“Precisa arte e engenho até...” :
um estudo sobre a composição do personagem-tipo
através
das burletas de Luiz Peixoto
Daniel Marques da Silva
Dissertação de Mestrado
Março / 1998
I
II
DANIEL MARQUES DA SILVA
“Precisa arte e engenho até...”:
um estudo sobre a composição do personagem-tipo através
das burletas de Luiz Peixoto
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado
em Teatro da Universidade do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Teatro.
Área de Concentração: Estudos da História do
Teatro e do Texto Teatral
Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes
Rabetti Giannella (Beti Rabetti)
Rio de Janeiro
Centro de Letras e Artes da Uni-Rio
1998
III
Dedico esta dissertação
a meu filho Tiago, meu “ai Ioiô...”
IV
AGRADECIMENTOS
A realização de um trabalho como este só é possível, no meu
entender, com a efetiva e preciosa ajuda de colegas, parentes, amigos e até
mesmo, de desconhecidos. Tal qual o galo lembrado pelo poeta
pernambucano que necessita de outros galos para tecer a manhã, também
fui ajudado por uma rede de colaboradores para “tecer” esta dissertação.
Eles não só auxiliaram, direta ou indiretamente, essa pesquisa, como ainda,
com sua ajuda, aliviaram a solidão inerente ao ato de escrever.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - CNPq - concedeu-me bolsa de Mestrado por intermédio do
Mestrado em Teatro e do Programa de Pós-Graduação da Universidade do
Rio de Janeiro.
À Profa. Dra. Beti Rabetti, minha orientadora, devo todo o
empenho, cuidado, dedicação e, muitas vezes, paciência, com que sempre
conduziu a orientação deste trabalho. Beti conseguiu transmitir alegria e
prazer a cada nova conquista da pesquisa (pois ela sabe que saber e sabor
têm a mesma raiz...). Sua postura sempre me motivou, e, sem sua ajuda,
esse trajeto teria sido, certamente, mais árduo.
Durante o curso de Mestrado, devo destacar a atuação da Profa.
Dra. Maria Helena Werneck, que, em sua gestão na Coordenação do
referido curso, reverteu o quadro desfavorável em que ele se encontrava
com seu trabalho e sua dedicação.
Ainda no âmbito da Escola de Teatro, agradeço as preciosas
colaborações do Prof. Dr. Luiz Arthur Nunes e da Profa. Ausônia Bernardes
que participaram da Comissão de Avaliação de meu Projeto, tornando
aquela reunião não só fértil como, também, prazerosa.
V
O grupo de trabalho do projeto vinculado, composto pelos
pesquisadores Ana Carneiro, Paulo Ricardo Meriz, Elza Andrade e, muito
especialmente, Filomena Chiaradia, tornou essa trajetória mais agradável,
fecunda, proveitosa, e, certamente, muito mais alegre.
Aos funcionários
do Centro de Letras e Artes, Aristides,
secretário do Mestrado, e seu Luiz, técnico em iluminação da Escola de
Teatro, agradeço a dedicação no cumprimento de suas tarefas, feitas com
tal cuidado, que transformaram obrigação em amizade.
Minha gratidão às Profas. Dras. Evelyn Lima e Neyde
Veneziano pela simpatia com que aceitaram fazer parte da banca de
avaliação desta dissertação.
A Marina Martins, Vilma Melo e Bruno Rodrigues devo o
empenho e a seriedade com que se dedicaram aos trabalhos envolvendo os
Encontros Experimentais com Atores; sem eles teria sido difícil perceber
“as regras da arte”.
À Sra. Sara Halinck Machado, sobrinha-neta de Luiz Peixoto e
zelosa guardiã do acervo pessoal do autor, agradeço a forma com que me
abriu sua casa, me possibilitando encontrar preciosos manuscritos das
burletas estudadas. Examinar as pastas com escritos, desenhos, pinturas,
fotos, revistas, tomando o brasileiríssimo cafezinho e ouvindo histórias
agradáveis sobre Luiz Peixoto foi um emocionante momento dessa
pesquisa e me colocou, tenho certeza, muito mais perto daquele autor.
Às pesquisadoras da cultura popular carioca Profas. Dras.
Monica Pimenta Velloso e Edinha Diniz, devo agradecer a gentileza e a
solicitude com que sempre me atenderam.
Agradeço muitíssimo a João Carlos Levy Argel, meu “prontosocorro informático”, sempre atencioso e disposto a resolver os problemas
e as dificuldades que eu tive com o computador.
VI
Devo a Carlos Augusto Didati a localização de República de
Itapiru, no acervo do Arquivo Nacional. Carlos Augusto é um amigo
constante, que certamente muito se alegra com essa nova realização.
A Maria Helena Torres agradeço a rigorosa revisão final deste
trabalho.
A meus pais, Dilson e Elvira, que souberam criar em casa um
ambiente onde os livros e o conhecimento, mais do que obrigação eram
alegria, sempre nos apoiando - a mim e a meus irmãos -, e que nos
momentos mais difíceis da pesquisa me prestaram socorro emocional,
material e espiritual, todo meu amor e gratidão.
A Angela, companheira incansável, que soube dividir comigo
as alegrias, vitórias, decepções e frustrações que se alternaram neste
trabalho; que me encorajou e incentivou, mas também criticou quando
necessário; que, enfim, sempre esteve presente onde, quando e do modo
que precisei. Mais do que gratidão, devo o registro de que este trabalho
também é um pouco seu.
VII
RESUMO
A dissertação de mestrado “Precisa arte e engenho até...”:
um estudo sobre a composição do personagem-tipo através das burletas de
Luiz Peixoto contribui para a compreensão dos procedimentos existentes na
construção do tipo cômico pelo autor dramático e sua posterior composição
por parte do ator, utilizando-se dos personagens-tipo presentes nas burletas
de Luiz Peixoto.
Distintos dos mecanismos que envolvem outras formas de
composição atorial, os atores que trabalham com tipos cômicos se baseiam
em repertórios próprios, constituídos, de maneira muito particular, ao longo
de sua carreira.
VIII
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................... 1
Capítulo I ..................................................................................... 4
1.1. Luiz Peixoto e suas burletas ........................................... 6
1.2. O Rio de Janeiro - cidade real x cidade imaginária ....... 11
1.3 Os intelectuais boêmios e o Rio das reformas ................. 20
1.4. O teatro musicado carioca .............................................. 26
1.5. O personagem-tipo no teatro musicado carioca ............... 35
1.6. O personagem-tipo e o trabalho do ator .......................... 36
Capítulo II
2.1. As burletas de Luiz Peixoto............................................. 43
2.1.1. Forrobodó (1911) ................................................ 48
2.1.2. Dança de Velho (1916) ........................................ 52
2.1.3. Morro da Favela (1916) ...................................... 56
2.1.4. Flor do Catumbi (1918) ....................................... 57
2.1.5. Saco do Alferes (1918) ......................................... 62
2.1.6. República de Itapiru (1919) ................................. 65
2.2. Instrumentos de comicidade presentes nas burletas
de Luiz Peixoto....................................................................... 69
2.2.1. A comicidade das diferenças................................. 71
2.2.2. A ridicularização das profissões............................ 73
IX
2.2.3. O exagero cômico................................................ 75
2.2.4. O malogro da vontade.......................................... 77
2.2.5. O fazer alguém de bobo....................................... 79
2.2.6. Os alogismos....................................................... 80
2.2.7. Os instrumentos linguísticos da comicidade......... 82
2.2.8. Os caracteres cômicos.......................................... 88
2.3. Os personagens-tipo na burleta de Luiz Peixoto.............. 91
2.3.1. O mulato pernóstico............................................ 97
2.3.2. A mulata..............................................................102
2.3.3. O malandro..........................................................108
2.3.4. O mulato capoeira................................................111
2.3.5. O português..........................................................112
2.3.6. O coronel do interior............................................117
2.3.7. O padre................................................................119
2.3.8. Outros personagens-tipo.......................................120
2.4. Considerações finais........................................................120
Capítulo III.....................................................................................121
3.1. A seleção dos personagens-tipo.......................................126
3.2. O relator - dramaturg......................................................126
3.3. Os atores.........................................................................127
3.4. Os Encontros Experimentais: laboratórios atoriais..........130
X
3.5.Considerações finais........................................................159
Conclusão......................................................................................161
Anexos...........................................................................................163
Ponto de fusão, por Marina Martins.......................................165
Diário de trabalho do ator Bruno Rodrigues...........................183
Encontros Experimentais - roteiro de atividades...................191
Cena extraída e adaptada de Forrobodó.................................198
Fotos dos Encontros Experimentais.......................................201
Bibliografia
1. Livros................................................................................208
2. Revistas e outros................................................................215
3. Jornais...............................................................................218
XI
INTRODUÇÃO
Eu vi o nome da favela
Na luxuosa Academia.
Mas a favela pro doutô
É morada de malandro
E não tem nenhum valor!
Assis Valente
As manifestações de origem popular têm enfrentado,
infelizmente ainda, certos preconceitos por parte de determinados
segmentos da intelectualidade. A desconfiança de Assis Valente, expressa
na música Minha embaixada chegou, de 1935, é, portanto, justificada. O
julgamento apressado dessas manifestações como espontâneas ou naturais
tem impedido maior aprofundamento das questões nelas envolvidas. Ao
olhar para essas manifestações é necessário, ao menos, tentar vislumbrar
suas origens, seu modo de produção, as possíveis formas regulares de
procedimento presentes em sua elaboração.
Felizmente os estudos da cultura popular e do teatro popular
têm-se intensificado, o que possibilita melhor apreensão - e compreensão desses fenômenos. Se à época de Assis Valente apenas um pequeno grupo
de intelectuais cariocas tentava estabelecer elementos de ligação entre os
diversos segmentos da sociedade - os intelectuais boêmios, como será visto
no decorrer desta pesquisa -, hoje, tanto no Brasil quanto no exterior, a
cultura popular vem sendo pesquisada com procedimentos que, cada vez
1
mais, procuram atentar para os problemas ligados ao âmbito das
“curiosidades folclóricas”. Principalmente os estudos de Vladimir Propp,
Mikhail Bakhtin, Carlo Ginzburg, Peter Burke e Paul Zumthor permitem
colocar em xeque as “verdades” que envolviam a cultura popular. No
Brasil podem ser destacados os trabalhos de Mário de Andrade - pioneiro
em tentar compreender a sofisticada produção que envolve as músicas
popular e folclórica -, José Jorge de Carvalho, José Ramos Tinhorão, Ari
Vasconcelos e Roberto Moura. No campo da pesquisa teatral é enorme a
contribuição da crítica literária Flora Sussekind em seu estudo das revistas
de ano de Arthur Azevedo. No âmbito deste estudo, a produção das
pesquisadoras Monica Pimenta Velloso, em relação à cultura popular
carioca, e Neyde Veneziano, no estudo do teatro ligeiro brasileiro, é
extremamente elucidadora e acompanha, mesmo que, às vezes, de maneira
um pouco distante, todas as discussões e questões propostas.
A presente dissertação insere-se nesse quadro de questões e,
voltada para o campo especificamente teatral, pretende contribuir para a
compreensão dos processos de elaboração e dos mecanismos de
composição do personagem-tipo, a partir das burletas escritas por Luiz
Peixoto entre 1911 e 1919; e, mediante a observação do exercício de sua
construção posterior, por parte do trabalho do ator.
2
Nesse sentido, apresentam-se como fértil foro os exercícios
laboratoriais com atores, desenvolvidos no decorrer deste trabalho, por
pretenderem vislumbrar os mecanismos de composição de que um ator determinado tipo de ator - se vale no processo de construção do
personagem-tipo.
É oportuno lembrar que esta dissertação segue a Linha de
Pesquisa Teatro e Cultura Popular do Mestrado em Teatro da Uni-Rio e
faz parte de um projeto de pesquisa a ela vinculado, Um estudo sobre o
cômico: o teatro popular no Brasil entre ritos e festas1, coordenado pela
Profa. Dra. Maria de Lourdes Rabetti Giannella (Beti Rabetti), orientadora
desta dissertação de Mestrado. O projeto possibilita campo privilegiado de
debates e de troca de informações entre os vários trabalhos individuais de
pesquisa de dissertação a ele ligados, guardando as especificidades de cada
um deles e propiciando, assim, o enriquecimento dos vários projetos
individuais e da totalidade da pesquisa sobre o cômico. Nesse sentido, cabe
destacar a dissertação de Mestrado de Maria Filomena Vilela Chiaradia, A
Companhia de Revistas e Burletas do Teatro São José: a menina-dos-olhos
de Paschoal Segreto, defendida em novembro de 1997, que apresenta
diversos pontos de contato com o presente trabalho.
1
Para mais informações a repeito, ver RABETTI, Beti (coord.). Um estudo sobre o cômico: o teatro
popular no Brasil entre ritos e festas. Caderno de pesquisa em teatro: ensaios. Rio de Janeiro, Uni-Rio;
Centro de Letras e Artes; Programa de Pós-Graduação e Pesquisa; Mestrado em Teatro, n. 3, 1997.
3
CAPÍTULO I
Em livro publicado em 1908, A alma encantadora das ruas2,
reunindo crônicas anteriormente publicadas na Gazeta de Notícias e na
revista Kosmos, Paulo Barreto - sob seu pseudônimo mais famoso, João do
Rio - faz uma descrição sentimental e muito particular do Rio de Janeiro do
início do século. Convidando o leitor a com ele flanar pelas ruas da cidade,
afirma que cada uma delas tem suas características e sua identidade - sua
“alma”. Procedendo assim, faz da cidade, que naquele momento construía
sua própria identidade - deixando de ser fluminense e tornando-se carioca,
e com isso determinando também a identidade e a naturalidade de seus
cidadãos - o grande personagem do livro. Dando a cada rua personalidade
distinta, o autor traça o perfil proteiforme - para empregar adjetivo usado
com freqüência por João do Rio - da então capital federal. Ora, esta cidade,
que traz dentro de si tantos e tão afastados universos, seduz exatamente por
sua identidade múltipla, que o autor tenta captar em flagrantes nas crônicas
de seu livro.
É curioso registrar as várias faces desta cidade-personagem ora a de uma dama elegante dos salões de Botafogo, ora de uma mulata
2
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1987.
4
requebrando um maxixe3 em algum clube-dançante da Cidade Nova -,
porque suas máscaras, naquele momento histórico, são trocadas com
rapidez vertiginosa. Esta cidade-personagem será “retratada” nesse período
por uma série de jornalistas, caricaturistas, escritores e autores teatrais que
tentavam interpretá-la para seus moradores, exaltando suas qualidades ou
apontando seus defeitos, nos jornais, nos periódicos humorísticos e no
teatro musicado, principalmente nas revistas e burletas.
No “teatro ligeiro”4 desfilarão os personagens que a habitam,
numa representação, aliás, muito mais fiel à “mascarada” que a cidade
proporciona
enquanto personagem do que, de fato, à população real,
atônita diante das mudanças ocorridas em seu espaço público. Assim,
reelaborados pelos artistas - autores e atores - é que os tipos da cidade
figurarão nesses espetáculos, conforme será visto adiante.
Luiz Peixoto é um desses autores que, por intermédio de seus
tipos - tanto nas charges jornalísticas como nos poemas satíricos e nas
burletas e revistas teatrais -, tenta registrar e reinterpretar os personagens
3
O maxixe é uma dança urbana surgida no Rio de Janeiro de fins do século XIX, da qual teve origem o
ritmo musical. É considerada a primeira dança genuinamente brasileira, predecessora do samba. Ver
HORTA, Luiz Paulo (edit.).Dicionário de Música. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 231.
4
A produção teatral no início do século XX poderia ser dividida entre “teatro sério” e “teatro ligeiro”.
Destinado sobretudo ao entretenimento e à diversão, o teatro chamado “ligeiro” não correspondia às
expectativas da crítica da época, que ansiava por uma atividade teatral vinculada aos movimentos
literários naturalista e realista, assim desprezando uma produção voltada, sobretudo, para o então
incipiente mercado teatral brasileiro, sem - segundo essa crítica - preocupações artísticas mais elevadas.
Revistas, burletas, vaudevilles e mágicas eram os principais “subgêneros” do teatro ligeiro. Ver
CHIARARDIA, Maria Filomena Vilela. A Companhia de Revistas e Burletas do Teatro São José: a
menina-dos-olhos de Paschoal Segreto. Rio de Janeiro, 1997. Dissertação (Mestrado em Teatro). Centro
de Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação, Uni-Rio, 1997. p. 19-24.
5
existentes no Rio de Janeiro. Com isso, na verdade, registra - qual o flâneur
João do Rio - o personagem que é a própria cidade.
1.1. Luiz Peixoto e suas burletas
Falar sobre Luiz Peixoto é falar sobre o teatro, o jornalismo, a
poesia e a música popular da primeira metade deste século.
Sua produção como chargista na imprensa é vasta, valendo
citar sua participação, principalmente, nos seguintes periódicos: O Malho,
Jornal do Brasil, Revista da Semana, Zum-Zum, Última Hora, Sete Horas e
Hora H, sendo fundador destes quatro últimos.
No teatro musicado participa como autor, diretor de
companhia, cenógrafo, figurinista e mesmo como ator de conferências
humorísticas. Em 1922, revoluciona o teatro de revista5 trazendo mais bom
gosto ao coro de girls e aos figurinos, seguindo o modelo da companhia
francesa Ba-ta-clan. Luiz Peixoto passa por várias companhias,
acrescentando às várias funções já mencionadas as de letrista e ensaiador; e
se tornando uma das figuras de relevância no teatro musicado brasileiro.
5
O espetáculo de teatro de revista, normalmente, compunha-se de quadros interdependentes, ligados à
uma tênue trama central, e que se propunha a passar em “revista” os acontecimentos de um ano. Números
musicais, cenas cômicas, apoteoses cenográficas eram “costurados” em cena pela figura do compadre, um
ator que, mediante recurso que pode ser considerado épico, poderia interferir ou tomar partes nas cenas e
mesmo comentá-las. Ver CHIARADIA, Maria Filomena Vilela. op. cit.; VENEZIANO, Neyde. Não
adianta chorar: teatro brasileiro de revista...Oba! Campinas: Unicamp, 1996, e O teatro de revista no
Brasil: dramaturgia e convenções. São Paulo: Pontes; Campinas: Unicamp, 1991; e, ainda PAIVA,
Salvyano Cavalcanti de . Viva o rebolado!: vida e morte do teatro de revista brasileiro. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1991.
6
Para se demonstrar a importância e a dimensão de sua carreira no teatro
ligeiro, onde foi por quase quatro décadas um dos maiores nomes, basta
destacar dois momentos, nos quais o autor participa das duas companhias
de teatro musicado mais importantes de sua época e que, por isso, podem
ser considerados emblemáticos. Nos anos 10 trabalha junto à companhia
teatral de maior popularidade então - a Companhia Nacional de Revistas e
Burletas do Teatro São José; e nos anos 40 e 50, na Companhia Walter
Pinto, à época, a maior companhia de teatro de revista do país.
Participa também, em 1927, junto com Heckel Tavares e
Álvaro e Eugênia Moreyra, do Teatro de Brinquedo, considerado uma das
primeiras manifestações de renovação do teatro dito “sério” em nosso país.
Em relação aos processos de renovação e de modernização do nosso teatro,
é importante destacar que os primeiros “renovadores” do teatro brasileiro
moderno - principalmente na década de 1940 - tinham uma visão
internacionalista de cultura que tendeu a desprezar as tradições da cena
teatral brasileira; para eles, portanto, ser “moderno” era romper com as
características do teatro brasileiro de então.6 Analisando o ator Procópio
Ferreira, em emocionado ensaio, o crítico Décio de Almeida Prado, observa
6
Ver RABETTI, Beti. Teatro e Cultura: ideários de ruptura e de reelaboração frente à tradição e a
universalidade. (inédito), onde a autora traça um perfil do processo de modernização do teatro brasileiro,
analisando seus pressupostos culturalistas e internacionalistas.
7
que a personalidade e a forma de interpretação do velho ator o colocaram à
margem dos mecanismos de modernização da cena brasileira:
“Tudo o afastava, no entanto, do teatro
moderno, desde a obrigação de decorar o papel
(Bastos Tigre, já observara com graça que a
arte de representar no Brasil não figurava entre
as “artes decorativas”) até a idéia ridícula de
que o ator necessitava de alguém - o encenador
- para o guiar na criação do papel. Ele se fizera
no palco e ao contato com o público, os únicos
mestres que reconhecia como legítimos.”7
Assim, o velho mestre do teatro brasileiro é apresentado pelo
mais importante crítico do período de modernidade da cena nacional como
uma espécie de emblema do teatro brasileiro do passado. Na sua arte e no
seu tempo, Procópio não encontrou quem lhe fizesse sombra; contudo, não
soube - ou não quis, observa o crítico paulista - adequar-se às novas
técnicas, sendo por elas suplantado. A grande dificuldade que os
7
PRADO, Décio de Almeida. Procópio Ferreira: um pouco da prática e um pouco da teoria. In: Peças,
pessoas, personagens: o teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993. p. 41-91.
8
renovadores enfrentavam, então, era fazer com que atores como Procópio
percebessem as necessidades que essa “nova maneira” de fazer teatro lhes
exigia8. Ligados, em sua maioria, aos gêneros ligeiros e tendo por “escola”
o palco e o público, esses profissionais não compreendiam que sua maneira
de fazer teatro não fosse considerada por esses renovadores um teatro
“sério”. Essa dicotomia entre os chamados gêneros ligeiros e o teatro
considerado “sério” nunca irá, aliás, preocupar Luiz Peixoto. Em entrevista
concedida ao Diário de Notícias, por exemplo, o autor assinala que, apesar
de ter uma comédia de sua autoria premiada pela Academia Brasileira de
Letras, nunca teve interesse em deixar de escrever gêneros considerados
“ligeiros”, sobretudo revistas. E ainda afirma considerar que o “gênero é
um dos mais difíceis”9.
Nos anos 30 trabalha como diretor artístico do Cassino da
Urca, sendo o responsável direto pelo memorável sucesso desse
estabelecimento na área de shows, onde figuras da música popular
brasileira e do teatro ligeiro alcançam sucesso internacional - sendo o caso
mais famoso o da cantora Carmem Miranda, que sai dos espetáculos
daquele cassino para a Broadway e daí para Hollywood.
8
Ver: TROTTA, Rosyane. O teatro brasileiro: décadas de 1920-30. In: NUÑEZ, Carlinda Fragale Pate et
alii. O teatro através da história. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil: Entourage, 1994. v. 2,
p. 111-137.
9
CAETANO, Daniel. Luiz Peixoto já escreveu comédia. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22 mai.
1946. Apud: PEREIRA, Victor Hugo Adler. Momento Teatral: cultura e poder nos anos quarenta. Rio de
Janeiro, 1981. Dissertação (Mestrado em Letras). Departamento de Letras da PUC, 1981. Anexos, p.6466.
9
Autor teatral pródigo - teria escrito nove burletas, 94 revistas
teatrais, duas comédias, cinco textos de outros gêneros e ainda realizado
três traduções
10
- é um dos sócios fundadores da Sociedade Brasileira de
Autores Teatrais, associação da qual participa em várias diretorias, sendo
presidente no biênio 1950-1951.
Ainda para ressaltar sua atuação em campo teatral, cabe
lembrar que Luiz Peixoto dirige a Escola Dramática Martins Pena nos anos
60.
Como inicia sua carreira artística enquanto caricaturista, ainda
muito novo, nos primeiros anos do século XX, tem a oportunidade de
manter contato diário com os grandes nomes da imprensa da época,
escritores e chargistas ligados ao jornalismo e ao teatro musicado. Nesse
grupo - que une boêmia e arte, por meio das quais constrói sua inserção na
realidade, como será visto adiante - é que Luiz Peixoto vai encontrar seu
mais constante parceiro de sua primeira fase como autor teatral, o jornalista
Carlos Bittencourt. A estréia dos dois como dramaturgos se dá com a
revista Seiscentos e Seis, no ano de 1911. Apesar da pouca repercussão da
primeira peça, escrevem no mesmo ano a burleta que será um dos maiores
sucessos do teatro popular carioca, Forrobodó, com músicas de Chiquinha
Gonzaga, e que, estreando em 1912, inaugura um teatro assumidamente
10
GONÇALVES, Augusto de Freitas Lopes. Os vinte e um fundadores. In: Revista de Teatro da SBAT,
Rio de Janeiro, n. 359, 360, p. 21-23, set./out./nov./dez. 1967.
10
carioca no linguajar, no tema e nos tipos criados. Inicia-se então uma das
carreiras teatrais cariocas mais fecundas da primeira metade do século XX.
Serão analisadas neste trabalho as burletas de sua autoria que
constituem a primeira fase de sua carreira como autor teatral. É importante
ressaltar ainda que os enredos de todas as burletas analisadas se
desenvolvem em áreas do Rio de Janeiro “esquecidas” pela reforma
urbanística perpetrada na cidade pelo prefeito Pereira Passos no início deste
século.
1.2. O Rio de Janeiro - cidade real x cidade idealizada
Sob o comando do prefeito Pereira Passos, a cidade vive, no
princípio do século XX, progresso urbanístico que é na verdade um
aspecto do agressivo projeto de modernização da sociedade brasileira. Os
planos de remodelação da cidade trazem para a capital da recémproclamada República um sonho de transformação e mudança. Tendo por
slogan “O Rio civiliza-se!”, criado pelo jornalista Figueiredo Pimentel na
coluna Binóculo, da Gazeta de Notícias11, esse processo tem por modelo a
idéia do cosmopolitismo parisiense, da qual não fazia parte uma
perspectiva de reorganização da tradição urbana ou cultural brasileira.
11
Apud.:BROCA, Britto. A Vida Literária no Brasil - 1900. Rio de Janeiro: MEC, Serviço de
Documentação, 1956. p.14.
11
Assim, esse ideário de “transformação da paisagem urbana se ia refletindo
na paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida literária.”12
Nessa medida, os sonhos de progresso acabam por fazer com que certos
escritores idealizem a cidade.
“Os escritores superestimavam essa
modernização da cidade, atribuindo ao Rio, em contos, romances e
crônicas, ambientes e tipos que aqui não existiam.”13 Ao analisar a situação
da sociedade brasileira do século XIX, Roberto Schwarz chama a atenção
para a disparidade existente entre a produção literária brasileira - cujos
autores estão ligados às idéias do liberalismo europeu - e a realidade
agrária e escravagista do país14. Segundo o autor, naquele momento
histórico, essa dualidade entre o liberalismo, que orientava os pensamentos
da elite, e o modo de produção econômico do país ocorria de maneira tão
aguda que - entre diversos outros exemplos dados - nas casas das grandes
fazendas as paredes de barro erguidas pelo trabalho escravo ou eram
cobertas com papel de parede importado imitando alguma bucólica cena
campestre européia, ou - numa exacerbação desse descompasso - pintadas
de maneira ilusionista com colunas, capitéis, frisas e volutas com
inspiração em pretensa arquitetura greco-romana. Como pode ser
observado, o contraste entre o imaginário que orientava a classe dominante
12
Idem. p.13.
Idem. p. 16.
14
SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. Estudos Cebrap . São Paulo, n.3, p.149-161, jan. 1973.
13
12
e a realidade da maioria da população brasileira é anterior à virada do
século XIX para o XX.
Nos ideais dessa ordem de progresso urbano culturalista não
estava prevista a participação da população de baixa renda: as partes
nobres da cidade eram destinadas às elites, e as camadas populares da
população seriam “empurradas” para os subúrbios e para os morros,
criando-se, assim, as primeiras favelas. Botafogo, Laranjeiras, Catete,
Glória e as novas grandes avenidas do Centro da cidade representavam o
Rio “civilizado”; e a Cidade Nova, o Catumbi, a zona portuária, os
subúrbios e as favelas, o Rio “atrasado”:
“(...) E os requintes de civilização,
prevalecendo na parte urbana da metrópole,
iam fazendo naturalmente com que os velhos
costumes recuassem para a zona suburbana.”15
Os hábitos e comportamentos ligados às tradições brasileiras
passam a ser vistos com desconfiança e desprezo pelos “reformadores”.
Assim, “os velhos costumes”, que representariam a permanência de
códigos e valores considerados atrasados, passam a ser alvo de restrições, e
15
BROCA, Brito. op. cit. p.16.
13
as manifestações culturais e religiosas ligadas às camadas populares - como
o maxixe, o samba16 e os terreiros de candomblé - sofrem perseguições
policiais. O modelo de civilidade e modernização, nesse período, está
relacionado à cultura burguesa européia; as manifestações populares
brasileiras consideradas não civilizadas devem ser, portanto, banidas. Nesse
projeto, o modelo cultural almejado reforça a ruptura entre a alta cultura aspirada pela burguesia - e a cultura popular. Sendo assim, as
manifestações culturais populares, seus credos, sua música, suas festas e
danças são consideradas inferiores, sinais de primitivismo e selvageria.
Diante desse modelo excludente de uma espécie de “darwinismo social” 17,
as camadas populares ficam restritas a guetos, e só nessas áreas suas
manifestações são toleradas.
Escritas entre os anos 1911 e 1919 - portanto já no fim desse
período - as burletas de Luiz Peixoto não mais retratam um Rio atônito
diante das vertiginosas mudanças sofridas. A Revolta da Vacina - em que a
população carioca levanta barricadas para impedir a campanha de
saneamento e vacinação do sanitarista Oswaldo Cruz - e a Revolta da
Chibata - dos marinheiros e embarcadiços contra os castigos corporais,
liderada pelo negro João Cândido - já haviam chegado ao fim, e seus
16
Dança afro-brasileira e ritmo de música popular. Tornou-se gradativamente um ritmo urbano em fins
do século passado e início deste. Ver HORTA, Luiz Paulo (edit.) op. cit. p. 333.
17
VELLOSO, Monica. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro: Funarte, 1988. p.
12.
14
líderes estavam presos. O bota-abaixo do prefeito Pereira Passos, que
demoliu cortiços, sobrados coloniais e vielas para dar lugar a extensas
avenidas, ao feitio dos boulevards de Paris, já estava concluído. A
população pobre das áreas “nobres” da cidade já tinha sido desalojada e
deslocada para os subúrbios e favelas:
“A intenção era a de tornar o Rio uma
“Europa possível”, e para isso era necessário
esconder ou mesmo destruir o que significava
atraso ou motivo de vergonha aos olhos das
nossas elites. Vielas escuras e esburacadas,
epidemias, becos mal afamados, cortiços, povo,
pobreza destoavam visivelmente do modelo
civilizatório sonhado.”18
Nessas áreas, as populações marginalizadas criarão uma
identidade própria, distinta do ideal europeizado imposto. Ainda segundo a
pesquisadora Monica Velloso19, a integração e a sociabilização dessas
camadas passará, necessariamente, pela noção de espaço
-
o seu
18
VELLOSO, Monica. op. cit. p.11.
VELLOSO, Monica. As tias baianas tomam conta do pedaço. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3,
no 6, pp. 207-228, 1990.
19
15
“pedaço”. Tomando como referência a forma de resistência criada pelos
grupos negros em que as “tias” tinham especial importância, a autora
destaca o contraste existente entre esses novos canais de integração e o
modelo burguês. As casas das “tias” baianas eram espaços comunitários de
transmissão de tradições culturais e religiosas, e a associação a essas
“famílias” não obedecia a um parentesco biológico, mas, sim, étnico.
Esses espaços de resistência criados pelas populações
marginalizadas distinguem-se ainda do modelo burguês almejado pela
classe dominante devido à flexibilidade com que são tratados os limites
entre casa e rua. Considerando casa e rua categorias simbólicas do
imaginário brasileiro, o antropólogo Roberto Da Matta20 traça a distinção
existente entre esses dois domínios sociais básicos. As regras que regem a
casa, onde o respeito se fundamenta nos valores familiares obedecendo às
hierarquias de idade e sexo, não servem para a rua, local onde essas regras
não valem e onde é necessário ficar atento para não violar regras
desconhecidas. A rua seria ainda o local do engano, da malandragem e da
trapaça, e a casa, diversamente, o refúgio de tranqüilidade e sossego. Ora,
nas áreas onde as populações marginalizadas desenvolvem seus “pedaços”,
casa e rua apresentam espaços de convergências e trocas, zonas de
indefinição de limites - parâmetro tão caro ao modelo burguês do “Lar
20
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio
de Janeiro: Guanabara, 1990. p.73 - 82.
16
doce lar”. Como já dito, nesses canais não oficiais de integração, criados
como resistência ao modelo excludente de sociedade imposto pelas
reformas urbanas e sociais, as casas das “tias” baianas eram espaços
coletivos de sociabilização e de persistência cultural. No esquema social
projetado pela elite econômica, a transmissão de valores culturais era
reservada às instituições criadas para esse fim: escolas, universidades,
academias, museus e conservatórios. Contudo, reforçando a idéia de um
canal não oficial de integração, será pelas casas das “tias” que a cultura
negra se fará aceita na sociedade:
“A casa da tia Ciata denota bem a questão
da circularidade cultural (Guinzburg - 1987).
Atraindo intelectuais e elementos da classe
média carioca. (...) Através do samba, do
carnaval e da culinária a cultura negra foi
ganhando espaço no conjunto da sociedade,
fazendo-se aceita. (...) Geralmente o centro
irradiador desta cultura era a casa das tias e os
terreiros.”21
21
VELLOSO, Monica Pimenta. op. cit. p.216. A relação entre a cultura considerada erudita e a chamada
de popular - que será discutida adiante nesta dissertação - está presente em todos os projetos pessoais
vinculados ao projeto integrado Um estudo sobre o cômico: o teatro no Brasil entre ritos e festas,
17
Pode-se notar com nitidez a diferença existente entre esse tipo
de associação e inserção na sociedade e aquele estimulado pelas reformas
perpetradas na cidade. O modelo de família buscado pelas elites que
comandavam esse processo reforça os ideais republicanos de “ordem e
progresso”:
“O papel do Rio, como capital tornou-se o
modelo para o desenvolvimento da organização
social desejada, reforçando o objetivo de
“civilizar” o espaço urbano, fosse no aspecto
físico e funcional da cidade, fosse no
ideológico,
através
da
restrição
às
manifestações populares. (...) A família, nesse
quadro, foi vista mais do que nunca como
sustentáculo do projeto normatizador, cujo
vinculado à Linha de Pesquisa Teatro e Cultura Popular do Curso de Mestrado em Teatro da
Universidade do Rio de Janeiro. Cabe ainda destacar a importância das obras de Bakhtin, Mikhail: A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec;
Brasília: EdunB, 1993; de BURKE, Peter: A Cultura Popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989; e de GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as
idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
18
desenvolvimento reequacionou seu papel e sua
inserção social na cidade.”22
Portanto é uma cidade real que desaparece para a construção
de uma cidade sonhada, idealizada. A revista de ano tem sua fase áurea, e
não por acaso, durante esse processo.
