UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
ELIANE DE AUGUSTINIS VALLE MACHADO DA SILVA
A TRAGÉDIA E O PERCURSO ANALÍTICO
Rio de Janeiro
2008
ELIANE DE AUGUSTINIS VALLE MACHADO DA SILVA
A TRAGÉDIA E O PERCURSO ANALÍTICO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicanálise, Sociedade e
Cultura, da Universidade Veiga de Almeida
como requisito parcial para obtenção do
Título de Mestre em Psicanálise.
Orientador: ANTÔNIO QUINET
Rio de Janeiro
2008
DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU
E DE PESQUISA
Rua Ibituruna, 108 – Maracanã
20271-020 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922
FICHA CATALOGRÁFICA
A436t
Mônica
Augustinis, Eliane
de CATALOGRÁFICA
FICHA
A tragédia e o percurso analítico/ Eliane de Augustinis, 2011
100f. ; 30 cm.
Digitado (original).
Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida,
Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de
Janeiro, 2011.
Orientação: Prof. Dr. Antonio Quinet
1. Tragédia. 2. Édipo. 3. Fantasia. 4. Inconsciente. I.
Quinet, Antonio. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado
Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.
CDD – 616.89
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA
Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho
ELIANE DE AUGUSTINIS VALLE MACHADO DA SILVA
A TRAGÉDIA E O PERCURSO ANALÍTICO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicanálise, Sociedade e
Cultura, da Universidade Veiga de Almeida
como requisito parcial para obtenção do Título
de Mestre em Psicanálise.
Data de aprovação: 24 / 10 / 2008
Banca Examinadora:
__________________________________________________
Professor Dr. Antônio Quinet – Universidade Veiga de Almeida – Orientador.
__________________________________________________
Professora. Dra Sônia Borges – Universidade Veiga de Almeida - Examinadora.
__________________________________________________
Professora Dra Ana Vicentini Azevedo – Universidade de São Carlos – Examinadora Externa.
Aos meus filhos Juliana e Marcos, pelo
incentivo e entusiasmo.
Aos meus pais, Runi e Angela por toda a
dedicação de uma vida.
Ao meu marido pelo carinho.
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Veiga de Almeida
que, com seus mestres, possibilitaram que o meu projeto de pesquisa e tornasse uma
dissertação de mestrado.
Ao Professor Antônio Quinet, pelas orientações e valiosas discussões críticas durante
as aulas, bem como pela escuta sensível de minha elaboração sobre a relação entre tragédia e
psicanálise.
Às Professoras Sônia Borges, Ana Vicentini, Betty Fuks, Maria Anita Carneiro e Vera
Pollo, com quem tive o prazer de conviver durante o período discente.
A Glória Sadala, analista e mestre, por tudo que pude apreender de sua relação com a
psicanálise.
Aos Colegas da primeira turma de mestrado em psicanálise da Universidade Veiga de
Almeida pelo entusiasmo e exemplo.
À minha família pelo apoio e carinho dedicado durante todo esse período.
RESUMO
AUGUSTINIS, Eliane. A tragédia e o percurso analítico. 2008. 100 f. Dissertação (Mestre
em Psicanálise) – Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2008.
Este trabalho concentra-se no comentário da peça de Sófocles, Édipo-Rei, à luz das
contribuições à psicanálise de Freud e de Lacan. Em nosso comentário, estabelecemos um
paralelo do trajeto do personagem Édipo, durante a peça, com o percurso realizado pelo
sujeito em sua análise. Para tal fim, estudamos a arte trágica e sua relação entre a psicanálise e
a filosofia e em seguida entramos nos conceitos de Inconsciente, Sujeito, objeto e fantasia,
para desenvolver o que ocorre em uma análise.
Palavras-chave: Tragédia, Édipo, fantasia, sujeito, inconsciente.
ABSTRACT
AUGUSTINIS, Eliane. A tragédia e o percurso analítico. 2008. 100 f. Dissertação (Mestre
em Psicanálise) – Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2008.
This work discourses on the commentary about Sofocles’ theatre play, Édipo-Rei,
based on the Freud and Lacan’s contributions to the psychoanalysis. In this comment, we
have established a comparison of Édipo’s trajectory during the play with the subject’s course
on analysis. For that, we have studied the tragical art and its relation with the psychoanalysis
and the philosophy, and soon after we have introduced the concepts of the Unconscious,
subject, object and fantasy, so that we know what happens in analysis.
Key-words: Tragedy, Édipo, fantasy, subject, unconscious.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................
10
1
O COMPLEXO DE ÉDIPO E O OBJETO “a”
13
2
A TRAGÉDIA .................................................................................................
19
2.1
A Arte Trágica e a Psicanálise .........................................................................
19
2.1.1 A Representação Psíquica – A Fantasia Inconsciente e Sua Representação ......
21
2.2
Da Linguagem ao Mito .....................................................................................
27
2.2.1 Édipo e o Matema da Fantasia ............................................................................
29
2.3
A Origem Dionisíaca da Tragédia e Seus Conceitos ......................................
33
2.3.1 Mímesis: a Representação Trágica .......................................................................
36
3
ÉDIPO REI E O INCONSCIENTE ..................................................................
41
3.1
Édipo: Herói Patronímico do Complexo de Édipo .........................................
41
3.2
O Nome-do-Pai ...................................................................................................
48
3.2.1 A Herança Arcaica do Sujeito e a Athé Familiar de Édipo .................................
52
3.3
O Início da Luta de Édipo Contra o Destino ..................................................
57
3.3.1 O Enigma da Esfinge e Seus Múltiplos Significados ..........................................
58
3.3.2 O Retorno da Peste ..............................................................................................
66
3.3.3 O Saber Inconsciente ...........................................................................................
70
4
TRAGÉDIA E PSICANÁLISE ........................................................................
74
4.1
A Fantasia ..........................................................................................................
74
4.2
Édipo e o Saber...................................................................................................
80
4.3
Édipo Diante de Sua Catástrofe ........................................................................
86
4.4
O Não-Saber Que Leva à Criação .....................................................................
90
5
CONCLUSÃO ....................................................................................................
92
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................
96
10
INTRODUÇÃO
Essa dissertação refere-se ao estudo sobre o que significa o trágico para a psicanálise e
quais as suas implicações na clínica, sendo a obra trágicas de Édipo Rei a base para a analise
da relação entre a tragédia e o percurso analítico. O percurso trágico do herói é determinado
por sua sina que o leva em direção ao seu desejo puro, o que permite abordar o percurso
realizado pelo neurótico ao longo de sua análise, no seu encontro com o real.
Parte-se de três premissas básicas. A primeira delas refere-se ao conceito sobre o trágico para
a psicanálise, tomando-o como elemento indissociável da noção estrutural do Complexo de
Édipo e através do qual se pode abordar o registro do real. A segunda premissa refere-se ao
constructo Lacaniano, de que o desejo inconsciente constitui o núcleo mítico, em torno do
qual o analisante irá construir sua fantasia. E a terceira premissa toma o conceito de pulsão de
morte como sendo a pulsão por excelência, possuindo um caráter criativo e transformador,
conforme Lacan apresenta no Seminário sobre a ética da psicanálise.
O eixo norteador dessa dissertação será o conceito de objeto “a” privilegiando-o como
ponto de estofo em torno do qual todo o drama do herói irá se desenvolver, em consonância
com as premissas já comentadas. Assim sendo, a pesquisa visa demonstrar que ao longo de
uma análise a pulsão irá contornar inúmeras vezes o centro de desconhecimento do sujeito
sobre o desejo que o constitui, de forma a permitir a transformação pulsional em ato criativo.
Partindo da pergunta “Porque Freud utilizou uma peça trágica para falar da estrutura
do inconsciente humano?” é analisada a função do artista para Freud por considerá-lo como
aquele que está à frente da ciência. O desenvolvimento teórico de Lacan ressalta a função de
Édipo como sendo aquele que manifesta o real pulsional, assumindo o lugar de objeto ‘a’,
revelando o vazio, a falta de sentido sobre os desejos inconscientes. Toda a trama trágica
construída por Sófocles em torno do herói edipiano contorna as bordas desse fosso de horror
da completude perdida, e que se almeja alcançar através da fantasia, por onde as metáforas
podem falar do indizível. Criar a história em torno do mito é a função do artista definida por
Lacan da seguinte forma: “Por meio das metáforas o artista pode falar do inconsciente,
permitindo o deciframento de elementos das mais primitivas pulsões humanas, bem como os
mais profundos desejos da civilização” (Lacan, 1960: 281).
É em torno do ponto limite do sentido que a análise transcorre permitindo a construção
do mito edipiano. O mito individual do neurótico, a sua fantasia, dá contorno a esse ponto
central irrepresentável que configura o objeto “a”.
11
Os estudos de Lévi-Strauss em seu trabalho “Antropologia Estrutural”, é utilizado para
abordar a semelhança apresentada por ele entre as relações de parentesco e as relações
lingüísticas mostrando haver uma forma de comunicação através dos mitos, das artes e da
religião que permitem falar daquilo que está para além das palavras. A mitologia é entendida
como o reflexo da estrutura das relações sociais existindo unidades mínimas de sua estrutura
chamadas por Lévi-Strauss de mitemas, da mesma forma que na linguagem teremos os
fonemas. Essas unidades mínimas são comuns aos mitos existentes nas culturas e também nos
mitos individuais. O tabu do incesto é um elemento estrutural nas relações humanas que
funciona como uma “mensagem” transmitida entre os grupos. Isso demonstra haver uma
necessidade de um tabu, algo proibido para que ocorram os laços sociais. Esse elemento
proibido compõe a estrutura mítica, o que a faz ser geradora de um saber sobre o inconsciente
humano, indo além de uma fábula e alcançando o ponto de desconhecimento sobre os desejos
perversos que habitam o homem. Por essa razão, os dois crimes máximos contra a civilização,
o incesto e o parricídio, estão no âmago do conflito de Édipo.
Desta maneira, os crimes de Édipo Rei, expressam as fantasias incestuosas e
assassinas, formadoras do núcleo inconsciente que só podem ser expresso através da estrutura
mítica. Todo esse arcabouço teórico aponta para a definição de Lacan de que os crimes
contidos no inconsciente referem-se ao campo das pulsões, onde o sujeito encontra-se na falta
de um significante que designe os seus desejos mais ocultos. O sujeito só encontra seu lugar
no vazio dos significantes pulsionais, no “círculo queimado na mata das pulsões” como diz
Lacan. A pulsão dá voltas em torno do fora-de-significado permitindo que o sujeito venha a
emergir. Aquilo que está para além do significado é o espaço trágico propriamente dito, lugar
ocupado por Édipo como herói patronímico do Complexo de Édipo por estar substituindo o
significante unário.
O pensamento de Platão e Aristóteles sobre a tragédia é lembrado para falar da
importância da mímeses como representação do herói em estado de sofrimento. Na mímeses
trágica ocorre um efeito de prazer naquilo que deveria causa desprazer pelo efeito catártico
que a peça trágica provoca. O público é tomado por dois sentimentos descritos por
Aristóteles, terror e compaixão. Esses sentimentos são descritos como causadores do efeito
catártico e serão retomados por Lacan estabelecendo uma relação entre a catarse e o registro
do real. O efeito catártico possibilita um saber relativo à verdadeira origem criminosa do
homem o que leva, Lacan a desenvolver ser o herói aquele que deparar-se com os seus crimes
enquanto o neurótico os possui submersos pelo recalcamento e que só podem ser sentidos
como prazerosos por meio da ação do herói em cena. O prazer no desprazer abre caminho
12
para abordar o excesso dionisíaco e o surgimento da arte trágica na Grécia apresentando
alguns outros conceitos a hamartia e a hybris, relacionando-os ao percurso analítico.
Dessa maneira o Complexo de Édipo é apontado como sendo a fábula construída pelo
analisante na qual o elemento trágico refere-se ao âmago do conflito, dos desejos criminosos
que só podem ser falados por meio da ficção.
O percurso de Édipo desde seu nascimento até o momento em que arranca os próprios
olhos, momento máximo da tragédia, visa ressaltar a passagem de sua sorte ao seu infortúnio.
A dimensão trágica que ocorre na peça refere-se à ação do herói sujeito ao destino impetrado
pelos deuses. Dessa maneira Édipo encena o homem sujeito ao seu inconsciente, pois ele não
sabia sobre os crimes que havia cometido, o que permite um paralelo com o fato do neurótico
se culpabiliza pelos crimes que embora desconheça, estão atuando no nível da fantasia. Ao
entrar em análise o sujeito passa a querer saber sobre os desejos que o causam, alcançando a
dimensão trágica. Édipo é ressaltado como uma metáfora que se encontra no lugar do objeto
“a”. Após a peripécia e o reconhecimento trágico Édipo é apontado como rebotalho ocupando
o espaço do saber. Esse espaço que Lacan define como sendo aquele compreendido entre duas
mortes é o ponto de apoio para abordar a posição do analisante diante de seu desejo e o lugar
ocupado pelo analista como semblante de objeto a para seu analisante.
O tempo da fantasia é relacionado aos elementos da tragédia, peripécia,
reconhecimento e catástrofe, como o momento da peça em que toda a verdade é revelada.
Essa relação permite falar do tempo de compreender o momento de concluir e o instante de
ver relacionando-os com a análise ao apresentar Édipo como o representante do objeto
perdido, substituto do pai morto de Totem e Tabu.
A análise é então, entendida como um processo através do qual se torna possível que o
sujeito, venha a produzir novos significantes que dêem sentido a sua existência, na aceitação
de uma perda estrutural. Dessa forma, no manejo hábil da transferência, o sujeito percorre o
caminho em direção ao seu desejo, transpondo sua demanda de amor em ato criativo. É dessa
forma que na dimensão trágica, o herói assume a posição de objeto “a”, não cedendo de seu
desejo e enfrentando a morte reafirmando a perspectiva freudiana de que o sentido da vida
está na conjugação da vida com a morte.
13
1. O COMPLEXO DE ÉDIPO E O OBJETO “a”
Essa dissertação pretende apresentar o que é o trágico para a psicanálise, relacionandoo com o que Freud definiu como Complexo de Édipo, ao mostrar o sujeito em conflito com
suas ações. O Complexo de Édipo, conceito central da psicanálise, é a estrutura de
organização do psiquismo humano, pois é através dele que o sujeito se constitui. Nesse
sentido, as primeiras relações travadas entre o sujeito e aqueles que o rodeiam irão permitir a
criação da realidade psíquica. A família, como primeiro grupo no qual o sujeito é inserido,
desempenha um papel primordial na transmissão da cultura e da linguagem. A família
prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos e na aquisição da língua materna.
Com isso, a família preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico,
transmitindo a estrutura do comportamento e das representações inconscientes. É ela que
estabelece, entre as gerações, uma continuidade psíquica, na qual os complexos desempenham
um papel organizador no desenvolvimento psíquico.
Freud, antes de chegar a teorizar sobre o Complexo de Édipo, iniciou seu estudo
partindo da idéia de que seus pacientes desenvolviam seus sintomas a partir de um trauma
real. Muitas vezes eram relatados abusos sexuais que teriam sido cometidos pelos próprios
pais dos pacientes, o que Freud percebeu tratar-se de aspectos fantasiosos de seus pacientes,
ou seja, conflitos psíquicos que podiam ser elaborados através de uma fantasia construída em
torno das relações familiares do sujeito. Freud descobriu, então, haver uma outra realidade
além daquela vivenciada no cotidiano. Denominou de realidade psíquica a esse conflito e,
através dele, construiu o conceito de Complexo de Édipo. O conflito do sujeito é, pois,
materializado pelo complexo da família conjugal, de forma que a psicanálise reconhece na
estrutura familiar um poder que ultrapassa o seu papel de educar a criança (Lacan “Os
complexos familiares na formação do indivíduo” p. 66). Freud (1895), ao escutar seus
pacientes, percebeu que os sintomas não estavam ligados a manifestação daquilo que o sujeito
não consegue elaborar simbolicamente a respeito do desejo que o constitui como sujeito e
que, ao falarem através da associação livre, os pacientes tornavam-se pesquisadores de sua
verdade inconsciente. O inconsciente estruturado como uma linguagem exige ser decifrado e
simbolizado e a análise permite que, através dos significantes que surgem em associação
livre, o desejo inconsciente ganhe expressão.
A mãe como primeiro representante do grupo social dá significado simbólico a
existência da criança, que passa a ser reconhecida no grupo pelo critério de filiação. Dessa
maneira, a psicanálise entende que o ser humano precisa de uma filiação simbólica e não
14
apenas biológica. Esse é um ponto essencial para o entendimento psicanalítico, porque em
algum momento o sujeito passa a interrogar-se sobre sua origem e o desejo do Outro que o
acolheu nos laços sociais. A psicanálise, ao partir do pressuposto de que a família, em suas
infinitas formas de organização, é o elemento de transmissão do desejo, apresenta os pais
como representantes da estrutura psíquica do sujeito, tomando suas imagens e palavras como
ponto de articulação com seu próprio inconsciente. A família é tomada como modelo de uma
estrutura interna do sujeito.
O desejo é transmitido pela herança psíquica através das leis e autoridade do pai. O
sujeito precisa ter sido desejado por alguém que cumpriu a função parental e ter entrado na
organização da linguagem social. Assim, o pai, como operador simbólico, precisa aparecer no
questionamento do sujeito em torno do mistério sobre a origem, sobre o desejo que o
antecede, bem como no caráter universal da interdição do incesto da criança com a mãe.
Ao constatar o fato da sexualidade ser infantil, Freud percebeu estar nas fantasias
infantis o questionamento sobre o lugar que o sujeito ocupa no desejo de seus pais. As
crianças, ao brincarem, encenam os conflitos inconscientes vividos nas relações familiares em
sua tentativa de posicionar-se como sujeito desejante. Ao descobrirem elementos sexuais
sobre seus pais, como fruto de teorias próprias, as crianças acabam por elaborar fantasias
desenvolvidas a partir de suas pesquisas, na tentativa de camuflar a verdade sobre a diferença
sexual, o real traumático, ou seja, a castração. Pai e mãe, tomados como significantes do
desejo, permitem que o sujeito confronte-se com a diferença entre os significantes e com a
falta de um significante que o defina como sujeito de seu próprio desejo. Portanto, entre o pai
e a mãe há um mistério sobre sua união, sobre o desejo implicado e da posição ocupada pela
criança nessa triangulação.
Freud constatou que as crianças tornam-se pequenos pesquisadores, criando teorias
bastante elaboradas sobre o nascimento dos bebês (FREUD, “sobre as teorias sexuais das
crianças” (1908)). A questão do sujeito com sua família não termina, entretanto, com o final
da infância, podendo estender-se de forma questionadora e conflitante por toda a sua vida.
Isso porque algo fica fora da linguagem e esse algo é parte do entendimento do sujeito sobre o
significante de seu desejo, ou seja, daquilo que o define em sua sexualidade. Freud constatou
esse fato ao perceber que seus pacientes traziam lembranças inconscientes através do material
consciente a respeito das lembranças que possuíam de suas infâncias, ao relatarem suas
histórias em análise. As pesquisas infantis surgem em torno do conhecimento sobre o sexo e
de seu lugar como objeto de desejo. A perda do carinho dos pais, com o nascimento de um
irmãozinho, pode criar uma franca hostilidade em relação ao rival. A fantasia de ser o centro
15
das atenções e amor de seus pais começa a ser colocada em questão e a criança começa a se
questionar “de onde veio esse bebê intrometido?”. A criança acaba por fazer essa pergunta aos
seus pais que não respondem e ainda é despedida com uma explicação mitológica “A cegonha
traz os bebês”. Freud constatou que as crianças não acreditam nessa história e começam a
desconfiar dos adultos e suspeitar que eles escondem algo proibido. Com isso, a criança
enfrenta seu primeiro conflito psíquico e o material de sua investigação torna-se o conjunto
das opiniões reprimidas e inconscientes. Está assim formado o complexo nuclear da neurose.
A criança percebe que os bebês vêm da barriga de suas mães e inibe essa explicação, criando
falsas teorias. Saber que eles vêm lá de dentro não é uma explicação suficiente, “como eles
param lá?”. Parece lógico que o pai tenha alguma coisa a ver com isso. Ao perceber a relação
sexual entre os pais, desenvolve uma teoria sádica, onde o pai está maltratando sua mãe. A
criança tenta inconscientemente afastar o pai e proteger sua mãe para ficar com seu amor e é,
a partir dessa relação de rivalidade e identificações, que o Complexo de Édipo é vivenciado.
Em “Romances Familiares” (1909), Freud constatou que o desejo mais intenso da
criança, nos primeiros anos, é de tornar-se grande como o pai do mesmo sexo. Com o tempo,
põe em dúvida a grandiosidade atribuída aos pais e começa a criticá-los. Essa atitude crítica é
mantida pelo seu conhecimento de que existem outros pais melhores que os seus. A criança
sente-se rejeitada e abandonada por seus pais e desenvolve a idéia de que foi adotada. Os seus
pais verdadeiros seriam, em sua fantasia, de uma linhagem melhor e mais aristocrática. Esses
conflitos, como Freud constatou, eram vivenciados de forma abrangente por seus pacientes,
independente de classe social ou cultura. É, pois, um fenômeno que transcende o tempo e o
tipo de civilização onde o sujeito esteja incluído. Tais conflitos inconscientes tornaram-se a
base da teoria psicanalítica, por evidenciar a universalidade da estrutura inconsciente. Ao
perceber o valor da fantasia na vida psíquica e sua direta relação com os sintomas, Freud
recorreu aos artistas, àqueles que fazem da fantasia a matéria prima de sua profissão, por
constatar o fato de suas obras trazerem, no cerne das tramas criadas entre os personagens, os
elementos estruturais do inconsciente. Os poetas traduzem os elementos estruturantes e
atemporais do inconsciente a partir dos enredos que criam, assemelhando-se aos romances
familiares desenvolvidos pelos analisantes na clínica psicanalítica. Freud constata que o
espectador identifica-se com a trama criada pelos escritores, porque contém elementos de suas
próprias fantasias. As obras literárias mantêm o material nuclear e universal do inconsciente, a
saber, o conflito do homem em relação aos seus desejos.
A fantasia da criança de ser adotada é semelhante ao que o herói trágico da peça de
Sófocles (séc. IV a.C.), Édipo, vivencia ao ser abandonado por seus pais no Citeron. O
16
conflito vivenciado pelo herói gira em torno da questão de não saber sobre sua origem e, por
isso, acaba realizando aquilo que a criança expressa em sua fantasia, afastar o pai, seu rival, e
ficar com a mãe para ele. As crianças também nutrem um desejo de vingança por seu rival.
Pode-se verificar que Édipo mata seu pai na peça, realizando um desejo inconsciente e infantil
da platéia. Freud, então, conclui que não há razão para ficarmos horrorizados com esses
pensamentos infantis tão “depravados”. Ele explica que essas obras de ficção infantil, que
aparentemente estão cheias de hostilidade e agressividade contra seus pais, são, na verdade,
um disfarce do amor que ela possui por seus pais. A infidelidade e a ingratidão dos
pequeninos é apenas aparente. Os Romances familiares criados pelas crianças e revividos
pelos pacientes estão apenas substituindo os pais por pessoas de melhor situação por que em
um primeiro momento atribuíam aos seus pais esse lugar grandioso. Assim, é uma forma
velada de enaltecer seus pais. É só uma expressão da saudade que a criança tem dos dias
felizes em que o pai parecia ser o mais nobre e mais forte e a mãe a mais linda e amável das
mulheres (FREUD, “Romances Familiares” p. 246).
As inúmeras semelhanças entre o enredo artístico de Édipo Rei e as fantasias criadas
por ocasião desse evento psíquico e conflituoso levaram Freud a confirmar sua teoria de que
há um caráter universal no material inconsciente. A peça trágica de Sófocles traz de forma
evidente os principais elementos do romance familiar fantasiado pelo neurótico ao elaborar
seus conflitos psíquicos. Tais elementos podiam levar qualquer pessoa de qualquer época a
identificar-se com o enredo. Os conflitos contidos na obra trágica de Édipo Rei encenavam,
através de uma trama lingüística ambígua e contraditória, as tramas conflitantes que regem a
relação com seus pais. Então, ao falarmos de conflitos familiares temos que compreender que
a psicanálise entende a dinâmica familiar girando em torno do afeto e da sexualidade, por
onde os desejos circulam. O conflito psíquico, representado artisticamente por Sófocles,
apresenta toda a relação conflituosa do homem com seu desejo. O personagem Édipo realiza o
desejo inconsciente de retornar à completude ilusória com a mãe. Édipo realiza a fantasia
infantil ao casar-se com sua mãe e livrar-se de seu pai. Da mesma forma que o personagem
Édipo vive seus conflitos de saber sobre sua origem através das relações conflituosas que
mantém com seus pais, o sujeito, ao criar seu romance familiar, utiliza a família para
vivenciar seus conflitos internos, de forma a estruturar a organização de seu aparelho mental.
Por meio dessa “rede simbólica” que é a família, o sujeito se organiza, sendo a família
edipiana um espaço de construção subjetiva. O adoecimento neurótico, portanto, passa pela
dificuldade de resolução desse conflito, dificultando seu posicionamento como sujeito
responsável por suas escolhas quanto ao seu desejo. O sujeito em seu conflito edipiano ainda
17
não se separou das relações primeiras e do desejo do Outro materno. Os pais ainda estão em
uma posição idealizada e, por isso, são chamados a dar uma explicação sobre o mistério da
sexualidade que envolve o sujeito. Embora isso seja desenvolvido na infância, o neurótico se
fixa nessa demanda de amor.
O poeta, ao trabalhar com a linguagem de maneira criativa e livre, aproxima-se ao
discurso do analisante em associação livre. Na cadeia associativa, os significantes deslizam e
a significação se move, construindo a fantasia do analisante. Na busca de sentido sobre o que
lhe escapa, o desejo inconsciente irá circular um lugar vazio, pois a linguagem é sempre falha
para dizer tudo sobre o sujeito. O desejo, dessa maneira, gira em torno de uma perda chamada
por Freud de “Das Ding” e por Lacan de objeto “a”. Embora perdido o objeto “a” deixa seus
traços que se presentificam no corpo, por meio de objetos imaginários como o olhar, a voz, os
seios e as fezes. A falta de objeto que traga de volta a doce ilusão de completude, perdida em
um tempo mítico, é o que permite a criação em torno do enigma que marca a própria
existência.
