a irritação do sistema digestivo). Essas causas únicas
demandaram
r e m é d i o s u n i f o r m e s ; a s a n g r i a foi, a s s i m , p r e s c r i t a p o r
Broussais e seus alunos c o m o tratamento universal para todas as doenças.
E n q u a n t o os partidários dos " s i s t e m a s m é d i c o s " defenderam
uma
causalidade única c o m expressões distintas em função da " c o n s t i t u i ç ã o "
do doente, os "teóricos climáticos" e raciais da doença, em voga nos séculos XVIII e X I X , ressaltaram as profundas diferenças entre os grupos
hu-
m a n o s . A emergência, em meados do século X I X , da n o ç ã o de "doenças
específicas" deu mais peso à tese da uniformidade; as lesões tuberculosas
serão e s s e n c i a l m e n t e as m e s m a s em doentes de c o n s t i t u i ç ã o diferente e
entre aqueles que m o r a m em lugares diferentes. Além disso, no século X I X
as doenças transmissíveis foram, m u i t a s vezes, divididas em dois grupos
principais: as doenças infecciosas (ligadas aos m i a s m a s , p o r t a n t o às c o n dições climáticas, às estações e aos lugares, cujo exemplo mais conhecido
c o n t i n u a a ser malária) e as doenças c o n t a g i o s a s , que se t r a n s m i t e m o u
por c o n t a t o direto c o m o doente, o u c o m os objetos (roupas de c a m a , louça, roupas) c o n t a m i n a d o s por suas secreções; a varíola é u m modelo incontestável deste último. Contrariamente às doenças infecciosas, as doenças contagiosas podem ser transmitidas artificialmente, por inoculação. A
prática da " v a r i o l i z a ç ã o " ( i n o c u l a ç ã o das p ú s t u l a s v a r i ó l i c a s h u m a n a s )
pleiteou u m a certa universalidade para as doenças, posto que a inoculação
de u m a matéria contagiosa específica se revelara capaz de introduzir
proteção específica contra a doença determinada.
33
uma
A vacinação j e n n e r i a n a
(inoculação de matéria infecciosa de pústulas de vaca), praticada c o m s u cesso n u m grande n ú m e r o de países, pôde evidenciar a universalidade do
princípio do contágio.
O m o v i m e n t o e m direção à separação entre o indivíduo e a doença se
acelerou, n o fim do século X I X , c o m o advento da teoria m i c r o b i a n a das
doenças, que a f i r m o u u m a causalidade única nas doenças infecciosas e as
conseqüências (relativamente) h o m o g ê n e a s do e n c o n t r o entre u m indivíduo e u m patógeno específico. O papel da "localidade" n ã o foi, entretanto,
m i n o r a d o . A descoberta do fenômeno dos "portadores sãos", pessoas que
p o r t a m e são capazes de disseminar m i c r o r g a n i s m o s patogênicos sem ser e m atingidas pela doença (a thyphoid
Mary,
cozinheira n o r t e - a m e r i c a n a
acusada de provocar epidemias de febre tifóide pela contaminação da c o m i da proveniente dos lugares onde ela trabalhara, tornou-se u m emblema dessa
situação) de fato reativou a q u e s t ã o das relações entre o p a t ó g e n o e sua
"localidade".
34
A f ó r m u l a , atribuída a Claude Bernard, segundo a qual "o
micróbio não é nada, o terreno é tudo", n u n c a perdeu sua pertinência para
u m g r u p o de clínicos, e a abordagem centrada mais n o doente do que na
"doença" readquiriu, em certa medida, sua popularidade n o entre-guerras.
35
Tratava-se, de u m lado, de u m movimento holístico, em voga entre os clínicos, e, de outro, de u m a tendência representada pelos epidemiologistas, estatísticos o u biometristas, que se interessavam pela doença c o m o fenômeno
das populações. E m compensação, a rápida difusão das "ciências pasteurianas"
(bacteriologia, imunologia, parasitologia) no fim do século X I X e início do
X X e sua transferência dos centros de produção do saber para a periferia
reforçaram a idéia de que as doenças transmissíveis r e p o u s a m sobre u m a
base biológica partilhada, contribuindo, assim, para a consolidação do c o n ceito de s a b e r m é d i c o u n i v e r s a l . Esse d e s e n v o l v i m e n t o foi p a r a l e l o a o
florescimento
do m o v i m e n t o pela universalidade da ciência e ao grande cres-
cimento do papel das trocas internacionais n a elaboração das modalidades
de intervenção n o c a m p o da saúde pública.
O m o v i m e n t o pela internacionalização da ciência desenvolveu-se por
v o l t a de 1 8 8 0 e m r e a ç ã o à f r a g m e n t a ç ã o e à a t o m i z a ç ã o da atividade
científica c o n s e c u t i v a s à potencial a s c e n s ã o dos n a c i o n a l i s m o s n o século
X I X . A partir de fins do século XVIII, cientistas e médicos se identificaram,
cada vez m a i s , s i m u l t a n e a m e n t e c o m s u a especialidade e s u a n a ç ã o . Os
especialistas e s t r a n g e i r o s e m u m a m e s m a disciplina p a s s a r a m , e n t ã o , a
ser vistos c o m o colegas e c o m o rivais em potencial. Essa a t o m i z a ç ã o levou
à perda da l i n g u a g e m c o m u m da ciência - que até o século XVIII foi o
l a t i m - e a o desaparecimento da comunidade internacional dos cientistas
da "república das letras". Ainda que o g r a u de cooperação entre os cientistas nos séculos XVII e XVIII tenha sido, mais tarde, exagerado a ponto de
provocar a nostalgia de u m a "idade de ouro" mítica da ciência, o século X I X
viu se desenvolver u m a tensão permanente entre os particularismos nacio¬
nais e o universalismo científico alimentado por tradições profissionais e
considerações i d e o l ó g i c a s .
36
O m o v i m e n t o de i n t e r n a c i o n a l i s m o científico
t e n t o u trazer respostas a tais tensões, centrando seus esforços n a unificação das nomenclaturas científicas e n a concentração das bibliografias, destinadas a criar u m a língua universal da ciência. Antes de tudo u m m o v i m e n t o de idéias, ele tentou criar de c i m a para baixo u m a ciência internacional unificada. Animado por estudiosos militantes, prosélitos e verdadeiros
" p r o f i s s i o n a i s " do i n t e r n a c i o n a l i s m o c i e n t í f i c o , e s s e m o v i m e n t o de
universalização da ciência desenvolveu-se principalmente por meio da o r ganização de congressos, de grupos de trabalho, e dos esforços que visavam
a melhorar a circulação da informação científica.
37
O m o v i m e n t o pela investigação da saúde pública t e m origem n o t e mor, m u i t o concreto, das epidemias; tal apreensão s u s c i t o u tentativas de
implementação de políticas sanitárias c o m u n s . Mais tarde, c o m o advento
da teoria microbiana da doença, esse m o v i m e n t o promoveu u m esforço de
h o m o g e n e i z a ç ã o das práticas de laboratório utilizadas para reconhecer os
agentes das doenças transmissíveis. Ele se e s t r u t u r o u a t r a v é s das c o n f e rências sanitárias internacionais. A primeira aconteceu e m Paris em 1 8 5 1 .
Nove o u t r a s c o n f e r ê n c i a s se r e a l i z a r a m ao l o n g o do século X I X ( 1 8 5 9 ,
1 8 6 6 , 1 8 7 4 , 1 8 8 1 , 1 8 8 5 , 1 8 9 2 , 1 8 9 3 , 1 8 9 4 e 1 8 9 7 ) , quatro balizaram o
século X X ( 1 9 0 3 , 1 9 1 1 - 1 9 1 2 ,
1 9 2 6 e 1 9 3 8 ) . A aceleração do r i t m o das
conferências a partir de 1 8 8 1 e sua freqüência nos anos 1 8 9 0 correspondem
ao rápido desenvolvimento da bacteriologia e à importância que esta disciplina g a n h o u na luta c o n t r a as doenças i n f e c c i o s a s .
