MARCOS AURÉLIO COSTA DE LIMA
INFILTRAÇÃO POLICIAL:
pensando um modelo
Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia
apresentada ao Departamento de Estudos da Escola
Superior de Guerra como requisito à obtenção do
diploma do Curso de Altos Estudos de Política e
Estratégia.
Orientador: Prof.Ricardo Luiz Guimarães de Azevedo
Rio de Janeiro
2013
C2013 ESG
Este trabalho, nos termos de
legislação que resguarda os direitos autorais,
é considerado propriedade da ESCOLA
SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitida
a transcrição parcial de textos do trabalho, ou
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desde que sem propósitos comerciais e que
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Os
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trabalho são de responsabilidade do autor e
não
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qualquer
orientação
institucional da ESG
____________________________
Assinatura do autor
Biblioteca General Cordeiro de Farias
Rio
Lima, Marcos Aurélio Costa de
Infiltração Policial: pensando um modelo / Marcos Aurélio Costa de Lima de
Rio de Janeiro : ESG,2013.
53 f.: il.
Orientador: Professor Ricardo Luiz Guimarães de Azevedo
Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao Departamento de de
Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma
do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE),2013.
1. Infiltração Policial. 2. Ação Encoberta. 3. Polícia Federal.
Aos meus pais, filhos e esposa,
agradeço o simples fato de existirem.
RESUMO
Com o aumento da criminalidade transnacional, a comunidade internacional voltou suas
atenções para a busca de mecanismos mais eficientes de investigação. Nesse contexto,
a infiltração, estratagema usado desde a antiguidade no âmbito militar, ganha importância
como meio excepcional de investigação criminal, sendo regulamentada em vários países
da Europa Ocidental. No Brasil, apesar dos compromissos firmados no campo
internacional, a infiltração é usada com bastante parcimônia. Esse trabalho intenciona
buscar os motivos do seu pouco uso pelo Departamento de Polícia Federal. Para tanto,
passaremos pela origem do instituto, o tratamento legal dado em outros países, a forma
como foi inserida no Direito Brasileiro e a estrutura do DPF para lidar com meio de
investigação tão complexo, inclusive ouvindo aqueles policiais que infiltraram ou
coordenaram trabalhos em que a infiltração foi usada.
Palavras-Chave: infiltração. Ação encoberta. Polícia Federal. Agente infiltrado.
Autorização judicial.
ABSTRACT
With the increase of transnational crime, the international community turned its attention to
the search for more efficient means of research. In this context, the infiltration ploy used
since antiquity in the military, gained exceptional importance as a means of criminal
investigation, being regulated in many countries of Western Europe. In Brazil, despite the
commitments made in the international field, the infiltration is used quite sparingly. This
paper seeks to find the reasons for their low use by the Federal Police Department. To do
so, passing by the origin of the institute, the legal treatment given in other countries, how
has been incorporated into Brazilian law and structure of the DPF to deal with mean of
investigation as complex, including listening to those officers who infiltrated or coordinated
work in the infiltration was used.
Keywords: infiltration. Undercover action. Federal Police. Undercover Agent. Judicial
authorization.
SUMARIO
1
INTRODUÇÃO.......................................................................................
7
2
A INFILTRAÇÂO POLICIAL.................................................................
10
2.1
ORIGEM................................................................................................
10
2.2
CONCEITO............................................................................................
11
2.3
A INFILTRAÇÃO EM ALGUNS PAÍSES................................................ 14
2.3.1
A infiltração na Alemanha...................................................................
15
2.3.2
A infiltração na Espanha.....................................................................
16
3
A INFILTRAÇÃO NO BRASIL..............................................................
20
3.1
A INFILTRAÇÃO DURANTE OS GOVERNOS MILITARES.................
20
3.2
A INFILTRAÇÃO ATUAL......................................................................
22
3.2.2
Pressupostos.......................................................................................
23
3.2.3
Limites do infiltrado............................................................................
26
3.2.4
Valor probante da infiltração..............................................................
30
3.2.5
Quem pode infiltrar..............................................................................
31
3.2.6
Duração................................................................................................. 34
4
A INFILTRAÇÃO NA POLÍCIA FEDERAL...........................................
36
4.1
A INFILTRAÇÃO INFORMAL................................................................
37
4.2
A ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA E A INFILTRAÇÃO................
38
4.3
VISITANDO ALGUMAS INFILTRAÇÕES.............................................
39
4.3.1
Caso A................................................................................................... 40
4.3.2
Caso B..................................................................................................
4.3.3
Caso C................................................................................................... 43
4.4
PROPONDO UM MODELO PARA A INFILTRAÇÃO NO DPF.............
45
5
CONCLUSÃO........................................................................................
50
REFERÊNCIAS.....................................................................................
53
42
7
1
INTRODUÇÃO
As aventuras e desventuras dos homens de polícia sempre povoaram o
imaginário das pessoas. Não por outro motivo, muitos são os livros, programas de
televisão e filmes de cinema que retratam a rotina de uma repartição policial.
Nesta linha, é indiscutível que o trabalho de um agente infiltrado-AI, com seus
riscos e ambivalências, fornece um incontável número de oportunidades para o
desenvolvimento de livros e roteiros de filmes.
O sucesso mundial de Os Infiltrados, produção de 2006, dirigida por Martin
Scorsese, onde Leonardo Di Caprio vive Billy Costigarn, um jovem policial que se infiltra
na máfia de Boston comandada pelo gângster Frank Costello, atesta o dito acima. A
peculiaridade do filme é a existência de um infiltrado às avessas, com o ingresso de um
homem da máfia, Collin Sullivan, personagem vivido por Matt Damon, na instituição
policial. No desenrolar da trama fica claro que aqueles dois homens, apesar de papéis
antagônicos, viviam aflições semelhantes, resultantes da vida dupla e da obrigação de
obter informações privilegiadas.
Entretanto, de todas as produções sobre o tema, é induvidoso que Donnie
Brasco, filme de 1997 dirigido por Mike Newell, que retrata aquela que é provavelmente a
mais bem sucedida atuação de um agente infiltrado nos Estados Unidos, é a que melhor
aborda os riscos, complexidade, questionamentos e drama pessoal do agente infiltrado.
Donnie Brasco é o codinome adotado pelo agente do Federal Bureau of
Investigation (FBI), Joseph Pistone, vivido nas telas por Johnny Depp, na operação que
foi batizada de Sun Apple. Pistone, que era formado em Antropologia e depois ingressou
no oficialato da Marinha norte-americana, permaneceu infiltrado por seis anos na família
Bonano, uma das mais importantes e violentas famílias mafiosas de Nova Iorque.
Para obter a confiança da organização criminosa, Pistone se apresentou em Little
Italy em 1976 como sendo um pequeno ladrão de jóias, passando, antes, duas semanas
estudando as peculiaridades de seu novo metiê, os detalhes do passado criado para ele
pelo FBI, bem como as regras da máfia.
8
O sucesso da empreitada determinou a extensão da infiltração à família
Colombo, também em Nova Iorque, com igual êxito, culminando com o julgamento de
mais de 200 pessoas.
A operação Sun Apple, que teve lugar nos anos 70, sedimentou junto às
autoridades americanas a importância e a eficácia do agente infiltrado na busca de
informações inacessíveis aos mecanismos ordinários de investigação.
No Brasil, a infiltração teve largo uso durante o regime militar instituído em 64,
quando as instituições policiais, desviadas de seu leito natural, se converteram em braços
armados subsidiários às instituições militares.
Neste quadro, a Polícia Federal desempenhou importante papel na manutenção
daquele status quo, realizando investigações de cunho político nos meandros de
organizações estudantis, sindicais, órgãos públicos, entre outros organismos da
sociedade civil.
Convivendo com colegas que ostentam mais de 30 anos na Polícia Federal, é
comum ouvirmos os relatos sobre trabalhos de infiltração realizados naquele período,
onde se buscava a identificação de focos de resistência ao regime.
Com o retorno do Brasil ao rumo democrático, a infiltração foi caindo em desuso e
com o advento de nossa atual Constituição, ficamos no aguardo de lei que autorizasse e
regulamentasse seu uso, uma vez que configurando meio excepcional de apuração,
potencialmente lesivo a direitos fundamentais dos cidadãos, não estava alcançada pelos
normais poderes de investigação do Estado.
A espera teve fim em 11 de abril de 2001, depois de quase duas décadas de
discussão no Congresso Nacional, com o advento da Lei nº 10.217, que alterou a redação
do artigo 2º, da Lei nº 9.034/95, fruto de compromissos assumidos pelo Brasil frente à
Comunidade Internacional, materializados em acordos como a Convenção Contra o
Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, e a Convenção das
Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, a denominada
Convenção de Palermo.
9
Entretanto, são escassas as investigações em que a infiltração foi utilizada no
âmbito da Polícia Federal ao longo destes mais de doze anos de vigência da Lei nº
10.217, mormente quando comparadas às centenas de milhares de interceptações
telefônicas decretadas no mesmo período.
Nossa estranheza se acentua quando sabemos que de 2001 para cá, o
Departamento de Polícia Federal já desencadeou mais de 300 operações, com o
desbaratamento de igual número de organizações criminosas, exatamente o terreno para
o qual o agente infiltrado é vocacionado. Apesar do expressivo número de operações, em
apenas três dos trabalhos temos a notícia do uso de um agente infiltrado.
No último dia 02 de agosto foi promulgada a Lei nº 12.850/2013, dando à
infiltração policial um detalhamento inédito em nosso ordenamento e aproximando o
modelo brasileiro daquele já adotado em países da Europa Ocidental.
Esse trabalho intenciona perquirir os motivos de utilização tão parcimoniosa
desse meio excepcional de investigação. Para tanto, olharemos a origem do instituto,
passaremos pela infiltração na Alemanha, que serviu de modelo para outros países, e
analisaremos, já sob a orientação da nova lei, como a ferramenta foi concebida no Brasil,
e a estrutura policial para lidar com um meio de investigação tão complexo, colhendo
junto àqueles que estiveram infiltrados as dificuldades enfrentadas na implementação da
medida.
Será o pequeno uso da infiltração fruto de um eventual comodismo de nossas
autoridades investigantes? Estaremos preparados para um uso mais freqüente? Será a
infiltração, devido aos riscos que implica - inclusive para direitos fundamentais
constitucionalmente protegidos - destinada a ter uma utilização cada vez mais rara? São
essas perguntas que esperamos responder ao final deste trabalho.
10
2
A INFILTRAÇÃO POLICIAL
2.1
ORIGEM
A ideia de se ter um homem de confiança convivendo nas hostes inimigas e de lá
trazendo informações privilegiadas constitui técnica militar das mais antigas, estando
relatada no conhecido Arte da Guerra, escrito por Sun Tzu há mais de 2.500 anos, onde o
antigo general chinês comenta a importância dos espiões para o sucesso nos campos de
batalha.
A figura do delator, cidadão francês
que descobria na sociedade inimigos
políticos do Rei da França, especialmente no período de Luiz XV, também é lembrado
como origem do agente infiltrado.
Ainda merece destaque o esquadrão especial irlandês (Special Irish Branch),
criado pela polícia londrina em 1883 para vigiar os revolucionários irlandeses, tendo,
posteriormente, voltado suas atenções para outros estrangeiros1.
Entretanto, o uso sistemático e formal da infiltração, com características próximas
daquelas hoje presentes no agente encoberto, teve inicio na polícia de Paris em meados
do século XVIII.
Segundo Gary T. Marx2, sociólogo americano estudioso das instituições policiais,
em 1770 a polícia de Paris possuía uma bem estruturada unidade de inteligência,
composta por 20 inspetores de polícia, membros do notório bureau de sureté. Esses
policiais desenvolviam investigações sobre a vida pública e privada dos cidadãos em
assuntos políticos e criminais.
Mas enquanto instrumento de apuração de crimes utilizado pela Polícia, coube ao
lendário Eugene François Vidocq papel fundamental na sistematização e divulgação
dessa técnica investigativa.
1
MARX, Gary T.Undercover:Police Surveillance in America. EUA: University of California Press,
1988.p.22
2
MARX, Gary T.Undercover: Police Surveillance in Comparative Perspective.