Segundo a pesquisadora Flora
Sussekind, era “como se a história e as reformas se tivessem acelerado de
tal maneira que a sociedade fluminense necessitasse de mapas teatrais
renovados anualmente(...)”23. Ainda segundo a pesquisadora, as revistas de
ano irão se propor a “inventar um Rio de Janeiro e exibi-lo detalhadamente
para um misto de morador atônito e espectador maravilhado(...); mutações
que o ajudam a reviver as mudanças citadinas e a acreditar nesta utopia de
uma Capital capaz de centralizar a história.”24 É, portanto, o espaço público
o grande protagonista das revistas de Arthur Azevedo. E a população é
“espectadora”: tanto das revistas quanto das mudanças que ocorrem em sua
cidade.
Na verdade, em seu esforço por captar em flagrantes a vida da
capital federal, o teatro musicado vai além e recria os próprios cidadãos
desta cidade. A velocidade com que ela se modifica - e com que, como foi
22
ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro
republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p.30.
23
SUSSEKIND, Flora. As revistas de ano e a invenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. p.8.
24
Idem. p. 17.
19
dito, “troca de máscaras” - acaba por confundir a realidade, assumindo
fictício ritmo vertiginoso de mudanças - mais próximo das apoteoses
cenográficas das revistas, burletas e mágicas do que de uma reforma
urbanística - e criando junto com a idealização da cidade uma população
igualmente ideal. Desse modo a tipificação floresce como um recurso
artístico idealizador da população da cidade, mediante a reelaboração de
uma galeria de tipos cômicos da tradição ocidental. Assim, surgem o
português, o malandro carioca, a mulher fatal, o caipira, a mulata e o
mulato pernóstico como tipos que habitam mais as revistas e burletas do
que a cidade real, contribuindo para a constituição de uma espécie de
mitologia cômica da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX.
1.3. Os intelectuais boêmios e o Rio das reformas
Outro aspecto importante a ser destacado nesse panorama da
cidade, proposto para compreendê-la como personagem mutante durante o
período das demolições, é a presença de um grupo de intelectuais que
discordava do modelo excludente de sociedade estabelecido pela elite.
Esses intelectuais, que a historiadora Monica Velloso denomina “os
humoristas boêmios”25, têm enorme atuação na crítica da “modernidade”
imposta pelo projeto de cidade perpetrado. Sobretudo por meio do humor
25
VELLOSO,Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1996.
20
como forma de expressão, esse grupo valoriza a descontração e a
criatividade, mas ressente-se por não ser devidamente valorizado. A autora
percebe dois personagens com quem esse grupo mais se identifica: os
turunas e os quixotes. Ao turuna, antiga gíria que nomeia o valente e
destemido, e que se aproxima da figura do malandro carioca, reporta-se,
pois, o universo da boêmia e marginalidade. Como quixote, reelaborando o
personagem do clássico de Cervantes, assume a missão redentora de
restauração da cidade que se perde. Será, portanto, atuando ora como
turunas, ora como quixotes que os intelectuais desse grupo estabelecerão a
mediação para sua inserção na sociedade.
Formado sobretudo por caricaturistas e homens da imprensa J. Carlos, Kalixto, Raul Pederneiras, Bastos Tigre, Lima Barreto, Orestes
Barbosa -, o grupo busca novos canais de integração e expressão social e,
mesmo, de aprendizagem. Será nas ruas e não por meio de um movimento
literário organizado que esses intelectuais procurarão viver e explicar a
história desta cidade. Assim, “o submundo, a marginalidade, a boemia e as
ruas constituem espaço expressivo para se pensar a modernidade brasileira,
notadamente a do Rio, onde a exclusão social seria vivenciada de forma
mais aguda.”26 Aqui fica clara a relação existente entre esses intelectuais e
os grupos negros que também tinham nas ruas seus espaços de
26
Op.cit. 29.
21
aprendizagem e integração, como já visto. Se os grupos negros têm como
núcleo aglutinador as casas das tias e os terreiros, os intelectuais terão nos
cafés literários a sua “outra casa”. Diz Monica Velloso:
“O café se apresentava, enfim, como lugar
protetor, distante dos conflitos familiares e das
intempéries. Lá o intelectual podia criar sua
outra família, elegendo amigos e reforçando
laços de fidelidade e enraizamento cultural.”27
Segundo a autora, esses intelectuais atuam como opositores ao
modelo de sociedade que as elites tentam impor, descortinando um outro
Rio de Janeiro; não o moderno, das luzes e de amplas avenidas, mas o
cindido, esquecido e abandonado Rio de Janeiro real. A política, a história
oficial, a literatura beletrista, a ciência e os avanços tecnológicos são vistos
com descrédito e desconfiança. Ao assumir a figura heróica do quixote,
esses intelectuais colocam-se como uma espécie de protetores da
sociedade.28
27
Op. cit. p. 51.
Sobre o riquíssimo personagem quixote como herói no imaginário da modernidade, ver os capítulos 4
(p.129 -172) e 6 (p.205-214) onde a autora demonstra como a figura solitária do herói cervantino se
tranforma em clown e, assim, identifica-se com o intelectual.
28
22
Monica Velloso chama a atenção para o fato de, numa cidade
cuja população é em sua maior parte de semi-alfabetizados e analfabetos, a
caricatura oferecer eficaz forma de comunicação.
Daí a grande
popularidade dos periódicos humorísticos no Rio de Janeiro das primeiras
décadas do século XX, forma ágil e atraente de transmissão de
informações e notícias.
Ponto particularmente relevante para a discussão presente
nessa dissertação é o que se refere ao fato de esses intelectuais utilizaremse de fontes inspiradoras eruditas para suas caricaturas. Dom Quixote,
Sancho Pança e personagens de Rabelais29 eram continuamente citados,
retrabalhados, chegando mesmo a “assinar” textos e caricaturas. Dessa
forma, pode-se perceber que esses escritores conheciam tanto as tradições
populares cariocas - igualmente utilizadas em suas charges e textos - como
a tradição cômica ocidental. Atuando no campo cômico e estabelecendo
canais de troca de informação entre as camadas populares e as elites, eles
atuavam como verdadeiros “mediadores” culturais, segundo o modelo
sugerido pelo historiador inglês Peter Burke. Para Burke - em seu
abrangente e detalhado estudo sobre a cultura popular na Idade Moderna
européia30 - os mediadores culturais atuavam como uma forma de
intermediários entre a grande tradição - a alta cultura - e a pequena tradição
29
30
Op. cit. p. 181.
BURKE, Peter. op. cit.
23
- a cultura popular31. Desse modo, os textos ou “documentos” do período
teriam passado sempre por esse processo de “tratamento” oferecido pelos
mediadores, tornando-se, portanto, fontes pouco confiáveis ou indiretas de
estudo. No que concerne a esta pesquisa, a figura do mediador é
importante, pois identifica-se com os autores desse grupo de boêmios e
humoristas. Dois dos mais importantes mediadores do período estudado
por Peter Burke - de um grupo de escritores, religiosos (sobretudo frades),
inquisidores e funcionários públicos - apresentam interessantes ligações
com os boêmios humoristas cariocas: François Villon e François Rabelais.
Segundo o historiador inglês, eles “não eram exemplos não sofisticados da
cultura popular, mas sim mediadores sofisticados entre as duas
tradições.”32 Os intelectuais humoristas cariocas apresentam também
grande relação com a cultura sofisticada de sua época - João do Rio e
Olegário Mariano foram membros da Academia Brasileira de Letras sendo igualmente sofisticados mediadores entre a cultura popular e a
erudita, como os autores franceses relacionados por Burke. Rabelais, como
já dito, era, de fato, inspiração constante, por intermédio de seus
personagens, para esses escritores cariocas.
A obra desses autores retrata uma série de tipos populares das
ruas do Rio. Vários deles ainda se dedicam ao teatro musicado. Outro
31
32
Op. cit. p.91-103.
Op. cit. p. 94.
24
foro de atuação criado por esses intelectuais seriam as conferências
humorísticas ilustradas, e, aí, mais uma vez serão retratados tipos desta
cidade. Luiz Edmundo, grande cronista carioca - e parceiro de Luiz
Peixoto na burleta República de Itapiru -, descreve a turnê de uma dessas
conferências humorísticas, descritas por ele como “récitas de bom humor e
alegre espírito”33, na qual Luiz Peixoto, Raul Pederneiras e João Foca
tomaram parte.
Luiz Peixoto é membro integrante desse grupo, atuando como
caricaturista em jornais e também em conferências humorísticas.34 Na
caricatura, no teatro e, mesmo, em suas poesias e letras de músicas
encontram-se diversos tipos populares, cuja reelaboração construía o
retrato desta cidade-personagem. E escolheu para retratar, justamente, a
população esquecida pelo excludente processo de modernização criado
para o Rio de Janeiro e para todo o Brasil: mulatos pernósticos, tias
baianas, prostitutas, valentões capoeiras, portugueses ricos ou coronéis do
interior enlouquecidos por mulatas que os maltratavam com seus
requebros. Seus ambientes são os clubes carnavalescos, as gafieiras, os
cirquinhos, as quermesses, as pensões. Por intermédio de seus
personagens, deixa entrever um Rio não oficial e não europeu, e, sim, um
33
EDMUNDO, Luiz. De um livro de memórias. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,
1958. v. 3. p. 654.
34
Ver a esse respeito ABREU, Brício de. Esses populares tão desconhecidos. Rio de Janeiro: Raposo
Carneiro, 1963. p. 261 - 264. E ainda EDMUNDO, LUIZ. Idem. v. 3. p. 652-667 e O Rio de Janeiro do
meu tempo. Rio de Janeiro: Conquista, 1957. v. 3. p. 543-556.
25
Rio que se quer carioca. Num momento em que se busca a identidade desta
cidade, nas burletas de Luiz Peixoto, pululam tipos variados, insistindo na
convivência e na multiplicidade.
1.4. O teatro musicado carioca
Eram muito populares as várias formas de espetáculos
musicados em fins do século passado e princípios deste - a revista, o
vaudeville, a mágica, o café-concerto e a burleta35. Segundo o crítico Décio
de Almeida Prado, essa enorme popularidade dos chamados gêneros
ligeiros, sobretudo as revistas de ano, teria contribuído para a suplantação
dos projetos de reforma do teatro brasileiro idealizados pelos autores do
Romantismo e do Realismo:
“O palco no final do século XIX já
perdera todas essas idéias revolucionárias ou
reformistas. Descobrira que o público desejava
mesmo era rir, ouvir músicas facilmente
assobiáveis (não havia ainda o rádio para fazer
35
O pesquisador Roberto Moura aponta que nessa época o Rio de Janeiro passa por período de grande
efervescência da então incipiente indústria cultural e de lazer, levando grande contingente de
trabalhadores para esse novo mercado, seja como cozinheiros e garçons, seja como músicos, cantores,
bailarinos ou atores. Essa fase de afirmação da indústria cultural e de lazer deveu-se, sobretudo, à enorme
afluência de público, alavancada pelos gêneros ligeiros do teatro carioca. Ver MOURA, Roberto. Tia
Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995. p.
81-83.
26
isso por nós) e contemplar mulheres um pouco
menos vestidas.”36
Nesse ensaio o crítico paulista esboça a estrutura das revistas
de ano de Arthur Azevedo e discute a transformação de uma delas, O
Tribofe, revista do ano de 1891, em burleta, A Capital Federal, do ano de
1897. Descrevendo essa burleta acaba por fazer uma definição do gênero:
“A conclusão a se tirar não é que A
Capital Federal não passa de colcha de
retalhos, tecida com gêneros díspares e sobras
de peças estrangeiras.
Ao contrário, é uma
síntese das melhores qualidades de nosso teatro
musicado - graça, despretenção, fantasia - uma
amálgama, não simples mistura, que prima pela
unidade e pela brasilidade. A denominação que
melhor lhe cabe é mesmo a de burleta, que lhe
foi tantas vêzes atribuída, um velho termo do
teatro italiano ressuscitado para designar no
36
PRADO, Décio de Almeida. Do Tribofe à Capital Federal. In: AZEVEDO, Arthur. O Tribofe. Rio de
Janeiro. Nova Fronteira: Casa de Rui Barbosa, 1986. p.258. Essa é uma excelente edição de O Tribofe,
organizada pela pesquisadora Rachel Teixeira Valença da Fundação Casa de Rui Barbosa.
27
Brasil e em Portugal certos espetáculos de
difícil classificação, um meio-termo entre a
comédia de costumes e a opereta, podendo
receber influências eventuais do vaudeville, da
revista, da mágica.”37
É preciso verificar, no entanto, em que medida, ao atribuir ao
teatro
popular
características
tais
como
“despretensão”,
“descompromisso”, “ligeiro”, se contribui para dificultar o exame mais
minucioso e apurado dessas manifestações. Ao aceitar essas características
de inerência ou de espontaneidade de produção das manifestações
populares, podem ser dificultadas tentativas de análise de seus
procedimentos tradicionais de criação, de sua estrutura aberta, de sua
adaptação ao novo, e, portanto, a percepção de um necessário acervo
técnico, indispensável aos artistas a elas ligados.
As burletas de Luiz Peixoto, por exemplo, apresentam unidade
de enredo e coerência na trama, e não apesar de, mas contando com a
colaboração de todas as intervenções musicais, que apontam para um
trabalho atento e, por que não dizer, rigoroso do dramaturgo.
37
Op. cit. p. 279.
28
Vale notar com relação a Arthur Azevedo que, nesse mesmo
trecho do texto citado, quando destaca como característica do gênero a
“síntese das melhores qualidades do nosso teatro musicado”, o próprio
crítico paulista aponta para importantíssimo procedimento - a síntese utilizado pelos dramaturgos envolvidos na produção de burletas. Ora, o uso
de um recurso dessa natureza indica a existência, se não de um método
rigoroso de composição, ao menos da persistência de procedimento
metodológico indispensável para o funcionamento cênico da burleta, o que
descaracterizaria o descompromisso ou a espontaneidade de sua
elaboração. Mais adiante, Décio de Almeida Prado ainda relaciona a
produção da burleta - e, pode-se concluir, de todo o teatro ligeiro - com ato
espontâneo e natural, e, portanto, não apresentando técnicas e códigos
próprios:
“(...) A burleta pertencia a outra área, sem
compromissos
estéticos
maiores,
não
pretentendo senão divertir e oferecer um
espetáculo faustoso à platéia.
A verdade é que nem sempre os autores
sabem
reconhecer
as
suas
obras-primas.
Sobretudo quando essas lhes brotam da
29
imaginação sem qualquer esforço, com a
espontaneidade
e
a
naturalidade
dos
organismos vivos.”38
Acredito, no entanto, que uma certa tradição de classificar as
manifestações populares dessa forma não se deva tornar impedimento para
o aprofundamento de determinadas questões, o que poderia contribuir para
relativizar alguns conceitos. Como será visto adiante, este estudo pretende
verificar que tanto a escrita da burleta, rigorosamente voltada para a cena,
como a participação prevista do ator para completar a composição dos
personagens apresentam todo um procedimento metodicamente calcado no
palco, que talvez contrarie os pressupostos de naturalidade ou de
espontaneidade dessas criações teatrais populares, feitas apenas para rir.
Aqui é necessário fazer-se distinção entre a manifestações
populares tradicionais, compreendidas geralmente como folclóricas, e
aquelas nas quais se encontram os chamados gêneros teatrais ligeiros
florescentes na cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas deste
século. Para tanto vou-me utilizar essencialmente de um ensaio do
professor José Jorge de Carvalho39. O autor estuda os papéis que ocupam,
38
Idem, p.280,281.
CARVALHO, José Jorge de. O Lugar da Cultura Tradicional na Sociedade Moderna. In: Seminário
Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. Rio de Janeiro, IBAC,CFCP, 1992. pp. 23-38.
39
30
na sociedade moderna, as várias formas de produção cultural - “erudita”,
“popular” ou “de massa” -, assim como o processo histórico vivido por
elas até o quadro atual. Elabora, então, uma espécie de modelo cultural em
que as chamadas culturas autênticas - cultura tradicional erudita e cultura
tradicional folclórica - seriam pólos atualmente mediados pela cultura
popular, sendo sua face mais exarcebada a cultura de massas. As culturas
tradicionais ofereceriam ao fruidor uma relação de experiência real de
crescimento e de formação; já a cultura de massas oferece uma relação de
vivência, de gratificação imediata. O autor, entretanto, chama a atenção
para o fato de que hoje é praticamente impossível a existência de uma
cultura pura, lembrando ainda que esses diversos elementos encontram-se
em qualquer nível cultural: dos mais tradicionais aos mais massificados.
Analisando os mais significativos estudos sobre a questão, o autor faz ver
que as diferentes manifestações culturais apresentam complexas relações
de troca para sua elaboração. Essa perspectiva adotada por José Jorge de
Carvalho desmistifica em parte tanto uma tradição folclórica tradicional e
pura quanto uma cultura tradicional erudita que repudie as manifestações
populares.
Os dramaturgos que se dedicaram aos gêneros teatrais ditos
ligeiros vinham, em sua maioria, da elite cultural tradicional e utilizavam
31
em seus textos aspectos da tradição folclórica brasileira, como se verá mais
detalhadamente adiante.
Se essas manifestações, tradicional e predominantemente
consideradas espontâneas, surgem, contrariamente, de um elaborado
processo de trocas e intercâmbios, exigem que delas se faça exame mais
detalhado. Por sua vez, se nosso teatro ligeiro apresenta códigos e
esquemas próprios, deve-se verificar a possibilidade de um estudo que
procure investigá-los. É o que realiza, de alguma maneira, Neyde
Veneziano em O Teatro de Revistas no Brasil.40 Disposta a investigar o
gênero, realiza mesmo uma “poética” da revista no Brasil. Suas conclusões
sobre a revista podem ajudar a compreender a burleta ou, mesmo, outros
gêneros de teatro popular musicado.
Ponto importante que aflora a todo momento em seu texto é o
que sugere a possibilidade de especialização dos profissionais envolvidos
na produção de um espetáculo de burletas ou revistas.
Autores,
compositores, cenógrafos, atores, músicos e bailarinas que se dedicavam
aos gêneros populares são considerados pela autora especialistas nesse tipo
de espetáculo. Pode-se supor, então, que se valiam de acervos técnicos
codificados, provavelmente colhidos na tradição popular ou, ainda,
40
VENEZIANO, Neyde. O Teatro de Revista no Brasil:dramaturgia e convenções. São Paulo:Pontes;
Campinas: Unicamp, 1991.
32
constituídos por meio da contínua reelaboração do espetáculo. Podem ser
destacados alguns trechos da obra que apontam para essa questão:
“Companhias e companhias dedicadas,
exclusivamente, a revistas e burletas eram
criadas e o interesse dos empresários crescia
consideravelmente.”41
E ainda:
“O movimento era intenso.
E, como o
espetáculo não podia parar, as peças eram
substituídas quase que semanalmente num
processo vertiginoso que submetia os atores a
condições de trabalho subumanas. (...) Esta
rápida sucessão, no entanto, trazia aos atores
que se especializavam em tipos fixos uma
experiência jamais vista no teatro brasileiro.”42
41
42
Op. cit. p.37.
Idem, p. 40.
33
Aqui, além de abordar a questão da especialização dos atores e pode-se concluir que os vários profissionais envolvidos nas montagens
deveriam agir da mesma forma -, Neyde Veneziano comenta também a
criação de tipos fixos como característica inerente ao trabalho de ator desse
tipo de espetáculo. Mais adiante, comentando a priorização do espetáculo,
destaca a extrema teatralidade dos textos. Textos criados, aliás, para a cena
e para o ator. E ator especialista em tipos fixos.43 Assim, imagino poder
concluir que técnica própria e método adequado teriam sido utilizados
pelos vários artistas e técnicos que trabalhavam nos espetáculos do teatro
musicado carioca. Nessa medida, a “graça” alcançada por autores e atores
desse teatro resultaria não de sua natural comicidade histriônica, mas de
elaborações decorrentes dos procedimentos metodológicos e técnicos
colhidos na tradição - em aprendizagem substancialmente de palco - e
continuamente reelaborados e readequados às exigências do teatro popular
urbano da cidade do Rio de Janeiro.
43
Idem, p. 184.
34
1.5. O personagem-tipo no teatro musicado carioca
Na literatura dramática, diversamente do que pode ocorrer em
outros gêneros literários, os personagens conduzem a trama da peça
exclusivamente por meio dos diálogos, sem a presença de um narrador que
lhes ordena ou comenta as ações. As personagens teatrais se formam
somente pelos diálogos, e o público delas toma conhecimento ou por suas
falas ou pelas falas de outros personagens a seu respeito. Portanto, o autor
dramático necessita transformar em diálogos ou ações os estados de
espíritos de seus personagens. Cada personagem teatral é, se encarado
deste modo, uma individualidade resultante de seus desejos, conflitos, atos
e hesitações e “exige a presença física do vulto humano que se revela por
voz, gesto e encenação”44. Já o estereótipo apresenta sempre como que
“estampados” traços comportamentais ou características, distintivos e
fixos, o que faz com que imediatamente o público lhe reconheça e possa
presumir suas atitudes durante a peça. Assim compreendido, reduzem-se
suas possibilidades de ação. O personagem-tipo, no entanto, distintamente
do estereótipo, opera, mais que uma soma de dados externos, uma síntese
substancial de características de um gênero, o que faz que ele adquira
maior espessura e, assim, possa estabelecer, no transcorrer da peça, novas
relações com outros personagens-tipo. Essa poderosa operação de síntese
realizada
pelo
personagem-tipo
permiti-lhe
um
sem-número
de
44
SILVA, Rivaldete Maria Oliveira da. Recursos cômicos em A Pena e a Lei de Ariano Suassuna:
personagem e linguagem. João Pessoa: Funesc, 1994.p. 36.
35
possibilidades de ação, daí sua tão longa existência teatral como se verá
adiante.
A rigor esses personagens-tipo que habitavam as revistas de
ano e as burletas estão muito mais vinculados à galeria de tipos cômicos da
tradição ocidental do que, propriamente, à população real da cidade. Como
já visto, a própria cidade do Rio, tipificada, apresenta-se também como
personagem desses espetáculos. No contexto dessa ficção, interessa-me
salientar, os personagens-tipo irão assumir a função de “mito
caracterológico”45. De acordo com o crítico norte-americano Eric Bentley,
o mito tem por finalidade fornecer um elemento conhecido e, assim,
“proteger-nos do vácuo absoluto.”46 O personagem-tipo atua como mais
um elemento de ligação, razoavelmente estável, entre o público e o Rio,
capital idealizada das revistas, sendo esse Rio das revistas mais um dos
“mitos” apresentados a esse público. O personagem central desses
espetáculos é uma cidade idealizada, a ponto de poder ser retratada, mesmo
que momentaneamente, nos limites do palco cênico.
Envolvido em flagrantes de uma cidade, em mitos que
orientam o público, em máscaras colhidas na tradição cômica, o
personagem-tipo no teatro popular carioca do início do século, na verdade,
insere-se num quadro de entrecruzamento de questões. Compondo-se por
45
BENTLEY, Eric. A experiência viva do Teatro. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar,1967.
p.60 e seguintes.
46
Idem, p. 60.
36
sínteses, resume em si uma ironia que é a própria ironia dessa cidade que
se quer moderna, que sonha com Paris. Os personagens-tipo encontrados
nesse teatro, além de todo o lastro que os vincula à tradição cômica
ocidental, têm profunda ligação com as tradições populares cariocas que,
segundo o modelo vigente no “Rio do bota-abaixo”, deveriam ser banidas
dessa “Europa possível”.
1.6. O personagem-tipo e o trabalho do ator
Ainda sobre o personagem-tipo, mas referindo-se a sua
composição por parte do ator, o crítico Décio de Almeida Prado aponta um
caminho que interessa investigar:
“A necessidade de não perder tempo,
somada à inércia do ator e ao desejo de entrar
em comunicação instantânea com o público,
desenvolveram no teatro uma predileção
particular pelas personagens padronizadas. (...)
Isso ajudaria a compreender fenômenos tão
curiosos como a farsa atellana ou a commedia
dell’arte nas quais personagens entendidos
como
individualidades
foram inteiramente
substituídas durante séculos por máscaras,
arquétipos
cômicos
tradicionais.
Seriam
37
produtos extremos dessa estranha mania que o
palco
sempre
teve
de
engendrar
uma
biotipologia humana especial.”47
É necessário destacar que a composição do personagem-tipo é
elaborada a partir de uma síntese na qual são articuladas questões e
características essenciais encontradas no gênero humano. Esta seria a forma
mais adequada, a meu ver, de entender esses fênomenos arrolados pelo
autor: manifestações artísticas em que a platéia percebe essas questões
essenciais colocadas em jogo, sendo essa percepção a principal causa da
“comunicação imediata com o público”.
Essa operação executada pelo tipo - a síntese - determina um
personagem que traz em seu “interior” a elaboração dessas questões
humanas, mas que só se revela por meio dessa mesma síntese e não pelo
acúmulo externo e detalhista de características. Essa distinção das
operações de elaboração - uma interna, a síntese; e outra externa, a soma - é
o que diferencia o personagem-tipo do estereótipo.
Assim, apesar de não poder ser encarado enquanto
“individualidade”, com interioridade ou problematização psicológica
moderna, o personagem-tipo não pressupõe necessariamente uma
construção rápida por parte do autor, ou exterior, por parte do ator. Em se
47
PRADO, Décio de Almeida. A personagem no Teatro. In:. ROSENFELD, Anatol et alii. A Personagem
de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 94.
38
tratando de um teatro cuja dramaturgia se constrói colhendo e reelaborando
personagens oferecidos pela galeria de tipos da tradição, o exercício do ator
constitui-se em virtual e efetivo colaborador do autor, uma espécie de coautor, que lhe completa o trabalho pela construção cênica do tipo. O ator,
portanto, não pode ser inerte ou se bastar com uma “interpretação pessoal”
do personagem. Em outro ensaio, ao analisar a formação da comédia
brasileira, Décio de Almeida Prado, ratifica essa visão do trabalho de ator,
dizendo mesmo, ao tratar dos textos de Arthur Azevedo, que ele já
pressupunha a participação dos atores para concluírem sua escrita. Sobre o
trabalho de Arthur Azevedo enquanto autor, diz Décio de Almeida Prado
que “as suas qualidades estavam na escrita teatral, feita para o palco, não
para a folha impressa, contando de antemão com o rendimento cênico
proporcionado pelo jogo cômico dos atores.”48 Trata-se, portanto, de
personagens cujo desenho só se realiza integralmente nos palcos. Decorre
que o personagem-tipo “esboçado” pelo autor dramático não deve ser
encarado necessariamente como estereótipo, mas, antes, é personagem que
apresenta uma técnica de construção dramatúrgica que antevê a
participação ativa do ator - quase sempre de um determinado ator - nessa
elaboração. Paul Zumthor, ao analisar a literatura medieval, 49 oferece
importantes subsídios para esta pesquisa em torno do personagem-tipo
48
PRADO, Décio de Almeida. A Comédia Brasileira (1860-1908). In.: Seres, coisas e lugares: do teatro
ao futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 50.
49
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz :a “literatura” medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
39
presente na burleta de Luiz Peixoto. O medievalista suíço estabelece que a
voz e a performance seriam os princípios regentes de toda a literatura
medieval, sendo os textos do período sempre elaborados para ser “lidos”
por meio de uma performance, necessitando, assim, de presenças vivas que
o realizassem plenamente. Esse princípio da performance, orientador de
sua reflexão, é referido mais de uma vez não só como elemento norteador
da apresentação do ator, do contador de histórias, do cantor ou menestrel,
mas também como dado caracterizador do diálogo que esses estabelecem
com o público presente à audição. Assim, cada apresentação oferece-se
como única, variando de acordo com a hora do dia em que é apresentada, o
local e a época da audição, o público presente e etc. “A obra
performatizada é assim diálogo, mesmo se no mais das vezes um único
participante tem a palavra: um diálogo sem dominante nem dominado, livre
troca.”50 Para realizar plenamente essas tarefas, no entanto, o “leitor”
desses “textos” recorria a uma série de expedientes colhidos em vasto
repertório técnico.
Estudando as variantes assumidas e elaboradas,
Zumthor percebe a existência de técnicas e convenções formais utilizadas
para as apresentações de textos que são, portanto, continuamente
reelaborados. Outro ponto que interessa destacar em função de meu objeto
de pesquisa é o fato de que a figura do autor, tal como modernamente
entendida, tem papel menor em relação ao apresentador dos textos
50
Op.cit. p.222.
40
medievais, porque é na apresentação que eles se completam. Assim, creio
poder concluir que os textos que se utilizam de personagens-tipo, da
mesma forma ao que ocorre com os textos medievais, não são feitos para
um ator inerte ou preguiçoso, mas, sim, para obter sua completude na cena
teatral, por intermédio de um intérprete consciente da enorme teatralidade
existente nesses personagens.
Pode-se perceber a afinidade entre essa
condição necessária ao ator que se dedica à construção e composição de
personagens-tipo e a já descrita performance dos intérpretes medievais.
Basta citar mais um trecho da obra de Neyde Veneziano, em que a autora
analisa a teatralidade do texto de teatro de revista - que, como foi dito,
utiliza o personagem-tipo -, podendo-se perceber muitos pontos de contato
com a análise de Paul Zumthor:
“ Esse texto era para ser dito ou cantado e
nele estavam previstas as invenções cênicas.
Se sua construção era em função do espetáculo
e do ator, cumpre-nos ressaltar uma certa
liberdade de improvisação e um modo peculiar
de interpretação (...) Nada introspectivo, um
ator de teatro de revista não tinha no seu
companheiro de cena o único apoio.
Ele o
41
procurava no público. Dialogava com ele.
Dominava a triangulação com naturalidade.”51
Assim, a dramaturgia a ser colocada em cena por esse teatro é
distinta porque se baseia em uma metodologia de produção que pressupõe,
entre diversos outros aspectos, a complementação do texto dramático pela
participação ativa de um ator que trabalha, durante a maior parte do tempo
ocupado por sua trajetória profissional, na construção de tipos fixos. Esse
ator ainda pode contribuir durante o espetáculo com uma série de
aditamentos ao texto - no Brasil, denominados “cacos” - que são
improvisados durante a representação. Contudo, é necessário frisar que essa
improvisação, mais do que ao virtuosismo desses cômicos, está ligada ao
conhecimento que cada um dos atores tem de seus tipos e à adaptabilidade
desses textos ao público presente ao espetáculo. Ainda deve ser dito que
esses cacos muitas vezes se incorporam aos textos e, portanto, não são
“achados”, necessariamente encontrados por esses cômicos a cada nova
representação do espetáculo. O texto apresenta-se, portanto, completamente
estruturado, permitindo, no entanto, ao ator - e mesmo dele esperando essa singular e prevista contribuição para a construção da cena teatral.
51
VENEZIANO, Neyde. op.cit. p.184.
42
CAPÍTULO II
2.1. As burletas de Luiz Peixoto
Como mencionado no capítulo anterior, Luiz Peixoto foi um
pródigo autor de vasta obra não só de textos teatrais, mas ainda contando
com poemas, letras de músicas - sendo parceiro de grandes nomes da
Música Popular Brasileira, como Henrique Vogeler, Almirante e Ari
Barroso - e charges e caricaturas para a imprensa. Devido à amplidão dessa
obra, far-se-á um recorte para análise de suas burletas escritas entre 1911 e
1919, que pode ser considerada sua primeira fase como autor teatral.
Durante esses anos o autor dedica-se quase integralmente à criação de
burletas e escreve apenas quatro revistas teatrais: Seiscentos e Seis, de
1911, em parceria com Carlos Bittencourt; Abre Alas, de 1913; e A Roda
Viva, de 1915, tendo por parceiro em ambas João Rego Barros. Apesar de
já haver escrito uma revista com Carlos Bittencourt - seu parceiro em
outros textos teatrais -, a já citada Seiscentos e Seis, de 1911, os dois
autores são constantemente lembrados em função da burleta Forrobodó52,
escrita também em 1911, mas encenada, como já mencionado, em 1912,
ano em que escreveu, em parceria com Raul Pederneiras, Morreu o Neves.
Em seguida escreve, junto com Carlos Bittencourt, Dança de Velho,
52
As informações sobre essa fase do autor e seus textos foram retiradas de três autores: ABREU, Brício.
op.cit.; GONÇALVES, Augusto de Freitas Lopes. Dicionário Histórico e Literário do Teatro no Brasil.
Rio de Janeiro: Cátedra, 1982. 4 v. e NUNES, Mário. 40 Anos de Teatro. Rio de Janeiro: SNT:
Departamento de Imprensa Nacional, 1956. 4 v.
43
burleta de 1916. Também de 1916 são as burletas O Gaucho, escrita em
parceria com Raul Pederneiras, e Morro da Favela, novamente com Carlos
Bittencourt, seu parceiro mais constante nessa primeira fase. Em 1917,
outra vez com Carlos Bittencourt, escreve Três Pancadas. De 1918 é a
burleta Flor do Catumbi, ainda com o mesmo parceiro. Desse mesmo ano
temos ainda Saco do Alferes. A última obra dessa fase de Luiz Peixoto é
República de Itapiru, de 1919, em parceria com Luiz Edmundo. Só em
1925 ele volta a escrever um texto desse gênero, O Baliza, que, contudo,
apresenta características bastante distintas das outras burletas, estando mais
próximo do modelo tradicional de teatro de revista do que propriamente de
uma burleta. Esse texto de 1925, que o historiador Augusto de Freitas
Lopes Gonçalves classifica como burleta-revista53, é denominado na folha
de rosto de seu manuscrito54, charge carnavalesca. Recordando que Luiz
Peixoto inicia suas atividades artísticas justamente fazendo charges e
caricaturas em jornais, é no mínimo curioso o fato de classificar um de seus
textos teatrais como “charge” Em 1940, ainda segundo Lopes Gonçalves,
retorna ao gênero com a burleta Quinta Coluna55. Todas as montagens
originais desses textos foram realizadas no Teatro São José pela
Companhia Nacional de Revistas e Burletas de Paschoal Segreto. Após
53
GONÇALVES, Augusto de Freitas Lopes. op.cit. v. 2. p.19-20.