38
As conferências sanitárias internacionais c o n s t i t u í r a m i n i c i a l m e n t e
u m a resposta ao t e m o r de ver o cólera se difundir. O cólera asiático atinge
a fronteira da Europa pela primeira vez em 1 8 2 9 , chegando a Oranenburg,
na extremidade sudeste do império russo. E m 1 8 3 0 , a epidemia que irrompeu
durante a feira de Nizny-Novogrod chega a M o s c o u e, ao longo dos anos
seguintes, graves epidemias invadem a maioria das grandes cidades e u r o péias. C o m o a f o r m a de propagação do cólera era então desconhecida, os
poderes públicos t e n t a r a m estancar as epidemias c o m os m e i o s tradicionais, o u , dito de o u t r a m a n e i r a , c o m a q u a r e n t e n a i m p o s t a aos navios,
pessoas e mercadorias provenientes de países onde a epidemia g r a s s a v a .
39
Essas q u a r e n t e n a s e n t r a v a r a m s e v e r a m e n t e o c o m é r c i o i n t e r n a c i o n a l e
reduziram os proventos dos comerciantes, sem que sua eficácia tenha sido
atestada. O objetivo das primeiras conferências sanitárias foi estudar e m
que medida era concebível suprimir a quarentena sem colocar e m risco a
saúde das populações. A Primeira Conferência Sanitária Internacional (Paris, 1 8 5 1 ) reuniu representantes de 11 Estados europeus (quatro dos quais
se t o r n a r ã o , mais tarde, províncias da Itália unificada). Cada país foi representado por u m médico e u m diplomata, dupla que representava a saúde pública i n t e r n a c i o n a l , nascida do e n c o n t r o da prática médica c o m a
política. Apesar da vontade declarada dos participantes de agir eficazmente c o n t r a as epidemias, as primeiras conferências sanitárias tiveram u m
papel m e r a m e n t e c o n s u l t i v o , sem que os países participantes estivessem
c o m p r o m e t i d o s c o m suas decisões. Além disso, nas três primeiras conferências os votos foram individuais e não por países, de modo que não era
r a r o que dois delegados de u m m e s m o país v o t a s s e m diferentemente. O
estatuto das conferências sanitárias internacionais m u d o u a partir da sexta
delas (Veneza, 1 8 9 2 ) , que elaborou o texto da primeira convenção sanitária internacional que os países participantes se c o m p r o m e t e r a m a respeitar (esse t e x t o foi modificado várias vezes pelas conferências seguintes).
D u r a n t e as primeiras conferências, os debates se c o n c e n t r a r a m na
noção do contágio do cólera, freqüentemente contestado à época. A m a i o ria dos participantes da primeira conferência era favorável à idéia de que
se t r a t a v a de u m a doença c o n t a g i o s a , e a q u a r e n t e n a foi r e c o m e n d a d a
para c o m b a t ê - l a . A febre amarela, m e s m o que não tenha sido vista c o m o
u m perigo para a saúde pública nos países europeus, foi, contudo, m e n cionada ao longo dos debates c o m o exemplo de u m a doença sobre a qual
ficara firmemente estabelecido - c o m base em observações epidemiológicas
- que pode se transmitir de u m a pessoa doente a indivíduos em b o m estado de saúde. A contagiosidade do cólera foi aceita pela grande maioria dos
p r o f i s s i o n a i s p r e s e n t e s à Terceira C o n f e r ê n c i a S a n i t á r i a I n t e r n a c i o n a l
(Constantinopla, 1 8 6 6 ) , m a s os especialistas tiveram dificuldade em c h e gar a u m acordo quanto às medidas necessárias para conter sua propagação, dada a ausência de prova c o n v i n c e n t e da eficácia das
quarentenas.
A l g u n s p a r t i c i p a n t e s i n s i s t i r a m na i m p o r t â n c i a das práticas s a n i t á r i a s ,
tais c o m o a fiscalização da água, a limpeza dos espaços de habitação, a
c a n a l i z a ç ã o n a s cidades e a higiene pessoal. Essa sensibilização para os
benefícios da higiene n ã o era necessariamente a c o m p a n h a d a da adesão às
teorias microbianas da doença o u da importância conferida aos novos dados epidemiológicos. Os higienistas b r i t â n i c o s - especialmente lentos na
adoção das conclusões das pesquisas epidemiológicas nas rotas de difusão
do cólera, e por m u i t o tempo céticos quanto ao papel do micróbio na indução
desta doença - foram, contudo, os primeiros a livrar u m país europeu da
a m e a ç a das epidemias de cólera, e isso g r a ç a s à distribuição racional de
água pura e à evacuação sanitária das secreções h u m a n a s .
4 0
A revolução bacteriológica m u d o u a natureza das pesquisas sobre o
cólera, m a s sua influência sobre as modalidades de luta contra esta doen¬
ça foi m u i t o limitada. A descoberta do micróbio do cólera e de suas vias de
transmissão (o Vibrio cholerae foi descrito pelo bacteriologista alemão Robert
Koch em
1 8 8 8 ) não
modificou
essas p r á t i c a s . Os t r a b a l h o s
b a c t e r i o l o g i s t a s p u d e r a m , n o m á x i m o , l e g i t i m a r a posteriori
dos
as medidas
sanitárias que decorreram de observações empíricas p o r parte dos higie¬
n i s t a s , reforçadas pelo sucesso das p r i m e i r a s c a m p a n h a s de c o n t r o l e da
insalubridade nas cidades. A luta c o n t r a a peste foi, desse ponto de vista,
s e m e l h a n t e à que se t r a v o u c o n t r a o cólera: o i s o l a m e n t o do b a c i l o da
peste e a elucidação do papel da pulga do r a t o n a t r a n s m i s s ã o da doença
n ã o a l t e r a r a m grande coisa n a elaboração das medidas preventivas. Tais
medidas, estabelecidas antes da descoberta do micróbio, t i n h a m por objetivo a destruição dos roedores, de realização m a i s prática do que a elimin a ç ã o aleatória de seus parasitas. O destino da febre a m a r e l a foi c o m p l e t a m e n t e o u t r o . Os esforços p a r a e r r a d i c á - l a e s t i v e r a m , desde o fim do
século X I X , estreitamente ligados aos esforços de compreensão da etiologia
e da difusão da doença. As q u a r e n t e n a s e as c a m p a n h a s s a n i t á r i a s n ã o
específicas n ã o i n t e r r o m p e r a m sua difusão. A luta eficaz c o m e ç o u c o m a
descrição do papel do m o s q u i t o c o m o v e t o r i n c o n t o r n á v e l da doença. A
partir do c o m e ç o do século X X , a febre amarela foi, portanto,
apresentada
c o m o a patologia que evidenciou a i m p o r t â n c i a da ciência médica para a
saúde pública. Donde o papel simbólico, e n ã o apenas prático, das c a m p a n h a s c o n t r a essa doença.
A febre amarela foi mencionada ao longo das primeiras conferências
sanitárias internacionais, sem que n o e n t a n t o t e n h a sido objeto de debates. Ao longo da Quinta Conferência (Washington, 1 8 8 1 ) , o médico c u b a n o Carlos Finlay apresentou, pela primeira vez, u m a teoria sobre a propag a ç ã o da febre a m a r e l a f u n d a m e n t a d a
n a presença de u m "agente cuja
existência é c o m p l e t a m e n t e independente da doença e do doente", e que é
necessário para t r a n s m i t i r a infecção de u m doente a u m h o m e m
saudá-
vel. Seis meses depois, Finlay confirmava, c o m base em suas observações
epidemiológicas, que o m o s q u i t o Stegomyia fasciata
(depois batizado Aedes
aegypti) era o v e t o r intermediário da doença. A intervenção de Finlay n ã o
teve desdobramentos. Os delegados exprimiram u m v a g o desejo de que as
n a ç õ e s m a i s d i r e t a m e n t e interessadas c r i a s s e m u m a c o m i s s ã o s a n i t á r i a
científica temporária, m a s esse v o t o n ã o gerou n e n h u m resultado prático.
a
A febre a m a r e l a foi n o v a m e n t e a b o r d a d a n a 1 1 C o n f e r ê n c i a S a n i t á r i a
(Paris, 1 9 0 3 ) , em função da presença, n a delegação dos Estados Unidos, do
general G o r g a s , responsável pela c a m p a n h a que v e n c e u a resistência da
febre a m a r e l a e m Havana e m 1 9 0 1 (Cuba), graças à destruição dos m o s quitos e a o i s o l a m e n t o dos doentes sob m o s q u i t e i r o s . Émile R o u x , então
diretor adjunto do Instituto Pasteur, resumiu - na qualidade de relator da
s u b c o m i s s ã o técnica da conferência - os resultados dos trabalhos da C o missão Reed, e depois pediu a Gorgas que completasse seu relatório. Este
sublinhou que a certeza recém-obtida de que a febre amarela só se propaga
por intermédio dos m o s q u i t o s Stegomyia tornava t o t a l m e n t e obsoletas as
medidas de quarentena prescritas c o n t r a esta doença.
