REPRESENTAÇÕES EUROCÊNTRICAS ENSINADO SOBRE GÊNERO E ETNIA
EM LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA – ENSINO MÉDIO
BONIN, Iara Tatiana – ULBRA – [email protected]
GOMES, João Carlos Amilibia – ULBRA – [email protected]
Eixo:Educação Básica/n.03
Agência Financiadora: sem financiamento
A intenção deste trabalho é problematizar algumas representações eurocêntricas
presentes em livros de história do ensino médio, prestando especial atenção aos modos
como elas produzem e posicionam identidades étnicas e de gênero. Para tanto, analisamos
imagens e textos que trazem representações femininas e indígenas, em três livros didáticos
endereçados a estudantes do Ensino Médio e significativamente utilizados em escolas do
Estado do Rio Grande do Sul1.
A perspectiva teórica que orienta este trabalho é a dos Estudos Culturais pósestruturalistas que, para Wortmann e Veiga-Neto (2001) constitui um campo multifacetado,
no qual se produzem variados caminhos investigativos, distintas posições teóricas e
políticas, mas que partilham o compromisso de examinar práticas culturais do ponto de
vista de seu envolvimento com e no interior de relações de poder. Nesse tipo de pesquisa a
atenção se volta para as práticas sociais, para o modo como os significados são produzidos
e organizados, bem como, para as condições que possibilitam a existência de certos sujeitos
e certas representações em uma dada sociedade. Desse modo, estes estudos promovem um
alargamento no conceito de cultura, que passa a abranger práticas e sentidos cotidianos,
significações que aprendemos em pedagogias múltiplas, tais como aquelas que se produzem
na mídia, nas conversas do dia-a-dia, na literatura, nos jornais. A noção de pedagogias
culturais coloca em evidência a necessidade de pensarmos em significados que vão se
constituindo e adquirindo visibilidade porque são articulados numa ampla rede de práticas,
e vão sendo apresentados de maneira recorrente e naturalizada.
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Os livros analisados foram os seguintes: História das cavernas ao Terceiro Milênio , de Myriam Becho
Mota e Patrícia Ramos Braick - editora Moderna; História Global: Brasil e Geral, de Gilberto Cotrim editora Saraiva e História para o Ensino Médio: História Geral e do Brasil, de Cláudio Vicentino e Gianpaolo
Dorigo - editora Scipione.
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Dizendo com palavras de Costa (2005), os Estudos Culturais “constituem uma
ressignificação e/ou uma forma de abordagem do campo pedagógico em que questões como
cultura, identidade, discurso e política da representação passam a ocupar, de forma
articulada, o primeiro plano da cena pedagógica” (p.112). Deste modo, o citado campo
favorece a problematização de práticas escolares e de artefatos pedagógicos, constituindoos como objetos de estudo sob uma ótica cultural, analisando-os enquanto produtores de
significado em meio a relações de poder-saber, nas quais predominam contingentemente
certos discursos e determinadas representações.
Na escola são constituídas diferentes entendimentos sobre corpo, gênero, etnia,
nacionalidade, sendo que alguns deles adquirem maior relevo em discursos de professores,
em livros didáticos, em distintas imagens e mensagens cotidianas - esse fato colabora para
produzir hierarquias e posicionar de maneiras distintas os sujeitos. No caso deste trabalho, a
análise imagética nos leva a pensar que os significados são produzidos também por
silenciamentos, ou seja, pela ausência de referências a distintos sujeitos, estabelecendo-se,
assim uma narrativa homogeneizadora. Os sentidos se instituem ainda pela interdição de
determinados temas, naturalizando lugares sociais de gênero e reafirmando, por exemplo, a
heteronormatividade.
Interessou-nos examinar não apenas as imagens trazidas nos livros didáticos de
história, como também as legendas, uma vez que estes textos, articulados às imagens,
operam de modo complementar e conduzem o olhar do espectador para certos aspectos que
se pretende conferir relevo. As palavras escolhidas para orientar a leitura da imagem não
são aleatórias e produzem efeitos, organizando de certa maneira as coisas e os sujeitos
representados. Considerando que os sentidos não são fixos e sim continuamente negociados
na linguagem, esta análise que propomos mostra-se produtiva, uma vez que se volta para
práticas de representação que, imersas em relações de poder produzem “realidades, campos
de objeto e rituais de verdade” (Foucault, 1987, p.161).