Constante no referido acervo da Companhia de Paschoal Segreto, sob a guarda da Divisão de Música e
Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional.
55
Ver Revista de Teatro da SBAT. Rio de Janeiro, n. 359-369. p. 22, set./out./nov./dez. 1967.
54
44
pesquisa nos acervos do Arquivo Nacional56, da Funarte57, da
SBAT/Biblioteca Nacional58, da Divisão de Arquivo Sonoro da Biblioteca
Nacional59 e, ainda em um acervo particular60, foram localizados os textos
das seguintes burletas: Forrobodó, Dança de Velho, Morro da Favela, Flor
do Catumbi, Saco do Alferes e República de Itapiru.
A burleta é uma pequena comédia de costumes ou farsa,
entremeada de números musicais ligados à trama da peça, no que difere da
revista, por exemplo, na qual os números podem ou não ter relação com a
trama do espetáculo. Nos espetáculos de revista era comum a utilização de
músicas de sucesso, ou suas paródias, o que criava imediata empatia com o
público que já conhecia as melodias. Na burleta, em geral, as músicas eram
criadas especialmente para cada espetáculo, e, mesmo quando se utilizavam
músicas de sucesso, elas apresentavam relação com o enredo ou a trama da
peça, não representando quadro independente. A música, contudo, tem
papel relevante nesses dois gêneros, pois pode auxiliar a composição de
algum personagem ou reforçar determinada situação na trama. Como será
56
Acervo da Segunda Delegacia Auxiliar de Polícia - Peças Teatrais.
Biblioteca da Funarte - Banco de Peças e também no Acervo da Companhia Walter Pinto, por
catalogar.
58
Setor de Manuscritos da Biblioteca Nacional, acervo da SBAT. Esse acervo está localizado na BN, mas
quem detém o acesso a ele é a SBAT, segundo regime de comodato estabelecido entre as duas
instituições.
59
Acervo - não processado tecnicamente- da Companhia Nacional de Burletas e Revistas do Teatro São
José da Empresa de Paschoal Segreto, cujo acesso só foi possível graças à gentileza da pesquisadora
Maria Filomena Vilela Chiarardia, que utilizou o material desse acervo em sua dissertação de Mestrado
em Teatro.
60
Acervo particular de Luiz Peixoto sob a guarda da Sra. Sara Halinck Machado, sobrinha-neta do autor,
que, com zelo filial, mantém conservado esse precioso acervo.
57
45
detalhado adiante, os personagens apresentavam-se ao público em números
musicais cujas letras podem servir como exemplo de síntese do
personagem, uma forma da qual autor e ator se utilizavam para criar
expectativa na platéia acerca da trajetória desse personagem. Para os atores,
a relação texto/música ainda auxiliava a construção do tipo. Assim, os
ritmos musicais escolhidos para os personagens apresentam relação direta
com a constituição destes.
A burleta, geralmente, apresenta enredo simples, mas recheado
de situações cômicas, qüiproquós e engodos: são comuns as situações de
fuga e perseguição, brigas ou discussões, desencontros entre casais, burlas
e trapaças, cenas envolvendo personagens embriagados. O termo tem
origem italiana e teria surgido na França em fins do século XIX. Como
forma de burlar a legislação que proibia os teatros não licenciados de
apresentarem determinadas obras dramáticas, intercalavam-se ao texto
original da peça no mínimo cinco canções, e ela se transformava em
burletta61. No Brasil, fixou-se em temas regionais: tramas passadas em
áreas de população de baixa renda do Rio de Janeiro, nos pampas gaúchos,
no sertão paulista ou mineiro, no litoral nordestino, sendo essas regiões
sempre retratadas de forma pitoresca.
61
Ver a esse respeito VENEZIANO, Neyde. Não adianta chorar: teatro de revista brasileiro...Oba!.
Campinas,SP: Unicamp, 1996. p.22; e, ainda VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de Teatro.
Porto Alegre: LPM, 1987. 2a ed. p.33.
46
Devido ao fato de apresentar enredo mais coeso, diversamente
da revista - composta por quadro interdependentes -, a burleta reúne
personagens definidos de maneira mais consistente, que se podem
desenvolver durante toda a trama da peça. Nas revistas, os personagens têm
aparição muito rápida, com apenas o espaço do quadro para sua
apresentação à platéia. Entretanto, como recorda Maria Filomena Vilela
Chiaradia, os dois gêneros têm enorme relação62. Ainda assim, convém
salientar que a burleta apresenta “estrutura, no entanto, claramente
aristotélica e a ação dramática apoiava-se em conflitos básicos.”63
É importante frisar que todas as burletas de Luiz Peixoto,
retratando gafieiras, quermesses, “circo de cavalinhos” e clubes
carnavalescos, se passam em áreas do Rio de Janeiro paras as quais as
populações de baixa renda foram “deslocadas” após a reforma da cidade do
início deste século, onde ainda era possível se ouvir chorinho 64 ou se
dançar
maxixe. Ligados às populações de baixa renda, esses ritmos
musicais e, posteriormente, o samba são sempre utilizados nas burletas a
fim de melhor compor seus tipos. Essas áreas são descritas, nesses textos,
como local onde mulatos pernósticos declamavam seus versinhos de “pé
quebrado”;
onde
mulatas
sestrosas
enlouqueciam
portugueses
62
CHIARADIA, Maria Filomena Vilela. op cit. p. 74-77.
VENEZIANO, Neyde. op. cit. p. 22.
64
Gênero de música popular urbana do Rio de Janeiro, surgida no final do século XIX, próximo do
samba e do maxixe, e, como esses, formas de compasso binário e de ritmo sincopado. Ver HORTA, Luiz
Paulo. op. cit. p.76.
63
47
endinheirados ou ricos fazendeiros caipiras; onde guardas, malandros e
capoeiras se confundiam; onde, enfim, reinava a velha ordem carioca do
“jeitinho brasileiro” em oposição aos francesismos da elite brasileira, que
orientaram a referida reforma urbanística na cidade, como foi discutido no
capítulo anterior.
2.1.1. Forrobodó
A primeira burleta de Luiz Peixoto a ser analisada é
Forrobodó65, escrita em 1911 em parceria com Carlos Bittencourt e com
músicas de Chiquinha Gonzaga.
Por se tratar de texto escrito por dois novatos, foi recusado
pela maioria dos empresários a quem foi apresentado, só sendo encenado
graças ao nome de Chiquinha Gonzaga, já nessa época compositora
consagrada. Ainda assim, o empresário Paschoal Segreto só aceita montar a
burleta se os gastos com a referida montagem forem mínimos. Apesar de
todo o descrédito que cercou a estréia do espetáculo, pela Companhia
Nacional de Revistas e Burletas do Teatro São José, da empresa Paschoal
Segreto, em 12 de junho de 1912, essa burleta foi estrondoso sucesso,
65
O texto utilizado para estudos no presente trabalho é o publicado na Coletânea Teatral da SBAT, Rio de
Janeiro, Caderno no 73, 1961; com as letras das músicas das partituras originais de Chiquinha Gonzaga
conforme publicadas em DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga: uma história de vida. Rio de Janeiro: Rosa
dos Ventos,1991. p. 182-191.
48
contando com 1.500 apresentações ininterruptas e várias remontagens,
tornando-se, mesmo, uma espécie de carro-chefe daquela companhia.66
Segundo os historiadores do teatro brasileiro, Forrobodó
inaugura um teatro essencialmente carioca por utilizar-se de gírias e vícios
de linguagem e por retratar um ambiente popular.67
A imprensa recebeu a peça dos dois novatos com entusiasmo
incomum. Talvez isso se tenha devido ao fato de os dois novos autores
estarem ligados de alguma forma ao jornalismo, o que fica claro na crítica à
estréia do espetáculo publicada no jornal A Imprensa, que saúda “nossos
inteligentes colegas da imprensa” pela “apresentação da interessante
burleta de costumes nacionais”68. Os jornais destacaram ainda a fidelidade
com que os autores retrataram certas partes da cidade e sua população.
A história da burleta é muito simples e passa-se na Cidade
Nova69. Começa o primeiro ato já com a confusão provocada pelo moleque
66
Ver a esse respeito RUIZ, Roberto. O teatro de revista no Brasil: do início à I Guerra Mundial . Rio de
Janeiro: Inacen, 1988. p.19; RUIZ, Roberto. Araci Cortes: linda flor. Rio de Janeiro:
Funarte:INM/Divisão de Música Popular, 1984. p.100-102; DINIZ, Edinha. op.cit.p 180-192;
CAFEZEIRO, Edwaldo e GADELHA, Carmem. História do Teatro Brasileiro: de Anchieta a Nelson
Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ:EDUERJ: Funarte, 1996. p. 344-345; PAIVA, Salvyano Cavalcanti de.
Viva o rebolado: vida e morte do teatro de revista brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 159.
O sucesso de Forrobodó foi tanto, que praticamente todos os livros ou ensaios que tratam do teatro
musicado popular brasileiro fazem referência a essa burleta, o que tornaria ainda mais extensa esta lista.
67
Talvez seja injusto com Arthur Azevedo essa afirmação, já que o brilhante comediógrafo maranhense
utiliza-se de neologismos e de expressões populares correntes à sua época nas revistas e burletas de sua
autoria - em menor escala, é verdade -, chegando mesmo a nomear duas de suas revistas por vocábulos
que inexistiam nos dicionários da época: O Bilontra e O Tribofe. Ver a esse respeito o ensaio Arthur
Azevedo e a língua falada no teatro, de Rachel Teixeira Valença, publicado na edição de O Tribofe . op.
cit. p.225-247.
68
Jornal O Paiz, coluna Artes & Artistas, p.3, 13 jun. 1912.
69
Nome dado à região do Saco de São Diogo aterrada pelo vice-rei Antônio Alves da Cunha, o Conde da
Cunha, que governou a cidade entre 1763 e 1767. Posteriormente, em meados do século XIX, foi ali
49
Sebastião que, ao descobrir um furto no galinheiro de seu patrão, com
gritos e apitando, chama o guarda-noturno. Soma-se a essa balbúrdia a
chegada de um ruidoso grupo para participar do baile do “Grêmio
Recreativo Familiar Dançante Flor do Castigo do Corpo da Cidade Nova”,
que é impedido de entrar, pois nenhum de seus membros está em dia com a
tesouraria do Grêmio. O guarda entra em cena e nem resolve o roubo das
galinhas, nem o rebuliço do grupo impedido de entrar no baile. Ainda
aparecem nesse primeiro ato a mulata siá Zeferina - porta-estandarte - e o
secretário do clube, o mulato Escandanhas. O ato termina com todos
entrando no Grêmio, já que, segundo Escadanhas, “a solução é entrá tudo
mesmo!” (p.6)
O segundo ato começa com os participantres do baile
dançando uma quadrilha70, interrompida pela chegada de Bico Doce,
“redator-contínuo” do Jornal do Brasil, que é entusiasticamente saudado
por todos, sobretudo pelo presidente do Grêmio, o português Barradas.
Devido à presença do ilustre convidado, Escandanhas - barbeiro e poeta - é
convocado a fazer um discurso de saudação, mas, confundindo-se, acaba
por ler um discurso fúnebre, anteriormente utilizado quando do falecimento
construído um canal que saneava os manguezais da área e os ligava ao mar, completando-se, assim, o
aterramento da região. Também conhecida por Mangue. Ver COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade
do Rio de Janeiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. 3a ed. p.336, 349, 364 e 390-394. A
região, ocupada por população de baixa renda, com grandes contigentes de migrantes, notabilizou-se
como localização dos bordéis do baixo meretrício, situação que perdurou até os anos 90 deste século.
70
Dança européia. Chegou ao Brasil no começo do século XIX e aqui adquiriu numerosas variantes.
Gradativamente deixou de ser uma dança das elites e popularizou-se. Hoje, restringe-se quase apenas aos
festejos juninos. Ver HORTA, Luiz Paulo. op. cit. p. 305.
50
do ex-tesoureiro do clube. Quem salva a situação é o guarda-noturno, que
recita um poema para a “seletra” assistência (p.8). Anuncia-se o banquete,
e todos os convivas saem cantando animadamente em desfile.
No terceiro ato chegam ao Grêmio o mulato valentão Lulu e a
francesa madame Petit-Pois, causando nova confusão entre os participantes
do baile, já que o capoeira Lulu já entra na gafieira batendo e desafiando os
presentes. Devido ao comportamento escandaloso de Lulu com a francesa,
seu Barradas propõe um desafio de versos improvisados do qual todos
participam. Antes de findar o baile é realizado um leilão de prendas que
resulta na disputa de Lulu com o guarda-noturno por um vidro de perfume.
Lulu saca da navalha, distribui golpes de capoeira e sai do Grêmio,
acompanhado de madame Petit-Pois, levando o perfume sem nada pagar.
No prosseguimento do leilão vai a sorteio um frango assado ofertado pelo
guarda-noturno. Diante da acusação do moleque Sebastião de que era o
guarda o autor do furto das galinhas, ele diz não ter roubado: apenas fizera
uma requisição.
A peça termina num grande maxixe final cantado e dançado
por todos.
51
2.1.2. Dança de Velho
Dança de Velho71- denominada pelos autores burleta de
costumes carnavalescos - foi escrita também por Luiz Peixoto e Carlos
Bittencourt, estreando no mesmo Teatro São José que já acolhera
Forrobodó, em 18 de fevereiro de 1916. Além de destacar que essa burleta
fora escrita com muito maior observação e espírito do que Forrobodó,
outro texto da dupla Peixoto-Bittencourt, a imprensa da época noticiava
que a cada espetáculo novas trovas - versos “improvisados” em cena pelo
ator - seriam incorporadas por Alfredo Silva, que interpretava o padre
Pecegueiro, no desafio à viola72.
A ação da peça se passa basicamente na pensão de dona
Vicentina, localizada no bairro do Catumbi 73, e o primeiro ato principia
com um ensaio pelo qual os hóspedes da referida pensão se preparam para
o carnaval que se aproxima, comandados pelo padre Pecegueiro, ao piano.
O copeiro da pensão - o moleque Bastião - ri da forma como eles se estão
71
O texto utilizado encontra-se na Divisão de Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional.
Gazeta de Notícias, coluna Gazeta Theatral, Rio de Janeiro, p.4, 26 fev. 1916. Essa mesma nota
aparece ainda na Correio da Manhã, coluna Theatro & Cinemas - notícias e reclames, Rio de Janeiro, p.
4, 27 fev. 1916.
73
Pequeno bairro carioca situado entre a Cidade Nova e o Estácio e próximo à Praça Onze. Devido a sua
posição na cidade abrigava a população negra que ia povoando os morros e encostas daquela área. Fazia
parte da região do Rio de Janeiro do início do século, nomeada pelo compositor e artista plástico Heitor
dos Prazeres como “Pequena África”. Também ali moravam grandes contingentes de imigrantes portugueses, espanhóis, italianos e ciganos.
72
52
preparando para o carnaval. Ao ser chamado de “atrevido”74, reage,
dizendo que eles estão profanando sua religião já que é “católico,
apostólico, carnavalesco” . Na cena seguinte, seu Ferreirinha - “mordedor
conhecido” - aplica um golpe nos rapazes da vizinhança para pagar a conta
da tinturaria e, em seguida, outro golpe no capitão Goiabada, militar
reformado do interior de Pernambuco, também hóspede da pensão. Depois
de uma “sessão de jogos de passatempo”75 da qual todos participam, o ato
finda com um desafio de cantadores entre o padre e sua afilhada, Floripse
e, depois, Ferreirinha, o capitão e dona Veridiana, irmã do padre.
O segundo ato inicia-se com Bastião colocando a mesa para os
hóspedes jantarem, enquanto acompanha o ensaio de seu clube
carnavalesco que se localiza em frente à pensão de dona Vicentina. Por
estar mais atento ao clube do que a seu serviço e por ser constantemente
chamado por seus companheiros para ir ensaiar, acaba gerando uma série
de confusões.
Os hóspedes da pensão estão na expectativa da saída de seu
bloco, e Bastião se oferece para ensaiá-los. Convoca para isso a portaestandarte de seu grêmio, a mulata Clóvis, para ensinar ao pessoal da
pensão “como é o tempero”.
74
75
O texto utilizado não apresenta indicação de páginas.
Jogos de salão, adivinhas, principalmente, “disputados” pelos personagens.
53
Após um número musical em que se apresenta, a mulata
começa a mostrar para siá Floripse - a sobrinha do padre, que é a portaestandarte do bloco da pensão - como devem ser as evoluções de uma
porta-estandarte, já que para isso são necessários “arte”, “engenho” e
“ciência”. Floripse diz que não se atrapalha ao dançar, pois já foi pastora
de Reis. O bloco sai, seguindo Bastião e Floripse, ficando na sala da
pensão apenas a mulata Clóvis.
A cena seguinte, outro número musical, é movimentadíssima,
com entradas e saídas de vários personagens atrás da mulata, cada um por
sua vez: o padre, o capitão, Bastião, Ferreirinha e Quinquim - namorado de
Floripse - todos passam rapidamente pela cena para cortejar a mulata.
Quando o bloco volta à sala, sempre comandado por Floripse e
Bastião, acontece uma rápida cena em que todos que teriam dado dinheiro
a seu Ferreirinha cobram dele suas dívidas. Ele, no entanto, mais uma vez
consegue escapar. O ato termina com outro grande número musical do qual
todos os presentes participam, entusiasmados.
O terceiro e último ato passa-se na sede do Club Carnavalesco
Inclusão do Amor. Para lá vai Ferrreirinha, dizendo-se representante da
imprensa, atrás da mulata Clóvis, a quem dá um par de brincos comprado
com o dinheiro que tirou dos hóspedes da pensão. Depois de fingir-se
ofendida, a mulata aceita o presente. Chega ao clube Bastião que, ao ver a
54
mulata com os brincos, passa-lhe uma descompostura, pois “o gigolô de
luxo não deve persencia a doação do objequito”.
Ferreirinha recebe da diretoria do clube o título de presidente
honorário. Ao verem pela janela o bloco formado para sair, os membros do
clube carnavalesco zombam do capitão Goiabada, que vai até o clube
tomar satisfações, só se acalmando quando vê Clóvis. Por fim, todos os
hóspedes da pensão entram no clube carnavalesco; ao verem Ferreirinha,
cobram o dinheiro que ele lhes deve.
A solução encontrada por
Ferreirinha é propor que o bloco e o clube desfilem juntos. Para isso
Bastião pede a Chimbirica, um dos membros do clube, que ensine ao
pessoal da pensão com se dança a “dança de velho”. O velho Chimbirica
começa a dançar e cantar, dizendo: “na mistura das canelas/ sou letrado,
sou bonzão/ ajunto os cabra nas pernas/ quando eles vê, tá no chão!”,
evidenciando, assim, que também nessa dança - e não só na da portaestandarte - são necessários “engenho, arte e ciência até”.
Todos saem em desfile pela platéia, e a rubrica do texto indica
a descida de um telão com a pintura de uma avenida à noite. Ao voltarem
ao palco, os personagens saúdam os veteranos do carnaval, as sociedades
carnavalescas Tenentes do Diabo, Fenianos e Democráticos, que entram no
palco e encerram o espetáculo com uma apoteose ao carnaval de 1916.
55
2.1.3. Morro da Favela
Escrita ainda em 1916 e novamente pela parceria Luiz
Peixoto-Carlos Bittencourt, Morro da Favela76estreou em montagem da
Companhia Nacional de Revistas e Burletas do Teatro São José, em 8 de
dezembro. As notícias que envolvem a estréia do espetáculo registram que
a burleta fora ansiosamente aguardada devido aos sucessos anteriores dos
autores. Merece atenção especial da imprensa a partitura musical da
burleta, criada por José Nunes, que foi, como Luiz Peixoto, sócio-fundador
da SBAT: “os sambas, batuques, caterêtes e fados, são inexcedíveis de
graça e causam intenso entusiasmo.”77Outro destaque feito pela imprensa é
a presença, no elenco do espetáculo, do “tenor Vicente Celestino”, no papel
de Chico Seresta.
No primeiro ato de Morro da Favela, os habitantes da
localidade78 participam da reinauguração da Venda São Borromeu, de
propriedade do português seu Carvalho. O povo da favela comparece ao
76
O texto utilizado para esta análise consiste em cópia manuscrita, sem indicação de páginas, encontrada
no acervo pessoal da Sra. Sara Halinck Machado, sobrinha-neta de Luiz Peixoto. Devido a seu precário
estado de conservação, só foi possível utilizar como fonte documental o primeiro ato da peça.
77
Gazeta de Notícias, coluna Gazeta Theatral - reclames. Rio de Janeiro, p. 3, 11 dez. 1916.
78
Primeira favela da cidade, localizada no morro da Providência, no bairro da Gamboa, zona portuária
carioca, habitada pelos soldados negros vindos da Guerra de Canudos, a quem foi permitida,
informalmente, a ocupação de terrenos nas encostas desse morro. O termo favela, que deu nome à
localidade, e, mais tarde, a esse tipo de ocupação habitacional, veio também da Bahia com esses soldados.
Ver CARDOSO, Elizabeth Dezourt. et alii. História dos Bairros - Saúde, Santo Cristo,Gamboa. Rio de
Janeiro: João Fortes Engenharia: Index,1987. p. 122.
56
evento para comer e beber de graça, mas o proprietário resiste em servir a
todos. O mulato Dorniso lembra então ao português que ele herdara tanto
o negócio como a mulher do falecido vendeiro, não podendo, assim,
contrariar a comunidade do morro. O mulato ainda comunica a todos os
presentes que
o desordeiro Pulo de Onça fora absolvido, e a mulata
Cleópatra, companheira do famoso valentão, é saudada por todos.
Sob o consenso de que é preciso comemorar a boa notícia,
Chico Seresta, violeiro do lugar, puxa um samba que é acompanhado por
todos, encerrando-se, assim, esse ato.
2.1.4. Flor do Catumbi.
A burleta Flor do Catumbi79 - definida pelos autores como
“burleta carnavalesca” - também é fruto da fértil parceria de Luiz Peixoto
com Carlos Bittencourt e, da mesma forma que os outros textos em análise,
teve sua montagem original realizada pela Companhia Nacional de
Revistas e Burletas do Teatro São José. Sua estréia ocorreu em 30 de
janeiro de 1918. Segundo os jornais, mais uma vez, a dupla de autores
registrou com grande observação o comportamento e o linguajar das
79
O primeiro ato da burleta Flor do Catumbi foi publicado no Anuário Casa dos Artistas. Rio de Janeiro,
p.74-78, 1978; o texto integral - com falhas - encontra-se no acervo particular da sra. Sara Halinck
Machado, em cópia datilografada, sem indicação de páginas.
57
camadas pobres da população. “A gíria de nossa malandragem é explorada
com o feitio pessoal que deu notoriedade a Luiz Peixoto e Carlos
Bittencourt”.80 É oportuno destacar que, apesar de o jornalista frisar que os
autores registram com propriedade as camadas populares do Rio de Janeiro,
isso é feito com o “feitio pessoal” que sempre distinguiu a produção de
ambos; assim, fica claro, a meu ver, que existe muito mais uma
reelaboração dos tipos encontrados na tradição cômica - como foi discutido
no primeiro capítulo desta dissertação - do que exatamente um “retrato fiel”
desses tipos.
O primeiro ato da peça passa-se à entrada de um “circo de
cavalinhos”, montado próximo ao ponto final de uma linha de bonde
elétrico, em noite de função. Numa espécie de desfile de tipos, encontramse à porta do circo três vendedores: uma baiana com seu tabuleiro de
quitutes, um menino vendendo empadas e um vendedor de refrescos.
Esperam para mercar seus produtos aos espectadores que saem do circo
aproveitando o intervalo do espetáculo. Aparecem, então, Barsamão,
contínuo do Senado Federal; Lagartixa, o guarda da área; e Dargiso,
contínuo do Jornal do Brasil. Os três estão apaixonados pela aramista do
circo, justamente, a mulata Flor do Catumbi. Dargiso diz que a mulata é “a
Sara Bernarda, a Lenora Dúzia do arame”. Quando os outros dele indagam
80
Jornal O Paiz, coluna Artes & Artistas, Rio de Janeiro,p.3, 30 jan.1918.
58
onde aprendera a falar assim, ele responde que fora lendo o jornal em que
trabalha e completa: “puro Paulo Barreto”. Todos, porém, sabem que é
inútil cortejar Flor do Catumbi, porque o quitandeiro já conquistara a
mulata com seu dinheiro, algo que eles não têm. Os três se apresentam,
então, em número musical, no qual cada um destaca suas características.
Assim que os personagens voltam para o interior do circo,
chega o bonde trazendo Zé Fidelis Teles de Meireles, o quitandeiro
português. Ele vem discutindo com o condutor - chamado de 420 - que lhe
cobra o transporte das flores que vem carregando. Depois da intervenção
do guarda, o soldado Lagartixa, Zé Fidelis é obrigado a pagar a cobrança,
entrando afobado no circo. Condutor e guarda dividem, então, o dinheiro
tirado do português. Finalmente, o condutor também se dirige ao interior do
circo a fim de ver, ele também, Flor do Catumbi.
Entram em cena Rolinha - presidente do “Clubio Carnavalesco
Fios do Vurcão de Ouro das Floresta de Prata do Catumbi”- e seu filho,
Xuxu. Rolinha vem preocupado em conseguir nova porta-estandarte para
seu rancho. O português sai apressado do circo, ansioso por arranjar
alguém que entregue, em seu nome, as flores trazidas para Flor do
Catumbi. O condutor oferece-se para fazê-lo mediante uma gorjeta. Antes
de voltar ao circo, o condutor diz, à parte, que vai entregar as flores, mas
em seu nome.
59
A baiana sugere a Rolinha que peça licença ao português para
que Flor do Catumbi substitua a porta-estandarte de seu rancho. Zé Fidelis
responde que quem decide é a própria mulata.
Findo o espetáculo no circo, todos saem, esperando
ansiosamente Flor do Catumbi. O condutor divide as flores tomadas do
português entre ele, Dargiso, Barsamão e Lagartixa. Chega, triunfal, a
mulata Flor do Catumbi e se apresenta cantando. Todos a rodeiam,
apresentando-se e dirigindo-lhe galanteios. Quando Zé Fidelis reclama de
tanto assédio, a mulata lhe diz que não se incomode, pois é tudo
“platônico”. O ato finda com todos subindo ao bonde, que parte com os
personagens cantando.
O segundo ato da burleta desenvolve-se na quitanda de Zé
Fidelis, que agora mora com Flor do Catumbi. Ela deixa claro que só está
vivendo com ele por causa do dinheiro e resiste até a fazer carinhos no
português.
Depois que Zé Fidelis sai da venda, Rolinha, seguido de
Barsamão, Lagartixa e 420, chega para falar com a mulata. Impaciente
com o longo discurso de Barsamão - o orador oficial do clube -, o condutor
toma a palavra e convida a mulata para porta-estandarte do rancho. Depois
que ela aceita a incumbência, os quatro fazem novo pedido: transferir a
sede do clube para a quitanda, pois haviam sido despejados da antiga sede
porque estavam com o aluguel atrasado. Fica decidido, então, que, apesar
60
de Zé Fidelis, o rancho vai mesmo para a venda. Começam a arrumar a
nova sede.81 O segundo ato termina com um samba “improvisado”, cantado
em desafio pelos presentes.
No terceiro ato a cena representa a Avenida Central82 em dia
de carnaval. Rolinha e Barsamão estão esperando ansiosos os outros
membros do cordão. Rolinha reclama, dizendo que, depois que Barsamão,
Dargiso, Lagartixa e 420 começaram a cortejar Flor do Catumbi, se
esqueceram das obrigações para com o clube carnavalesco. Entram em
cena o condutor 420, depois Lagartixa e, por fim, Zé Fidelis, anunciando
que a mulata não irá desfilar: está aborrecido com o assédio a que a estão
submetendo e, por isso, proibiu-a de sair no carnaval. Chega Dargiso,
dizendo que o cordão já se aproxima.
Entra em cena Flor do Catumbi, e Zé Fidelis exige satisfações,
já que a deixara em casa, proibida de desfilar83. A mulata não só avisa que
está largando Zé Fidelis, como também que não irá desfilar no rancho, mas,
sim, no préstito dos Democráticos, e sai.
81
Infelizmente, devido a uma falha de quatro páginas existente na cópia de que disponho, a presente
sinopse apresenta uma lacuna no segundo ato da burleta, que não compromete, entretanto, sua análise
para o propósito que almejo.
82
Como se sabe, a Avenida Central foi considerada um marco da reforma urbanística que o prefeito
Pereira Passos empreendeu no Rio de Janeiro: uma avenida ampla, nos moldes dos boulevards
parisienses, que cortava o Centro da cidade, de mar a mar. Mudou de nome para Avenida Rio Branco em
1912. É possível supor que os autores utilizem o antigo nome do logradouro não só pelo fato de ele ainda
estar vivo na memória da população, como ocorre em casos semelhantes ainda em nossos dias, mas por
uma tentativa de colaborar, de alguma maneira, com a preservação do passado.
83
Nesse momento da cena, o português invoca para si a qualidade de presidente honorário do rancho, o
que faz com que seja deduzido que foi essa a maneira de convencê-lo a permitir que a sede do clube fosse
transferida para sua quitanda, completando-se assim, possivelmente, a lacuna da falha encontrada na
cópia do texto que serviu de material documental para esta análise.
61
Um a um, e sempre anunciando, todos desmaiam. São
“acordados” pela chegada da charanga do grêmio, dirigida por um italiano.
Segue-se uma cena em que os personagens tentam organizar o desfile.
Depois de rápido ensaio com a banda, começam a cantar o hino do cordão,
passando a desfilar pela platéia do teatro. A peça acaba com uma grande
saudação às três grandes sociedades carnavalescas de então - os Tenentes
do Diabo, os Fenianos e os Democráticos - que vêm à cena para realizar a
apoteose final.
2.1.5. Saco do Alferes
A burleta Saco do Alferes84 escrita por Luiz Peixoto, estreou
no mesmo Teatro São José, em montagem da Companhia de Paschoal
Segreto, em 24 de maio de 1918. É o único, entre os textos que analisei,
escrito inteiramente por Luiz Peixoto. Apresenta forte unidade em relação
às demais burletas estudadas. O jornal O Paiz destacou o enorme sucesso
alcançado pelo espetáculo: “É incontestável que a famosa burleta de
costumes cariocas (...) conseguiu suplantar o sucesso alcançado pelas suas
congêneres, pois, todas as noites é freneticamente aplaudida.”85
84
85
O texto utilizado encontra-se na Divisão de Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional.
O Paiz, coluna Artes & Artistas, Rio de Janeiro, p. 5, 26 mai. 1918.
62
O primeiro ato da peça tem lugar na alfaiataria de Bidungas,
mulato que além de alfaiate é o cabo eleitoral local. Chegam, então, o
capitão Valadão - maestro compositor e doutor em ervas - e o dono do
hotel e botequim do Saco do Alferes86, o português Pereira. Os três estão
ocupados com os preparativos da recepção do coronel Zé Trindade, que
vem do interior para candidatar-se a deputado. Chega à alfaiataria o doutor
Neném, a fim de encomendar um fraque, e se junta aos demais para tentar
encontrar local adequado à recepção. Quando o capitão Valadão sugere a
casa do padre como local ideal para festa, doutor Neném recusa-se a aceitar
a idéia, pois o pároco não aprova seu comportamento como “o homem das
mulatas”(Ato I, p. 4).
O padre, dona Catarina, dona Zulmira e um coro de filhas de
Maria também vêm à alfaiataria com o objetivo de recolher donativos para
a festa de São João. Acabam decidindo conjuntamente que a recepção ao
coronel do interior será mesmo na casa do padre, desde que cada um
auxilie com alguma doação para o baile.
Entra em cena, recitando, o mulato Arnesto - “fenomis da
literatura indígena, maior glória do Saco do Alferes”(Ato I, p.7) -, que
também é convocado para a festa. A figura triste e doentia do mulato,
86
Nome de antiga praia localizada no bairro de Santo Cristo, zona portuária carioca, desaparecida com as
reformas urbanísticas e a modernização do porto realizadas no início deste século. Ver CONCEIÇÃO,
Elizabeth Dezouzart. op cit. p. 38-39,102-103 e 143.
63
aliada a seu “talento” em versejar, causa entusiasmo entre as mulheres
presentes.
O ato finda com a mulata Benvinda, acompanhada por
Bidungas, cantando um samba em desafio.
O segundo ato da burleta desenvolve-se na casa do padre,
durante a festa do coronel Zé Trindade. Todos estão entusiasmados com a
recepção, e até mesmo as três mulatas que vivem com o doutor Neném Encrenquinha, Benvinda e Graciosa, estão presentes. Chega, enfim, o
coronel, que já entra reclamando da cidade.
Antes de saírem para o
almoço, seu Bidungas, o cabo eleitoral local, convence o coronel a lhe
entregar todo o dinheiro que trouxera, para com ele financiar as despesas de
campanha. Vem também à casa do padre o poeta Arnesto, que, apresentado
ao coronel como “o Olegário Mariano do Saco do Alferes”(Ato II, p.10),
logo é convidado a recitar um de seus versos. A festa continua com uma
quadrilha dançada por todos e marcada pelo padre, interrompida pelo
barulho de louça quebrando que vem da cozinha. Rosa, a cozinheira negra
do padre, entra na sala reclamando do assédio do doutor Neném, o que
provoca a revolta das mulatas. As três vão embora, dizendo a Neném que
está tudo acabado, porque, até três, estava tudo bem; mais de três era “fora
da escrita”(Ato II, p.13). A comemoração termina com uma aclamação ao
candidato Zé Trindade, que canta um samba, e encerra-se o ato.