A Convenção Sanitária Internacional que resultou da conferência inclui
pela primeira vez instruções sobre a febre amarela:
Recomenda-se aos países interessados que modifiquem seus regulamentos sanitários de maneira a relacioná-los com os dados atuais da
ciência sobre o modo de transmissão da febre amarela, e sobretudo sobre
o papel dos mosquitos como veículos dos germes da doença.
41
O papel reservado à ciência no estabelecimento das políticas que vis a v a m a erradicar a febre a m a r e l a ainda c o n s t i t u i u u m elemento m a i o r
nos debates durante toda a primeira metade do século X X . A utilização de
u m a r g u m e n t o baseado na ciência na elaboração das práticas dos médicos
e dos higienistas não era de modo a l g u m evidente. O advento da bacteriologia legitimou os a r g u m e n t o s desenvolvidos pelos higienistas e reforçou
seu status:
o desenvolvimento do soro antidiftérico foi visto por m u i t o s
médicos c o m o a prova potencial da capacidade que tinha a nova ciência de
contribuir para a solução de problemas m é d i c o s .
42
Mas, c o m exceção do tratamento da difteria, as abordagens bacteriológicas só foram integradas à prática dos médicos muito gradualmente, e os
laboratórios de bacteriologia só se uniram aos hospitais nos anos 1 9 1 0 - 1 9 2 0 .
Do m e s m o modo, só bem tardiamente os higienistas se converteram
à prática da microbiologia.
43
A lentidão na adoção das técnicas das "ciên-
cias pasteurianas" pelos clínicos, notadamente na França, c o n t r a s t o u c o m
o d e s e n v o l v i m e n t o m u i t o rápido da ciência b a c t e r i o l ó g i c a . A prática da
pesquisa nessa área foi codificada e difundida em escala internacional nos
anos 1 8 8 0 - 1 8 9 0 , o u seja, quase imediatamente após o s u r g i m e n t o dessa
n o v a especialidade, e os pesquisadores em b a c t e r i o l o g i a t i v e r a m
muito
rapidamente à sua disposição j o r n a i s profissionais, manuais e fóruns para
a troca de idéias, c o m o as conferências i n t e r n a c i o n a i s .
44
V i m o s que u m a das condições importantes para a rápida difusão da
n o v a disciplina foi a h o m o g e n e i z a ç ã o das condições de i s o l a m e n t o e de
c u l t u r a de m i c r ó b i o s . A h o m o g e n e i z a ç ã o dos m é t o d o s de i n v e s t i g a ç ã o
bacteriológica incluiu a padronização da organização espacial de u m laboratório de bacteriologia e a uniformização do material e das técnicas utilizadas pelos b a c t e r i o l o g i s t a s . A partir dos a n o s 1 8 8 0 , firmas comerciais
produziram
vidraria,
corantes
e m e i o s de c u l t u r a
para
uso
dos
bacteriologistas, e publicaram catálogos nos quais ofereceram grande v a riedade de produtos destinados especificamente à identificação e à cultura
dos micróbios. Tal homogeneização compreendia igualmente a padronização dos gestos praticados pelos b a c t e r i o l o g i s t a s .
45
C o m o u m dos maiores
p r o b l e m a s da investigação bacteriológica está na c o n t a m i n a ç ã o , só u m a
t é c n i c a c o r p o r a l b e m a p u r a d a p e r m i t e e v i t a r t a l r i s c o . Os
futuros
bacteriologistas tiveram que aprender c o m o abrir u m tubo de ensaio perto
de u m a c h a m a de u m bico Bunsen, c o m o sustentar o tubo e o algodão que
o fecha n u m a m ã o e a pipeta Pasteur na outra, c o m o inocular o tubo c o m
u m a a m o s t r a testada e fechá-lo imediatamente, tudo isso c o m gestos precisos e rápidos a fim de evitar que as bactérias do ar penetrassem no tubo.
Foi, portanto, indispensável o aprendizado sob a supervisão de especialistas reconhecidos para se adquirir o saber especializado do bacteriologista.
A partir dos anos 1 8 8 0 , tal ensino foi ministrado nos templos sagrados do
desenvolvimento da bacteriologia, o Instituto Pasteur em Paris e o Instituto de Higiene de Berlim, dirigido por Robert Koch.
O ensino sistemático da bacteriologia no Instituto de Higiene de Berlim
c o m e ç o u em 1 8 8 5 . O curso, centrado nas técnicas de laboratório, durava
u m mês. Os alunos, em grande parte médicos vindos do estrangeiro, prepar a v a m seus próprios meios de cultura e, após u m mês de trabalho duro,
dominavam perfeitamente as técnicas de isolamento das bactérias, de coloração e de observações microscópicas. Muitas vezes os alunos estrangeiros
c o m p r a r a m na Alemanha o equipamento necessário para construir u m laboratório de microbiologia em seu país. O principal obstáculo à reprodução
dos resultados fora de Berlim foi a dificuldade de obter meios de c u l t u r a
h o m o g ê n e o s e de c o n s t r u i r incubadores que m a n t i v e s s e m a t e m p e r a t u r a
c o n s t a n t e . Por volta de 1 9 0 0 , tais dificuldades puderam ser resolvidas na
Europa Ocidental e nos Estados Unidos graças à maior difusão dos meios de
cultura comerciais e ao desenvolvimento de incubadoras mais estáveis.
46
O
"curso de microbiologia técnica" do Instituto Pasteur (também chamado "o
grande curso" ou "o curso de Monsieur Roux") começou em 1 8 8 9 , ano seguinte ao da fundação do instituto. As sessões foram mais longas do que as
do curso do Instituto de Higiene; no início, o instituto organizou três sessões anuais, depois duas, e finalmente u m a única sessão, que durava todo o
a n o escolar. O ensino tinha u m importante componente prático: em Paris,
os alunos t a m b é m aprenderam o conjunto das técnicas bacteriológicas de
base, inclusive a preparação de meios de cultura, da vidraria, e a experimentação em animais, mas receberam, além disso, u m ensino teórico avançado,
m i n i s t r a d o por pesquisadores do I n s t i t u t o Pasteur que a p r e s e n t a v a m os
últimos desenvolvimentos científicos em sua área de especialização. Os alunos do "grande c u r s o " , entre os quais vários estrangeiros, e r a m em sua
maioria médicos, m a s t a m b é m veterinários e f a r m a c ê u t i c o s
47
Entre eles,
Oswaldo Cruz, responsável pela eliminação da febre amarela do Rio de J a neiro entre 1 9 0 3 e 1 9 0 7 , que o seguiu em 1 8 9 6 . Sua carreira ilustra, assim,
a importância da circulação dos pesquisadores e do savoir-faire
incorporado
na t r a n s m i s s ã o dos novos conhecimentos científicos. Cruz n ã o transferiu
passivamente para o Rio de Janeiro o saber bacteriológico adquirido em Paris: ele o adaptou ao estudo das doenças dos países quentes e o integrou a
u m a disciplina b e m definida: a medicina tropical.