Academic Publishers,1995. p.3
EUA. Kluver
11
De acordo com a biografia de Vidocq atribuída a um escritor fantasma, ele vivia às
voltas com pequenos crimes, prostitutas, jogatinas e romances. Após fugir por três vezes
das cadeias francesas, ameaçado por desafetos e cansado de se esconder, procura a
polícia de Paris e se oferece para retornar à prisão em troca do perdão da sua pena. A
proposta foi aceita pelo Chefe de Polícia Jean Henry, sendo, então, reintroduzido na
prisão de Bicêtre em 20 de julho de 1809. Em 28 de outubro ele continuou seu serviço de
informante na La Force Prison.
Vidocq, então, começou a trabalhar como um informante que escutava outros
prisioneiros quando falavam entre eles. Passados doze meses, a polícia arranjou sua fuga
para que ele pudesse trabalhar como informante também fora das grades, fornecendo à
Polícia de Paris informações relevantes sobre crimes até então não resolvidos, resultando
na prisão de centenas de pessoas.
A exitosa experiência de Vidocq o levou ao comando da Divisão de Investigação
Criminal da Polícia de Paris, que sucedeu o bureau de sureté, de 1810 a 1827.
Acreditando firmemente que o crime só podia ser combatido eficazmente por criminosos,
contratava delinquentes para trabalhar para ele, aos quais pagava com fundos secretos.
As inovadoras táticas de Vidocq o conduziram ao submundo de Paris, um mundo
até então inacessível aos chefes de polícia que o haviam antecedido, percebendo com
clareza que as tradicionais formas de atuação da polícia não eram mais suficientes ao
combate à criminalidade urbana.
2.2
CONCEITO
Muitos são os conceitos de agente infiltrado encontrados em livros. Podemos na
doutrina brasileira recorrer à sintética definição de Alberto Silva Franco, citado por Rafael
Pacheco3: “agente infiltrado é um funcionário da polícia que, falseando sua identidade,
penetra no âmago da organização criminosa para obter informações e, dessa forma,
desmantelá-la”.
3
PACHECO, Rafael. Crime Organizado. Medidas de Controle e Infiltração Policial.Curitiba-PR:
Ed. Juruá.2007.p.109
12
O legislador espanhol, em adequada opção, estabelece no artigo 282 bis da Ley
de Enjuiciamento Criminal, as condições, requisitos e limites da infiltração, nos permitindo
extrair um conceito do agente infiltrado.
Podemos dizer, lastreado no CPP espanhol, que o agente infiltrado é o servidor
da polícia judiciária, que após permissão do Juiz ou do Ministério Público, infiltra-se em
uma organização criminosa, aparelhado de poderes para adquirir e transportar o produto
e os instrumentos do crime, bem como para retardar a apreensão dos mesmos, quando
outros meios investigativos sejam inviáveis ou se apresentem inúteis.
Do conceito desenhado pela legislação espanhola deflui que o agente infiltrado
deve ser um policial, excluídos, portanto, particulares, militares ou agentes de inteligência.
Policiais que desempenhem funções que não sejam de polícia judiciária também não
podem infiltrar, uma vez que a medida visa à obtenção de provas de um crime para uso
perante a justiça criminal, atribuição própria da polícia judiciária.
A medida precisa ser autorizada pelo juiz, uma vez que invade direitos
fundamentais do investigado. A previsão de autorização pelo MP no modelo espanhol se
deve à estrutura do sistema persecutório adotado naquele país. No Brasil, a autorização
deve necessariamente ser concedida pelo magistrado.
O ambiente propício ao uso do agente encoberto é a organização criminosa,
circunstância que fixa limites e freia um eventual uso desarrazoado deste meio tão
invasivo de investigação.
Temos, entretanto, que coube ao festejado autor espanhol Paz Rubio, citado por
Flávio Pereira, a definição que mais nos agrada. Segundo Rubio,”agente infiltrado é o
membro da polícia judicial especialmente selecionado que, utilizando-se de uma
identidade falsa, atua, passivamente, com sujeição à lei e sob controle do juiz, para
investigar delitos próprios da delinqüência organizada e de difícil averiguação. Isso,
quando já fracassaram outros meios de investigação, ou esses sejam, manifestamente,
insuficientes para seu descobrimento”4.
4
PEREIRA, Flávio Cardoso. A investigação criminal realizada por agentes infiltrados.
Disponível em: http://www.r2learning.com.br. Acesso em: 10 jun. 2013.
13
Vemos que o conceito formulado por Rubio reúne características fundamentais a
uma infiltração compatível com um regime democrático. A primeira a ser destacada é a
condição de policial do infiltrado. Mas não um policial qualquer. Um profissional
especialmente selecionado que detenha condições pessoais que contribuam para o
sucesso da missão e, fundamentalmente, para salvaguarda dos direitos dos investigados
e de terceiros, bem como para a segurança do próprio agente infiltrado.
A identidade falsa também é fundamental para uma correta definição, embora
possamos ter exceções, conforme veremos. A simples ocultação da condição de policial,
sem a assunção de outra identidade, não é suficiente à caracterização da infiltração
profunda (deep cover) aqui tratada.
A atuação passiva referida por Rubio denota que o infiltrado não tem carta branca
para delinqüir. É evidente que a complexidade da operação pode levar o policial a ter a
necessidade de cometer um crime, mas sua função é, inicialmente, a obtenção de
informações privilegiadas que possam dirigir outras diligências ao êxito.
Não pode o
infiltrado, portanto, fazer surgir na cabeça do investigado a vontade de delinqüir.
Caso haja a incontornável necessidade de delinqüir, o Direito Penal oferece
soluções para a não penalização do infiltrado, não constituindo proposta deste trabalho se
aprofundar na natureza jurídica desta não responsabilização penal (atipicidade, exclusão
de ilicitude, exclusão de culpabilidade ou excusa absolutória).
Por fim, vemos que o autor espanhol também enxerga na infiltração um caráter
subsidiário, devendo ser utilizada apenas quando outros meios tenham falhado ou se
apresentem inúteis.
Acrescentaríamos
ao
conceito
a
voluntariedade
do
trabalho
infiltrado.
Entendemos que o trabalho infiltrado deve ser sempre espontâneo, podendo o policial se
recusar a realizar a ação sem que qualquer sanção administrativa lhe seja imposta. Assim
pensamos porque a infiltração pode se revestir de riscos que superam aqueles que o
policial tem por obrigação arrostar.
Assinalamos, ainda, que ao nosso sentir a decisão por realizar a infiltração deve
ficar a cargo da instituição policial, não podendo o Ministério Público requisitar a medida.
14
Isso porque apenas a Polícia reúne condições para aferir se há possibilidade de
implementar a ação com segurança e eficácia, dispondo das condições logísticas para
fornecer os meios necessários à diminuição dos riscos e, claro, se possui um homem com
as qualidades exigíveis de um infiltrado.
A
negativa
do
órgão
policial
deve,
evidentemente,
ser
devidamente
fundamentada para que possa ser sindicada pelos órgãos de controle.
A infiltração,
assentamos mais uma vez, é um meio excepcional de obtenção de prova e essa
extraordinariedade tem várias implicações. Assim, a obrigatória observância da requisição
ministerial pela autoridade policial sofre, aqui, uma mitigação como conseqüência da
especificidade da ação encoberta5.
De uma certa forma, a transformação da requisição ministerial em simples
requerimento que poderá ser desatendido, decorre da possibilidade do policial se negar a
realizar o trabalho infiltrado, sendo a voluntariedade um traço marcante da infiltração.
Do exposto, podemos sintetizar as seguintes características da infiltração policial:
- medida implementada pela polícia judiciária;
- atuação sob falsa identidade;
- atuação, em regra, passiva;
- medida sujeita à autorização prévia do judiciário;
-caráter subsidiário (cabível quando outras medidas falham ou se apresentam
inúteis); e
- voluntariedade do infiltrado.
5
Em interessante artigo intitulado Investigação Preliminar, Polícia Judiciária e Autonomia, assim
se manifestam Luiz Flávio Gomes e Fábio Scliar pela possibilidade da autoridade policial não atender à
requisição ministerial: “A possibilidade de o membro do parquet requisitar diligências é limitada pela
necessidade de fundamentação de suas manifestações e pela ampla discricionariedade que tem o
delegado de polícia na condução do apuratório, tendo plena autonomia técnica e tática na direção da
investigação, podendo, por isso mesmo, rejeitar, sempre fundamentadamente, requisições impertinentes,
desarrazoadas ou apresentadas a destempo”.
15
2.3
A INFILTRAÇÃO EM ALGUNS PAÍSES
Para que possamos bem entender o modelo de infiltração engendrado no Brasil,
se apresenta conveniente que olhemos os sistemas adotados na Alemanha e Espanha,
modelos que serviram de norte a várias legislações que a seguiram.
Aqui cabe uma observação acerca da infiltração nos Estados Unidos. Embora
seja, por razões óbvias, o primeiro modelo que nos vem à mente quando o assunto é
agente encoberto, optamos por passar ao largo do padrão americano em razão das
fundamentais diferenças existentes entre o sistema jurídico dos Estados Unidos - de
tradição anglo-saxã e com uma grande autonomia dos estados, havendo não um, mas
uma plêiade de atos normativos acerca da infiltração – e o sistema romano-germânico a
que o Brasil se alia, onde temos, também, exclusividade da União para legislar sobre
processo penal.
Veremos, então, o exitoso modelo adotado pela Alemanha, inspirador de outros
modelos europeus, e o modelo espanhol, certamente um dos melhores, tido por muitos
como um aperfeiçoamento do sistema germânico.
2.3.1
A infiltração na Alemanha
A infiltração policial foi introduzida na Alemanha pela lei de combate ao tráfico
ilícito de drogas e outras formas de aparição da criminalidade organizada, que alterou o
código de processo penal alemão (StrafprozessOrdnung-StPO).
O modelo germânico optou pela exclusividade da polícia para a realização do
trabalho de infiltração, não sendo a medida passível de ser realizada por militares ou
particulares, conforme taxativa previsão do artigo §110a(2) do StPO. A medida também
deverá ser autorizada por um tempo determinado, nas hipóteses em que a solução por
outra via se apresente impossível ou sumamente dificultoso, o que denota o caráter
subsidiário da medida.
O legislador alemão autorizou a confecção, modificação e utilização dos
documentos que se façam necessários à manutenção da falsa identidade do policial
encoberto. A autorização do artigo §110a(3) do código processual penal germânico não
16
detalha, entretanto, quais os documentos alcançados pela autorização legal, tarefa que
coube à doutrina. Segundo Fabrício Guariglia6, são documentos para efeito deste
dispositivo todo aquele comumente utilizado como identidade ou habilitação para dirigir,
excluída, porém, a possibilidade de alterar livros públicos.
O trabalho infiltrado não pode ser usado para apurar todo e qualquer delito. Na
Alemanha, o StPO firmou um flexível rol de crimes onde a medida é possível, lançando
mão de mecanismos que permitem sua utilização em uma vasta gama de delitos. São
esses os pressupostos para a utilização do agente encoberto na Alemanha:
- a prática ou suspeita do cometimento de um dos crimes previstos nos números
1 a 4 do §110a(1) do StPO (1-tráfico de entorpecentes, armas,falsificação de dinheiro ou
de selos. 2-ataque à Segurança Nacional. 3-delito cometido de forma profissional ou
habitual. 4-praticado por quadrilha ou qualquer outro grupo organizado), se revestidos de
considerável significado.
- o esclarecimento de crimes cuja pena mínima cominada seja igual ou superior a
um ano de privação de liberdade, desde que fatos determinados apontem para a
possibilidade de uma reiteração ; e
- o esclarecimento de fatos puníveis com pena privativa de liberdade igual ou
superior a um ano, ainda que sem perigo de reiteração, quando o especial significado do
fato exija a intervenção do agente infiltrado e outras medidas tenham se apresentado
inúteis.
Observa-se que a pequena pena mínima cominada aos crimes que autorizam a
infiltração possibilitaria o seu uso em grande parte dos delitos tipificados na Alemanha.