Desse modo, o ser para a psicanálise está situado em um real inatingível, de modo que
a verdade inconsciente é inacessível, sendo percebida pelos efeitos que produz na relação do
sujeito com seu desejo. A tragédia de Édipo Rei de Sófocles analisa a questão que persegue o
personagem em torno de sua verdade. Édipo vai em busca de sua verdade, construindo sua
história em torno daquilo que lhe é desconhecido. Nesse sentido, o conceito de trágico tornase basilar para o entendimento do lugar de hiância, no qual o sujeito está compreendido. O
herói trágico, em confronto com seu desejo, permite abordar a possibilidade do sujeito de
separar-se dos significantes que o aprisionam de e compreender a dimensão trágica do
psiquismo que produz um impasse quanto à ação do homem no mundo.
O eixo norteador dessa dissertação está centrado no conceito de objeto “a”,
privilegiando-o como eixo em torno do qual todo o drama do herói irá se desenvolver em
busca de sua verdade. A construção da história do herói remete ao espaço de análise onde o
sujeito também cria uma fantasia edipiana relativa ao seu inconsciente e ao mundo do desejo.
Assim, Édipo, diante do conflito sobre sua própria existência, encarna o lugar do objeto
perdido sem representação possível no inconsciente. Em torno desse lugar perdido, a pulsão
dará suas voltas na busca de um significado último a ser buscado. O espaço de sujeito
desejante, que é aberto na possibilidade discursiva da obra artística trágica, evidencia a
linguagem como operadora de emergência do sujeito do inconsciente. Na criação da narrativa
em torno do mito, o artista decifra os elementos pulsionais. Lacan define a função do artista
da seguinte forma:
18
Por meio das metáforas o artista pode falar do inconsciente, permitindo o
deciframento de elementos das mais primitivas pulsões humanas, bem como
os mais profundos desejos da civilização (LACAN, 1960: 281).
O Édipo ilustra o ponto limite do sentido, em torno do qual o sujeito constrói sua
fantasia por meio da linguagem. A fantasia dá contorno a esse ponto central irrepresentável
que configura o objeto ‘a’, ponto inapreensível do ser.
Lacan irá utilizar o trabalho do antropólogo Lévi-Strauss “Antropologia Estrutural”
para analisar as relações de parentesco e as relações lingüísticas, evidenciando-as como
unidades míticas comuns nas diversas culturas e mostrando haver uma universalidade na
estrutura inconsciente. O tabu do incesto é um elemento estrutural nas relações humanas, que
funciona como uma “mensagem” transmitida entre os grupos. A estrutura mítica comporta um
saber sobre o inconsciente humano, indo além de uma fábula e alcançando o ponto de
desconhecimento sobre os desejos que habitam o homem. Por essa razão, os dois crimes
máximos contra a civilização, o incesto e o parricídio, estão no âmago do conflito de Édipo.
Desta maneira, os crimes de Édipo Rei expressam as fantasias criadas em torno do
núcleo inconsciente. Édipo, como representante do objeto perdido, apresenta o sujeito em seu
lugar no vazio dos significantes pulsionais, no “círculo queimado na mata das pulsões”, como
diz Lacan. A mímeses trágica, ao representar o herói em seu estado de sofrimento, produz a
identificação do espectador com seu drama inconsciente. Ocorre um efeito de prazer naquilo
que deveria causar desprazer, pelo efeito catártico que a peça trágica provoca. O público é
tomado por dois sentimentos descritos por Aristóteles, terror e compaixão. Esses sentimentos
são descritos como causadores do efeito catártico e serão retomados por Lacan, que
estabelecerá uma relação entre a catarse e o registro do real. O prazer no desprazer abre
caminho para abordar o excesso dionisíaco e o surgimento da arte trágica na Grécia,
apresentando alguns outros conceitos: a hamartia e a hybris, relacionando-os ao percurso
analítico.
Dessa maneira, o Complexo de Édipo é apontado como sendo a fábula construída pelo
analisante. O percurso de Édipo ressalta a dimensão trágica que se refere à ação do sujeito em
relação ao seu destino. Algo sobre sua verdade escapa ao sujeito, o objeto desconhecido é o
que Édipo representa como metáfora do objeto causa de desejo.
O herói, tomado como metáfora do que nos habita, permite entender a análise como a
possibilidade discursiva que abre a hiância entre objeto de desejo do Outro e sujeito de seu
desejo. As interpretações permitem tornar o sujeito capaz de produzir significantes novos,
fazendo fluir seu desejo.
19
2. A TRAGÉDIA
2.1 A Arte Trágica e a Psicanálise
Para se atingir a finalidade de estudo da relação entre a arte trágica e a psicanálise,
torna-se necessário retornar ao início da construção teórica sobre o inconsciente. Freud
buscou, nos mitos e nas produções culturais, indícios da formação dos processos psíquicos,
teorizando ser a civilização regida pelas mesmas leis que regem o indivíduo. O produto da
cultura trazia elementos preciosos a serem elaborados em seus estudos, levando-o a incluir,
desde o início de sua obra, as produções artísticas, em especial a literatura, como material de
pesquisa sobre o inconsciente humano. Para tanto, tomou a obra de Sófocles, Édipo-Rei,
como ponto de amarração para o desenvolvimento de toda a teoria psicanalítica, entendendo
ser a ficção artística fonte de saber sobre o psiquismo humano.
Sua teoria abrangeu as obras de arte, conferindo-lhes um valor de revelação do
material psíquico oculto no inconsciente. As criações humanas provenientes da imaginação
tornaram-se, para Freud, portanto, fonte de descobertas sobre uma verdade para além de seu
saber consciente. Dessa forma, o criador da psicanálise elevou as fantasias de seus pacientes,
seus sonhos e devaneios a um valor e credibilidade até então ignorados. As fantasias podiam,
segundo ele, revelar elementos estruturais da formação dos processos mentais.
A teoria freudiana expressa o valor da arte, ao considerá-la como forma de revelação
do material psíquico naquilo que a ciência não apreende, apresentando o artista como aquele
que está à frente da ciência na percepção dos afetos. Assim sendo, percebeu que o mito de
Édipo, trabalhado na obra trágica de Sófocles, expressava as fantasias que reconheceu em si
mesmo e em seus pacientes, sendo o núcleo de tais fantasias de natureza incestuosa e
assassina, o que dá o tom trágico ao desejo inconsciente.
No campo cifrado das palavras dos pacientes, havia uma aproximação do efeito
causado pelo artista ao apresentar sua obra, levando Freud a formular sua teoria sobre o
inconsciente. Tal compreensão levaria Lacan a formular, mais tarde, que:
São as metáforas produzidas pelo artista em sua produção, que irão
possibilitar que se fale sobre o inconsciente levando a decifrar elementos das
mais primitivas pulsões humanas e os mais profundos desejos da civilização
(LACAN, 1960: p. 281).
20
Nesse campo das pulsões1 mergulham os seres em busca de sua verdade inconsciente,
sendo esse estruturado como uma linguagem e escondendo em suas cifras os desejos
humanos. Foi por meio desse entendimento que Freud encontrou as profundezas atemporais
do sujeito, através do material onírico de seus pacientes, isto é, a hiância da verdade que
emerge de forma enigmática, como em códigos a serem desvelados. Estabelecendo as leis do
inconsciente, condensações e deslocamentos, que mais tarde foram tratadas por Lacan como
metáforas e metonímias, a psicanálise aproximou-se do discurso poético. Os desejos,
portanto, não seriam apenas aqueles manifestos na fala, mas algo resguardado no inconsciente
e que poderia ressurgir no discurso do paciente como uma criação. Esse discurso analítico
leva em conta as fantasias do sujeito, desde que elas sejam relatadas para o analista. Por meio
desse relato, que nada mais é do que um mito sobre a fantasia fundamental do sujeito, é
possível construir uma ficção pessoal. Dessa forma, a verdade inconsciente é desvelada,
remetendo ao material que está para além das palavras, o qual só pode obter significado por
meio de substitutos simbólicos.
Neste sentido, o pensamento humano pode ser entendido como um conceito que
bascula entre a realidade e a fantasia. A arte, sob esse prisma, torna-se força civilizatória,
produtora de cultura e reveladora da origem mítica pulsional dos indivíduos. Sendo assim, a
arte, por trazer para a cultura o material inconsciente, transmite o conteúdo pulsional que está
para além da cultura, o que a torna de entendimento universal e atemporal.
Paradoxalmente
ao
caráter
universal
do
inconsciente,
Freud
constatou
a
individualidade de cada caso, não sendo nenhum sujeito idêntico ao outro. Embora tenha
utilizado alguns de seus casos clínicos como paradigmas para explicar o inconsciente, tratou
os sujeitos como portadores de saberes sempre inéditos, criativos e ilimitados. Através do
método de associação livre, os pacientes falavam e produziam significados por meio do que
Freud denominou de Romances Familiares. Ao permitir que seus pacientes reeditassem a
versão mítica e ficcional sobre sua história pessoal, as barreiras do recalque eram levantadas,
advindo o entendimento de um novo saber sobre eles mesmos, um conhecimento criado a
partir da elaboração sobre o inefável do ser.
1
Para Freud pulsão é um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força que faz o organismo tender para
um objetivo. Na teoria da sexualidade de 1905, vol V, p. 67, Freud define pulsão como “um conceito-limite entre
o psiquismo e o somático”. Está ligada a noção de “representante”, pela qual ele entende uma espécie de
delegação enviada pelo somático ao psiquismo. O dualismo pulsional introduzido por Além do princípio do
prazer (1920) contrapõe pulsões de vida e pulsões de morte e modifica a função e a situação das pulsões no
conflito (Jean LAPLANCHE; J. B. PONTALIS, Vocabulário da Psicanálise, p. 394).
21
Essa elaboração, que é expressa de forma contundente na tragédia, fez com que Freud
percebesse ser o processo analítico uma forma do sujeito entrar em contato com os mesmos
conflitos contidos na obra trágica por meio de sua ação. Tais conflitos, sendo apresentados de
forma artística, causam prazer, velando, assim, o desprazer produzido pelo horror daquilo que
é recalcado. A cena trágica, portanto, permite com que o espectador aproxime-se do cerne de
sua angústia, por meio da trama criada pelo poeta em torno do herói. Da mesma forma, a
pulsão se articula ao redor do centro de desconhecimento do ser, criando sua trama lingüística
na qual estão submetidos os sujeitos. A linguagem, por ser sempre ambígua e contraditória,
tece as tramas conflitantes que regem os laços sociais e a relação do indivíduo consigo
mesmo, fazendo com que o material recalcado pelos ditames culturais insistam em retornar à
linguagem.
2.1.1 A Representação Psíquica – A Fantasia Inconsciente e Sua Representação
Por meio dos relatos de seus pacientes, Freud desenvolveu o conceito de fantasia
inconsciente, ou seja, uma “Outra cena”, a cena do inconsciente que é possível de ser
apreendida como uma representação. Os sonhos são imagens trazidas do inconsciente e que
precisam ser contadas como uma história, permitindo que o material inconsciente venha à
tona e possa assim ser elaborado e interpretado. No entanto, Freud afirma que a representação
- Vorstellung2 - não decorre, necessariamente, das lembranças diretas de imagens guardadas
na memória, mas também de traços dessas memórias, “traços mnésicos”. Freud concebe as
representações de coisa como complexos abertos de sensações, representados por uma
sensação saliente, no caso a visual, sensações que são imagens mnésicas ou traços de
memória deixados no aparelho pela experiência perceptual. Sendo assim, a representação é a
inscrição do acontecimento que deixou suas marcas, seus traços de memória, de algo que não
pode mais ser lembrado diretamente (FREUD, 1900, p. 602).
Freud, ao falar da diferença entre a representação inconsciente e a representação
consciente, diz ser: a representação inconsciente correspondente ao traço de memória,
denominado por ele de “representação de coisa3”, enquanto a representação consciente
2
O termo em alemão Vorstellung que quer dizer “aquilo que representa o conteúdo de um ato de pensamento”,
mas Freud usa o termo de forma original dizendo ser a representação do traço de memória deixado pelo objeto
no inconsciente (Jean LAPLANCHE; J. B. PONTALIS, Vocabulário da Psicanálise, p. 448).
3
A representação da coisa pode ser comparada ao brinquedo infantil. Durante a brincadeira a criança investe
alucinatóriamente no brinquedo que é tomado por um objeto através do qual a criança pode representar o objeto
materno ausente (Jean LAPLANCHE; J. B. PONTALIS, Vocabulário da Psicanálise, p. 449).
22
engloba a representação do “traço mnésico” mais a representação de uma palavra4
correspondente. As representações precisam, portanto, de seus representantes, definidos por
Freud como representantes da representação. O representante é, pois, nos termos de Lacan,
um significante, que representa esse traço mnésico da experiência psíquica. Uma palavra pode
representar algo de uma representação, que afinal deixou apenas traços de sua experiência no
psiquismo.
As fantasias típicas encontradas pela psicanálise levaram Freud a postular a existência
de esquemas inconscientes que transcendem a vivência individual e que seriam transmitidos
através da linguagem, como uma herança.
Mesmo sabendo que o sonho é uma forma
distorcida de manifestação do desejo inconsciente, devemos entender o conteúdo manifesto
do sonho como símbolo, uma expressão do desejo inconsciente como Freud apresentou na
Conferência XVI (1916-1915). Os sonhos, portanto, testemunham essa pré-história.
A pré-história à qual a elaboração onírica nos faz retroceder é de duas
espécies – de um lado, à pré-história do indivíduo, sua infância; contudo, e
de outro, até onde cada indivíduo de alguma maneira recapitula, em forma
abreviada, todo o desenvolvimento da espécie humana, também à préhistória filogenética. (FREUD, 1916: p. 239).
A fantasia teria como função tentar completar essa pré-história perdida da verdade
individual de todos nós. A essas fantasias Freud denominou de “fantasias originárias” 5. Essa
pré-história torna-se o fundamento do que Freud toma por realidade psíquica6 e os
fundamentos arcaicos reais foram por ele investigados por fornecerem a base dos sintomas
neuróticos. Tais sintomas, portanto, ligam-se às “cenas originárias”, assim denominadas por
serem recordações elaboradas e disfarçadas por fantasias do material traumático, que se
encontra na origem do sujeito. Assim sendo, as fantasias ligam-se aos desejos inconscientes.
Esse material inconsciente e fantasioso é o espaço onde o sujeito pode elaborar as marcas
deixadas pelo primeiro objeto de desejo perdido.
4
As representações de palavra são introduzidas numa concepção que liga a verbalização e a tomada de
consciência. Assim, desde o Projeto para uma psicologia científica (1895) encontramos a idéia de que é
associando-se a uma imagem verbal que a imagem mnésica pode adquirir o “índice de qualidade” específico da
consciência (Ibid., p. 451).
5
Estruturas fantasísticas típicas (vida intra-uterina, cena originária, castração, sedução) que a psicanálise
descobre como organizando a vida fantasística sejam quais forem as experiências pessoais dos sujeitos; a
universalidade destas fantasias explica-se, segundo Freud, pelo fato de constituírem um patrimônio transmitido
filogeneticamente (Ibid., p. 174).
6
Trata-se fundamentalmente do desejo inconsciente e das fantasias conexas. É aquilo que o sujeito assume como
realidade no seu psiquismo. As fantasias possuem uma realidade psíquica oposta à realidade material e nas
neuroses a realidade psíquica desempenha um papel dominante (Ibid., p. 427).
23
A fantasia constrói um espaço de representação por meio do desejo abrigado no
inconsciente, que contorna pulsionalmente o real inatingível. São exatamente as fantasias que
recobrem a estrutura latente, construída em torno daquilo que não pode mais ser rememorado.
Esse lugar irrepresentável do inconsciente corresponde a um significante que escapa da cadeia
de representações lingüísticas e é, em torno desse significante da falta, que a estrutura
psíquica do sujeito se organiza. Dessa forma, o inconsciente se estrutura ao redor desse núcleo
do real, atualizando-se por meio do imaginário e dos elementos simbólicos. A psicanálise,
portanto, postula que a estrutura psíquica do sujeito é construída por meio de relações
lingüísticas, assim como uma trama familiar.
O sujeito só se constitui através dos outros, sendo sua família a primeira rede de
relações com as quais irá estabelecer um vínculo. Nessas primeiras relações, o sujeito irá
concernir os impasses e conflitos na sua relação com o seu próprio desejo. Os pais irão
representar a estrutura psíquica do sujeito, tomando suas imagens e palavras como ponto de
articulação com seu próprio inconsciente. O sujeito entra nos laços sociais marcado por essa
falta constitucional e tentará adaptar-se ao mundo por meio daqueles que o marcarão com
seus desejos. A mãe, como primeiro ser que lhe vem como desejante, irá receber o lugar desse
saber desconhecido do inconsciente. Ela constituirá o primeiro Outro do sujeito, ou seja, o
primeiro representante dessa relação estabelecida com seu próprio inconsciente 7.
Dessa forma, as relações humanas são representações psíquicas que se articulam em
torno de um eixo central, o “núcleo do sonho”, sob o qual se estabelecerá uma trama trágica
definida por Freud como “Complexo de Édipo”8. A fantasia inconsciente, ou seja, a “Outra
cena” é, pois, ressaltada por Lacan como tendo o cunho teatral encenado na tragédia grega de
Édipo Rei. Lacan explica da seguinte forma:
Estou colocando a questão da referência do teatro na teoria freudiana: o
Édipo, nada menos. Já é tempo de atacar isso que pareceu necessário manter
o teatro, pelo que sustém a Outra cena [...] (LACAN, 9/junho/1971).
7
O nebenmensch (Complexo do próximo), como Freud denomina a relação de proximidade da criança com a
mãe, na qual ocorre a primeira apreensão da realidade pelo sujeito ( Sigmund FREUD; 1994 [1895], p.183).
8
Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em reação aos pais. O complexo
apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo de morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e
desejo sexual pela personagem do sexo oposto. O complexo de Édipo desempenha papel fundamental na
estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano. Trazendo a sua universalidade nas culturas
mais diversas, e não apenas naquelas em que predomina a família conjugal (Jean LAPLANCHE; J. B.
PONTALIS, Vocabulário da Psicanálise, p. 77).
24
A arte mimética para a psicanálise torna-se não apenas reprodução de algo que existe
na realidade, mas invenção do Real. O Real, sem significação ou representabilidade, lugar
onde não há nada e no qual há um representante da representação pulsional inscrito como
marca do inconsciente, é o que Lacan denomina por objeto “a”. A arte cria, em torno desse
representante, a representação inconsciente. O conteúdo inconsciente, portanto, deve ser
representado no imaginário como em uma peça teatral para ganhar sentido. A estrutura da
fantasia é construída pelo sujeito em seu estatuto teatral da mesma forma como nos sonhos,
rompendo com a lógica da realidade material.
A encenação como o sonho, utiliza os mesmo recursos: a condensação (um
elemento representa toda a cena), o deslocamento (um elemento cênico, ao
mudar de contexto toma outra significação), a atemporalidade (passa-se de
um tempo ao outro ao bel-prazer, rompe-se com o esquema princípio, meio e
fim) e a exigência de figurabilidade (presença de corpos no visível)
(QUINET, 2004).
A arte traz o representante do objeto perdido, no qual a pulsão se fixa e através do qual
o inconsciente pode se manifestar. A pulsão se relaciona ao representante, porque é ele que
inscreve um signo que traz a marca do significante. Esse significante falta a cadeia lingüística,
na medida em que só há linguagem por haver a perda do objeto. Esse ponto de
desconhecimento do sujeito é o que Freud denomina de “Das Ding”, o objeto primordial que
o sujeito procura reencontrar. Mas, como diz Lacan, “é por sua natureza que o objeto é
perdido como tal. Jamais ele será reencontrado” (LACAN, 1960-1961: p. 69).
O homem é marcado por essa falta que lhe habita e que o torna ser de linguagem. A
entrada na linguagem é, pois, traumática, por implicar na perda de um objeto. No entanto, a
espera e a procura de recuperar o objeto perdido se mantêm na cena impossível de ser
repetida. Como afirma Lacan:
“Das Ding” apresenta-se ao nível da experiência inconsciente como aquilo
que desde logo constitui a lei. Trata-se, todavia, de uma lei de capricho,
arbitrária, de oráculo também uma lei de signos em que o sujeito não está
garantido por nada [...] (LACAN, 1960-1961: p. 93)
Como veremos mais adiante, Édipo é o herói trágico representante do objeto perdido,
em torno do qual é possível produzir a representação da posição do sujeito. Esse se posiciona
segundo o princípio do prazer, na distância que o separa de “Das Ding”, para atender ao
princípio da realidade (LACAN, 1960: p. 86). Assim, o mito de Édipo traz o elemento trágico
da fantasia originária, sob a qual o neurótico, em seu conflito edípico com o Outro, age sem
25
saber. De maneira que o mito de Édipo, transformado em arte teatral, permite a apreensão da
ação trágica, capaz de furar a ilusão imaginária criada nas redes simbólicas do sujeito. O mito
contido na fábula torna-se o conteúdo manifesto do material inconsciente, por trazer à cena o
ato trágico e possibilitar a representação mimética do pensamento na sua forma mais original.
Para representar o irrepresentável, entretanto, é necessário haver o poeta que cria e
recria o mundo. O artista produz um novo saber sobre o mundo e a vida, por meio de uma
fantasia que traz os traços da atividade imaginativa das crianças. O escritor criativo, como
Freud o apresenta, busca sua criatividade comportando-se como as crianças ao brincarem e
trata a brincadeira como algo sério, na qual se despende grande emoção.
A brincadeira infantil não é tratada por Freud como um mero entretenimento, mas sim
como representação que lhe permite elaborar seus conflitos psíquicos. As fantasias são, desse
modo, produzidas tanto pelos grandes poetas como pelas crianças em suas brincadeiras
infantis, fornecendo um ponto que liga o sujeito ao mundo real (FREUD, 1908: p. 149-150).
A brincadeira e a arte levam ao contato com os elementos indizíveis do núcleo
traumático do inconsciente, traduzidos pela fantasia, e que podem levar o sujeito a ir além da
relação imaginária. A angústia, que é sempre de castração, divide o sujeito entre a vertente do
excesso do gozo, que causará o terror diante da cena trágica, e a vertente da perda, que
causará a compaixão pelo herói é velada pela beleza da cena. O sujeito reveste a cena
traumática pela fantasia, para reencontrá-lo, porque deseja reaver o objeto primitivo perdido.
Reviver a cena traumática é situar-se como sujeito desejante, entre o desamparo no qual é
deixado pela falta do objeto e o gozo de sua presença.
A mãe comparece na dialética do desejo no momento em que fica no lugar desse ponto
inapreensível do inconsciente de seu filho. Nela, é projetada a incompletude psíquica do
sujeito, que a posicionará no lugar desse Outro, a quem é solicitada a resposta sobre a
ausência do objeto perdido. Ela ocupará o lugar do primeiro objeto de desejo da criança, de
forma que, em torno de sua presença e de sua ausência, construir-se-á a fantasia. Freud
constatou que o brinquedo poderia ser um representante desse objeto de desejo, sobre o qual a
criança enceraria de forma ativa seu particular enredo trágico.
Colocando-se no lugar de sujeito na brincadeira, a criança repetiria o insuportável
estado de desamparo deixado pela ausência da mãe e sua angustiante presença, transformando
o irrepresentável em sentimento de prazer e entusiasmo. Freud descreveu essa experiência
através do que observou de seu netinho no momento em que foi deixado no berço, na
ausência de sua mãe. O carretel que possuía tornou-se representante de sua encenação, na
qual, como esplendoroso poeta, jogava-o para longe, repetidas vezes, e depois o recuperava,
26
exclamando seus primeiros significantes. “Fort” era o que dizia ao lançar o objeto que, em
alemão, pronuncia-se de forma semelhante ao verbo “ir” e, ao recuperar o objeto, exclamava
“Dá”, que tem um som parecido ao do verbo “voltar”. Entre o “Fort” e o “Dá”, encontra-se a
criança produtora de significantes novos e criativos e de um enredo trágico, que o transforma
em escritor criativo. Escreve, em sua fantasia, a inscrição da marca de seu desejo no mundo
dos viventes. Por meio desse exemplo freudiano da representação da cena que ocorre no
inconsciente, cabem aqui as palavras de Lacan, ao dizer ser o inconsciente aquilo que fala
sobre algo do sujeito, que ele mesmo desconhece, “o inconsciente não é que o homem não
sabe o que diz, mas que não sabe quem o diz.” (LACAN, 1970: p. 66).
Por essa razão, Freud, ao falar da tragédia, dá seu significado literal, “brincar de luto”,
por ser a tragédia a forma artística que mais aproxima o espectador da elaboração do objeto
perdido. A tragédia é um estilo poético que, como observa Freud, recebe o nome de “peça”,
pelo fato de suas palavras poderem ser transformadas em objetos materializados pela
representação artística. Tal como a criança apresenta em sua brincadeira sua inexorável perda,
fazendo-se existir como ser-para-a-morte, também a arte trágica manifesta o inelutável fim do
espectador de forma lúdica e poética. Os atores que a apresentam recebem o nome, em
alemão, de “jogadores de espetáculo”, ou seja, aqueles que fazem a mesma mímeses realizada
pela criança em seu berço.
A linguagem preserva essa relação entre o brincar infantil e a criação
poética. Dá (em alemão) o nome de 'Spiel' ('peça') às formas literárias que
são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser
representadas. Fala em 'Lustspiel' ou 'Trauerpiel' ('comédia' e 'tragédia':
literalmente, 'brincadeira prazerosa' e 'brincadeira lutuosa'), chamando os
que realizam a representação de 'Schauspieler' ('atores': literalmente
'jogadores de espetáculo') (FREUD, 1908: p. 150).
Isso tudo que se refere à representação, não passaria despercebido ao criador da
psicanálise, que, tão bem, soube fazer de sua teoria uma obra literária e da cena analítica um
espaço, por onde os sujeitos se deparam com seus desejos.
27
2.2 Da Linguagem ao Mito
De acordo com a idéia de tragédia apresentada, é necessário retornar à importância
dada aos mitos na psicanálise. Com esse propósito, será utilizado o desenvolvimento teórico
da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, amplamente estudada por Jacques Lacan. Ao
interpretar a sociedade em função da teoria da comunicação, Lévi-Strauss entende ser a
sociedade constituída por meio de trocas matrimoniais, econômicas e lingüísticas, possuindo
o mesmo tipo de estrutura. Assim, “em outra ordem de realidade, os fenômenos de
parentesco são fenômenos do mesmo tipo que os fenômenos lingüísticos” (LÉVI-STRAUSS,
2003: p. 48).