49
A Medicina Tropical entre a Especificidade das Práticas e a
Especificidade das Políticas
A medicina tropical nasceu n o fim do século X I X da adaptação das
"ciências p a s t e u r i a n a s " às doenças dos países do S u l . O n a s c i m e n t o da
medicina tropical p r o p r i a m e n t e dita é g e r a l m e n t e associado à descrição
das doenças transmitidas por vetores intermediários (os insetos, os moluscos
ou os vermes). Essa especialidade tem u m "pai fundador" oficial: o médico
inglês Patrick Mason, que descreveu a importância dos vermes na filariose
(elefantíase) e que, mais tarde, estimulou os trabalhos de Ross sobre o papel
do m o s q u i t o na transmissão da malária. O elo existente entre as doenças
transmitidas por vetores invertebrados e a "medicina tropical" n u n c a foi
simples (a m a l á r i a n ã o se limita, de m o d o a l g u m , aos trópicos, e até a
Segunda Guerra Mundial esta doença foi u m grave problema de saúde pública na Itália e nos Estados Unidos; várias doenças hoje classificadas c o m o
"tropicais", c o m o o cólera, por exemplo, não têm hospedeiros intermediários). O laço entre o estudo dos vetores e a medicina tropical se teceu principalmente através dos desenvolvimentos institucionais. A fundação de instit u t o s de pesquisa em medicina tropical e o estabelecimento de u m ensino
universitário dedicado à matéria - vejam-se os institutos de medicina tropical de Londres ( 1 8 9 9 ) , de Liverpool ( 1 8 9 9 ) , de Hamburgo ( 1 9 0 0 ) , de Bruxelas ( 1 9 0 6 ) - coincidem c o m a descrição (em fins do século X I X e início do
X X ) de n u m e r o s a s doenças das regiões quentes transmitidas por vetores.
Essa especificidade das doenças dos países quentes legitimou o desenvolvimento de u m a subespecialidade médica focalizada no controle de tais doenças
p o r m e i o do c o n t r o l e de s e u s v e t o r e s e q u e a l i a p e s q u i s a s e m
microbiologia, e m parasitologia e em entomologia a pesquisas de c a m p o
concentradas nas interações dos organismos em seu ambiente
natural.
48
O advento da medicina tropical, que pode ser descrita c o m o a adaptação das regras da "ciência pasteuriana" aos climas quentes, está estreitamente ligado ao colonialismo, m a s não deve ser reduzido a ele. A expansão colonial é b e m anterior ao desenvolvimento das teorias m i c r o b i a n a s
da doença. Antes do desenvolvimento de u m a medicina tropical enraizada
nos estudos de laboratório, a abordagem médica d o m i n a n t e nas colônias
foi a da "medicina dos climas quentes". Tal abordagem acentuou a importância da a c l i m a t a ç ã o g r a d u a l dos n ã o - a u t ó c t o n e s aos t r ó p i c o s , os elem e n t o s da vida que favoreciam tal a c l i m a t a ç ã o , c o m o u m a a l i m e n t a ç ã o
apropriada, o a f a s t a m e n t o de fontes de c o n t á g i o e a t e m p e r a n ç a , a s s i m
c o m o o valor da mestiçagem na adaptação dos colonos a seu novo a m b i ente.
50
O historiador Philip C o u r t i n explica que a introdução sistemática
das regras de higiene, em particular o afastamento dos europeus dos lugares de contágio conhecidos, a observância das regras de limpeza pessoal e
de limpeza das m o r a d i a s , a fiscalização da á g u a e dos a l i m e n t o s , a s s i m
c o m o a utilização sistemática de mosquiteiros, levaram entre 1 8 4 0 e 1 8 6 0
- bem antes, p o r t a n t o , do desenvolvimento das teorias m i c r o b i a n a s e de
sua integração à prática dos médicos - a u m a diminuição importante da
mortalidade dos soldados dos exércitos coloniais. Essa mortalidade estabilizou-se mais tarde e só teve redução importante por volta do fim do século X I X ; as estatísticas não revelam, assim, de modo algum u m efeito m a r cado da "revolução pasteuriana" na diminuição do c u s t o h u m a n o
ao deslocamento das t r o p a s .
ligado
51
O desenvolvimento da microbiologia não teve efeitos imediatos sobre
a morbidade e a mortalidade nos países tropicais, m a s afetou o progresso
das ciências médicas neles verificado. Tais países foram vistos c o m o l u g a res particularmente favoráveis ao trabalho dos "caçadores de micróbios",
dadas a profusão de doenças transmissíveis, endêmicas e epidêmicas, e a
colaboração ativa das administrações locais. Nas colônias, os poderes públicos v i r a m as doenças tropicais c o m o u m o b s t á c u l o m a i o r à c o l o n i z a ção, e n q u a n t o nos países independentes elas c o n s t i t u í a m u m entrave ao
comércio internacional e à imigração. Além disso, as epidemias que a t i n g i a m a população nativa d e s o r g a n i z a v a m o trabalho, especialmente nas
plantações. Bacteriologistas de grande r e n o m e viajaram nos trópicos, ao
passo que os poderes públicos neles e s t i m u l a r a m a e x p e r i m e n t a ç ã o em
larga escala dos novos saberes adquiridos pela ciência. Os países tropicais
foram t a m b é m u m lugar privilegiado para testar as novas formas de prevenção e t r a t a m e n t o das doenças infecciosas. Várias vacinas e a n t i - s o r o s
foram testados nas colônias antes de serem empregados na metrópole, e
as primeiras c a m p a n h a s de v a c i n a ç ã o em m a s s a a c o n t e c e r a m nos países
coloniais, para proteger as tropas coloniais ou os trabalhadores
nativos
5 2
I n s t i t u i ç õ e s dedicadas ao d e s e n v o l v i m e n t o da medicina t r o p i c a l f o r a m
construídas nas colônias: a importante rede dos institutos Pasteur de U l t r a m a r foi desenvolvida nas c o l ô n i a s francesas, e n q u a n t o os b r i t â n i c o s
c o n s t r u í r a m em suas colônias i n s t i t u t o s que respondiam a necessidades
precisas, c o m o o Instituto de Pesquisa Médica de Kuala Lumpur ou o Instit u t o Bacteriológico de B o m b a i m .
5 3
Tais instituições p e r m i t i r a m a circula-
ção das pessoas, do equipamento e dos conhecimentos e sua adaptação às
condições locais. As doenças tropicais e as instituições em que foram estudadas c o n s t i t u í r a m objeto de debates nos congressos internacionais. O
Instituto de Soroterapia de M a n g u i n h o s (fundado por Oswaldo Cruz) foi,
a s s i m , premiado c o m a Medalha de O u r o da Higiene no 14º C o n g r e s s o
Internacional de Higiene e de Demografia (Berlim, 1 9 0 7 ) .
5 4
Além de seu interesse intrínseco (os trópicos eram tidos c o m o u m
lugar propício à inovação no estudo das doenças transmissíveis) e do interesse prático (a medicina tropical tinha c o m o objetivo declarado tornar os
trópicos habitáveis - e rentáveis - para os europeus e norte-americanos), o
desenvolvimento da medicina tropical foi descrito c o m o u m meio, para os
ocidentais, de se apropriar dos trópicos (e não apenas neles assegurar sua
presença física). Essa apropriação passou pelo domínio dos corpos nativos
propriamente dito (disciplinar os corpos dos habitantes por meio da limpeza e o controle de si inculcando as virtudes da civilização ocidental) e pela
vigilância médica de seu meio a m b i e n t e . A medicina, e em particular a
saúde pública, tornaram-se, assim, u m meio de conhecer as pessoas e seu
meio a m b i e n t e , e depois c o n t r o l á - l a s . As viagens, a coleta de m a t e r i a i s
biológicos, a investigação do local e a utilização, indispensável, das técnicas de laboratório servem para descrever os nativos e inscrevê-los nos roteiros desenvolvidos pelos cientistas ocidentais. Os métodos utilizados para
tal apropriação e a linguagem em que foram formulados m u d a r a m c o m o
t e m p o . O i n t e r v e n c i o n i s m o moderado da "medicina dos c l i m a s q u e n t e s "
s u p u n h a u m a "resistência racial" que só pode ser adquirida pelos h o m e n s
brancos lentamente, à custa de u m a aclimatação gradual, de u m modo de
vida saudável ( n u t r i ç ã o apropriada, repouso, e l i m i n a ç ã o de excessos), e
antes de tudo da miscigenação c o m os nativos, que permitiria a criação de
"raças resistentes". Essa percepção foi substituída, no c o m e ç o do século
X X , por u m "otimismo higienista" enraizado nos novos desenvolvimentos
científicos. A nova abordagem da medicina dos climas quentes sublinhou
a importância dos princípios científicos na luta contra os agentes das doenças
transmissíveis e seus vetores. A adesão aos princípios relativamente simples
c o m vistas a impedir o c o n t a t o c o m os agentes e os vetores das doenças
pode tornar os trópicos habitáveis para os europeus, sem que eles precisem
de u m a longa aclimatação, da adesão a u m modo de vida predeterminado
e, menos ainda, do desenvolvimento de u m a "raça resistente" por meio da
m e s t i ç a g e m . Se a a b o r d a g e m a n t i g a pregou a a d a p t a ç ã o "positiva" a o s
trópicos, por meio da modificação gradual das condições de vida, o elem e n t o crucial da nova abordagem foi a adaptação "negativa": a vigilância
dos corpos, especialmente dos corpos
nativos.