Entretanto, o legislador estabeleceu condições que tornam a utilização do agente
encoberto um pouco mais restrita. A primeira destas cláusulas limitadoras é a
possibilidade de reiteração calcada em fatos determinados, não podendo ser uma mera
ilação das autoridades investigantes. Se ausente a possibilidade de reiteração, a
infiltração ainda poderá ser usada se o fato se revestir de especial significado ou outras
medidas tenham se apresentado inúteis.
6
GUARIGLIA, Fabricio. El Agente Encubierto. Um Nuevo Protagonista en El Procedimiento
Penal? Disponível em: www.cienciaspenales.org. Acesso em: 08 jun.2013.
17
Portanto, o legislador alemão optou, sabiamente, por estabelecer alguns
standards para o uso da infiltração, mas a maneira elástica como foi feito possibilita ao
judiciário o desempenho de um importante papel na análise da medida.
Quanto ao desenvolvimento da ação encoberta, o StPO, em seu artigo §110b,
estabelece que o Ministério Público pode autorizar ou rechaçar a infiltração mas não
reúne poderes para impô-la à Polícia, estando o domínio da medida fundamentalmente
nas mãos da instituição policial, inclusive podendo iniciá-la, sponte propria, sempre que a
decisão do Ministério Público não puder ser obtida a tempo. Nesse caso, a anuência
ministerial deve ser obtida no prazo de 3 dias sob pena de suspensão da medida.
O controle judicial, em regra, ocorre a posteriori, já na fase processual. Portanto,
durante a investigação o controle fica a cargo do Ministério Público.
O StPO também cuidou dos limites da atuação do infiltrado. Poderá o agente
encoberto, sob falsa identidade, praticar todos os atos jurídicos próprios da vida civil
como, por exemplo, fundar uma empresa. Entretanto, não poderá cometer crimes durante
a ação, excluídos, por motivos óbvios, a falsificação de documentos e papeis e o uso
deles. Porém, caso seja obrigado a praticar fatos típicos, em especial nas hipóteses das
chamadas provas de fidelidade, muito comuns nas organizações criminosas do tipo
mafioso, a ação será justificada ou exculpada, conforme o caso.
2.3.2
A infiltração na Espanha
Como em outros países da Europa, a infiltração na Espanha resulta da
Convenção das Nações Unidas contra o tráfico de drogas de 1988, a chamada
Convenção de Viena, que obrigou aos subscritores a punirem a lavagem dos recursos
gerados pelo tráfico de drogas, bem como a adotarem armas eficientes de apuração
como forma de fortalecer o combate ao crime organizado internacional.
Conforme lembrado por Márcia Bonfim7, a novidade foi internalizada no
ordenamento espanhol através da Lei Orgânica nº 5, de janeiro de 1999, que duplicou o
7
BONFIM, Márcia Monassi Mougenot. A Infiltração de Policiais no Direito Espanhol. Revista
Direito e Sociedade. Curitiba, v.3,n.1, jan/jun.2004.
18
artigo 282 da Ley de Enjuiciamiento Criminal (LECrim), o código de processo penal
espanhol.
A novo dispositivo da lei espanhola8 estabelece que o agente infiltrado é
necessariamente um homem da polícia judiciária, não havendo a possibilidade de
infiltração de particulares, militares ou policiais que não tenham por fim a arrecadação de
provas para o uso perante a justiça criminal. A autorização é dada pelo juiz ou,
excepcionalmente,
pelo
Ministério
Público,
que
neste
caso
deverá
comunicar
imediatamente ao juízo a quem caberá chancelar ou não a medida. O infiltrado, ao
ingressar na organização criminosa, o faz com identidade diversa da sua, o que afasta
aquilo que Joaquim Martin9 denomina de agente meramente encoberto, hipótese onde o
policial, apesar de esconder sua condição, não assume uma falsa identidade.
A lei espanhola também explicitou que incumbe ao Ministério do Exterior a
expedição da identidade falsa para o policial infiltrado, que poderá ser usada por um
período de seis meses, que também é o prazo de duração da própria infiltração,
prorrogável por períodos de igual duração. Interessante notar que o policial poderá manter
a falsa identidade ao testemunhar no processo, devendo, para tanto, haver uma decisão
judicial, o que deixa clara a preocupação do legislador com a vida do policial pósinfiltração.
Questão interessante levanta Márcia Bonfim10, ao lembrar, acertadamente, que a
autorização judicial para a infiltração já contempla implicitamente o engano e o abuso de
confiança, posto que inerentes à medida. Porém, é possível imaginarmos situações em
que a prova a ser colhida não constitua um desdobramento lógico da ação encoberta,
implicando em violação a direitos fundamentais outros. Desta forma, uma escuta
ambiental, por exemplo, para ser possível, deverá ser especificamente autorizada pelo
juiz, não podendo o infiltrado se aproveitar de sua condição para instaurar um dispositivo
de monitoramento.
8
ESPANHA.
Lei
de
Enjuiciamiento
Criminal.
Disponível
http://noticias.juridicas.com/basedatos/Penal/lecr.12t3. Acesso em: 16 jun.2013.
9
MARTIN, Joaquin Delgado. Criminalidad Organizada. Barcelona: J.M.Bosch, 2001.p.49
10
BONFIM.Op.cit.
em:
19
Acreditamos que neste caso, bem como em todos os outros que escapem à
previsão de isenção estabelecida no artigo 282, bis nº 1, o agente poderá fazer uso das
causas de exclusão de ilicitude ou de culpabilidade, conforme o caso
No artigo 282, bis nº 4, a LECrim construiu um elástico conceito de crime
organizado, elaborando, ainda, um amplo rol de delitos em que a infiltração é possível.
Assim, na Espanha é cabível a infiltração nos delitos de seqüestro de pessoas (artigos
164 a 166 do Código Penal Espanhol); delitos relativos à prostituição (artigos 187 a 189);
delitos contra o patrimônio e contra a ordem sócio-econômica (artigos 237, 243, 244, 248
e 301); delitos relativos à propriedade intelectual e industrial (artigos 270 a 277); delitos
contra os direitos dos trabalhadores (artigos 312 e 313).
Por fim, temos o item 5 do artigo 282 bis, que possibilita a não responsabilização
penal do agente infiltrado se preenchidas três condições: necessidade da medida;
proporcionalidade e que a ação do infiltrado não constitua uma provocação do delito.
Percebe-se, portanto, que o legislador espanhol fez várias opções sensatas,
atento às dificuldades do trabalho infiltrado, tendo cunhado um sistema de proteção ao
profissional que implementa a medida, inclusive explicitando que a infiltração não pode
ser imposta ao policial.
20
3
A INFILTRAÇÃO NO BRASIL
Depois de uma espera de mais de uma década pela inserção da infiltração no
ordenamento brasileiro, ela veio pela Lei nº 10.217/01, que alterou a Lei nº 9034/95, a
chamada Lei do Crime Organizado. Entretanto, o legislador foi por demais econômico,
não abordando nenhum dos temas tratados em outros países, o que transferia para a
doutrina o preenchimento das lacunas.
A Lei Antidrogas de 2006, ao prever a infiltração como meio investigativo dos
delitos ali previstos, perdeu boa chance de corrigir o erro do legislador de 2001.
Entretanto, a Lei nº 11.343/06 incorreu no mesmo silêncio, não dando boa solução ao
assunto.
No último dia 02 de agosto, entretanto, foi promulgada a Lei 12.850/13 que deu à
infiltração um tratamento mais consentâneo com sua importância como ferramenta de
investigação de organizações criminosas, claramente inspirada pelos modelos alemão e
espanhol.
Assim, vamos aos principais aspectos da infiltração, já sob os auspícios da nova
lei.
3.1
A INFILTRAÇÃO DURANTE OS GOVERNOS MILITARES
O regime instaurado em 31 de março de 1964 converteu as polícias em auxiliares
do poder militar, onde desempenharam papel de relevo na busca dos chamados focos de
subversão.
Para tanto, foi criado em 1969 o Destacamento de Operações de Informações –
Centro de Operações de Defesa Interna, o conhecido e temido DOI-CODI, estabelecido
em boa parte dos estados brasileiros.
Cada DOI reunia, sob uma direção unificada a cargo do CODI, militares das três
Armas e integrantes das polícias militares, polícias civis e Polícia Federal.
Nos inúmeros livros escritos sobre o período, muitas são as passagens acerca de
policiais e militares infiltrados, em especial nos movimentos sindicais e estudantis.
Podemos citar o relato feito por José Dirceu, no livro escrito em parceria com Vladimir
21
Palmeira, acerca da Operação Heloisa, que consistiu no desmascaramento de uma
policial infiltrada no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, em
1969.
Interessante destacar que a policial descoberta não estava devidamente treinada
para o trabalho, uma vez que se denunciou ao manusear com incomum perícia a arma do
próprio Dirceu11.
Ainda nesta linha, em artigo sobre o Colégio Pedro II durante o governo militar, a
professora Lícia Hauer12 menciona o documento DOPS-S, Nº SP/24, de 06/04/66, que
veicula orientação passada às polícias políticas para infiltrar agentes no congresso da
Associação Metropolitana de Estudantes Secundaristas-AMES.
Desnecessário lembrar que a infiltração existente durante o regime militar não
tinha qualquer previsão, limites ou hipóteses estabelecidos em lei ou em qualquer outro
ato normativo de igual estatura. O conteúdo do trabalho era preenchido com exclusividade
pela autoridade de plantão ao seu alvedrio.
Convém ressaltar, porém, que o uso da infiltração em investigações de cunho
político não constitui exclusividade de regimes ditatoriais. Mesmo em países de forte
tradição democrática, temos registros da utilização de agentes infiltrados em trabalhos
que não guardam relação com a produção de provas para elucidação de crimes
comuns13, fim natural da atividade policial.
Corroborando o dito acima, Gary Marx14 relata que no pós-guerra, o FBI
promoveu pesada infiltração no Partido Comunista e em movimentos sociais, atividade
que foi auxiliada pela presença de ex-militares de inteligência nos departamentos
policiais.
11
DIRCEU, Jose; PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a Ditadura. Rio de Janeiro: Ed. Espaço e Tempo.
2003. P. 130 e 131
12
HAUER, Lícia Maciel. O Colégio Pedro II Durante a Ditadura Militar: o Silêncio Como Estratégia
de Subordinação.Disponível em: www.educação.ufrj.br. Acesso em:18 jul. 2013.
13
Usamos o termo “crimes comuns” em oposição a crimes políticos.
14
MARX. 1995. p.12
22
Apesar do farto uso da infiltração pelo Regime Militar, temos que ações
encobertas são inteiramente compatíveis com regimes democráticos, quando realizadas
sob o necessário controle, seguindo as hipóteses e limites estabelecidos em lei.
3.2
A INFILTRAÇÃO ATUAL
Com o forte incremento do tráfico de drogas ocorrido no início dos anos 80,
concebida como uma atividade criminosa internacional, os países se deram conta que os
meios tradicionais de investigação não eram suficientes para levar a bom termo o
combate àquele tipo de delinquência fortemente organizada e, não raro, com
representantes inseridos nas instituições do Estado.
Nesse cenário, foi concluída em Viena, Áustria, em dezembro de 1988, a
Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, que
entrou em vigor no âmbito internacional em 11 de novembro de 1990, sendo internalizada
no Brasil pelo Decreto nº 154, de 26 de junho de 1991.
A Convenção de Viena, apesar de não falar explicitamente em infiltração,
menciona em seu artigo 11 a entrega controlada, um dos meios excepcionais de
investigação, e no artigo 3.6 conclama as partes a usarem todos os meios admitidos no
Direito interno para prevenir e reprimir os delitos nela elencados.
Outro ato normativo internacional que merece destaque é a Convenção da
Organização das Nacões Unidas Contra a Corrupção, que entrou em vigor em 2003, ao
estabelecer no artigo 50 a necessidade das nações subscritoras instituírem técnicas
especiais de investigação, internada em nosso ordenamento pelo Decreto nº 5687/06.
Feitas essas ponderações, não podemos deixar de reconhecer na Convenção
Contra o Crime Organizado Transnacional (CCOT), a chamada Convenção de Palermo,
como o mais completo e abrangente ato normativo da comunidade internacional de
combate às organizações criminosas transnacionais.