Formulou, ainda, que há um caráter universal na linguagem, que transpõe qualquer
época, isso porque o fonema se mantém na linguagem ao longo do tempo, independentemente
dos significados lingüísticos atribuídos em cada cultura. Isso permitiu Lacan entender que a
organização fonética constrói uma rede simbólica semelhante às relações de parentesco.
Dessa forma, os fenômenos culturais produzem explicações e interpretações dos fatos,
o que aproxima tais elementos da estrutura do inconsciente. No entanto, a linguagem possui
uma estrutura bem mais estável do que o sistema de atitudes dos grupos sociais. A proibição
do incesto foi o fenômeno mais estável e universal existente nas culturas, constatado por
Lévi-Strauss, reafirmando o estudo desenvolvido por Freud em Totem e Tabu (LÉVISTRAUSS, 2003: p. 64). Relacionado às regras dos grupos primitivos que mantinham normas
quanto à posse de mulheres, estabeleceram-se as leis sociais de exogamia. No sistema
exogâmico um homem obtém uma mulher de outro homem, que lhe cede sua filha ou irmã. A
troca de mulheres entre os grupos torna-se o sistema ainda mais eficiente no sentido de
garantir a não existência de casamentos entre parentes, tendo o tabu sexual pautado na
impossibilidade dos homens manterem relacionamentos matrimoniais com suas mães. Este
sistema de trocas entre as famílias e os grupos de sociedades diferentes permitiu que as
mulheres funcionassem como veículo de comunicação e transmissão lingüística entre os
grupos. A “mensagem” transmitida entre os grupos passa a ser constituída por meio das
mulheres que circulam, estabelecendo as relações sociais.
A posição ambígua das mulheres, nesse sistema de comunicação entre
homens em que consistem as regras do casamento e o vocabulário do
parentesco, oferece uma imagem grosseira, mas utilizável, do tipo de
relações que os homens puderam, já há bastante tempo, manter com as
palavras (LÉVI-STRAUSS, 2003: p. 78).
28
Sendo assim, as mulheres transmitem, em suas palavras, os mitos, a arte, a religião,
enfim, os elementos culturais que, como Lévi-Strauss descreve, permitem uma comunicação
com o que está para além do sentido dado às palavras. A existência do ser no mundo é,
portanto, estruturada por meio da linguagem e é, por essa razão, que a mitologia será descrita
como reflexo da estrutura das relações sociais. As sociedades utilizam elementos dessas
relações com os elementos culturais, para construir aquilo que só pode ser entendido por meio
da ficção. A psicanálise, ao aproximar-se do conhecimento gerado pela antropologia
estrutural, utilizou os mitos como forma de apreender o real, pelo fato deles não estarem
submetidos às relações de causalidade. Por prescindir de uma justificativa racional, os mitos
se baseiam puramente na tradição ancestral do homem.
[...] não há dúvida alguma de que as razões inconscientes pelas quais se
pratica um costume, se partilham uma crença, estão bastante afastadas das
razões que se invoca para justificá-las (LÉVI-STRAUSS, 2003: p. 34).
Tais constatações o levaram a observar a existência de uma repetição estrutural nos
elementos mínimos da linguagem mítica, denominando-os de mitemas. Esse conceito
expressa um saber que transcende a linguagem limitada utilizada pela cultura, atingindo um
nível mais elevado de comunicação e transmissibilidade em diversas culturas. O antropólogo
expõe essa idéia da seguinte forma: “Se queremos perceber os caracteres específicos do
pensamento mítico, devemos, pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na
linguagem e além dela” (LÉVI-STRAUSS, 2003: p. 240).
O mito, dessa forma, não é apenas uma história, uma fábula através da qual é possível
entender a realidade. Existe uma estrutura inerente a ele, por onde se pode apreender a
verdade do inconsciente, gerando saber sobre o âmago da experiência humana. É nesse
sentido que o mito de Édipo não pode ser apreendido puramente como fábula que possui um
material simbólico. Édipo vai além da história a ser narrada, pois trata daquilo que cai do
discurso, o que vai para além das palavras, do elemento real por falar do trauma enigmático
da sexualidade. Sendo assim, as metáforas e metonímias, por estarem no campo da linguagem
simbólica, estarão aquém do que o real que o mito pode transmitir. Por esta razão, Lacan
escreve:
Porque não é com um jogo de mitemas que se opera a psicanálise [...] O
mito não opera nem com metáfora nem tão pouco com nenhuma
metonímia. Não condensa, explica. Não desloca, habita (LACAN, 1970,
p. 409).
29
Édipo, por tecer uma rede lingüística em torno do que se pode apreender do conceito
de pulsão em Freud, torna-se o pilar da teoria psicanalítica. Toma o lugar do irrepresentável
do inconsciente, sendo seu representante. É em torno desse personagem, ao mesmo tempo
mítico e trágico, que toda a trama de relações familiares irá se construir na obra de Sófocles.
Em torno desse herói trágico, toda a história se organizará na tentativa de resolução do
enigma de sua origem. O elemento trágico a ser perseguido é a descoberta, no final da peça,
sobre a relação incestuosa e criminosa do personagem. O irrepresentável do inconsciente que
se refere ao real traumático e sexual é expresso e elaborado pela via da fantasia artística,
criada pelo poeta.
Entretanto, como argumenta Didier Anzieu, quase todos os mitos gregos
reproduziram, sob forma de variantes infinitas, o tema da união incestuosa com a mãe, de
assassinato do pai. Então, cabe perguntar por que Freud deteve-se neste mito edipiano como
ponto basilar para o desenvolvimento de sua teoria.
A resposta não recai sobre o que se repete no mito de Édipo em relação aos demais
mitos, mas sim no fato de Édipo tornar-se o representante daquilo que vai além da linguagem
e transformado em herói trágico por força da representação artística realizada por Sófocles, ou
seja, o representante do significante da falta. A peça de Sófocles é escrita e transmitida através
dos tempos e das culturas, deixando o legado universalizante do mito e apresentando toda
uma construção sobre a história do herói através de uma linguagem dialética. A tragédia
apresenta o conflito do herói diante de sua investigação sobre o criminoso que descobriria se
ele próprio por meio de uma linguagem ambígua e interpretativa. O mito de Édipo
transforma-se, com toda a força dos mitemas que agrega, em arte teatral, de forma que o poeta
permite a construção da fantasia, da historicização do personagem mítico, levando, dessa
maneira, o público a poder se identificar com ele apreendendo na obra trágica aquilo que o
ultrapassa.
2.2.1 Édipo e o Matema da Fantasia
Para falar desse elemento mínimo, que é passível de ser matematizado no
inconsciente, Lacan desenvolve, a partir dos mitemas, os elementos do psiquismo,
denominando-os de matemas, do quais surge o conceito do objeto “a”. O objeto “a” é o objeto
que vem ocupar o lugar do objeto perdido, estabelecendo todas as relações possíveis com a
fantasia. Nesse sentido, o objeto “a” representa algo impossível de ser significado
lingüisticamente, por não poder retornar à consciência, ou seja, representa a falta estrutural de
30
inscrição do objeto de desejo no inconsciente. As fantasias produzidas pelos seres de
linguagem contornarão esse objeto estruturante do inconsciente que não tem como ser
significado, sendo entendido como um significante cindido de significação. Ele é revestindo
de uma proliferação, imaginária, de fantasias sexuais. Lacan cria, então, o matema da fantasia
S/◊ a, referente à relação desejante do sujeito com o objeto perdido. Deseja-se reencontrar tal
objeto, por imaginar que a completude, ponto enigmático do prazer absoluto, pode ser
reencontrada. Assim, o sujeito de linguagem é causado por esse objeto que falta.
O Édipo está no centro da articulação, apresentando-se como o objeto “a”, por meio do
qual o significante que falta à cadeia lingüística pode ser substituído por um objeto. É em
torno do herói como significante que as séries lingüísticas se estruturam, de maneira que,
através da ordem simbólica, o sujeito possa determinar o lugar que ocupa no desejo do Outro.
Édipo vem ocupar o lugar de objeto 'a' e, em torno desse objeto, se pode construir uma rede
de significantes, a fim de se chegar mais próximo da verdade do sujeito. Ele permitirá
constituir o ponto de inapreensibilidade em torno do qual a linguagem circula. A história
construída ao seu redor corresponde às redes de relações que estruturam os laços sociais.
Sendo assim, o herói trágico é uma estrutura que ordena o desejo como efeito da relação do
sujeito com a linguagem. Ele inscreve o não-sentido, pelo fato da estrutura ser
necessariamente inconsciente (LACAN, 1974: p. 62).
Dessa forma, a noção sobre o que vem a ser o Édipo em Freud teria se tornado um
conceito difuso se não tivesse sido lido por Lacan como sendo o momento lógico de
estruturação do sujeito, ao invés de ser tomado exclusivamente sob a ótica imaginária e
simbólica. Ao ser possível distinguir a constituição do eu a partir do imaginário e do Outro
simbólico, foi possível fundamentar a verdade do sujeito contida no registro do real. O mito
passa para a expressão verbal algo caótico e contraditório que, por ser da ordem do real, não
pode ser resolvido sem passar pelo simbólico, por onde o discurso irá contornar o fosso
inatingível da linguagem. Édipo está, portanto, localizado no centro mítico do sujeito e, em
torno dele, toda a trama familiar é construída na tragédia de Sófocles. A fantasia constrói a
realidade psíquica em torno do conflito edípico.
Édipo representa a profunda dor do homem diante de seus impasses e agruras, agindo
por determinações divinas que desconhece e, assim, encenando a representação trágica do
inconsciente. Dessa forma, na tragédia há uma ação importante e completa, que ocorre a partir
do momento em que o herói passa a saber sobre seus atos realizados pelos desígnios dos
desejos divinos.
Diante da certeza de ter realizado atos dos quais desconhecia, equipara-se ao sujeito
31
divido por seu inconsciente, que também age por forças e desejos que desconhece e que o
habitam. O lugar trágico é, pois, estar vivendo sob o comando dessas forças ocultas do
inconsciente, sem saber da verdade de ocupar o lugar de objeto no desejo do Outro. Assim, o
sujeito subsume e apresenta-se como objeto de gozo, rebotalho, sendo necessário que
ultrapasse essa condição de objeto e possa ocupar um novo lugar, de sujeito em seu espaço de
desejo. É exatamente por se sentir cindido em seu saber sobre aquilo que lhe causa, que o
sujeito, marcado pela barra do recalque, irá buscar no Outro da linguagem esse objeto que lhe
falta, demandando respostas sobre o enigma que lhe invade, a Verdade enigmática sobre seu
desejo. O objeto “a” abre a hiância entre o significante primevo e os demais significantes da
linguagem, de onde advirá o saber sobre o desejo.
O Édipo, nesse sentido, refere-se ao trágico, na impossibilidade de tudo saber. Sempre
restará algo inapreensível revelado indiretamente pelos mitos da mesma forma como nos
sonhos. A linguagem é sempre falha e as palavras nem tudo dizem. A narrativa dos sonhos e
do material inconsciente permite o contato com esse material enigmático e oculto, revelando a
estrutura edípica a ser construída por meio de uma fábula pessoal. Édipo encontra-se nesse
lugar trágico de ter furado seus olhos para não ver sua condição de encarnação da maldição
humana. Esse ato foi segundo Aristóteles, a mais perfeita e importante ação trágica
apresentada no teatro grego. Essa é, pois, a verdade que não podia suportar e não o fato de ter
assassinado o pai e dormido com a mãe. Édipo ocupa o lugar do real irrepresentável.
É através do entendimento de toda essa construção teórica que se pode falar da
construção da fantasia fundamental do sujeito em análise.
Efetivamente, tenho insistido muito sobre isso de que os sonhos edípicos
estão ali, em alguma forma, como o retorno, a fonte fundamental desses
desejos inconscientes, que reaparecem sempre, e o 'Édipo' – falo do 'Édipo'
de Sófocles e da tragédia grega – como a fabulação, a elaboração do que
sempre surge desses desejos inconscientes. É assim como, textualmente, as
coisas são articuladas na “ciência dos sonhos”. Creio que isso é algo
essencial, e é uma primeira diferença na fibra como na situação, a
construção, a fantasia fundamental [...] (LACAN, 1956: p. 327).
Lacan, em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, afirma que a
experiência analítica descobre no inconsciente uma estrutura de linguagem preexistente à
entrada de cada sujeito na linguagem, num momento de seu desenvolvimento mental. É a
única que permite a construção possível frente ao desamparo, nível máximo de angústia do
ser (LACAN, 1957: p. 498).
32
É pela palavra que o sujeito representa o real, que o acomete para além da linguagem.
A partir da noção do simbólico, Lacan pôde redefinir conceitos cruciais da teoria freudiana e
entender a estrutura psíquica no entrelaçamento dos três registros, Real, Simbólico e
Imaginário, reinterpretando o conceito de “Das Ding” em Freud como sendo a falta de um
significante que possa definir o sujeito para ele mesmo, o significante da falta no Outro
visando superar a ordem do pai. A estrutura lingüística possibilita entender os três registros,
nos quais o sujeito se constitui e pelos quais é representado. O simbólico se constituirá como
campo da linguagem, onde as palavras substituem as coisas e dão sentido à vida. É o lugar da
representação e, portanto, do deslizamento da cadeia significante. O real é o registro que fura
o simbólico, sendo definido como o impensável pelo efeito da linguagem. Refere-se ao
recalque, à parte escusa e condenável da consciência, fazendo cisão com o inconsciente. O
imaginário é o real posto em imagens garantindo a unidade dos três registros.
Relacionando o registro do real ao caráter trágico da peça de Sófocles, podemos
entender a importância do estudo da tragédia para o aprofundamento das questões retiradas
por Lacan da construção teórica realizada por Freud sobre o Complexo de Édipo. Se o caráter
trágico for omitido da narrativa poética de Sófocles, ter-se-á apenas o mito de Édipo, no qual
as redes de relações estruturais dos laços sociais ficam restritas ao registro imaginário,
dispondo das imagens de pai e mãe. É exatamente porque Sófocles utiliza os elementos
míticos para construir sua tragédia, que o mito ganha estatuto de fantasia, conseguindo o
efeito trágico da peça pela relação com o registro do real que se estabelece.
33
2.3 A Origem Dionisíaca da Tragédia e Seus Conceitos
A psicanálise utiliza o elemento trágico retirado de uma peça teatral para falar do
trauma inaugural do sujeito na linguagem, entende o trauma inaugural do sujeito como a sua
limitação à linguagem, que é sempre incompleta para dizer tudo sobre o ser. O sujeito da
linguagem torna-se dividido entre a verdade inconsciente e a consciência o que produz uma
luta entre essas instâncias psíquicas. O inconsciente refere-se ao lado oculto, divino e
demoníaco enquanto o humano relaciona-se a consciência. Dessa forma, é importante
remontarmos à origem das tragédias na Grécia Clássica, mais especificamente no século V
a.C., encenadas em Atenas a fim de entendermos melhor o conflito do sujeito em relação ao
seu desejo.
Através de seus poetas trágicos, os gregos assistiram e participaram das peças que
contextualizaram o conflito entre o divino e o humano, marcando a difícil e problemática
separação dos desejos humanos às vontades divinas. Os concursos dramáticos realizados na
Grécia antiga estavam diretamente relacionados à cerimônia religiosa em honra a Dioniso.
Deus da transformação, arrebatador do homem em estado de êxtase, era cultuado em rituais
nos quais o entusiasmo era manifesto de forma mais evidente do que nos cultos prestados aos
demais deuses do Olimpo. O símbolo fálico representado por um enorme falo escoltado em
procissão, referia-se a Dioniso em sua força vital, arrebatando o homem em um êxtase paraalém do mundo cotidiano.
Dioniso era representado pelo bode expiatório que era sacrificado nos rituais, que
reuniam o entusiasmo da música, da dança e da encenação à morte de um deus imortal. Nesse
sentido, é possível entender Dioniso como um deus da rebelião ao governo divino sobre o
homem, aproximando-se desse em seus dramas mortais. O teatro trágico, que surge desse
momento sagrado do sacrifício, sempre trás, com a morte do herói, uma experiência de êxtase:
“Na tragédia grega, o tema especial da representação, eram os sofrimentos do bode divino, Dioniso,
e as lamentações dos bodes seus seguidores, que se identificavam com ele”. (FREUD, 1914: p. 185).
Nesses concursos, alguns elementos cênicos merecem destaque por enfatizar a
expressividade trágica. Um acessório importante utilizado pelos atores eram as máscaras, que
também eram usadas durante o rito religioso, com o propósito de representar uma divindade
ou para ocultar o rosto dos participantes do ritual. Dessa maneira, se nota a grande relação
existente, nessa época, entre a arte e a religião.
O teatro trágico surge a partir dos cultos dedicados ao deus Dioniso, que ocupa no
panteão grego o lugar de deus da máscara, sendo o único deus representado de frente por uma
34
categoria de personagens trágicos bem definidos, os heróis. Esse deus trágico surge no
cenário grego apresentando-se sob a máscara que oculta o olhar do deus à morte inelutável,
cuja espera congela os corações, petrificando-os. A tragédia faz voltar o olhar do homem
grego para a sua individualidade e sua própria mortalidade. Exposto ao olhar mortífero da
divindade, representado sobre a máscara teatral, o homem defronta-se com as forças do Além
na sua alteridade mais radical, a da morte, das trevas e do nada.
O olhar mortal da divindade apresenta a própria limitação do sujeito em seu
entendimento do mundo e é essa alteridade radical que os artistas gregos expressam para
torná-la visível aos olhos humanos. Há sob a tradição lendária de heróis patrióticos
onipotentes uma “estrangeiridade” própria da condição humana, que desfaz a ilusão do mito e
engendra o homem grego na realidade de sua existência humana. Os heróis são seres
excepcionais, cuja lenda traz para o século V a.C. a dimensão do passado grego. No entanto, a
poesia que exaltava os bravos heróis na epopéia é substituída por uma nova forma de
representação do homem grego, já que o herói trágico passa a ser visto como um ser passível
de cometer erros. No quadro trágico que se apresenta na encenação teatral, o herói não é mais
modelo e sim um problema a ser debatido no cenário político de Atenas. A ambigüidade do
herói trágico, que perde seu status onipotente e incorpora o objeto de culto a ser sacrificado,
traz para o domínio grego a consciência trágica da responsabilidade quanto à ação humana. A
mudança de um pensamento mítico e submisso aos deuses se modifica diante da filosofia
florescente na Grécia Clássica. O homem grego passa a ter que lidar com suas escolhas.
A máscara, portanto, serve de anteparo à força divina que o homem não pode abordar
sem cair vítima de seu olhar, isso porque essa verdade é difícil de ser enfrentada, pelo fato de
levar a uma responsabilização pessoal. O homem grego vive nessa época o conflito entre
deixar o destino nas mãos dos deuses míticos ou tomar para si a responsabilidade de
administrar a polis. O homem grego se vê em plena ambigüidade quanto as suas
potencialidades, pois deixar os deuses é reconhecer-se como um ser caído de sua onipotência.
Talvez por essa razão, Dioniso tenha sido reintegrado aos cultos da polis trazendo consigo a
representação teatral.
Embora seja um deus autenticamente grego, Dioniso também é um deus “estrangeiro”,
“outro” que já era cultuado em Micenas, mostrando ambivalência existente em sua essência.
Dessa forma, Dioniso representa a superação dos ditames da lei, retirando a idéia de Bem
supremo que vigorava no panteão grego. O caráter dionisíaco ia de encontro com o caminhar
'simples mortal', levando o homem a ultrapassar o limite de cada um. Ultrapassar, querer ir
além, saber mais do que convém, causava, no homem grego, o temor de cair nos braços da
35
Moira, do destino cego, provocando a cegueira da razão.
A experiência dionisíaca é uma embriaguez do sofrimento, que produz transformação
catártica pela beleza da arte, e, sendo fruto da união de Apolo (deus da beleza) com Dionísio
(deus do vinho), mascara a verdade do mundo, apresentada através do fenômeno estético. A
arte trágica propunha a integração do elemento transformador, proporcionado pela
representação do horror. Com Dionísio, a arte não é destituída, mas ganha a experiência da
embriaguez sem perder a lucidez. A tragédia é bela no momento em que cria em sua
representação o horrível da vida, realizando uma conjugação perfeita entre a aparência do
homem e sua essência. No palco, o horror da morte é encenado em sua suprema beleza,
permitindo, assim, que o espectador se confronte com a essência indizível de sua própria
mortalidade. Trazendo para a luz da psicanálise, a arte trágica é capaz de articular a morte na
vida. Desta forma, o destino trágico universal é a vitória alcançada na derrota, visto que, para
o herói trágico, é necessário perecer, por onde ele deve vencer. Sua vitória ocorre no
momento de sua morte. Contra a dor, o sofrimento e a morte, o grego divinizava o mundo,
criando a beleza. “Não existe belo natural”, preconizava o pensamento grego. O mundo da
beleza grega era o mundo da bela aparência, que velava o mundo da essência. A tragédia é
bela pelo fato de ser uma manifestação pulsional, possibilitando a transformação do horror da
existência em arte pelo poder criativo da pulsão de morte.
Dionísio passa por um de seus profetas, vindo revelar, aos olhos de todos, a epifania
do deus cujas manifestações são a metamorfose, o disfarce e a máscara. Portanto, o que se
deve destacar é o fato de Dionísio ser um deus da transformação, que arrebata o homem para
um estado de êxtase. É, nesse sentido, que o herói encarna a mania dionisíaca e, sob sua
máscara, dissimula a aparência humana. Os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa,
mergulhavam em seu entusiasmo enthusiasmós, comungando com a imortalidade. É a paixão
violenta Pathos que produz uma agitação, que contagia os demais. Enthéos é o termo grego
utilizado para expressar esse entusiasmo de “estar em deus” e é esse entusiasmo que Dioniso
traz, manifestado sob a forma de uma possessão divina. Isso se confirma pelo fato de que, no
teatro grego, enthéos é estar “possuído por Dioniso”. A possessão dionisíaca abre um
universo de alegria, onde são abolidos os limites da condição humana rompendo a relação
entre temor e espaço, embaralhando a cronologia da existência humana, pontuada por etapas e
passagens no espaço concêntrico da sociedade civilizada.
Dionísio traz a zona de selvageria que habita o homem, expressado pelo artista que
primeiro pode “ver” a verdade velada pela cultura e então elaborá-la em ações encenadas. A
encenação artística permite a representação daquilo que está fora da representação, invisível
36
ao entendimento do homem comum. Esse êxtase só poderia ser sentido pelo caráter velado da
arte teatral, por configurar numa ultrapassagem do métron, medida de cada um. Freud
compara as pulsões ao daimon grego, uma divindade nefasta e obscura, sendo necessário o
Ethos, o caráter que determina a ética do sujeito que irá vir em oposição ao daimon, a
desmedida dionisíaca.
Dessa forma, barrado pelo Ethos, exultar diante da morte da divindade seria uma
hybris, isto é, uma violência contra si mesmo, mas que velada através da encenação era
possível ser possuído pelo êxtase divino, pela mania.
Vale ressaltar que esse estado maníaco é apresentado por Vernant como encarnação da
hybris, da condição do herói de querer saber sempre além do que convém. O símbolo fálico
representado por um enorme falo escoltado em procissão se referia a Dioniso em sua força
vital, arrebatando o homem em um êxtase para-além do mundo cotidiano.
Por meio do herói, o público é capaz de identificar-se com sua ação e usufruir a
mesma sensação de êxtase alcançada pelos adoradores de Dioniso. Esse êxtase dirige-se ao
desejo inconsciente que é vivenciado da forma velada pela beleza da encenação artística. O
público une-se na identificação a dor do herói pelo fato dele representar o eu ideal. Lacan
retoma o esquema do grupo em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache” para
mostrar como um objeto que ocupe o lugar de objeto “a” une o grupo em torno de si:
Freud nos mostrou como um objeto reduzido a sua realidade mais estúpida,
porém colocado por um certo número de sujeitos em uma função de
denominador comum, é capaz de precipitar a identificação do eu ideal até
esse poder débil da desventura que revela ser em seu fundo. (LACAN, 1960,
p. 677).
2.3.1 Mímesis: a Representação Trágica
A tragédia foi, portanto, um estilo teatral que surgiu na pólis em um período de grande
transformação social, causando conflitos e questionamentos nos grandes filósofos do período
da Grécia Clássica. Platão, contemporâneo da arte trágica, questionou o teatro trágico por
considerá-lo cópia mal-feita do que ele denominou de objeto em si, onde sua forma perfeita
estaria guardada no mundo das Idéias. A representação artística ou, como nos termos gregos,
a mímeses artística, era, para Platão, uma cópia decaída que não fazia parte das idéias e sim
dos simulacros, uma cópia decaída da Verdade. Na discussão do capítulo V. da República,
Platão havia concluído que a alma estava cheia de contradições de toda espécie, que
apareciam com força na imitação.
37
[...] homens entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que em
conseqüência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes. É a
partir de seu pensamento, afligindo-se ou regozijando-se em todas estas
circunstâncias (PLATÃO, 2005).
A imitação artística traria, segundo o filósofo, uma parte irascível da conduta humana,
forjando fantasias afastadas da Verdade, o que seria prejudicial ao desenvolvimento da
sociedade ateniense. Confrontando-se com o discurso de Platão, Aristóteles entendeu a
tragédia como uma práxis, uma ação da polis. Assim, definiu a mímesis trágica como forma
de aprendizado agradável, produtora de prazer e compreensão. A mímesis trágica produz a
representação do herói em um estado de sofrimento e aflição, em gemidos e gritos, o qual
aproxima o espectador do saber não sabido de seu próprio inconsciente. Na Arte Poética,
capítulo VI, Aristóteles diz:
A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa
extensão: num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma
de suas formas, segundo as partes: ação apresentada, não com a ajuda de
uma narrativa, mas por atores e que, suscitando a compaixão e o terror, tem
por efeito obter a purgação dessas emoções (ARISTÓTELES, 2005: p.35).