55
Nas colônias, a medicina tornou-se muitas vezes o lugar privilegiado
para os contatos entre a cultura ocidental e as culturas autóctones. Ainda
que dominados pelo sentimento de superioridade dos médicos e pesquisadores ocidentais, os contatos c o m as populações locais não eram necessariam e n t e unilaterais; a resistência dos habitantes das regiões quentes, m a s
t a m b é m as práticas de saúde locais influenciaram, ocasionalmente, as práticas ocidentais. Além disso, as classes dominantes nos países do Sul por
vezes se apropriaram, em seu próprio interesse, das práticas e da imagem de
distinção da medicina ocidental - ou, em outras circunstâncias, das resistências populares à medicina ocidental. A medicina e, mais largamente, a
ação sanitária, pode portanto ser descrita c o m o "uma zona de trocas" (desiguais, é verdade) entre as culturas, e c o m o u m espaço de debates sobre
objetivos políticos e práticas s o c i a i s
56
Este papel de espaço de troca, assim
c o m o a a p r o p r i a ç ã o das ações sanitárias pelas elites locais para realizar
seus próprios objetivos, são p a r t i c u l a r m e n t e perceptíveis nos países que,
no fim do século X I X , não estiveram submetidos a u m regime colonial,
c o m o o Brasil.
Duas escolas de medicina (ou, antes, duas abordagens do estudo das
doenças tropicais) coexistiram no Brasil no século XIX: a do Rio de J a n e i r o
e a de Salvador, na Bahia. Médicos ligados a esta ú l t i m a desenvolveram,
na segunda metade do século X I X , reflexões originais sobre as doenças
tropicais. O p o n t o de partida dessas reflexões f o r a m as pesquisas de u m
médico a l e m ã o instalado no Brasil, o Dr. Otto Wucherer, sobre a origem
parasitária de a l g u m a s afecções tropicais. Em 1 8 6 6 - 1 8 6 8 , Wucherer publica, na Gazeta Médica da Bahia, os primeiros resultados de suas investigações sobre o papel do v e r m e Anchylostomum
duodenale na produção da
a n e m i a . Seus t r a b a l h o s insistem na causalidade única da a n e m i a , destacando dessa f o r m a u m a doença tropical particular do c o n t e x t o geral das
reflexões sobre as afecções tropicais, que a s s o c i a r a m tais p a t o l o g i a s às
condições climáticas e à constituição dos indivíduos afetados. Era o início
do desenvolvimento da "Escola Tropicalista Baiana" ( n o m e proposto ulte¬
riormente pelos historiadores que estudaram esta escola), ativa entre 1 8 6 6
e 1 8 9 0 , e que publicou seus trabalhos na Gazeta Médica da Bahia. A origi¬
nalidade dessa escola está n o fato de que seus m e m b r o s - Otto Wucherer,
J u l i o de M o u r a , Pedro Severiano de Magalhães, Silva Araújo - c e n t r a r a m
s u a s i n v e s t i g a ç õ e s sobre as doenças t r o p i c a i s , a l g u m a s induzidas pelos
p a r a s i t a s (filariose, a n c i l o s t o m í a s e ) , e o u t r a s , tais c o m o o beribéri, p o r
u m a c a u s a então desconhecida (outros médicos brasileiros preferiram e s tudar as doenças freqüentes n o s climas temperados). S u a s pesquisas tiver a m por objeto as c a u s a s diretas das doenças típicas do Brasil, m a s t a m b é m a adaptabilidade das p e s s o a s às diversas c o n d i ç õ e s c l i m á t i c a s . Os
m é d i c o s da E s c o l a T r o p i c a l i s t a o p u s e r a m - s e
simultaneamente
ao
determinismo climático, freqüente n o pensamento médico europeu da época, que v i u os trópicos c o m o u m l u g a r de inevitável degenerescência dos
seres h u m a n o s , e a qualquer determinismo racial. Sobre este ú l t i m o p o n t o , c o n v é m n o t a r q u e a sociedade da B a h i a era m e s t i ç a , e q u e m u i t o s
médicos da cidade eram negros o u m u l a t o s . A resistência dos m e m b r o s da
Escola Tropicalista a qualquer determinismo biológico lhes permitiu manter
u m a visão da flexibilidade e da maleabilidade dos seres h u m a n o s . Tal visão
sublinhou o papel da medicina n o fortalecimento das tendências positivas,
e n a n e u t r a l i z a ç ã o eficaz dos efeitos n e f a s t o s do c l i m a e da m i s t u r a de
raças. Ela permitiu, assim, aos médicos da Bahia afirmar sua fé na possibilidade de transformar o Brasil em u m a nação civilizada, e sublinhar o lugar
da profissão médica e m tal t r a n s f o r m a ç ã o . Incidentalmente, tal percepção
correspondeu t a m b é m aos interesses de a l g u m a s camadas da burguesia da
Bahia confrontadas, na segunda metade do século XIX, c o m a rápida industrialização da região, c o m a imigração em m a s s a e c o m a necessidade de
integrar e controlar seus trabalhadores.
57
Os m e m b r o s da c h a m a d a Escola Tropicalista B a i a n a f o r a m inicialmente vistos c o m o marginais, m a s suas idéias foram gradualmente incorporadas pela comunidade médica de sua cidade, e depois pelo conjunto dos
m é d i c o s brasileiros. Tal a c e i t a ç ã o está ligada, entre o u t r o s , a o c r e s c e n t e
r e c o n h e c i m e n t o da especificidade das afecções tropicais e à necessidade de
desenvolver n o B r a s i l u m a m e d i c i n a n a c i o n a l que se i n t e r e s s a s s e pelas
patologias locais. A i m p l a n t a ç ã o das "disciplinas p a s t e u r i a n a s " n o Brasil
e, notadamente, o papel exercido pelo laboratório decorriam da preocupação e m adquirir u m saber local sobre as doenças e em desenvolver u m a
ciência especificamente brasileira, integrando os c o n h e c i m e n t o s do saber
universal. A especialização dos pesquisadores ligados à Escola Tropicalista
Baiana a s s e g u r o u u m a b o a recepção dos médicos europeus a seus t r a b a lhos. Essa estratégia, que se revelou profissionalmente importante, encerrou, entretanto, os médicos brasileiros n o gueto do "tropicalismo", único
nicho aberto a o s médicos vindos da periferia.
58
Os esforços empreendidos
no fim do século X I X ( 1 8 8 0 - 1 9 0 0 ) pelos cientistas brasileiros para descobrir o "germe da febre a m a r e l a " , a rápida i m p o r t a ç ã o e a adaptação das
conclusões da Comissão Reed sobre o papel do m o s q u i t o Stegomyia na t r a n s missão da doença, a c a m p a n h a de erradicação levada adiante por Oswaldo
Cruz n o Rio de Janeiro ( 1 9 0 3 - 1 9 0 7 ) , assim c o m o a luta c o n t r a esta p a t o logia ao longo dos anos 1 9 2 0 - 1 9 3 0 e sua inserção nas tentativas de criar
u m a n a ç ã o brasileira unificada, se inscrevem n a s características p a r t i c u lares do c o n t e x t o brasileiro; trata-se, c o m efeito, de u m país subdesenvolvido, m a s a u t ô n o m o e potencialmente rico, dotado de identidade e de c u l t u r a nacionais próprias, m e s m o que ela esteja reservada às camadas superiores da população, elites locais que aspiravam a se t o r n a r t a n t o q u a n t o
possível semelhantes às dos países desenvolvidos, fazendo progredir seus
objetivos n a c i o n a i s .
