Prefácio à edição original
François Rodhain
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LÖWY, I. Vírus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre ciência e política [online].
Tradução de Irene Ernest Dias. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. 427 p. História e Saúde
collection. ISBN 85-7541-062-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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Prefácio à Edição Οriginal
Hoje, m a l podemos imaginar a devastação que a febre amarela podia
provocar nas aglomerações da África e da América tropical, o u quando de
suas irrupções nos portos da Europa ou da América do Norte. A mortalidade era a s s u s t a d o r a em certas epidemias. Entre pessoas recém-chegadas à
zona endêmica, sobretudo, todos concordavam em observar particular sensibilidade à doença. Durante muitos séculos, todos esses lugares têm u m a
h i s t ó r i a t r a g i c a m e n t e e n t r e m e a d a de terríveis d e v a s t a ç õ e s do " t y p h u s
amaril". A ignorância que, até os anos 1 8 8 0 , reinava quanto às causas da
doença e ao seu modo de propagação só podia agravar a situação, provocando os mais fantasiosos rumores e alimentando terríveis polêmicas. Isolando ainda mais as populações, interrompendo todo o comércio, as q u a rentenas e os cordões sanitários a s f i x i a v a m as cidades e a u m e n t a v a m a
angústia.
A h i s t ó r i a da febre a m a r e l a se inscreve f a c i l m e n t e na h i s t ó r i a da
teoria dos germes de Louis Pasteur. Entretanto, o que I l a n a L ö w y nos p r o põe não é u m a história da febre amarela no Brasil, m a s antes u m a reflex ã o sobre u m a fase crucial da história desta doença. Inicialmente, era de
fato importante e x a m i n a r as relações entre o saber científico universal e a
percepção da doença t a n t o pelos pacientes q u a n t o pelos médicos. Esta é
u m a reflexão e p i s t e m o l ó g i c a essencial. Na época a t r a n s f e r ê n c i a de c o nhecimentos e a circulação dos saberes não ocorriam a u t o m a t i c a m e n t e . Ε
isso ainda acontece nos dias de hoje. Em segundo lugar, trabalhando
no
Brasil e nos Estados Unidos, Ilana L ö w y conseguiu obter em primeira m ã o
informações preciosas, até então adormecidas em relatórios de arquivos e
em d o c u m e n t o s de acesso freqüentemente difícil. Isso permite abrir u m
grande espaço para as percepções, pelas populações e pelos meios políticos,
das medidas de prevenção preconizadas e aplicadas pelos cientistas da Fun¬
dação Rockefeller e, naturalmente, para as oposições a essas ações desenvolvidas no seio dessa sociedade brasileira multiétnica, que acolhia grande
n ú m e r o de imigrantes. É, de fato, essencial que se esteja em condições de
recolocar o a s s u n t o no contexto político e social da época.
É em
1 9 1 4 , após os s u c e s s o s a l c a n ç a d o s na
luta
contra
a
ancilostomíase, que a Fundação Rockefeller entra em cena c o m b a t e n d o a
febre a m a r e l a n o B r a s i l , b a s e a n d o - s e , p a r a i s s o , no f a m o s o a r t i g o de
Wickliffe Ross que propõe a "teoria do foco-chave".
No Brasil, c o m o e m o u t r o s lugares, "os especialistas da F u n d a ç ã o
Rockefeller v i e r a m , p o r t a n t o , c o m u m a ciência de saúde pública p r o n t a ,
que não se modificou no c o n t a t o c o m seus colegas brasileiros". Tudo isso
m o s t r a bem que, em saúde pública, não se trata apenas de problemas de
pura técnica médica, m a s há m u i t o mais em j o g o .
Hoje, s a b e m o s que essa "teoria do f o c o - c h a v e " estava equivocada,
c o m o j á pensavam os pasteurianos e muitos outros; esta certeza absoluta
exibida pelos especialistas da fundação deveria, aliás, incitar a prudência
de todos aqueles que, ainda hoje, se apóiam unicamente, em m a t é r i a de
doenças t r a n s m i s s í v e i s , em considerações teóricas e modelos m a t e m á t i cos p a r a explicar as s i t u a ç õ e s epidemiológicas e prever as e m e r g ê n c i a s
futuras, sem se preocupar em levar em conta t a m b é m o impacto de vários
fatores, tão difíceis de quantificar, ligados à ecologia h u m a n a . A natureza
se recusa a se deixar encerrar em categorias e em fórmulas m a t e m á t i c a s .
Assim, as dificuldades encontradas na prática do controle do Aedes
aegypti são bem clássicas; elas persistem ainda hoje onde quer que se queira desenvolver esse tipo de ação.
Todavia, ainda que os avanços obtidos especialmente graças à intuição e à energia de Soper, e que levaram inevitavelmente ao a b a n d o n o da
teoria do f o c o - c h a v e , t e n h a m desencadeado u m a m u d a n ç a m a r c a n t e da
política sanitária, observa-se que em n e n h u m m o m e n t o fala-se da possibilidade de u m a permanência do vírus amarílico nas populações de mosquitos
por meio de u m a t r a n s m i s s ã o vertical, fenômeno no entanto demostrado
desde 1 9 0 5 pelos cientistas franceses em missão no Rio de Janeiro.