Importante salientar, de início, nosso entendimento acerca das representações, como
processos de atribuição de sentidos nunca fixados definitivamente e sempre resultantes de
embates e de jogos de força. Isso porque não há uma correspondência necessária e natural
entre as palavras e as coisas, conforme ensinou Foucault (1987); o sentido das coisas é
sempre resultado de produções e de investimentos de poder e saber, em contextos diversos.
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Isso implica pensar que não há um significado final ou verdadeiro, mas significados
construídos e negociados que circulam, definem posições, regulam condutas sociais.
Seguindo a análise de Hall (1997)
a representação é o processo pelo qual membros de uma cultura usam a
linguagem para instituir significados. Essa definição carrega uma
premissa: as coisas, os objetos, os eventos do mundo não tem, neles
mesmos, qualquer sentido fixo, final ou verdadeiro. Somos nós, em
sociedade, entre culturas humanas, que atribuímos sentidos às coisas. Os
sentidos, consequentemente, sempre mudarão de uma cultura para outra e
de uma época para outra (p. 61).
Desse modo, as representações possibilitam, de maneira provisória e contingente,
que nos reconheçamos em certas identidades e que possamos demarcar limites entre aquilo
que somos/pensamos ser e o que imaginamos serem os outros. E estas distinções são
produzidas numa assimetria entre aqueles que estão autorizados a narrar (e que ocupam a
centralidade nas representações) e aqueles que são narrados (e são posicionados de maneira
subordinada). É o caso de narrativas eurocêntricas que, tomando como parâmetro a cultura
européia, produzem representações que subordinam as outras culturas; é também o caso das
narrativas que se produzem sob uma perspectiva masculina hegemônica e que narram o
feminino de maneira subordinada.
É relevante afirmar, como o faz Veiga-Neto (2002), que “os marcadores identitários
– aqueles símbolos culturais que servem para diferenciar, agrupar, classificar, ordenar –
inscrevem-se fundamentalmente no corpo” (p. 36). Desse modo, analisar construções
relativas a gênero e etnia é também considerar o modo como o poder investe e produz o
corpo, dotando-o de atributos específicos e distintos. Faz sentido, então, pensar quais são os
corpos femininos e indígenas representados nesses materiais, que lugares ocupam, como
estão dispostos nas imagens, quais marcadores sociais são fixados para que o espectador
dessa imagem identifique os sujeitos descritos na cena.
A construção sócio-histórica de gênero e de etnia é pensada no interior de tecidos
discursivos imagéticos, nas quais se apresentam apenas certas possibilidades e maneiras de
pensar masculinidades e feminilidades; e também alguns modos, quase sempre fixos e
estereotipados, de apresentar os povos indígenas, sem levar em conta a pluralidade de
histórias e de práticas culturais destas diferentes etnias. Assim, as imagens são
compreendidas como lugares de embates, onde determinados discursos e representações
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exercem hegemonias temporárias, sendo, deste modo, espaços em que certas representações
de gênero e de etnia adquirem visibilidade, subordinando outras possíveis, processo pelo
qual se produzem identidades e posições de sujeito.
Também vale ressaltar que a noção de gênero é utilizada aqui para marcar
diferenciações
estabelecidas
na
cultura,
nas
quais
se
definem
atributos
masculinos/femininos e se produzem espaços designados a priori para mulheres e homens.
As representações de gênero são construções culturais que ocorrem no decorrer do processo
histórico, ou seja, a definição do que seja masculino/feminino tem a ver com o tempo
histórico, o contexto sócio-cultural daqueles sujeitos e com as práticas que vão inscrevendo
nos corpos determinadas disposições e conformando cada um no “seu lugar”. As
representações de gênero constantes dos livros didáticos analisados colaboram para instituir
determinadas “verdades” sobre homens e mulheres e também participam, de muitas
maneiras, num posicionamento hierárquico do feminino e do masculino, tomado como
definitivo, natural e imutável.