Nesse tipo de região, a medicina tropical t e m u m estatuto complexo;
meio de integrar a comunidade internacional afirmando sua especificidade
nacional, ela é ao m e s m o t e m p o fonte de o r g u l h o e de e m b a r a ç o , c o m a
c o n t r i b u i ç ã o l a r g a m e n t e reconhecida dos cientistas a u t ó c t o n e s à ciência
mundial atraindo, contudo, a atenção para precária situação sanitária do
país e para a distância que o separa dos países desenvolvidos. A p r o x i m a ção que pode abrir aos especialistas (e aos políticos) estrangeiros possibilidades de intervenção e alargar a zona de influência dos especialistas (e dos
políticos) locais, ela constitui, enfim, u m meio de homogeneizar, de "civil i z a r " e de " m o d e r n i z a r " as p o p u l a ç õ e s , de a d a p t á - l a s às exigências da
economia mundial, m a s t a m b é m de enquadrar e legitimar a especificidade
local. U m estudo que se interesse pela circulação dos conhecimentos científicos entre países do Norte e países do Sul e ao destino da "ciência universal" nos trópicos deverá dar atenção t a m b é m aos múltiplos usos - políticos, sociais, culturais e econômicos - da n o ç ã o de universalidade da ciência e das práticas de pretensões u n i v e r s a i s .
59
As c a m p a n h a s c o n t r a a febre a m a r e l a n o B r a s i l f o r a m
moldadas
pelas complexas interações entre os saberes e as práticas desenvolvidas em
laboratório pelos bacteriologistas e virólogos e aquelas elaboradas e m c a m p o
pelos epidemiologistas e os especialistas em saúde pública, a s s i m c o m o
pelas múltiplas interações c o m o ambiente (social, cultural, político) destas práticas. Tais interações estão no cerne desta obra. Seu tema está situado n a interseção entre as pesquisas de l a b o r a t ó r i o e as investigações de
campo, entre as políticas de saúde e as práticas administrativas. Em conseqüência, este trabalho se apóia na rica tradição da história social da medicina, que desempenhou u m papel-chave no desenvolvimento dos estudos recentes sobre a medicina colonial, e na tradição dos estudos sociais e cultu¬
rais da ciência que se interessam de perto pelas práticas dos pesquisadores e
dos médicos, pelas culturas de laboratório, instrumentos, técnicas e registros, menos presente nas pesquisas sobre a medicina tropical e colonial.
O segundo e o terceiro capítulos propõem u m sobrevôo rápido pela
história dos esforços empreendidos n o Brasil para controlar a febre a m a r e la. O segundo capítulo é centrado na descoberta do papel do m o s q u i t o em
s u a t r a n s m i s s ã o , n a s atividades da m i s s ã o do I n s t i t u t o Pasteur n o Rio
( 1 9 0 1 - 1 9 0 5 ) e n a c a m p a n h a contra a febre amarela dirigida por Oswaldo
Cruz. O terceiro capítulo r e t o m a as atividades da Fundação Rockefeller n o
Brasil entre 1 9 2 0 e 1 9 4 0 e e x a m i n a detalhadamente dois períodos: o de
1 9 2 3 - 1 9 2 9 , dominado pelas c a m p a n h a s a n t i m o s q u i t o de alcance limitado
conduzidas n o Nordeste; e o de 1 9 3 0 - 1 9 3 6 , marcado pela organização de
u m a campanha de grande envergadura para a eliminação do mosquito Aedes
aegypti. Paralelamente, ele expõe o desenvolvimento do m o v i m e n t o sanitário
brasileiro que teve c o m o objetivo o "saneamento do país" e sua transformação em u m país moderno, e suas ressonâncias nas atividades dos especialistas n o r t e - a m e r i c a n o s . O q u a r t o capítulo está v i n c u l a d o aos m é t o d o s de
visualização da presença da febre amarela no Brasil. Ele segue os relatos de
viajantes pelo interior do país, do princípio do século até os anos 1 9 4 0 , e
estuda a integração entre elementos (paisagens, pessoas doentes, m o s q u i tos, casas, cidades, vilarejos, florestas e campos) e habitantes nas descrições
da febre amarela fornecidas pelos pesquisadores brasileiros, franceses e norte-americanos. Tem e m vista, mais especificamente, as m u d a n ç a s
trazidas
à percepção da febre a m a r e l a pela introdução das técnicas de laboratório
(pesquisa de anticorpos específicos, exames patológicos) que t o r n a r a m possíveis as investigações epidemiológicas de grande
envergadura.
O quinto capítulo é dedicado à questão do controle dos m o s q u i t o s e
dos h u m a n o s . E s t u d a os l a ç o s e n t r e as percepções c i e n t í f i c a s da febre
amarela e o desenvolvimento da luta c o n t r a esta doença e analisa os m é todos utilizados n o Brasil para c o n t r o l á - l a , a p a s s a g e m do c o n t r o l e dos
mosquitos ao controle das populações, o quadro político n o qual tal passag e m se insere - o regime autoritário de Getúlio Vargas - e as conseqüências
da generalização do modelo de controle das doenças transmissíveis pelos
insetos por meio da erradicação destes ú l t i m o s . O sexto capítulo relata o
d e s e n v o l v i m e n t o da v a c i n a a n t i a m a r í l i c a e as c a m p a n h a s de v a c i n a ç ã o
em m a s s a . U m a vacina pode ser apresentada c o m o a entidade transferível
p o r excelência, m a s é, efetivamente, m u i t a s vezes utilizada de m a n e i r a
distinta. Esse c a p í t u l o se v o l t a m a i s especificamente p a r a a g e s t ã o diferencial dos riscos inerentes à v a c i n a ç ã o . As práticas vacinais desenvolvidas n o Rio de J a n e i r o c o n t r a s t a m c o m as advindas do laboratório central
da febre amarela da Fundação Rockefeller em Nova York, e c o m as abordagens elaboradas n o m e s m o período pelos franceses nas c a m p a n h a s de v a c i n a ç ã o n a Africa.
O v o l u m e se conclui c o m o rápido a c o m p a n h a m e n t o das políticas de
saúde p ú b l i c a desenvolvidas a p ó s a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l c o m b a s e
nas tentativas levadas adiante n o período precedente, e c o m u m a discussão sobre o papel - ou, antes, sobre os papéis - das práticas científicas de
pretensões universais n o c o n t r o l e local das doenças t r a n s m i s s í v e i s .
As afecções induzidas por bactérias, por vírus o u por parasitos der a m sólidos a r g u m e n t o s para se p r o c l a m a r a unidade do gênero h u m a n o e
a u n i v e r s a l i d a d e do s a b e r s o b r e a s d o e n ç a s . A p r o g r e s s ã o das d o e n ç a s
t r a n s m i s s í v e i s esteve estreitamente ligada a o desenvolvimento dos meios
de transporte - navio, t r e m o u avião - e à intensificação da circulação de
pessoas e de bens. A propagação de epidemias legitimou o desenvolvimento de u m saber científico válido para todos os lugares que permita eliminar
as doenças epidêmicas onde quer que elas g r a s s e m (ou, n u m a versão mais
restritiva, proteger o " m u n d o civilizado" dos males vindos de o u t r a parte).
A c i r c u l a ç ã o dos saberes e das práticas relativas a o controle das doenças
t r a n s m i s s í v e i s foi inicialmente tratada c o m o u m a resposta à difusão dos
agentes de tais doenças e seus vetores entre as n o v a s populações (as dos
países ocidentais, os colonos); ela se estendeu até a vigilância das doenças
dos n a t i v o s . A difusão das técnicas de l a b o r a t ó r i o e, p a r a l e l a m e n t e , dos
novos m é t o d o s de gestão da saúde pública contribuiu, por sua vez, para
u m a certa homogeneização das populações h u m a n a s .
60
Tal homogeneização
foi apenas parcial, pois esbarrou em múltiplos o b s t á c u l o s : a história das
t e n t a t i v a s de c o n t r o l a r a febre a m a r e l a pode e s t i m u l a r reflexões sobre a
possibilidade, a pertinência e os limites do desenvolvimento de u m saber
u n i v e r s a l s o b r e as doenças t r a n s m i s s í v e i s e das p r á t i c a s
mundialmente
v á l i d a s de c o n t r o l e de t a i s d o e n ç a s . Reflexões s o b r e as modalidades de
t r a n s f e r ê n c i a de c o n h e c i m e n t o s e das p r á t i c a s científicas, médicas e a d m i n i s t r a t i v a s do c e n t r o p a r a a periferia, a s s i m c o m o as c i r c u l a ç õ e s n o
sentido inverso, adquirem hoje e m dia u m a gravidade especial n o c o n t e x t o
de u m crescente distanciamento entre os países industrializados e os países e m d e s e n v o l v i m e n t o .