23
Conforme lembra Rodrigo Gomes15, a escolha de Palermo não foi ocasional,
constituindo, ao contrário, homenagem aos magistrados Paolo Borsellino e Giovanni
Falcone, dois baluartes da luta italiana contra o crime organizado e que foram mortos
naquela cidade, em atentados à bomba realizados em 1992, sendo incriminados pelos
fatos Salvatore Riina, capo da família Corlonesi, uma das mais antigas e conhecidas
organizações criminosas transnacionais.
Dito isso, vamos ao modelo em boa hora desenhado pela Lei nº 12.850/13.
3.2.1
Pressupostos
O primeiro ponto que deve ser assinalado é que a infiltração policial, agora
detalhada, tem lugar quando os investigadores se deparam com uma organização
criminosa, definida pela nova lei, em seu artigo 1º, parágrafo 1º, como sendo a
associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela
divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais
cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter
transnacional.
Portanto, o legislador brasileiro, em decisão adequada, enxergou na infiltração
sua verdadeira vocação que é a investigação de organizações criminosas. Aliás, devemos
destacar que a lei recentemente promulgada, ao definir o que é organização criminosa,
supriu também uma grave omissão da legislação anterior que gerava insegurança e
dificuldade para o sistema persecutório penal.
Assim, não caberá infiltração policial quando estivermos diante de uma quadrilha
de três pessoas, nem quando o crime investigado tiver pequeno potencial lesivo.
Acreditamos que a nova lei caminhou bem, uma vez que a infiltração policial é
uma medida investigativa complexa, drástica, invasiva e que, não raro, põe em riscos
direitos fundamentais do investigado, de terceiros e do próprio agente policial, exigindo
15
GOMES, Rodrigo Carneiro. Investigação Criminal na Convenção de Palermo: Instrumento e
Limites. Limites Constitucionais da Investigação. CUNHA,Rogério Sanches; TAQUES, Pedro; GOMES, Luiz
Flávio (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009.
24
uma cautelosa preparação da unidade policial, devendo, portanto, ser utilizada em casos
que realmente ponham em cheque os valores mais caros à sociedade.
Do artigo 10, parágrafo 2º (“Será admitida a infiltração se houver indícios de
infração penal de que trata o art.1º e se a prova não puder ser produzida por outros
meios”), da Lei nº 12.850/2013, podemos extrair dois outros pressupostos para a
utilização da infiltração policial:
O primeiro é a existência de indícios da ocorrência de uma infração penal
determinada, imputada a um grupo de pessoas que já tenha alguns de seus membros
identificados, sendo vedada a chamada infiltração exploratória ou de pesquisa. Se o
investigador nada sabe sobre alguns dos possíveis agentes do delito sob investigação,
muito há a ser feito antes de se partir para a medida.
Para deixarmos claro o que entendemos por infiltração de exploração,
imaginemos que um determinado estabelecimento comercial apresente padrões de
crescimento extraordinários e incompatíveis com outras empresas do mesmo setor.
Havendo seguidas notícias dando conta que o bem sucedido estabelecimento sonega
tributos de diversas ordens, inclusive as contribuições previdenciárias; frauda licitações;
trabalha com mercadorias contrabandeadas ou fruto de roubo de carga; atenta contra
direitos trabalhistas ou, ainda, serve apenas para lavagem de capital ilícito. Caso a
autoridade investigante opte por infiltrar um agente no seio da empresa, deverá saber em
relação à quais delitos há algum início de prova e apontar alguns dos possíveis autores,
não podendo o pedido apresentado ao Judiciário estar alicerçado em meras ilações da
autoridade investigante ou denúncias anônimas. Não pode o agente ser infiltrado para
pesquisar se o repentino sucesso da empresa é ou não fruto de uma atuação criminosa.
Para tanto, há outros meios investigativos que poderão ser usados para amadurecer a
apuração a um ponto que permita o uso do agente encoberto.
Atenta a isso, a Unidade de Operações Encobertas e Sensíveis do FBI, no item
IV.B.1.b16 de seu guia para ações encobertas, estabelece que o pedido de infiltração deve
16
(b) The proposed undercover operation appears to be an effective means of obtaining evidence
or necessary information. This finding should include a statement of what prior investigation has been
25
conter um relatório sobre a investigação até então conduzida, bem como as chances da
infiltração obter as provas necessárias para levar o caso à justiça, deixando claro, a um só
tempo, a preocupação com um uso precipitado da infiltração e com a caracterização da
necessidade da medida.
O segundo está contido na parte final do dispositivo legal, podendo ser
denominado de subsidiariedade da infiltração. Trocando em miúdos: o investigador deve
inicialmente lançar mão dos meios ordinários de apuração, guardando a infiltração para
casos em que a prova não possa ser obtida por outros meios.
O outro pressuposto não está expressamente previsto no texto legal, mas é, ao
nosso sentir, indispensável para uma infiltração concebida em um Estado democrático.
Referimo-nos à proporcionalidade da medida, concebida em suas três dimensões:
adequação, necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito.
O constitucionalista carioca Luiz Roberto Barroso17 resume, seguindo autores
alemães, que adequação é a aptidão da medida para atingir o fim colimado. Necessidade
ou exigibilidade
implica na inexistência de medida menos gravosa para atingir o fim
eleito. Já a proporcionalidade em sentido estrito impõe um sopesamento entre o ônus
imposto e o benefício trazido, devendo as vantagens superar os prejuízos.
Trazendo esses conceitos para a infiltração, podemos dizer que a medida será
adequada quando a prova que se busca tiver na ação encoberta a forma de alcançá-la.
Será necessária se não houver um meio de prova menos invasivo para se elucidar o fato
investigado ou que os existentes tenham falhado ou se apresentem inúteis. E será
proporcional em sentido estrito se todos os riscos existentes em uma infiltração forem
superados pela importância de se elucidar aquele fato perquirido, não devendo ser o
agente infiltrado usado para descortinar delitos que não reúnam real importância.
Atentemos, por fim, que o artigo 10, caput, da Lei nº 12.850/13, dispõe que a
infiltração requer uma “circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial.”
conducted and what chance the operation has of obtaining evidence or necessary information concerning
the alleged criminal conduct or criminal enterprise. Disponível em: www.usdoj.gov.
17
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São
Paulo:Editora Saraiva, 2003. p.229.
26
Acreditamos que a expressão utilizada pelo texto legal não implica uma simples
motivação, condição de validade de todas as decisões judiciais. Temos que a intenção do
legislador, diante da gravidade da medida, foi exigir do magistrado, ao apreciar o caso
concreto, o preenchimento pormenorizado do conteúdo da autorização, devendo constar
prazo, periodicidade da prestação de contas, limites de atuação do infiltrado, entre outros
elementos necessários ao controle de medida tão complexa.
Assim, sintetizando, os pressupostos seriam:
- A existência de indícios de uma infração penal determinada e imputada a uma
organização criminosa;
- que a medida seja proporcional nos termos já expostos no decorrer deste tópico;
- que seja observada a subsidiariedade da medida; e
- que haja uma autorização judicial circunstanciada.
3.2.2
Limites do infiltrado
Os limites da atuação de um agente infiltrado constituem, talvez, o mais delicado
ponto deste meio extraordinário de investigação.
Não são poucos os que sustentam que o Estado não pode, a pretexto de
investigar um crime, incorrer também em condutas criminosas, opinião, por exemplo, que
levou a relatora do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 150/06, que dispunha sobre crime
organizado e outras disposições, Senadora Serys Slhessarenko, a refutar de forma
veemente a infiltração policial. Assim se manifestou a Senadora:
A proposta não hesita, ainda, em suprimir o instituto da “infiltração policial” do
direito brasileiro (art. 2º, V, da Lei nº 9.034, de 3 demaio de 1995), porque viola o
patamar ético-legal do Estado Democrático de Direito, sendo inconcebível que o
Estado-Administração, regido que é pelos princípios da legalidade e da
moralidade (art. 37, caput, da CF), admita e determine que seus membros
(agentes policiais) pratiquem, como co-autores ou partícipes, atos criminosos,
sob o pretexto da formação da prova. Se assim fosse, estaríamos admitindo que
o próprio Estado colaborasse, por um momento que seja, com a organização
criminosa na execução de suas tarefas,o que inclui até mesmo a prática de
crimes hediondos. Muito melhor será que o Estado-Administração, localizando
uma organização criminosa, ao invés de infiltrar nela seus agentes, debele essa
organização, seja de forma imediata ou retardada (através de ação controlada).
27
As principais legislações estrangeiras não se descuidaram do assunto, e mesmo
sem exaurir as hipóteses de uma eventual incursão do infiltrado em condutas criminosas,
estabelecem standards importantes para abordagem do tema.
O StPO Alemão explicita, em síntese, que o infiltrado não está autorizado a
cometer delitos durante a intervenção. Entretanto, se for obrigado a praticar um crime,
mormente nas chamadas “provas de fidelidade”, poderá lhe ser reconhecido um estado
de necessidade justificante ou exculpante, conforme o caso.
Na Espanha, o artigo 282, bis,1 da Ley de Enjuiciamiento Criminal estabelece o
que o infiltrado pode fazer. Nas hipóteses que extrapolem a previsão legal, analisado o
caso concreto, poderá o infiltrado ser favorecido por uma causa de exclusão de ilicitude
ou de culpabilidade.
Já na Argentina, o agente infiltrado estará isento de responsabilidade quando for
impelido a cometer um delito em conseqüência de sua intervenção encoberta, desde que
sua conduta não implique em grave sofrimento, perigo de vida ou risco à incolumidade
física ou moral de terceiros.
No Brasil, a lei nº 12.850/13 assim disciplinou o assunto em seu artigo 10,
parágrafo único:
Art. 10. O agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade
com a finalidade da investigação, responderá pelos excessos praticados.
Parágrafo único. Não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime
pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta
diversa.
O primeiro alerta a ser feito é que o infiltrado não tem um salvo conduto para
delinqüir enquanto estiver no interior do grupo criminoso. Como conseqüência, deve o AI,
sempre que possível, manter uma postura mais contemplativa do que ativa.
Evidente, ainda, que não pode o AI induzir os membros da organização
investigada a agir, fazendo brotar neles o animus de delinqüir, podendo aderir, porém, à
vontade manifestada pelos investigados de forma a preservar sua falsa identidade. Na
28
feliz expressão de Manuel Valente, a atividade do infiltrado não pode ser formativa do
crime, mas apenas informativa18.
Nesse sentido, o Guia de Operações Encobertas do FBI, ao tratar da preparação
do agente infiltrado explicita que o policial deve ser instruído sobre o propósito da ação
encoberta e que não deverá participar de nenhum ato de violência; iniciar ou instigar
qualquer plano para cometer atos criminosos; usar ilegais técnicas de investigação para
obter informação ou evidência ou se engajar em qualquer conduta que possa violar
restrições constantes no guia da polícia federal americana ou de outro departamento de
polícia. O Guia, ainda, expressa que no caso do FBI ter conhecimento que pessoas
investigadas pretendam praticar um crime violento, qualquer agente encoberto que tenha
conexão com a investigação será instruído a tentar desencorajar a violência19.
Mas e se o agente infiltrado se vê compelido a praticar uma conduta típica? A
solução trata pelo texto legal reside na proporcionalidade que deve revestir a conduta do
policial. A pergunta a ser feita é se a prova a ser obtida e o conseqüente desbaratamento
daquele grupo criminoso justifica que um agente do estado incorra, eventualmente, em
uma conduta descrita como crime20.
Assim, não é aceitável que para elucidar um crime, o agente do estado incorra em
crime ainda mais grave. É tolerável que para se desmantelar uma organização criminosa
dedicada ao contrabando, o agente encoberto participe de uma ação de contrabando.
Não é admissível, porém, que o infiltrado participe da eliminação de um concorrente do
bando.
18
VALENTE. Op.cit. p.510
2) Each undercover employee shall be instructed that he or she shall not participate in any act
of violence; initiate or instigate any plan to commit criminal acts; use unlawful investigative techniques to
obtain information or evidence; or engage in any conduct that would violate restrictions on investigative
techniques or FBI conduct contained in the Attorney General's Guidelines or departmental policy; and that,
except in an emergency situation as set out in paragraph IV.H.(5)(d), he or she shall not participate in any
illegal activity for which authorization has not been obtained under these Guidelines. The undercover
employee shall be instructed in the law of entrapment. When an undercover employee learns that persons
under investigation intend to commit a violent crime, he or she shal1 try to discourage the violence.