64
O terceiro ato transcorre no adro da igreja local durante a festa
de São João. As mulatas que viviam com o doutor Neném estão agora com
seu Pereira, capitão Valadão e seu Bidungas. Dona Catarina, a empregada
do padre, e o coronel Zé Trindade flertam. Também aparecem namorando
Arnesto e Zulmira. Durante todo o ato o coronel procura saber o resultado
das eleições, mas é continuamente ludibriado por alguém que desconversa
e se afasta. Enquanto estão todos entretidos, vendo um balão subir,
Bidungas, Valadão e Pereira aproveitam-se da distração do coronel e
tiram-lhe o relógio, a carteira e o alfinete de gravata. Quando o coronel,
enfim, percebe que foi enganado, já é tarde. O ato e a burleta terminam em
grande maxixe final.
2.1.6. República de Itapiru
A burleta República de Itapiru, escrita por Luiz Edmundo e
Luiz Peixoto, estreou no Teatro São José, em montagem da Companhia
Nacional de Revistas e Burletas da Empresa de Paschoal Segreto, em 20 de
setembro de 1919. É a última das burletas dessa fase de Luiz Peixoto
A imprensa, mais uma vez, recebe a peça como sucesso,
destacando, principalmente, a qualidade dos atores da montagem e a
vivacidade do texto: “Desta vez este objetivo (fazer rir) foi plenamente
65
atingido, quer pelos artistas, quer pelos autores visto que o público riu a
bom rir.” 87
O primeiro ato da burleta passa-se na casa do mulato
Marcolino, que, em dia de festa, ensina à mulata Guiomar um novo passo
de dança, estando todos os presentes atentos à evolução dos dois. Com a
chegada de Unha Encravada, o guarda da área, Marcolino mostra sua casa
- “galçoniere, chatô em francês”(p.5): um sofá que não pode servir de
assento, pois está pintado de fresco, e um piano que teve suas cordas roídas
por cupins, transformado em “um móvel de luxo”, usado como guardavestido. Entra na festa o mulato Caramujo, acompanhado de um
marinheiro americano. Em homenagem ao “ilustre subito de Wirso”(p.10)
os mulatos cantam um ragtime88, cuja letra utiliza-se de palavras do idioma
inglês, sem, contudo, apresentar sentido algum. Depois da música,
Marcolino, Florêncio, Caramujo e Guiomar discutem sobre como
reestruturar o grêmio carnavalesco local, já que estão sem dinheiro.
Marcolino tem uma idéia para conseguir a quantia necessária à
reorganização do bloco, mediante logro impingido a seu Sopas, o português
dono da carvoaria. O ato termina com um samba cantado em desafio pelos
presentes.
87
Correio da Manhã, coluna Theatros, p.6, 21 set. 1919.
Ritmo popular norte-americano, de origem negra, que se desenvolve no princípio do século XX. Teve
no compositor Scott Joplin seu maior representante. Ver HORTA, Luiz Paulo. op. cit. p. 309.
88
66
O segundo ato da burleta ocorre na carvoaria de seu Sopas e
começa com um coro de cozinheiras cantando a péssima qualidade do
carvão vendido por seu Sopas. Sopas dirige a carvoaria com mão de ferro,
destratando empregados e cozinheiras, reclamando de todos. Diz ser
impossível a um português dar conta de tantas mulatas juntas. Com a saída
do coro, um dos empregados da carvoaria, o jovem português Cornadas,
pede ao patrão sua demissão, pois não quer mais ser submetido a tantas
humilhações. Seu Sopas diz-lhe que só trata assim aqueles por quem tem
mais consideração e encerra a conversa aumentando o salário de Cornadas.
Entra na carvoaria uma comissão formada por Marcolino, Caramujo e
Florêncio. Este último explica a Sopas que o Distrito Federal se dissolvera
em novas repúblicas - “Maxambomba é a República da Maxambomba;
Cascadura é a República de Cascadura”(p. 21) - tendo sido proclamada a
República de Itapiru89. Além disso, Sopas fora eleito, por unanimidade, o
presidente da nova república. O português adere entusiasticamente à idéia e
transforma a carvoaria em sede provisória do governo. No entanto, vem à
carvoaria Unha Encravada, para comunicar a Sopas que o comissário dera
ordens para que ele melhorasse a qualidade do carvão, senão iria parar na
cadeia. Sopas fica indignado, diz que vai prender o policial, mas, antes que
89
Itapiru é o nome de uma rua situada no bairro carioca do Rio Comprido. Luiz Peixoto, em sua obra, irá
utilizar mais uma vez a citação da rua. Ver seus poemas humorísticos Bailarico e Passatempo. In:
PEIXOTO, Luiz. Poesia. Rio de Janeiro: EBAL, 1964. p. 25 e p. 51, respectivamente.
67
o logro seja percebido, os três mulatos conseguem que Unha Encravada se
dê conta do truque e colabore com eles. Sopas, então, nomeia seu
ministério: Florêncio, ministro do Exterior; Marcolino, ministro da
Fazenda; Unha Encravada, ministro da Guerra; e até Cornadas recebe o
cargo de “Inspetor Geral dos Mictórios Públicos da República de Itapiru”
(p. 28). Sopas entrega as chaves do cofre da carvoaria a Marcolino e
convoca todos para uma recepção oficial em sua casa. O ato termina com
um desafio cantado por Caramujo, Marcolino, Florêncio e Unha
Encravada.
O terceiro ato da peça desenvolve-se na casa de Sopas,
começando com um desfile dos manifestantes, Caramujo e Guiomar à
frente, em honra ao “presidente” Sopas, que recebe, solenemente, a faixa
presidencial, a cartola e a sobrecasaca das mãos de Guiomar. Sopas
apresenta a todos suas duas mulheres: Maria Tição, negra, mãe de Palmira,
e Maria das Trouxas, portuguesa, mãe de Anicas. Quando todos saem para
beber, Caramujo e Florêncio voltam à sala com o propósito de roubar os
objetos de valor da casa de Sopas, enquanto Unha Encravada está
“operando na cozinha”(p. 37). Durante o jantar chega o comissário de
polícia para prender Sopas, mas Florêncio consegue despistá-lo, dizendo
que República de Itapiru é o nome do grêmio carnavalesco, e que Sopas é o
presidente da agremiação.A burleta finda com um grande maxixe.
68
2.2. Instrumentos de comicidade presentes nas burletas de Luiz Peixoto
Embora estejam presentes elementos de outros estudos90 para a
análise dos instrumentos cômicos utilizados nas burletas em questão, será
utilizada como referência básica a obra do crítico literário russo Vladimir
Propp, Comicidade e Riso91. Devido ao caráter classificatório de sua
pesquisa, é o estudo que melhor registra e discute as situações cômicas
presentes nas burletas de Luiz Peixoto. Nesse livro o autor se propõe a
estudar as várias formas de comicidade relacionadas, principalmente, ao
fenômeno artístico. Para tanto, Propp analisa uma longa série de teorias
ligadas à questão, avaliando a pertinência e até mesmo os critérios
utlizados por esses estudos.
Começa, então, por definir a qualidade do riso mais fortemente
correlacionada ao cômico artístico e conceitua o que seria o “riso de
zombaria”: o riso ligado à sátira e às várias formas da ridicularização. É
importante destacar que o objetivo primordial do trabalho de Propp não é
realizar uma psicologia do riso, mas refletir sobre a ocorrência do cômico
na literatura, suas relações artísticas e sua manifestação na esfera literária:
90
BAKHTIN, Mikhail. op. cit.; BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1987; FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973. A questão do
cômico foi trabalhada durante a preparação desta dissertação sobretudo nos encontros coletivos da
pesquisa integrada Um estudo sobre o cômico: o teatro popular no Brasil entre ritos e festas.
91
PROPP, Vladímir. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1992.
69
“Nós
começaremos
pelo
estudo
da
derrisão. (...) Entre todos os possíveis aspectos
do riso nós escolheremos apenas um, para
começar, e este será o riso de zombaria.
Justamente este e, conforme foi visto, apenas
este aspecto do riso está permanentemente
ligado à esfera do cômico. Basta notar, por
exemplo, que todo vasto campo da sátira
baseia-se no riso de zombaria.”92
A partir dessas definições preliminares, Propp passa a verificar
em que condições se dá a ocorrência do cômico ligado à esfera do riso de
zombaria e constata que ele surge quando a manifestação de algum defeito
oculto se revela repentinamente. Contudo, para que o defeito manifestado
seja risível, é necessário que ele seja ridículo ou mesquinho93. O autor
passa, então, a analisar - em 14 capítulos distintos - as situações que
envolvem o surgimento do riso de zombaria, baseando-se, sobretudo, em
vasto material documental94.
92
Op. cit. p.28.
Op. cit. p.44.
94
As peças de Tchecov, Shakespeare e Molière; os contos e novelas de Gogol, a obra de Rabelais e
contos folclóricos russos.
93
70
A partir de suas classificações é que passarei a decupar as
situaçoes cômicas e os caracteres, para, finalmente, discutir os
personagens-tipo.95
2.2.1. A comicidade das diferenças
O ensaísta russo observa que “toda particularidade ou
estranheza que distingue uma pessoa do meio que a circunda pode torná-la
ridícula.”96 Isso se dá porque se torna risível aquilo que escapa à ordem
estabelecida e aceita pela maioria das pessoas de determinado meio:
“(...) A transgressão desse código não
escrito é ao mesmo tempo a transgressão de
certos ideais coletivos ou normas de vida, ou
seja, é percebida como defeito, e a descoberta
dele, como também nos outros casos, suscita o
riso.”97
95
Vladimir Propp analisa as seguintes possibilidades de ocorrência do cômico, todas ligadas ao riso de
zombaria: a natureza física do homem, as semelhanças, as diferenças, o homem com aparência animal, o
homem-coisa, a ridicularização das profissões, a paródia, o exagero, o malogro da vontade, o fazer
alguém de bobo, os alogismos, a mentira, os instrumentos lingüísticos, os caracteres, as inversões de
papéis; e ainda descreve outros tipos de riso: o bom, o maldoso, o alegre, o imoderado. Dessas várias
situações cômicas descritas e analisadas por Prop, utilizo-me apenas das que, a meu ver, podem ser
encontradas com mais contundência nas burletas de Luiz Peixoto.
96
Op. cit. p. 59.
97
Op. cit. p. 60.
71
O autor enfatiza que é essa a comicidade que a figura do
estrangeiro provoca: quanto mais destacada a diferença entre o estrangeiro
e as pessoas que o cercam, maiores são as possibilidades de riso.
Outra importante possibilidade cômica proporcionada pela
diferença estaria relacionada à moda ou às vestimentas de determinado
personagem em relação aos demais.
Nesse sentido, tem-se como o exemplo de comicidade das
diferenças mais presente nas burletas de Luiz Peixoto a figura do
estrangeiro. Cinco das seis burletas estudadas exploram, no entanto, o
diferencial do estrangeiro sobretudo pela linguagem: o sotaque e a
construção de frase dos portugueses. Vejam-se os personagens: seu
Barrradas, presidente do clube carnavalesco de Forrobodó; os vendeiros
seu Carvalho, Zé Fidelis Teles de Meireles e Pereira, de Morro da Favela,
Flor do Catumbi e Saco do Alferes, respectivamente; e o carvoeiro seu
Sopas e seu ajudante Cornadas, em República de Itapiru. Há ainda a
prostituta francesa madame Petit-Pois, também de Forrobodó; o italiano
Caparazzo, maestro da charanga de Flor do Catumbi; o padre turco, de
Saco do Alferes; e o marinheiro americano, de República de Itapiru.98
Outra diferença que produz efeito cômico nas burletas
chamadas carnavalescas é o uso de fantasias por parte dos personagens em
98
Voltarei a discutir a utilização de recursos cômicos na linguagem do personagem-tipo em Luiz Peixoto.
72
determinadas cenas festivas. Assim, vê-se o copeiro Bastião, de Dança de
Velho, montado em uma armação de aeroplano e vestido de príncipe com
peruca loura - o que faz com que padre Pecegueiro exclame em um
arremedo de latim: “Negrus oxigenatus est!”. As fantasias usadas durante o
desfile de carnaval do terceiro ato de Flor do Catumbi também são
utilizadas comicamente pelo autor. Esse mesmo processo de derrisão
provocado pela extravagância das roupas é utilizado em relação ao fraque
de gala com faixa presidencial que os impostores oferecem ao “presidente
da República de Itapiru”, o ludibriado português Sopas - na burleta de
mesmo nome ( p. 32, 39, 40, 43).
2.2.2. A ridicularização das profissões
Propp destaca que a possibilidade de ridicularização de
determinada profissão ocorre quando a representação da atividade se detém
principalmente no aspecto exterior e mecânico que a envolve: tanto maior
será a possibilidade de riso quanto menos mental ou espiritual for a
profissão escarnecida.
Outra forma de se tirar partido cômico das atividades
profissionais seria, segundo o autor, explorar o desconhecimento que o
profissional apresenta ou o descrédito que tem em relação a seu ofício.
73
Medicina, direito, ministério religioso e ensino seriam as atividades
profissionais que mais figurariam nesse tipo de recurso cômico.
No entanto, a comicidade de Luiz Peixoto explora com
particular ênfase outra profissão: a da vigilância, sempre ludibriadora ou
ludibriada99. Assim, na burleta Forrobodó, o guarda que deixa de registrar
o furto das galinhas porque se encerrara seu horário de ronda, ao fim da
peça, se revela como o próprio autor do furto. Outro soldado ridicularizado,
porque, igualmente, não exerce de forma conveniente sua função, é o
soldado Lagartixa, de Flor do Catumbi, sempre conivente com os engodos
perpetrados contra o português Zé Fidelis Teles de Meireles. Em República
de Itapiru, o guarda Unha Encravada é apresentado aos companheiros por
Marcolino como alguém com quem tem “laços inquebrantáve”, na medida
em que os dois “comero junto três mês de Correção”(p. 5). Deve ser
lembrado ainda que ele ajuda a aplicar o golpe no carvoeiro. Outro militar
apresentado de forma cômica é o capitão Goiabada, da burleta Dança de
Velho; militar nordestino que chama todos de “sua besta”, vive cochilando
e se paramenta com farda de gala para o desfile carnavalesco.
“Categoria profissional” também explorada nas burletas de
Luiz Peixoto é a dos padres. Em Dança de Velho, o padre Pecegueiro
99
Mesmo não figurando no elenco indicado por Propp, os profissionais ligados à segurança e à vigilância
mantêm com a comunidade uma relação de poder que os torna semelhantes àqueles listados pelo crítico
russo.
74
encanta-se, da mesma forma que todos os demais homens, pela mulata,
chegando mesmo a fazer-lhe propostas. Na burleta Saco do Alferes, o
vigário turco comanda a quadrilha na festa em homenagem ao coronel que
vem do interior, pois era ele que puxava as quadrilhas dançadas em certa
casa suspeita (Ato II, p. 11).
Cargos que exigem certo respeito e conhecimento são
igualmente ridicularizados. Ainda na burleta Saco do Alferes, o doutor
local é louco por mulatas e mete-se em várias situações ridículas devido a
essa característica. Por sua vez, quando o coronel do interior vem à capital
para concorrer a uma vaga na Câmara Federal e diz que não sabe ler, um
personagem sentencia: “Não sabe ler? Tá eleito deputado, vai ver!” (Ato II,
p. 5). Da mesma forma e como que resumindo, em República de Itapiru, o
português Cornadas canta assim: “Bem minha abó me dizia/ vai pru Brasil
estupoire,/ Que inda hás de boltar um dia/ Ou corunel ou dotoire!”(p. 28).
2.2.3. O exagero cômico
Lembrando que o exagero só é cômico quando evidencia
defeito ridículo, Propp define três formas fundamentais de sua ocorrência: a
caricatura, a hipérbole e o grotesco.
A caricatura seria o exagero de uma particularidade do
caricaturado - podendo essa característica ser física ou espiritual - de modo
75
a torná-la mais relevante e significativa do que as demais. A caricatura
sempre deforma um pouco o objeto caricaturado100.
A hipérbole seria a exacerbação da caricatura. Exagera-se o
todo e não apenas um aspecto do objeto, e “é ridícula somente quando
ressalta
as características negativas e não as positivas.”101 O crítico
literário russo ainda destaca o fato de a hiperbolização positiva ser
instrumento utilizado no processo de transformação em herói de
determinados personagens nas literaturas populares.
O grotesco é o grau mais elevado de exagero. Nele, o objeto é
exagerado de tal forma e em tal grau de elevação, que se torna monstruoso,
extrapolando, assim, a realidade e atingindo o fantástico. Contudo, não é
apenas o exagero que caracteriza o grotesco, já que ele ultrapassa os limites
da realidade. O autor ainda lembra que, como já foi mencionado sobre
outras manifestações do cômico, também no grotesco o risível só ocorre em
presença do desvendamento de algum defeito.
Nas burletas de Luiz Peixoto encontra-se caso único de
exagero - o grotesco - com apelo cômico. Em República de Itapiru, para
demonstrar a capacidade de determinado músico, o personagem Florêncio
relata uma cena em que esse instrumentista, solando, teria “arrebentado”
mais de 17 pistons. Para rebater tamanho exagero, Unha Encravada conta a
100
101
Op.cit. p. 89.
Op. cit. p. 90.
76
história de outro pistonista que, com um solo tocado durante a procissão do
Senhor Morto, fez os padres, as beatas, as virgens, os homens do andor
chorarem tal a melancolia conseguida pelo músico em seu instrumento: “
O pistão de seu Borge era tão triste, tão choroso, que o Senhô Morto que
vinha carregado, não teve dúvida, se assentou-se no andô, oiô pra seu
Borge, cruzou os braço e disse: seu Borge não toca mais pistão...”(p. 6,7).
2.2.4. O malogro da vontade
Segundo o crítico russo, quando ocorre a inesperada frustração
de algum desejo ou vontade humana, sem que aconteça alguma desgraça e
desde que esse revés esteja relacionado a alguma situação corriqueira ou
cotidiana e, igualmente, seja provocado por uma banalidade, esse malogro
suscita o riso. A situação será cômica na medida da revelação de falha ou
mesquinhez do indivíduo submetido à frustração.
Ainda pode ocorrer o malogro da vontade por causas internas,
tal como falha na previsão dos acontecimentos ou distração da pessoa.
Também aqui o desvendamento do caráter oculto - e negativo - do
personagem envolvido reforça a situação cômica.
Outra ocorrência importante da reversão de expectativas, de
forte apelo cômico, se dá quando a força das circunstâncias leva o
77
personagem a agir contra sua vontade pessoal, revelando a inconsistência e
a fragilidade de suas convicções e argumentos.
O malogro da vontade também pode ser suscitado por algum
defeito físico ou psicológico - a surdez, a gagueira, etc. - do personagem
envolvido, que pode ocasionar tanto mal-entendidos como desdobramentos
inesperados.
Na burleta Flor do Catumbi, o personagem Apolonis fica
incumbido de buscar na Estação do Encantado102 as partituras das músicas
a serem tocadas no carnaval. Como está bêbado, adormece, acordando
apenas na estação seguinte. Toma o trem de volta, mas tal é sua
embriaguez, que adormece mais uma vez, perdendo novamente a estação
certa. Depois de outra frustração, toma o trem de volta para a Central sem
as músicas: seu dinheiro acabara.
Outra situação de malogro da vontade ocorre na burleta
República de Itapiru quando os malandros, após roubarem os talheres e um
despertador durante a festa em homenagem ao “novo presidente da
república”, na casa de Sopas, têm seu furto descoberto porque o
despertador que estava no bolso de um deles, dispara.
2.2.5. O fazer alguém de bobo
102
Subúrbio da linha da Estrada de Ferro Central do Brasil, onde antigamente havia uma estação da
referida linha férrea. Fica entre os subúrbios de Engenho de Dentro e Piedade.
78
Para definir as situações de trapaça e engodo que tenham
possibilidades cômicas, o autor russo recorre a um substantivo em seu
idioma natal que, segundo nota dos tradutores, se refere ao ato de fazer
alguém de bobo, engabelar, não havendo, segundo os tradutores,
correspondente adequado na língua portuguesa.
Sustenta Propp que essa ação - o ludíbrio - é o princípio
fundamental de todas as comédias de intriga: “o antagonista vale-se de um
defeito ou descuido da personagem para desmascará-la para escárnio
geral.”103 O efeito cômico pode ser ainda ampliado se a vítima do engodo
for um trapaceiro: trata-se do caso clássico do “trapaceiro trapaceado”.
Como burletas que são, em todos os textos de Luiz Peixoto
que estão em análise as situações de ludíbrio ocorrem, sendo, mesmo, a
base da trama de uma delas, República de Itapiru. Em Forrobodó, durante
toda a peça, o moleque Sebastião lembra ao guarda que deve tomar
providências acerca do furto das galinhas. Ao final da burleta fica-se
sabendo que o autor dos furtos foi o próprio guarda. Em Dança de Velho,
Ferreirinha passa os dois primeiros atos tomando dinheiro emprestado aos
outros hóspedes da pensão. Finda a peça, o grande ludibriador, mesmo
cercado pos seus credores, cria novo estratagema e não paga a ninguém.
Em Flor do Catumbi, o português Zé Fidelis paga ao condutor do bonde
103
Op. cit. p. 100.
79
para entregar flores à mulata Flor do Catumbi, mas o improvisado
mensageiro as entrega em seu próprio nome. Em Saco do Alferes,
Bidungas, Valadão, Pereira e até mesmo o doutor Neném tiram dinheiro do
“caipira” coronel Zé Trindade, o ludibriado típico.
Em República de Itapiru o golpe aplicado em Sopas a fim de
conseguir dinheiro para o grêmio carnavalesco torna-se mais eficazmente
engraçado porque o personagem é um carvoeiro desaforado, que explora
seus empregados e vende cascalho pintado de pixe por carvão.
2.2.6. Os alogismos
Destaca Propp que também a estupidez e a falta de inteligência
podem causar o riso, desde que ocorra o desmascaramento da tolice do
sujeito ante o espectador ou leitor. Nos casos em que isso se dá, a situação
cômica é classificada pelo autor russo como alogismo: “a incapacidade de
observar corretamente, de ligar causas e efeitos (...)”.104 Da mesma maneira
que as outras formas de situação cômica, o alogismo só existe se
manifestado por meio da exposição de uma estultice antes camuflada.
O autor ressalta ainda que em toda situação em que exista o
contraste entre meio e finalidade, isto é, em que são empregados meios
104
Op. cit. p. 107.
80
inadequados ou descabidos para a consecução dos fins almejados, será
suscitado o riso.
Em Flor do Catumbi, no referido episódio da frustrada viagem
de trem do personagem Apolonis, ele conclui sua história dizendo ter ficado
mais de duas horas dentro do trem na estação terminal da linha férrea
esperando outras estações. Quando indagado por que esperava outras
estações depois da Central - a última estação da linha da Estrada de Ferro
Central do Brasil -, Apolonis assim responde: “É que eu viajei de costa...”
Na burleta Saco do Alferes, o poeta Arnesto, ao chegar à casa
do padre turco para a festa em homenagem ao coronel Zé Trindade,
pergunta ao empregado do padre: “Informe-me em primo locus se os
convivas se entregam ainda às função gastronômica?”.
O empregado do padre, diante dessa frase, responde: “O
senhor também é turco? Vou chamá o padre!”(Ato II, p.9). Aqui fica
evidente não só a estupidez do empregado do padre, que não entende a
frase excessivamente rebuscada de Arnesto, como também o uso peculiar
da linguagem empreendido pelo poeta, o que caracteriza o personagem-tipo
do mulato pernóstico.
2.2.7. Os instrumentos lingüísticos da comicidade
81
Na análise dos instrumentos lingüísticos da comicidade,
Vadimir Propp começa por definir que a linguagem só terá apelo cômico se
refletir características da “vida espiritual” de quem fala. E destaca as
formas de utilização da língua como recurso de zombaria: os trocadilhos,
os paradoxos, o discurso sem sentido ou sem conteúdo e a eloqüência
vazia, o uso inadequado ou errado da língua, os personagens de nomes
ridículos.
O trocadilho ou jogo de palavra ocorre quando é substituído o
sentido da palavra pelo ouvinte, gerando com isso ou confusão, ou o
desmascaramento de um discurso inconsistente. Utilizado com argúcia,
pode transformar-se de inocente brincadeira em importante instrumento de
escárnio.
O paradoxo é recurso cômico que se caracteriza pelo fato de o
predicado de uma frase, aparentemente, contradizer o sujeito. O sentido
oculto expresso no paradoxo também revela a argúcia daquele que o
pronuncia. Quando o paradoxo é invonluntário, alerta o autor, sua
comicidade baseia-se, na verdade, em um alogismo.
O discurso é sem sentido quando as palavras são utilizadas
apenas como sons e sem lógica; o discurso sem conteúdo é caracterizado,
principalmente, pelo uso constante do lugar-comum; a eloqüência vazia
ocorre quando o excesso de palavras e, muitas vezes, uma espécie de
82
paródia de jargões profissionais denotam a falta de conteúdo do discurso.
Todos eles estão intimamente relacionados com quem os pronuncia: sua
ocorrência denuncia e caracteriza os personagens emissores.
Outro recurso lingüístico do cômico, que se aproxima dos
alogismos, dá-se pelo uso inadequado ou incorreto do idioma culto. Nesses
casos, os erros são cômicos quando expõem a falta de cultura ou de lógica
dos personagens que incorrem nessas faltas.
Os autores de obras cômicas ainda podem utilizar-se de nomes
ridículos como “um procedimento estilístico auxiliar que se aplica para
reforçar o efeito cômico da situação, do caráter ou da trama.”105
Sem dúvida, os instrumentos lingüísticos são os recursos
cômicos mais empregado por Luiz Peixoto e por seus co-autores nas
burletas estudadas. Para destacar o linguajar característico das classes
populares que retratava em seus textos, o autor utiliza-se de diversos erros e
vícios de linguagem, gírias, palavras de língua estrangeira faladas
erroneamente.
Ainda com intuito cômico, faz amplo uso de nomes ridículos
em seus personagens: Escandanhas da Purificação, madame Petit-Pois,
maestro Figueiredo Melodias Sustenido, capitão Goiabada, Chimbirica, Zé
Fidelis Teles de Meireles, Lagartixa, Rolinha, doutor Neném, Cornadas,
105
Op. cit. p. 131.
83
Unha Encravada, Maria das Trouxas e Maria Tição. Essa lista poderia ser
ainda mais extensa.
Faz uso também de jogos de palavras e do duplo sentido em
todas as burletas. Segundo o cronista Luiz Edmundo (parceiro de Luiz
Peixoto em República de Itapiru) esse grupo de escritores humoristas, do
qual tanto Edmundo quanto Peixoto fizeram parte e sobre o qual falei no
capítulo anterior, teria trazido esses recursos para o país, importando-os da
França106. São os chamados jeux de mots e double sens.
Os recursos do discurso sem sentido e da eloqüência vazia são,
de fato, característicos e mesmo formadores do personagem-tipo mulato
pernóstico. Em todas as burletas o recurso está presente, relacionado a esse
personagem-tipo, constituindo-o e contribuindo para estabelecer seu trajeto
no interior da trama. Esse personagem “não perde a ocasião de mostrá sua
curtura” - no dizer de um outro personagem da burleta Forrobodó (p.9).
Nessa burleta, aliás, o personagem do mulato pernóstico, Escandanhas da
Purificação, na cena crucial (p. 8) em que deveria discursar em
homenagem ao “representante da Imprensia” - o mulato Bico Doce -, troca
os discursos, escolhendo o texto errado em seu repertório sempre à mão.
Essa cena pode ser considerada emblemática para esse personagem-tipo, já
106
EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Conquista, 1957. 3o vol. p. 543545. Nesse trecho o cronista relaciona uma série de bricadeiras com palavras e trocadilhos, em voga entre
esses escritores.
84
que a tardia percepção de que o discurso estava fora do lugar gera confusão
e demonstra que, para ele, o ato de discursar é mais importante do que o
teor e o valor do próprio discurso.
Têm, ainda, grande relevância nas burletas estudadas os
discursos sem sentido. Normalmente esse recurso também está ligado ao
personagem-tipo do mulato pernóstico. Na burleta Flor do Catumbi, o
mulato Barsamão assim se dirige a Flor do Catumbi para convencê-la a ser
porta-estandarte do grêmio carnavalesco: “ Em 1997, isto é, doze ano e seis
mês depois de Cristo... nós afundemo o clube recreativo dançante... Em
1998 (...) nós arrecebia o burro do bronze que apoteoseou (...) a burra da
vitória contra nosso concorrente. Em 1999...”. Esse nonsense - com
proposital troca de datas estabelecida pelos autores, Luiz Peixoto e Carlos
Bittencourt - obtém reforço cômico quando utilizado por algum
personagem que procura se expressar em língua estrangeira. O exemplo
mais significativo desse procedimento humorístico presente nas burletas
encontra-se na letra de um ragtime cantado no primeiro ato da peça
República de Itapiru:
“Ai, gude bai, gude naite,/
Guive mi are iu/
Faive o cloqui ti / Forguete, minote, láite, /
85
Pauer xu, / Rosbife e wiscke dubliu. /
- No foquistrote sou muito estrépe... /
- Eu de prazê, até a baba me cae-me... /
- Eu me defendo num bão tu-estepe /
- Eu me agaranto num bão réquetaime...”
(p. 10, 11)
A utilização de língua estrangeira com fins cômicos,
transformando em puro nonsense a letra da música, tornará famosa uma
canção de Lamartine Babo de 1931, portanto, 12 anos depois da burleta de
Luiz Peixoto - a Canção para inglês ver.107
Outro recurso cômico da linguagem utilizado por Luiz
Peixoto, e não listado por Vladimir Propp, é o bordão. Trata-se de frase ou
expressão que caracteriza determinado personagem e alcança apelo cômico
devido à repetição contínua pelo mesmo personagem. Em todas as burletas
mais de um personagem faz uso de bordões.
Assim, em Forrobodó, o guarda-noturno a todo instante
repete a frase: “Não se impressione!”. Vale lembrar que, devido ao enorme
107
Informa Suetônio Soares Valença que já Noel Rosa - com o samba Não tem tradução - e Assis
Valente - com a marcha Good-bye - haviam satirizado a utilização de palavras em inglês que assolava o
Rio de Janeiro, principalmente depois da chegada do cinema falado na década de 1930, que popularizou
os ritmos e o idioma dos Estados Unidos entre nós. VALENÇA, Suetônio. Trá-lá-lá. Rio de Janeiro:
Funarte, 1981. p. 66-67.
86
sucesso alcançado pela burleta, se tornou bordão popular nas ruas do Rio à
época.
Em Dança de Velho, além do já citado bordão do capitão
Goiabada, que durante a peça chama todos de “suas bestas”, Chimbirica,
um dos músicos da charanga do grêmio carnavalesco, a quaquer pretexto
fala “Vamos beber a isto”.
Dessa relação de bordões, que também poderia ser mais longa,
gostaria de destacar o uso de um bordão em República de Itapiru, devido a
um novo jogo cômico que os autores dele conseguem extrair. Trata-se da
frase utilizada por Marcolino durante a aplicação do golpe em Sopas.
Sempre que é interrompida a falação de Florêncio, o responsável pelos
discursos usados para iludir Sopas, Marcolino chama a atenção dos demais
- a fim de garantir que Florêncio continue falando e, desse modo perpetrar
o engodo - com a seguinte frase: “Deixa o professô interpretá os nosso
sentimento.” Quando, ao fim da trama, o comissário de polícia indaga que
“fantochada” era aquela de República de Itapiru, Florêncio, para livrar-se
do crime, diz ser esse o nome do bloco carnavalesco do qual Sopas é o
presidente. O português reclama, sentindo-se traído e enganado e
Marcolino assim explica o mal-entendido: “O curpado é o professô que
tarves não soube interpretá os nosso sentimento.”(p. 43), desconstruindo o
87
bordão e com isso obtendo novo efeito cômico e nova exploração do
mesmo.
2.2.8. Os caracteres cômicos
“Qualquer traço de caráter negativo pode ser representado
comicamente graças aos mesmos meios com os quais se cria, em geral, o
efeito cômico.”108 Assim, Propp começa por definir a utilização cômica dos
caracteres. Citando Aristóteles, o autor russo acrescenta ser necessário
exagerar-se ligeiramente esse traço negativo para se produzir o efeito
cômico desejado; é o procedimento utilizado na caricatura.
Depois de descrever uma série de situações e de exemplos em
que
os
personagens
ridicularizados
são
negativos,
relaciona
as
possibilidades de derrisão que personagens positivos apresentam. Nesses
casos, a ocorrência do riso pode dar-se mediante contraste entre esses
traços e as situações que envolvem esses personagens, como otimismo
incurável frente a toda sorte de vicissitudes. Outros traços positivos que
podem ser utilizados para fins cômicos são a astúcia e a esperteza. Esse
tipo de recurso cômico é o encontrado nos servos das comédias antigas.
Principalmente porque, nesses casos, as tramas sempre opunham
antagonistas de caráter negativo a esses servos; de sorte que nessas
108
Op. cit. p. 134.
88
comédias “a vitória dá prazer ao espectador mesmo quando esta é obtida
com meios de luta não propriamente irrepreensíveis, conquanto eles sejam
engenhosos, astutos e atestem o caráter alegre de quem os usa.”109
A utilização de caracteres cômicos é especialmente importante
neste estudo, pois é constitutiva em textos estruturados a partir de
personagens-tipo, ou seja, a trama dos textos que fazem uso desse tipo de
personagem é por ele determinada.110 As situações que os envolvem e a
saída que para elas encontram, as possíveis combinações de tipos cômicos
e, até mesmo, o enredo desses textos devem levar em conta a existência
pregressa de personagens que neles são utilizados. Assim sendo, ao
escolher certos personagens-tipo para seus textos cômicos, os autores já
estão fazendo “escolhas” que determinarão seus enredos; ou, antes, a
seleção de personagens-tipo para um texto cômico condiciona as possíveis
situações que serão empregadas em sua estrutura dramática.
