POR UMA LEI ORGÂNICA DO ENSINO SUPERIOR1
Luiz Antônio Cunha2
A história recente da universidade brasileira traz a marca de um paradoxo: a
despeito da intervenção violenta, da destituição de professores e da expulsão de
estudantes, a despeito, também, de ter promovido e subsidiado o crescimento vertiginoso
das instituições privadas de ensino superior, a ditadura militar investiu muito nas
universidades federais. Com efeito, foi nos anos 70, justamente na implantação da lei no.
5.540/68, a da reforma universitária, que as universidades federais construíram seus
câmpus, ampliaram seu quadro docente e instituíram o regime de tempo integral e
dedicação exclusiva. No entanto, a transição e a consolidação da democracia presenciou a
continuação dos benefícios ao setor privado, ao mesmo tempo em que as universidades
federais passaram a ser tratadas com restrições financeiras e cobranças de aumento do
atendimento à crescente demanda de vagas.
A autonomia, que já era pouca na ditadura, foi sendo reduzida com a democracia.
A cada ano, mais e mais constrangimentos financeiros e administrativos foram sendo
aplicados às universidades federais. Com a lei no. 10.480/02, chegou-se ao cúmulo da
supressão das procuradorias jurídicas próprias.
Com este texto, pretendo alertar para a continuação desse processo paradoxal, de
modo ainda mais grave: a autonomia destruindo a autonomia.
Oito anos depois da promulgada a Constituição, e apresentado o primeiro projeto
na Câmara dos Deputados, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi
promulgada. O longo tempo decorrido não foi suficiente para que se produzisse uma
legislação adequada para matéria de tão alta relevância. Apenas para exemplificar a
inadequação de nossa segunda LDB, menciono o fato de ela ter silenciado sobre temas da
maior importância como o Conselho Nacional de Educação, deixado para legislação de
menor hierarquia política. Foi por essa razão que qualifiquei a LDB de minimalista.
(Cunha, 1996b)
Diante dos dois projetos de LDB, o da Câmara e o do Senado, o Ministro da
Educação Paulo Renato Souza preferiu apoiar o desta Casa, já que o texto do senador
Darcy Ribeiro, além de menos minucioso, tinha em seu autor maior receptividade para
modificar a versão original, de modo a adequar-se às políticas governamentais. Mas, ao
invés de buscar incluir dispositivos no projeto do Senado, o MEC preferiu que o projeto
de LDB deixasse de tratar dos temas que seriam objeto de projetos de lei específicos, ou
o fizesse de modo bastante genérico, permitindo articulações, por omissão, com as
medidas que se tomavam. Assim, enquanto o projeto de LDB do Senado prosseguia na
tramitação parlamentar, pelas comissões e pelo plenário, ele foi sendo adaptado às
políticas que o Poder Executivo implementava. Neste sentido, o Ministério elaborou
importantes projetos de lei, encaminhados pela Presidência da República ao Congresso,
1
Texto apresentado na mesa “Universidade XXI, resgate do futuro, estrutura e ordenação do sistema: a
tensão entre o público e o privado”, no Seminário “Universidade: por que e para que reformar?”,
promovido pela SESu/MEC e pelas Comissões de Educação do Senado e da Câmara dos Deputados,
Brasília, 6–7/8/03.
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Professor Titular (Educação Brasileira) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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traçando, assim, de modo fragmentado, as diretrizes e bases da educação nacional, fora,
mas não contra o que seria a lei maior de educação.
O ideal seria a elaboração de nova LDB. Como isso não é viável, no horizonte
político previsível, entendo que o possível, nas atuais circunstâncias, será a elaboração de
leis orgânicas que possam preencher as lacunas e corrigir os equívocos daquela lei. É o
que proponho agora: a elaboração de uma Lei Orgânica do Ensino Superior.
Uma lei dessa natureza precisaria, antes de tudo, definir o ensino superior, aliás,
todo o ensino institucionalizado, como um serviço público passível de ser oferecido
diretamente pelo Estado ou por instituições privadas, em regime de concessão. Estou
ciente de que, para isso, seria necessária uma reforma constitucional, a meu ver inadiável
diante da cobiça internacional, que, no momento, move processo na Organização
Mundial do Comércio.
Partindo da falsa premissa de que o ensino é um serviço econômico como as
telecomunicações, os governos de certos países estão a exigir da OMC que obrigue a
todos abrirem seus mercados educacionais à competição internacional. Para eles, o
ensino - a habilitação profissional inclusive e principalmente em grau superior – deveria
ser um serviço oferecido por empresas diversas, de países diversos, de modo que o
aluno/consumidor escolha seu provedor como faz com um telefone celular. E mais: a
validade dos certificados e dos diplomas, assim como a avaliação e o credenciamento das
instituições de ensino, deixaria os limites dos Estados nacionais. O resultado é fácil de se
prever: a dissolução dos sistemas de ensino nacionais, sobretudo nos países de menor
integração cultural, como o nosso.
