Breve comentário e sugestão relativos ao
“Projecto de Lei de Defesa da Segurança do Estado”
A primeira observação do meu modesto comentário ao “Projecto de Lei de
Defesa da Segurança do Estado” é a de que o articulado revela um elevado grau de
bom senso e equilíbrio na definição dos tipos de crime e nas molduras penais
aplicáveis. Mas principalmente, a adopção do regime processual penal ordinário,
parece-me o sinal mais positivo de que o elevado grau de autonomia da RAEM não é
subalternizado na implementação legislativa do imperativo do artigo 23.º da Lei
Básica.
Com o objectivo de contribuir para o aperfeiçoamento do projecto, passo a
indicar o meu ponto de vista relativamente a um único aspecto: as epígrafes dos
artigos 2.º a 8.º do projecto.
De facto, em todas elas se pode ler a expressão «proibição de ...». Sobre a
utilização desta expressão, suscito os seguintes elementos de reflexão:
1. Em bom rigor, a lei penal não proíbe condutas: prevê e pune as condutas
ilícitas que tipifica e pune-as segundo a culpa. Isto decorre da estrutura da norma
jurídica (em geral) que integra sempre dois elementos: a hipótese ou previsão e a
estatuição ou consequência jurídica. Na norma penal a hipótese recorta com precisão
os elementos essenciais de uma conduta ilícita, assim definindo um «tipo» de crime e
consagra a reacção criminal que o tribunal deve desencadear sobre o respectivo agente:
a pena (ou punição).
2. A proibição, em si mesma, é objecto na doutrina de uma discussão
milenária, discussão esta que procura encontrar as fronteiras entre as proibições
«naturais» [delicta in se, figurando na lei penal por serem crimes] e as proibições
«convencionais» [delicta mere prohibita, que são crimes por figurarem na lei penal].
Sensato, o legislador recusa-se, em regra, a tomar posição sobre questões de doutrina
e evita colocar na lei penal qualquer referência à fonte da ilicitude da conduta proibida.
O mesmo é dizer que o legislador não dá nenhuma indicação sobre o fundamento da
ilicitude do homicídio [não «proíbe» o homicídio] nem sobre o da ilicitude da
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condução sob influência de um certo teor alcoólico no sangue [não «proíbe» a
embriaguez ao volante]. Com este fundamento, o artigo 128.º do Código Penal tem
por epígrafe «Homicídio» e não «Proibição do homicídio» e, do mesmo modo, o
artigo 90.º da Lei n.º 3/2007 tem por epígrafe «Condução em estado de embriaguez ou
sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas» e não «Proibição da
condução em estado de embriaguez ou sob influência de estupefacientes ou
substâncias psicotrópicas».
3. É certo que o teor literal do artigo 23.º da Lei Básica da RAEM refere «leis
que proíbam...» ao longo da enumeração dos sete tipos de ilícito penal que esboça. De
onde pode pensar-se que o comando da Lei Básica impõe um acto legislativo que
«proíba» cada um daqueles crimes. Será, porém, esse o alcance do texto do artigo 23.º?
Julgo que não. Vejamos:
3.1. A Lei Básica foi redigida ao longo de um período prolongado, mas numa
época em que estava ainda em vigor a Lei Penal da República Popular da China
aprovada pela segunda sessão do quinto Congresso Nacional Popular, em 1 de Julho
de 1979, promulgada pela Ordem n.º 5 do Presidente da Comissão Permanente do
Congresso Nacional Popular em 6 de Julho de 1979, para produzir efeitos a partir de 1
de Janeiro de 1980. Neste diploma ainda se encontravam dois exemplos da expressão,
pela lei penal, do comando proibitivo da conduta: o artigo 143.º, relativo à detenção
ilegal e o artigo 158.º, relativo à perturbação da ordem pública, estavam redigidos por
forma a «proibir» as correspondentes condutas e indicavam em seguida a pena
aplicável ao «violador» do comando. Porém, o legislador optou por eliminar
completamente esta técnica da Lei Penal, aquando da revisão efectuada pela quinta
sessão do oitavo Congresso Nacional Popular, em 14 de Março de 1997. Nenhum
artigo, actualmente «proíbe» qualquer conduta integradora do tipo de crime.