Além de ser condicionante da trama, o personagem-tipo
permite ao autor que dele faz uso - por meio de técnicas de reelaboração de
personagens de remota tradição - a identificação com personagens seus
109
Op. cit. p. 142. Lembro-me de um ditado popular nordestino utilizado por Ariano Suassuna para
auxiliá-lo na definição de seu personagem mais famoso, João Grilo, da peça O Auto da Compadecida
(1956): “A astúcia é a coragem do pobre.” (em palestra realizada na Fundação Casa de Rui Barbosa, na
cidade do Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 1996)
110
Deve-se compreender que essas tramas são básicas e comportam certa “elasticidade” para que se
possam adequar às possíveis combinações entre os personagens-tipo e suas histórias particulares.
89
contemporâneos, conseguindo, dessa maneira, o efeito de imediata empatia
com o público.
Ao longo do estudo das burletas de Luiz Peixoto pude verificar
que o autor reelabora e reconstrói personagens há muito existentes na
tradição cômica ocidental e, junto com outros autores ligados ao teatro
musicado carioca que têm procedimento idêntico, realiza uma tipologia
carioca de princípios do século XX.
90
2.3. O personagem-tipo na burleta de Luiz Peixoto
Os personagens-tipo presentes nas burletas de Luiz Peixoto
descendem de antiga linhagem presente em toda a tradição cômica
ocidental. Retomados e reelaborados em diversas ocasiões, esses
personagens teriam origem, segundo Rubem Rocha Filho, na farsa atelana:
“A farsa ou fábula Atelana, originária na
cidade de Atela na Campania, nos interessa
neste esquema de estudo porque seus atores
acabaram assumindo papéis fixos. Tornaram-se
estilizações de tipos definidos, criando a
primeira galeria de personagens pré-formados
de que temos notícia na dramaturgia ocidental.
Em função deles o espetáculo se desenvolvia a
partir de entrechos simples. Tal processo terá
farta descendência - o mais nobre e conhecido
representante é a Commedia dell‟Arte com sua
galeria de tipos eterna e universal.”111
111
ROCHA FILHO, Rubem. A personagem dramática. Rio de Janeiro: Inacen, 1986. p.32.
91
E quais seriam esses personagens, segundo Rocha Filho, os
“longínquos progenitores das máscaras italianas?”112 Basicamente a galeria
atelana compunha-se de seis personagens: Papus, um velho avarento e
libidinoso; Maccus, um tolo sempre enganado e surrado; Bucco, um
falastrão guloso; Dossenus, um ladrão presunçoso; Sannio, um gozador, e
Sileno Pappus, um velho tolo que posava de conquistador113.
Beti Rabetti, contudo, em texto que analisa O Doente
Imaginário, de Molière114, localiza na Comédia Nova grega a possível
origem
dessa
galeria
de
tipos
teatrais
cômicos,
transformados,
posteriormente, em Roma. Nesse ensaio, em que trata das reelaborações
empreendidas por Molière na tradição artística para escrever seus textos, a
autora destaca o fato de ser o cômico o meio mais adequado para a releitura
de acervos tradicionais. Nesse sentido, a utilização de personagens-tipo por
parte do comediógrafo francês, mais do que estar exclusivamente
relacionada a tipos “reais” da França seiscentista, remete-se a um exercício
de reelaboração adequadora a seu tempo; pela utilização desses
personagens tradicionais com “novos e modernos sentidos”, Molière
alcança “um contexto geral de verossimilhança”:
112
Idem. p. 32.
Op. cit. p.32.
114
RABETTI, Beti. Dimensões do cômico: a propósito de “O Doente Imaginário”, por Moacyr Góes. In:
Rede: Revista da rede municipal de teatros. Rio de Janeiro,v. 1, n.1, p. 10-15, 1996.
113
92
“(...)
Nesta
medida,
o
estatuto
da
verossimilhança do personagem molieriano
atende menos à demanda de se configurar como
“cópia fiel” de um „„indivíduo real‟‟ , que ao
fato de se ver permanentemente envolvido em
eventos
„„romanescos‟‟
(devidamente
coreografados), não mais colhidos em livros de
retórica para exercícios de juristas, mas
diretamente no universo patético de que se
alimenta o mundo dos convencionalismos da
corte (...). Através deste cotidiano, Molière
transforma os tipos tradicionais em papéis
propulsores de uma trama que coloca sempre
este seu mundo atual em jogo.”115
Molière, na França do século XVII, e Goldoni, na Itália
setecentista, irão trabalhar seus textos teatrais a partir da reelaboração das
máscaras italianas. A commedia dell’arte foi fenômeno teatral de enorme
abrangência tanto geográfica (toda a Europa) quanto cronológica
(praticamente dois séculos). Sua galeria de personagens guarda forte
115
Op. cit. p. 13-14.
93
relação com aqueles da farsa atelana e também apresenta várias
semelhanças com a tipologia presente nas burletas e revistas cariocas. A
máscara mais famosa era o Arlecchino116. Ele, Brighela e Pulcinella eram
os zanni, os mais importantes personagens das tramas da commedia
dell’arte: servos bufos, ora espertos e astutos, ora meio estúpidos, que
resolviam suas dificuldades - e a de seus patrões - mediante engodos e
trapaças. Seguidamente, eles mesmos se viam em apuros devido às
artimanhas que teciam, mas sempre conseguiam safar-se empregando
novas astúcias e artimanhas. O nome desses zanni muitas vezes era
modificado, mas suas características essenciais, sempre mantidas. O
Pantalone era o velho negociante avaro e dado a conquistas amorosas. O
Dottore era um médico ou advogado pedante que escondia sua falta de
conhecimento em discurso empolado e cheio de citações em “mau latim”.
O Capitano era um militar fanfarrão e falastrão. Os enamorados - jovens
que, na maioria das tramas, tentavam ficar juntos mesmo contra a vontade
dos pais - eram ajudados pelos zanni.
Esses personagens, entretanto, como já visto, seriam, eles
mesmos, reelaborações de acervos cômicos ainda mais antigos na tradição
ocidental. Em outro texto de Beti Rabetti, o fenômeno dos commicci
116
Para o quadro da commedia dell’arte o termo “máscara” (maschera) já indica o personagem inteiro.
94
dell’arte é considerado emblemático para a discussão dessas questões,
porque:
“(...) Soube, portanto, conciliar por muito
tempo, naqueles primeiros séculos da era
moderna:
- a presença - profissional e cenicamente
aglutinante - de um conjunto de atores com
bagagem técnica particularíssima (muitas vezes
transmitida em espectro familiar e adquirida em
real
aprendizado
de
palco),
e
voltada
dominantemente para o aperfeiçoamento da
atuação em „„papéis fixos‟‟;
- a construção de uma dramaturgia de
novo tipo, imediatamente (e não mediatamente)
voltada para a cena e só nele efetiva e
completamente estruturada (...) e
- a produção de espetáculos em série,
„„facilmente‟‟ adaptáveis, tanto às exigências
de tão novo quanto irregular „„teatro de
mercado‟‟,
como
aos,
geralmente
95
momentâneos,
européias:
apelos
„„empresa
perigosa‟‟, no
de
ilustres
cortes
bela
quanto
tão
dizer de um comentador
contemporâneo ao fenômeno.”117
Longe de ser “datado”, portanto, o personagem-tipo vincula-se
a lastro histórico de longa duração: descende de manifestações
espetaculares ligadas à tradição popular, mas, sempre permeável, a partir de
novas condições e situações de derrisão encontradas. Desta forma o
personagem-tipo permite-se ser retomado e reelaborado, assumindo, assim,
dentro destas novas condições e situações, sua contemporaneidade.
No Brasil, a dramaturgia elaborada por meio de personagenstipo teve forte presença na chamada “velha guarda” do teatro nacional. As
companhias teatrais brasileiras de fins do século passado e começo deste,
em sua maioria, compunham-se de elenco distribuído em papéis fixos,
seguindo, geralmente esta relação: o galã, o galã-cômico, a ingênua, a
dama-galã, a dama-central, o pai-nobre, a caricata, o tirano ou cínico, a
lacaia118. Essa distribuição, normalmente associada ao melodrama,
perdurou até a modernização do teatro brasileiro. O processo de
117
RABETTI, Beti. Grupos, Trupes & Companhia: momentos emblemáticos da História do Teatro.
Revista Urdimento, Florianópolis, Udesc, p. 77, set./out., 1997.
118
Ver ROCHA FILHO, Rubem. op. cit. p. 70-72; e PRADO, Décio de Almeida. A personagem no
teatro. In: CANDIDO, Antonio, et alii. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,1976. p. 94.
96
modernização de nosso teatro, como mencionado no capítulo anterior, teve,
sobretudo em sua fase inicial, uma visão europeizante de cultura e
observou com dificuldades as possibilidades das tradições da cena
nacional.
Ao analisar as burletas de Luiz Peixoto - produzidas no quadro
do teatro popular musicado do início do século - percebe-se a recuperação e
a repetição de tipo cômicos que, mesmo com nomes alterados ou ligeiras
variações de comportamento, estão presentes em todas elas. Esses tipos,
que guardam estreitas relações com os personagens das farsa atelana e da
commedia dell’arte, constituem-se como uma espécie de tipologia carioca
e estarão presentes tanto nas burletas estudadas - e mesmo na de outros
autores - como também nos textos de teatro de revista, nas charges, em
contos e crônicas, e até em letras de músicas daquele período que pude
verificar. Como já mencionado, essas atividades eram exercidas por
membros de um grupo de escritores humoristas, conhecedores tanto da
tradição cômica em geral quanto das tradições populares brasileiras.
Nessa tipologia carioca os personagens que figuram com
maior expressão nas burletas são o mulato pernóstico, a mulata, o
malandro, o mulato capoeira, o português, o coronel caipira, o padre.
2.3.1. O mulato pernóstico
97
Figurando em todas as burletas, com maior ou menor
importância em sua trama, encontra-se o tipo mulato pernóstico. Trata-se
de mulato que apresenta vocabulário repleto de palavras difíceis, faladas o
mais das vezes de forma errada, e destinadas a preencher um discurso vazio
e grandiloqüente. Sua forma de inserção na estratificada sociedade carioca
do início do século é utilizar-se destas características: a falsa cultura, por
todos admirada, a verdadeira capacidade de se destacar por meio de sua
fala, o que lhe permite a aplicação de pequenos golpes. Valendo-se sempre
de sua habilidade para discursar, é normalmente o orador oficial do clube
ou grêmio carnavalesco, ou, então, o poeta local.
Em Forrobodó, é o mulato Escandanhas da Purificação,
primeiro secretário e orador do clube, entusiasticamente elogiado pelo
guarda-noturno após uma frase de efeito: “Esse mulato tem valor mesmo!
Qual Homero, qual Rui Barbosa, tudo isso junto dele é zero” (p. 6). Nessa
burleta também figura no mesmo personagem-tipo o mulato Bico Doce,
que é saudado como representante da imprensa, pois, apesar de ser apenas
contínuo de jornal, apresenta-se como “redator-contínuo do Jornal do
Brasil” (p. 8). Numa cena em que tem que discursar saudando o
“jornalista”, Escandanhas troca os papéis que traz nos bolsos e lança mão
de um discurso fúnebre:
98
“Escandanhas: (depois de retirar da aba
do fraque várias folhas de papel que passa a
ler) Meus senhores, minhas senhoras, de ambos
os sexos: Revertere ad Locum tum! Faltaria ao
mais salgado dos deveres, se, neste momento
solenico não erguesse a minha débil voz para
exaltar as colidade orgânica e inorgânica
daquele que desapareceu! (surpresa geral) O
Grêmio Recreativo Familiar Dançante Flor do
Castigo do Corpo da Cidade Nova cobre-se de
luto...
Todos: Oh!
Barradas: Cobre-se de quê?
Escandanhas: Cobre-se de luto...
Barradas: Não se cobre de coisa nenhuma
sua vesta!
Escandanhas: Cobre-se sim, senhor. Está
aqui escrito. Eu ainda tenho dois olhos na cara.
Está aqui escrito!
Fuzileiro: Você se estrepou, moreno! Este
discurso é o que foi lido no cemitério de Maruí,
99
por ocasião do enterro do falecido Zacarias
quando bateu o 31.”(p. 8)
Essa cena pode ser entendida como momento emblemático
para o tipo, pois, ao confundir os discursos, ele lança mão,
equivocadamente, de um de seus repertórios de falação, como se trouxesse
sempre consigo, preparados, seus textos.
Em Dança de Velho também são utilizados dois mulatos
pernósticos: Bastião, copeiro da pensão, que ensina aos brancos os
segredos do carnaval, e Herculano, que é o orador oficial - como
Escandanhas, em Forrobodó - do grêmio carnavalesco. No trecho da
burleta a seguir, no qual Herculano vem interceder junto à dona da pensão
em que Bastião trabalha para que o libere mais cedo do serviço, a fim de
lhe permitir ir ao ensaio do clube carnavalesco, pode ser visto o uso que
esses dois personagens fazem da linguagem e que caracteriza o tipo do
mulato pernóstico:
“Herculano: (aparecendo à janela e
batendo palmas) Meus senhores, minhas
senhoras,
indiguiníssima
cavalheira
que
ocupais os andar terres do rés do chão, seu
100
vigário. Comissionado pelas comissão que
direge os destino e os trabáio preparativo desta
agremiação dançante, familiar e ...carnavalesca.
Bastião: (apoiando a cabeça no ombro do
padre) Vá ouvindo só!
Herculano: Em nome das malmozel que
guarnece as paisage do nosso salão...
Bastião: (caindo mais sobre o ombro do
padre) Arrepara só, seu reverendo!
Herculano: ... Em nome do direquitô de
harmonia que é aqui este seu criado Herculano,
eu venho lança nos vossos pés um obsequioso
urtimatu, para que Vossas Excelencias e os
demais membro da vossa conceituada pensão,
me devorvam o nosso conceituado mestre de
sala Bastião Dalgiso Conceição das Neves!
Bastião: (para Herculano) Vulgo cabeça
de cará, faço questão do pseudônis!”
101
Nessa cena, percebe-se a admiração provocada por Herculano,
com seu discurso, em Bastião, que ao fim da cena também dá sua
contribuição pernóstica, ao fazer questão de seu “pseudônis”.
Em Morro da Favela, a figura do mulato pernóstico coincide
com a do malandro no personagem Dorniso. Esses dois tipos, embora
distintos, podem ser somados - e é o que ocorre nessa burleta - quando o
primeiro deles usa seu talento para aplicar golpes. E assim eles também
serão sobrepostos nas burletas Flor do Catumbi e República de Itapiru com
os personagens Dargiso (contínuo do Jornal do Brasil) e Barsamão
(contínuo do Senado), e Marcolino e Florêncio, respectivamente. O caráter
do personagem-tipo mulato pernóstico fica bastante evidenciado, a meu
ver, pelo fato de, depois de aplicado o golpe - e “instaurada” a República
de Itapiru -, o mulato Florêncio ser indicado ministro das Relações
Exteriores, a carreira diplomática sendo utilizada como a forma de o
mulato pernóstico demonstrar todos os seus atributos. Enfim, na burleta
Saco do Alferes, o personagem-tipo mulato pernóstico é Arnesto, o
melancólico poeta local, que escreve poesias que se caracterizam pelo uso
da linguagem típico do mulato pernóstico:
“Que ponto é aquele branco?
Não vês, que no céu flutua,
Pális, débis, anemis... A lua!”(Ato I, p. 7)
102
2.3.2. A mulata
Talvez o personagem-tipo mais famoso dessa galeria carioca, a
mulata surge como tipo, segundo a pesquisadora Neyde Veneziano, em
República, de Arthur e Aluísio Azevedo, revista de 1889, como o
personagem Sabina.119 Esse personagem, inspirado em uma baiana velha e
gorda, vendedora de laranjas, que ficou notória após um evento que
envolveu os estudantes da Faculdade de Medicina, transforma-se, no palco,
em sedutor papel. Também é de Arthur Azevedo a criação de outra mulata
que ficaria registrada na história do teatro musicado carioca, Benvinda, da
revista do ano de 1891 - O Tribofe - e reaproveitada por Arthur Azevedo na
burleta A Capital Federal.120 Benvinda é seduzida, na capital federal, por
Figueiredo e passa a ser sustentada por ele, que pretende educá-la para
poder “lançá-la”. Sedução e certo pernosticismo seriam as marcas das
primeiras mulatas. Nas burletas de Luiz Peixoto é adicionado ao tipo mais
um “ingrediente”, que se tornaria sua marca definitiva - a insolência.
Assim, na burleta Forrobodó, siá Zeferina, a mulata porta-estandarte do
grêmio, é a única que não se impressiona com os discursos de
119
Op. cit. p. 124-130.
Arthur Azevedo aproveita o fio condutor de sua revista de ano - a família do interior que vem ao Rio
de Janeiro à procura do noivo fujão da jovem Quinota - , e escreve a burleta em 1897.
120
103
Escandanhas, o mulato pernóstico, e chega até a tratá-lo deste modo: “Não
adianta vir com teus canto de sereia! Vamo vê logo! Sim ou sopas?
Arresorve logo!”(p. 6). A mulata, personagem-tipo do teatro popular
brasileiro, não só seduz como tem pleno conhecimento de seus dotes e sabe
utilizá-los segundo sua conveniência. Essa insolência pode ser definida de
forma bastante carioca: a mulata desacata, a mulata é a tal! Diante dela,
todos “endoidecem”, principalmente o português. Nas burletas que
envolvem clubes carnavalescos, ela é a porta-estandarte, figura central da
agremiação. É ainda figura de destaque no cancioneiro e no anedotário
popular brasileiro.121
Em Forrobodó, a mulata siá Zeferina é ansiosamente
aguardada e quando chega é saudada por estar “mais inzuberante”e “mais
gelainosa” (p. 5). Adiante é apresentada como “a perdição das colônia
portuguesa domiciliada no Brasil” (p. 7). Em Dança de Velho, o tipo é
convocado para ensinar “a ciência”, “a arte” e “o engenho” de ser portaestandarte. Nesse trecho fica claro, a meu ver, que em uma manifestação
popular como o carnaval é utilizada toda uma série de procedimentos
regulares que podem ser transmitidos - ensinados - para seu completo
aprendizado. Essas “regras da arte” são passadas pela mulata carioca Clóvis
121
A mulata aparece no cancioneiro em músicas como É luxo só!, do próprio Luiz Peixto e Ari Barroso;
Mulata assanhada, de Ataulpho Alves; O teu cabelo não nega!, de Lamartine Babo; sempre como
alguém que sabe seduzir, tem graça e malícia, que, enfim, “maltrata” os homens.
104
para a mocinha pernambucana Floripse. O “engenho”, a “arte”e a “ciência”
do samba, são facilmente comprendidos pela mocinha, pois ela já havia
sido “pastora de Reis”:
“Clóvis: Para ser porta-estandarte,
Em qualquer parte,
Precisa arte,
E engenho até
É troço que tem ciência!
Mas, com calma e paciência
Vou lhe mostrar como é! (...)
Floripse: Diga lá se neste passo
Me embaraço,
Se estou fora do compasso,
Se fiz o que você fez?
Diga se está certo,
Eu pra dançar não me aperto,
Que eu fui pastora de Reis!”
Creio poder utilizar essa cena como um momento privilegiado
de discussão para esta dissertação, pois nela os próprios autores da burleta
105
indicam que existem, de fato, regras presentes na atividade carnavalesca da
porta-estandarte. Assim, pode ser concluído que também em outras
manifestações apressadamente classificadas como naturais ou espontâneas,
como a construção e a composição em geral do personagem-tipo pelo
cômico
popular,
existem
determinados
procedimentos
regulares,
transmitidos de maneira restrita, mas informal, e que ficam, geralmente,
camuflados pelo histrionismo e pelo talento desses cômicos.
Ainda em Dança de Velho, a mulata Clóvis, ao fim do segundo
ato, é assediada por todos os homens da pensão de dona Vicentina, até
mesmo pelo padre, em vertiginosa cena musical em que os personagens
masculinos se sucedem para cortejá-la:
“Padre:
-
Mulata,
com
tanta
arte/
Ninguém há que te aguente/ Deixa eu pegar no
estandarte,/ Segura aí que vem gente!(sai)
Quinquim: - Tenho ganas de beijar-te/
Num beijo febril, ardente/ Deixa eu pegar no
estandarte,/ Segura aí que vem gente!(sai)
Ferreirinha: - Eu não quisera encrencarte/ Mas vou te meter o dente./ Vamos vender o
estandarte?/ Segura aí que vem gente! (sai)
106
Bastião: - Mulata, as oito não farte,/ Que
as oito em ponto eu tô rente./ Deixa eu pegar no
estandarte,/ Segura aí que vem gente!(sai)
Capitão: Tô besta com as tua parte./ No
tempo que eu fui tenente!.../ Deixa eu pegar no
estandarte...
Clóvis:
-
gente!(entrega
Segura
o
aí
estandarte
que
ao
vem
Capitão
Goiabada e sai)”
Em Morro da Favela, a mulata Cleopatra é a mais famosa da
localidade e companheira do temível capoeira Pulo de Onça. Em Flor do
Catumbi, ela é a protagonista da burleta, e praticamente toda a trama gira
em torno da corte que lhe fazem os outros mulatos tentando tirá-la do
português Zé Fidelis Teles de Meireles. Na burleta Saco do Alferes, o
advogado da localidade, doutor Neném, vive com três mulatas:
Benvinda122, Encrenquinha e Graciosa. Em República de Itapiru, Guiomar
é porta-estandarte do grêmio carnavalesco. Na primeira cena do segundo
ato, o português Sopas, dono da carvoaria, discute com um coro de
122
O mesmo nome da mulata da revista O Tribofe e da burleta A Capital Federal, de Arthur Azevedo.
107
cozinheiras e termina dizendo ser impossível a um português “dar conta de
tanta mulata” (p. 17).
2.3.3. O malandro
Junto com a mulata, o malandro é um importante personagemtipo dessa galeria. Nas burletas estudadas, contudo, com exceção do
guarda-noturno de Forrobodó, não tem tanto destaque, só tendo maior
relevância nas tramas em que sua figura se associa ou é sobreposta ao
mulato pernóstico para a aplicação de algum golpe. O malandro é aquele
que vive sem fazer força, aplicando pequenos golpes. Aparece nas revistas
brasileiras, também por intermédio de Arthur Azevedo123, na segunda
metade do século XIX. Contudo, já era figura conhecida no ideário
nacional, como pode ser observado no ensaio de Antonio Candido sobre o
romance Memórias de um sargento de milícias:
“Digamos que Leonardo não é um pícaro,
saído da tradição espanhola; mas o primeiro
grande malandro vindo de uma tradição quase
123
VENEZIANO, Neyde, op. cit. p. 122-124.
108
folclórica e correspondendo, mais do que se
costume dizer, a certa atmosfera cômica e
popularesca de seu tempo.”124
Pode também ser relacionado
ao
personagem
Pedro
Malasartes, dos contos populares brasileiros - inspirador da peça
homônima de Graça Aranha - , e, sem dúvida, descende dos zanni das
máscaras italianas. Também é recorrente no anedotário e no cancioneiro
popular brasileiro.
Na burleta Forrobodó, o personagem guarda-noturno é o autor
do furto de galinhas que ele mesmo investiga. Antes de apresentar-se em
um número musical, o guarda-noturno exclama “O que eu quero é gozar!”
(p. 5), resumindo, assim, o modo de vida do malandro. Em meio a uma
briga (por ele mesmo provocada) com Lulu, o mulato capoeira, ele foge e
volta, depois da saída do valentão, fingindo-se bravo. Ferreirinha, em
Dança de Velho, passa toda a peça pedindo dinheiro emprestado aos outros
hóspedes, para presentear a mulata Clóvis. O malandro figura na burleta
Flor do Catumbi - além da
citada superposição dos personagens-tipo
mulato pernóstico e malandro, por intermédio de Dargiso e Barsamão como o soldado Lagartixa e o condutor de bondes 420. Os quatro
124
CANDIDO, Antonio. A dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São
Paulo, n. 8, p. 71, 1970.
109
personagens unem-se para flertar com Flor do Catumbi e convencê-la - e a
Zé Fidelis - a ser porta-estandarte de seu bloco carnavalesco. No refrão do
número musical em que os mulatos pernósticos Dargiso e Barsamão e o
malandro Lagartixa se apresentam, podem ser encontrados os elementos
que caracterizam este último tipo e os valores dos quais ele se vale:
“Dargiso, Barsamão e Lagartixa: Nós
somo três cabras bom da malandrage,
Que com nossa tapiage, nem o Kaise
acerta a mão!
Nós semo cabra de moamba e de bobage,
Com nós três não há visage, nem conversa
de alemão!”
A burleta, estreada em janeiro de 1918, em plena I Guerra
Mundial, “brinca” com os inimigos mais temidos de então, o Kaiser e o
exército alemão, que seriam sabotados pela malícia, a esperteza e a
malandragem dos cariocas.
Em Saco do Alferes, o alfaiate e cabo eleitoral local, o
sambista e o português dono de botequim - talvez o único português que
engana e não é enganado entre os personagens das burletas cariocas -
110
aplicam um golpe no simplório coronel do interior que vem à capital tentar
ser eleito. São eles Bidungas, Valadão e Pereira, respectivamente. Ao final
da burleta, além de enredarem o coronel Zé Trindade, conquistam as três
mulatas do doutor Neném. Em República de Itapiru, Unha Encravada e
Caramujo enganam o carvoeiro com os pernósticos Marcolino e Florêncio
- em mais um caso de superposição desses dois personagens-tipo. Nessa
burleta, o mulato pernóstico Florêncio utiliza-se, como um bordão
humorístico, do lema do guarda-noturno “O que eu quero é gozar!” (p. 3),
evidenciando ainda mais a superposição possível dos dois tipos.
2.3.4. O mulato capoeira
Se o malandro resolve seus problema e consegue destaque
pela astúcia, o capoeira vale-se de sua coragem e de sua força para obter o
que quer ou aquilo de que precisa.
Apenas dois personagens-tipo capoeira aparecem nas burletas:
Lulu, de Forrobodó, e Pulo de Onça, de Morro da Favela, e nenhum deles
tem grande importância em suas tramas.
Entretanto, devido à descrição dos sem-número de atividades
“profissionais” listadas pelo capoeira Lulu, é importante destacar este
número musical, no qual o tipo se apresenta:
111
“Lulu: Não vejo cara em vocês,
Não me destorce quem quer.
Sou chapa 46 - bonde Lapa-Carceler.
Trinta e dois anos e um mês,
Natural de Paquequer.
Sou chapa 46 - bonde Lapa-Carceler.
Três meses fiscal de lixo
Num cafundó suburbano,
Cinco meses banquei bicho,
Sou vagabundo há dez anos!” (p. 11)
Pode ser percebida nesse trecho a diferença entre o tipo
malandro e o capoeira: apesar de os dois viverem de atividades ilegais, o
primeiro se utiliza de pequenos golpes ou falcatruas, usando sua astúcia e
inteligência, sua capacidade de livrar-se das enrascadas; já o capoeira
recorre à força, à persuasão física e, até mesmo, ao crime se necessário.
Pode-se dizer que, se o malandro é um contraventor, o capoeira ou
valentão é um criminoso.
2.3.5. O português
112
O tipo português também é figura importante nessa galeria
popular carioca. Presente no teatro de revista, no anedotário, em algumas
canções, é sempre associado ao imigrante luso que conseguiu dinheiro no
Brasil por meio de seu trabalho e de sua avareza. Por ser considerado tolo,
geralmente perde o dinheiro acumulado sendo vítima ou de um golpe, ou
do amor pela mulata. Neyde Veneziano informa que também esse
personagem-tipo surge no teatro de revista por intermédio de Arthur
Azevedo com a revista O Bilontra, de 1866.125 As estreitas relações
guardadas entre os teatros populares brasileiro e português em fins do
século passado e princípios deste - eram inúmeras as companhias
portuguesas que vinham regularmente ao Brasil, e vários artistas brasileiros
tentaram a sorte além-mar - devem ter contribuído para a consolidação do
tipo em nosso teatro. Outra característica do português bastante explorada é
sua paixão pelas mulatas.
O primeiro dos portugueses endinheirados126 de Luiz Peixoto é
Barradas, presidente do Grêmio Recreativo Familiar Dançante Flor do
Castigo do Corpo da Cidade Nova, em Forrobodó. Nessa burleta, apesar de
grosseiro, não é nada tolo. Já os simplórios seu Carvalho, Zé Fidelis e seu
Sopas - de Morro da Favela, Flor do Catumbi e República de Itapiru,
125
Op. cit. p. 133-135.
Deve ser esclarecido que, devido ao fato de serem pobres os ambientes onde se passam as burletas, os
“portugueses endinheirados” dedicam-se ao pequeno comércio local, não tendo, portanto, grande fortuna
e destacando-se apenas pelo poder econômico nesses locais quase miseráveis.
126
113
respectivamente - são várias vezes enganados durante a ação dessas
burletas. Em Flor do Catumbi, o português Zé Fidelis trata com o condutor
do bonde, o malandro 420, a entrega das flores que levava para a mulata
protagonista da burleta, em troca de alguns trocados:
“Zé (ao Condutor) - Faça-me bocê, pru
faboire. Não vê que eu bim fazer uma
manifestadéla à mulata mas eu sou um
negociante... bosmecê sabe... e... isto não fica lá
muito bem...
Condutor - É... Podem falarem... E quem é
a mulata?
(toca a charanga interna. Palmas. Gritos)
Zé - É a Floire do Catumbi, que entrou
agorinha mesmo no picadeiro.
Condutor - Meu irmão deixa eu ver os
troféu. Eu faço esse gancho.
Zé - Pois então pegan‟os lá... Mas olhe que
bocê tem que entrar na arena e entrega-los à
114
mulata e dizer que quem los manda e o Zé
Fidelis Teles de Meireles...
Baiana - O português nessa corrida foi
memo no meio...
Condutor - Fica descansado, seu Zé. As
tuas flô vão dá um sortão. (à parte) Tou feito.
Vou entregá mas é em meu nome. (entra no
circo)
(...)
(Ouvem-se
no
interior
palmas,
bis,
vozerio. A charanga toca a marcha final. Saem
os espectadores. Coro repete o número 1 da
peça. Saem todos do circo)
Dargiso (com Barsamão e Lagartixa) Não tem que vê! É hoje! Hoje é que se adecede
a nossa sorte! A Flô de Catumbi vai dá o fora e
nós temo escorá ela. Vamo vê quem vence
nessa corrida de ganso.
115
Barsamão - Eu não digo nada, não é? Tou
sereno, transparente...
Lagartixa - Eu entreguei tudo a Nosso
Sinhô...
Dargiso (a Lagartixa) -
Tu é mau,
Lagartixa. Tu é sonso, nêgo. É só no colado,
hein, batuta?
Lagartixa - É meu sistema.
(aparece Condutor com os buquês)
Dargiso - É o sistema concentrado
indiano. (a Condutor) Que moamba de flô é
essa, 420?
Condutor - Não é nada. Eu estou
esperando a hora da onça bebê água.
Barsamão - Mas isso aqui tá desiguá. Tu
vai entrá de flô?
116
Condutor - Ué! Cada um que se aguente
com as garra que tem... Matei o português na
cabeça!
Dargiso - Tem paciência, meu irmão:
vamo racha essas flô, sinão eu dou um
desespero aqui que nem eu nem mais ninguém
reboca a mulata.
Condutor - Te assossega, Dargiso. Nós
semo amigo. Eu não quero sê desmanchaprazê... (distribui as flores entre eles.)”
O português perde as flores e o dinheiro por causa de sua
ingenuidade. O malandro carioca fica com os trocados daquele e entrega as
flores no próprio nome, mas, para não se indispor com seus camaradas, as
distribui entre eles. Contudo, ao fim do ato, a mulata desejada por todos vai
embora com o português, porque lhe pode oferecer mais conforto do que os
mulatos, estabelecendo-se, assim, uma trama recorrente entre esses
personagens-tipo.
117
Já Pereira, de Saco do Alferes, participa do golpe aplicado,
como foi visto. Em comum entre esse português e os outros descritos
anteriormente só mesmo a “perdição” pela mulata.
2.3.6. O coronel do interior
O coronel caipira que vem à capital para ser logrado é um tipo
que se consolida no teatro musicado brasileiro com o personagem seu
Eusébio, da revista de Arthur Azevedo O Tribofe127. Também será um
personagem aproveitado em piadas e, mesmo, no cinema, por intermédio
de Mazzaropi. As diferenças entre a tranqüila vida no interior e a agitação
da cidade são sempre exploradas nesse sentido, sendo o caipira
considerado não exatamente estúpido, mas, sim, pessoa ainda não
“contaminada” pela falta de escrúpulos da cidade, sua pureza sendo,
algumas vezes, um valor128.
Esse personagem-tipo vai aparecer na figura do capitão
Goiabada da burleta Dança de Velho. É ridicularizado não só por ser do
interior, mas, sobretudo, por tentar manter sua autoridade e por suas
bravatas. Contudo, o velho militar que vive cochilando é facilmente
127
VENEZIANO, Neyde. op. cit. p. 131-133.
As diferenças de valores, comportamentos e atitudes existentes entre a cidade grande e o campo já
haviam aparecido nas comédias de Martins Pena: “A oposição da metrópole à província surge, na obra de
Martins Pena, sob dois ângulos mais comuns: de um lado a capital civilizada com teatros e invenções do
momento (...); e, de outro, o homem da capital é refinado e superior, mas esperto e sujeito à corrupção, ao
passo que o provinciano, bronco, rústico e ingênuo, revela moralidade mais sólida (...).” MAGALDI,
Sábato. Panorama do teatro brasileiro. Rio de Janeiro: SNT, [197-]. p. 42.
128
118
enganado por Ferreirinha e cai de amores pela mulata Clóvis, perdendo de
vez a compostura. Também será por meio do flerte com uma mulher da
capital que o coronel Zé Trindade irá esquecer-se do logro a que foi
submetido na burleta Saco do Alferes. Vindo ao Rio de Janeiro para
candidatar-se, o caipira será enganado e explorado pelos malandros do
Saco do Alferes, deixando lá todo o dinheiro economizado para a
campanha - e não sendo eleito.