20
Não usamos a expressão “conduta criminosa”, uma vez que o caso concreto tem que ser
analisado para que saibamos se estão presentes os outros elementos, que ao lado da descrição típica,
formam o conceito analítico de crime: antijuridicidade e culpabilidade.
19
29
O policial deverá aferir se a ação proposta era previsível dentro do cenário de
infiltração apresentado à justiça. Desta forma, aproveitando o exemplo já dado, se a
infiltração se deu dentro de uma organização de contrabandistas, era esperável que em
algum momento o policial encoberto teria que contrabandear. Entretanto, em hipótese
nenhuma estará autorizado a participar da execução de um desafeto do grupo. E o que
fazer se esta situação se apresenta? Temos que é caso de encerramento imediato da
infiltração, devendo a equipe de investigação tomar as medidas necessárias a que a
execução não ocorra. Não será excusável que os investigadores coloquem um eventual
êxito na obtenção da prova à frente de valores tão caros como a vida ou a incolumidade
física.
Por outro lado, se a situação ocorre sem que o policial nada possa fazer,
comprovada a impossibilidade de evitar o resultado, o infiltrado poderá se socorrer do
parágrafo único do artigo 13, ficando excluída a culpabilidade do agente por inexigilidade
de conduta diversa.
Convém ficar assentado, de qualquer sorte, que sempre que houver a
necessidade do infiltrado incorrer em conduta descrita em lei como crime, deve o juiz ser
comunicado de imediato, não podendo o fato ser tratado como um incidente corriqueiro a
ser informado no relatório ordinário. Não é. Constitui incidente importante e que, embora
previsível, deve contar com o imediato controle judicial.
Ressaltamos aqui o papel fundamental que o juiz desempenha na aferição da
razoabilidade da medida requerida. Desta forma, temos como irrazoável a infiltração em
uma organização de matadores de aluguel, posto que a forte possibilidade do policial vir
a ter que matar inviabiliza a ação encoberta. Neste caso, apreciadas suas
especificidades, deve o juiz negar a autorização. A solução de um delito, por mais grave
que seja, não pode estar alicerçada na lógica maquiavélica dos fins justificando os
meios.
Outro limite importante advém do alcance da autorização da infiltração.
Ao
permitir a ação encoberta, o Estado concorda com o uso do engodo e do abuso de
confiança como instrumentos de investigação. Não obstante, isso não implica na
abolição dos princípios que regem a busca das provas no processo.
30
Pelo exposto, sempre que o agente infiltrado precisar ferir um direito do
investigado que não se situe dentro do espectro lógico da decisão judicial que concedeu
a medida, uma nova ordem judicial deverá ser requerida. Nesse sentido, será lícita a
entrada do AI na casa do investigado para participar de uma reunião onde serão
tratados assuntos pertinentes à atuação da organização criminosa. Não será permitido,
porém, que se aproveite do ingresso na casa alheia para recolher documentos ou
implantar dispositivo de escuta ambiental. Para tanto, uma nova ordem judicial será
necessária.
Desta forma, com o fim de preservar a licitude da prova recolhida, entendemos
de todo conveniente que a coordenação da investigação, sempre que haja dúvidas
sobre a lisura da medida, requeira uma autorização judicial específica para a ação que
se deseja.
Do dito acima, vemos que o agente infiltrado precisa reunir uma série de
qualidades pessoais que lhe permitam, em situações de forte estresse, realizar opções e
tomar decisões que se revistam de legalidade e, portanto, justificáveis quando
apresentados à justiça.
Em resumo, então, podemos apontar como limites da atuação do infiltrado:
-O infiltrado não deve incorrer em condutas típicas;
-Se não for possível evitar, o delito perpetrado deverá ser proporcional ao
objetivo da infiltração, não devendo atentar contra bem jurídico mais valioso que aquele
lesionado pela atuação da organização investigada; e
-A infiltração não pode ensejar lesões a direitos fundamentais que não sejam
uma decorrência lógica da ação encoberta.
3.2.4
Valor probante da infiltração
O farto uso da infiltração policial durante a ditadura militar angariou a antipatia
de muitos para esse meio investigativo, que detectam nele características que o
incompatibilizam com um processo penal democrático.
31
Não vemos assim. É inegável que o agente infiltrado, ao se tornar íntimo dos
investigados, pode tomar conhecimento de fatos próprios de suas vidas privadas e que
não guardem qualquer relação com as condutas perquiridas. Entretanto, temos como
induvidoso
que a ação encoberta constitui instrumento fundamental no combate à
criminalidade organizada, fenômeno que tem preocupado fortemente à comunidade
internacional e se tornado, esta sim, uma crescente ameaça aos avanços democráticos
dos estados modernos.
Essa é também a posição do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que
aceita a infiltração se preenchidos alguns requisitos, bem como da ONU, que reconhece
a validade do instrumento e o aborda especificamente em seu Manual de Diretrizes
contra a Corrupção para Promotores e Investigadores 21.
Dito isso, temos que a importância da infiltração como meio de prova requer dois
enfoques: o primeiro é o recolhimento de provas pela equipe de investigação com base
em informações passadas pelo infiltrado. O AI pode, por exemplo, apontar o local onde
se encontram determinados documentos; informar hora e local de um encontro entre
investigados para uma eventual filmagem ou apontar o melhor local para a colocação de
um dispositivo para escuta ambiental. Enfim, o infiltrado pode aumentar a efetividade da
investigação, dirigindo os atos a serem praticados pelo restante da equipe.
O outro aspecto é o testemunho do próprio infiltrado sobre tudo que presenciou
durante o período em que esteve convivendo no seio da organização criminosa. E aqui
temos também duas questões a apreciar: a credibilidade do testemunho do policial e os
riscos advindos da exposição do infiltrado ao depor em juízo.
Muitos sustentam que o policial, por estar umbilicalmente ligado ao caso levado
à Justiça, não teria o necessário distanciamento para depor. Não vemos motivos para
que seja conferido ao depoimento do policial um valor diferente daquele observado às
outras testemunhas. A vítima também tem uma ligação emocional com o fato e, não
raro, tem seu depoimento colhido na Justiça. A prova testemunhal, em razão das
21
United Nations Handbook on Practical Anti-Corruption Measures for Prosecutors and
Investigators. Disponível em: www.unodc.org. Acesso em: 10 jul.2013.
32
conhecidas fraquezas humanas, deve sempre, seja quem for o depoente, ser
devidamente confrontada com os demais elementos constantes dos autos.
Quanto à exposição do infiltrado ao depor em juízo, a novel Lei nº 12.850/13 dá,
mais uma vez, demonstração de estar atenta às dificuldades do trabalho de infiltração
ao elencar entre os direitos do agente infiltrado a preservação do seu nome,
qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais, mesmo durante o
processo criminal22.
3.2.5
Quem pode infiltrar
A infiltração é um meio extraordinário de obtenção de provas acerca de um fato
criminoso e em nosso atual panorama constitucional, como sabemos, incumbe às
polícias judiciárias a investigação de delitos. Portanto, entendemos que apenas os
policiais que exerçam função de policia judiciária podem implementar uma ação
encoberta.
A Lei nº 11.343/06 seguiu essa linha ao estabelecer em seu artigo 53, inciso I,
de forma clara, que o infiltrado deve ser um policial em tarefa de investigação, atribuição
própria das polícias judiciárias23, não abrindo margem para atuação de particulares,
servidores públicos não policiais ou policiais sem função investigativa.
A nova Lei nº 12.850/13 também foi taxativa ao estabelecer em seu artigo 10,
caput, que a infiltração se dará por agentes de polícia em tarefas de investigação.
Alguns argumentam que há situações em que apenas um agente privado reúne
condições de êxito na infiltração. Cita-se o exemplo do criminoso arrependido que se
coloca à disposição da autoridade investigante para voltar à organização e atuar sob a
coordenação da polícia em troca de benefícios penais. Foi a opção, por exemplo, do
22
Art.14,III, da Lei nº 12.850/13.
Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei,
são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os
seguintes procedimentos investigatórios:
I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos
especializados pertinentes;
23
33
legislador português, que no artigo 1º,2, da Lei nº 101/01, autoriza que a infiltração seja
realizada tanto por funcionários de investigação criminal quanto por terceiros atuando
sob o controle da Polícia Judiciária.
O argumento acima não nos convence. A infiltração é um instrumento
investigativo bastante sensível, que em razão dos riscos que encerra exige forte
comprometimento do infiltrado com o serviço, inclusive obediência aos limites legais e
éticos da medida, não podendo ser confiada a um particular. Se não há um policial em
condições de realizar a ação encoberta não é caso de se recorrer a alguém de fora do
aparelho público, mas de simplesmente descartar a medida.
No caso do Inquérito Policial Militar levado a efeito pelas Forças Armadas,
entendemos que os militares que atuam na investigação, ao fazerem às vezes de polícia
judiciária, estão autorizados a lançarem mão da ação encoberta.
Por seu turno, a Lei nº 9034/95, agora expressamente revogada pela Lei nº
12.850/13, trilhava caminho diverso e estabelecia que a infiltração poderia ser realizada
tanto por agentes de polícia, quando por agentes de inteligência.
A opção da Lei de Crime Organizado implicava algumas dificuldades. A primeira
era saber a que agente de inteligência a lei se referia. Seria apenas os servidores da
Agência Brasileira de Inteligência ou estariam alcançados aqueles que trabalham em
outras células de inteligência? Como sabemos, está se tornando cada vez mais comum
a criação de setores de inteligência em órgãos não policiais. O Sistema Brasileiro de
Inteligência-SISBIN tem em sua composição, desenhada pelo Decreto 4376/02 24,
órgãos bastante heterogêneos, como Ministério da Saúde e Controladoria Geral da
União. Os homens destes órgãos estariam autorizados a infiltrar? A resposta negativa
se impõe. A infiltração, voltamos a ressaltar, é uma técnica de investigação de crimes e
apuração de delitos é incumbência concedida pela Constituição da República às polícias
judiciárias (Polícia Federal e polícias civis), excetuadas apenas as investigações de
crimes militares.
24
BRASIL, Decreto nº 4376/02. Disponível em:www.presidência.gov.br.Acesso em: 14 jun.2013.
34
O mesmo argumento do parágrafo acima nos leva a concluir, por coerência, que
nem os agentes da ABIN reúnem atribuição para investigar crimes e, por conseguinte,
também não podem infiltrar.
Esta parece ser também a posição de Pacheco25, que classifica de duvidosa a
constitucionalidade da permissão fornecida pela Lei nº 10.217/01 ao uso de agentes de
inteligência em infiltrações.
Entendemos que, conceitualmente, a infiltração pode ser usada como meio de
investigação de fatos não criminosos. Neste caso, entretanto, a medida deveria estar
prevista em lei própria, provavelmente aquela que versa sobre o Sistema Brasileiro de
Inteligência-SISBIN. O estabelecimento da infiltração de agentes de inteligência em
investigação de crimes não se situa dentro dos limites constitucionais, devendo o
magistrado, em controle difuso de constitucionalidade, refutar o pedido apresentado
nesses termos.
Questão pouco abordada é a possibilidade de um agente policial estrangeiro
realizar infiltração em solo brasileiro. As facilidades que o mundo moderno oferece às
organizações criminosas para transpor suas fronteiras têm preocupado fortemente a
comunidade internacional e ensejou importantes tratados como as Convenções de
Viena e Palermo, onde os países subscritores são instados a promover a maior
integração possível na busca de uma repressão eficaz ao crime transnacional.
Desta forma, entendemos possível, em tese, que um policial estrangeiro realize
uma ação encoberta em território brasileiro, desde que autorizada pela Justiça Brasileira
e com a coordenação da Polícia Federal Brasileira. Essa cooperação entre autoridades
de países distintos está expressamente assentada na Convenção de Palermo, que em
seu artigo 19, prevê investigações conjuntas entre os Estados que a subscrevem,
precedidas de acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais26.