Notas sobre os livros didáticos examinados
Os três livros analisados neste estudo foram produzidos no Estado de São Paulo e
utilizam variadas linguagens - mapas, esquemas, gráficos, textos de autorias diversas – e
também um farto e heterogêneo material iconográfico: caricaturas / charges, gravuras,
fotografias – desde aquelas que retratam obras artísticas até as de cunho jornalístico –
materiais de propaganda, imagens retiradas de capas de disco, de livros e de revistas, cenas
de filme, pinturas em variadas técnicas, iluminuras, esculturas, miniaturas de obras de arte,
imagens de textos manuscritos, mosaicos, imagens em moedas, brinquedos e máscaras. Os
três livros contam com um significativo número de páginas – entre 600 e 700 – o que se
explica por serem volumes únicos, constituídos para uso nas três séries do Ensino Médio.
O material imagético também é variado quanto ao tecido sócio-cultural e época em
que foi produzido. Algumas representações imagéticas parecem ter sido escolhidas para
integrar os livros por serem constituídas na teia sócio-cultural da época, sendo a imagem
incorporada como elemento que colabora para inserir o leitor em um “outro tempo”.
Todavia, outras representações imagéticas são constituídas em tempos e espaços diferentes
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daquele que está sendo referido na unidade ou no tópico do texto escrito – nestes casos, as
representações têm a ver, especialmente, com os discursos que constituem o “olhar” e o
tempo daquele/a que elabora a imagem do objeto de representação.
A maioria das imagens, nas quais se apresentam figuras humanas, poderiam ser
analisadas do ponto de vista das relações de gênero, uma vez que elas apresentam e ao
mesmo tempo posicionam homens, mulheres, idosos, crianças, numa dada cena. E mesmo
quando essas imagens restringem-se a apenas um gênero – masculino ou feminino, elas
produzem sentidos que dizem respeito a ambos, uma vez que “colam” aos corpos certos
atributos e os posicionam em contextos – públicos ou privados – como se essa fosse a
ordem natural das coisas. Naturaliza-se, assim, a presença de uns e a ausência de outros em
determinadas cenas como, por exemplo, mulheres em supermercados, em espaços
domésticos, cercadas por crianças/ homens em cenas de guerra e de confronto, em bares e
ruas, em ilustrações de feitos heróicos, entre outras.
Em relação as representações étnicas, constantes nos livros analisados, poderíamos
dizer que há um conjunto não muito expressivo de imagens em que os sujeitos indígenas
são representados, sendo distintas as formas de abordagem dessa temática nas três obras.
Em um desses livros, composto por 608 páginas, existem somente seis imagens relativas à
temática indígena; outro livro tem 688 página e uma infinidade de imagens, sendo que, em
apenas 8 delas os índios integram a cena.
Passamos a analisar agora um conjunto de representações imagéticas e verbais que
produzem gênero e etnia tomando como referência um olhar europeu. Em outras palavras,
interessa-nos colocar em destaque algumas imagens contidas nos livros didáticos que
instituem determinadas maneiras de narrar e de posicionar os sujeitos de modo a
estabelecer como desejáveis e “naturais” certas concepções eurocêntricas.
Um olhar eurocêntrico produzindo representações de gênero
As representações presentes nos livros didáticos propiciam a reprodução de
“verdades” advindas de vontades de poder. A vontade de verdade pode apoiar-se em um
aparato institucional, sendo reforçada e reconduzida por um conjunto de práticas, como as
pedagógicas e os sistemas de livros, que podem exercer sobre determinados discursos um
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poder de coerção; conforme Foucault (2002, p. 17), a vontade de verdade “é também
reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma
sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”.
No caso das representações de gênero masculino e feminino nos livros didáticos, se
estabelecem no interior de um dispositivo pedagógico enraizado no pensamento moderno
cientificista que, historicamente, tem propiciado condições de possibilidade para o primado
de determinadas representações masculinas em relação às demais representações, tanto do
campo masculino,quanto do feminino. Deste modo, as análises a seguir envolvem o livro
didático – um artefato pedagógico imerso em embates discursivos, nos quais certas
vontades de verdade têm deitado raízes, sobrepondo-se a outras.