A tragédia é, portanto, definida como a representação de uma ação nobre levada até
seu término. O importante enfatizado por Aristóteles e que serve ao campo da psicanálise é o
fato da tragédia ser a representação de uma ação e não de um personagem. O que é
privilegiado é a ação, o ato do herói, ao invés do seu caráter. O seu caráter possui a qualidade
de transmitir o pathos, o padecimento do personagem, que irá determinar a ação que se
desenrola e, por conseguinte, da sorte ou do infortúnio daquele personagem. O ator, por sua
vez, ao representar o herói trágico, representará a ação que é da ordem da angústia, do terror,
phobos e da piedade, eleos. Essas duas emoções possuem um efeito violento, pathos, uma
paixão, um padecimento. Nesse sentido, o espectador se identifica com o herói no pavor que
lhe advém.
O efeito causado por essas emoções é de Katarsis, pois, ao permitir que emoções de
pavor e piedade sejam liberadas, há uma purificação, uma eliminação. Isso porque, como
argumenta Lacan, a Katarsis é produzida pelo vínculo que estabelece com o ponto do real que
aparece, saber sobre sua verdade, sua origem criminosa.
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Ainda mais pela origem do que por seu vínculo com o complexo de Édipo, a
tragédia se encontra na raiz de nossa experiência, como testemunha sua
palavra, a palavra pivô catarse. Para os ouvidos de vocês, essas palavras
estão certamente mais ou menos estritamente vinculadas ao termo de abreação, que supõe como já superado o problema que Freud articula em sua
obra inaugural com Breuer, o da descarga – descarga em ato, ou até mesmo
descarga motora, de algo que não é simples de definir, e onde não podemos
dizer que o problema esteja para nós resolvido – descarga, dizem de uma
emoção que permaneceu suspensa. Trata-se do seguinte – uma emoção, um
traumatismo pode deixar para o sujeito algo em suspenso, e isso enquanto
um acordo não for encontrado. A noção de insatisfação é suficiente para
preencher o papel de compreensibilidade que é aqui requisitado (LACAN,
1960: p. 296).
A katarsis tem, aqui, esse sentido de descarga, uma descarga em ato que ocorre no
espectador, produzindo o sentimento de terror e compaixão e fazendo com que não precise
passar pelas dores do herói, embora também se sinta vítima de seu próprio destino. Dessa
forma, o espetáculo ao trazer o prazer no desprazer faz com que o espectador queira assistir a
cena trágica várias vezes, em uma repetição de algo que de outra forma seria desagradável e
que a encenação mimética da tragédia transforma em deleite. A tragédia produz, portanto, um
gozo, como o que se repete no inconsciente do espectador. Esse saber trágico não apresenta
garantias, mas traz a imprevisibilidade, a instabilidade e, por isso, é eclipsado.
Ao final da peça trágica, o espectador sai com esses sentimentos depurados, pelo fato
de o desagradável da existência ter sido mimetizado. A encenação da mímesis trágica,
portanto, por produzir um gozo estético naquilo que se repete do inconsciente, traz deleite.
Para a psicanálise, a mímesis de fato é um simulacro, por não poder a verdade ser toda
dita. O que, entretanto, Freud pôde se apropriar com maestria foi o fato de perceber que a
representação trágica produz a ação mimetizada por um herói em estado de sofrimento.
O teatro explora as lutas do herói anterior a sua satisfação masoquista conquistada na
derrota. O espectador é atingido por sentimentos de horror e piedade, podendo, então, dar
vazão aos impulsos e desejos reprimidos pelo recalque em função das exigências culturais
impostas na religião, política e sexualidade (FREUD, 1906: p. 321).
Estando a compaixão
vinculada ao pavor, torna-se necessário um certo
distanciamento, para a elaboração dessas emoções. A falta trágica do herói, sua hamartia,
apresenta a noção grega de culpa trágica. Para eles, a escolha do sujeito é sempre errada. Isso
porque se está sempre na intercessão entre a vontade dos deuses e a vontade dos homens. O
sujeito sempre escolhe nessa intersecção o que produz a culpa. Podemos associar essa culpa
ao que a psicanálise entende por dívida simbólica e a escolha sempre errada como
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conseqüência da divisão do sujeito. O herói trágico torna-se, portanto, o paradoxo do homem,
pois representa o inconsciente culpado do homem civilizado. A divisão entre o humano e o
divino apresenta o divino como manifestação do grande Outro e o humano como sendo o
sujeito dividido, sendo determinado pelo grande Outro. O herói trágico, tal qual Dioniso,
causa rebelião entre a autoridade divina e humana. Para que o sujeito se separe do grande
Outro é necessário a rebelião e o conflito. O sujeito deve responsabilizar-se por suas escolhas,
assumindo o erro como parte inerente à ação.
O herói da tragédia deve sofrer: até hoje isso continua sendo a essência da
tragédia. Tem de conduzir o fardo daquilo que eram conhecidos como 'culpa
trágica': o fundamento dessa culpa é fácil de descobrir, porque, à luz de
nossa vida cotidiana, muitas vezes não há culpa alguma. Via de regra, reside
na rebelião contra alguma autoridade divina ou humana... (FREUD, 1914: p.
185).
Dessa forma, os atos do herói, de matar o pai e dormir com sua mãe, correspondem a
sua submissão aos desígnios divinos e, ao descobrir o que praticou, assume sua hamartia.
Édipo responsabilizou-se pelos atos que cometeu por desígnios divinos e desconhecidos por
ele. Os deuses estão, portanto, do lado do gozo, do excesso. O ato trágico do herói está para
além do sujeito, do lado do gozo estando para além do falo. Sendo assim, a tragédia aborda o
real ao trazer a questão do ato. É o ato trágico que marca o destino do sujeito. O ato trágico
leva o herói em direção à sua própria perda, deixando ver a cena a partir do real e não a partir
do simbólico. A mimeses é um conceito de importância para a psicanálise, por entendê-la
como forma de apresentar o pensamento que acompanha esse real traumático.
Como argumenta Lacan, a arte trágica não poupa o espectador das mais dolorosas
impressões, podendo levá-lo a um elevado grau de gozo. Protegido pela tela da fantasia,
deleita-se com as lutas do herói e com a satisfação masoquista da derrota do herói, no final da
apresentação, exigindo uma renúncia. Desde o início, o espectador sabe do horror que
sobrevirá e, mesmo assim, permanece para ser tomado por um gozo paradoxal, que deverá
emergir sem rupturas entre prazer e desprazer.
O termo utilizado por Freud em alemão, Guenuss, traduzido como gozo, tem como
propósito definir o prazer diante da cena trágica, diferindo-se do prazer masoquista. Guenuss
é o termo utilizado para falar desse prazer retirado do desprazer, na ausência da barreira do
Princípio do Prazer, indo além deste. A pulsão de morte, no Guenuss, vem também exigir
satisfação. Esse gozo pulsional é, portanto, mortífero, por ir na direção do que Freud definiu
como Mais Além do Princípio do Prazer.
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A arte, portanto, produz um alívio catártico na tensão armazenada, isso porque o herói
que se apresenta em uma cena trágica irá cumprir o desejo impossível. O herói ultrapassa
todos os limites e leis, realizando aquilo que não podemos realizar. É dessa forma que a arte
tem o recurso estético de permitir a satisfação naquilo que atinge diretamente a pulsão. O que
está para além do prazer e da realidade é o que o herói realiza. Édipo não manifesta temor o
que o homem tem diante das interdições em função do temor da castração. A instância
psíquica denominada por Freud de supereu representa a herança no declínio do Complexo de
Édipo. O pai intervém no Complexo de Édipo para dar a lei ao filho e, com isso, o sujeito
passa a possuir o discurso da lei. Dentro da cultura, o sujeito se penitencia e carrega uma
dívida simbólica. Mas Édipo não possuía esse temor da culpa que o neurótico não deixa de
pagar nunca. Édipo, nesse sentido, não passou pelo Complexo de Édipo e, por isso, pode
representar o homem sem a barra do recalque.
[...] na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou,
essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e
exposta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo
(LACAN, 1960: p. 99).
A Katarsis, ao ser produzida por sentimentos paradoxais, causa alívio após o momento
de compaixão e horror trazidos pela cena trágica. Como Lacan irá definir em seu seminário
sobre a Ética da Psicanálise:
A catarse é o apaziguamento, obtido a partir de uma certa música, da qual
Aristóteles não espera o efeito ético, nem tampouco tal efeito prático, mas o
efeito de entusiasmo. ...depois de terem passado pela prova da exaltação, do
arrebatamento dionisíaco provocado por essa música, eles ficam mais
calmos. (LACAN, 1960: p. 298).
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3. ÉDIPO REI E O INCONSCIENTE
3.1 Édipo: Herói Patronímico do Complexo de Édipo
Freud confirma, através de sua experiência clínica, o fato dos pais possuírem um papel
importante na vida mental das crianças. Isso porque o desejo intenso da criança é igualar-se
com o progenitor do mesmo sexo. Na Carta 71, de 5 de outubro de 1897, escrita a Fliss, inicia
sua elaboração sobre o Complexo de Édipo, isto é, o fato da criança apaixonar-se pela mãe e
odiar o pai, tomando-o como fenômeno universal. Comenta ser esta a razão pela qual o “teatro
da fatalidade” fracassa, enquanto que a peça trágica de Oedipus Rex exerce tanta atração, a
despeito de todas as objeções que a razão levanta contra a pressuposição do destino. A
tragédia traz a base do “romance familiar do neurótico” (FREUD, 1909: p. 143).
Ao falar do Complexo de Édipo nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise,
Freud expôs a relação de rivalidade entre os irmãos pelo amor dos pais e também o ódio e
competição existente também na relação entre filhos e pai. Há, entretanto, uma tendência de
negação quanto a esses conflitos, para fazer crer que o ideal imposto pela sociedade é atingido
muito mais freqüentemente do que o é na realidade.
Já a observação corrente pode nos mostrar quão freqüentemente as relações
afetivas entre os pais e os seus filhos adultos deixam de atingir o ideal
estabelecido pela sociedade, quanta hostilidade está pronta para manifestarse, e se manifestaria se não fosse contida por um misto de devoção filial e
impulsos afetuosos (FREUD, 1916: p. 246).
Freud constatou que os sonhos revelam os desejos do sujeito em eliminar seus pais e,
especialmente, o genitor do mesmo sexo.
O que tenho em mente é a rivalidade no amor, com nítida ênfase no sexo do
indivíduo. Quando é ainda uma criança, um filho já começa a desenvolver
afeição particular por sua mãe, a quem considera como pertencente a ele;
começa a sentir o pai como rival que disputa sua única posse. E da mesma
forma uma menininha considera sua mãe como uma pessoa que interfere na
sua relação afetuosa com o pai e que ocupa uma posição que ela mesma
poderia muito bem ocupar. A observação nos mostra a quão precoces anos
essas atitudes remontam, A essas atitudes chamamos de “complexo de
Édipo”, visto que a lenda de Édipo materializa, com apenas uma leve
atenuação, os dois desejos extremos originários na situação dos filhos –
matar o pai e tomar a mãe como esposa (FREUD, 1916: p. 248).
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Dessa maneira, Freud percebe que os sonhos, além de traduzirem nossos pensamentos
em uma forma primitiva de expressão, também revivem as características de nossa vida
mental primitiva, os primeiros impulsos de nossa vida sexual. Assim, o Inconsciente é
determinado por Freud, nesse momento de seu estudo, como “um dos reinos da mente com
seus próprios impulsos plenos de desejos, seu modo de expressão próprio, e com seus
mecanismos mentais específicos [...]” (FREUD, 1916: p. 253)
A mãe é, tanto para a menina como para o menino, o primeiro objeto de amor. Desta
forma, Freud analisa o que faz tanto o menino quanto a menina renunciarem ao seu primeiro
objeto de amor, a mãe, para depois estabelecer a significação diferente que o processo de
separação com ela se dá. Em sua retomada da questão da sexualidade infantil, em 1923, Freud
marca um novo tempo para a teoria da sexualidade humana. O sexo passa a ser um processo
de subjetivação e não mais um fenômeno natural. A subjetivação do sexo de cada um se
articula com a constituição do inconsciente, trazendo os seus conseqüentes percalços. Isso
quer dizer que cada um deve caminhar em busca de sua identificação sexual. Freud chamou
de realidade psíquica a escolha do sujeito diante do encontro traumático da diferença sexual.
Embora no decurso da subjetivação do sexo, percebe-se que a anatomia possui seu
peso e que, apesar da referência ao corpo ser inevitável, ela, por si só, não é suficiente para
determinar a constituição do ser sexuado do sujeito. Há um hiato entre o fato da observação
da anatomia e a conseqüência da forma como o sujeito irá elaborar sua sexualidade. A
pergunta é: como o pênis – sua existência ou não – pode adquirir uma significação tanto para
o menino como para a menina? Em termos simbólicos, não se trata de um órgão nem para um
nem para o outro sexo, isto porque o órgão viril é subjetivado pelo menino como um “ter” e
para a menina como um “não ter”. É nesse sentido que Freud formula a teoria da castração,
apresentando uma perspectiva mais simbólica do que imaginária. A teoria da castração
introduz uma passagem de uma primazia do órgão imaginário (o pênis) para uma primazia de
elemento simbólico (o falo), que distingue os seres em outro nível. Trata-se do pênis
simbolizado que será denominado de falo, mudando todo o embasamento teórico do
complexo de Édipo.
As pesquisas sexuais das crianças são reconhecidas, em sua aproximação do desfecho
final da sexualidade na infância, para a forma definitiva assumida no adulto, como exposto
em “Três ensaios sobre a Teoria sexual infantil” (FREUD, 1922). A escolha de objeto,
característica da puberdade, já é realizada na infância. A totalidade das correntes sexuais
passa a ser dirigida para uma única pessoa em relação à qual as crianças buscam seus
objetivos. No texto “A organização genital infantil” (FREUD, 1923), há uma aproximação da
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vida sexual da criança à do adulto que vai além do surgimento da escolha objetal. Não se
limita a uma escolha de objeto. A característica principal da “organização genital infantil”
passa a ser a diferença da organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de que, para
ambos os sexos, entram em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O
que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, afirma Freud, mas sim a
primazia do falo.
No decurso de suas pesquisas sexuais, a criança chega à descoberta de que o pênis não
é uma possessão, comum a todas as criaturas. “Sabemos como as crianças reagem às suas
primeiras impressões da ausência de um pênis. Rejeitam o fato e acreditam que elas
realmente, ainda assim, vêem um pênis” (FREUD, 1923: p.182). A falta de um pênis é vista
como resultado da castração e, agora, a criança se defronta com a tarefa de chegar a um
acordo com a castração em relação a si própria. A idéia da castração apresenta um dano
narcísico, da mesma ordem da perda corporal originária ocorrida na experiência de perder o
seio da mãe após o sugar, da entrega das fezes ou da separação do útero ao nascer. Freud
acrescenta que o significado do complexo de castração só poderá ser corretamente apreciado
se sua origem, na fase da primazia fálica, for também levada em consideração.
Isso porque, na fase fálica, ocorre a fantasia em que a criança irá atribuir um pênis as
mulheres. A criança retoma os problemas da origem e nascimento dos bebês e adivinha que
apenas as mulheres podem dar-lhes nascimento, somente então a mãe perde seu pênis. E,
juntamente, são construídas teorias bastante complicadas para explicar a troca do pênis por
um bebê. Em tudo isso, os órgãos femininos jamais parecem ser descobertos. A criança
continua imaginando que o bebê vive dentro do corpo da mãe e nasce através da saída
intestinal. Isso pressupõe que, no estádio da organização pré-genital sádico-anal, não existe
ainda questão de masculino e feminino. No estádio seguinte da organização genital infantil,
entretanto, Freud argumenta que existe uma idéia psíquica de masculinidade, mas não do
feminino “A antítese aqui é entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado.
Somente após o desenvolvimento haver atingido seu complemento, na puberdade, que a
polaridade sexual coincide com masculino e feminino” (FREUD, 1923: p. 184).
Freud prenuncia o que a psicanálise, principalmente a lacaniana, desenvolverá em
seguida: que nenhum ser humano escapa da lógica fálica. Isso porque o falo é um símbolo de
desejo, daquilo que nunca alcançamos e daquilo a que temos que renunciar para nos
tornarmos homens e mulheres. É como significante do desejo que o falo funciona no
inconsciente na análise.
A questão dos sexos, do ponto de vista psicanalítico, é analisar a diferença de como
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cada um dos sexos é regido pela lei do falo, tendo em vista que o único representante do sexo
no inconsciente é o falo, um representante masculino. Não há um órgão simbolicamente
equivalente na mulher ao que o pênis representa para o homem. Sendo assim, a falta de pênis
e a falta de amor revelam-se cruciais na subjetividade humana, que passa a necessitar saber
inconscientemente qual o lugar que ocupa no desejo da mãe.
O fato da criança entrar no mundo em puro desamparo, como já vimos, é considerado
por Freud o verdadeiro drama humano, que coloca a todos nós em total dependência de um
outro para suprir sua necessidades básicas. O drama reside na importância e no poder que o
Outro do qual se depende assume para cada um. É assim que o primeiro Outro do qual se
depende se torna Absoluto e com suas palavras marca seu desejo sobre nós. Essa experiência
primordial deixa marcas no inconsciente, que são revividas, de certa forma, ao longo da vida.
Na memória, reencontramos a voz desse outro materno primordial, que se apresentará
investido de autoridade. Essa ignorância do que motiva os desígnios e caprichos maternos é
causa das primeiras angústias infantis. O fato da mãe falar pela criança no início da vida faz
com que todo um primeiro capítulo de sua história fique para sempre ignorado por ela. É o
que Freud nos ensina, ao dizer que o inconsciente se constitui pela formação de um recalque
originário do qual só se conhecerão seus derivativos. O ser humano nunca mais terá acesso a
essa parte inicial de sua história. Então, sempre existirá uma falta no inconsciente, o que
Lacan chamou de falta-a-ser. Portanto, tanto homens quanto mulheres são marcados por uma
falta. Essa falta torna-se sintoma que faz demandar a análise, no sofrimento causado no
desconhecimento do âmago do próprio ser.
Dessa forma, o corpo próprio torna-se a matriz imaginária, através da qual todos
podem construir seu mundo por meio da identificação sexual. Trata-se da articulação entre o
registro imaginário e simbólico. A incidência de cada palavra materna, que determina ser
menina ou menino, marca o desenvolvimento erótico da criança. Os cuidados dispensados
pela mãe à criança envolvem, portanto, um gozo materno que desperta a sexualidade da
criança. A mãe cuida da criança por ser um objeto de gozo em sua fantasia materna. A mãe se
revela a verdadeira sedutora da criança, embora o pai possa ser em um segundo tempo.
Mesmo fazendo da criança seu objeto sexual, a mãe ensina a criança a amar. Mesmo assim,
essa é uma experiência traumática, por ter sido um dia objeto de gozo da mãe, um gozo sem
lei, que é outra forma de compreender o desamparo inicial da criança. Ficar submetido ao
capricho da mãe é sempre uma vontade de estar fora de qualquer Lei.
A primeira grande questão para a criança é o confronto com o mistério do desejo e
com a opacidade do gozo da mãe “o que quer minha mãe?”. Na medida em que o que causa o
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desejo da mãe é desconhecido, a criança só pode vivê-lo como ameaçador. Para evitar o
confronto com a falta na mãe, que é causada por um desejo experimentado como enigmático,
a criança procura satisfazer a mãe de alguma forma. A criança responde ao que poderia faltar
à mãe com a oferta de seu próprio ser, tentando tamponar sua falta. A criança em sua captura
imaginária identifica-se ao falo, que vem a ser o suposto objeto de desejo da mãe. No entanto,
a comunicação entre a mãe e a criança é intermediada pelo falo, representando o significante
do desejo da mãe, o que impõe a lógica fálica no nascimento. Ficar ilusoriamente no lugar de
falo da mãe é tentar satisfazer todas as exigências de amor da mãe. O amor nessa fase
imaginária proporciona a experiência mais próxima de completude. O que irá importar é o
signo do amor em questão. O que está em jogo é a importância da resposta que o Outro do
Amor dará a essa demanda.
Só que essa vivência como falo da mãe condena a criança a não constituir seu desejo
próprio. O complexo de Édipo vem, pois, representar a resolução dessa condição de alienação.
A intermediação da figura paterna na relação mãe-criança torna-se necessária em sua dupla
vertente: para indicar à criança que ela não pode ficar no lugar fálico e para indicar para a mãe
que seu desejo não pode estar todo concentrado na criança. Em termos lacanianos o pai
“barra” a mãe, que se torna um Outro barrado. O que todo o mito de Édipo quer dizer é isso,
que o desejo do pai faz a Lei.
A mediação paterna é, portanto, imprescindível, tanto para a criança quanto para a
mãe. Para a criança porque ela se vê em condição de ascender como sujeito de seu próprio
desejo e para a mãe, porque evita que, em sua condição de mulher, a ausência dessa mediação
simbólica reguladora do homem provoque nela uma angústia cuja causa seria o sem-limite
mortífero centrado na criança-objeto. Graças à interdição paterna a criança se beneficia de
uma “transmissão” de um desejo que não é anônimo, um desejo particularizado do lado da
mãe e da encarnação da Lei no desejo do lado do Pai. Se o pai é representante dessa lei que
proíbe a mãe de reintegrar seu produto, também une o desejo à Lei.
O pai é amado porque liberta a criança da captura do desejo materno, ao satisfazer a
mãe ele próprio. Quando o pai não funciona como interditor dessa relação mãe-criança,
encontra-se a versão do pai que não transmite a Lei, mas que, ao contrário, se confunde com
ela e, por isso, é incapaz de dar alguma significação para a existência da criança. Há, então,
uma falha na transmissão simbólica; e só esta pode dar lugar à criança, entre os seres vivos,
um lugar ligado ao desejo.
Se a intermediação do pai como representante da Lei é produtiva na relação da criança
com a mãe, ela deixa uma marca: trata-se para a criança de uma identificação com o pai e, por
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isso mesmo, ela é chamada de identificação viril, masculina. A identificação com o pai
substitui, metaforiza, a identificação fálica com o suposto objeto de desejo da mãe,
constituindo o fundamento do Complexo de Édipo tanto para meninos quanto para meninas.
O conflito edipiano ocorre no que Freud definiu como fase fálica, que corresponde ao
papel principal que órgão genital assume, sendo o genital feminino “irrevelado”, como
apresenta Freud (FREUD, 1924: p. 218). A fase fálica, portanto, é contemporânea ao
complexo de Édipo. Através do complexo de Édipo, a autoridade do pai é introjetada,
formando o núcleo do supereu, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste
contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno à alienação materna.
O pai mostra para a criança, quando ama verdadeiramente sua mulher, que quem
deseja é aquele que tem em si uma falta-a-ser como sujeito e, portanto, pode desejá-la. O
amor do pai pela mãe mostra que a força de seu desejo está no fato de apresentar-se frágil
diante da mulher. Lacan diz que não existe maior dom possível, maior signo de amor, que o
dom de dar o que não se tem, o que apresenta o ser desejante como aquele que aceita sua
castração simbólica. Embora a criança espere que o pai seja totalmente potente, ela deve se
confrontar com a castração do pai em sua condição masculina. Desse modo, Freud apresenta o
Édipo como o pai da sexualidade e não como o pai da procriação, conceito desenvolvido
posteriormente por Lacan. O desejo do pai pela mãe apresenta uma dicotomia entre a posição
materna e a feminina, que leva Lacan a também separar o pai do homem. Lacan funda o lugar
do pai em função de sua relação com a mulher que há por trás de toda mãe, lugar que o pai
reserva para a mulher em sua fantasia.
Portanto, parte dessa relação fica reprimida e persiste em estado inconsciente. São as
fantasias inconscientes da cena primária (origem do indivíduo), da castração (da diferença
sexual) e da sedução (da origem da sexualidade). Elas têm a ver com a origem da história
individual do sujeito e pretendem fornecer alguma espécie de representação para o enigma da
origem, e todas tem a ver com o enigma da sexualidade Lacan diz que o mito é uma
“tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura.” (LACAN, 1974: p. 55).
O inconsciente daquele que ainda encontra-se na resolução edipiana continua agindo
mediante as forças ocultas que marcam a ambivalência de sentimentos que ele possui pelas
pessoas amadas. Trava-se um romance interno, na tentativa do sujeito lidar com a sua
existência em relação a sua falta constituinte como sujeito desejante. Essa relação conflituosa
do sujeito é o que o atrai diante da encenação trágica, por vê-las apresentadas no palco. Freud
diz:
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Cada pessoa da platéia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e
cada um recua, horrorizada, diante da realização de sonho ali transplantada
para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado
infantil do estado atual (FREUD, 1892-1899: p. 356).
O sujeito identifica-se a um traço do personagem e aproxima-se através da
representação artística. Édipo Rei torna-se o pilar da teoria psicanalítica, por evidenciar que
um gozo é revelado pelos desejos incestuosos e assassinos que habitam o inconsciente
humano e representante do falo. Édipo apresenta tais desejos, que ficam submersos pelo
recalque. É o âmbito do gozo, do prazer no desprazer, dos desejos não realizáveis, que a vida
identifica-se com a tragédia. Édipo, ao representar o saber não sabido próprio do inconsciente,
desvela a verdade que nos habita e nos é oculta.
Essa parte oculta de nossa história, que é relatada pelo Outro materno, é o que Édipo
representa, como sendo o discurso fundamental do sujeito. A peça de Édipo é escrita e, por
isso, sobrevive ao tempo revelando a ignorância do herói sobre parte de sua história.
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3.2 O Nome-do-Pai
Por entender o assassinato do Pai como forma de incorporar a Lei paterna, Lacan
denomina a metáfora paterna como operação significante. A fim de melhor elucidar essa
relação, é preciso retomar mais uma vez a origem arcaica do psiquismo, exemplificada por
Freud no mito científico criado por ele: Totem e Tabu. Isso porque o enredo trágico evidencia
ser o crime de Édipo a reedição do assassinato primevo e dos desejos inconscientes do
homem. Desejos esses que irão se relacionar com o núcleo das neuroses, como Freud definirá
ao formalizar o Complexo de Édipo.
Se o animal totêmico é o pai, então as duas principais ordenanças do
totemismo, as duas proibições de tabu que constituem seu âmago – não
matar o totem e não ter relações sexuais com os dois crimes de Édipo, que
matou o pai e casou com a mãe, assim como os dois desejos primários das
crianças, cuja repressão insuficiente ou redespertar formam talvez o núcleo
de todas as psiconeuroses. (FREUD, 1914: p. 159).