25
PACHECO, Op. cit. p. 168
Os Estados Partes considerarão a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais
ou multilaterais em virtude dos quais, com respeito a matérias que sejam objeto de investigação,
processos ou ações judiciais em um ou mais Estados, as autoridades competentes possam estabelecer
órgãos mistos de investigação. Na ausência de tais acordos ou protocolos, poderá ser decidida
26
35
Entretanto, apesar da Convenção de Palermo estabelecer que mesmo na
ausência de um protocolo ou acordo poderá haver, casuisticamente, uma investigação
conjunta, temos que a assinatura de um acordo entre o Brasil e o país interessado é
indispensável, como forma de submeter os investigadores aos limites estabelecidos na
lei brasileira e circunstanciados na decisão judicial que autorizar a medida.
Em resumo, podemos dizer que a infiltração no Brasil constitui atribuição apenas
dos policiais que trabalham com a investigação de crimes, não sendo possível a
infiltração realizada por particulares, policiais com atribuições outras e servidores
públicos não policiais, incluídos aí os agentes de inteligência.
3.2.6
Duração
Desnecessário mencionar que este era mais um ponto onde prevalecia o vácuo
legislativo, agora suprido pela Lei nº 12.850/13, que de forma clara, em seu artigo 10,
parágrafo 5º, estabelece que a infiltração será autorizada por seis meses, podendo
haver renovações, em caso de comprovada necessidade.
Assim, diante da clareza do texto legal, cai por terra toda discussão que havia
sobre o período que poderia ser autorizado pela Justiça para a medida.
A nova lei não estabeleceu limite para o número de renovações. Portanto, ao
menos em tese, a infiltração poderá permanecer por tempo indeterminado. O elemento
balizador é a persistência da necessidade da medida que deverá estar materializada no
relatório a ser apresentado à Justiça.
O FBI, em seu já citado Guia, deu um tratamento um pouco diferente,
estipulando um período de seis meses para a infiltração, renovável por mais seis meses,
totalizando um ano como período máximo de duração da medida27.
casuisticamente a realização de investigações conjuntas. Os Estados Partes envolvidos agirão de modo
a que a soberania do Estado Parte em cujo território decorra a investigação seja plenamente respeitada.
27
(2) Undercover operations may be authorized pursuant to this subsection for up to six months
and continued upon renewal for an additional six-month period, for a total of no more than one year.
Undercover operations initiated pursuant to this subsection may not involve the expenditure of more than
$40,000 ($100,000 in drug cases of which a maximum of $40,000 is for operational expenses), or such
other amount that is set from time to time by the Director, without approval from FBI Headquarters
(FBIHQ).
36
Embora não entendamos conveniente fixar em um ano o prazo máximo de sua
duração, acreditamos que apenas em casos excepcionais a infiltração perdurará por
mais tempo em razão de toda estrutura movimentada para a implementação da ação
encoberta.
Ressalte-se, ainda, que a prestação de contas da equipe de investigação à
Justiça e ao Ministério Público não está adstrita a um eventual pedido de renovação,
podendo ser feita a qualquer tempo.
37
4.
A INFILTRAÇÃO NA POLÍCIA FEDERAL
A infiltração de policiais em estruturas da sociedade civil foi usada fartamente
nos períodos em que nosso país se manteve distante dos ditames democráticos. Com
fortes cores palacianas, a Polícia Federal se incumbiu de investigar entidades sindicais,
grêmios escolares, partidos políticos e até mesmo colônias de pescadores, como já
ouvimos em conversas com colegas com mais de 30 anos de carreira.
As ações encobertas praticadas naqueles anos não constituem objeto deste
trabalho. A infiltração policial, como técnica excepcional de investigação de crimes,
requer um ambiente institucional sólido que possibilite o controle e, se for o caso, a
responsabilização daqueles que incorram em abusos.
O retorno do Brasil à democracia coincidiu com o incremento dos crimes
transnacionais, o fortalecimento da criminalidade organizada e a preocupação dos
países com esse novo perfil do crime e dos criminosos, apontando para a necessidade
do uso de mecanismos menos ortodoxos de investigação.
A partir daqui, depois de vermos como a infiltração é tratada em alguns países e
os seus contornos legais no Brasil, agora com uma legislação que atentou para a
complexidade de meios investigativos mais sofisticados, trataremos da infiltração na
Polícia Federal.
4.1
A INFILTRAÇÃO INFORMAL
Com a redemocratização do Brasil e, fundamentalmente, com o advento da
Constituição de 1988, a infiltração nos moldes das realizadas durante o regime militar se
tornou inconcebível, sendo ilícitas as provas assim obtidas.
Em razão da demora do legislador, a Lei nº 10.217/01 encontrou uma Polícia
Federal desacostumada a submeter a infiltração, nas poucas vezes em que utilizada, ao
controle do Judiciário, mesmo nos anos que se seguiram a 2001, dando ensejo ao que
chamamos de infiltração informal.
Nesse panorama, interessante caso teve lugar no Rio de Janeiro, em 2003. A
Empresa de Correios e Telégrafos comunicou à Polícia Federal constantes furtos de
38
valores em dinheiro encaminhados em cartas, inclusive do exterior. Apesar de irregular,
o envio de dinheiro em cartas era comum e movimentava valores expressivos.
Com o auxílio dos Correios, três policiais federais passaram a trabalhar no
Terminal de Cargas (TECA) do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, onde era
centralizada a operação de separação, triagem e direcionamento das correspondências
para os endereços de destino.
Em menos de um mês trabalhando como se efetivamente fossem novos
funcionários contratados pela empresa, os policiais conseguiram identificar todos os
empregados que retiravam as cartas com dinheiro e a forma como atuavam.
Seguindo a orientação dos policiais travestidos de carteiros, que constataram
que os implicados saiam do TECA com as cartas com dinheiro em seu poder, foi
realizado o flagrante dos investigados, em um total de 12 pessoas, sendo 10 carteiros, 1
gerente e 1 vigilante .
Percebemos, pois, que no trabalho acima descrito estavam presentes todas as
características de uma infiltração e haveria a necessidade de autorização judicial para o
caso. Para formalização do auto de prisão, ante a impossibilidade dos “infiltrados”
aparecerem, foi usado o velho artifício de imputar a descoberta a uma denúncia
anônima.
Podemos imaginar uma série de complicações que poderiam ter surgido e que a
autorização judicial ajudaria a resolver. Lembramos, com Damásio e Bechara, que seja
qual for o entendimento quanto à natureza jurídica da isenção de responsabilidade penal
do agente infiltrado, ela não dispensa a autorização judicial28. Para angariar a confiança
dos investigados, poderiam os agentes aderir à prática delitiva? E se os investigados,
podemos elocubrar, resolvessem intimidar um supervisor que houvesse descoberto o
esquema, qual seria o comportamento dos infiltrados?
Os riscos para a autoridade investigante são claros e não justificam eventuais
ganhos de tempo e agilidade existentes na medida informal. Ademais, devemos
28
JESUS,Damasio E.de;BECHARA, Fábio Ramazzini. Agente Infiltrado: reflexos penais e
processuais. Disponível em: http://jus2.uol.com.br. Acesso em: 10 jun.2013.
39
ressaltar que o depoimento do infiltrado é de grande importância, uma vez que
conheceu a organização criminosa por dentro, testemunho que não poderá ser prestado
nos casos da infiltração realizada à margem do controle judicial.
Temos, portanto, que a infiltração deve sempre ser realizada com autorização
do judiciário a quem cabe controlar a presença dos pressupostos da medida, devendo
situações como a narrada acima ser evitadas sob pena de invalidação das provas
obtidas e a consequente impunidade dos implicados.
4.2
A ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA E A INFILTRAÇÃO
A Academia Nacional de Polícia é a responsável pela formação e
aperfeiçoamento dos policiais federais, sendo tida e havida como a principal escola de
instrução policial do país, ministrando, inclusive, cursos para policiais do exterior.
No que concerne ao trato da infiltração policial temos, entretanto, muito a
avançar. Em consulta que fizemos à biblioteca da Academia da Policia Federal, fomos
informados que não havia nenhum livro sobre o assunto. É claro que nos livros que
versam sobre crime organizado ou tráfico de drogas certamente haveria comentários
sobre ações encobertas. Entretanto, não havia livros que tratassem da matéria sobre
seu enfoque puramente policial.
Para termos uma ideia do quanto pode ser ampla a abordagem da infiltração em
seu aspecto policial, a biblioteca do FBI possui mais de 15 obras sobre o tema, onde
são abordados assuntos como a administração do estresse do agente infiltrado; a
segurança do policial encoberto; a seleção e treinamento dos policiais infiltrados; além
de livros que relatam a experiência de policiais que realizaram infiltração.29
A infiltração é tratada rapidamente nos cursos de formação de agentes de
Polícia Federal, dentro da disciplina Investigação Policial. Com uma carga de 4 horas, a
disciplina tem por objetivo instrucional permitir que o aluno conceitue infiltração e
descreva os aspectos legais da infiltração.
29
O acervo da biblioteca do FBI sobre ações encobertas pode ser consultado no sítio
www.fbilibrary.fbiacademy.edu.
40
A pequena carga horária destinada à infiltração na formação do policial não nos
preocupa tanto, uma vez que tal medida, em razão de sua complexidade, deve ser
manejada por policiais com uma certa experiência, não sendo os cursos de formação
profissional o momento propício para o aprofundamento do assunto. Portanto,
entendemos mais apropriada a existência de cursos específicos de infiltração voltados a
policiais já experimentados.
A Academia Nacional de Polícia ainda trata a infiltração com parcimônia.
Acreditamos que a abordagem da ação encoberta no curso de formação dos novos
policiais não é a prioridade. Entretanto, temos como importante a realização de cursos
de especialização como forma de aprofundar o conhecimento dos policiais no manejo
dessa ferramenta de investigação e, também, formar um banco detalhado de
profissionais que reúnam características que lhes habilitem para a tarefa.
E o que seria tratado em um eventual curso de infiltração? Acreditamos que por
se tratar de uma forma de produção de prova para uso em juízo, a abordagem de
aspectos jurídicos é inafastável. Entretanto, há muitas questões policiais a serem
cuidadas em um curso sobre o assunto. Poderíamos abordar temas como mecanismos
de introdução em um ambiente criminoso; os diferentes tipos de organizações
criminosas; a administração do estresse; métodos de proteção do agente encoberto; a
relação equipe de investigação-infiltrado; os limites da infiltração; a preparação da saída
do policial infiltrado; a vida pós-infiltração, sendo, ainda, de todo recomendável um
estudo de caso.
Com o advento da nova lei que confere maior segurança jurídica aos policiais,
esperamos que sejam convocados novos cursos acerca dos instrumentos de
investigação mais complexos.
4.3
VISITANDO ALGUMAS INFILTRAÇÕES
Veremos agora três trabalhos de infiltração realizados pela Polícia Federal para
que tenhamos uma visão de como manejamos este instrumento, sendo ocultados os
nomes dos policiais que atuaram nas investigações.
41
Convém ressaltar que os casos aqui abordados ocorreram em 2006 e 2007, já
tendo sido levados à Justiça, o que nos deixa em uma situação mais confortável para
abordá-los neste trabalho.
No caso A, as informações foram obtidas diretamente com o infiltrado e com a
autoridade policial que coordenou a investigação. No caso B, apenas o Delegado se
manifestou, uma vez que o infiltrado preferiu não depor. Já no caso C apenas o infiltrado
foi ouvido, uma vez que a autoridade policial que coordenou o trabalho se encontra
afastada de suas funções.
Ao final de cada relato, faremos algumas observações e comentários. Qualquer
dos trabalhos que trataremos abaixo poderia servir para um estudo de caso em um
eventual curso desenvolvido pela ANP sobre infiltração policial.
4.3.1
Caso A
Em 2007, a direção do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), que à
época administrava o Parque Nacional da Floresta da Tijuca-PARNATIJUCA, noticiou à
Polícia Federal o desvio de valores relativos à cobrança de ingressos dos turistas que
subiam ao Cristo Redentor, um dos principais pontos turísticos do país.