Inspiramo-nos na teorização foucaultiana, para quem os indivíduos das sociedades
ocidentais são historicamente modelados na “alma”, sob o ponto de vista discursivo. A
“alma” segundo Foucault (1987, p. 28) “é o elemento onde se articulam os efeitos de um
certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder
dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder”. Seria
razoável pensar que, em diferentes tempos, lugares e culturas, poderes microfísicos teriam
deitado raízes e gerado condições de possibilidade para se pensar gênero, etnia,
nacionalidade e outros pertencimentos como coisas naturais. As características distintivas
são inscritas nos corpos, mas objetivam produzir uma “alma nacional”, uma “alma
feminina”, uma “alma indígena”, reiterando e naturalizando determinadas posições,
designadas a cada um desses distintos sujeitos sociais. Em relação às imagens
generificadas, neste texto analisamos especificamente os modos como elas participam
(re)criando constantemente o discurso hegemônico masculino, centrado em representações
eurocêntricas.
Em um dos livros analisados encontramos uma caricatura de aproximadamente
1885, na qual a África é representada como uma “mulher negra” com lábios grossos e
avermelhados, nariz bastante largo, cabelo enrolado, corpo nu, evidenciando formas roliças.
A “África-mulher” estaria associada à natureza, ao não-civilizado, ao selvagem, bem como
ao campo da emoção e do sentimento e, segundo a legenda, seduzida pelos encantos
europeus, está deitada em meio à vegetação, repousando a cabeça sobre um tecido branco,
vulnerável aos encantos de quem a cobiçava. O ministro alemão/o europeu/civilizado está
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sobre a mulher e aparece na cena vestido, em posição de quem pareceria prestes a beijar,
dominando, assim, a natureza. A proximidade dos corpos, da “África-mulher” e do
europeu, potencializaria o efeito da dicotomia que aparentemente se estabelece através da
cor – enquanto significante de uma dada condição étnica – de determinadas partes do
corpo; assim, podem se ver, lado a lado, rosto branco – rosto negro, mão e braço brancos –
mão e braço negros. O contraste marca ainda o que seria exageradamente representado nos
lábios “d’África”, em relação à representação dos lábios do europeu, contrapondo-se
exotismo e erotismo ao padrão tido como “normal”. Na superfície do texto caricatural se
articulam discursivos de gênero, de etnia, de nação, de corpo, dentre que reafirmam a
condição “naturalmente superior do europeu/masculino/branco em relação a outras
possíveis identidades nacionais, de gênero e de etnia.
Apesar da evidente generificação do texto imagético, a ênfase dada na legenda que
acompanha esta imagem volta-se para a expansão imperialista européia desde períodos
anteriores ao século XIX e a decorrente expansão de valores europeus – exemplificados na
concepção de tempo e nas periodizações da história, sendo as representações de gênero da
imagem simplesmente ignoradas. Assim, considerando certos silenciamentos “existentes”
na relação dos textos verbais com os imagéticos podemos indagar se esses silenciamentos
não seriam representativos do modo como naturalizamos determinadas posições – um
homem dominador/uma mulher submissa – fundamentadas em estruturas teóricas do
pensamento moderno. A própria escolha do gênero feminino para representar a África, não
estaria dentro de uma estrutura textual que permite naturalizar certas representações? As
possíveis representações dicotômicas que parecem articular os/as nativos/as da África à
natureza, polarizando com a representação do europeu civilizado, não estariam reforçando
binarismos oposições como natureza X cultura?
A África é representada por uma imagem feminina, e não por acaso se estabelece a
sua condição subordinada em relação ao continente europeu. A ela se associam, então
atributos tidos como femininos – África selvagem, irracional, submissa, vulnerável aos
encantos masculinos. É possível dizer também que, numa perspectiva eurocêntrica, parece
natural que a figura masculina seja escolhida para representar o continente que domina,
uma vez que é sob este olhar que uma narrativa como esta adquire significação.