O Brasil é o mercado mais visado, por causa do tamanho de sua população e da
fome de educação de seu povo, longe de ser saciada. Fome tão maior quanto mais intensa
é a deterioração do ensino público em nível básico, o que gera uma demanda adicional de
ensino superior – a busca na faculdade do que não se aprendeu na escola fundamental
nem na média...
Antes de tudo, pois, é preciso retirar a educação, particularmente a superior, do
campo do mercado, ainda que se ressalve a atuação legítima da iniciativa privada.
Uma lei orgânica definiria melhor configuração para o campo do ensino superior,
corrigindo os efeitos não intencionados que resultaram de iniciativas inadequadas do
Poder Executivo, como os centros universitários (decreto 2.207/97); ou até mesmo do
Poder Legislativo, como os cursos sequenciais (LDB). Ela trataria de matérias que têm
sido proteladas como a das obscuras relações das entidades privadas ditas mantenedoras e
as IES, inclusive as universidades. A lei orgânica teria uma seção relativa às
universidades e um capítulo dedicado ao sistema federal de ensino superior, inclusive as
universidades federais.
No que diz respeito às universidades, a lei orgânica trataria dos marcos da
autonomia e definiria matérias relevantes como a avaliação, abrangendo todas as
instituições. No que concerne às universidades federais, essa lei disporia sobre
importantes questões comuns a todas elas, como as seguintes: financiamento, carreira,
organização interna, escolha de dirigentes e outras. Não poderia deixar de estabelecer as
condições da intervenção federal, caso os próprios estatutos sejam descumpridos, o
patrimônio dilapidado ou os recursos públicos malversados.
Uma lei orgânica, com as características aqui indicadas, seria contrária ao
princípio da autonomia universitária ? Ela violaria o artigo 207 da Constituição Federal,
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que diz gozarem as universidades de autonomia didático-científica, administrativa e de
gestão financeira e patrimonial ?
Como tenho estudado essa matéria, no plano internacional, e refletido sobre ela no
contexto brasileiro, sustento que uma lei orgânica, enquanto tal, não contraria o
dispositivo constitucional da autonomia.
Em todos os países do mundo, as universidades estão sujeitas à legislação infraconstitucional, mesmo quando a Carta Magna reconhece sua autonomia. Assim é que
currículos, diplomas, financiamento e avaliação exemplificam matérias reguladas pelos
poderes legislativo e executivo de todos os países possuidores de sistemas educacionais
complexos. A exceção fica com os EUA, onde todo o ensino superior é regulado pelo
mercado. No mesmo caminho seguiu a Grã-Bretanha, desde Margaret Thatcher.
Alguns países possuem mesmo leis bem detalhadas sobre o funcionamento do
ensino superior e estabelecem normas para as universidades, inclusive as estatais. Estão
nesse caso:3
- França, com a Lei Savary (no. 84-52, de 26 de janeiro de 1984);
- Portugal, com a Lei de Autonomia das Universidades (no. 108, de 24 de
setembro de 1988);
- Nicarágua, com a Lei da Autonomia das Instituições de Educação Superior (no.
89, de 5 de abril de 1990);
- Argentina, com a Lei de Educação Superior (no. 24.521, de 20 de julho de
1995);
- Espanha, com a Lei Orgânica das Universidades (no. 121/000045, de 26 de
dezembro de 2001).
Na França, na Nicarágua e em Portugal, tais leis foram promulgadas quando seus
parlamentos tinham maioria de esquerda. Na Espanha e na Argentina, maioria de direita.
Não se trata, pois, de um viés político-partidário nem um atentado contra a autonomia
universitária a promulgação de leis que estabelecem os parâmetros de sua autonomia. A
não ser que autonomia seja confundida com soberania, o que é atributo exclusivo do povo
brasileiro e do Estado que ele constitui, jamais de uma instituição, por mais importante
que seja, nem mesmo de uma instituição estatal.
O apoio do Ministério da Educação a um projeto de Lei Orgânica do Ensino
Superior, cuja elaboração o próprio MEC poderia patrocinar, seria a expressão nítida de
uma atuação contrária à do governo passado, que primou pela indução à legislação
fragmentada. Como já disse, enquanto os projetos de LDB tramitavam no Congresso, o
governo anterior patrocinava projetos de lei que tratavam de aspectos específicos da
problemática educacional e não foram incorporados à lei maior de educação.