2.3.7. O padre
O último dos tipos mais importantes presentes nas burletas
estudadas é o padre, normalmente ridicularizado porque não corresponde
às expectativas convencionais de um religioso. Esse personagem-tipo
geralmente é acusado de simonia ou de libidinagem, duas carcterísticas que
não se adequam a seu ofício.
Em Dança de Velho, o padre Pecegueiro é um velho bonachão
que já aparece na primeira cena tocando ao piano músicas de carnaval. Tem
durante toda a peça atitudes simpáticas e extrovertidas. Poderia ser até
considerado um bom religioso - talvez apenas um pouco alegre demais não fosse perder-se de desejos pela mulata porta-estandarte. O padre turco
de Saco do Aferes, que é chamado pelos outros personagens de Vigário,
percorre toda a trama preocupado apenas em arrecadar fundos para a festa
119
de São João. Em determinada cena, quando se nega a “puxar” uma dança
de quadrilha, alegando que não sabe, é rapidamente convencido a fazê-lo
quando é lembrado pelos demais que era ele quem fazia isso em certa casa
de má fama.
2.3.8. Outros personagens-tipo
Aparecem ainda nas burletas estudadas, sem, entretanto, a
importância dos tipos vistos acima, a prostituta francesa, a negra baiana, o
moleque e o bêbado. Todos eles também constituem personagens-tipo que,
mesmo tendo menor destaque nos textos de Luiz Peixoto, figuram no
repertório de tipos cômicos cariocas.
2.4. Considerações finais
Finalmente, é importante frisar que a criação dos personagenstipo que compõem essa galeria carioca é concluída na cena teatral pela
participação ativa (e semi-autoral) de atores que acumulam, durante sua
trajetória artística, repertórios de atuação utilizados para a composição
desses personagens. No contexto desta pesquisa destaca-se o ator Alfredo
Silva, que figura no elenco das montagens originais de todas as burletas
120
estudadas, ora como mulato pernóstico, ora como malandro129,
constituindo-se, assim, numa espécie de emblema do cômico popular.
129
Na burleta Dança de Velho, Alfredo Silva cria o papel do padre Pecegueiro, que, apesar de ser outro
dos tipos estudados, foi composto de forma a apresentar semelhanças com o tipo malandro, sobretudo o
modo alegre e descontraído de encarar as situações.
121
CAPÍTULO III
Com o objetivo de estudar os mecanismos de composição do
personagem-tipo por meio do trabalho do ator, foram realizados, nos meses
de julho, agosto e setembro de 1997, encontros experimentais (laboratórios
com atores) que se propunham a uma investigação prática a partir de dados
coletados na pesquisa teórica: os laboratórios foram espaços de
investigação, exercício e reflexão, e não espaços de montagem de cenas ou
de um espetáculo. Por se tratar de procedimento relativamente recente nos
estudos do teatro, a cada vez que é feita uma pesquisa com essas
características, também são colocados em questão os pressupostos dessa
metodologia de estudos, que vincula, dessa maneira, a teoria à prática.
Propiciar essa investigação, no campo da pesquisa teatral, é alimentar cada
uma dessas instâncias com fecundo material, o que proporciona recíproco
aprofundamento. As questões surgidas a partir da pesquisa teórica foram
“experimentadas” na cena teatral. Por sua, vez esses encontros
experimentais produziram novas questões e constituíram-se, de fato, em
nova fonte documental.
Sempre é necessário ressaltar - mesmo incorrendo no risco da
repetição - que a “matéria” fundante do teatro é, primordialmente, a cena
122
teatral130. Matéria altamente fugaz que, paradoxalmente, ao mesmo tempo
que se realiza se desvanece e só se perpetua e se fixa enquanto memória.
Dessa forma, a cena teatral, única e irreproduzível, alcança o fim no
momento instantâneo de sua realização. Nestes tempos em que a
comunidade de informações é globalizada e o registro (sujeito e submetido
a toda sorte de “montagens”), muitas vezes, é superior ao fato, o teatro
insiste em ser uma manifestação obsoleta, que não deixa rastros. Ou só os
deixa em “registro” pouco confiável enquanto veracidade una do fato: a
memória. Uma manifestação que insiste na presença viva e direta, sem
mediações, de homens. Foi, portanto, mediante a perspectiva da cena
teatral em seu processo de elaboração - matéria a meu ver privilegiada,
principalmente e sobretudo, devido a essas características - que se deu a
investigação do fenômeno da composição do personagem-tipo, sempre
amparada na pesquisa teórica.
De certo modo, ao se pesquisar, perseguindo suas etapas de
construção, a realização cênica desses tipos por parte dos atores, pretendeuse, além da compreensão da relação entre a dramaturgia de Luiz Peixoto e a
cena, verificar a possibilidade de contribuir para o estudo dos
procedimentos e do repertório técnico de comediantes populares, aqueles
que normalmente se dedicam à criação de tipos no teatro. As características
130
Os estudos relativos à dramaturgia - no âmbito específico da literatura dramática - referem-se,
necessariamente, a um dos aspectos da complexa manifestação teatral.
123
específicas do trabalho de ator desses cômicos são geralmente encaradas
como espontâneas e quase sempre debitadas a um seu natural histrionismo.
Acredito, no entanto, que outras questões possam ser apontadas para o
tema. A pergunta para cuja resposta acredito poder ter colaborado é: até
onde o que muitas vezes se encara como personagens estereotipados, em
nível dramatúrgico, não comporta uma “técnica aberta” de construção de
personagens que proponha sua conclusão não pela espontaneidade do ator
popular, mas, ao contrário, pela participação tanto ativa quanto
diferenciada na elaboração desse personagem, só possível por meio de seus
acervos técnicos colhidos no reservatório das tradições populares?
De alguma maneira, essa é uma das questões que vêm sendo
perseguidas no interior do projeto Um estudo sobre o cômico:
“Decorre, com muita freqüência, para o
trabalho com o ator em cena, que o
entendimento do tradicional, do arcaico como
típico, acabe, quase sempre, por levar ao
característico, ao trejeito e às maneirices.
Decorre também que, tanto na prática
cênica como nas relexões sobre ela, ou sobre a
própria história do chamado teatro popular, a
124
visão que se contenta com a redução da
complexidade,
ou
da
manifestações
colhidas
profusão,
nas
das
correntes
tradicionais, (...) acabe-se por desviar também o
olhar
investigador
das
possibilidades
de
apreensão de tradições técnicas codificadas de
longuíssima duração. Se, na contra-mão deste
direcionamento que busca o espontâneo e o
curioso
na
aparência
de
determinadas
manifestações, fôssemos inquirir pelos sentidos
mais
complexos
que
as
fundam,
talvez
pudéssemos encontrar, ao invés de uma
natureza característica, um sistema de códigos
longamente elaborados.”131
Essa questão de ordem mais ampla norteou, em termos gerais,
um dos objetivos dos encontros experimentais: perceber em que medida a
composição cênica do personagem-tipo, a partir do “esboço” realizado pelo
autor dramático, se dá menos em funcão de um talento virtuoso e
131
RABETTI, Beti. O típico e o técnico: a propósito do teatro popular no Brasil. (inédito) p. 4 - 5.
125
histriônico do que de um sistema ou método, ou trajeto de trabalho
profissional, que a virtuosidade e o histrionismo poderiam camuflar.
Assim, a partir da pesquisa teórica, três hipóteses básicas
foram formuladas para nortear esses encontros experimentais que
investigaram a construção do personagem-tipo através das burletas de Luiz
Peixoto:
- a elaboração do personagem-tipo só pode ser inteiramente
concluída pela cena teatral mediante maneira particular de conjugação de
escrita dramatúrgica e “dramaturgia” do ator;
- o autor que se dedica à escrita dramatúrgica assentada em
personagens-tipo pressupõe a participação concreta e específica de um
determinado tipo de ator para a sua completa configuração; seus
personagens são, nessa medida, abertos para esse ator;
- o autor e o ator que se dedicam a esses personagens se
utilizam de repertórios colhidos na tradição e constantemente reelaborados:
formam, assim, suas “bagagens” que, sistematizadas, permitem vislumbrar
verdadeiros acervos técnicos.
126
3.1. A seleção dos personagens-tipo
Ao longo do estudo em torno do cômico e da detalhada leitura
das burletas de Luiz Peixoto, destacaram-se e foram selecionados também
para a investigação experimental os tipos o mulato pernóstico e a mulata,
reincidentes no conjunto das burletas e partilhando cenas em todas elas.
Assim, reiterando o fato de que a constituição de um personagem-tipo se dá
também por um número determinado de inter-relações, foi possível
elaborar seu estudo por meio dessa relação reincidente. Por sua vez, esse
dado possibilitou aos atores participantes da pesquisa o excelente recurso
da constante contracenação. Deve-se salientar ainda que se criou, graças a
esse fato, um canal de pesquisa dos tipos por meio de uma cena teatral e
não só por um conjunto de exercícios propostos. Esses tipos também têm a
seu favor o fato de ainda continuar ocupando um lugar no imaginário
popular carioca132.
3.2. O relator- dramaturg
A necessidade de um relator que acompanhasse os encontros
foi introduzida pela orientadora do projeto de dissertação de mestrado
ainda na fase de sua elaboração. O referido relator atuaria secretariando as
132
Desnecessário justificar a presença do tipo mulata no imaginário popular carioca de agora - embora
atualmente a mulata tenha apelo sexual maior do que o apresentado nas burletas; já o mulato pernóstico
também sobrevive nesse imaginário, e pode-se destacar um tipo comum na cidade ainda hoje como uma
variação do personagem: o camelô, que necessita - qual o charlatão medieval - primordialmente de seu
discurso para vender.
127
atividades, registrando cada um dos encontros.
Devido à escolha de
Marina Martins - coreógrafa e mestranda em Teatro - para desempenhar
essa função, foi acrescida à tarefa de relator a de dramaturg. Assim sendo,
além das funções já descritas, ela auxiliou na elaboração dos pressupostos e
dos objetos que iam norteando os vários encontros; na pesquisa corporal
dos atores (sugerindo e orientando exercícios); e na avaliação de cada etapa
do trabalho133.
3.3. Os atores
Como apreender um fenômeno fugaz como a cena teatral,
sobretudo, uma cena ocorrida há mais de meio século? Como aferir, se não
as “técnicas” interpretativas, os acervos técnicos acionados pelos atores
originais das montagens das burletas? Como, enfim, pesquisar os
repertórios daqueles cômicos? Essas indagações, inicialmente, impediramme de vislumbrar as possibilidades existentes na utilização de atores jovens
para a realização desses encontros experimentais. Avalio, hoje, que talvez
houvesse de minha parte uma fantasia (um tanto mistificadora) em torno da
atuação de um Brandão, de um Alfredo Silva, de uma Cinira Polônio, que
conheci pelos livros, ou de um Oscarito, de um Grande Otelo, de um
133
Essas atividades de Marina Martins também foram orientados pela Profa. Dra. Beti Rabetti, como
atividade da disciplina Seminários Avançados de Estudo do Espetáculo, do curso de Mestrado em Teatro
da Uni-Rio. Ver relatório em anexo.
128
Walter D‟Avila, a quem assisti em “chanchadas” cinematográficas. Diante
dessa fantasia - que dificultava minha investigação experimental -, desejei
trabalhar com atores que apresentassem experiência na linguagem cômica
em seu trajeto profissional134.
Na verdade, a natureza específica da cena teatral ou meu
trajeto anterior como diretor de teatro confundia-me, e me impedia de ver
que era o próprio exercício cênico investigador a “chave” necessária para o
enfrentamento dessas questões. Só pela concretude do exercício da cena
teatral seria possível aferir (ou vislumbrar), se não o acervo técnico de que
disporiam os intérpretes que trabalhavam com a composição de tipos no
ínicio deste século quando as burletas de Luiz Peixoto foram mostradas, ao
menos a revelação de procedimentos que se traduziam em selecionar
materiais já exercitados e que compunham as bagagens (os baús) desses
cômicos. Em outras palavras, onde talvez não se encontrasse qualquer
acervo técnico no sentido rigoroso do termo, poderiam existir
características de trabalho de ator que envolvessem a manipulação e a
utilização assistemáticas de partes de repertórios selecionados e
reelaborados a partir de trabalhos anteriormente realizados por parte desses
cômicos.
134
Creio ser importante ressaltar aqui que essa “fantasia” (ou fascínio) em torno dos atores cômicos
populares brasileiros talvez pudesse significar outra faceta - que me impossibilitava ou desviava o olhar
investigador - de observação do fenômeno como espontaneísta. Assim, eu mesmo “caía” na armadilha
que a todo momento da pesquisa procurava desmontar: considerar a graça e o histrionismo desses
cômicos decorrência de seu talento natural.
129
Assim, foram escolhidos dois jovens atores negros para
participar dos laboratórios, levando em consideração, primeiramente, o tipo
físico proposto pelos textos. Nas montagens originais das burletas, algumas
vezes atores brancos se caracterizavam para desempenhar os papéis,
recurso que, à época, não era estranho ao público. Como hoje esse
procedimento causaria estranheza à platéia - só podendo ser utilizado com
fins cômicos, que se sobreporiam aos objetivos da investigação -, houve
necessidade de escolher atores com as características físicas coincidentes
com as dos personagens. Dessa forma, participaram da pesquisa os atores
Vilma Melo e Bruno Rodrigues. É necessário salientar que Vilma Melo já
apresenta razoável trajetória artística, ligada a um grupo que trabalha com
exercícios de treinamento do ator - grupo teatral Oikoveva, do Rio de
Janeiro - , e Bruno Rodrigues inicia sua formação, na Escola de Teatro da
Uni-Rio. Essa diferença traduziu-se, no decorrer dos exercícios propostos,
em maior facilidade e desenvoltura por parte de Vilma, que apresentava
entrega mais arrojada aos trabalhos. Bruno, ocasionalmente, tentava
desviar-se da completa execução dos exercícios mediante constante
indagação sobre os processos. Contudo, findos os trabalhos, os dois atores
apresentaram percurso bastante semelhante em relação ao objetivo dos
mesmos: investigar os procedimentos a serem utilizados na composição dos
personagens-tipo por meio do exercício do ator.
130
3.4. Os encontros experimentais - laboratórios atoriais
Ao todo, foram realizados 11 encontros com atores135,
precedidos de planejamento geral e de outros, particulares, realizados, em
parte, com a participação da relatora-dramaturg e sob a supervisão
constante da orientadora. Os encontros experimentais foram registrados por
fotografias, vídeo, fichas de planejamento, avaliações e relatórios (ver em
Anexos).
Na reunião preparatória geral foram estabelecidos os
procedimentos metodológicos que seriam utilizados, desenvolvidos a partir
de esboço prévio. As características dos personagens-tipo seriam
levantadas nas burletas estudadas para confecção de uma listagem. Feito o
elenco de características, ele passaria por síntese em que as características
essenciais englobariam as outras, menores.
Levando em consideração a pesquisa teórica que revelou ser o
personagem-tipo não necessariamente o somatório de uma série detalhista
de características externas (o que melhor conviria ao estereótipo), o
procedimento metodológico básico exigiu o exercício da síntese.
A fim de se detectar, portanto, as características essenciais de
cada tipo - e, dessa forma, proceder à síntese - cada uma dessas
135
Esses encontros foram realizados entre 14 de julho e 4 de setembro de 1997.
131
características passaria por processo de hipérbole, pelo qual, no entanto, o
exagero prestar-se-ia a sublinhar seu aspecto aglutinador, evidenciando a
essencialidade desse traço em detrimento dos demais. Nesse processo detectar as características e realizar a síntese de cada uma delas por meio de
hipérbole - o ator seleciona, do material trabalhado, as características que
se destacam como essenciais, através de depuração realizada por recortes
em seus movimentos a cada vez que a cena - primeiramente por eles
“improvisada” e, num segundo momento, extraída e adaptada de uma das
burletas - é repetida136. Portanto, após a leitura e a análise das burletas, em
que são arroladas as características de cada um dos personagens-tipo em
investigação, realiza-se uma improvisação em que essas mesmas
características sejam utilizadas e exageradas. A cada repetição de uma
mesma cena, criada pelos atores, eles seriam orientados a operar recortes, e
essa seleção, apesar de conduzida, deveria ser feita, sucessiva e
continuamente, pelo próprio ator, para que ele alcançasse assim as
características essenciais de seu personagem-tipo, efetivamente, por meio
de acervos que ele próprio houvesse constituído, de forma integral, com sua
voz e seu corpo; e não apenas pela leitura ou reflexão sobre os papéis da
peça.
136
O caráter “improvisado”, no contexto dessa experimentação, apresentou o perfil do exercício de
escolha e de adequação dos acervos preparados. Deve-se levar em conta, também, o nível ou qualidade de
acervo preparado por parte de cada um dos atores.
132
Esses
foram
os
procedimentos
metodológicos
gerais
previamente estabelecidos em função da pesquisa teórica, de nossos
objetivos e dos atores escolhidos.
No primeiro encontro137 houve a necessidade de estabelecer
um patamar teórico preliminar com os atores. Tanto diante das
características de contextualização histórica da pesquisa como devido ao
fato de os encontros experimentais estarem destinados a complementar uma
investigação do personagem-tipo já parcialmente realizada em âmbito
teórico, fazia-se necessário que os atores estabelecessem contato com as
discussões e os encaminhamentos que a pesquisa percorrera até então. Para
tanto, foi feita a apresentação do projeto de dissertação de mestrado, dos
resultados até então alcançados e das questões às quais os laboratórios
estavam imediatamente vinculados, destacando sua específica e primordial
importância na produção da dissertação. O processo de estabelecimento
desse patamar também adotou o procedimento metodológico geral: das
informações mais genéricas àquelas mais mais essencialmente ligadas ao
trabalho do ator a ser desencadeado. Iniciou-se com uma discussão em
torno da definição de burleta, conhecida como subgênero do teatro
musicado, na verdade, atualmente tão pouco conhecido. Em seguida foram
apresentadas aos atores a obra - destacando as burletas - de Luiz Peixoto,
137
Em 14 de julho.
133
parte de sua carreira e, então, a relação de suas burletas com a Companhia
Nacional de Revistas e Burletas do Teatro São José, da empresa de
Paschoal Segreto, responsável, como já dito, por todas as montagens
originais das burletas.
Procurou-se destacar aqui - em função do imediato interesse
para os atores - a situação de uma companhia estável - companhia de
repertório, com elenco, músicos, bailarinos, compositores e autores
razoavelmente fixos - como propícia ao trabalho do ator em seu exercício
recorrente de composição e recomposição de personagens138. O ambiente
social das burletas foi relacionado ao Rio de Janeiro da época de sua escrita
- os primeiros 20 anos do século XX - dando especial destaque à reforma
perpetrada na cidade pelo prefeito Pereira Passos e aos seus
desdobramentos em relação às camadas populares que, acantonadas,
acabavam por emergir, reconstituídas, nas burletas em singular “jogo”
imitativo das camadas superiores, trabalhado com razoável insistência
pelos autores cômicos de então. Portanto, praticamente toda a primeira
reunião com atores, que teve por objetivo o estabelecimento desse patamar
teórico preliminar, dedicou-se à exposição - que obviamente apresentou
diversos momentos de discussão - do conteúdo do primeiro capítulo desta
dissertação. Ainda no primeiro encontro foram estipuladas as bases que
138
Ver CHIARADIA, Maria Filomena Vilela. op. cit. p. 37-53.
134
orientariam o trabalho de preparação corporal dos atores a ser dirigido por
Marina Martins, relatora-dramaturg da parte experimental.
O segundo encontro com atores139 teve início com um
aquecimento corporal, com ênfase em respiração e concentração, para
trabalhar as articulações. Depois, foi feito um exercício que visava à
projeção do movimento no espaço. A seguir, solicitou-se aos atores que
exibissem, isoladamente, várias partes do corpo, destacando-as no espaço.
Para isso - e como primeiro passo do procedimento metodológico requerido
pelo objetivo da pesquisa experimental -, cada ator deveria selecionar a
“melhor” parte de seu corpo e exibi-la - avançando e recuando - no espaço
da sala de ensaios. O mesmo exercício foi, então, solicitado, para o
destaque da “pior” parte do corpo. Selecionadas a “melhor” e a “pior” parte
do corpo - exercício sempre feito individualmente, mas ao mesmo tempo,
por cada um dos atores - eles tentariam “melhorar” a “pior” parte de seu
corpo. Isso feito, cada um dos atores tentou manipular a “pior” parte do
corpo do outro, a fim de “melhorá-la” e, então, exibir o resultado do
trabalho com o corpo do parceiro para a “platéia”
(no caso, Marina
Martins e eu).
139
Realizado em 15 de julho.
135
Nesse segundo encontro foi feita a leitura da burleta
Forrobodó, para retirar do texto as caraterísticas encontradas nos
personagens siá Zeferina e Escandanhas - a mulata e o mulato pernóstico.
Verificou-se que a mulata tem suas características muito mais
ressaltadas pelo que os outros personagens dizem seu a respeito do que, de
fato, por suas atitudes. Sua entrada é sempre preparada por comentários dos
demais personagens; nas rubricas, sua caracterização merece destaque.
Sobressaíram na leitura e na discussão com os atores sua posição de
destaque no grêmio carnavalesco (é sua porta-estandarte) e o fato de ela
mesma ressaltar seus atributos como naturais (ninguém lhe ensinou ser
como é; sua graça “está no sangue”). Foi fundamental para os atores
observar que seus movimentos, sempre destacados pelas rubricas,
demonstram jogo corporal insinuante (“bamboleante”).
Já o mulato pernóstico apresenta-se e apresenta sua posição
sobretudo por ele mesmo, diferentemente, portanto, da mulata. Os atores
observaram que o personagem tem destaque no grupo devido a sua
“cultura” - por meio de cuja exibição o personagem se constrói (trazendo
sempre consigo vários discursos a serem acionados conforme a ocasião, é
admirado por todos os outros personagens). Foi fundamental para os atores
a observação de que esse personagem apresenta jogo corporal cambiante,
trabalhando expansão e recolhimento, de acordo com a situação. A
136
observação, tirada sobretudo das rubricas, completa-se com a verificação
de que elas indicam sempre atitude de expansão quando o momento é
propício ao personagem e de recolhimento quando a situação envolve
algum risco. O singular é que, nesses casos, o mulato pernóstico reage
sempre de maneira velada e “sai gingando”.
Na preparação para o terceiro encontro estabeleceu-se que o
trabalho corporal poderia ser mais bem aproveitado se realizado após a
leitura e análise das burletas, beneficiando-se de informações recémrecolhidas. Assim, nesse encontro140 foram feitas leitura e análise - para
enumerar e destacar as características encontradas - da burleta Flor do
Catumbi141, enfatizando essencialmente as dos personagens Dargiso (o
mulato pernóstico) e Flor do Catumbi (a mulata).
Para o tipo de trabalho que iria ser solicitado aos atores
durante os encontros experimentais, foi importante poder reiterar - por
meio da observação de mais um personagem tipo mulato pernóstico
reelaborado por Luiz Peixoto - cujas características, mais uma vez, são
“apresentadas” por ele mesmo, como ocorre com Escandanhas, em
Forrobodó. Alterada apenas sua função na trama - apresenta-se como
“redator-contínuo” do Jornal do Brasil -, articula linguajar pretensamente
140
Em 16 de julho.
Por ocasião desse encontro apenas o primeiro ato da referida burleta havia sido encontrado, e foi esse
que serviu de material para a análise.
141
137
rebuscado, pleno de expressões de efeito. Desenvolve gestual que tende a
imitar, tal como sua fala, atitudes que considera elegantes. É assim que,
com as mulheres, exagera em rapapés e salamaleques, sempre tentando ser
insinuante.
A mulata Flor do Catumbi, que só entra em cena no final, tem
no motivo de sua aparição o mote que organiza o eixo de todo o primeiro
ato, em torno do qual todos os personagens a ela se referem. Comparada às
divas do teatro “Sara Bernarda” e “Lenora Dúzia” , exerce a função de
estrela do “circo de cavalinhos”, justamente à entrada do qual se passa o
primeiro ato da burleta. Tal como a mulata siá Zeferina da burleta anterior,
Flor do Catumbi apresenta-se ao público louvando seus dotes: cantando ser
uma flor, realça sua beleza natural. Também defende seus domínios, mas
diversamente da mulata anterior, apresenta-se sonsa e dissimulada nessa
defesa.
Foram listadas algumas questões importantes que, por meio do
trabalho dos atores, ainda seriam aprofundadas no decorrer dos encontros:
1) o personagem muda a cada burleta, deslocando também sua
função dentro da trama de cada texto, mas ele se mantém como tipo?
2) essas mudanças são possíveis, sempre inseridas no universo
do tipo?
138
3) se são apresentadas tantas características do personagem - e
de forma tão explícita - por que isso não facilita o trabalho de composição
do tipo pelo ator?
Essas questões ficaram sem resposta naquela ocasião, mas
serviram de estímulo aos atores durante a realização dos laboratórios.
Para o trabalho corporal foi feito um aquecimento que
objetivava tanto o autoconhecimento da postura física como a exploração
das possibilidades de formas corporais emergentes por movimentos
circulares, retos, contorcidos, lentos, rápidos. Solicitou-se ainda aos atores
que improvisassem uma apresentação do personagem-tipo: cada qual
entraria na sala de ensaios, andaria pelo palco, avançaria até o proscênio e
cumprimentaria o “público”, observando as características apontadas até
aquele momento dos encontros. Essa demonstração tinha o objetivo de
pesquisar a forma principal do personagem-tipo, seu ritmo e sua postura,
uma espécie de borrão do tipo.
A atriz Vilma Melo entrou na sala gingando e remexendo
exageradamente os quadris, passeando a mão por seu corpo, entre o rosto e
as ancas, sempre com um sorriso brejeiro. Parou na frente do palco e, com
as mãos nos quadris, deu um “adeusinho” para o público. Depois que eu
fotografei sua “pose” perguntou: “Que foi, meu nêgo, gostou do material?”
(Ver em Anexos, foto 1)
139
Bruno Rodrigues, andando de modo deslizante e com um
sorriso franco, entrou na sala desviando seguidamente o olhar para vários
pontos do espaço; parou no proscênio e fez o gesto de tirar o chapéu,
fazendo uma reverência em que mantinha uma perna à frente do corpo e a
outra recuada. Passou a dizer, então, que estava “satisfeito de poder
comparecer, etc..” . Procurava imitar aqui o linguajar do tipo apresentado
nas burletas. (Ver em Anexos, foto 2)
Naquela etapa de experimentação, essa “apresentação” dos
tipos foi considerada satisfatória. Ainda não havia sido esclarecida e
experimentada a diferença entre tipo e estereótipo, e os atores trabalharam,
portanto, com acúmulo de características (como tende a ocorrer com a
composição do estereótipo) e não por síntese, isto é, não tencionavam ou
articulavam características em busca do essencial, operação desejada para a
composição do tipo. Contudo, eu considerava que, àquela altura dos
trabalhos, seria impossível não passar pelo estereótipo para alcançar o tipo.
Quero ressaltar aqui que, findo o trabalho de pesquisa com
atores, avalio ser o procedimento mais adequado para a condução do
processo de composição do personagem-tipo por parte do ator: no período
inicial, selecionar, com precisão e rigor, as características do personagem; a
partir dessa primeira etapa, o ator alcança o estereótipo, pelo acúmulo
caracteriológico; em seguida - e por toda uma longa etapa que exige
140
extrema concentração do material “adquirido”, vocal e corporalmente - , o
ator passa a proceder a síntese dessas características; acionando um
processo de depuração, relacionado sobretudo à composição física do tipo
por meio do trabalho corporal do ator, ele tensiona, quebra e articula
características para formar e deter apenas o essencialmente orgânico - de
caracteres e de gestual - e, assim, alcançar o tipo. Foi possível perceber nas
características dessas duas etapas experimentadas um paralelismo com os
mecanismos detectados durante os estudos sobre a teoria e história do
cômico e do teatro popular: o ator cômico, sobretudo o que atua com tipos,
persistentemente recolhe dados da tradição, monta repertórios que aciona
sucessivamnete, com variações reelaboradas para cada função nova que seu
personagem empreenda.
Foi assim que a improvisação apresentada por Bruno
Rodrigues e Vilma Melo seguiu os procedimentos programados: a mulata
emerge como o estereótipo da mulher que faz uso de uma sedução brejeira;
o mulato pernóstico tende a se apresentar como o malandro, tirando,
mesmo, um imaginário chapéu para saudar a assistência142.
Procurando sempre atentar para o objetivo dessa etapa do
trabalho - o de pesquisar a relação entre o “esboço” do personagem-tipo
142
Pode-se dizer que já nos textos das burletas os tipos mulato pernóstico e malandro delineados por Luiz
Peixoto abrem-se para essa identificação. Como foi visto, muitas vezes o mulato pernóstico faz uso de
seus atributos para, com malandragem, conseguir seus objetivos.
141
elaborado pelo autor e a autoria do ator -, iniciamos o quarto encontro143
pela leitura e análise da burleta República de Itapiru, sempre para
selecionar de maneira bastante precisa as características dos personagens
pesquisados. Significativamente, não foi encontrada qualquer nova
característica para os tipos em análise. Verifica-se, no entanto, um
procedimento de duplicação bastante significativo para a descrição do
personagem-tipo mulato pernóstico: dois personagens da burleta se
revezam no tipo; Marcolino, no primeiro ato, e Florêncio nos segundo e
terceiro atos. Tanto um quanto outro mantém sua configuração típica nos
três atos da peça.
O fato de esse desdobramento, em uma mesma peça, não
alterar a configuração essencial do personagem-tipo mulato pernóstico
revelou dois dados fundamentais em torno da questão investigada. Por um
lado, a duplicidade confirma a associação estabelecida entre personagemtipo e configuração “essencializadora”de características: não há soma; os
mesmos elementos, sintéticos, são reforçados em sua apresentação. Por sua
vez, e no interior de uma mesma trama, foi possível verificar que o
exercício de reelaboração do tipo - sua variabilidade (o acionamento mais
ou menos forte de uma ou de outra característica fundante; a escolha de um
143
Que aconteceu em 17 de julho.
142
elemento e não de outro; a absorção de traços atualizadores) - se encontra
estreitamente associado ao papel - à função - que ele exerce em cada trama.
Assim, nessa burleta de Luiz Peixoto, os cinco personagens
que se unem para ludibriar o português - em mais um exercício de
assimilação de mulato pernóstico e malandro - têm mais bem destacadas
suas peculiaridades de acordo com a situação proposta pela trama.
Considerando que, para a experiência proposta, os atores já
haviam arrolado, com suficiente precisão e clareza, os atributos, a função e
o conceito de inter-relações de cada um dos tipos encontrados em Luiz
Peixoto, a fase de leitura das burletas - para coleta e seleção das
características combinadoras do perfil dos tipos traçados pelo autor- foi
encerrada.
Ainda nesse encontro, e para a preparação corporal, após
trabalho de aquecimento conduzido por Marina Martins, retomaram-se as
improvisações do dia anterior. Dessa vez, os atores apresentaram
performance mais contida, com gestual menos desconcentrado. Contudo,
avaliei que essa redução na movimentação fora causada mais pela
preocupação em não reproduzir o estereótipo anterior do que, de fato, pelo
exercício claro de técnica de síntese operada no conjunto dos caracteres dos
tipos. Esse procedimento - mais voltado para atender à vontade de acertar
no resultado do que para acionar, com concentração, precisão e clareza,
143
mecanismos de seleção e articulação orgânica de dados fundantes ou
essenciais dos tipos - foi desestimulado. Propôs-se que eles andassem
aleatoriamente pelo palco e, pouco a pouco, fossem procurando caminhar
como os tipos; que, cada um a seu tempo, após alcançar um caminhar que
julgasse adequado e mais imprescindível a seu personagem-tipo, dissesse
uma palavra que, naquele momento, definisse categórica e essencialmente o
tipo.
Se, de acordo com minhas reflexões e com a proposta do
planejamento estabelecido, esperava-se que o estereótipo participasse como
uma etapa da construção do personagem-tipo pelo ator, o fato verificou-se,
a meu ver claramente, por meio das palavras escolhidas pelos atores,
naquele momento, para definir seus tipos. Após andar pela sala, a palavra
proferida por Vilma Melo - definindo a mulata - foi “dengosa”. Bruno
Rodrigues, por sua vez, também usou um adjetivo para caracterizar o
mulato pernóstico: “admirável”. Assim, ao proferir adjetivações, os dois
denunciaram ter alcançado apenas o estereótipo (ou a ele voltado): a mulata
foi definida por suas qualidades sensuais, e o mulato pernóstico por seus
atributos falsamente “intelectuais”. Mais clareza quanto ao fato de estarem
na fase do estereótipo adveio da verificação de que os dois atores
adjetivaram seus tipos pelas peculiaridades atribuídas pelos outros
144
personagens das burletas e não por características substanciais às suas
“personalidades”.
Essa experiência, a meu ver, trouxe significativa contribuição
para a reflexão (e para a prática) em torno do personagem-tipo. No
processo de construção desse personagem, na passagem (e/ou na
transformação) do estereótipo ao tipo, há uma alteração substancial que
implica - e, portanto, permite e deve acionar - técnicas de transformação de
um elenco (somatório) de atributos, de adjetivos, em articulação que funda
um ser substantivo.
Seguindo esse outro raciocínio, pode-se concluir que, se o
estereótipo é já resultante não do acúmulo das mais variadas características,
mas, principalmente, das características mais evidentes nos tipos, se trata
sempre de uma circunscrição ao campo dos atributos. Os personagens-tipo,
por sua vez, são a síntese dessas características alcançadas pela busca de
uma essência.
Pude verificar, portanto, que o estereótipo solicita não a
escolha do mais forte ou do mais evidente, mas uma articulação de nova
ordem, que dá o ser do personagem e não se contenta com sua aparência:
não é um borrão, um rascunho indefinido do tipo, mas, antes, um
personagem ao qual está aposto um grande número de características, que
precisam ser sintetizadas para se alcançar, então, o tipo. Levando em
145
consideração esse processo, o tipo resulta em personagem que se distingue
não pelo característico, pelo pitoresco, pelas particularidades que apresenta,
mas sim como resultado do trabalho com técnicas de síntese (seleção,
articulação e recomposição) que opera entre diversas e distintas
características. Volto a frisar que, de acordo com meu plano de trabalho
experimental, o estereótipo fora uma etapa prevista e preparada para a
consecução do tipo.