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Um segundo exemplo de representações eurocêntricas de gênero pode ser
encontrado na gravura de século XVII, atribuída a Maten de Vos, reproduzida em uma das
obras analisadas: nessa imagem a América é uma mulher, de corpo robusto, associada à
natureza por diversos elementos dispostos ao seu redor. Ela tem, em sua uma estrutura
anatômica, quadris largos, o que pode ser significativo para imprimir em seu corpo as
marcas da maternidade como destino “natural” da mulher. Também neste livro
encontramos um conjunto composto por quatro xilogravuras que seriam representações
italianas da América, África, Ásia e Europa. Os quatro continentes são representados por
mulheres, mas há diferenciações entre elas, relativas ao modo de vestir e aos elementos que
compõem a cena. A América seria uma mulher selvagem, segurando arco e flecha e
portando um cocar na cabeça. Ela está parcialmente vestida e tem os seios à mostra. É
simbolizada também pela prática canibalismo, tendo uma cabeça humana caída aos seus
pés. A África é apresentada em formas roliças, com uma das mãos disposta em seu quadril,
pobremente vestida e inteiramente envolta em animais que representam perigo: escorpião,
leão e cobras. A Ásia é apresentada como uma mulher imponente, mas ela traz nas mãos as
especiarias tão cobiçadas em tempos coloniais. Seu corpo está inteiramente vestido, com
motivos orientais. No caso da representação da Europa, o gênero feminino está associado à
civilização, com elementos que simbolizam erudição e sabedoria (uma coruja),e domínio (
um globo imperial) Ela está trajada com vestes de soberana, traz na cabeça uma coroa e
está sentada em um trono com formato de um cavalo.
É importante ressaltar que nos textos das obras analisadas há uma problematização
do eurocentrismo, afirmando que as representações européias foram as predominantes nas
produções cartográficas e desse modo os elementos associados a cada continente
apresentam uma hierarquia de valores e, portanto, de poder. Um contraponto a esta
produção seriam os mapas cartográficos mulçumanos, produzidos no mesmo período e, no
entanto, apesar de atentos aos efeitos de discursos eurocêntricos, os autores dos livros em
questão acabam por incorporar apenas as representações imagéticas produzidas sob um
olhar europeu.
Embora os corpos femininos sejam amplamente utilizados nas representações
imagéticas, os livros analisados não problematizam e nenhum momento as representações
de gêneros produzidas nestes materiais. As imagens são incorporadas e discutidas a partir
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de sentidos que produzem, sem que se vejam contempladas as relações de poder e saber que
constituem ligares sociais femininos e masculinos.
Realizando uma crítica da imagem eurocêntrica, Shohan e Stam (2006) asseveram
que, no âmbito da representação, o imaginário ocidental vê metaforicamente a terra
colonizada “como a mulher que deve ser resgatada da sua desordem mental e da desordem
do meio ambiente” (p. 236). Os autores destacam ainda o lugar estratégico do discurso
colonial no que chama de batalha pela representação. Considerando os silenciamento
concernentes às representações de gênero nos textos verbais dos livros didáticos, é possível
indagar: essas imagens que nos convidam a “olhar sem ver” as relações de gênero não
colaboram para naturalizar as relações constituídas, sem problematizar sua “naturalidade”,
“verdade”, universalidade”? Uma representação que fixa certo modo de ser masculino e
feminino não colaboraria para silenciar as “tantas” masculinidades e feminilidades que se
produzem cotidianamente?
Um olhar eurocêntrico produzindo e posicionando os povos indígenas
Nas mais de 1800 páginas dos três livros de história analisados encontramos um
número pouco significativo de imagens relativas à temática indígena. Em relação a estas
imagens, uma aspecto que merece destaque é sua distribuição ao longo do texto. A maioria
delas concentra-se em passagens históricas que convencionamos chamar período colonial,
no qual a presença indígena é inegável – como, por exemplo, o episódio da chegada das
caravelas espanholas à América, ou das caravelas portuguesas ao Brasil, que comumente
chamamos “descobrimento”, mas que pode ser também nomeado como conquista ou
invasão, dependendo do ponto de vista a partir do qual narramos essa história. O que
queremos sublinhar é que são raras as referências feitas às distintas civilizações que
ocupavam vastamente o continente americano antes do período das grandes navegações.