Notas
1
COLEMAN, W. Yellow Fever in the North:
University o f Wisconsin Press, 1 9 8 7 .
the methods
of early epidemiology.
Madison:
2
U m médico francês, Louis-Daniel Beauperthy, publicou em 1 8 5 4 observações que
associam a transmissão da febre amarela aos mosquitos. No entanto, tais observações,
feitas antes do advento da teoria bacteriana da doença e anteriormente à descrição do
papel dos insetos c o m o "vetores intermediários" das doenças, não se ligaram diretamente aos trabalhos realizados em fins do século X I X . Sobre a crítica da noção de
"precursor desconhecido", ver CANGUILHEM, G. L'objet de l'histoire des sciences. In:
CANGUILHEM, G. Études d'Histoire et de Philosophie des Sciences. Paris: Vrin, 1 9 7 4 , p . 2 1 .
3
CANGUILHEM, G. Presentation. In: DELAPORTE, F. Histoire de la Fíèvre Jaune. Paris:
Payot, 1 9 8 9 , p . 1 3 . Apesar de elegante, a expressão é inadequada, pois muitos vetores
invertebrados das doenças tropicais descritos nesse período não têm asas; à imagem
da morte que voa poderia ser acrescentada a da morte que fervilha, que rasteja, ou
que gruda na pele.
4
BEN-DAVID, J . T h e implantation o f a scientific tradition in developing countries.
Minerva, 1 5 : 3 0 3 - 3 0 5 , 1 9 7 7 . "A periferia" é, entretanto, u m termo muito vasto, que
abrange países que apresentam graus de desenvolvimento muito variados: os problemas de transferência de conhecimentos foram diferentes na Turquia e na África
subsaariana.
5
Por exemplo, W. H. GRUBER & D. G. MARQUIS (Eds.) Factors in Transfer of
Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1 9 6 9 .
6
GOODY, J . The East in the West. Cambridge: Cambridge University Press, 1 9 9 6 ;
PALLADINO, P. & WORBOYS, M . Science and imperialism. Isis, 1 9 3 9 , 8 4 : 9 1 - 1 0 2 ;
PYENSON, L. Cultural Imperialisms and Exact Sciences: German expansions overseas 19001930. New York: Lang, 1 9 8 5 ; PYENSON, L. Civilising Mission: exact sciences and French
overseas expansion,
1830-1940.
Baltimore: J o h n Hopkins University Press, 1 9 9 3 ;
POLANCO, X . Naissance et Développement de la Science-Monde.
Paris: La Découverte,
1 9 9 0 ; MacLEOD, R. On visiting the 'moving metropolis': reflections on the architecture
of imperial science. In: REINGOLD, N. & RHOTENBERG, M. (Eds.) Scientific
Colonialism:
a cross-cultural
comparaison.
Washington D.C.: Smithsonian Institute Press, 1 9 8 7 ,
p.217-250.
7
ROSENBERG, C. E. Disease in history: frames and framers. The Milibank
67(suppl.l), 1 9 8 9 .
Technology.
Quaterly,
8
LATOUR, B. Ramses Il est-il mort de la tuberculose? La Recherche, 3 0 7 : 8 4 , mars 1 9 9 8 .
9
JEWSON, N. D. The disappearance o f the sick-man from medical cosmology in 1 7 7 0 1 8 7 0 . Sociology, 1 0 ( 2 ) : 2 2 5 - 2 4 4 , 1 9 7 6 .
10
O livro de Keith Wailoo, Drawing Blood: technology and disease identity in TwentiethCentury America (Baltimore: J o h n Hopkins University Press, 1 9 7 7 ) , é u m excelente
exemplo de estudo do papel das tecnologias na descrição das entidades mórbidas
(neste caso, as doenças do sangue).
11
FLECK, L. Genesis and Development of a Scientific Fact (trad. Fred Bradley e Thaddeus J .
Trenn). Chicago & London: The University o f Chicago Press, 1 9 7 9 ( 1 9 3 5 ) , p. 1 2 0 .
Allan Young usou c o m o argumento o papel das "tecnociências" no pensamento de
Fleck. YOUNG, A. The Harmony of Illusions: inventing post-traumatic
stress
disorder.
Princeton: Princeton University Press, 1 9 9 5 , p. 10.
12
CAMBROSIO, A. & KEATING, P. Interlaboratory life: regulating flow cytometry. In:
GAUDILLIÈRE, J . P. & LÖWY, I. (Eds.) The Invisible Industrialist: manufactures and the
production of scientific knowledge. London Macmillan, 1 9 9 8 .
13
FARMER, P. Aids and Accusation:
of California Press, 1 9 9 2 .
Haiti and the geography
of blame.
Berkeley: University
14
DUDENM, Β. The Woman under the Skin. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1992.
15
ROSENTHAL, T. How Could I Not Be Among You. New York: Avon Press, 1 9 7 9 , p. 7 3 .
16
O desafio que a dor crônica impõe à medicina contemporânea baseada na técnica é
explicitado por Isabelle Baszanger em seu livro Pour en Finir avec la Doulcur. Paris: Le
Seuil, 1 9 9 5 .
17
COLEMAN, W. Yellow Fever in the North, op. cit.
18
Relatório do subcomitê nomeado pelo Advisory Committee for Tropical Africa para
apresentar sugestões sobre a investigação da febre amarela na África Ocidental, 7 de
janeiro de 1 9 1 3 . Dossiê Ronald Ross, C G / 5 9 / A i , Wellcome Archives, Londres. Ross,
especialista em malária, foi nomeado membro da comissão porque esta doença foi
considerada a que mais freqüentemente se confundia com a febre amarela.
19
A concordância entre "febre amarela" de outrora e de hoje é aparentemente maior
quando os médicos descrevem uma epidemia entre os recém-chegados a um país.
Entre os adultos não-imunes encontram-se freqüentemente casos "típicos" de febre
amarela viral, e uma epidemia aumenta a probabilidade de que vários indivíduos
doentes sofram da m e s m a afecção. Por volta de 1 9 0 0 , foram descritos em Cuba
numerosos casos de febre amarela em soldados norte-americanos e em imigrantes,
mas também um certo número de casos entre os nativos.
20
DELAPORTE, F. Histoire de la Fièvre Jaune, op. cit., p.25, 1 5 1 .
21
FLECK, L. Genesis and Development
22
Um estudo desse tipo é centrado na maneira de agir dos pesquisadores, e não na
questão de saber quantos casos "verdadeiros" de febre amarela puderam ser observados em um determinado momento histórico.
of a Scientific Fact, op. cit.
23
DELAPORTE, F. Les Épidemiés. Paris: Éditions de la C i t é des Sciences et d'Industrie, 1 9 9 5 .
24
COLEMAN, W. Yellow Fever in the North, op. cit.
25
Na França, tal conceito foi desenvolvido por Pierre Louis. ACKERKNECHT, Ε. La Médecine
Hospitalière à Paris (1794-1848).
Paris: Payot, 1986; TEMKIN, O. The scientific approach
to disease: specific entity and individual sickness. In: TEMKIN, O. The Double Face of
Janus. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1 9 7 7 , p . 4 3 1 - 4 5 6 ; FANTINI, B. Le
rôle du concept de la spécificité dans la pensée médicale. In: BUCHET, A. (Ed.) Conférences
de l'lnstitut d'Histoire de la Médecine. Lyon: Fondation Marcel Mérieux, 1 9 9 4 , p . 7 3 - 8 3 .
26
KODELL CARTER, C. Koch's postulates in relation to the work of J a k o b Henle and
Edwin Klebs. Medical History, p . 3 5 3 - 3 7 4 , 1 9 8 5 ; KODELL CARTER, C. The development
of Pasteur's concept o f disease causation and the emergence of specific causes in
nineteenth century medicine. Bulletin of the History of Medicine, 6 5 : 5 2 8 - 5 4 8 , 1 9 9 1 .