Sabendo que o esquema contava com a participação dos bilheteiros do parque,
pessoal terceirizado, a Delegacia do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia
Federal no Rio de Janeiro decidiu, com a colaboração do Ibama, infiltrar um agente nas
bilheterias do PARNATIJUCA, travestido de funcionário da autarquia ambiental.
O agente escolhido era um policial com menos de 3 meses de carreira, formado
em Biologia e perfil extrovertido, características decisivas para que a escolha recaísse
sobre ele.
O Ibama forneceu ao agente identidade funcional com nome falso, uniforme e
viatura do instituto e o instruiu com informações sobre o órgão, como o concurso em que
o infiltrado teria sido aprovado; lotação inicial em Brasília; atividades da autarquia
ambiental, além de nomes de pessoas de destaque no órgão ambiental.
42
Ao chegar ao parque, local sob administração do Ibama mas onde só havia
empregados terceirizados, o agente infiltrado foi recebido naturalmente como alguém
que estava ali para controlar e fiscalizar eventuais desvios, sendo visto com evidente
desconfiança.
Percebendo a situação, o AI logo tentou assumir um papel de servidor público
omisso, que não estava ali para “atrapalhar a vida de ninguém”. Com frequentes
brincadeiras, o policial logo angariou a confiança dos bilheteiros. Como sabiam que
cada dia sem colocar o esquema em funcionamento representava um grande prejuízo
para os envolvidos, um dos vigilantes que integrava o esquema procurou o infiltrado e
perguntou com todas as letras: “você está aqui pra atrapalhar alguém?” O AI respondeu
que ficaria ali por pouco tempo e que não queria criar problemas. Diante da convincente
resposta do policial travestido de servidor do Ibama, o vigilante abriu o esquema,
informando que apenas 10% dos veículos que subiam para visitar o Cristo eram
“bilhetados”, criando um caixa 2 que era dividido entre os bilheteiros, os vigilantes e os
policiais militares que trabalhavam no parque.
Convencido que o novo funcionário não estava ligando para o desvio de
conduta, os bilheteiros escancararam suas práticas criminosas e descortinaram todo
esquema às vistas do infiltrado, envolvendo taxistas e donos de vans, policiais militares
que trabalhavam no lugar e até uma empresa que promovia city tours a bordo de jeeps.
Como forma de sedimentar o pacto de silêncio, o vigilante, que parecia liderar o
esquema, dava ao policial R$ 50,00 ao final do dia, dinheiro que era depositado em juízo
pela coordenação da investigação.
O policial que realizou a infiltração nos disse que se ele não tivesse se
informado sobre o IBAMA, teria sido descoberto logo no início, uma vez que foram feitas
várias perguntas como o concurso em que ele havia passado e o nome do
superintendente no Distrito Federal. Disse também que em nenhum momento se sentiu
ameaçado ou em risco e que desenvolveu uma certa afinidade com as pessoas
envolvidas.
43
Ainda segundo o infiltrado, encerrada a ação encoberta, veio o momento mais
constrangedor que foi o depoimento em juízo, quando ficou de frente com os seus excolegas de trabalho a quem ajudou a prender.
A autoridade policial que coordenou o trabalho informou que em boa parte do
tempo era mantida uma equipe próxima ao agente infiltrado, que possuía, ainda, um
celular para ser acionado apenas em caso de ameaça e que a ação encoberta foi
decisiva para o sucesso da operação que culminou com a prisão e denúncia de 23
pessoas.
Observamos que este é um trabalho de infiltração típico, onde temos um policial
que assume uma falsa identidade para se integrar a um esquema criminoso, inclusive
recebendo parte do dinheiro ilicitamente auferido, tendo acesso a informações
inacessíveis por outros meios, conhecendo cada um dos implicados, orientando os
passos da investigação e realizando gravações de áudio e vídeo.
A preparação do agente, apesar de superficial, o ajudou a superar alguns testes
a que os investigados o submeteram e também houve critério na escolha do agente que
realizaria o trabalho (biólogo, o que faz sentido em órgão ambiental, e extrovertido),
tendo o policial aceito a incumbência espontaneamente, sendo, porém, pouco
recomendável a escolha de policial tão inexperiente.
Um
problema
apontado
pelo
policial
eram
suas
constantes
idas
à
Superintendência, circunstância que deve ser evitada a todo custo.
Também merece destaque o cuidado da coordenação com a segurança do
infiltrado, sendo colocada uma equipe em condição de socorrê-lo com agilidade.
4.3.2
Caso B
Em uma unidade descentralizada da Polícia Federal havia notícias de corrupção
de policiais, inclusive com a participação do chefe da Delegacia. No inquérito que já
contava com mais de um ano, não havia nada que elucidasse os fatos. A inocuidade das
medidas até então tomadas levaram a coordenação a lançar mão do recurso da
infiltração, para tanto sendo chamado um policial de outro estado.
44
Segundo o Delegado que coordenou o trabalho, o policial escolhido tinha
razoável experiência e era tido como falastrão e espirituoso, características que, em sua
ótica, facilitariam a ambientação na delegacia investigada. Ao tomar conhecimento da
índole do serviço a ser realizado, o policial resistiu inicialmente mas findou por
concordar.
A decisão judicial que autorizou a medida permitia que o infiltrado
eventualmente delinqüisse, vedados os crimes violentos, devendo, entretanto,
comunicar imediatamente ao juízo.
Durante a infiltração, que durou 3 meses, foram observadas mudanças no
comportamento do policial infiltrado, que foi ficando cada vez mais irritadiço e
manifestava com freqüência a vontade que o trabalho chegasse ao fim.
A medida era renovada a cada 15 dias e segundo a autoridade policial, o Juiz e
o Ministério Público Federal apreciavam os pedidos de renovação com celeridade, não
tendo havido lapsos de continuidade.
O trabalho do infiltrado foi exitoso, tendo sido obtidas provas sobre o esquema
existente na unidade, inclusive sobre alguns fatos que não eram conhecidos até então e
que foram presenciados pelo infiltrado, culminando com a prisão de 34 pessoas,
incluindo o chefe da Delegacia.
O trabalho aqui tratado tem algumas peculiaridades. A primeira é que o
ambiente criminoso é uma delegacia de polícia, o que torna a infiltração ainda mais
sensível, em razão do desconforto que naturalmente surge para o infiltrado, razão pela
qual a convocação de um profissional lotado em outro estado é fundamental. A segunda
é o fato dos investigados saberem o nome e a condição de policial do AI, circunstância
que era inevitável no caso, mas que pode despertar no infiltrado receios relativos à sua
vida pós-infiltração, tendo os policiais sob apuração ligado para a lotação original do
Agente para recolher informações sobre ele.
É de se supor que a infiltração em um ambiente policial se torne ainda mais
complexa, em razão das habilidades que os policiais acabam por desenvolver ao longo
da vida profissional, circunstância que exige do infiltrado atenção e perspicácia ainda
45
maiores. Ademais é mais fácil desenvolver laços de afinidade com quem já tem um traço
comum forte como é o caso da atuação profissional.
Pelo visto, constata-se que embora o uso de falsa identidade integre o conceito
de infiltração, excepcionalmente podemos ter um infiltrado atuando com o seu nome e
condição verdadeiros.
4.3.3
Caso C
Em 2007, dois policiais federais, sendo uma mulher, sobem a bordo de um
opulento iate pertencente ao contador do megamilionário russo Roman Abramovich,
proprietário do Chelsea, clube da primeira divisão inglesa de futebol e acusado pela
Interpol de integrar a máfia russa, com o fim de realizar os procedimentos relativos à
imigração.
Atraído pela beleza da policial, o comandante alemão do barco convidou a
ambos para integrar a equipe de vigilância enquanto a embarcação permanecesse no
Brasil, acrescentando que já havia contado com a participação de policiais federais e
policiais rodoviários federais na proteção ao iate.
Um dos policiais havia participado da Operação Perestroika que apurou a
suposta participação da máfia russa no aporte de dinheiro no Corinthians ocorrido em
2005, o que o levou a ligar para o coordenador da citada investigação. Ao ser
contactado, o Delegado viu no convite a possibilidade de infiltração e dias depois os dois
policiais subiam a bordo acobertados por uma decisão judicial que autorizava a medida.
A orientação dos infiltrados era registrar a presença no iate de pessoas ligadas
à MSI, empresa que investia no Corinhthians, como Kia Joorobchian e Boris Berezovski,
magnata russo proibido de entrar no Brasil e tido como o verdadeiro proprietário da MSI.
Ainda nos primeiros dias, a policial precisou deixar a missão, ficando o outro
policial sozinho. A embarcação estava ancorada em Parati quando no heliporto desceu
um helicóptero para pegar a família do proprietário do iate. Quando conversavam com o
piloto, o comandante do barco repreendeu severamente o piloto em alemão,
interrompendo a conversa aos gritos e deixando o infiltrado intrigado.
46
No dia seguinte, o barco retoma viagem com destino a Santos, jornada que
demoraria apenas uma noite. Ao acordar de manhã, entretanto, o AI percebeu que o
barco ainda se encontrava em alto mar, o que o deixou bastante preocupado, uma vez
que corria boatos que aquela tripulação já havia jogado um tripulante asiático no mar.
Horas depois, a tripulação comunicou ao policial a mudança de planos e que o barco iria
para o Chile, com escala em Florianópolis onde ele poderia desembarcar, o que de fato
aconteceu.
Os resultados não foram muito proveitosos para a investigação, tendo sido
obtidas apenas fotos que comprovavam o relacionamento existente entre algumas
pessoas investigadas.
Estamos diante de mais uma infiltração em que a condição dos policiais era
sabida por todos, sendo desconhecido apenas o real intuito da presença a bordo. Um
aspecto facilitador neste trabalho é que os próprios investigados promoveram a
introdução dos agentes no ambiente criminoso, o que desonera os policiais de criarem
um argumento para serem aceitos pela organização criminosa. Também não houve a
necessidade de se criar a chamada
“estória cobertura”, que sempre é um fator
complicador.
Observamos, entretanto, que a infiltração foi feita de forma irrefletida, sem o
devido planejamento, sendo o agente infiltrado deixado à própria sorte. O ambiente
criminoso era pouco conhecido e o fato de ser um barco aumenta enormemente os
riscos e as dificuldades logísticas da empreitada. Não havia qualquer mecanismo de
rastreamento ou comunicação com o agente, nem, é claro, de resgate em caso de
emergência.
Outro complicador é que o policial infiltrado havia participado das investigações
da Operação Perestroika, o que poderia ser levantado pelos investigados, uma vez que
não houve mudança de nomes, colocando o APF em risco e contribuindo para o
aumento do estresse.
Sabemos todos que o risco é parte integrante da atividade policial e a infiltração
apresenta especificidades que acentuam o perigo. Entretanto, deve a Administração
47
tomar as medidas necessárias para manter os riscos dentro de patamares aceitáveis, o
que não ocorreu neste caso.
A oportunidade era única e poderia não se repetir, o que é compreensível.
Temos, porém, que nenhum trabalho, por mais relevante que seja, supera a importância
do zelo pela segurança dos profissionais envolvidos.
4.4
PROPONDO UM MODELO PARA A INFILTRAÇÃO NO DPF
Com o advento da Lei nº 12.850/13 é necessário que as polícias judiciárias
brasileiras melhor se preparem para o uso dos meios mais elaborados de obtenção de
provas.
A Polícia Federal tem, embora timidamente, voltado suas atenções para a
infiltração. Acreditamos, porém, que é necessário que a instituição se estruture
adequadamente para fazer uso do agente infiltrado quando a situação exigir.
O primeiro passo, ao nosso sentir, é a criação de uma unidade de ações
encobertas, nos moldes da existente no FBI, que poderia ficar inserida na Divisão de
Inteligência Policial, tendo
necessariamente expressões nas superintendências
regionais, sendo responsável pelo estudo; regulamentação da medida no âmbito da
Polícia Federal seleção e treinamento de potenciais infiltrados e, fundamentalmente,
supervisão das medidas em execução e avaliação daquelas já encerradas.