3.2. Por outro lado, é muito duvidoso que a Lei Básica possa ser a fonte das
proibições enunciadas no seu artigo 23.º; a Lei Penal vigente na República Popular da
China já antes referida, trata este grupo de crimes nos seus artigos 102.º e seguintes,
sem usar o termo «proibição», como também já foi referido. Julgo que tal se deve a
que, em ambos os casos, se trata do desenvolvimento [de uma densificação] da
proibição genérica contida no 2.º parágrafo, in fine do artigo 1.º da Constituição da
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República Popular da China. O mesmo é dizer, a «proibição» é anterior à lei penal,
não é criada por ela, mas sim pelo preceito constitucional que proíbe a sabotagem do
sistema socialista, definido como «sistema básico» da RPC.
3.3. Se assim é, como julgo, não é a «proibição» destas condutas que constitui
o objecto das normas da projectada Lei, mas sim a sua punição. Tais condutas não são,
actualmente, lícitas: são ilícitas, já que a proibição do artigo 1.º da Constituição não
pode deixar de se estender à RAEM, como território que é da RPC. A lacuna da
legislação de Macau não se situa, neste caso, na previsão, mas sim na estatuição, o
que tem como consequência que, sendo ilícitas, aquelas condutas não são, stricto
sensu, puníveis. Isto porque, desde logo, a Lei Penal da RPC já referida não é sempre
aplicável aos factos praticados em Macau (embora já o seja aos factos praticados no
continente chinês por residentes da RAEM e aos factos praticados em qualquer parte
do mundo, incluindo Macau, por residentes da RAEM que sejam cidadãos chineses,
quando sejam encontrados no território continental da RPC, cfr. artigos 6 e 7 da Lei
Penal da RPC).
3.4. A referência citada no próprio documento de consulta indica claramente a
alusão pelo Chefe do Executivo à legislação que, nos termos do artigo 23.º da Lei
Básica, deve tratar da protecção da segurança do Estado estabelecendo a punição das
condutas lesivas daquela (cfr. declarações de 18 de Julho de 2003).
3.5. Assim, a redacção das referidas epígrafes representa uma homenagem ao
teor literal do artigo 23.º da Lei Básica mas, de facto, trata-se de um desvio ao sentido
profundo do comando que ali se dirige ao legislador da RAEM.
*
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Sem me alongar numa discussão exaustiva de todos os aspectos do problema,
atrevo-me a sugerir as seguintes modificações às epígrafes dos artigos 2.º a 8.º do
Projecto de Lei:
Artigo 2.º: onde se lê
«Proibição de actos de traição à Pátria»
passaria a ler-se
«Traição à Pátria»
Artigo 3.º: onde se lê
«Proibição de actos de secessão do Estado»
passaria a ler-se
«Secessão do Estado»
Artigo 4.º: onde se lê
«Proibição de actos de subversão contra o Governo Popular Central»
passaria a ler-se
«Subversão contra o Governo Popular Central»
Artigo 5.º: onde se lê
«Proibição de actos de sedição»
passaria a ler-se
«Sedição»
Artigo 6.º: onde se lê
«Proibição de actos de subtracção de segredo de Estado»
passaria a ler-se
«Subtracção de segredo de Estado»
Artigo 7.º: onde se lê
«Proibição de organizações ou associações políticas estrangeiras
praticarem em Macau actos contra a segurança do Estado»
passaria a ler-se
«Prática em Macau por organizações ou associações políticas estrangeiras
de actos contra a segurança do Estado»
Artigo 8.º: onde se lê
«Proibição de organizações ou associações políticas de Macau
estabelecerem ligações com organizações ou associações políticas
estrangeiras para a prática de actos contra a segurança do Estado»
passaria a ler-se
«Estabelecimento por organizações ou associações políticas de Macau
de ligações com organizações ou associações políticas
estrangeiras para a prática de actos contra a segurança do Estado»
Macau, aos 29 de Outubro de 2008.
Luis Manuel Pacheco de Matos Rôlo
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