27
FLECK, L. Genesis and Development
28
Idem; GOESSEL, P. Ρ. Le besoin des méthodes standard: le cas de la bactériologie. In:
CLARKE, A. & FUJIMURA, J . (Eds.) La Matérialité des Sciences: savoir-faire et instruments
dans les sciences de la vie. Paris: Synthélabo, 1 9 9 6 ( 1 9 9 2 ) . (Les Empêcheurs de penser en
rond), p . 3 6 6 - 3 9 7 .
of a Scientific Fact, op. cit., p.93.
29
LATOUR, B. Les Microbes,
30
CRONON, W. Changes in the Land: i n d i a n s , colons and the ecology of New England. New
York: Hill and Wang, 1 9 8 3 ; CRONON, W. Nature's Metropolis: Chicago and the Great West.
New York, London: W. W. Norton & Co., 1 9 9 1 .
31
Guerre et Paix. Paris: A. M. Métailié, 1 9 8 4 .
Uma interação desse tipo afeta não apenas as atitudes para com "entidades naturais"
profundamente transformadas pelos homens, mas também aquelas relacionadas
aos sítios relativamente pouco tocados pela atividade humana.
32
33
WINCH, P. The Idea of Social Science. London: Routledge & Paul, 1 9 5 8 .
MOULIN A.-M. & CHAUVIN, P. L'Islam au Péril des Femmes. Paris: Éditions Maspero,
1981.
34
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making o f the modern public health. Isis, 8 6 ( 2 ) : 2 6 8 - 2 7 7 , 1 9 9 5 .
35
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Greater than the Parts: holism and biomedicin, 1920-1950.
Oxford, London: Oxford
University Press, 1 9 9 8 .
36
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37
RASMUSSEN, A. L'Internationale Scientifique (1890-1914),
d'Histoire, École Pratique des Hautes Études.
38
HOWARD-JONES, N. Les Bases Scientifiques des Conférences Sanitaires
Internationales,
1851-1938.
Genève: Organisation Mondiale de la Santé, 1 9 8 5 . Ver também GOODMAN,
Ν. Μ. International Health Organizations and their Work. London: Churchill, 1 9 5 2 ; Annexe
J , Les conférences sanitaires Internationales,
em: SALOMON-BAYET, C. (Ed.) Pasteur et la
Révolution Pasteurienne. Paris: Payot, 1 9 8 6 , p . 4 1 4 - 4 6 ; WEINDLING, P. Introduction. In:
WEINDLING, P. (Ed.) International
Health Organizations
and Movements,
1918-1939.
Cambridge: Cambridge University Press, 1 9 5 5 , p. 1-16.
39
A história da luta contra o cólera no século XIX foi relatada por Charles Rosenberg,
The Cholera Years. Chicago, London: The University o f Chicago Press, 1 9 6 2 ; Richard
Evans, Death in Hamburg: society and politics in the cholera years, 1830-1910.
Oxford:
Clarendon Press, 1 9 8 7 ; François Delaporte, Le Savoir de la Maladie: essai sur le choléra de
1829 à Paris. Paris: PUF, 1 9 9 0 .
40
É preciso observar, entretanto, que os esforços britânicos para controlar o cólera na
Índia foram m u i t o menos eficazes. RAMASSUBAN, R. Imperial health in British
Índia. In: MacLEOD, R. & LEWIS, Μ. (Eds.) Disease, Medicine and Empire: perspective on
Western medicine and the experience of European expansion. London, New York: Routledge,
1 9 8 8 , p . 3 8 - 6 1 ; LÖWY, I. From guinea pigs to men: the development o f Haffkine's
anticholera vaccine. Journal of the History of Medicine and Allied Sciences, 1 9 9 2 , 4 7 : 2 7 0 3 0 9 . ARNOLD, D. Colonizing the Body: State medicine and epidemic disease in XIX Century
India. Berkeley: University o f California Press, 1 9 9 3 .
1 9 9 5 . Paris: Thèse de Doctorat
th
41
HOWARD-JONES, N. Les Bases Scientifiques
cit., p . 9 3 .
des Conférences Sanitaires
Internationales,
op.
42
LATOUR, B. Les Microbes, Guerre et Paix, op. cit.
43
MURARD, L. & ZYLBERMAN, P. L'Hygiène dans la République.
44
SALOMON-BAYET, C. Pasteur et la Revolution
45
GOESSEL, P. P. Le besoin des méthodes standard: le cas de la bactériologie. In: CLARKE,
A. & FUJIMURA, J . (Eds.) La Matérialité des Sciences: savoir-faire et instruments dans les
sciences de la vie. Paris: Synthélabo, 1 9 9 6 ( 1 9 9 2 ) (Les Empêcheurs de penser en rond),
p.366-397.
46
GOSSEL, P. P. Le besoin des méthodes standard, op. cit
47
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L'InstitutPasteur: contributions à son histoire. Paris: La Découverte, 1 9 9 1 , p . 6 4 - 7 2 ; LÖWY,
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development o f microbiology in France. Studies in History and Philosophy of Science,
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48
BEN-DAVID, J . The implantation of a scientific tradition in developing countries, op. cit
Pasteurienne,
Paris: Fayard, 1 9 9 6 .
op. cit.
49
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50
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51
COURTIN,P.D. Death by Migration: Europe's encounter with tropical world in the Ninetteenth
Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1 9 8 9 .
52
FORSTER, W. D. History of Medical Bacteriology and Immunolgy. London: William Heinemen
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Fayard, 1 9 8 5 ; LÖWY, I. From guinea pigs to man, op. cit
53
CALMETTE, A. Les missions scientifiques de l'lnstitut Pasteur et l'expansion coloniale
de la France. Revue Scientifique, 8 9 : 1 2 9 - 1 3 2 , 1 9 1 2 ; VALLERY-RADOT, L. Ρ. Les Instituts
Pasteur d'Outre-mer. La Presse Médicale, 2 1 : 4 1 0 - 4 1 3 , 1 9 3 9 ; MOULIN, A.-M. Patriarchal
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MOULIN, A.-M. (Eds.) Science and Empires. Dodrecht: Kluwer, 1 9 9 2 , p . 3 0 7 - 3 2 2 .
54
BENCHIMOL, J . L. (Ed.) Manguinhos, do Sonho à Vida: a ciência na Belle Époque. Rio de
Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 1 9 9 0 .
55
WARWICK, A. Disease, race and empire. Bulletin of the History of Medicine, 7 0 : 6 2 - 6 7 ,
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56
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57
CONI, A. C. A Escola Tropicalista Bahiana: Paterson, Wucherer, Silva Lima. Salvador: Tip.
Beneditina, 1 9 5 2 ; PEARD, J . G. The Tropicalist School of Medicine of Bahia, Brazil, 18691889, 1 9 9 0 . PhD Thesis, Columbia University; OLIVEIRA, C. R. Origem e Desenvolvimento da Medicina Social no Brasil, 1 9 8 2 . Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto
de Medicina Social da UERJ; para u m a visão diferente da Escola da Bahia, ver EDLER,
F. C. "A constituição da medicina tropical no Brasil: da climatologia à parasitologia
médica", projeto proposto ao IMS-Uerj, Rio de Janeiro, 1 9 9 7 .
58
PEARD, J . G. The Tropicalist
59
CUETO, Μ. (Ed.) El Regreso de las Epidemias: salud, cultura y sociedad en América Latina nuevas perspectivas históricas. Lima: Instituto de Estúdios Peruanos, 1 9 9 6 ; STEPAN, N.
L. Tropical medicine and public health in Latin América. Medical History, 4 2 ( 1 ) : 1 0 4 110, 1998.
60
Tais entidades que circulam entre as comunidades clínicos ("mundos sociais", "coletivos de pensamento") e que são imperfeitamente "traduzidas" como estilos de prática diferentes foram estudados por Fleck e, mais recentemente, por sociólogos das
ciências vinculados à tradição do interacionismo simbólico. STAR, S. L. & GRIESEMER,
J . R. I n s t i t u t i o n a l ecology, ' t r a n s l a t i o n s ' and b o u n d a r y objects: a m a t e u r s and
professionals in Berkeley's M u s e u m o f vertebrate zoology. Social Studies of Science,
19:387-420, 1988.
School of Medicine of Bahia, Brazil, 1869-1889,
op. cit
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Uma ciência que círcula, a medicina tropical