Isso ocorre como efeito de narrativas cujas referências são eurocêntricas – as terras
conquistadas somente adquirem visibilidade depois daquele brado fundacional “terra à
vista”, e essa forma de “entrada” da América nas narrativas históricas parece colaborar para
confirmar a superioridade européia e a condição do continente americano como “novo
mundo”, útil ao “velho mundo”.
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Ocorre que, das imagens analisadas, apenas uma delas faz referências às culturas
pré-colombianas, ilustrando um texto intitulado Maias, Astecas e Incas, cujos tempos
verbais são invariavelmente expressos no passado (por exemplo, nas expressões a seguir:
“o império inca desenvolveu-se”, “civilização que viveu”, “construíram grandes templos”).
Trata-se de uma fotografia colorida, mostrando parte da cidade de Machu Picchu e na
legenda se pode ler “foto das ruínas da cidade inca de Machu Picchu, Peru”. Poderíamos
indagar, acerca dessa articulação imagético-verbal, quais significados são produzidos
quando fazemos referências a uma civilização, destacando suas “ruínas”.
As demais representações dos povos indígenas estão situadas na parte do texto
histórico relacionada ao período colonial, e as referências feitas não mencionam os nomes
específicos das etnias, nem informações relativas aos seus costumes, línguas ou territórios
tradicionais - tal destaque parece ganhar relevância apenas no texto dedicado aos astecas,
maias e incas. Um dos efeitos de poder desse tipo de representação parece ser a sensação
que guardamos, ao relembrar nossas experiências escolares, de que grandes civilizações
indígenas são apenas aquelas que deixaram estruturas físicas imponentes, arquiteturas que
desafiam-nos a pensar nos conhecimentos astronômicos, arquitetônicos, climáticos que
motivaram tais construções. Considerando que as culturas indígenas habitantes do território
brasileiro não edificavam monumentos duráveis, com estruturas que pudessem se perpetuar,
concluímos que não eram “grandes civilizações”, mas aglomerados de população
“selvagem”, “grotesca”, “bárbara”.
Destaca-se, em um dos livros analisados, uma reprodução da imagem de Terra
Brasilis (do mapa do atlas Muller, feito entre 1515 e 1519). Trata-se de uma pintura
bastante utilizada em livros escolares, na qual se encontram os traçados das antigas
capitanias hereditárias, e os índios aparecem carregando nos ombros os troncos de paubrasil. São sete homens indígenas desenhados entre árvores e animais (macacos, araras,
papagaios pintados com cores suaves, e também animais grotescos, assemelhados a lagartos
gigantes, com asas). Quatro homens estão nus e tem seus corpos curvados, os demais
parecem comandar o trabalho, e tem seus corpos recobertos por indumentárias feitas de
penas coloridas. O texto da legenda informa se tratar de uma representação do início da
ocupação do Brasil e da extração do pau-brasil pela mão-de-obra indígena.
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O que nos parece importante registrar, acerca dessa imagem, é a dissolução da
noção de povos/culturas/etnias, numa designação genérica de “mão-de-obra indígena” – em
outras palavras, essa ilustração parece afirmar a utilidade indígena, nos projetos coloniais
postos em curso no Brasil, no século XVI, sendo os índios incorporados em atividades
extrativistas, para as quais se atribui significados a partir do discurso colonial. Os “chefes
indígenas”, representados como que comandando o trabalho, seriam partícipes desse
empreendimento, na medida em que subjugavam seus pares como mão-de-obra. A noção de
chefia e de trabalho que se destaca nestas representações são aquelas que fazem sentido
num modo de organização europeu daquele momento histórico.