Mas, é com tristeza que vejo que a normatização fragmentária é uma tentação
difícil de resistir. Tomei conhecimento de anteprojeto de lei que circula no âmbito do
MEC, dispondo sobre o processo de escolha dos dirigentes das instituições federais de
ensino, inclusive das universidades do sistema federal.
Parece que o MEC cedeu às pressões do aparato sindical para promover a
mudança da legislação referente à escolha de dirigentes, como se isso fosse o mais
importante e decisivo para o presente e o futuro das instituições federais de ensino
3
Lista não exaustiva.
3
superior. Salvo priorizar o atendimento a demandas de caráter exclusivamente políticas,
senão partidárias, é difícil entender por que razão o MEC seguiu na trilha da
normatização atomizada do governo anterior.
Tampouco consigo entender a tônica desregulamentadora do anteprojeto de lei.
Com efeito, o texto divulgado transfere para dentro de cada universidade a escolha do
elemento mais decisivo para a estrutura interna de poder – a ponderação dos votos das
categorias integrantes da “comunidade acadêmica” de cada instituição. É um “lavar as
mãos” diante das disputas que enfraquecem a gestão das universidades federais ? Ou será
a antecipação de um benefício político aos sindicatos, visando a atenuar previsíveis
protestos diante de possíveis restrições financeiras ?
Confesso que só consigo divisar um elemento positivo no anteprojeto de lei, o de
suprimir o mecanismo de cooptação na escolha dos dirigentes das universidades federais.
Mas, não fui capaz de entender por que razão o que tem sido privilégio das universidades,
em todo o mundo - a competência para escolher seus dirigentes -, foi estendido aos
CEFETs e aos estabelecimentos isolados. Uma “síndrome de Pilatos” em versão
ampliada ?
Autonomia sem universidade ? Já não basta o absurdo dos centros universitários,
que ganharam a autonomia para criar e extinguir cursos de graduação, para aumentar e
diminuir vagas ?
Ao contrário disso, entendo que é preciso, justamente, aumentar as distinções
entre as universidades e as demais IES, inclusive no setor público, até mesmo no sistema
federal. A capacidade de escolher seus dirigentes, sem cooptação, é, no meu entender, só
para as universidades, não para as instituições isoladas, nem mesmo para os CEFETs.
Posso antever o resultado da aplicação do anteprojeto, se convertido em lei: a
paridade de votos na eleição dos reitores será incorporada aos estatutos das universidades
federais, o que acarretará resultados negativos para o funcionamento acadêmico das
instituições, pois o corolário dessa medida será a aplicação da paridade também à
composição dos órgãos colegiados, o que, aliás, já faz parte do ideário das entidades
sindicais.
Não tenho dúvida de que o resultado não intencionado dessa medida será o
reforço do setor privado – agora pela transferência de grupos de pesquisa e da pósgraduação, assim como do financiamento que eles atraem.
O medo e a inciência, em ação recíproca e com efeito cumulativo, serão os
principais elementos propiciadores do dogma da paridade no estatuto de cada instituição.
O medo é proveniente da eficácia do patrulhamento, prática bem conhecida de todos os
que ousam divergir da linha oficial dos partidos, frações de partidos e dos sindicatos que
atuam nas universidades; a inciência é do que vigora em países mais antigos e mais
sólidos na democracia, com mais antigas e mais sólidas universidades públicas. Longe de
mim pensar que só devemos copiar – nada mais antiuniversitário do que isso. Por outro
lado, nada menos universitário do que ignorar a experiência das instituições coirmãs,
especialmente daquelas que são referência acadêmica para o ensino e a pesquisa aqui
desenvolvidos.
Contra o medo dos colegas, nada posso fazer, a não fazer seguir em frente com o
que penso e faço. Chamemos a isso de testemunho. Contra a inciência, posso mais. Posso
divulgar a reflexão sobre o tema em pauta, assim como divulgar informações sobre as
soluções encontradas em outros sistemas universitários. É o que faço em seguida, com
4
alguns dados,4 que mostram ser a paridade entre docentes-pesquisadores, estudantes e
funcionários técnico-administrativos algo inexistente nas instâncias encarregadas de
eleger os reitores ou presidentes das universidades públicas.