A função paterna permite a entrada do ser na linguagem, por meio do recalque
originário, inscrevendo sua marca a partir do momento em que é morto. A morte do pai mítico
realça o entendimento sobre o significante que falta e pode ser simbolizado através das leis
que aplacam a culpa dos filhos, marcados pela oposição entre amor e ódio (LACAN,
15/junho/1967).
Ali está o sentido do mito de Édipo, de Freud. É muito evidente que esse
crime, que é o assassinato primitivo do pai, que é exigido como se devesse
reaparecer sempre, como formando o horizonte, a barra terminal do
problema das origens em toda matéria analítica... Outra coisa é a relação da
lei primitiva com o crime primitivo, e isso que sucede quando o herói trágico
que é Édipo, que por outra parte, é cada um de nós em alguma ponte de seu
ser, virtualmente, quando reproduz o drama edípico, quando, matando o pai,
se acopla com a mãe, quando, de alguma maneira, renova, sobre o plano
trágico, em uma espécie de lustroso banho, o renascimento da lei (LACAN,
29/abril/1959).
Com o mito de Totem e Tabu, Freud apresenta o crime primordial da raça humana no
assassinato do pai absoluto da horda cometido pelos filhos. O pai absoluto da horda primitiva
de Totem e Tabu tinha direito sexual sobre todas as mulheres, sem exceção, permanecendo
em um gozo ilimitado. O que Freud constrói, em seu mito científico, é que em um momento
anterior à cultura, um único ser usufruía sexualmente de todas as mulheres. Um homem
absoluto em seu poder, o pai primordial assassinado pelo ódio ocasionado nos filhos que
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decidem ter direito sobre as mulheres. O resultado do assassinato é o remorso pelo ato
praticado intensificando o respeito à “vontade paterna”. Os filhos identificam-se ao pai morto
e comem sua carne, incorporando seus atributos limitados agora pela criação da religião e da
lei. Adoram o pai, transformado ele em totem, e estabelecem a lei exogâmica e o tabu do
incesto. Ficou proibido, então, o acesso ao gozo ilimitado do pai absoluto da horda primitiva e
o saber sobre esse gozo.
Com seu assassinato, os seres entram na lei da linguagem, estabelecendo-se a
diferença entre eles e o limite entre as gerações, exatamente por haver um significante
correspondente ao pai primevo, que falta à cadeia lingüística. O mito de Édipo, ao apresentar
o pai como morto, mostra a origem da lei e, conseqüentemente, do desejo do pai, pois o pai,
enquanto simbólico, passa a ficar limitado ao desejo e não pode mais gozar de todas as
mulheres. É a barra do recalque que retira os seres do gozo e os limita em seus desejos e,
assim, pode-se dizer que a função da lei traça o caminho do desejo. É, dessa forma, que a lei
do pai vem interditar o desejo do filho em relação à mãe e vice-versa, já que o pai deseja essa
mulher, que toma para si, mostrando ao filho o limite daquilo que ele pode ter como objeto de
seu desejo.
É o fio vermelho que atravessa toda obra freudiana. De ponta a ponta, desde
a descoberta do complexo de Édipo até o Moisés e o Monoteísmo, passando
pelo paradoxo extraordinário de Totem e Tabu, Freud se colocou apenas,
pessoalmente, uma só questão – como esse sistema do significante sem o
qual não há nenhuma encarnação possível, nem da verdade, nem da justiça,
como esse logos literal pode ele ter controle sobre um animal que não tem o
que fazer com ele, e que com ele não se preocupa? - pois isso não interessa
em grau algum suas necessidades. É no entanto que faz o sofrimento
neurótico.
O homem é efetivamente possuído pelo discurso da lei, e é com esse
discurso que ele se castiga, em nome dessa dívida simbólica que ele não
cessa de pagar sempre mais em sua neurose.
Com esse controle pode ser estabelecido, como o homem entra nessa lei, que
lhe é estranha, com a qual ele nada tem a ver como animal? É para explicá-la
que Freud constrói o mito do assassinato do pai. Não digo que é uma
explicação, mas lhes mostro por que Freud fomentou esse mito. É preciso
que o homem se constitua em sua parte interessada enquanto culpado”
(LACAN, 1955-1956: p. 275).
O pai passa a ter essa função de lei e, por causa dela, há um ponto de basta, o temor do
filho. Em torno desse significante, tudo se irradia e tudo se organiza na superfície da trama.
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Por que esse esquema mínimo da experiência humana, que Freud nos deu no
complexo de Édipo, conserva para nós seu valor irredutível e no entanto
enigmático? E por que esse privilégio do complexo de Édipo? Por que Freud
quer sempre, com tanta insistência, reencontrá-lo por toda a parte? Por que
há aí um nó que lhe parece tão essencial que ele não pode abandoná-lo na
menor observação particular? - se não é porque a noção do pai, muito
próxima daquela de temor a Deus, lhe dá o elemento mais sensível na
experiência do que chamei o ponto de basta entre o significante e o
significado (LACAN, 1955: p. 303).
O mito de Édipo, ao ser representado artisticamente por Sófocles, apresenta toda essa
relação conflituosa do homem com seu desejo, através das relações familiares ambíguas que o
herói possui e que se manifestam em sua linguagem. O herói é, nesse sentido, um dos irmãos
que se destaca do grupo para assumir a representação do pai morto, enquanto o espectador e o
Coro ficam na posição dos demais irmãos. O herói toma o lugar do irmão que se
responsabiliza por seu ato no lugar do crime cometido também por seus irmãos, passando
pelos tormentos dos quais livra os demais. Édipo representa o momento mais desejado no
inconsciente de retornar à completude ilusória de se deixar gozar pelo Outro materno. O ódio
permite que mate seu pai e torne-se o falo que completa sua mãe, mas é exatamente essa
operação que desperta a angústia e o conflito direcionando o sujeito para o desejo de querer
saber.
O Complexo de Édipo apresenta o percurso do sujeito se posicionar diante da
diferença sexual e passar a desejar para além das relações primeiras de parentesco. O
momento traumático do inconsciente está, portanto, na descoberta sobre a diferença sexual.
O problema posto por Freud em termos “edipianos” não é mais, sem dúvida,
o da alternativa entre autoctonia e reprodução bissexual. Mas se trata sempre
de compreender como um pode nascer de dois: como se dá que não
tenhamos um único genitor, mas uma mãe, e um pai a mais? Não se hesitará,
pois, em classificar Freud, depois de Sófocles, na relação de nossas fontes do
mito de Édipo. Suas versões merecem o mesmo crédito que outras, mais
antigas e, aparentemente, mais “autênticas” (LÉVI-STRAUSS, 2003: p.
250).
Freud permite compreender o efeito trágico do assassinato do pai, revelando poderosas
forças inconscientes e inconfessáveis, relativas à relação do sujeito com o próximo e
marcando a paixão do significante primevo. O assassinato do pai, no entanto, marca o
inconsciente com o crime, que se torna tabu na cultura. Dessa forma, o inconsciente possui
um aspecto mortífero em sua relação indissociável com a pulsão de morte. Freud diz, então,
51
que é esse caráter pulsional que leva à compulsão de repetição:
No inconsciente psíquico, pode-se reconhecer a supremacia de uma
compulsão à repetição proveniente das moções pulsionais e dependente da
verossimilhança da natureza mais íntima das pulsões, suficientemente
poderosa para situar-se acima do princípio do prazer, atribuindo a certos
aspectos da vida psíquica o seu caráter demoníaco...(FREUD, 1939: p. 251).
Em termos lingüísticos, a morte do pai corresponde à “paixão do significante”, o
significante que marca uma falta na cadeia lingüística. Assim, o mito lança luz sobre esse
momento traumático do ser na linguagem. É o significante ausente que faz surgir a falta, com
a qual terá que bordejar no processo analítico através da fala, de modo a incorporar um traço
desse pai. É exatamente esse traço unário da busca pelo “a” agalmático, que lhe apreende por
ser aquilo que lhe falta. Como diz Lacan, a partir de sua leitura de Psicologia de massas e
análise do eu, a identificação primária é em relação ao pai (FREUD apud LACAN, 19601970: p.82). Freud afirma que, sendo o pai aquele que preside a identificação primeira, é
também a quem se dirige o amor. Ao desempenhar o papel do saber com pretensão de
verdade, Édipo dirige-se ao desejo, que é o lugar da verdade inconsciente. Identificar-se com
a radicalidade de sua falta-a-ser, estabelecendo a relação entre o desejo oculto e a morte. A
pulsão de morte se manifesta pela sua vontade de destruição unida ao ser, que não estando
simbolizado, retorna como um real no corte que está para além de toda subjetivação.
O mito de Édipo traz a chave do gozo e, no nível trágico em que Freud se apropria dele,
mostra precisamente que o assassinato do pai é a condição do gozo. Esta é a relevância do
mito posto em ação na tragédia.
Na verdade não se trata somente da morte do pai, é como bem assinala em
sua interrogação a pessoa da qual falo, o assassinato do pai. No mito de
Édipo, tal como nos havia sido enunciado, é a chave do gozo. É também, se
olharmos de esguelha esse mito, é assim como se nos apresenta nesse
enunciado de que eu disse que conviesse tratar como o que é, a saber um
conteúdo manifesto e pelo mesmo começar a articulá-lo bem. O mito de
Édipo, no nível trágico em que Freud se apropria, mostra que o assassinato
do pai é a condição do gozo. Se Laio não é descartado em curso de uma luta,
de todas as formas não é seguro que é por isso que esse passo de Édipo vai
fazer o gozo da mãe – se Laio não está descartado, ele não terá esse gozo. É
o preço desse assassinato que ele o obtém? (LACAN, 18/março/1970).
O herói trágico aplaca uma rebelião nascente contra uma regulamentação divina do
universo, que é responsável pela existência do sofrimento. E o prazer origina-se da aflição de
um ser mais fraco em face do poder divino. A análise, portanto, leva o sujeito a reencontrar o
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pai mítico através da função simbólica, de forma a relacionar a lei com o crime, “trata-se do
que chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico” (LACAN, 1958: p. 152). É precisamente
o que Freud descreve com o mito de Édipo no assassinato do pai.
É nesta relação ao Outro, o pai morto, mas ali deste trânsito do crime
original que se constitui esta forma suprema de amor. É o paradoxo de tudo
dissimulada, incluído está elidido por esse véu ante seus olhos que parecem
sempre acompanhar a leitura de Freud – esse tempo é ineliminável – que
depois da morte do pai surge ... este amor supremo pelo pai, é que tem
justamente esse trânsito do crime original a condição de sua presença mais
absoluta, a morte em suma jogando esse rol, se manifestava como a única
que pode fisgá-lo nessa sorte de realidade, sem dúvida a única absolutamente
perdurável, do ser como ausente (LACAN, 2/março/1962).
Neste sentido, o mito aponta para um enunciado impossível, que só pode ser dito através
do ato analítico. A castração só pode ser transmitida em ato. “A castração é a operação real
introduzida pela incidência do significante, seja ele qual for, na relação do sexo. E é óbvio que ela
determina o pai como esse real impossível que dissemos” (LACAN, 1960: p. 121). Por identificação
ao traço incorporado do pai assassinado é que o sujeito aceita sua falta-a-ser como sujeito,
podendo viver sua condição de sujeito desejante, aceitando sua castração simbólica.
3.2.1 A Herança Arcaica do Sujeito e a Até Familiar de Édipo
Para ampliar o entendimento sobre a tragédia de Édipo Rei e o inconsciente é preciso
rever a herança de Édipo, que marcou sua busca pela verdade, e as relações possíveis com as
determinações inconscientes que marcam o ser de linguagem. No seminário 7, Lacan introduz
o termo grego Até, para falar do drama vivido pela filha de Édipo, Antígona. Até é no
comentário de Lacan uma palavra insubstituível, que designa o limite que a vida humana, não
poderia transpor por muito tempo. Antígona vive a memória do drama intolerável de Édipo, a
partir do qual surgiu essa linhagem que acaba de se aniquilar sob a figura dos dois filhos de
Édipo que se matam. Antígona vive no lar de seu tio Creonte, submetida à sua lei, e é isso que
ela não pode suportar. Antígona quer ir além da Até por aproximar-se desse ponto
insuportável da existência em razão de algo que está ligado no caso a um começo e a uma
cadeia, a da desgraça da família dos Labdácias, ou seja, a todo movimento pulsional.
Antígona se aproxima das coisas que se encadeiam em cascata e o que se encontra no fundo, o
que ocorre em todos os níveis dessa linhagem, é o ressentimento. Mas, como Lacan afirma
ressentimento não é a melhor palavra para descrever o que se passa com Antígona. Ela está na
53
fronteira de uma desgraça, onde a heroína não possui nem temor nem piedade. Ela quer ir
além do destino impetrado pelos deuses à sua ascendência; Antígona visa a Meta, palavra
grega que significa após, ou seja, ‘aquilo que visa o corte’. Antígona situa-se como heroína,
em relação ao ponto de visada do desejo. Representa em sua posição, o limite radical que vai
para além de tudo o que pôde fazer de bem ou de mal e, assim, mantém o seu valor de ser.
Esse valor é essencialmente de linguagem. Fora da linguagem ela nem
mesmo poderia ser concebida, e o ser daquele que viveu não poderia ser
assim destacado de tudo o que ele veiculou como bem e como mal, como
destino, como conseqüência para os outros,e como sentimentos para si
mesmo. Essa pureza, essa separação do ser de todas as características do
drama histórico que ele atravessou, é justamente esse o limite, o ex-nihilo
em torno do qual Antígona se mantém. Nada mais é do que o corte que a
própria presença da linguagem instaura na vida do homem (LACAN, 1960:
p.338).
Lacan apresenta o corte em sua manifestação lingüística, que escande tudo o que
ocorre no movimento da vida. Antígona se apresenta como autônomos pura e simples relação
do ser humano com aquilo que ocorre de ele ser miraculosamente portador, ou seja, do corte
significante, que lhe confere o poder intransponível de ser o que é, contra tudo e contra todos.
Ela encarna o desejo de morte, o desejo fundador de toda a estrutura, aquele que fez vir à luz
os filhos, Eteoclés, Polinices, Antígona e Ismene e que, ao mesmo tempo, é um desejo
criminoso. Na origem da tragédia, encontramos o desejo da mãe. A descendência incestuosa
de Édipo se desdobrou em dois irmãos, onde um representa o poder e o outro o crime.
Antígona, ao encarnar o desejo puro, torna-se a guardiã do ser criminoso mantendo a Até
familiar, eixo em torno do qual gira toda a tragédia. Antígona eterniza e imortaliza a Até.
Lévi-Strauss, ao analisar a ascendência de Édipo, destacou a importância de um traço
criminoso e comum às três gerações da linhagem dos Labdácias: Lábdaco, o avô de Édipo,
possuía um desequilíbrio no andar, era coxo. O pai de Édipo, Laio, era torto e Édipo possuía
um defeito em um dos pés. Tal repetição sintomática leva ao tema da Até familiar, ou seja, a
desgraça familiar que recai sobre as gerações pela culpa hereditária que deve ser paga, sua
calamidade fundamental. Aquilo que acontece acidentalmente com os ancestrais é o que vai
constituir a herança simbólica do sujeito. Sua tyché, ou seja, sua sorte irá recair para o sujeito,
no caso Édipo, como sua daemon. Tyché como aponta Aristóteles, “é considerada por muitos
como uma causa, mas uma causa divina e misteriosa, uma vez que obscura ao pensamento
humano...” (SÓFOCLES, apud AZEVEDO, 1999, p.56). O termo daemon era entendido,
pelos gregos, como a alma que preside o nascimento de cada criança, que era considerada
54
uma entidade divina e que estava, portanto, relacionada à ordem do Outro. Dessa forma,
entende-se a hereditariedade em seu 'status' de erro trágico harmatia.
Há, portanto, uma determinação que não é biológica, mas que trata-se de uma
determinação do inconsciente. Essa hereditariedade inconsciente é onde encontramos o
Complexo de Édipo. Freud, com o Complexo de Édipo, substituiu o que era a hereditariedade
pelo que há de trágico que se transmite para cada um. Nessa determinação da herança
transmitida como uma culpa trágica é feita uma escolha, pois o sujeito não é joguete do
destino ou da hereditariedade. Mas toda a escolha possui um erro, que é em si trágico. O erro
traz a culpa inconsciente, uma dívida simbólica. A psicanálise é uma prática que vai contra o
destino desse sujeito determinado pelo Outro, que deve carregar a culpa como herança, pois
entende o sujeito em relação ao inconsciente, de forma a poder posicionar-se diante do que
herdou simbolicamente.
Ainda em 1896, na Etiologia da Histeria, Freud concluiu que o caráter das cenas
infantis, tem uma influência determinante na escolha da neurose. O sujeito neurótico se fixa à
cena fantasmática infantil, que o leva a confrontar-se com a diferença sexual, podendo ficar
suspenso em sua alienação à linguagem. Ele fica aprisionado a significantes que não são seus
significantes do Outro. Lacan observa que essa alienação é uma escolha do sujeito, que
prefere alienar-se a se deparar com a diferença sexual, essa é a escolha realizada pela neurose.
Para Freud, é a partir desse encontro traumático com o sexo que vai se definir a escolha da
estrutura.
Essa é a importância apresentada na tragédia de Édipo, ao apresentá-lo como aquele
que apresenta um traço comum passado através das gerações. Nós também temos a nossa
história e recebemos a carga genética no sentido simbólico do termo e somos inseridos na
linha de sucessão, carregando não apenas o nome, o título, como as dívidas, pecados e crimes.
A herança simbólica acarreta a transmissão do erro trágico sob a forma de uma Até,
como é visto na tragédia. Édipo responsabiliza-se pelo erro que cometeu sem saber por força
da herança que recebeu. Toda escolha, entretanto, acarreta uma perda e o que se perde ao se
escolher a neurose, é uma “perda de ser” do sujeito. Isso porque o sujeito só pode se definir
como ser no mundo passando pelo Outro em termos simbólicos. Ficando alienado nessa
relação especular, o sujeito é condenado ao Outro em sua dependência, o que o leva a
angústia de ser novamente abandonado e desamparado por esse Outro personificado pela mãe.
É preciso, no entanto, passar pelo Outro, por um período de alienação, para então poder
passar pela operação de separação. A separação traz como conseqüência a tentativa de
recuperação dessa “perda de ser”, em algo que pode ser chamado de vir-a-ser.
55
A aceitar a falta no Outro, pela via da separação, é poder ser, pois o sujeito aparece
quando aceita a falta no Outro. É a partir da falta no Outro que o sujeito pode recuperar seu
ser. É exatamente aí, onde o Outro perde sua consistência, onde não existe mais o significante
do Outro, onde não tem nada, onde o Isso comparece como reservatório das pulsões, do exnihilo, que o sujeito emerge. No “não sentido” que surge a pulsão de morte pode produzir o
ato criativo do sujeito separado do grande Outro da linguagem. Essa parte silenciosa da
pulsão faz surgir algo novo e criativo, rompendo com a cadeia geracional a qual o sujeito
estava alienado. Assim pode surgir o desejo.
Utilizando a mitologia grega para aprofundarmos o sentido de erro trágico apresentado
na tragédia de Édipo Rei, encontraremos não apenas gerações trôpegas como uma linhagem
de homens criminosos. Laio, pai de Édipo, era filho de Lábdaco, rei de Tebas. Lábdaco, o
Coxo, morreu quando seu filho era ainda um bebê de um ano, por ter reprimido o culto a
Dioniso, tendo enfurecido, com isso, as Erínias, deusas justiceiras. A descendência legítima,
desta forma, foi interrompida, cortando a ligação normal entre pai e filho, e o trono de Tebas
passou a ser ocupado, então, por Lico, um estranho. Laio, por sua vez, foi afastado de Tebas
para se refugiar junto a Pélops.
Laio, o Canhesto, ao tornar-se adulto, mostrou-se desequilibrado em sua conduta como
hóspede de Pélops. Sua sexualidade excessiva dirigida ao filho de Pélops, Crisipo, rompeu
com as regras de hospitalidade que era imposta aos hóspedes. Para viver seu amor, Laio
armou um plano: ofereceu-se para escoltar o rapaz até os jogos de Neméia, onde ele iria
participar como atleta. Após as competições, em vez de retornar a Frígia, Laio raptou Crisipo
e fugiu para Tebas, onde pretendia recuperar o trono de seu pai. Furioso, Pélops perseguiu-os,
mas Crisipo, temendo a humilhação e a punição do pai, cometeu suicídio atirando-se num
poço.
Por ter perdido o herdeiro, Pélope culpou Laio e lançou sobre ele uma maldição: se
tivesse um filho, esse o mataria e sua descendência sofreria conseqüências trágicas. Tal
maldição foi advertida pelo oráculo, que determinou que não tivesse filhos. Se desobedecesse,
procriaria, portanto, um filho que iria destruí-lo e desposaria sua própria mãe, transformandose em um monstro.
Dessa forma, Laio não poderia ter filhos e, ao casar-se com Jocasta, deveria manter
relações desviadas, de forma a não engravidá-la. Mas, em uma noite de embriagues, Jocasta
engravidou. O filho gerado por esse casal era, portanto, aquilo que não poderia ter nascido. Os
pais resolveram, então, se livrar da criança assim que nascesse expulsando-a de Tebas e
abandonando-a no Citéron, onde deveria morrer. Laio transpassou um ferrolho pelos
56
calcanhares da criança, entregando-a a um servo, que deveria deixá-la sob o monte Citéron. A
criança, apesar disso, escapou da morte; permaneceu, no entanto, com os vestígios de sua
origem em seus pés, como marca de sua rejeição. Tendo sido abandonado sem possuir nome
próprio, foi apelidado, pelos camponeses, de Édipo, que quer dizer “pés inchados”, marcando
assim a inscrição do crime paterno em seus pés. O seu caminhar desequilibrado aponta para o
Real, advindo como herança. Édipo, no lugar da verdade, na amarração dos três registros do
nó borromeano, é um modelo da relação com o saber, que aparece no corpo como enigma.
Édipo como herói patronímico recapitula o assassinato do pai primevo, passando a ter
de sofrer por estar no lugar deste pai primevo. Ao assumir a culpa trágica que perpassa pelo
inconsciente da platéia, Édipo alivia a culpa de todos. A platéia e o Coro vêem o herói ir em
direção à sua própria perda, tornando-se o redentor do Coro e dos demais irmãos.
57
3.3 O Início da Luta de Édipo Contra o Destino
Por ter sido rejeitado, em função das advertências oraculares de que assassinaria o pai
e casaria com a mãe, Édipo não teria direito à vida. Sem que seus pais ficassem sabendo,
porém, o menino foi salvo e criado por uma família estrangeira, ignorando sua origem. Freud
nos diz que foi pelo fato de ter duvidado ser filho desse casal que o havia criado que Édipo
mais tarde veio a consultar o oráculo, ouvindo desse as mesmas palavras ditas a seus pais. O
medo de cumprir tão terrível sina o levou a uma fuga tanto de sua cidade quanto dos fatos que
o precederam. Inicia-se, então, uma fuga de Édipo dos desígnios dos deuses.
Édipo, filho de Laio, Rei de Tebas, e de Jocasta, foi enjeitado quando criança
porque um oráculo advertira Laio, que a criança que ainda não nascera seria
o assassino de seu pai. A criança foi salva, e cresceu como príncipe numa
corte estrangeira, até que, em dúvida quanto a sua origem, ele também
interrogou o oráculo e foi advertido que evitasse o seu lar, visto que estava
destinado a assassinar seu pai e receber a mãe em casamento [...] (FREUD,
1900, p. 277).
Ao fugir, sem saber nada sobre sua origem, Édipo encontrou em uma encruzilhada,
ao longo do caminho, aquele que o havia gerado, Laio, e, em função de uma rixa entre eles,
sem saber, o matou. Pai e filho foram conduzidos pelo destino para o mesmo lugar,
encontrando-se, ao invés de se sucederem. Dessa forma, a briga ocorreu pelo fato de Édipo ter
tomado a decisão de não sair de seu percurso, ao se deparar com o cortejo real de Laio vindo
em sentido contrário. O arauto ordenou que ele saísse da estrada, jogando com o saber,
colocando-se como um estranho a todos os acontecimentos do caminho e permanecendo em
seu status de príncipe de Corinto. Entretanto, não percebeu que, cada vez mais, foi sendo
enredado por seu desconhecimento e por sua hybris. Sem saber que já havia cumprido parte
de seu vaticínio, seguiu rumo a Tebas, sua terra natal.
Na estrada que o levava para longe do local que ele acreditava ser o seu lar,
encontrou-se com o Rei Laio e o matou numa súbita rixa. Em seguida,
dirigiu-se a Tebas e resolveu o enigma apresentado pela Esfinge que lhe
barrava o caminho (FREUD, 1900: p. 178).
Em seu orgulho, alardeou o seu saber, desvendando o enigma posto em seu caminho
pela monstruosa Esfinge. Ao destruí-la, confirmou sua hipótese de ser aquele que sabia mais.
O coro também reafirmou essa sua posição, proclamando ser ele quase maior que todos os
mortais, quase como os deuses. Esse momento de arrogância sobre o saber foi um período
58
longo, onde prevaleceu a harmatia e da hybris de Édipo. Posteriormente, como será
trabalhado nessa dissertação, tal posição diante do destino o levou a uma mudança dos fatos
em seu contrário. Sua felicidade foi transformada em infelicidade, levando ao que Aristóteles
denominou de peripécia, ou seja, à passagem da fortuna ao infortúnio, e a sua conseqüente
queda. Édipo, ocupando o lugar fálico diante do Coro aparecerá, no final, como rebotalho,
objeto caído apresentando a falta como condição do ser desejante.
3.3.1 O Enigma da Esfinge e seus Múltiplos Significados
O enigma da diferença sexual leva a criança a querer saber sobre a verdade que
lhe é oculta. A criança em sua fase edipiana torna-se um pequeno pesquisador, realizando
teorias e buscando a solução de enigmas. Nesse sentido, a figura emblemática da Esfinge, que
surge para Édipo em seu caminho, apresenta uma questão a ser respondida pelo herói. A
Esfinge lançou uma verdade a ser decifrada por Édipo: “Qual o ser que é ao mesmo tempo
dípous, trípous e tétrapous?”. Freud, ao comentar o enigma da Esfinge, em “O
Esclarecimento Sexual das Crianças”, diz que a curiosidade da criança pela diferença sexual
lega a ocupar a mente deles a respeito da origem dos bebês “Trata-se da questão mais remota
e premente a atormentar a humanidade imatura. Os que sabem interpretar os mitos e as
lendas podem identificá-lo no enigma que a Esfinge de Tebas apresenta a Édipo”. (FREUD,
1907: p. 141). Em geral, com o nascimento do irmão ocorre uma franca hostilidade ao rival e
o primeiro grande problema da vida: “De onde vêm os bebês?”, “De onde veio esse bebê
intrometido?”. Freud diz que tal problema faz seus ecos nos mitos e lendas, que possuem
exigência vital de resolução. A criança passa a exigir resposta dos pais e isso falha, com isso,
o seu primeiro conflito psíquico surge. As provas que esse pequeno investigador consegue
tornam-se conscientes quando consideradas “boas” e as demais se tornam inconscientes,
formando o complexo nuclear de uma neurose. (FREUD, 1908, p. 217).