A partir do andar exercitado, sugeri aos atores que voltassem a
caminhar, retomando com precisão a movimentação encontrada, e - por
meio do exagero - ampliassem suas expressões até que uma máscara facial
- do estereótipo exagerado - ocupasse seu rosto. Com o tensionamento
“máximo” de seus movimentos e não sendo mais possível a cada um
exagerar, deveriam “congelar”. Exercitada, com precisão, a etapa do
exagero, solicitei que, mais uma vez, retomassem a caminhada para, com
consistência corporal e rigor, selecionar, na trajetória hiperbólica (ver em
Anexos, fotos 3 e 4) de cada um, momento único essencial do tipo: o único
momento sem o qual o tipo não subsistiria; aquele que, efetivamente, o
substanciasse.
Emerge, então, um dado significativo para a questão de que se
está tratando: o momento selecionado na trajetória hiperbólica - pelos dois
atores e sem qualquer indicação externa - coincide inteiramente com a
146
“melhor” parte do corpo selecionada na primeira experiência proposta de
exercício corporal. Após essas seqüências de repetições em busca de
primordial concisão - sem acordo prévio e sem qualquer indicação externa os dois atores escolheram, como o momento essencial (ou unidade mínima
substancial), na trajetória hiperbólica dos estereótipos, uma ação que, por
paralelismo, era semelhante ao que havia sido destacado como a “melhor”
parte de seus corpos. Isso, a meu ver, evidenciou uma característica
substantiva dos personagens-tipo não arrolada a partir da leitura e do
exercício de análise e de percepção das burletas, embora virtualmente
presente em todas elas: a vaidade. Personagem “aberto” pelo autor, diante
dele e para ele, o intérprete do tipo lhe “empresta” suas melhores, porque
mais adequadas, características.
Os dados colhidos nesse momento da experimentação
apresentam, portanto, profunda relação com uma das hipóteses que
nortearam a pesquisa: quando atores que compõem tipos emprestam suas
“qualidades” ao personagem, na verdade, estão emprestando ao
personagem materiais selecionados de uma espécie de acervo técnico
adquirido após trajeto de experimentação (ou ao longo da própria carreira
profissional assentada em tipos cômicos, ou mediante treinamento
especialmente voltado para essa construção do personagem). Pode-se,
portanto, dizer que o ator que trabalha com personagens-tipo dispõe de
147
repertório específico, de ator, que vai ao encontro de uma dramaturgia que
só por seu intermédio completa sua escrita em cena.
Os atores que participaram de nossa experimentação já
possuíam “repertório” atorial adquirido em suas experiências teatrais
anteriores - principalmente Vilma Melo que, como registrado, trabalhou
durante alguns anos em um grupo de teatro que organizava suas montagens
a partir de pesquisas cênicas e que tinha trajetória artística de maior
densidade. Esse grupo - Oikoveva - proporcionou a Vilma a vivência de
uma construção cênica baseada, sobretudo, na exercitação do material
preparado previamente pelos atores, ao longo de ensaios e treinamentos,
constituindo com isso uma espécie de “dramaturgia do ator”.
Considero
que
esses
quatro
primeiros
encontros
se
constituíram numa etapa preliminar dos laboratórios com atores: tratou-se,
sobretudo, da aquisição de consciência dos canais metodológicos do
trabalho. Após uma pausa - que serviu para melhor aferir os resultados até
então alcançados e direcionar os encontros seguintes -, os exercícios foram
retomados144 com nova leitura de Forrobodó, tendo em vista dois objetivos.
Em primeiro lugar, procurou-se relacionar o elenco de características dos
personagens-tipo montado a partir das três burletas (Forrobodó, Flor do
Catumbi e República de Itapiru) para perceber quais delas se mantinham
144
Quinto encontro, realizado em 7 de agosto.
148
em todas as burletas e, com isso, reduzir o rol, eliminando aquelas que só
possuíssem relação específica com a trama das peças. Em seguida, a partir
de Forrobodó, compor - adaptando o texto original de Carlos Bittencourt e
Luiz Peixoto - uma cena específica a ser utilizada nos próximos encontros.
Após esse encaminhamento, foi solicitada aos atores a
apresentação de seus tipos. Contudo, tanto em função das características da
etapa preliminar como, principalmente, devido à paralisação dos encontros,
a apresentação, nesse momento, nada acrescentou à pesquisa. Apesar disso,
notou-se uma caracterização mais sintetizada do estereótipo, o que já
apontava para a construção do tipo. (ver em Anexos, fotos 5 e 6)
Assim, novos dados para a reflexão foram observados e
analisados. Mais uma vez, apesar de seguidamente alertados no sentido de
que não se preocupassem ainda com o fato, os atores manifestaram temor
em não alcançar a distinção entre o estereótipo e o personagem-tipo. Em
determinada passagem da discussão, a atriz Vilma Melo afirmou que
necessitava visualizar o tipo, vislumbrá-lo. “Quem é esta mulata ? Como
ela é? Como se comporta?” - indagou a atriz. Essa necessidade do
intérprete de um tipo, a meu ver, aponta outro dado distintivo importante
para o entendimento de sua elaboração. Ele preexiste; sua existência
antecede à composição do autor e do ator. Portanto, a composição do ator
para o personagem-tipo é sustentada por dois pressupostos básicos: o ator
149
empresta ao tipo seu repertório técnico, levando em conta o fato de que o
personagem-tipo tem um lastro, uma história anterior que não resulta da
imaginação criadora do ator, coerente ou não. Assim, às três primeiras
questões já apontadas, soma-se uma quarta: o ator, para compor um
personagem-tipo, aciona procedimentos de “visita” a esse personagem;
toma conhecimento de sua trajetória, de seu lastro histórico. Se o autor,
para a composição dramatúrgica dos tipos teatrais, reelabora personagens
de longa duração pertencentes a verdadeiras linhagens cômicas, o ator
intérprete de um tipo propõe uma nova versão, uma variante desse
personagem continuamente reelaborado na tradição artística popular.
A retomada dos trabalhos práticos145 ocorreu a partir de uma
discussão em que os atores puderam posicionar-se frente à proposta, e,
principalmente, avaliar o grau de sua compreensão do tipo com que
estavam trabalhando. Essa discussão acresceu à lista de atributos do tipo
uma característica essencial à composição da mulata: o desacato. A atriz
avaliou que o jogo sexual, em que o tipo continuamente se envolve na
trama, seria determinado principalmente por uma espécie de elemento
interno de sua personalidade, a insolência, e não por um comportamento,
portanto, lascivo externo ao personagem-tipo. Desacato e insolência
desenvolvem o tipo, o constituem e não apenas o envolvem com os outros.
145
Sexto encontro com atores, realizado em 19 de agosto.
150
A partir desse encontro o aquecimento corporal passou a ser
feito individualmente pelos atores, a fim de que mais imediatamente já se
relacionasse a composição dos tipos. Outra modificação ocorrida na pauta
dos laboratórios foi que, agora ancorados em uma cena - extraída e
adaptada da burleta Forrobodó -, os atores se dedicariam mais
intensamente à composição do tipo mediante contínuo e repetitivo
exercício de depuração a ser usado cada vez que a cena fosse trabalhada.
A cena, adaptada a esse propósito específico envolveu os tipos
em quatro situações claras e distintas, em seqüência cuja ordem poderia ser
alterada. Essas seqüências situacionais da trama, intencionalmente,
apresentavam paralelismos com aquelas já utilizadas nas improvisações: a
exibição, ou apresentação do personagem-tipo; a sedução; o confronto
entre os tipos; o jogo sexual ou a sedução maliciosa. Foi momento
particularmente significativo para a reflexão/experimentação em torno da
relação exercício dramatúrgico e trabalho do ator. Além disso, a cena
ofereceu aos atores um texto a ser incorporado na composição do tipo, o
que era absolutamente imprescindível para o personagem-tipo mulato
pernóstico, que se constitui fundamentalmente por sua fala: seus discursos.
Nesse encontro, portanto, após essa discussão inicial, cada
ator, individualmente, realizou seu aquecimento, seguido, então, da leitura
da cena adaptada, de quatro maneiras distintas, com o intuito de explorá-la
151
ao máximo. Primeiramente, realizou-se uma leitura branca146 da cena, para
que os atores tomassem conhecimento da mesma. Após a leitura branca,
solicitei-lhes que procedessem a uma leitura exagerando as intenções
encontradas no texto, explorando-as ao máximo. Essa leitura funciona
como uma espécie de “lente de aumento” das intenções da cena e, sendo
bem feita, normalmente dá aos atores a noção mais aproximada dessas
intenções e de como devem ser expressas. Também com as mesmas
finalidades - mas adicionando o componente do ritmo ao exercício - foi
pedido aos atores que fizessem leituras muito rápida e muito lenta da cena.
Essas leituras são acrescidas da dificuldade de manter as intenções das falas
alterando-lhes, significativamente, o ritmo e o andamento. Depois,
deixando de lado o texto, foi feita uma improvisação obedecendo à trama
da cena de peça adaptada, para que os atores sugerissem sua
movimentação, aplicando (selecionando, cortando e recompondo) o
repertório adquirido. Essa improvisação foi repetida algumas vezes, sempre
sob a orientação de que não fossem feitos novos movimentos e de que
apenas se selecionassem os mais significativos. Esse procedimento semelhante ao depuramento no elenco de características dos personagenstipo levantado a partir das leituras das burletas - tinha o mesmo objetivo:
146
Leitura branca é o nome que se dá - nos ensaios ou na teoria do teatro - à leitura feita pelos atores com
entonação normal, respeitando-se apenas as regras da língua e procurando entender tanto a trama da cena
como as relações entre os personagens.
152
selecionar os movimentos essenciais do tipo. Como pode ser notado, em
função das questões sob investigação, o procedimento de síntese constituiu
toda a metodologia básica empregada nos laboratórios para a composição
do personagem-tipo, tanto no levantamento e processamento das
características extraídas das burletas quanto na adaptação e na leitura da
cena selecionada, e na trajetória de composição dos atores.
O encontro seguinte147 foi inteiramente dedicado à limpeza
rigorosa de cada movimento ou ação adquiridos na sucessão de
improvisações. Assim, após o aquecimento individual, a improvisação foi
repetida diversas vezes, sempre procurando, a cada passagem, operar a
síntese da movimentação, alcançando com isso uma composição precisa e
expressiva do personagem. Ainda nesse encontro foi realizado um
exercicío corporal com ritmos de época (maxixe, chorinho e samba), para
que os atores pudessem explorar o espaço da sala de ensaios com
deslocamento que se adequasse à música e para pesquisar posturas
corporais que pudessem alimentar a composição dos tipos: não com novos
movimentos, mas com tensão e ritmo corporal distintos.
Essa exploração também trabalhou com o exagero: cada ação
ou máscara facial ampliada, dessa maneira e nesse processo de trabalho,
permitiu observar que, para a composição do tipo entendido como síntese,
147
Realizado em 21 de agosto.
153
também o exercício com técnicas de exagero se traduz em “interioridade”
que remete à depurada ampliação de tensionamentos, ampliação que, nesse
caso, remete à qualidade expressiva e não à quantidade de atributos do tipo.
Como se vê, assim como ocorrera com a síntese, o exercício
com a hipérbole fez parte de todo o processo experimental, como
metodologia destinada a possibilitar a aplicação de recursos técnicos
voltados para a escolha de tensões e ritmos de alta (densa) qualidade
expressiva para a composição do tipo por intermédio do trabalho do ator.
Voltamos a trabalhar com a cena adaptada no encontro
seguinte148, utilizando-a, dessa vez, como aquecimento para os trabalhos de
leitura. Para relaxar os atores, a leitura foi feita primeiro de trás para a
diante, fala a fala. Esse procedimento auxilia a memorização do texto.
Depois, invertemos os papéis: o da mulata foi lido pelo ator Bruno
Rodrigues, e o do mulato pernóstico pela atriz Vilma Melo. Esse pequeno
momento de descontração também serviu para que os atores percebessem a
visão do outro quanto a seu tipo. A seguir, procedeu-se a uma leitura do
texto para a qual foi pedido aos atores que sublinhassem, exagerando,
apenas uma característica dos personagens. Para o mulato pernóstico foi
sugerido ao ator que destacasse a vaidade. A mulata deveria exagerar o
desacato. Essa ênfase de uma determinada característica permitiu que
148
Em 26 de agosto.
154
melhor se identificassem as passagens do texto mais propícias ao seu
afloramento (“descoberta” pelo exercício do ator), assim como aquelas em
que ela é desnecessária.
Nesse mesmo encontro foi proposta a subdivisão da cena para
que se experimentasse a distribuição da movimentação dos atores na cena
por partes. Cada subdivisão apresentava uma unidade, e, para cada uma
delas, foi feita, então, uma espécie de partitura corporal de ações, composta
pelos elementos trabalhados pelos atores no decorrer das improvisações e
sucessivamente depurados durante os encontros, pelos processos de síntese
e ampliação das tensões. Com a finalidade de fixar essa partitura, os atores
repetiram a cena várias vezes, de unidade em unidade, sem as falas dos
personagens, executando apenas a partitura corporal. Esse encontro foi
assistido pela orientadora desta dissertação que, ao final, solicitou uma
reunião para discuti-lo, avaliar os resultados já alcançados e sugerir
possíveis encaminhamentos.
Nessa reunião149 a profa. Beti Rabetti indicou - de acordo com
suas anotações do encontro e, principalmente, retomando os objetivos e o
planejamento da parte experimental da pesquisa - questões importantes
que, já tendo aflorado nos laboratórios, haviam sido não suficientemente
problematizadas ou discutidas tanto por mim quanto pela relatora149
Realizada em 27 de agosto.
155
dramaturg. Um dos pontos destacados remeteu à cena adaptada em que o
mulato pernóstico confunde os discursos que deve ler, pois tem vários
deles nos bolsos. Esse dado poderia apontar para um momento
emblemático de um tipo que apresenta, literalmente, um acervo de
discursos (“no bolso do colete”), fazendo eclodir sua comicidade pelo uso
equivocado de um repertório em local errado (ver em Anexos, foto 9).
Ainda observou a orientadora que os dois personagens haviam constituído,
em suas partituras corporais específicas, movimentos substanciais e
distintivos: a mulata elaborara uma linha fundamental em espiral, com
deslocamentos laterais, e o mulato pernóstico, uma linha fundamental em
diagonal, sinuosa e ascendente. O reconhecimento dessas linhas certamente
auxiliou o trabalho de composição dos atores. É conveniente frisar que as
trajetórias corporais - e conseqüentemente a partitura criada a partir delas foram elaboradas pelos atores, Marina e eu só atuando com indicações para
auxiliar o processo de limpeza ou retirada do excesso de movimentos, ou,
em algumas poucas vezes, invertendo a ordem de alguns gestos. Tendo em
vista o caráter metodológico do processo de trabalho, sugeriu ainda a prof a.
Beti Rabetti que se solicitasse aos atores a nomeação de cada uma das
passagens (ou partituras) de seu trajeto de composição de tipos, para que
eles a fixassem enquanto unidade de repertório a ser mais fácil e
156
diretamente manipulada. E ainda aconselhou exploração mais profunda dos
recursos vocais dos atores.
No encontro seguinte150, após o aquecimento individual, foi
solicitado aos atores que retomassem a cena, repassando a partitura gestual
unidade a unidade (ver em Anexos, fotos 7, 8 e 9). Então, cada uma das
seqüências das unidades foi destacada da partitura geral e bastante frisada,
com o objetivo de assegurar mais domínio de movimentação. Orientou-se,
então, os atores no sentido de nomear cada uma das seqüências de ação das
unidades e que “apelidassem” seus personagens-tipo de acordo com essas
seqüências.
Posso afirmar que, finda essa etapa, cada um dos atores havia
elaborado sua própria trajetória de ações, que poderia, assim, ser trabalhada
individualmente, com seis seqüências de ações nomeadas. Era como se essa
partitura de ações fosse composta por seis compassos. Para que a partitura
fosse memorizada, com profunda e precisa consciência corporal, e pudesse
ser trabalhada isoladamente, compasso a compasso, e até mesmo ter sua
seqüência
reorganizada, os
atores
foram solicitados
a
trabalhar
individualmente sua trajetória, dessa vez deslocada do espaço e do contexto
da cena. Ainda com o mesmo objetivo foi feito um “ditado” de seqüências,
os atores reproduzindo os compassos que lhes eram solicitados
150
Realizado em 28 de agosto.
157
nominalmente, de acordo com os nomes com que eles mesmos as haviam
batizado
Também
pretendendo
obter
o
máximo
domínio
das
seqüências, foi pedido aos atores que as reorganizassem, tendo música da
época ao fundo, alternando a ordem de suas partituras e exagerando sua
execução, transformando, enfim, as seqüências em verdadeira dança.
Voltando à leitura das cenas para relacionar movimentos e
falas, foi indicado aos atores as linhas fundamentais de cada personagem (a
mulata em espiral com deslocamentos laterais, e o mulato pernóstico em
diagonal sinuosa e ascendente) e solicitado que, exagerando essas linhas na
execução dos movimentos, procurassem a voz - também mediante exagero
- que melhor se adequasse a seus tipos.
Para aferir se o ator que compõe personagens-tipo manipula
seu repertório e, sobretudo, para verificar a qualidade da manipulação
alcançada, foi solicitado aos atores, no encontro seguinte151, duas novas
improvisações, colocando os personagens-tipo em situações distintas
daquelas em que estão envolvidos na cena adaptada da burleta e até então
trabalhada. Nos dois casos, a ação, os movimentos e os deslocamentos dos
tipos nas improvisações obedeciam a compassos da partitura corporal,
reorganizados e realocados de acordo com a nova trama proposta. Esse
151
Realizado em 2 de setembro.
158
encontro contou com a presença de alunos do curso de Mestrado em Teatro
que naquele período - segundo semestre de 1997 - cursavam a disciplina
Metodologia da Pesquisa, ministrada pela Profa. Beti Rabetti, e de meus
companheiros do Projeto de Pesquisa Integrado Um estudo sobre o cômico:
o teatro popular no Brasil, entre ritos e festas. A explicitação da parte
experimental da pesquisa, naquele momento do trajeto de minha
investigação, obrigou-me a elaborar uma síntese que me auxiliou no
prosseguimento dos trabalhos, assim como as discussões ali desenvolvidas
fizeram com que todos participassem significativamente daquele momento
dos encontros laboratoriais. Na verdade, nesse encontro, fiz uma espécie de
revisão das etapas que constituíram os laboratórios com os atores para que
esse grupo tomasse contato com a totalidade das etapas empregadas na
pesquisa e com a metodologia adotada.
Como preparação para o último encontro152 foi pedido aos
atores que trouxessem o que consideravam acervos técnicos de que
dispunham quando do início dos trabalhos. Esse “currículo” seria
apresentado cenicamente e não lido ou relatado oralmente. Na
demonstração dos atores ficou evidente a diferença entre a preparação da
atriz Vilma Melo - acostumada a trabalhar com montagens teatrais de
pesquisa, principalmente com o grupo teatral Oikoveva - e do ator Bruno
152
Realizado no dia 4 de setembro.
159
Rodrigues - em fase inicial de formação. Na exibição de seus “currículos”,
a apresentação de Vilma precedeu à de Bruno, e o ator mostrou-se
visivelmente embaraçado diante de sua pouca bagagem ou pela falta de
consciência que dela tinha para uma demonstração. Essa diferença,
entretanto, era esperada por Marina Martins e por mim, em função da
discrepância entre a qualidade e, principalmente, o tipo de experiência
anterior dos dois atores, revelados, aliás, durante todo o processo da
pesquisa experimental. Essa diferença, no entanto, sempre resultou na
maior atenção a Bruno para que os dois pudessem alcançar os objetivos
propostos. Entretanto, o que se pretendeu com esta última proposta foi
poder verificar - e fazer o ator verificar - a importância da aquisição e do
domínio de unidades de repertório para um trabalho consciente de
composição do personagem-tipo153. Os trabalhos foram concluídos com
uma proposta experimental que me permitisse refletir sobre o domínio de
repertórios de atuação (e sua manipulação consciente) por parte dos velhos
cômicos profissionais e sobre as metodologias hoje disponíveis para que os
atores possam atuar nessa direção.
153
Ainda deve ser ressaltado que, apesar de intimidado com a desenvoltura apresentada por Vilma Melo
em alguns exercícios, o ator Bruno Rodrigues sempre demonstrou enorme empenho e entrega na
realização dos exercícios propostos durante todo o processo dos encontros. Esses dois jovens atores
participaram com afinco e dedicação em todas as etapas dos encontro experimentais. Dessa forma, meu
projeto de pesquisa pessoal também pertence um pouco a eles. Outra contribuição valorosa, que merece
destaque, é a da relatora-dramaturg Marina Martins: sua entrada nos laboratórios traduziu-se em
dedicação e empenho que contribuiram decisivamente para os resultados alcançados.
160
3. 5. Considerações finais
Esses encontros experimentais definiram de forma eficiente
toda esta dissertação. Sua realização reorganizou os rumos de cada um dos
capítulos deste trabalho e propiciou enorme diálogo com suas unidades
exclusivamente teóricas. Como já mencionado, ao estabelecer estreito
diálogo entre teoria e prática, cada uma dessas instâncias é alimentada de
fecundo e propício material circulante, que produz novas questões,
solicitando novas abordagens para a discussão central única: a contribuição
do ator para a completa configuração do personagem-tipo escrito pelo autor
teatral.
Nas expectativas específicas desta dissertação de mestrado
cabe ressaltar o fato de hipóteses que nortearam esses laboratórios, bem
como a metodologia adotada, terem sido não só postas à prova na prática
da cena teatral, como por seu intermédio se alteraram, se especificaram,
realimentando minha discussão teórica. Creio também ter contribuído para
novas experiências em torno da composição dos personagens-tipo. Enfim,
após esses encontros, e só por meio deles, acredito que se possa pensar em
tipos cômicos teatrais (que ainda tendem a ser considerados pela tradição
teórica incompletos ou esquemáticos) enquanto personagens portadores de
longa e enorme carga de teatralidade. Muitos deles só esperam atores
dispostos a “concluí-los” com seus repertórios de atuação, que, muitas
161
vezes colhidos na tradição popular, são fixados e aprimorados seja pela
constância profissional em torno de determinados tipos, seja pela aquisição
de técnicas metodologicamente adequadas.
162
CONCLUSÃO
Não tem doutores na favela,
Mas na favela tem doutores
O professor se chama bamba
Medicina na macumba
Cirurgia lá é samba
Assis Valente
No decorrer da elaboração desta dissertação foram propostas
diversas discussões com o objetivo de compreender os procedimentos
existentes em determinada manifestação de origem popular, utilizada no
teatro ligeiro carioca, nos primórdios do que se constituiu, posteriormente,
como nossa indústria cultural e de lazer.
Esses procedimentos ficam, na verdade, quase sempre
encobertos, sobretudo, pelo talento e pelo histrionismo de nossos cômicos
populares, fato que contribui para que esse exercício - de composição e de
construção do personagem-tipo - seja visto como manifestação espontânea
ou natural, mais uma espécie de atributo característico do teatro brasileiro,
mais um aspecto de um povo em que a graça, a salacidade e a comicidade
brotam espontaneamente. “Está no sangue!”, diria a mulata siá Zeferina, de
Forrobodó. Contudo, se for levado em conta o comentário de outra mulata
presente nas burletas de Luiz Peixoto, Clóvis, de Dança de Velho, “para ser
porta-estandarte/ Em qualquer parte/ Precisa arte/ E engenho até,/ É troço
que tem ciência...” Dessa forma, a partir do estudo do personagem-tipo
presente nas burletas de Luiz Peixoto, procurei, ao longo desta pesquisa,
163
desvendar e discutir, se não a presença de uma metodologia para os atores
da época das montagens originais das referidas burletas, ao menos a
presença de possíveis procedimentos regulares necessários ao ator para a
elaboração do personagem-tipo.
Distintos dos mecanismos que envolvem outras formas de
composição atorial, os atores que compõem personagens-tipo estruturam
seu trabalho mediante repertórios técnicos próprios, constituindo seu
acervo pessoal de atuação. Assis Valente já dera a pista: o “professor”,
nesse caso, é “bamba”, a operação é “samba”, ou seja, durante o longo
trajeto profissional do cômico popular - ou do sambista, ou do artesão -,
constroem-se sofisticados procedimentos de elaboração, os “Estatutos da
Gafieira” de que fala Marina Martins em seu relatório acerca dos Encontros
Experimentais (ver em Anexos). Torna-se necessária, acredito, observação
um pouco mais atenta e persistente do que a habitual para se chegar a eles.
Esta dissertação, portanto, pretendeu contribuir para as
discussões referentes ao teatro ligeiro carioca, sobretudo em relação ao
cômico popular, aquele que habitualmente se entrega à composição do tipo.
164
ANEXOS
Os anexos a seguir constituem a produção da pesquisa que
documenta, em parte, os procedimentos utilizados no Encontros
Experimentais com Atores - Laboratórios Atoriais, realizados nos meses de
julho a setembro de 1997, tendo por finalidade levantar e experimentar
hipóteses posteriormente utilizadas nas formulações teóricas desta
dissertação, e, ainda, verificar, no exercício da cena teatral, hipóteses
levantadas em pesquisa preliminar teórica a respeito do teatro cômico, do
teatro popular e do personagem-tipo presente na burleta de Luiz Peixoto.
O primeiro anexo é o relatório final de Marina Martins,
relatora-dramaturg dos Encontros. O referido relatório foi parte das
atividades desenvolvidas por Marina na disciplina Seminários Avançados
de Estudo do Espetáculo, do Mestrado em Teatro da Uni-Rio, ministrada
pela orientadora desta dissertação.
O diário de trabalho do ator Bruno Rodrigues - que trabalhou a
composição do personagem-tipo mulato pernóstico - vem a seguir.
O roteiro de atividades dos Encontros é o anexo seguinte. Esse
roteiro foi elaborado, conjuntamente, por Marina Martins e por mim.
O texto utilizado pelos atores, cena extraída e adaptada da
burleta Forrobodó, de Luiz Peixoto e Carlos Bittencourt, que serviu de
165
ponto de partida e suporte para o exercício de composição dos tipos, vem a
seguir.
Por último, as fotos tiradas nos exercícios realizados durante
os Encontros Experimentais.
166
PONTO DE FUSÃO
Experimento de escrita teórica a partir dos Encontros Experimentais com
Atores, trabalho realizado por Marina Martins para a disciplina Seminários
Avançados de Estudos do Espetáculo, ministrada pela Prof a Dra Beti
Rabetti (Maria de Lourdes Rabetti Giannella)
I. UMA EXPERIÊNCIA METODOLÓGICA EM DISCUSSÃO
Processo de síntese na construção do personagem-tipo, o mulato
pernóstico e a mulata, em três burletas de Luiz Peixoto
Em busca dos mecanismos de composição do personagem-tipo
a partir das burletas de Luiz Peixoto e levando em conta a participação
constante e criativa como dramaturg no processo experimental, foi de meu
interesse interferir diretamente na pesquisa corporal dos atores para discutir
o potencial da bagagem pessoal de um coreógrafo e contribuir para a
construção da cena com sugestões de exercícios, temas e roteiros de
improvisação, além da avaliação de resultados durante as etapas de
trabalho. Esse processo, acredito eu,
permitiu diálogo franco e
enriquecedor entre todos os integrantes da equipe.
Assim, na posição de uma das pesquisadoras da cena, pelo viés
do trabalho de corpo do ator, procurei desenvolver uma seqüência
metodológica para a construção do personagem-tipo, utilizando-me de
167
exercícios específicos
que trabalham alguns dos mecanismos de
composição de personagem nas práticas coreográficas, visando a fornecer
ferramentas eficazes à realização de uma espécie de partitura cênica para os
atores, a dramaturg e o pesquisador-diretor.
Considerando que o texto, quando apresenta o personagemtipo como esboço, pressupõe a participação autoral do ator no processo de
encenação, defini o objeto ator-personagem-cena, para lhe dar mais
atenção, como a relação entre as características encontradas no texto, o
corpo do personagem em movimento e o jogo de cena. Para chegar a uma
configuração de síntese na composição da partitura cênica do personagemtipo foi necessário procurar o ponto de fusão indicado pela combinação das
características do texto, entrelinhas e rubricas, e do movimento visível.
Pode-se dizer que é na conexão de palavra, intenção e gesto que se dá a
composição do personagem, em articulação do documento escrito com o
momento da exploração de repertório.
Para tanto, a experiência adquirida pelo exercício em
improvisação tornou-se fundamental. Quando se quer estabelecer conexões
e evitar o estereótipo (do personagem), procura-se encontrar o lugar de
interseção dos fatores explorados - mediante processo seletivo das
associações orgânicas entre tempo, percurso e forma; gesto do ator e gesto
do personagem; modo de falar do personagem e jogo cênico - para produzir
168
a síntese cênica. Essa síntese é operada a partir da exposição e da soma de
elementos, sofrendo, mais adiante, a operação, inversa, de subtração. A
escolha pressupõe a perda: "ou isto ou aquilo".
Para formular uma equação de síntese, parti de alguns
pressupostos já aferidos por pesquisadores e coreógrafos modernos ao
longo do século XX: a concentração voltada para dentro do corpo em busca
do centro de gravidade, a respiração como estímulo cerebral e muscular, a
procura do gesto expressivo, a exposição, a emolduração, o exagero
estereotipado, o caminho mais curto. Esses são alguns dos fatores que
ajudaram a ressaltar e recortar as características mais evidentes e essenciais
do personagem-tipo e que englobam outras menores durante o jogo cênico.
Sendo assim, o processo experimental, desde o primeiro
contato entre as pessoas da equipe até a seleção do material levantado e
suas escolhas, chegou a se apresentar como configuração de uma síntese
cênica do personagem-tipo no seu ponto de fusão. Além disso, tornou-se
ferramenta para um experimento de escrita teórica realizado pela
dramaturg.
II. O ESTATUTO DA GAFIEIRA
169
Toda gafieira tem um estatuto, um conjunto de regras
comportamentais que garantem o seu bom funcionamento. Sendo assim,
encontramos, nas três burletas de Luiz Peixoto escolhidas para o
experimento, Forrobodó (1911), Flor do Catumbi (1912) e República de
Itapiru (1919), o ambiente do "Grêmio Recreativo Familiar Dançante Flor
do Castigo do Corpo da Cidade Nova", de Forrobodó, como o indicado
para o palco em que se dá o jogo entre ator-personagem-cena.
A burleta como gênero popular de teatro musicado ligeiro tem
a burla como raiz e como tema de jogo: burla igual a enganação. A paródia,
a sátira, a farsa são elementos que caracterizam e compõem o enredo
simples em que um personagem engana o outro. No reino da falsidade,
onde os pobres imitam os ricos e os expõem mediante ridicularização e
cumplicidade, até com a platéia, vemos que a deformação grotesca, tanto
da linguagem quanto do caráter dos personagens, está presente no detalhe
ressaltado pela caricatura, pela afirmação dos valores morais e naturais de
uma camada inferior e, visivelmente presente, na opinião crítica dessa
camada.
O primeiro encontro experimental resultou, portanto, no
esclarecimento da proposta de trabalho: experimentar o processo de
composição do personagem-tipo sem o intuito de fechar o resultado na
forma de cena finalizada para público. Mas consideramos, de qualquer
170
modo, o espectador como parte integrante e fundamental do jogo cênico
pela relação direta que o personagem estabelece com o público, como nos
números de canto em que se apresenta, nos discursos dirigidos a todos os
presentes e em pequenos comentários que partem do palco para a platéia. A
partir da definição de burleta e da prática teatral da época, vimos, também,
que geralmente o texto era criado para uma companhia teatral específica
com atores fixos e que, por isso, pressupunha a co-autoria, por parte dos
atores, dos personagens-tipo esboçados pelo autor e escritos para os "tipos
do elenco", já possuidores de repertório próprio. A platéia, por sua vez,
estava familiarizada com os tipos que encontrava nas ruas, com os atores e
com os canais abertos para a imediata comunicação.
Sendo assim, consideramos pressuposto inicial de nosso
estatuto o conceito da figura da hipérbole trabalhada no mulato pernóstico
e na mulata, por meio de soma, analogia e síntese. Para tal, decidimos
procurar, no texto e no corpo do ator, as características essenciais dos
personagens que englobam outras, menores, procedendo por articulação de
gesto e texto. Visando a evitar o estereótipo, conduziu-se o trabalho de
improvisação para o recorte na escolha do momento de concentração de
uma característica essencial.
Além disso, contando com a participação autoral do ator no
fechamento da cena, que completa o esboço do personagem indicado pelo
171
autor, procuramos verificar qual a contribuição de repertório de cada ator,
como
controle
metodológico
para
posterior
reflexão
sobre
os
procedimentos de cada encontro.
É importante levar em conta a figura da hipérbole proposta
pela orientadora. Destacando os termos soma, analogia e síntese, não
podemos trabalhar só com os dados objetivos retirados do texto-documento
e das ações práticas-experimento. Como figura de linguagem, a hipérbole
engrandece ou diminui exageradamente a verdade das coisas, e, como
resultado de uma equação geométrica, os eixos conjugado e transverso são
iguais.
Foi fundamental recortar as contribuições de cada um dos
participantes. Nesse caso, detectar as funções objetivas e subjetivas do
acervo pessoal tornou-se ponto relevante no processo de criação, pelo
menos do ponto de vista da dramaturg. Às analogias subjetivas somam-se
as objetivas, e, na dinâmica dessa interação, o sujeito confunde-se com o
objeto em constante troca de lugar. É importante ressaltar o processo de
criação pelos atores de unidades, claras e precisas, para a manipulação dos
elementos de síntese e organicidade na construção do tipo.
Onde o palco é a forma que expõe, o personagem é um dos
elementos significativos do conteúdo. A partitura cênica do ator seria,
172
então, o resultado de uma discussão sobre a formação dos signos e a sua
seleção, arrumação e composição para a construção dessa síntese.
Como numa experiência alquímica entre as forças espaciais e
os signos gestuais, os fragmentos de memória (visual, afetiva, táctil e
corporal) e as associações produzidas pelo ator aparecem no corpo do
personagem, conduzidos para o lugar (de origem intencional ) propulsor do
gesto para sua forma.