Podemos observar, na tabela anexa, que há grande variação entre as
universidades. Mas, em todas elas, os docentes-pesquisadores têm a maioria (quando não
a totalidade) dos votos na instância dotada de competência para eleger o reitor ou o
presidente da instituição. A participação dos estudantes varia de zero a metade dos votos
dos membros eleitos da instância competente. A participação dos funcionários técnicoadministrativos, quando existe, é sempre inferior à dos estudantes.5 Será que todas essas
universidades são carentes de democracia, só descoberta pela incipiente cultura política
da universidade brasileira ? A meu ver, esses dados devem ao menos levar o MEC a rever
o anteprojeto e encarar a difícil tarefa de coordenar a discussão de um padrão brasileiro
para a escolha dos dirigentes das universidades federais, que não pode ignorar a
experiência mundial. E por que não aproveitar a oportunidade para incluí-lo, junto com
outras matérias, numa Lei Orgânica do Ensino Superior ?
Esse caminho é mais vagaroso, mas é melhor para quem tem pressa em garantir a
sobrevivência e a vitalidade do patrimônio acadêmico da universidade federal brasileira;
para quem é capaz de distinguir entre a necessária autonomia político-administrativa da
universidade pública diante dos governos e a essencial autonomia que ela precisa manter
diante das igrejas, das oligarquias, dos partidos, dos sindicatos e dos mercados.
4
Os dados aqui apresentados estão sendo trabalhados num estudo comparado em nível internacional.
Mesmo na Universidade de Lisboa, onde os funcionários têm a mais elevada participação no corpo
eleitoral para escolha do reitor (18%), dentre as da tabela anexa, a instituição procurou minimizar o efeito
da bancada sindical mediante a inclusão dos técnico-administrativos de mais alta posição na carreira, na
reitoria e nas faculdades, como membros natos da Assembléia Universitária.
5
5
BIBLIOGRAFIA RECENTE DO AUTOR SOBRE O TEMA
1996 a. “Políticas para o ensino superior no Brasil: até onde irá a autonomia
universitária?”, Educação e Sociedade (Campinas), no 55, agosto.
1996 b. “Crise e reforma do sistema universitário” (debate), Novos Estudos CEBRAP
(São Paulo), no 46, novembro.
1997. “Política para o ensino superior: do GERES à LDB”, Sociedade e Estado
(Brasília), vol XII, no. 1, janeiro/junho.
1998. “Reforma universitária em crise: gestão, estrutura e território”, Avaliação/Rede de
Avaliação Institucional da Educação Superior (Campinas), vol. 3, no. 2, junho
(encarte CIPEDES).
1999 a. “O público e o privado na educação superior brasileira: fronteira em
movimento?”, in Hélgio Trindade (org.) Universidade em ruínas na república
dos professores, Petrópolis, Vozes.
1999 b. “A universidade brasileira entre o taylorismo e a anarquia”, Revista Brasileira de
Educação (São Paulo), no. 10, janeiro/abril.
2002. “A nova reforma do ensino superior: a lógica reconstruída”, in Hélgio Trindade e
Jean-Michel Blanquer (orgs.) Os desafios da educação na América Latina,
Petrópolis, Vozes.
2003. “O ensino superior no octênio FHC”, Educação e Sociedade (Campinas), no. 82,
abril.
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PARTICIPAÇÃO DIFERENCIADA NO ÓRGÃO COLEGIADO DOTADO DE COMPETÊNCIA
PARA ELEGER O REITOR OU PRESIDENTE EM UNIVERSIDADES SELECIONADAS
TOTAL
DE DOCENTESINSTITUIÇÃO MEMBROS
PESQUISADORES
Universidade
Livre de
N
N
Bruxelas
Universidade
Nac. Autônoma
15
15
do México
Universidade
de Tókio
N
N
Universidade
de Bolonha
N+23
N
Universidade
de Moscou
91 a 153
65 a 127
MEMBROS
EXTERNOS
FUNCIONÁESTUDANTES RIOS
_
_
_
_
_
_
_
_
_
_
23
_
_
21
5
20
8
57
1
20% a 25%
10% a 15%
109
50
(a)
Universidade
de Frankfurt
90
62
_
Universidade de
Buenos Aires
213
109
46
(b)
Universidades
estatais
francesas
Universidade de
Lisboa
30 a 60
40% a 45%
273
114
20% a 30%
(c)
_
FONTE: Documentos legais, assim como estatutos e textos de divulgação institucional obtidos na internet
em julho de 2003.
NOTAS:
(N) Todos os docentes-pesquisadores da universidade.
(a) O número de representantes de professores das faculdades e de pesquisadores dos
institutos depende do efetivo de cada uma delas.
(b) Os membros externos são graduados pela UBA.
(c) As personalidades externas incluem docentes-pesquisadores de outras instituições de
ensino superior.
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