Graças a seus talentos de historiadora, Ilana Löwy soube recolocar a
ação médica no Brasil de então. É a s s i m que, ao ler esta obra, t o m a m o s
consciência dos fatos de que a instauração do regime autoritário de Getú¬
lio Vargas, n u m país onde a cultura da violência é onipresente, sem dúvida
alterou completamente a situação em matéria de saúde pública e de que a
"campanha contra a febre amarela empreendida pela Fundação Rockefeller
inseria-se perfeitamente naquele n o v o c o n t e x t o " . Esse fato político teria
sido decisivo para o s u c e s s o de Soper? Este teve, em todos os c a s o s , a
m a i o r liberdade de ação para acionar seu dispositivo de controle dos Aedes.
Por m a i s q u e t e n h a m aflorado o s b o n s e os m a u s a s p e c t o s dessa a ç ã o ,
n u n c a se terá dito o bastante sobre os controles incessantes, o rigor apesar
da r o t i n a , sobre a e x t r a o r d i n á r i a o r g a n i z a ç ã o q u a s e m i l i t a r da a d m i n i s tração que pode, aliás, ser vista c o m o u m "fanatismo quase religioso" n o
seio daquele " e x é r c i t o p e r m a n e n t e e m c a m p o " , segundo a e x p r e s s ã o de
Fred Soper. Ε foi m e s m o graças a esse "espírito m i s s i o n á r i o " que mais de
duas m i l casas p u d e r a m ser visitadas e m 1 9 3 0 e 1 9 4 2 .
Porém, m a i s tarde, o u t r o s dados v i e r a m m u d a r a situação: o
s u r g i m e n t o do DDT, a evidência da existência de u m reservatório a n i m a l
silvestre que t o r n a v a a erradicação da febre amarela t o t a l m e n t e irrealista,
o desenvolvimento de v a c i n a s .
De todo modo, o fato de que o Aedes aegypti tenha sido quase erradicado
da A m é r i c a Latina g r a ç a s a o s n o r t e - a m e r i c a n o s , m a s que estes m e s m o s
n o r t e - a m e r i c a n o s n ã o t e n h a m conseguido retirá-lo do próprio território
dos Estados Unidos, n ã o é o m e n o r dos paradoxos. C o m o n ã o retomar aqui
a frase de Soper: "O erradicador sabe que seu t r a b a l h o n ã o se mede pelo
que foi feito, m a s que o g r a u de seu fracasso se mede por aquilo que ainda
resta a fazer".
I l a n a L ö w y pôde reconstituir c o m m u i t o cuidado a história das pesquisas sobre a preparação da vacina antiamarílica. Os testes em h u m a n o s
e r a m praticados em condições que, hoje, dariam arrepios; elas certamente
n ã o estão afinadas c o m nosso atual "princípio de precaução". Ainda aqui,
é imperativo se recolocar n o contexto da época para apreciar a determinação dos pesquisadores. Ε é preciso t a m b é m levar em conta os riscos que os
próprios pesquisadores c o r r i a m .
O desenrolar do fio da história, c o m seu cortejo de glórias e de m i s é rias, de perseverança e de reviravoltas, leva, pouco a pouco, à situação hoje
prevalecente. Ε que s i t u a ç ã o é essa? S a b e m o s c o m o , n o p l a n o técnico, é
possível e l i m i n a r o m o s q u i t o v e t o r Aedes aegypti, m a s , após os sucessos
alcançados na primeira metade do século X X , este v o l t o u a invadir, p r o gressivamente, a partir dos anos 1 9 7 0 , a maior parte da América tropical;
ele c o n t i n u a presente, especialmente n o Brasil, que se declara pronto para
relançar u m a m p l o p r o g r a m a nacional de eliminação; de fato, aos olhos de
m u i t o s e p i d e m i o l o g i s t a s , a A m é r i c a L a t i n a e s t á de n o v o
gravemente
ameaçada. Dispõe-se de u m a vacina extremamente eficaz e bem tolerada e,
n o entanto, cerca de duzentos mil casos de febre amarela (em média) teriam
surgido atualmente, segundo as estimativas da O M S ; há aproximadamente
1 5 anos, epidemias importantes se m a n i f e s t a m n o continente africano. A
OMS m u d o u sua política: seus programas horizontais, baseados nos f a m o ¬
sos cuidados primários de saúde, visam não mais à "erradicação", m a s ao
"controle" das endemias, n u m contexto marcado pela falta de recursos financeiros, falta de competências, falta de vontade política.
Decepcionante? S e m dúvida. Desesperador? Certamente não, m e s m o
que, por vezes, possamos ter a impressão de que a História é u m eterno
recomeço.
François Rodhain
Professor do Instituto Pasteur
Setembro de 2 0 0 0
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