Além da pulsão de ver os órgãos genitais dos pais, no jogo de ausência e presença do
falo, é a partir do enigma colocado pelo sexo para a criança que sua inteligência desperta.
Freud chama esse enigma de Enigma da Esfinge, porque a questão que se apresenta por trás
da descoberta anatômica da diferença sexual, o que a criança busca é o enigma do desejo do
Outro, com o qual o sujeito se confronta. O enigma é sobre o desejo do Outro que o gerou. A
sexualidade entra em jogo pela via do desejo de saber. (QUINET, 2002, p. 255).
Lacan salienta que essa pergunta foi oferecida a Édipo pelo fato dele ser o
representante da relação do homem com seu saber inconsciente, com o núcleo e sua neurose.
59
Saber que, por não ter significado, apareceu como sintoma corporal.
Édipo não é um filósofo, é o modelo em relação com o saber, é o saber de
que dá prova – ao menos nos é indicado na forma do enigma – é um dever
relativo ao corpo. Por esta quebra o poder de um gozo feroz, o da esfinge; a
que é estranho que nos seja oferecida sob a forma de uma figura vagamente
feminina, digamos não bestial nem feminina. O que sucede depois, o que não
volta mais triunfante, é um gozo; no momento em que entra está já na cilada,
quero dizer que este gozo é o que marca o signo da culpabilidade. (LACAN,
31-05-1967).
Não há uma única verdade para tal enigma lançado pela Esfinge, pois a resposta
pertence ao nível da enunciação. Lévi-Strauss, em seu trabalho Leçon inaugurale du College,
trabalhou a questão do enigma como enunciado, estabelecendo a cisão entre enunciado e
enunciação, entendendo haver uma impossibilidade de comunicação na união lingüística entre
eles (VERNANT, 2003: p. 180).
Édipo “Oidípous” respondeu o enigma afirmando que somente o homem mudaria sua
natureza de mobilidade, andando, quando bebê, sobre os quatro pés, depois sobre dois, e, no
final da vida, com a ajuda de uma bengala, sobre três pés. Dessa forma, respondeu que
“Todos os ánthropoi são di-tri-tetra-pois”, ou seja, todos os seres humanos possuiriam dois,
três e quatro pés. Édipo, entretanto, desconsiderou os significantes contidos em seu próprio
nome, quais sejam: 'inchado' Oidí, 'dois' di e 'pés' pous. O enigma, portanto, referia-se ao
significante “pés”, pous, inscrito no radical de seu nome. Oidí, significar “saber” sendo Édipo
o homem que possuía os dois pés inchados e um saber que se encontrava no sintoma de seus
pés. A forma de andar cambaleante era sintoma de sua herança familiar, de sua Até familiar,
de sua maldição. Ele tornou-se, então, rei do significante, aquele que, aos olhos dos tebanos,
tudo sabia. Sendo assim, ele desconhecia a maldição infringida a Tebas, que recaía sobre sua
linhagem coxa e amaldiçoada pelos deuses. O radical “pés”, pous, portanto, apresentava a
Édipo sua verdadeira linhagem, daqueles que possuíam os pés defeituosos, que se repetia a
três gerações, sendo ele a terceira geração da família dos Labdácias que possuía defeito nos
pés.
Édipo, portanto, se excluiu da condição de ánthropos, pois, como era o Oidípous, o
homem que possuía “o saber sobre os pés”, ficava na zona do saber que ultrapassa o limite do
saber humano, identificando-se ao pai primitivo, possuidor de todo o saber. Édipo definiu o
ser humano como ser diferente dos outros animais, que andam sempre sobre as quatro patas, e
que, portanto, não possuem a marca da diferença existente na singularidade lingüística. Essa é
a singularidade deixada pelo inconsciente, que faz de cada um ser único, constituído através
60
da rede de significantes que herda.
A resposta dada por Édipo à Esfinge, portanto, não atinge a verdade sobre o seu
destino, pelo fato dele ter se colocado no lugar do “Senhor da Verdade”, “o único capaz de
decifrar o enigma”. Dessa maneira, a decifração feita por Édipo recai sobre a enunciação da
pergunta enigmática feita pela Esfinge, ao relacionar a resposta ao modo de andar do homem,
ao longo de sua vida. Sendo assim, ele não sabe sobre a verdade oculta contida no enunciado
da pergunta que o teria levado a relacionar o enigma ao seu próprio destino. Oidípous, o seu
nome, continha a resposta a ser dada, por possuir a inscrição como marca de seu ser. Em seu
nome havia o registro do gozo mortífero daqueles que o geraram e o abandonaram por tê-lo
como maldição (VERNANT, 2003: p. 185).
O nome próprio, como salienta Lévi-Strauss, é parte integrante dos códigos que fixam
as significações e as transformam em outras significações, por acumular mais de um sentido
(LÉVI-STRAUSS apud AZEVEDO, 1999, p. 25). Nele emerge a dimensão metafórica, em
um precipitado de significações transportadas através de gerações. Lacan diz: “não há nome
que seja o seu Nome-Próprio, senão o Nome como ex-sistência” (LACAN apud AZEVEDO,
Ibid, p. 27).
É, por esse entendimento sobre a representatividade do nome do herói, que se pode
afirmar que o enigma não tinha por objetivo transformar Édipo em um tirano, salvador do
povo Tebano, mas sim apontar para o reconhecimento de sua falta, ao voltar seu olhar sobre si
mesmo e observar seus pés como marca significante. Com sua resposta, lança a Esfinge ao
abismo, o que o tornou um rei com uma sabedoria aparentemente ilimitada, para o povo
tebano. Ao eliminar temporariamente a peste da cidade, ele não quis saber sobre o destino
oracular que o assemelhava ao monstro que as palavras da Esfinge evocavam: o ser que tem,
ao mesmo tempo e na mesma ocasião, dois, três, quatro pés, o homem que não respeitava a
ordem geracional, confundindo e embaralhando as gerações. A interpretação dada por Édipo à
Esfinge referia-se a respeitar a seqüência temporal da vida e das gerações, coisa que ele, sem
saber, havia revirado, ao tornar-se marido de sua mãe e irmão de seus próprios filhos,
embaralhando a ordem das gerações.
Além de todas essas possibilidades trazidas na análise do significante do nome de
Édipo, o prefixo Oidí aproxima-se também do verbo oîda, que significa 'ver' usado no sentido
de 'saber'. A peça de Édipo Rei ilustra a transformação da pulsão escópica, da articulação
entre o ver e o saber, o ver e o dar-a-ver, e a esquize entre o olho e o olhar. Para Freud, o que
se passa com Édipo situa-se no nível inconsciente, do desejo inconsciente de matar o pai e
unir-se a mãe. Mas é a lei do pai que interdita a mãe o que constitui o Complexo de Édipo. O
61
que se passa com Édipo, na peça, é exatamente o fato de possuir o objeto do desejo e da lei,
mas ele vê o que fez. Lacan prefere situar o impulso de saber não do lado da pulsão, mas do
lado do desejo: desejo de saber.(QUINET, 2002, p.261). Portanto, em seu nome surge um
prefixo relativo a um saber velado no significante. Essa é uma importante indicação de que
ele de fato não via aquilo que estava bem debaixo de suas vistas. Édipo não olhou para si
mesmo e, assim, não quis saber da verdade oculta por trás de sua sina. O fato de não ter
desejado saber, o que deveria ter feito, fez com que não percebesse sua implicação na solução
a ser dada como resposta, bem como permanecer em sua arrogância, como o grande
decifrador do mais temido enigma.
Em sua onipotência, achava saber tudo sobre os seres humanos, tornando-se um cego
para a sua realidade. Édipo não olhou para si, dando uma interpretação sobre todos os seres
humanos. Édipo apresenta dessa forma a oportunidade que o sujeito tem de investigar sobre o
seu sintoma em análise, ao poder questionar sobre sua história e poder recontá-la. Édipo foi
encoberto pela espessa névoa da ingenuidade, mostrou o olhar que deve recair sobre os “pés”
do analisante. Creontes, seu tio, disse: “A esfinge canta o enigma: o que estiver aos pés olhar,
deixar velado o opaco.” (SÓFOCLES, apud, AZEVEDO Ibid, p.29). Nesta frase, já há uma
indicação de que Édipo deveria ter olhado para seus próprios pés e visto as evidências
daquilo que não queria ver.
O aprendizado trágico que se retira de Édipo refere-se ao fato do sujeito repetir um
saber inconsciente. O herói repete o abandono ocorrido no nascimento de todos nós e, em
função de não ter querido saber da verdade marcada em seus pés, mostra como o sintoma
torna-se inscrito fazendo um monumento de seu corpo, inscrição que é o código a se
desvelado. Édipo não viu seus pés inchados que faziam seu corpo pender cambaleante,
determinando seu destino. A entrada em análise é, portanto, poder olhar para si mesmo,
deixando a arrogância das interpretações racionais dadas pelo indivíduo sobre seu drama
pessoal e encontrar na temida verdade inconsciente a possibilidade de escolher para além dos
destinos divinos, as determinações inconscientes que o regem sem que ele saiba.
O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco
ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode
ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual seja:
nos monumentos e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em
que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra
como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda
grave. (LACAN, 1953, p. 260).
62
Além do corpo, o inconsciente se revela como documento de arquivo, nas
impenetráveis lembranças da infância, no estoque do vocabulário particular que apresenta, o
estilo de vida e o caráter. As tradições também veiculam a história dos sujeitos nas lendas
contadas de forma heróica, além dos vestígios distorcidos da história de vida, como capítulos
adulterados que exigem enquadramento a partir de uma exegese particular.
Quando Édipo, por precisar saber sobre o criminoso que havia matado Laio, teve que
se defrontar com a investigação da verdade, veio a interrogar o mensageiro que havia deixado
o filho de Laio e Jocasta no Citerão. Do mensageiro, ouviu a seguinte explicação:
Mensageiro: ...Te salvei naquele tempo, filho.
Édipo: E como estava eu quando me descobriste?
Mensageiro: Lembro-me bem de teu estado deplorável; teus tornozelos inda
testemunham isso.
Édipo: Fazes-me recordar antigas desventuras!...
Mensageiro: Desamarrei teus tornozelos transpassados...
Édipo: Segue-me este defeito horrível desde a infância.
Mensageiro: Teu próprio nome te relembra este infortúnio (SÓFOCLES,
2006, p.72)
Este último verso também pode ser traduzido como: “daí provém o nome que te
demos” (SÓFOCLES apud AZEVEDO, 1999, p.55) e como acrescenta Lévi-Strauss: “os
nomes próprios são parte integrante dos sistemas tratados por nós como códigos: meios de
fixar significações, transpondo-as em termos de outras significações.” (PLON apud
AZEVEDO, p. 57).
O nome de Édipo é repleto de sentido. Assim como o sintoma traz questões
inconscientes, atuando como metáfora, os pés de Édipo exemplificam o caráter enigmático
apresentado no sintoma. Isto porque, como afirma Lacan, “O neurótico também é uma
testemunha da existência do inconsciente, ele dá um testemunho encoberto que é preciso
decifrar”. Desta forma, o sintoma neurótico mostra que permanece uma parcela desse gozo
fixada em seu corpo. Sem incorporar o objeto, enquanto ausente, o sujeito não toma seu nome
como marca do desejo de seus pais (LACAN, 1962: 153).
Édipo tornou-se uma impossibilidade lógica na rede de “relações elementares de
parentesco”, como apresenta Levi-Strauss. Ele confundiu as gerações, tornando-se marido de
sua mãe e irmão de seus filhos. Sendo assim, ele corresponde à maldição que cai sobre o
sujeito. “o desejo oculto do sujeito é que ele seja visto como diferente, como a maldição do
mundo” (LACAN, 1962: 235). Por essa razão, é possível relacionar a Até familiar, ou seja, a
maldição que recai sobre Édipo e que perpassa várias gerações, ao que, no inconsciente, se
63
herda como marca. Há uma determinação que vem do Outro como Alteridade do próprio ser,
“O um como tal é Outro” e é a partir desse Outro que o traço fundamental da diferença é
buscado, a marca radical do sujeito. Nesse sentido, o Complexo de Édipo é uma senha, um
código.
O que ganha consistência na segunda parte do ensino de Lacan é o que está para além
do Complexo de Édipo, de forma que a interdição do pai é elevada ao impossível. No declínio
do Complexo de Édipo, o sujeito aceita a castração do pai e incorpora esse significante
faltoso. O sujeito identifica-se com o pai limitado ao desejo e aceita, assim, sua própria falta.
Lacan, ao analisar Édipo, diz:
[...] o homem de pés inchados que tem, pois, os olhos furados e concluem
que [...] no fundo é mais cômodo sujeitar-se ao interdito do que incorrer a
castração[ ...] Então, se incorporamos o pai por sermos tão malvados
conosco mesmo, é talvez por termos, contra esse pai, muitas recriminações a
fazer.... É no declínio do Édipo que o pai real responsável pela castração,
atinge sua incorporação desse pai castrado. É pela incorporação desse
significante faltoso, pela aceitação da própria falta, que Lacan diz: tudo o
que existe não vive senão na falta-a-ser (LACAN, 1960: p. 368).
A psicanálise, desta forma, aposta que, através do Simbólico, é possível intervir no
Real. Intervir não apenas dando novos significados por meio do simbólico, mas também por
que o Real se manifesta por meio da ação. Por isso, a importância dada por Lacan quanto à
ação trágica, tornando as palavras um estatuto de materialidade, o que permite mudar os
modos de gozo. As palavras podem, portanto, mover a pulsão, levando a introjeção da lei do
pai naquilo que falha. Ocorre, assim, uma verdadeira mudança na psicanálise, se for entendida
a partir do registro do Real, porque permite a travessia da fantasia e do limite do gozo fálico.
Ao adentrar pelo espaço do desejo de saber sobre sua própria verdade, o sujeito em
análise olha em direção aos significantes que o regem e que deixam suas marcas nos sintomas
que carrega. É necessária a ultrapassagem da resistência às evidências terríveis do real,
alcançando o entusiasmo da experiência do saber. Isso é expressamente apontado por Lacan
em seus Escritos, ao referir-se à posição do analista, ou seja, daquele que já teria passado pelo
percurso de sua própria análise:
Que ele (o analista) pense “com os pés”, ou seja, que tal como Édipo,
seja possível possuir o saber proveniente do real, da experiência do
saber, que passe pelo saber que lhe causa horror e seja ultrapassado
pelo entusiasmo, ao identificar-se como rebotalho, objeto ‘a’ em sua
ex-sistência (LACAN, “Nota Italiana” p. 311).
64
Édipo não soube sobre o crime incestuoso que cometeu e, sem culpa, seguiu gozando
em sua ignorância. Ainda que o significante dos significantes, ou seja, o falo, se encontrasse
oculto sob a letra, Édipo nada mais era do que a marca de um gozo que resiste à significação.
No lugar fálico de marido de sua mãe, Édipo desfrutou de uma vida tranqüila, deixando
ocultos o enigma sobre sua origem e sobre seus crimes. Freud disse, a respeito dessa
ignorância, que ela constituía uma representação legítima do estado inconsciente. Dessa
forma, toda a força coercitiva do oráculo, que tornava o herói inocente, faz reconhecer a
inevitabilidade do destino, que condena todo filho a passar pelo Complexo de Édipo
(FREUD, 1939: p. 215).
O povo aceitou a interpretação de Édipo, que em si trazia o mal-entendido, o equívoco,
em suas palavras. Nesse sentido, todos os sujeitos são coxos, por possuírem o traço
amaldiçoado deixado pela sua entrada na linguagem, que os torna sempre incompletos e
trôpegos. Não é por outra razão que Lévi-Strauss equipara o coxear de um homem que não
anda direito ao “coxear da língua”, uma falha da comunicação semelhante ao “arrastar o passo
do discurso”. A falha de comunicação aparece no corpo de Édipo, em seu andar
desequilibrado e coxo, ele encarna a falha que faz toda linguagem ser cambaleante. Tal
equivalência é possível pelo fato dos gregos tomarem a categoria “coxa” em um sentido mais
amplo do que o de simplesmente ter um defeito nos pés ou nas pernas, visto que, para eles, o
termo Coxo exprime, simbolicamente, todas as formas de conduta que pareçam
desequilibradas ou bloqueadas. Em francês, a palavra clocherie, ou coxear, tem o sentido de
“falhar”.
Vernant retoma, em sua ambivalência, o caráter equívoco do coxear, apresentando,
assim, a forma cambaleante com a qual se dá a comunicação entre Édipo e a Esfinge. Só no
final, quando Édipo já cumpriu todo o destino do qual tentou fugir e todo o mal já havia se
consumado, é que constatou ter realizado seus atos proibidos. Esse fato já havia sido revelado
diversas vezes ao longo da peça, como nas palavras do mensageiro que é chamado para
responder sobre o que sabia na ocasião do crime contra o rei. O Mensageiro, então, ressaltou:
“Teu próprio nome te relembra esse infortúnio” (SÓFOCLES, 2006, p.72, 1225).
A ambigüidade se manifesta, então, na contradição de ter querido fugir de seu final
funesto e ter ido ao encontro da verdade em total ignorância sobre suas ações. Sendo assim a
relação estabelecida entre Édipo e a Esfinge salienta toda a impossibilidade de uma
comunicação perfeita entre os interlocutores. Dessa forma, a Esfinge emite um enunciado
cheio de ambigüidade que é interpretado de forma unívoca pelo herói. A análise, por sua vez,
65
ao posicionar o analista no lugar enigmático da Esfinge, pode emitir enunciados a serem
interpretados pelo analisante de forma ativa, transformando seu destino em ação criativa.
A interpretação será dada dependendo daquilo que em sua trajetória o
sujeito, no caso Édipo, irá criar de novo podendo chegar a uma interpretação
sobre sua verdade. É que não existe, certamente, uma interpretação que seja
a única correta, mas é do fato de ela ser dada que depende o advento no ser
do novo que não existia, e que se torna real naquilo que chamamos verdade”
(LACAN, 1970: p. 142).
Para tanto, é preciso separar o enunciado da enunciação, para que daí possa advir o
Real, o ponto enigmático do ser. Ao dar um único significado possível, unindo enunciado à
enunciação o sujeito reduziu o Real ao mutismo, não reconhecendo sua implicação no
sintoma. O sujeito faz uma única interpretação sobre a verdade e, assim, esquiva-se de sua
implicação em sua história familiar.
Pois onde situar, por gentileza, e a nenhuma outra, que pertence o fenômeno
do inconsciente senão nos quadros nominais em que se baseiam desde
sempre, no ser falante que somos, a aliança e o parentesco, nas leis da fala
em que as linhagens fundamentam seu direito, no universo de discurso em
que elas misturam suas tradições? E como apreender os conflitos analíticos e
seu protótipo edipiano fora dos compromissos que fixaram, muito antes de o
sujeito vir ao mundo, não apenas seu destino, mas sua própria identidade?
(LACAN, 1970: p. 144).
A palavra dita em análise também comparece com seus defeitos e distorções próprias
do sujeito dividido. Sobre tais ambigüidades, o sujeito, diante de seus esquecimentos,
apresenta-se como aquele que não pode reatar o fio de suas lembranças dentro de si mesmo.
Admitindo-se como o ser que carrega em si o traço, fazendo cair o véu opaco da verdade
inconsciente, de forma a deixar o olhar livre da visão míope da ignorância.
Sendo assim, o analisante pode interpretar o enigma de sua própria existência pela
ação de sua fala. Tal ação relaciona-se aos mitos, como Freud salienta na última frase de
Totem e Tabu, onde utiliza as palavras que iniciam o livro de São João: “No começo era o
Verbo”, para falar que “No começo era o Ato” (FREUD, 1914, v. XIII: p. 191). Isso vem
mostrar como o neurótico é inibido em suas ações, sendo o pensamento, para ele, um
substituto do ato, ao contrário do homem primitivo e mítico, descrito em Totem e Tabu, para
quem o ato era o substituto do pensamento. O mito, portanto, possui exatamente o papel de
apresentar, para o homem civilizado, a ação desse homem primitivo, que o sujeito neurótico
desconhece.
66
3.3.2 O Retorno da Peste
A peça de Édipo Rei somente se inicia quando a peste volta a assolar Tebas, após um
longo período em que Édipo permaneceu casado com Jocasta. Sem saber, ficou casado com
sua mãe, o que novamente remete ao “romance familiar do neurótico”, onde Freud diz que a
criança ao passar a conhecer a diferença sexual durante o complexo de Édipo, não lança
dúvidas sobre sua origem materna, que é encarada como fato indiscutível e o pai se torna rival
a ser eliminado. O pai é sempre suposto. A criança tende então, a se imaginar em relações
eróticas, cuja força motivadora é o desejo de colocar a mãe (objeto da mais intensa
curiosidade sexual) em situações de secreta infidelidade e em secretos casos amorosos.
(FREUD, 1909, p. 245). As mães, por sua vez, também sentem grande “afeição” pela criança,
que raramente deixa de delatar sua natureza erótica (a criança é um brinquedo erótico). A
fixação afetiva da criança, entretanto, ao chegar na puberdade, une-se a uma poderosa
corrente sensual que cria obstáculos contra o incesto. Embora os primitivos caminhos da
escolha infantil deixem de serem atuantes, o sujeito pode escolher novos objetos (FREUD,
1910: p. 164). É importante ressaltar, que toda essa construção freudiana é por ele ressaltada
como não sendo de cunho cronológico ou causal (FREUD, 1924: p. 224), podendo ser essa
relação, reeditada em análise na construção de uma fantasia familiar. Na peça de Édipo-Rei,
ao herói cumprir os desejos inconscientes descritos no romance familiar, não passa impune
por eles.
Os oráculos, então, proferem que a praga só terminará quando o assassino do rei for
descoberto. É a partir daí que se inicia busca do herói pela verdade. Tudo o que se passou
antes, como o abandono de Édipo no Citeron, sua saída de Corinto, seu crime cometido na
encruzilhada, a destruição da Esfinge, bem como seu casamento com Jocasta, são relatos
descritos no prólogo da peça.
A tragédia inicia-se, de fato, nesse ponto, em que Édipo passa a investigar sobre o
criminoso. A marca do assassinato do pai clama por respostas e é esse enigma o propulsor da
busca pela verdade, essa é a via de acesso do sujeito ao seu inconsciente, manifestada em uma
análise. Édipo então é posto a questionar: “Quem é o assassino de Laio?”. Confrontado por
Tirésias sobre a sua participação no crime, Édipo então se questiona: “Sou eu o assassino de
Laio?” e, por fim, quando todos os fatos apontam para a sua criminalidade, ele faz a
derradeira pergunta: “Quem sou eu?” Essa questão que atravessa toda a peça trágica faz seus
ecos sobre o percurso analítico. ”Toda a experiência do inconsciente...é algo que se coloca a
67
este nível de pensamento onde... a relação sensível mais presente, ... mais imediata... é a
questão que se pode colocar no esforço sobre este 'quem sou’?”.(LACAN apud AZEVEDO,
1999: p. 54).
Ocorre uma série de peripécias ao longo da peça trágica, as quais vão levando à
questão fundamental que marca o percurso de uma análise, “quem sou eu”. É isso o que a
peste exigiu com a revelação do criminoso, porque é, a partir da dimensão do gozo que está
na verdade inconsciente, que se torna possível haver o reconhecimento daquilo que se é. A
Esfinge apresentava essa questão de forma enigmática, mas apenas no percurso em que o
herói é levado ao reconhecimento de sua identidade como criminoso é que se torna possível
interpretar de outra maneira o enigma.
Voltemos sobre o enigma da Esfinge e além, se Édipo termina tão mal – já
veremos o que quer dizer “terminar muito mal” e até que ponto isso se
chama muito mal terminar – é porque quis saber absolutamente a verdade. É
aí que vemos que não é possível abordar seriamente esta referência, a
referência freudiana, sem haver intervindo entre o assassinato e o gozo esta
dimensão da verdade (LACAN, 1970: p. 109).
Tal qual a proposição da Esfinge, a questão central que se coloca na peça não é
propriamente a da busca sobre quem é o ser humano. A pulsão torna-se, nesse sentido, uma
montagem, assim como a Esfinge, evidenciando a relação existente entre o enigma e a pulsão
de morte, porque o que está no centro da questão é o desejo mortífero do Outro.
A ação da peça é de revelar o criminoso, função exercida pelo próprio criminoso em
busca dos vestígios deixados no relato distorcido de sua história. Édipo perseguiu a questão
“Quem é o assassino de Laio?”, deixando de observar a si mesmo e seus próprios desejos
assassinos. Ele clamou pela resposta dessa questão ao velho e cego Tirésias, por ser o sábio
que conhecia toda a verdade. A peça trágica descreve Tirésias como “...o adivinho guiado
pelos deuses, único entre os homens que traz em sua mente a lúcida verdade” (SÓFOCLES,
2006, p. 31). Tirésias, sabendo de fato sobre o criminoso, lhe suplicou para ser poupado de ter
de revelar a verdade. Com isso, Édipo ficou transtornado de cólera, acusando Tirésias de ter
cometido o crime. Encurralado, o vidente acabou por dizer: “Pois ouve bem: és o assassino
que procuras!” (SÓFOCLES, 2006, p. 35, 430). Quanto mais Édipo tentava negar sua
participação nos crimes, mais evidente ela ficava, empurrando-o a um saber do qual não podia
mais se esquivar, mas, mesmo assim, resistia em saber. O vidente revelou, ainda, sua relação
incestuosa com a própria mãe. “Apenas quero declarar que, sem saber, manténs as relações mais
torpes e sacrílegas com a criatura que deverias venerar, alheio à sordidez de tua própria vida”
(SÓFOCLES, 2006, p. 35).