Outro aspecto que desejamos salientar, em relação as representações imagéticas de
sujeitos indígenas diz respeito a ausência de imagens, que se pode observar na seção
correspondente ao “mundo contemporâneo”. Neste segmento narrativo os povos indígenas
desaparecem, não havendo qualquer imagem que afirme a atualidade da temática indígena
nas páginas correspondentes ao Período Contemporâneo. É importante registrar que em
uma das obras analisadas há uma fotografia atual, mas ela está ilustrando um texto que
aparece no período que convencionamos chamar Pré-História, e que tem como foco as
pesquisas arqueológicas que comprovam a presença indígena no continente, há pelo menos
10 mil anos a.C. O texto sugere que os povos indígenas foram destruídos e suas culturas
alteradas pela imposição colonial. Na fotografia, da década de 1990, está representada uma
cena de vida indígena contemporânea: destaca-se ao centro da superfície imagética os
guerreiros Kaiapó, posicionados em semi-circulo e dançando – eles têm seus corpos
pintados de preto, cocares na cabeça, lanças nas mãos, vestem calções vermelhos e calcam
sandálias de borracha. Em segundo plano está uma casa coberta com folhas de palmeira,
que abriga mulheres e crianças sentadas lado a lado, assistindo ao ritual. Ao fundo, imagens
de floresta, mesclando o azul do céu e o verde das copas de árvores. Na legenda, um
convite é lançado: “Quais peças da indumentária dos indígenas acima não são,
originalmente, de sua própria cultura? Novamente se pode indagar sobre os sentidos
articulados nesta representação imagética. Mesmo quando as imagens indígenas são
contemporâneas, elas ilustram um conjunto de informações que fixam os povos indígenas
no passado. Além disso, o convite lançado aos estudantes na legenda reafirma um discurso
que entende as culturas indígenas como sendo “sempre as mesmas”, presas a tradições do
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passado e, portanto, na medida em que eles transformam suas maneiras de viver e suas
práticas, agregando a elas elementos de outras culturas – como, aliás, sempre o fizeram – o
efeito é avaliarmos esse movimento como sinal de “perda cultural”. Mas, se a cultura não é
algo que se possui, não é objeto, mas resultado de experiências cotidianas, seria possível
imaginar que alguém perca cultura?
Um destaque que nos parece importante, concernente as representações imagéticas,
é a representação estereotipada dos povos indígenas, a partir de alguns traços facilmente
identificáveis, tais como a nudez, a cor da pele, a pinturas corporais, o uso de arcos e
flechas, a arte plumária. Esses são marcadores que, de maneira recorrente, informam aos
leitores tratar-se de sujeitos indígenas e, mais do que isso, fixam aos seus corpos
determinados atributos tidos como partes de sua própria natureza.
Estas narrativas estão sustentadas em estereótipos, que são uma forma de falar dos
outros adotando traços simplificados, exagerados, facilmente memorizáveis e amplamente
reconhecidos, traços instáveis e ambivalentes, que parecem fixos quando colados à essência
dos sujeitos. Para Silva (1999) estereótipo é
um dispositivo de economia semiótica, onde a complexidade do outro é
reduzida a um conjunto mínimo de signos: apenas o mínimo necessário
para lidar com a presença do outro sem ter que se envolver com o custoso
e doloroso processo de lidar com as nuances, as sutilezas e profundidades
da alteridade (p. 51).
O uso de estereótipos possibilita generalizações, simplifica as práticas culturais
indígenas e nega-lhe a possibilidade de movimento e dinamismo. É possível dizer que esse
tipo de representação, ao atribuir passividade e imobilidade aos povos indígenas, atribui
atividade e dinamismo aos sujeitos posicionados no pólo oposto – os não-indígenas.
Importante ressaltar que estas representações esteotipadas estão presentes em
discursos cotidianos, midiáticos, didáticos, literários que, funcionam em rede e reafirmam
continuamente a imagem de “índios”, caracterizados sempre por traços homogêneos.
Conforme referido anteriormente, a palavra “índio” vem substituir – de maneira
aparentemente “natural” – os distintos nomes dos povos indígenas que habitavam e habitam
as terras brasileiras. Historiadores e antropólogos dedicados ao estudo das populações
indígenas vem afirmando recorrentemente que, no Brasil, havia mais de 1000 povos
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indígenas diferentes no período da conquista portuguesa. Na atualidade, apesar da aparente
invisibilidade e homogeneidade destes sujeitos (efeito dos discursos que produzimos sobre
eles), existem pelo menos 230 povos indígenas diferentes vivendo nas terras brasileiras.
Neste sentido a categoria genérica “índio” serve muito mais aos interesses que temos em
demarcar as diferenças e homogeneizar as práticas desses sujeitos como sendo “sempre as
mesmas”, convertendo-as em práticas que carecem de racionalidade, de cientificidade, de
ordem, ou então marcando seus corpos pelo puro exotismo.