Saber de si, abrir em si novos atalhos, dirigir a carga
emocional para o centro de gravidade do personagem em seu corpo e
associar a intenção da elocução do texto aos movimentos refletidos no
espaço cênico são atitudes resultantes da exploração das possibilidades de
jogo, de participação e de troca com o gênero burleta, os personagens-tipo,
a orientação teórica e o processo artístico.
III. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
III.1. Leitura das burletas e levantamento das características principais
Trabalhando com as burletas selecionadas, fizemos o
levantamento
das
características
do
texto,
separando
os
dados
esclarecedores e definidores dos personagens escolhidos, o mulato
pernóstico e a mulata, como seu linguajar, seu ambiente e as descrições
contidas nas letras das canções, nos comentários de outros personagens e
173
nas rubricas. O texto foi tratado como documento histórico e como registro
original.
Conforme
pudemos
verificar,
as
características
dos
personagens-tipo (o mulato pernóstico e a mulata) se repetem, mudando
apenas as circunstâncias do enredo: o que varia é a situação dramática na
qual o personagem-tipo está inserido ou a função que ele exerce em cena.
Mantém-se, porém, o tipo variante em sua função cênica, como, por
exemplo, o mulato pernóstico: apresentar outros personagens, servir de
mediador, ser o líder intelectual, ser o administrador do "Grêmio
Recreativo", entre outros. O conceito de jogo está presente na proposta
primeira do texto: todos os atores já sabem das possibilidades e das funções
dos personagens-tipo. Além disso, existe uma procura de causalidade que
se relaciona com a ação que o texto propõe. Na leitura de Forrobodó, por
exemplo, vimos que existe um jogo de palavras que define uma camada
social e aparece como uma espécie de dialeto que tem ritmo próprio e se
apresenta na forma de bordões lingüísticos e gírias, e, ainda, como recurso
usado pelo personagem mulato pernóstico, o discurso tirado do bolso do
colete. É próprio desse personagem, por ser pernóstico, usar palavras
"difíceis", características das camadas mais elevadas, que tira da manga
quando deve apresentar-se como "letrado", mas as pronuncia erradamente.
174
A descrição de uma dança de quadrilha (outro exemplo)
aparece como elemento de confronto entre os hábitos sociais de uma
camada elevada no universo de uma camada mais baixa, em movimento
circular de informações entre as faixas culturais. A chegada dos crioulos no
"Grêmio Recreativo" define a indumentária usada pelos homens da elite, e
o texto todo funciona como projeção e paródia dessa camada social. Por
exemplo: o circo de cavalinhos versus o teatro sério, a mulata do circo
comparada às divas do teatro, o acréscimo do nome como título de um
cargo importante, como "o redator-contínuo" do jornal, o mulato pernóstico
comparado a Rui Barbosa e aos escritores mais famosos, etc.
III.2. Trabalho de corpo/voz : exercícios e improvisações
Para a realização do experimento corporal, dividimos o
processo de investigação em quatro tópicos distintos.
1. Experiências práticas de concentração para o interior do corpo, o
percurso do ar na respiração e o ritmo respiratório.
2. Exercícios para o domínio do fluxo do movimento e a projeção do gesto
no espaço a partir da localização e do estímulo de lideranças corporais:
exploração em partes isoladas, conexões, espaço interno, externo e
universal - para dentro, para um e para muitos, tamanho e percurso do
175
movimento pelo acúmulo e exagero das características corporais dos
personagens.
3. Exercícios de deslocamento do corpo durante o jogo cênico, mediante
avanço, recuo, suspensão, corte, continuidade, aumento e diminuição em
seqüências de movimento.
4. Leitura e exploração do texto em várias formas de elocução
harmonizadas com o movimento dos personagens.
III.3. Montagem das unidades de repertório e atuação
O mulato pernóstico definiu-se como um "gato de rua" - termo
genérico que nomeia a atitude do personagem e seu modo de ser. A
seqüência das unidades organizou-se pelos nomes: 1. desejo, 2. chamego,
3. o momento, 4.Wando!, 5. Sujô!, 6. Sai de baixo.
A mulata identificou-se com uma " batedeira" - muito mais
pelo movimento interno que a "batedeira" provoca, do que, como no
exemplo anterior, pela definição de uma atitude. A seqüência foi
apresentada na seguinte ordem: 1. flor, 2. Eu sô neguinha!, 3. disfarce, 4.
voa..., 5. ombrinho, 6. Ilê!.
Essas unidades foram montadas a partir de uma escolha
deliberada das formas corporais, adquiridas durante o processo de
exploração, e que sintetizaram uma imagem de corpo inteiro do
176
personagem. A seqüência orgânica criada pelos atores sofreu interferências
do pesquisador-diretor e da dramaturg-coreógrafa, tais como as seguintes
propostas de fazê-la no lugar, pelo espaço, ditado de movimento pelos
nomes das unidades e corrida pela cena inteira, ligando as unidades.
III.4. Manipulação e combinações de repertório
A partir dos exercícios de exploração do próprio corpo no
espaço, da associação das características objetivas e subjetivas dos
personagens, das dúvidas e das discussões sobre o estereótipo e a síntese, a
naturalidade e a organicidade, a experiência e a inexperiência, a bagagem
de cada um veio à tona e foi-se configurando na imagem do personagem
daquele determinado ator. À maneira de cada um, as associações foram
sendo feitas, conforme seguiam as sugestões de aplicação da seqüência de
unidades em situações diversas e de maneiras diferentes, que estimularam a
manipulação do acervo pessoal para a combinação de repertório.
Um bom momento que vale recortar: a "experiência da
vaidade e o empréstimo do ator para o personagem". Logo no segundo
encontro foi sugerido um exercício de concentração no isolamento de
partes do corpo e sua trajetória pelo espaço por meio de liderança,
prestando atenção no tipo de forma alcançada (redonda, achatada, agulhada
ou contorcida) e no percurso da mesma por dentro do corpo. Uma vez
177
exploradas as possibilidades corporais, foi solicitado um trabalho de
aumento e diminuição das formas durante avanços e recuos, procurando
alcançar a nitidez do gesto. A seguir, foi pedido aos atores que escolhessem
uma parte do corpo que representasse o melhor de si e que a expusessem
durante um avanço, chegando a um momento de congelamento e fixação da
imagem. O mesmo foi pedido para a pior parte, e, dessa vez, a parte foi
"melhorada" pelo parceiro. Mais tarde, durante o processo de escolha e
manipulação de repertório, a parte melhor de cada um apareceu como uma
espécie de emblema do personagem, considerando que tanto o mulato
pernóstico quanto a mulata têm como característica comum a vaidade.
O empréstimo de si, o orgulho individual e o prazer na
exibição do seu melhor são fatores que implusionam uma atitude de troca
de materiais, numa ciranda de espelhos, entre ator e personagem.
IV. CONCLUSÃO
Análise do projeto de dissertação e a ponte experimental
O olhar do dramaturg
O projeto de dissertação de mestrado “Precisa arte e engenho
até...”: um estudo sobre a composição do personagem-tipo através das
burletas de Luiz Peixoto, de Daniel Marques, tem como objetivo principal
formular a pergunta: como se constrói o personagem-tipo e que instância de
178
comicidade se estabelece na elaboração do personagem-tipo na burleta?
Além de apresentar uma proposta de estudo teórico sobre o gênero burleta
no contexto social do Rio de Janeiro do início do século, a pergunta
também põe em discussão a escritura de um texto dissertativo que, para sua
montagem interpretativa, necessita do experimento laboratorial como mais
uma fonte de consulta. Para a produção desse novo documento foram
realizados os Encontros Experimentais com Atores durante os meses de
julho, agosto e setembro de 1997, como um "desdobramento prático do
projeto com o objetivo de explicitar os mecanismos para a construção do
personagem-tipo por Luiz Peixoto"I.
O autor do projeto nos fala em uma "vertente prática" que
contribuirá para a reavaliação do modo como vem sendo enfocado o
exercício do ator popular com o propósito de verificar como se dá a
participação ativa do ator na elaboração do personagem, nem tão
espontânea, nem tão estereotipada, porque, para tal construção, o ator
precisa manipular acervo técnico específico e criar a complementação do
personagem na cena, conforme indicado no texto pelo autor da burleta.
No sentido de trabalhar a mistura da "vertente prática" com a
teórica, o pesquisador sentiu a necessidade de um dramaturg para
acompanhar e relatar os Encontros Experimentais, assim como discutir
procedimentos e resultados. Nesse caso é importante considerar a função de
179
um dramaturg como um teórico da "vertente prática". Ora, para pensar uma
fusão entre teoria e prática foi preciso detectar as funções objetivas e
subjetivas do dramaturg e o próprio acervo pessoal, especialmente para o
processamento da experiência com os atores.
A função auxiliar no trabalho sobre o texto, geralmente
atribuída ao dramaturg, como levantar dados, discutir conceitos e
apresentar exemplos do que diga respeito ao gênero burleta e ao contexto
histórico-social que envolve o autor estudado, foi, na verdade, executada
pelo pesquisador-diretor do projeto. O fato é que trabalhamos praticamente
com as mesmas fontes bibliográficas, sendo as convenções do gênero
discutidas, com relação a alguns detalhes, durante a experimentação.
Outra função objetiva é levantar e agrupar características do
texto, tanto específicas de cada setor da encenação quanto interferentes e,
às vezes, indicadoras do conceito geral da obra. Coletar dados, associá-los,
interpretá-los, discorrer sobre o processo e produzir um documento são
tarefas executadas sobre pressuposto metodológico já conhecido.
Por outro lado, o olhar do dramaturg, manipulador de todos os
dados, lê as entrelinhas e produz, inegavelmente, configurações de síntese
próprias, especializadas por seu acervo pessoal, adquirido ao longo de
experiências práticas em montagens de espetáculos e por estudos
acumulados. Está aí um possível perfil de um gênero artístico que produz
180
sentido, cujo resultado é uma obra textual, ao mesmo tempo científica e
criativa. O dramaturg poderia ser visto como alter ego do encenador, que
tem o produto final de seu trabalho - o processo de construção do
espetáculo - apresentado como um texto. Mas seria ele um encenador de
fato? Agüentaria ele a perenidade e a fugacidade de uma obra encenada,
contrariando sua natureza de historiador empenhado em produzir uma
prova, em marcar no tempo sua passagem e contribuir para a preservação
de uma identidade cultural? Essa ambigüidade impregnada na pessoa do
dramaturg remete à orfandade do discurso falado (em cena) e à
conformidade da palavra gravada no papel, da qual nos fala Jacques
Derrida em A Farmácia de Platão?II
Ao mesmo tempo crítico e autor, ora devidamente distanciado,
ora completamente envolvido na manipulação dos materiais, o dramaturg
seria um dos autores da história e da cena contemporânea?
O olhar coreográfico
É igualmente importante pensar na contribuição de um
coreógrafo para a experiência de construção do personagem-tipo, já que,
nesse caso, a discussão versa sobre a dança moderna e contemporânea, uma
poética do movimento do corpo do ator/personagem no espaço cênico.
181
Aos pressupostos, às experiências e às obras dos teóricos da
dança e coreógrafos modernos - que atuaram significativamente ao longo
do século XX, na Europa e nos Estados Unidos, como Isadora Duncan,
Martha Graham, Rudolf Laban, Mary Wigman, Doris Humphrey e seus
seguidoresIII-, somam-se as tendências, as preocupações e as discussões
atuais sobre visualidade da encenação, limites entre teatro e dança e
interfaceamento, de campos. Assim, pode-se justificar a presença de um
coreógrafo nos Encontros Eperimentais com Atores, que visaram o
processo de construção do personagem-tipo da burleta de Luiz Peixoto, em
síntese atual.
No início do século XX, Maria Olenewa, bailarina russa
radicada no Brasil, começou a desenvolver coreografias para o teatro
popular musicado, ainda estruturadas nas bases do ballet acadêmico
europeu, numa tentativa de sistematização e treinamento de um corpo de
baile especializado. Por outro lado, o teatro de revista e as burletas
apresentavam e afirmavam
ritmos populares - a polca e o maxixe, a
quadrilha e a valsa, o samba e o foxtrote - como expressões da moda.
Autores, músicos, cenógrafos, coreógrafos, vedetes, bailarinos e coristas
empenharam-se na busca de movimentação cênica organizada e
significativa do teatro popular, apoiando-se, principalmente, no modelo do
182
vaudeville e das revistas franceses, como nos famosos musicais da
BroadwayIV.
Mesmo assim, foi só nos anos 60-70 que fizemos contato com
as experiências do Living Theatre, de Nova York, sobre a valorização do
corpo na teoria artaudiana, mediante cursos e montagens de Klauss e Angel
Vianna, época em que a "expressão corporal" se popularizou no campo das
artes cênicas brasileiras. Mais tarde, recebemos a influência da escola
expressionista alemã e de experimentadores como Kusnet, Grotowski,
Kantor, Brook, Bob Wilson, entre outros. De qualquer modo, a dança
sempre esteve presente no advento teatral, seja ele tratado como sério ou
não e, principalmente, no corpo dos atores que se movimentam numa
representação não naturalista da cena.
Para interferir ativamente na "vertente prática" do projeto de
construção do personagem-tipo, o olhar coreográfico deteve-se na relação
do corpo do ator com o corpo do personagem, focalizado na projeção
especular de um para outro. Assim, o ponto de vista posicionou-se,
também, de modo a verificar os resultados da aplicação em termos de uma
possível metodologia voltada para o processo de criação atorial.
Metodologia essa a ser desenvolvida mais aprofundadamente.
183
Notas:
I
Trecho do item "Objetivo" do projeto de dissertação de mestrado Os tipos
populares na burleta de Luiz Peixoto, de Daniel Marques. Este era o título
original do projeto.
II
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão.São Paulo: Iluminuras, 1991.
III
Existem muito poucas fontes sobre a dança no Brasil, principalmente do
início do século. As informações sobre história da dança, citadas neste
texto, foram extraídas das seguintes fontes: A História da Dança no
Ocidente, de Paul Bourcier (1987) e Dançar a Vida, de Roger Garaudy
(1980).
IV
Nesse caso podemos lembrar a atuação do bailarino brasileiro Duque
como um representante, conhecido internacionalmente, do “jeito brasileiro
de dançar”, um espécie de “Fred Astaire brasileiro”.
184
DIÁRIO DE TRABALHO DO ATOR BRUNO RODRIGUES
1o encontro (14/7/1997)
Iniciamos com uma apresentação verbal do projeto por parte
do Daniel. Paralelamente, foi realizado um breve relato histórico e social
do autor, das burletas e dos personagens-tipo que as compões. A
importância desse embasamento de caráter descritivo é percebida quando o
ator trabalha com o suporte da contextualização do autor e dos
personagens-tipo, permitindo, assim, sua prévia compreensão.
2o encontro (15/7/97)
Foi feita a primeira leitura da burleta Forrobodó, realizada
sem que os atores tivesse conhecimento prévio da mesma, o que dificulta
tanto a leitura quanto a paralela compreensão do texto, devido à escrita
particular dessa burleta, na qual a maioria dos personagnes se expressa de
forma errada.
Realizamos, posteriormente, exercícios corporais, dando
especial ênfase ao trabalho de conhecimento de postura e, também, à
respiração. A respeito dos vários exercícios realizados, o chamado de
“ponto focal” permite a concentração em cada parte do corpo
especificamente destacada; o exercício de expansão - chamado de
“icosaedro” - promove integração entre o ator, seu corpo e o ambiente que
185
o circunda; a apresentação (exibição) da parte de seu corpo de que “mais
gosta” e a de que “menos gosta”, e a posterior interação entre os dois atores
possibilitam visão diferenciada de seu próprio corpo, já que, na primeira
exibição das partes do corpo, acaba-se criando uma espécie de “caricatura”
de si mesmo, em função da exposição e da timidez que essa exposição
ocasiona, e, a seguir, a característica é reincorporada (sem grandes
excessos) em situação menos estereotipada, um pouco mais próximo da
normal.
O elenco de características dos dois personagens-tipo
estudados - o mulato pernóstico e a mulata - relacionadas a partir do texto
da burleta é esse:
- mulata: gostosa que requebra as ancas, dona do pedaço,
admirada e cortejada por todos, espécie de símbolo sexual;
- mulato pernóstico: esperto mediador de situações, mestre-decerimônias, dotado de lastro cultural maior que o dos demais, fala errado,
admirado por todos, malemolente, cheio de ginga, ritmado. Provido de
certa cultura, barbeiro, orador do grêmio, o mais admirado, braço direito do
português, sai gingando.
186
3o encontro (16/7/1997)
A burleta Flor do Catumbi, estudada neste encontro, é muito
semelhante à anterior. Assim, tanto o tipo do mulato pernóstico quanto a
mulata possuem praticamente as mesmas características nos dois textos. No
entanto, existem momentos presentes nesse segundo texto que reforçam
características presentes no primeiro. É importante ressaltar que surge um
bordão para o mulato pernóstico nesa leitura: “Eu sou brasileiro”.
Quanto ao exercício de “pré-apresentação” do personagemtipo, procurei entrar malemolente - quase sensual, observando o lugar
(olhei para o chão antes de subir ao palco). Uma vez lá, olhei em torno do
espaço com admiraçã e, avistando a platéia, fiz reverências e me despedi,
dando a entender que seguiria a mulata, já que a atriz Vilma Melo havia
feito sua “apresentação” antes de mim. Foi detectada a importância de
exercícios que trabalhassem os quadris, permitindo assim uma descoberta
rítmica do personagem.
São estes os atributos do mulato pernóstico encontrados na
burleta: vaidoso; gingado; observador; malandro; simpático; fala errado;
está sempre com “um pé atrás”; utiliza frases de efeito sem significado ou
sentido; é contínuo do Jornal do Brasil, mas apresenta-se como “redatorcontínuo” do Jornal do Brasil. Bordão: “comigo não, que eu sou
brasileiro”.
187
4o encontro (17/7/1997)
A leitura foi da burleta República de Itapiru, e notou-se que o
riso fluiu mais fácil. Foi observado que, nessa burleta, figuram dois
mulatos pernósticos: Marcolino, que tem maior destaque no primeiro ato, e
Florêncio, com maior participação nos dois atos restantes.
Foi solicitado que repetíssemos integralmente o exercício de
apresentação do personagem-tipo realizado no encontro anterior. Sucedeuse um debate sobre a condição estereiotipada que estava sendo visualizada
no trabalho dos dois atores. Concluiu-se que o caráter de estereótipo, por
maior que fosse a vontade dos atores de evitá-lo, era fase necessária e
incontornável do processo criativo, onde o importante é o acompanhamento
desse mesmo processo, independente do que possa ser visto como certo ou
errado, ou seja, destaca-se o caminho e a construção e não o resultado final
do trabalho.
Relação das características encontradas no texto:
- mulato pernóstico (Marcolino) : metido a cozinhar, suposto
par de Guiomar, mestre-de-cerimônias, tesoureiro do grêmio, conhecedor
da dança da moda, deseja a mulata, faz piruetas . Bordão: “Deixe nosso
amigo expressar nossos sentimentos”.
188
- mulato pernóstico (Florêncio) : chamado de professor,
transforma-se em ministro do Exterior, fala difícil, sai de fininho. Bordão:
“Eu quero é gozar”.
- mulata (Guiomar) : Disputada, será a porta-estandarte,
“desacata” ao entrar em cena.
Com respeito ao processo de transição das improvisações para
a cena em si, me senti bastante à vontade. O fato de o estudo dos
personagens ter sua base em improvisações me facilitou, permitindo que eu
percebesse com mais facilidade as várias formas de agir do mulato
pernóstico. Logo, em nenhum momento se fez necessário - ao menos de
minha parte - decorar categoricamente o texto, fato que me intrigou, já que
uma de minhas dificuldades nas primeiras improvisacções era justamente
me expressar de modo a tentar “copiar” as falas do mulato pernóstico - já
que essa é uma forte característica sua - mas, ao longo do processo, isso foi
se tornando orgânico.
No exercício em que foi pedido que exagerássemos ao máximo
nossos movimentos e intenções, senti certa facilidade em exagerar as
intenções, mas, paradoxalmente, paralela dificuldade em exagerar os
movimentos. Contudo, quando nos foi pedida uma seleção da
movimetnação exagerada, senti-me mais confiante. Creio que isso se deva
à visão que tenho do mulato pernóstico, segundo a qual ele deveria se
189
apresentar mais insinuante e com um discurso mais lento do que o do tipo
da mulata, que teve composição por parte de Vilma Melo mais “elétrica” e
“acelerada”.
No
início
dos
encontros,
quando
realizávamod
os
aquecimentos em conjunto, sob a orientação de Marina Martins, que
acumulava a função de relatora dos encontros com a tarefa da preparação
corporal dos atores, sentia-me mais preparado para o trabalho. Quando o
aquecimento passou a ser feito individualmente, preocupei-me em seguir as
orientações anteriormente estabelecidas pela Marina, e ainda as colocações
que ela fazia no decorrer destes aquecimentos individuais, fato que, se por
um lado me desconcentrava, por outro foi muito útil, já que não esquecia
em momento algum as observações feitas por ela sobre a rotação do quadril
e a respiração.
Foi muito proveitoso o exercício da formulação da
“fotografia”, poses indispensáveis ou fundamentais aos personagens em
determinada cena ou improvisácão. No entanto, no ato de “fazer careta” no
compasso da música, dentro desse mesmo exercício, podemos citar a ação
de dançar o maxixe ao fim do aquecimento (a qual era muito boa porque
ditava ritmo - pique). Contudo, dançar o mesmo durante as improvisacões
dificultava as minhas ações. Era difícil dançar (ou ao menos tentar),
190
realizar a improvisação pedida e falar tal como o mulato pernóstico, visto
que eu era obrigado a me concentrar ao mesmo tempo.
Dois
instantes
esclarecedores
foram aqueles
em que
nomeamos “aleatoriamente” os personagens e nomeamos seis momentos
marcantes da cena do texto Forrobodó trabalhado. No primeiro, a mulata
foi chamada de batedeira, e o mulato de gato de rua, nomes que permitem
visualizaar melhor as posturas dos dois personagens, tanto a espiral
remexendo a mulata quanto a postura em diagonais insinuantes- crescentes
e decrescentes - do mulato pernóstico. No segundo instante, nota-se que a
nomeação de momentos da cena só pode ser realizada após um trabalho
profundo de composição, ou seja, esse exercício não “poderia” ter sido
realizado no início.
Durante a presença da Beti, eu senti que o aquecimento se fez
mais vigoroso, e, no entanto, a apresentação do processo foi bastante
tranqüila. A partir de sua presença, foi possível melhorar o discurso do
Escandanhas, onde a princípio eu plantava literalmente os pés no
proscênio, apresentando uma postura de “grande autoridade e poder”, não
condizente com a postura real de diagonais insinuantes, como era natural
ao personagem mulato que estava sendo composto. Já com a presença dos
mestrandos, eu me senti muito mais tenso, Me senti inibido nas
improvisações. Contudo, o debate a respeito do conceito de estereótipo foi
191
superinteressante, juntamente com a discussão a respeito das semelhanças
das características de “mulatos” ou “mulatas”de textos diferentes, mas
representados pelos mesmos atores, a questão do acervo técnico.
O exercício da troca de papéis (em cena) me forneceu outros
pontos de vista sobre os personagens, principalmente de nível técnico
(posicionamento, tom de voz, ritmo) . Acredito que poderia e deveria haver
um trabalho de voz mais profundo, que nos acompanhasse desde o início
do processo.
O trabalho de apresentação curricular foi estranho. Apesar de
compreender a importância e ter dados suficientes para executá-lo, me senti
“preso”, inibido.
192
ENCONTROS EXPERIMENTAIS COM ATORES
Roteiro de atividades
Programação
Procedimentos Metodológicos a serem adotados (definidos após reunião
com a orientadora)
a) hipérbole, soma, analogia e síntese;
b) procurar as características essenciais que englobam outras,
menores;
c) proceder por articulação entre o gesto e o texto;
d) nas improvisações pedir o recorte: selecionar o momento
que concentre uma característica essencial;
e) relacionar a palavra com a composição do texto: o modo de
falar;
f) verificar e anotar a contribuição de repertório de cada ator;
g) controle metodológico: reflexão sobre os procedimentos de
cada encontro.
1o Encontro
a) apresentação do projeto e estabelecimento de um patamar
teórico preliminar;
b) apresentação do trabalho corporal.
193
2o Encontro
a) trabalho de corpo (aquecimento);
b) trabalho de corpo (improvisação): exibição de partes do
corpo, isoladamente; uso das partes específicas para falar de si por meio da
forma e da projeção no espaço; selecionar a “melhor” parte do corpo e
exibi-la; escolher a “pior” parte do corpo e exibi-la; “melhorar” a “pior”
parte; manipulação, por parte do companheiro, para “melhorar” a pior
parte; exibição da forma final;
c) “Onde está o centro de gravidade do personagem?”;
d) levantamento da características dos tipos selecionados na
burleta Forrobodó - personagens: Escandanhas, o mulato pernóstico e siá
Zeferina, a mulata.
3o Encontro
a) levantamento das caracteristicas dos tipos selecionados na
burleta Flor do Catumbi - personagens: Dargiso, o mulato pernóstico e
Flor do Catumbi, a mulata;
b) trabalho de corpo (aquecimento);
c) improvisação sobre os personagens-tipo: entrar, andar e
apresentar-se de acordo com as caracteríscas dos tipos já levantadas;
194
d) procurar o rimo básico, a forma principal e a postura do
personagem-tipo.
obs.: A programação inicial previa sempre o
trabalho corporal antes da leitura das burletas,
mas, depois do 2o Encontro, essa ordem foi
alterada.
4o Encontro
a) levantamento da características dos tipos selecionados na
burleta República de Itapiru - personagens: Marcolino e, depois Florêncio,
os mulatos pernósticos e Guiomar, a mulata;
b) trabalho de corpo (aquecimento);
c) nova improvisação sobre os personagens-tipo: entrar, andar
e apresentar-se de acordo com as caracteríscas dos tipos já levantadas;
d) caminhar pela sala até deixar vir uma palavra que defina o
personagem, deixar vir o andar, deixar vir a característica principal;
e) refazer a caminhada, pensar que o andar toma conta da
estrutura do corpo até formar a “máscara”, exagerar cada vez mais o andar,
a gesticulação e a “máscara”, quando o movimento estiver exagerado ao
máximo, congelar;
f) selecionar dentro da trajetória hiperbólica um momento
essencial do personagem-tipo.
195
5o Encontro
a) nova leitura da burleta Forrobodó e improvisações com os
tipos pesquisados;
b) estabelecer um levantamento de carcterísticas dos
personagens-tipo que seja comum a todas as burletas.
6o Encontro
a) leitura do texto previamente elaborado - cena extraída e
adaptada da burleta Forrobodó: leituras branca, exagerada, rápida, lenta;
b) aquecimento individual para observação do acervo técnico
de cada ator;
c) improvisação sem o texto da cena lida;
d)
repetir
a
improvisação
procurando
“enxugar”
a
movimentação, objetivando sua síntese;
e) passagem da cena com exagero vocal e corporal;
f) nova passagem da cena normal.
7o Encontro
a) improvisações da cena visando às sínteses;
b) improvisação sem o texto da cena lida;
196
d)
repetir
a
improvisação
procurando
“enxugar”
a
movimentação, objetivando sua síntese.
8o Encontro
a) leituras da cena visando às sínteses;
b) análise do texto, verificando os momentos de transição dos
personagens, dividir a cena em unidades;
c) leituras da cena: branca, exagerada, rápida, lenta
d) improvisação: ritmo e locomoção com músicas da época ao
fundo;
e) nova improvisação com ritmos da época, exagerando a
movimentação;
f) nova passagem da cena inteira, sem as falas, com música de
fundo, buscando o desenho interno do movimento: a mulata, em aspiral; o
mulato pernóstico, em diagonal ascendente e ondulante.
9o Encontro
a) cena com o texto (concentração no movimento para alcançar
a síntese; trabalhar cada unidade do movimento para nomeá-las);
b) nomeação das unidades de movimento pelos atores:
197
- mulato pernóstico: 1. desejo, 2. chamego, 3. o momento, 4.
Wando!, 5. Sujô!, 6. Sai de baixo!
*termo com que o ator definiu seu tipo: “gato de rua”;
- mulata: 1. flor, 2. Eu sô neguinha!, 3. disfarce, 4. voa..., 5.
ombrinho, 6. Ilê!
* termo com que a atriz definiu seu tipo: “batedeira”;
c) trabalhar a seqüência de movimentos (1-6), alternando as
unidades, transformando-a quase em uma dança.
10o Encontro
a) apresentação da cena: com os movimentos destacados, cena
muda, somente os movimentos;
b) improvisações com os tipos para aferir se as unidades de
movimento são utilizadas como repertório atorial, em outras situações
envolvendo os tipos (descontextualização da seqüencia 1-6).
obs.: Esse encontro contou com a participação
do grupo de trabalho da pesquisa
supervisionada e, ainda, dos alunos do
Mestrado em Teatro que então cursavam a
disciplina Metodologia da Pesquisa.
11o Encontro
198
a) reforço no trabalho vocal: leitura da cena, procurando dar à
voz o mesmo desenho do corpo; localizar as palavras ditas em diferentes
partes do corpo; procurar o desenho interno da voz de acordo com o
movimento encontrado;
b) apresentação da cena trabalhada: a seqüência-síntese dos
tipos pesquisados;
c) apresentação do currículo-repertório individual de cada ator,
por meio da ação corporal.
199
TEXTO UTILIZADO NOS ENCONTROS EXPERIMENTAIS COM
ATORES (cena extraída e adaptada da burleta FORROBODÓ, original de
Carlos Bittencourt e Luiz Peixoto)
(entrada de Zeferina. Bamboleando.)
Escandanhas - Quem foi que te ensinou tudo isso, peste?
Zeferina - Ninguém. Está no sangue. (música) Sou mulata brasileira,
dengosa, feiticeira./ A flor do maracujá, a flor do maracujá./
Minha mãe foi trepadeira, arteira e eu arteira./ Vivo
igualmente a trepar, vivo igualmente a trepar!/ Pança com
pança, bate com jeito,/ Entra na dança quebra direito, quebra
direito!/ Esse maxixe quase me mata!/ Não se enrabiche pela
mulata, pela mulata!
Escandanhas - Que é que há, ô mulata?
Zeferina
- Um enguiço! Eu não compareço ao baile se os demais
membaros ficá de fora. E nenhum deles tá em dia com a
tesouraria...
Escandanhas: - Mas abri este precedente é abalá os alicérceos, a base
fundamentá, a própria inconomia entrinseca do nosso clube.
Zeferina: - Não adianta ví com os teus canto de sereia. Vamos vê logo.
Sim ou sopas! Arresolve logo!
200
Escandanhas - Que posso eu fazê diante do teu repto? A solução é entrá
tudo mesmo!
(depois de retirar da aba do fraque várias
folhas de papel que passa a ler) Está na hora do discurso!
Meus senhores, minhas senhoras, de ambos os sexos:
Revertere ad Locum tum! Faltaria ao mais salgado dos
deveres, se, neste momento solenico não erguesse a minha
débil voz para exaltar as colidade ôrganica e inôrganica
daquele que desapareceu!
(surpresa geral)
O Grêmio
Recreativo Familiar Dançante Flor do Castigo do Corpo da
Cidade Nova cobre-se de luto... (pequena pausa) Mas o que é
isto?...Este discurso é o que foi lido no cemitério de Maruí, por
ocasião do enterro do falecido Zacarias quando bateu o 31. Tá
tudo errado! Cadê o discurso de hoje?
Zeferina (a Escandanhas que está pensativo,batendo-lhe no ombro) - Em
que pensas, Cardeal? Tristezas não pagam dívidas...
Escandanhas - Você acha pouco o vexame? Mas tambem uma coisa eu te
garanto: de hoje em diante não serei mais o orador oficial
dessa meleca!
Zeferina - Isto é besteira. Mas escuta aqui: onde é que você anda com a
cabeça? Nas nuvens? Pensando em quê?
Escandanhas - Pensando em ti! (música) Não sei porque te amei, siá
Zeferina./ Por que foi que te encontrei na minha sina!/ Essa
grande sensação que sinto agora/ É loucura da paixão que me
201
devora./ Tua cor amorenada se parece/ Com o moreno da
cocada que endoidece./ Eu me sinto um desgraçado, pode
crer,/ Porque vivo apaixonado por você!
Escandanhas (agarrando-a) - Me oscula-me querida! Chapa a minha boca
com o carimbo dos teus lábio!
(vozes se aproximam)
Zeferina - Me largue, que vem gente!Ih! É o Lulu! O pinta brava! Acabouse o baile! E tem mais uma coisa: não veio só não. Veio de
francesa!
Escandanhas - De francesa?! Então eu tenho que saudá a Madama, em
nome da diretoria....
Zeferina - Ah é vagabundo? Tu me arrespeita, viu? Olha que eu sou muito
hôme pra arrancá os chichi dessa polaca!
Escandanhas - Não faz sujeira, siá Zeferina! o que é teu tá guardado aqui
dentro do peito.
Zeferina (empurrando-o) - Saí daí pra fora antes que eu te meta a mão na
cara, vagabundo!
(Escandanhas afasta-se, gingando)
202
203
Foto 1: A atriz Vilma Melo em sua primeira improvisação como o tipo mulata
(16/7/97)
204
Foto 2: O ator Bruno Rodrigues, como o mulato pernóstico, em sua primeira
improvisação (16/7/97)
205
Fotos 3 e 4: A trajetória hiperbólica dos estereótipos, objetivando alcançar o momento
substancial do tipo (17/7/97)
206
Fotos 5 e 6: Os atores em mais uma improvisação dos tipos (7/8/97)
207
Foto 7: Escandanhas, o mulato pernóstico: “Quem foi que te ensinou tudo isso, peste?”
(28/8/97)
208
Foto 8: siá Zeferina, a mulata: “Sou mulata brasileira, sou dengosa, feiticeira...”
(28/8/97)
209
Foto 9: O “discurso trocado”, momento emblemático do tipo mulato pernóstico.
(28/8/97)
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Silva, Daniel Marques da - Precisa-arte-e