Sabemos que a doutrina policial é cunhada com a experiência do dia a dia de
profissionais do mundo inteiro, erros e acertos que após estudados fornecem um padrão
de atuação para os homens de polícia
Com a infiltração não é diferente, havendo boa literatura, especialmente em
inglês, que enfoca os aspectos policiais do assunto. Temas como estresse; perfil do
policial; métodos de retirada; vida pós-infiltração; surgimento de afinidade entre
investigado e infiltrado; são tratados com profundidade.
Diante da ausência de doutrina brasileira sobre a infiltração em seu viés policial,
caberia à unidade de ações encobertas estudar a experiência estrangeira, analisar
criticamente os nossos trabalhos e, então, cunhar normas de comportamento
48
profissional a serem seguidas em trabalhos futuros, que teria sua divulgação facilitada
pela existência de uma unidade especializada.
Não olvidamos que constitui anseio das autoridades policiais a criação de
mecanismos de proteção do Delegado na condução dos inquéritos policiais, como forma
de garantir sua autonomia técnica. Não obstante, em se tratando de infiltração, temos
que é razoável, diante dos riscos envolvidos, um controle mais próximo, não podendo
ficar nas mãos apenas do Delegado responsável pelo inquérito a decisão de lançar mão
da medida.
Pode-se argumentar que de qualquer forma haveria um controle do Judiciário e
do Ministério Público, o que colocaria freios em uma eventual precipitação. Não vemos
como suficiente. O Parquet e o Judiciário apreciam questões jurídicas. Há um lado
técnico-policial que apenas a polícia é capaz de avaliar adequadamente. É a instituição
policial, por exemplo, que tem condições de saber se possui os meios materiais e
humanos para dar proteção ao AI, inclusive resgatando-o se necessário.
Não é difícil imaginarmos um Delegado recém empossado, movido pelas
melhores intenções, que decide infiltrar um jovem policial, igualmente empolgado, em
uma quadrilha de traficantes de armas ou de drogas. As chances de um trabalho deste
tipo acabar mal não são desprezíveis.
No modelo que propomos, a unidade junto à Diretoria de Inteligência Policial ou
às células de inteligência nas Superintendências Regionais seriam comunicadas pelo
Delegado do feito, antes da apresentação do pleito à justiça e, a partir daí, avaliaria a
presença das condições para a empreitada, inclusive acerca do profissional escolhido, e
então, concordaria ou não com a medida, de forma definitiva.
O que pode parecer um cerceamento à liberdade da autoridade policial, implica,
na verdade, em uma consultoria técnica a ser fornecida por profissionais com real
conhecimento sobre o assunto, diminuindo a margem de erros.
Ademais, nos acostumamos em nosso dia a dia a realizar diligências em
condições longe das ideais. Em uma infiltração devemos ter o suporte necessário ao
trabalho ou ela deve ser descartada. Ao dividir nossa decisão com a unidade de ações
49
encobertas, estamos também dividindo a responsabilidade por resultados indesejados
que decorram de nossos problemas de estrutura.
Alguns argumentarão que mais pessoas sabendo aumentam as chances de
vazamento, o que colocaria o agente infiltrado em risco. Não vemos assim. As chances
de vazamento sempre existirão, inclusive fora da polícia, uma vez que o pedido tramita
também em outros órgãos. Os desvios deverão ter a reprimenda devida, mas os ganhos
superam, ao nosso sentir, os contrapontos.
Outra conveniência em se ter uma unidade nos moldes propostos é a seleção e
treinamento de potenciais agentes para o trabalho infiltrado. A escolha acertada é
essencial para o sucesso da infiltração. A escolha errada coloca em risco a vida do
policial, direitos dos investigados e a credibilidade das instituições.
A formação de um banco de policiais com perfil apropriado permite um
treinamento adequado e periódico, além de facilitar um acompanhamento dos
escolhidos. Um policial, por exemplo, que é selecionado para integrar o banco e após se
torna uma pessoa extremamente religiosa, deve ter seu nome descartado.
Walter Maierovitch cita ilustrativo episódio onde dois policiais militares paulistas
foram executados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), delatados por seus
próprios hábitos, posto que vestiam sempre meias de cor marrom e usavam
frequentemente os termos “elemento” e “positivo.”30
O fato trazido por Maierovitch denota o despreparo dos policiais militares
indicados para o trabalho, mas que poderia ocorrer com qualquer instituição policial
brasileira, todas dadas a vícios de linguagem. Podemos conceber, por exemplo, um
policial federal infiltrado que perguntado sobre a placa de um veículo venha a responder
papa, alfa, kilo, segundo, primeiro, quarto, quinto, ao invés de PAK 2145. Equívocos
deste tipo costumam ser fatais - às vezes para o trabalho, às vezes para o infiltrado - e
podem ser evitados com seleção criteriosa e treinamento.
30
MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. Os riscos
www.viaseg.com.br. São Paulo, 2007. Acesso em: 01 jul.2013.
da
espionagem.
Disponível
em:
50
Com tantos cuidados a serem observados, temos como necessária a elaboração
de uma instrução normativa que conceda compulsoriedade ao cumprimento das
premissas técnicas elaboradas pelo órgão central.
Pensamos que o ato normativo, antes de cercear o comportamento da
autoridade investigante, fornece padronização, orientação e segurança para a atuação
dos profissionais de polícia.
Portanto, a construção de um modelo para o adequado trato da infiltração no
âmbito da Polícia Federal passa, ao nosso sentir, pela criação de uma unidade
especializada em ações deste tipo, a quem incumbirá:
- criar unidades regionais junto aos serviços de inteligência existentes nas
Superintendências Regionais com o fim de implementar o entendimento da Polícia
Federal acerca da infiltração;
- desenvolvimento de uma doutrina brasileira sobre técnicas policiais no manejo
da infiltração;
- assessoria ao Diretor Geral na confecção de uma Instrução Normativa sobre o
assunto;
- selecionar os profissionais com perfil adequado para o trabalho infiltrado;
- promover cursos de treinamento dos policiais escolhidos, onde deverão ser
tratados necessariamente temas como a seleção e treinamento dos policiais infiltrados;
formas de inserção do infiltrado no ambiente criminoso; o estresse do infiltrado; a
relação do infiltrado com a autoridade policial e com o restante da equipe; encerramento
típico e atípico da infiltração policial, inclusive o resgate; segurança do agente; vida pósinfiltração; limites do infiltrado; incidentes previsíveis durante o trabalho encoberto,
dentre outros;
- autorização da infiltração, através da unidade regional, quando deverá
observar se o proponente reúne condições de realizar o trabalho com níveis aceitáveis
de segurança; e
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- análise dos trabalhos já encerrados visando o aperfeiçoamento de nossas
práticas.
Não somos ingênuos em imaginar que a simples criação de uma unidade
solucionaria nossos problemas, mas acreditamos que seria um passo importante para a
melhoria das condições para o uso do agente infiltrado em nossas investigações que
requeiram tal medida.
52
5
CONCLUSÃO
Com o incremento da criminalidade internacional, a busca de mecanismos de
investigação mais eficazes, que possam fazer frente à nova organização dos grupos
criminosos, se tornou uma constante na pauta de discussões das nações.
Sucessivos acordos internacionais refletiram essa preocupação, podendo ser
citadas a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas (Convenção de Viena) e
a Convenção das Nações Unidas Contra a
Criminalidade Organizada Transnacional, a denominada Convenção de Palermo.
Nesse contexto, a infiltração - estratagema usado desde antiguidade no campo
militar e há mais de duzentos anos nas investigações criminais – teve sua importância
resgatada e seu uso regulamentado em vários países da Europa Ocidental.
No Brasil, o instituto foi introduzido em nosso ordenamento apenas em 2001,
mas de forma inteiramente lacunosa, sem fornecer tratamento normativo adequado a
várias questões importantes ao seu manejo.
No último dia 02 de agosto, finalmente o legislador brasileiro, ao elaborar a Lei
nº
12.850,
forneceu
às
autoridades
persecutórias
uma
lei
que
parametriza
adequadamente a infiltração policial, dando resposta à boa parte das questões que
antes ficavam a cargo da doutrina.
O advento da nova lei faz surgir para as instituições policiais a obrigatoriedade
de olhar para a infiltração como uma possibilidade investigativa real e potencialmente
eficaz, que vai muito além das ficções do cinema americano, desde que utilizadas em
situações que realmente a demandem, por policiais com a necessária expertise, e sob o
controle estreito da própria instituição policial e dos demais participantes do aparelho
persecutório.
Até aqui a Polícia Federal, apesar do grande número de investigações que
redundaram no desmantelamento de um expressivo número de organizações
criminosas, utilizou de forma bastante acanhada a infiltração.
Acreditamos que a deficiência da lei anterior tenha contribuído fortemente para
53
tanto. A lacunosidade legal deixava a cargo da autoridade judiciária o preenchimento
dos pontos mais sensíveis da medida, criando para os policiais uma insegurança que
findava por contraindicar o uso do agente encoberto.
Não acreditamos que a Lei nº 12.850/2013 irá fazer da infiltração uma medida
investigativa ordinária a ser usada na apuração de toda e qualquer organização
criminosa. Ela não tem esse condão. A infiltração, sabemos todos, é uma forma de
investigação bastante invasiva, que põe em risco valores muito caros às sociedades
democráticas, devendo ser usada com cuidado, critério e controle.
Portanto, é normal que tenhamos a ação encoberta usada em pequena escala,
sendo desejável que permaneça sendo usada com extremo cuidado pelas autoridades
investigantes
e
apenas
quando
realmente
necessária,
com
observância
da
subsidiariedade que a caracteriza.
Apesar disso, não vemos, como sustentam alguns, incompatibilidade entre a
infiltração policial e um estado democrático, sendo absolutamente possível sua
harmonização com um processo penal moderno e garantidor das liberdades individuais
dos investigados. Ressalte-se que países com sólida democracia, como aqueles da
Europa Ocidental e os Estados Unidos, lançam mão da infiltração, instituto reconhecido
também pela Organização das Nações Unidas.
Todavia, temo que a nova lei, apesar dos avanços que veicula, encontrará uma
estrutura policial federal ainda deficiente, que faz uso da infiltração com o conhecimento
empírico ou adquirido em filmes e livros policiais, sendo este, a nosso ver, outro motivo
do pequeno número de trabalhos realizados pela Polícia Federal em que houve uso da
infiltração.
Ao identificar a necessidade de infiltrar um policial na organização criminosa, a
autoridade investigante se depara com tantas dificuldades que logo a tentação de fazer
uso de uma ferramenta menos eficiente, mas certamente de mais fácil manejo,
prevalece.
Apesar de alguns passos tímidos na busca de um conhecimento mais sólido
sobre os aspectos policiais inerentes à infiltração, os seminários intitulados “Infiltração e
54
o Controle de Fontes”, realizados com alguma frequência pela Polícia Federal, apontam
nesse sentido, é necessário que estudemos a experiência das polícias estrangeiras,
criticá-la e submetê-la a realidade brasileira, para que tenhamos nossa própria doutrina
a ser passada para os policiais.
O uso de estratagemas como o pagamento de informante, que transforma, à
grosso modo, o criminoso em um agente infiltrado, embora útil e de manejo bem mais
simples, apresenta sérios questionamentos éticos de difícil superação e não substitui a
infiltração propriamente dita.
A interceptação telefônica, tão usada em várias de nossas operações, já
começa a demonstrar um certo esgotamento, o que impõe aos policiais o uso de outros
mecanismos menos ortodoxos de investigação, como escuta ambiental, entrega
controlada e infiltração, todos autorizados por nosso ordenamento jurídico, e que, se
usados com as cautelas necessárias e o conhecimento exigível de um profissional de
polícia, podem representar importante instrumento de combate à criminalidade
organizada.
Esperamos, por fim, que a Lei nº 12.850/2013 seja um marco na utilização das
medidas investigativas mais sofisticadas e que sirva como um chamado, uma
convocação às polícias judiciárias para que realmente se preparem para o adequado
manejo das ferramentas que a nova lei colocou a sua disposição.
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REFERÊNCIAS
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California Press, 1988.
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14 MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. Os riscos da espionagem. São Paulo.
Disponível em: www.viaseg.com.br. Acesso em: 01 jul. 2013.
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LIMA, Marcos Aurélio Costa de. Infiltração policial