68
Mesmo diante de tal revelação, Édipo ficou cético quanto aos fatos narrados e advertiu
Tirésias: “São tuas estas invenções, ou de Creonte?” (Ibid, p. 35). Tirésias foi, então, acusado
de feiticeiro, charlatão, conspirador que só tinha olhos para o ouro, cego em sua própria arte e
em tudo mais. Édipo possuía um desprezo pelo olhar cego do adivinho, tendo ele mesmo os
olhos fechados para a luz do sol. Tirésias responde:
[...] Minha cegueira provocou injúrias tuas.
Pois ouve: os olhos teus são bons e todavia não vês os males todos que te
envolvem,
nem onde moras, nem com que mulher te deitas.
Sabes de quem nascente? És odioso aos teus,
aos mortos como aos vivos, e o açoite duplo
da maldição de tua mãe e de teu pai
há de expulsar-te um dia em vergonhosa fuga
de nossa terra, a ti, que agora tudo vês
mas que em breve enxergarás somente sombras! (SÓFOCLES, 2006, p. 35).
Tirésias fez com que a pergunta inicial, de quem teria matado Laio, fosse
redirecionada para ele mesmo, sendo ele o homem que assassina o homem. Lacan diz que
“toda experiência do inconsciente...é algo que se coloca a este nível de pensamento onde...a
relação sensível mais presente, ...é a questão se pode colocar no esforço sobre “quem sou
eu”? Esse processo gradual de revelação, Freud comparou ao próprio processo de análise.
Por gratidão, os tebanos fizeram-no rei e lhe deram a mão de Jocasta em
casamento. Ele reinou por muito tempo com paz e honra, e ela que, sem que
ele o soubesse, era sua mãe, lhe deu dois filhos e duas filhas. Foi quando,
então, irrompeu uma peste e os tebanos interrogaram mais uma vez o
oráculo. É neste ponto que tem início a tragédia de Sófocles. Os mensageiros
trazem de volta a resposta de que a peste cessará quando o assassino de Laio
tiver sido expulso do país.
Mas ele, onde está ele? Como encontrar agora os vestígios desse crime tão
antigo? A ação da peça consiste em nada mais do que o processo de revelar,
com pausas engenhosas e sensação sempre crescente – um processo que
pode ser comparado ao trabalho de uma psicanálise – que o próprio Édipo é
o assassino de Laio, mas, ainda, que ele é o filho do homem assassinado e de
Jocasta. Apavorado com a abominação que ele inadivertidamente perpetrara,
Édipo cega-se a si próprio e abandona seu lar. A predição do oráculo foi
cumprida (FREUD, 1900, vol. IV: p. 277).
Na análise, o sujeito também passa por suas peripécias ao investigar suas questões, na
busca de elementos externos a si que expliquem suas mazelas, indo em direção a sua própria
questão. Édipo só se defrontou com a questão referente a si próprio através dos dois desejos
criminosos revelados, levando Freud a servir-se disso para a construção do “Complexo de
69
Édipo”. O analisante, como Édipo, ao construir sua fantasia, vê seus desejos espelhados no
outro.
Na peça, quanto mais Jocasta tentou apaziguar a angústia de Édipo, mais evidências
surgiram, deixando-o com medo. Jocasta pediu-lhe que não desse mais atenção ao que estava
ouvido, convidando-o a não buscar saber sobre seu destino, entregando-se ao acaso cego:
Jocasta –
Édipo –
Pois não lhes dê mais atenção de hoje em diante
Não deveria amedrontar-me a perspectiva
de partilhar o tálamo de minha mãe?
Jocasta –
O medo em tempo algum é proveitoso ao homem.
O acaso cego é seu senhor inevitável
e ele não tem sequer pressentimento claro
de coisa alguma; é mais sensato abandonar-mo-nos
até onde podemos à fortuna instável.
Não deve amedrontar-te, então, o pensamento
dessa união com tua mãe; muitos mortais
em sonho já subiram ao leito materno.
Vive melhor quem não se prende a tais receios (SÓFOCLES,
2006: p. 67).
Édipo continuou sua investigação até o ponto em que ouviu de Jocasta: “Nada me
importa! Escuta-me! Por favor: pára!” Édipo respondeu: “Malgrado teu, decifrarei esse
mistério” (Ibid: p. 74). Édipo, ao descobrir sua origem, exclamou “Ai de mim! Ai de mim! As
dúvidas desfazem-se! Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que te
contemplo!” (Ibid: p. 82). O Coro segue a tristeza de Édipo, afirmando à platéia serem eles
próprios iludidos quanto à sua felicidade. Remete, desse modo, a questão mítica de cada um,
por ter a honra de experimentar na carne as dores de todos os personagens, lugar do tormento
seu e dos outros:
Vossa existência, frágeis mortais, é aos meus olhos menos que nada.
Felicidade só conheceis imaginada; vossa ilusão logo é seguida pela desdita.
Com teu destino por paradigma, mísero Édipo, julgo impossível que nesta
vida qualquer dos homens seja feliz! (SÓFOCLES, 2006: p. 83).
Édipo reconheceu-se como sendo o assassino do rei, tendo usurpado seu trono. Esse
rei assassinado era, todavia, seu pai, de quem deveria ter herdado o trono. Além de parricida,
Édipo se reconhece como rejeitado, não sendo nada no desejo de seus pais. O inconsciente
abre e fecha, marcando esse tempo pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce
dividido. O sujeito é o surgimento do que não era nada. Somente aparecendo é que se coagula
em significante.
70
Só essa divisão torna necessário que pela experiência analítica as vias do que
se deve fazer como homem ou como mulher são inteiramente abandonadas
ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro – o que é
propriamente o Édipo. (LACAN, 1964: p. 194).
3.3.3 O Saber Inconsciente
Se, ao longo da peça trágica, Édipo agiu por ignorar sua origem, Lacan lança a questão
de saber até que ponto Jocasta tornara-se conivente com esse gozo desmedido de ser possuída
pelo próprio filho.
Édipo não sabia de que gozava, ele plantou a questão de saber se Jocasta
sabia, e porque não? Gozava de deixar Édipo na ignorância? Digamos que
prazer do gozo de Jocasta responde a que deva a Édipo ignorar. É neste nível
graças a Freud que se plantam as questões concernentes à verdade”
(LACAN, 31-05-1967).
Embora a peça não traga o fato inteiramente esclarecido, o servo que acompanhou
Laio até o seu derradeiro fim esteve vivendo por todo o tempo junto a Édipo e Jocasta.
Surpreende a Lacan ninguém ter ido questionar tal servo sobre o assassino de Laio, mesmo
tendo se escondido quando Édipo assumiu o trono.
O saber é necessário à instituição do ato sexual, é o que disse o mito de
Édipo. Julguem a dissimulação que faz falta que desdobra Jocasta, já que
sobre os caminhos de encontro, Tychè, não se encontra mais que uma vez na
vida. Édipo não tem sabido julgar melhor seu saber; todos os anos que durou
sua sorte, tem o amor à noite em sua cama e durante o dia; acaso Édipo
nunca tinha tido que chamar essa bizarra figura que estava na estrada quando
Laio sucumbiu, tampouco ao sobrevivente, um servidor que quando viu a
Édipo subir ao trono se escondeu (LACAN 26-abril-1967).
Sendo a Verdade irmã do gozo, como afirma Lacan, Jocasta sabia ser mãe de Édipo,
possuía o gozo pelo assassinato de Laio e sabia ter o filho em sua cama. Jocasta partiu
gozando sem nada dizer, sem nada barrar ao filho que havia assumido o lugar do pai
assassinado, por ter vencido a prova da verdade.
Então aqui vemos que tem uma relação muito distinta que é uma relação
com a Verdade. Já os disse que a Verdade é a irmã do gozo, haverá que
voltar sobre isso. O que temos de certo, o que está completamente elidido no
grosseiro esquema: assassinato do pai/gozo da mãe é a instância trágica, a
saber que se bem é certo que pelo assassinato do pai Édipo tem livre acesso a
Jocasta, a razão por que ela é entregue por aclamação popular, Jocasta que
como sempre lhes digo, sabia um monte, porque as mulheres não se deixam
71
assim sem mais sem buscar um pouco de informação, havia ali um servidor
que havia presenciado todo o assunto, seria entretanto muito raro que esse
servidor que se encontrava ao final e que entretanto havia voltado ao palácio
não houvesse dito a Jocasta “este é o que eliminou seu marido”. Em síntese,
seja como seja isto não é importante. O importante é que Édipo foi admitido
junto à Jocasta porque havia saído triunfante de uma prova de verdade
(LACAN, 11-março-1970).
Freud ressalta, em seu relato sobre Édipo Rei, o fato de Jocasta ter “consolado” Édipo
quando se sente perturbado, desejosa de que não levasse à diante sua investigação. Sua
alegação consistia no fato de muitos homens sonharem casar-se com a própria mãe.
Existe uma indicação inegável no texto da própria tragédia de Sófocles de
que a lenda brotou de algum material onírico primitivo que tinha como seu
conteúdo a altiva perturbação da relação de uma criança com seus pais,
devido aos primeiros estímulos da sexualidade. Num ponto em que Édipo,
embora não tenha sido ainda esclarecido, começou a se sentir perturbado
pela sua recordação do oráculo, Jocasta o consola fazendo referência a um
sonho que muitas pessoas tem, ainda que, conforme julga ela, não tenha o
mesmo nenhum significado: “Muitos homens têm sonhado que casavam com
suas mães” (FREUD, 1900: p. 279).
Como Lacan afirma, a Esfinge poderia ter proposto seu enigma de inúmeras outras
formas, mas esta era a proposição que levava ao profundo significado do nível trágico, ao
âmago do Complexo de Édipo. O Complexo de Édipo, como salienta Lacan no seminário
XVII, é importante pelo fato da mãe fazer obstáculo ao gozo. Lacan interpreta o enigma da
Esfinge, de forma a tornar evidente o que se passa por trás do Complexo edipiano. Ele define
o andar como o avanço do homem em separar-se do Outro materno, desejando retornar ao
corpo materno. Assim, quando nasce, anda no colo de alguém, possuindo quatro pés. Em
seguida, passa a andar sobre suas próprias pernas e, em um terceiro tempo, torna-se o falo da
própria mãe. Está aí todo o drama do Complexo de Édipo, desejar entrar no lugar do
significante que falta ao Outro materno.
O que tem pedido a quimera, o poderia haver tido muitas outras respostas:
quatro patas, duas patas, três patas, e podiam ter dito: É o esquema de Lacan!
Isto teria produzido um resultado distinto! É um homem e, todavia
precisamente um homem com um bebê de colo.”Bebê de peito, tinha
começado sobre 4 patas, se levanta sobre 2 e retoma uma terceira, é o bebê e
ao mesmo tempo sai disparado, direto como uma bala, ao ventre de sua mãe.
É o que se chama, com justiça, o Complexo de Édipo. Suponho que vem os
que querem dizer aqui a função do enigma: um semi-dizer, como a quimera
aparece a semi-corpo no risco de desaparecer totalmente quando se tem dado
a solução (LACAN, 1969: p. 34).
72
Tendo Jocasta permitido que Édipo fosse seu falo, previu a inevitabilidade do que
sobreviria com o avanço do drama em direção à verdade. Jocasta foi, então, tomada por um
terrível estado de agitação ao saber ter Édipo chamado o servo para inquiri-lo sobre o tempo
do assassinato de Laio. Assim sendo, pediu, suplicou, para que Édipo desistisse da idéia.
JOCASTA
“A quem aludes? Como? Não penses mais nisto!
Afasta da memória essas palavras fúteis
ÉDIPO
Seria inadmissível que, com tais indícios
eu não trouxesse à luz agora a minha origem.
-
JOCASTA
“Peço-te pelos deuses! Se inda te interessas
por tua vida, livra-te dessas idéias!
Já é demasiada a minha própria angústia”. (SÓFOCLES,
2006, p.73 )
Édipo, ao buscar a resposta sobre o autor do crime contra o rei, apresenta a busca do
sujeito em direção a verdade sobre sua origem, o real que marca a diferença sexual, apontada
pela Esfinge em suas palavras ambíguas. A narrativa de Édipo oferece, portanto, uma espécie
de instrumento lógico que permite lançar uma ponte entre o problema inicial – nascemos de
um único ou de dois? - e o problema derivado que se pode formular: o mesmo nasce do
mesmo ou de outro? Édipo, ao perceber estar na condição incestuosa e criminosa, se vê diante
do gozo insuportável do Outro materno. Está aí a chave de seu destino consumado em sua
monstruosidade.
Lacan diz que o mais importante a ser observado é o desejo mortífero de Jocasta que,
como um crocodilo, devora, assemelhando-se à Esfinge que afirma “decifra-me ou devorote”. Lacan, então, utiliza o símbolo de um osso, o falo que detém a boca da “mãe crocodila”
antes que feche sua boca e devore seu filho.
Por outra parte, como por azar, Claude Levi-Strauss, que não se nega à
prova, num mesmo artigo nos anuncia que o mito de Édipo completo se trata
de algo muito distinto que de saber se vai ou não beijar a sua mãe! ... Cada
vez mais os psicanalistas, entretanto, em algo que efetivamente é muito
importante, a saber, o desejo da mãe. É absolutamente capital porque o
desejo da mãe não é algo que um pode suportar, e que isso os seja
indiferente: traz sempre estragos. Não é certo? Um grande crocodilo em cuja
boca vocês estão é isso a mãe, não é? Não se sabe se de repente se pode
ocorrer de fechar a boca: isso é o desejo da mãe. O que tratei de explicar é
que o que tinha de tranqüilizante é que tinha um osso assim, os digo coisas
simples – havia, pois, algo que era tranqüilizante, improviso, havia um
cilindro, assim, bem duro, de pedra, que está em potência ao nível da boca:
isso retém, isso tranca, é o que se chama de Falo, o cilindro que nos protege
se de um golpe se fecha! (LACAN, 1970: p. 105).
73
Édipo, no lugar de falo de Jocasta, não sabia sobre sua posição e Jocasta também não
queria que ele soubesse, para que dela não abdicasse:
De sorte que vocês alcançassem aí, que na origem, o que nutre a emergência
do significante é uma visada do que o Outro, o Outro real não sabe. O “ele
não sabia” enraiza-se num “ele não deve saber”. O significante sem dúvida
revela o sujeito, mas apagando seu traço (LACAN, 12/dez/1962).
O grande desafio é escapar deste grande “crocodilo” que é a mãe e, para isso, é
preciso que haja a barra desse desejo, a lei que vem em substituição ao pai morto. Édipo
funda em sua estrutura essencial o início da verdade freudiana, na qual todo desejo possível
circula.
A paternidade é apresentada como significante no registro simbólico fálico, a partir do
pai morto, como passagem da natureza à cultura. O simbólico é a herança transmitida pela
cultura que estrutura o sujeito nos laços sociais. É a partir desse lugar vazio do pai morto que
o Pai simbólico pode transmitir a lei. Édipo, por não ter passado pelo Complexo de Édipo,
não possuía a lei como herança, tornando-se o objeto que representa a marca do crime
cometido. Dessa forma, Édipo representa o sujeito em sua alienação ao significante do Outro,
submetido ao gozo da mãe.
74
4. TRAGÉDIA E PSICANÁLISE
4.1 A Fantasia
A tragédia não desvela a realidade, mas a imita, dispondo dos olhos do público para
que as figuras lendárias da idade heróica falem e ajam diante dos espectadores em sua
vertente metafórica, reveladora dos mais profundos conflitos humanos travados em seu
inconsciente. Nesse sentido, a mímesis ganha uma nova dimensão, ao apresentar personagens
não como fictícios, mas como seres que existiram efetivamente, mas num outro tempo, em
uma outra esfera de existência. Sua encenação é um estar-ali, uma presença real de
personagens, dependendo de um alhures, de um invisível Além.
O poeta presentifica homens desaparecidos, cuja ausência provoca os olhos, revestindo
as formas da existência real na atualidade do espetáculo. Por essa razão, o poeta, no teatro,
encontra-se fora da cena, subsumido por trás dos personagens, que agem e falam por conta
própria. Esse é o aspecto direto do discurso e da ação, trazido pela mímesis “No sentido
preciso de mimeîsthai, imitar é simular a presença efetiva de um ausente” (VERNANT,
2005: p. 216). O espectador é conclamado a compreender o que é dado no palco com um
plano diferente do real e que se deve definir como o da ilusão teatral. Sendo assim, a tragédia
não é lendária, mas reveladora de uma verdade do sujeito do inconsciente que relembra o
espectador de suas próprias infelicidades proibidas de serem representadas. Por sua montagem
imaginária através da mímesis, o trágico acende a consciência.
Dessa forma, o teatro trágico possui um objetivo estético, o de suportar a dor e
também um objetivo ético, ethos, o de transmitir o conhecimento trágico. Esse é fundamento
do efeito trágico, defendido por Lacan, de forma que ele apresenta uma purificação que vai
além do puro imaginário, atingindo o real.
O poeta traz o material recalcado, não como lenda, mas como presença óptica do
invisível. A infelicidade de cada um, que lhe é tão próxima, ao ser colocada no palco do
teatro, permite um distanciamento, uma transposição dos sentimentos de terror e compaixão,
sendo compreendidos em um outro registro em sua dimensão de ficção. O mythos alcança a
liberdade de apresentar a essência trágica de todos os humanos na verossimilhança encontrada
em heróis lendários. Arranca-se a opacidade do particular e do acidental pela lógica de um
roteiro que depura os sentimentos. Os heróis trágicos tornam-se, no espelho da ficção trágica,
objetos de compreensão do jogo de forças contrárias a que o homem está submetido,
colocando o espectador em uma interrogação de alcance geral da condição humana, de seu
75
limite e finitude. Traz a mira o saber da lógica ilógica, que preside a ordem de nossas
atividades humanas.
A psicanálise constata que a cena trágica traz as lembranças arcaicas do inconsciente,
evento que teria acontecido, mas como algo da ordem da fantasia. A realidade psíquica é
marcada pela escolha do sujeito diante do momento em que constata a diferença sexual. A
escolha do sujeito se relaciona à fixação na cena infantil como encontramos na fantasia
fundamental. Essa fantasia fundamental mostra o caráter traumático do sexo, que não é uma
fantasia erótica, mas sexual. No texto Bate-se em uma criança, de Freud, a fantasia erótica era
ver uma criança sendo espancada. Essa é fantasia vinculada à fantasia traumática do sujeito,
na qual o pai bate no próprio sujeito. A fantasia fundamental, no entanto, o sujeito não se
recorda e por mais que seja sexual não lhe dá prazer. Há necessidade de uma transformação
dessa fantasia para chegar propriamente ao prazer. O sujeito precisa sair da fixação libidinal,
dessa escolha traumática que implica em uma desnaturalização do sexo, isso porque é essa
fantasia que determina o sexo.
Assim, essa fixação libidinal à qual o sujeito se encontra regredido no nível do
significante é o que dá origem à escolha do sintoma e da neurose. O sujeito fica fixado ao
objeto “a”, assexuado. O objeto “a” é assexuado porque é um objeto pulsional que vai ser
recortado do corpo de outro, independentemente do seu sexo. Ser um objeto assexuado
significa estar fora do sentido sexual. Dessa forma, a primeira escolha é sempre incestuosa.
Freud constata haver sempre um conflito nessa escolha de objeto, porque na verdade deve
fazer uma escolha identificatória. Deve escolher entre o pai ou a mãe, tendo que lidar com a
perda de um ou de outro. A impossibilidade de escolher leva ao conflito neurótico. Como
originariamente a criança é bissexual, essa escolha pela identificação tornasse ainda mais
complexa. Freud entendeu que na experiência analítica se percebe que se escolhe o pai ou a
mãe, mas o outro deixa seus vestígios.
Quando na adolescência se escolhe um objeto amoroso, ou seja, no momento em que o
sujeito se assegura que possui o outro como objeto amado, surge o ciúme. Isso porque o
interesse diminui pelo objeto amado na medida em acaba por colocá-lo no lugar de objeto
perdido para que seja desejado. O ciúme funciona como uma ferramenta para manter a pessoa
no lugar de objeto de desejo e de não cair desse lugar. O momento da queda do herói traz de
volta a fantasia do sujeito como objeto caído do amor do Outro. Freud salienta que o
espetáculo apresenta, pois, o olhar amargo da criancinha que olha seu irmão pendurado no
seio de sua mãe, como representado na pintura de Da Vinci “Sant’Ana, a virgem e a criança”
(FREUD, 1910: p.53-136). A imagem do irmão não desmamado só desperta uma agressão
76
especial por repetir no sujeito a imago da situação materna e, com ela, o desejo da morte. Esse
fenômeno é secundário à identificação. (LACAN, 1939: p. 46). O olho tem, dessa forma, seu
efeito de veneno, da inveja, de ver nessa imagem a completude e ver-se como o “a” que se
desprende “é a esse registro do olho como desesperado pelo olhar que devemos chegar para
sacar a ação pacificadora, civilizadora e encantadora, da função do quadro (LACAN, 1964:
p.112). O quadro deixa estática a cena da fantasia, cuja estrutura pode reduzir a um só golpe
os três tempos da fantasia. A fantasia fundamental é o olhar que faz o sujeito se ver como
objeto caído do desejo do Outro materno, objeto “a”, enquanto a completude da mãe
permanece íntegra com a chegada de um novo bebê. Esse olhar apresenta-se na experiência
como não atingido diretamente pelo significante.
Essa é a lembrança arcaica, onde a imagem é fixada e concebida em forma de pintura.
A fantasia, via de regra, permanece inconsciente e só pode ser reconstruída no decorrer de
uma análise. Freud enfatiza em “Uma criança espancada” (FREUD, 1919, p. 223-253) o
caráter de fixação, inércia da fantasia que se desenrola em três tempos, sendo o terceiro tempo
– uma criança espancada – a apresentação da cena como um quadro erótico para o sujeito.
(QUINET, 2002: p.172). O percurso analítico, portanto, poderia ser descrito como a passagem
da segurança da fantasia à queda desta segurança, fazendo com que o sujeito se implique na
cena e passe a ocupá-la, como no segundo tempo da fantasia.
As ondas delirantes da neurose são chamuscadas pelo fantasma, durante um
momento o sujeito fica cativo da convicção, para não dizer da certeza, de
que tem a ver com um Outro que lhe quer mal, um Outro, cujo gozo o
ameaça (SOLER, in Variáveis do Fim da Análise, p. 196).
A fantasia é uma imagem com determinação significante, uma cena imaginária
construída sobre uma frase que, como tal, tem estrutura de linguagem. Por ser inconsciente, a
fantasia é estruturada como uma linguagem da pulsão. A cena em questão no quadro da
fantasia é a relação do sujeito com o objeto que causa seu desejo, despertando a função do
olhar por dar acesso às recordações de caráter sexual e servindo, simultaneamente, para
embelezá-las e sublimá-las. É necessário embelezar a função violenta e agressiva do olho no
momento da castração, quando o Outro perde sua consistência.
Se no “estádio do espelho” a imagem reina qual rainha em seu trono, quem dá as
cartas é o significante. Ele é o mestre que criará a estrutura da imagem e irá mascarar o real
do olhar para cada indivíduo. A imagem torna-se, assim, estável, correspondendo a uma
crença na realidade do que se vê e se conhece. A ilusão da imagem faz crer na completude das
77
formas, na possibilidade de ter diante das vistas a apreensão completa de tudo o que há e é
nessa percepção que o sujeito espelha sua própria existência. O registro imaginário conjuga o
espelho e o olhar, incluindo o pulsional, o gozo do espetáculo. O espelho é, portanto, o que
vela a falta, puro espaço reflexivo em que não há distância entre o sujeito e o objeto, enquanto
que o quadro é construído com as tintas da linguagem, formando a fantasia. O quadro amplia
o espaço bidimensional, abrindo para o infinito situado no ponto de fuga que aponta para um
além da tela da fantasia. Se o espelho tem a função narcísica, o quadro da fantasia aponta para
o sujeito desejante.
O teatro trágico apresenta exatamente a possibilidade de desestabilizar o mundo da
razão, tão bem alicerçado na completude ilusória da imagem, porque retira no instante da
tragédia o sujeito dessa relação do estágio do espelho em que olhar e ser olhado estão sempre
juntos. Nesse estágio dual, o eu e o outro aparecem em uma relação puramente imaginária que
une a estrutura pulsional do desejo de ver e de ser visto. É essa imagem que mascara a falta
introduzida no falante pelo simbólico; sendo assim, o Outro aparece como inteiro, reinando
sobre as relações entre os indivíduos no palco do mundo. Daí a importância da arte teatral, ao
dar esse espaço de distanciamento entre o eu e o outro.
Tal qual a histérica em seus ataques, deixando ver a ‘Outra cena do inconsciente’, o
ato de Édipo desmascara a completude de seu reinado sobre o objeto que cai, apresentando a
falta desse significante primordial. Essa queda de um objeto que deixe o ser em sua falta é o
que a resistência neurótica tenta velar, ficando fixado na cena fantasmática do trauma, a um
gozo trágico que não consegue ultrapassar. Ao implicar-se na história pessoal construída
como uma ficção, o sujeito aproxima-se do cerne traumático de sua fantasia, sendo ela o
suporte do desejo inconsciente.
A peça trágica, portanto, desde seu início até o momento em que ele efetivamente
transforma em ato a castração simbólica do sujeito, furando seus olhos, remete a uma
sucessão de imagens. Uma imagem pode esconder outra imagem perdida que só através do
fluxo associativo se pode recuperar com a fantasia. O movimento da peça até a cena
catastrófica que se apresenta é uma seqüência de imagens em busca de outra coisa que não
está lá. As imagens da peça atuam, como Freud faz com as lembranças encobridoras, sendo o
oposto de um instante estático, de forma que a imagem em movimento apresenta a incerteza
do visível. O momento catártico, entretanto, surge no momento em que os olhos são
arrancados.
Freud evidencia essa relação entre a fantasia e o tempo, dizendo ser um fato muito
importante para a psicanálise. Uma impressão ocorrida no presente desperta desejos do sujeito
78
que fazem com que ele retroceda a lembranças do passado, criando uma situação referente ao
futuro que representa a realização do desejo (FREUD, 1908: p. 153).