Quem fala nas imagens eurocêntricas?
Finalizando provisoriamente esta análise, desejando lançá-la e não fechar a questão,
trazemos algumas argumentações teóricas que nos parecem úteis para problematizar
discursos eurocêntricos e coloniais.
Em O Local da Cultura, Bhabha (2005) argumenta que o discurso colonialeurocêntrico opera relações de poder e saber, produzindo hierarquias e legitimando uma
ordem estabelecida para pensar o mundo, constituída na modernidade. Para o autor, “sua
função estratégica predominante é a criação de um espaço para ‘povos sujeitos’, através da
produção de conhecimentos em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma
forma complexa de prazer/desprazer” (p. 111). Há um investimento na produção de
saberes, na articulação de campos e na construção de polaridades. Construídos como “os
outros”, em relação aos europeus, os distintos povos e os diferentes continentes parecem
produzir, ao mesmo tempo, escárnio e fascínio.
O discurso eurocêntrico tende a posicionar a Europa no centro de toda produção da
modernidade, bem como de todo o desenvolvimento da arte, da ciência, da tecnologia –
sendo posicionada, desse modo, como cultura central na da própria história da humanidade.
Grande parte da historiografia produzida no século XIX e primeiros anos do século XX tem
na base certos discursos eurocêntricos, sendo esta perspectiva problematizada somente a
partir da segunda metade do último século. Autores como Edward Said, Homi Bhabha,
Stuart Hall, Santiago Castro-Gómez, Edgardo Lander, Aníbal Quijano, Ella Shohat e
Robert Stam tem dedicado especial atenção aos efeitos dos discursos erocêntricos e
coloniais na produção de saberes sobre os outros continentes e sobre os sujeitos não-
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europeus, em todo o mundo. Seus estudos problematizam o modo como a produção do
conhecimento legitima e recria ordenamentos hierárquicos que, embora desconstruídos a
partir de múltiplas perspectivas teóricas, continuam operando representações e significando
em imagens e mensagens cotidianas, acadêmicas, midiáticas, cinematográficas, entre tantas
outras.
O eurocentrismo, manifestado nas representações imagéticas e verbais analisadas,
tem alguns elementos importantes: uma articulação dual entre o sujeito nãoeuropeu/europeu, primitivo/civilizado, tradicional/moderno; um certo sentido e evolução
linear, no qual os continentes, por exemplo, estariam caminhando da natureza à sociedade
moderna européia; a naturalização das diferenças, sem problematizar as relações de poder e
saber que instituem aqueles tidos como “iguais” e aqueles posicionados como “diferentes”
e uma tendência a pensar que tudo aquilo que é não-europeu é parte do passado. Todas
estas características são claramente interdependentes, e “falam” em algumas das imagens
dos livros analisados neste trabalho.
Olhando para o conjunto de imagens discutidas aqui, é possível dizer que, embora
os autores proponham o tensionamento e a problematização das representações
eurocêntricas, a escolha as imagens e dos textos das legendas colaboram para a manutenção
de muitas dessas representações. Talvez porque as imagens sejam entendidas como
complementares, subordinadas ao texto escrito ou apenas ilustrativas, de alguma maneira
elas deslizam e escapam ao cuidadoso olhar dos autores. Os textos imagéticos e verbais
examinados são polissêmicos, permitindo muitas possibilidades de leitura mas, em alguns
deles, são claramente reforçados os discursos que tendem a justificar a conquista e
estabelecer sistemas de administração, de instrução, bem como maneiras específicas de
conferir certa ordem, tomada como necessária e natural, aos acontecimentos e ao mundo.
Pode-se dizer que, embora desconstruído e tensionado, o eurocentrismo deixa ainda muitas
marcas na produção escolar contemporânea.
Referências
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a) Obras analisadas:
BRAIK, Patrícia Ramos e MOTA, Myriam Becho. História das cavernas ao terceiro
milênio. São Paulo: Moderna, 2005.
COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. São Paulo: Saraiva, 2005.
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geral e do Brasil.São Paulo: Scipione, 2004.
b) Obras consultadas
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VEIGA-NETO,
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