O tempo estanca diante da cena que representa a estática fantasia fundamental do
sujeito. A fantasia é, pois, uma janela que vela o real, cria imagens e emoldura a realidade. Ao
perder seu lugar fixo e sua imagem garantida, o sujeito claudica diante de um mundo onde
imagem não pode representá-lo. O sujeito deverá, então, advir de seu desejo separar-se do
desejo do Outro, incorporando aquilo que falha na operação do Nome-do-Pai, o objeto “a”,
resto dessa operação. Algo cai na introdução da lei e o que cai é o objeto que não se tem mais
“É por isso que podemos reencontrá-lo por via regressiva sob a forma de identificação”
(LACAN, 1963: 127). O objeto “a” sustém a relação do sujeito com o que ele não é “O olho é
feito para não ver” (LACAN, 1961: p.183). E os olhos de Édipo de fato não viram a verdade
que estava estampada diante deles. Somente no instante máximo de sua dor, constata sua
inexorável perda. O olhar, então, comparece, guardando o real traumático oculto pela tela da
fantasia, a verdade da imagem encoberta pela visão.
É por essa razão existente entre o objeto “a” e a possibilidade de incorporação do pai
real, que o matema da $ ◊ 'a' possui, entre o sujeito barrado e o objeto perdido, a punção como
objeto cortante e pontiagudo, que fura o simbólico, deixando ver outra coisa, obrigando o
olho a se mover e deixar seu ponto de vista fixo. A punção grava algo no furo que se abre,
traçando uma escrita pela via do desejo. Lacan escreve ainda: d → $ ◊ a, onde punção pode
ser lida como “desejo de”. O desejo, segundo Lacan, apóia-se na fantasia, ou seja: é porque a
fantasia se constrói que podemos desejar.
A cena de Édipo, na qual arranca seus olhos, produz um desmascaramento da Outra
cena. Lacan isola o que é designado nesse ato “para isolar um desejo cuja essência é
mostrar-se como Outro, mas mostrando-se como outros assim se designa” (LACAN, 1962:
p.138). Nessa cena, o desejo é articulado objetivamente através do objeto “a”, causa de
desejo. É um desejo que retorna como ato. No momento da catástrofe, o sujeito surge
enquanto dividido pela linguagem nas hiâncias de sua própria fala. Nesse ato o personagem
endereça a nós em mostração o seu status de objeto “a”.
Édipo traz à luz a face oculta velada pela fantasia. Ele próprio se faz o representante da
queda do objeto “a”. Ocorre em cena a queda do objeto olhar, representado pelos olhos que
caem ao serem arrancados por Édipo. Nesse instante, o herói rasga a fantasia, provocando a
fenda, a hiância entre sujeito e objeto. Essa cena corresponde à cena catastrófica, reencenando
a catástrofe na qual Édipo se encontra.
O sujeito, no percurso trágico de uma análise, deve poder apreender-se como sujeito e
79
como objeto separado do Outro, tal como na cena emblemática em que Édipo se apresenta
como objeto. Ao representar-se como objeto “a”, o sujeito pode responsabilizar-se por sua
herança, sua Até, passando pelo percurso ético do encontro com seu desejo.
Dessa maneira, a fantasia pode ser construída, em análise, por estar endereçada ao
analista, posicionado no lugar do Outro do desejo, do objeto “a”. Portanto, a fantasia, em
análise, constitui a busca do sujeito pelo seu próprio desejo. O sujeito pretende encontrar no
Outro aquilo que lhe falta. É, pois, a fantasia que confronta o sujeito ao seu objeto agalmático
tomado pelo seu valor de significante, de forma a entronizar o sujeito na cadeia de
significações. É a isso que se chama de destino. Na medida em que o sujeito quer obter do
Outro o significante que lhe diga o que o Outro deseja dele, o Che Vuoi, “que queres de
mim?” é que constrói sua história, até que o Outro possa caia desse lugar de Objeto de amor.
O sujeito, ao passar pelo corte da castração em sua elaboração fantasística, pode
operar no mundo como sujeito de desejo. A operação da análise é, pois, levar ao
reconhecimento trágico de sua falta que abre o espaço para o sujeito desejante.
A arte trágica, desse modo, nos faz entender porque ela é usada por Freud como chave
para a compreensão do percurso analítico. Não se trata de uma concepção pessimista da vida,
pois permite transmitir uma verdade sobre a existência que aposta na passagem da felicidade
para o entusiasmo, por parte daqueles que puderam elaborar a verdade sobre sua própria
existência. Tornam-se, deste modo, sujeitos éticos, visto que passam a responsabilizar-se por
suas escolhas.
80
4.2 Édipo e o Saber
A visão trágica, apresentada por Édipo ao longo da peça, evidencia um mundo
marcado pela linguagem. A palavra torna-se sua principal inimiga, apresentando a amarga
experiência do não reconhecimento da verdade que o pré-existia. A mensagem trágica
transmitida, quando é compreendida, é de que as falas trocadas entre os homens apresentam a
incomunicabilidade. O universo é conflituoso e a visão do mundo problemática. A ironia
trágica apresenta esse jogo de forças contrárias na fala do herói, que é traído por suas próprias
palavras, em um jogo que causa uma tensão constante entre o saber e o não-saber. O herói
trágico é pego nesse contraponto o tempo inteiro, entre o saber e o não-saber e um saber sobre
o não-saber.
O percurso de uma análise permite ampliar as trocas discursivas entre a linguagem
consciente e a inconsciente. Tal qual o herói trágico, é na linguagem que se encontra a
revelação da verdade. A relação estabelecida em Édipo entre os dois discursos, consciente e
inconsciente, mostra que a linguagem inconsciente, aquela trazida pelos deuses, é oculta ao
sujeito na entrada em análise e, através da interpretação, vai se atando à linguagem
consciente.
Dessa maneira, o sujeito se depara com suas ações que atingem resultados opostos ao
que visava. A pergunta “Quem sou eu?” é respondida pela ambigüidade enigmática
escondida em Édipo. O estrangeiro de Corinto é o nativo de Tebas; o decifrador de enigmas é
um enigma que não pode decifrar; o justiceiro é um criminoso; o clarividente é um cego; o
salvador da cidade, sua perdição; o melhor dos mortais é o pior deles, objeto de horror para
seus semelhantes.
Tal mudança da situação em seu contrário mostra como a linguagem possui seu valor
de ambigüidade, como Freud constatou ao pesquisar as significações duplas antitéticas. Freud,
em seu texto “A significação antitética das palavras primitivas” (1910), afirma que os
intérpretes de sonhos da antiguidade parecem ter feito uso mais extenso da noção de que uma
coisa num sonho pode significar seu oposto. Essa singularidade dos sonhos foi entendida por
ele ao ler o trabalho do filólogo Karl Abel, publicado em 1884, onde obteve a informação
surpreendente que o comportamento do trabalho do sonho descreve exatamente o que ocorre
em algumas línguas antigas como a egípcia.
Na língua egípcia atual, única do mundo
primitivo que perdura, há um bom número de palavras com duas significações, uma das quais
é o oposto exato da outra. Uma só palavra pode ter significados opostos, “forte” e “fraco”,
“comandar” e “obedecer”, comportando conceitos contraditórios.
81
Suponhamos, se é que se pode imaginar um exemplo tão evidente de
absurdo, que em alemão a palavra ‘forte’ signifique ao mesmo tempo ‘forte’
e ‘fraco’, que em Berlim o substantivo ‘luz’ se use para significar ao mesmo
tempo ‘luz’ e ‘escuridão’, que um cidadão de Munique chame cerveja de
‘cerveja’, enquanto outro use a mesma palavra para falar de água: nisto é que
importaria o surpreendente costume usado regularmente pelos antigos
egípcios em sua linguagem. Como incriminar-se alguém que, incrédulo,
abane a cabeça? (FREUD, 1910: p. 142).
Freud aproveitou os argumentos de Abel para defender a idéia de que tal fato
lingüístico está relacionado com o que ocorre nos sonhos. No estágio ulterior da língua
egípcia, havia somente uma palavra para dar significado, como em “velho-jovem”, “longeperto”, “ligar-cortar”, “fora-dentro”...que, apesar de combinarem os extremos da diferença,
significam somente “jovem”, “perto”, “ligar” e “dentro”, respectivamente. O inconsciente,
segundo Freud constatou, também possui esse tipo de articulação. O texto de Freud expressa a
idéia de que, se sempre houvesse uma significação primeira para “luz”, não seríamos capazes
de distinguir a luz da escuridão e, conseqüentemente, não seríamos capazes de ter nem o
conceito de luz nem a palavra para ele, de forma que todo o conceito é, dessa maneira, o
gêmeo de seu contrário, pois pode ser concebido unicamente pela medida do seu contrário.
O homem só gradativamente aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a
pensar em um deles sem a comparação consciente com o outro. Dessa forma, a relatividade
essencial de todo conhecimento, pensamento ou consciência, não se pode mostrar a não ser na
linguagem. Se tudo que podemos conhecer é visto como transição de alguma outra coisa, esta
experiência deve ter dois lados; ou cada nome deve ter uma significação dupla, ou, então, para
cada significação deve haver dois nomes. (FREUD, 1910: p. 146).
Os sonhos, como Freud havia constatado em seu trabalho “A Interpretação dos
Sonhos” (1915), não possuem a categoria de contrários e das contradições. Os sonhos tomam
a liberdade de representar qualquer elemento por seu contrário de desejo. Não há uma maneira
de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por seu contrário
está presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo.
Se o inconsciente e a linguagem primitiva apresentam a falta de ambigüidades,
encontramos na trama de Édipo Rei exatamente o conflito psíquico que ocorre por uma
“incoerência”, evidenciada entre a razão e a verdade inconsciente que comanda desejos
ocultos ao pensamento.
82
O “não” parece não existir, no que se refere aos sonhos. Eles mostram uma
preferência particular para combinar os contrários numa unidade ou para
representá-los como uma e mesma coisa. Os sonhos tomam, além disso, a
liberdade de representar qualquer elemento, por seu contrário de desejo”
(FREUD, 1910: p. 141).
O entendimento sobre as palavras antitéticas em Freud faz Lacan reforçar que o mais
importante na tragédia de Édipo Rei, para a psicanálise, é o fato dela apresentar a passagem
do não-saber ao saber. Em seu primoroso texto “A direção do tratamento e os princípios de
seu poder” (1969/70), Lacan descreve o que vem a ser o desejo que percorre toda a análise
através da estrutura de linguagem própria do inconsciente. Lacan interroga o texto freudiano
“A interpretação dos sonhos”, para relacionar o conceito de desejo estabelecido por Freud ao
Real que deve emergir no processo transferencial. Freud, ao analisar os sonhos, encontrou a
via pela qual ocorre uma tentativa de realizar os desejos inconscientes. Essa relação entre
sonho e desejo foi considerada por Freud sua grande descoberta. Definiu o desejo
inconsciente pelo termo alemão Wunsch, utilizado para expressar um voto, uma aspiração sem
cunho sexual. O desejo do qual se quer falar é aquele que é recalcado no inconsciente e que
comporta um saber não sabido, um desejo enigmático. É o impulso de recuperar a perda da
primeira experiência de satisfação, uma experiência mítica, causa da entrada do sujeito na
linguagem.
Para Lacan, a esfinge sustenta o enigma que encarna por seu semidizer a questão da
verdade e o Édipo, a verdade sobre esse desejo enigmático. Quando ele responde ser “o
homem” a solução do enigma, apresenta a ambigüidade, por excluir a verdade do sujeito
Édipo. Esse, animado pelo seu desejo de saber a verdade, comanda sua busca e pouco a pouco
revela sua condição de objeto, caindo nas artimanhas da ambigüidade das suas próprias
palavras. Édipo é antitético, o rei do significante e, ao mesmo tempo, um objeto que não
representa nada no desejo do Outro. A pulsão escópica, portanto, não é uma pulsão como as
outras, porque ela arremata seu circuito: o sujeito torna-se objeto e advém o saber. “No final,
encontramos o duplo sentido de seu nome, Oidipus: junção de Oída (eu sei) e Poús (o pé), o
saber em conjunção com sua marca de exclusão, de rejeição do Outro” (QUINET, 2002: p.
265).
O desejo de saber é constitutivo do desejo do sujeito, mediatizado pelo objeto “a”, que
se encontra no fundamento do estádio do espelho. É no plano imaginário que há a intervenção
entre o eu e o outro, e é na busca do objeto de desejo demandado ao Outro que o eu pode
articular desejo e saber. É por meio do plano imaginário que ocorre uma articulação simbólica
e inconsciente, onde se vincula o desejo ao desejo do Outro. O desejo de saber, como todo
83
desejo se situa para além do registro da demanda e sua relação com o Outro é marcada pelo
endereçamento: “para o Outro”. É um “desejo ao Outro”. (QUINET, 2002: p. 266).
A psicanálise permite o deslizar do desejo de saber, onde o analista comparece como aquele
que "se oferece como ponto de mira para qualquer um atacado por esse desejo
particularmente problemático.” (LACAN, Escritos: p. 892). Desejo “problemático” devido
ao obstáculo estrutural ao saber, ou seja, não se quer saber o que se busca, a castração. Numa
análise, o obstáculo ao saber é expresso como horror de saber, versão do horror de castração
velado pela fantasia do sujeito, que sustenta o Outro como desejante. O efeito do recalque da
castração sobre o saber é a negação do saber e o horror da castração se desloca para o horror
do saber próprio do neurótico (QUINET, 2002: p. 267). O saber está no lugar da verdade:
saber que não há relação sexual que se vincula à verdade da castração (QUINET, 2002: p.
270), A falta-a-ser, remete a uma identificação com o falo, o significante da falta do objeto
primitivo.
Articulando a estrutura do desejo temos que: o desejo é aquilo que se manifesta no
intervalo da demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia
significante, traz à luz a falta-a-ser como um apelo de receber seu complemento do Outro, se
o Outro, lugar da fala, é também o lugar da falta. Assim, é demandado que o Outro preencha,
o que ele não tem, pois também nele o ser falta. Lacan considera “a falta-a-ser do sujeito
como o cerne da experiência, como o campo mesmo em que se exibe a paixão do neurótico”
(LACAN, Escritos: p. 619). Nesse sentido, a posição do analista é de não tamponar a verdade
do sujeito com seu saber. A condução da análise deve visar conduzir o paciente do plano da
demanda para alcançar um desejo não mais vinculado ao plano das identificações onde o
sujeito irá depara-se com a existência da falta no saber, por onde a castração é possível. Essa
abertura para a falta é que permite a construção de novos saberes. Lacan explica essa
possibilidade de ocupar o lugar de analista por onde o ser do desejo pode então, unir-se ao ser
do saber para daí renascer em uma união em uma banda, constituída por uma única borda na
qual se inscreve uma única falta, a que sustenta o agalma. (LACAN, Proposição de 9 de
outubro de 1967, p. 25-6).
Sendo assim, o que o sujeito vem procurar em análise é uma demanda de amor que o
retire do sofrimento de encontrar-se na posição de objeto de gozo do Outro. Ao não aceitar
esse lugar daquele que poderia dar o que falta o analista frustra o sujeito em seu pedido não
fazendo de seu analisante objeto de seu gozo fálico o que o manteria no lugar de Suposto
Saber. Estamos falando de amor de transferência, referimo-nos ao fato que “amar é dar o que
não se tem” (LACAN, 1960-1961: p 41).
84
Ao não responder a demanda por saber a falta que comporta em si, e ocupara o lugar
agalmático de causa do desejo, o analista permite que ocorra um deslizamento metonímico,
para surgirem os significantes com os quais o desejo possa articular-se. A partir do desejo do
Outro, no caso o analista, abre-se a dimensão do desejo do sujeito.
O desejo do analista é, pois, esse lugar sem sentido, fora da cadeia significante, no ato
analítico. E é desse lugar, onde sabe não poder produzir o saber demandado, fazendo o
analisante passar da demanda à pulsão. Validando o Real em jogo na demanda, faz o sujeito
passar do jugo dos significantes da demanda para o âmbito pulsional. Como diz Lacan: “o
analista tem muita consciência de que não pode saber o que faz em psicanálise. Há uma
parte dessa ação que lhe resta, a si mesmo, velada” (LACAN (1959-1960) “A ética da
psicanálise” p.350). Isso porque o desejo do analista não é equivalente à lei, não é
edipianamente constituído, situando-se em um além do Édipo, para-além da lei. Ele é
articulado à “significação” de um amor sem limites, pois está fora dos limites da lei, somente
onde ele pode viver atravessado pelo sentimento que excede a razão. Como falta, o desejo do
analista equivale ao 'não-saber' do inconsciente definido como rede de saber. Essa relação do
'não saber' com o saber leva ao entusiasmo que faz verter um saber alegre e sempre desejante.
Um fazer criativo, produtor de centelhas poéticas, é a prática analítica. Não é por outra razão
que Freud em carta a Pfister, em 5 de junho de 1910, diz:
É preciso não ter escrúpulos, expor-se, jogar-se às feras, trair-se,
comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro das despesas
domésticas e queima os móveis para aquecer o modelo. (FREUD,
Correspondance avec le Pasteur Pfister 1909-1939).
Esse entusiasmo do analista que Freud compara ao trabalho do artista é o que leva o
analisante, rumo a determinados pontos de saber sobre sua “origem”. Isso equivale a
considerar que, na experiência analítica, o 'não querer saber nada disso' que é próprio da
resistência na neurose, se dialetiza como o desejo de saber proveniente do encontro com o
objeto da falta que é encarnado pelo analista.
Aceitando a falta no Outro, o sujeito pode mudar de objeto, isto sem recalque,
marcada pela articulação significante. É poder dar outro destino à pulsão saindo de uma via
sintomática e adentrando o espaço da sublimação. O desejo é que suporta essa metonímia, ou
seja, a demanda para além do que ela formula. Acrescentando as palavras de Lacan:
85
O que o analista tem a dar, contrariamente ao parceiro do amor, é o que a
mais linda noiva do mundo não pode ultrapassar, ou seja, o que ele tem. E o
que ele tem nada mais é do que seu desejo, como o analisado, com a
diferença de que é um desejo prevenido” (LACAN, 1959-1960, p.360).
É nesta situação de objeto causa de desejo, por ser barrado pela linguagem, que o
analista pode sustentar seu lugar, pois possui um saber que é desejante. Lacan ao falar que o
analisante vela um saber inconsciente está expondo de maneira contumaz o conflito travado
por Édipo.
Se Freud reconhece sua descoberta e seu domínio na tragédia do Édipo não é
porque Édipo matou seu pai, nem porque ele quer dormir com sua mãe. ...
Muitos outros heróis além do Édipo são o lugar dessa conjunção
fundamental. O motivo de Freud encontrar sua figura fundamental na
tragédia do Édipo é o ele não sabia, que tinha matado seu pai e dormia com
sua mãe (LACAN, 11/jan/1961).
Ao deparar-se com a oposição em suas ações, Édipo passa a conhecer ‘a relatividade
essencial de todo o conhecimento’. A Até, a calamidade fundamental gira em torno do destino
do herói trágico que possui um não-saber sobre seu destino e sua origem e no auto de sua
onipotência não quis saber sobre sua ignorância.
86
4.3 Édipo diante de sua Catástrofe
Voltando ao enredo da peça, vejamos as conseqüências e os acontecimentos que se
movem diante das incertezas que se abrem. Jocasta, desesperada com a revelação dos fatos,
lança-se como louca ao leito nupicial, sob o qual havia dado a luz; com as mãos, ela arranca
seus cabelos, fecha as portas e, gritando o nome de Laio e de Édipo, enforca-se. Édipo corre,
mas também ele não pôde presenciar a morte da rainha. O criado descreve esta cena passada
atrás das portas do grande palácio tebano.
[...] Os nossos olhos não se despregavam dele correndo como um louco em
todos os sentidos, pedindo em altos brados que um de nós lhe desse logo um
punhal, gritando-nos que lhe disséssemos onde se achava sua esposa...Em
seu furor não sei que deus fê-lo encontrá-la. Então, depois de dar um grito
horripilante, como se alguém o conduzisse ele atirou-se de encontro à dupla
porta: fez girar os gonzos, e se precipitou no interior da alcova. Pudemos
ver, pendente de uma corda, a esposa; o laço retorcido ainda a estrangulava.
Ao contemplar o quadro, entre urros horrorosos o desditoso rei desfez
depressa o laço que a suspendia; a infeliz caiu por terra. Vimos coisas
terríveis. De repente o rei tirou das roupas dela uns broches de ouro que as
adornavam, segurou-os firmemente e sem vacilação furou os próprios olhos,
gritando que eles não seriam testemunhas nem de seus infortúnios nem de
seus pecados “nas sombras que viverei de agora em diante, dizia ele, “já não
reconhecereis aqueles que não quero mais reconhecer!” Vociferando
alucinado, ainda erguia as pálpebras e desferia novos golpes. O sangue que
descia em jatos de seus olhos molhava toda a sua face, até a barba; não eram
simples gotas, mas uma torrente, sanguinolenta chuva em jorros incessantes
[...] (SÓFOCLES, 2006, p. 85-86).
Nesse instante, a imagem de Jocasta enforcando-se é evocada diante dos olhos do
espectador. Édipo, então, se lamenta e exclama “ah, tudo está claro” e, em seguida, arranca
seus olhos, operando uma castração real e fazendo cair o objeto de sua contemplação, seus
olhos, que pendem de suas órbitas. Esse é o momento em que a cena parece congelar. A
platéia é imobilizada diante do ato que paralisa o tempo, “o espaço implica o tempo e o tempo
é justamente nada mais que uma sucessão de instantes de contração [...] o tempo é talvez a
eternidade do espaço” (LACAN, 11-12-73).
A hybris, o excesso cometido pelo herói, possui um sentido de jactância, de orgulho. O
reconhecimento trágico é chamado, por Aristóteles, de anagnóises, que significa a passagem
da ignorância ao conhecimento, ou seja, é quando Édipo cai de sua arrogância e reconhece-se
como aquele que ignora a verdade sobre si mesmo que se dá a revelação da verdade. Édipo sai
de seu status fálico como rei tebano e torna-se um ‘nada’, presentificado no quadro da
fantasia. A peripécia, pela qual Édipo Rei passa ao longo da peça, é transformar-se de
87
justiceiro e rei salvador em um ser abominável. (VERNANT, 2005, p 22). É nesse mesmo
instante em que há o reconhecimento trágico de que havia um erro, uma hamartia a ser
revelada. Os momentos de toda a tragédia unificam-se em um único tempo.
O tempo de reconhecer é o tempo que Édipo precisa para perceber seu erro e seu
orgulho. Nessa peça tão curta, com tão poucos versos gastos dramaticamente por Édipo, ele se
faz ver como um mortal amaldiçoado. Essa cena em que ele arranca os olhos ocorre atrás da
grande porta do palácio, escondida da visão do espectador, representando aquilo que está
aquém do simbólico. O que não é visto do espetáculo corresponde àquilo que deve
permanecer recalcado ou realmente no domínio do real e que só pode vir transfigurado e,
portanto, via simbólico.
Édipo, ao recusar-se a continuar a ver, realiza um gesto que refere-se à relação entre
o olho e o olhar em sua divisão, ao hiato “no qual se manifesta à pulsão ao nível do campo
escópico” (LACAN, 1964: p.85). Ele surge em cena com buracos em sua face, atravessado por
sua dor irremediável. A imagem diante do espectador torna-se sem garantias, pois o olhar
torna-se oscilante e não mais fixo diante do objeto. Quando Édipo vê o que fez, no instante
seguinte, seus olhos inchados com seu humor vítreo são arrancados de suas órbitas. Vê seus
olhos como um monte confuso de dejetos, uma vez que foram arrancados de suas órbitas. É
evidente que ele perdeu a visão, mas mesmo assim não deixa de vê-los como objeto-causa,
desvelado da concupiscência derradeira, não culpada, mas fora dos limites, a de ter querido
saber. Lacan, então, pergunta onde está o momento de angústia. E constata não ser pelo fato
de ter se mutilado, mas sim pela visão impossível que o ameaça, a de seus olhos no chão
(LACAN, 1963: p. 180). Ele perde as vistas, mas não deixa de ver o que fez. Freud, na
Interpretação dos Sonhos, cita a parte da peça em que o Coro diz que o herói amaldiçoado
mergulha em profunda angústia.
[...] Fixai vossos olhos em Édipo,
Que resolveu o sombrio enigma, o mais nobre campeão e o mais sábio.
Como um astro, sua invejada fortuna alçou-se reluzente por toda a amplidão:
Agora ele mergulha em mares de angústia, engolfado
por violenta onda [...] (FREUD, 1900: p. 279).
Édipo não é mais culpado, mas está fora dos limites, é “elucidado”, posto a
“descoberto”, oferecido aos olhos de todos como espetáculo de horror. Leva o espectador ao
encontro de seu tempo a-histórico, local onde o olhar preexiste à visão. O tempo lógico
marcado nesse ato de Édipo conjuga a superfície do olhar ao tempo de ver, de modo a
presentificar o olhar como objeto causa de desejo em sua perspectiva pictórica. Édipo
88
representa a saída do sujeito do drama contido na superfície representacional do espelho, do
engodo de sua identificação alienante ao Outro. Esse é o momento em que o sujeito vê sua
incompletude, deixando cair o objeto que Édipo representa em sua passagem da condição de
rei do significante a resto dessa operação. Édipo é a representação do objeto “a”,
apresentando-se como aquilo que cai por meio do objeto escópico que arranca de seu próprio
corpo. Os vestígios da função do olho são homólogos à função de “a” e, em sua queda, o
olho faz emergir o olhar como objeto “a”.
O olho caído simboliza a castração, a falta que deixa o sujeito na ignorância daquilo
que ele não vê. “O objeto 'a' é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como
órgão. Isso vale como símbolo da falta, quer dizer, do falo, não como tal, mas como fazendo
falta” (LACAN, 1964, p. 101). Portanto, ao falar de pulsão escópica, Lacan indaga o campo
do desejo.
No nível escópico, não estamos mais no nível do pedido, mas do desejo, do
desejo do Outro...o sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se dá
para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode funcionar como
objeto 'a', quer dizer, no nível da falta (-φ) (Ibid, p.102).
Esse momento, portanto, permite a revelação trágica, a transmissão trágica que leva a
uma comunicação do espetáculo com o saber inconsciente, naquilo que se opera entre o saber
e a castração. Por isso, o ato trágico leva necessariamente ao êxtase catártico do espectador,
como diz o próprio Édipo: “Vereis um espetáculo que excitaria piedade até num inimigo sem
entranhas!” (SÓFOCLES, 2006, p. 87: 1535). Essa cena é a encenação catastrófica que a
fantasia resgata, ou seja, a queda do objeto que cai de seu corpo, rasgando a fantasia na
hiância entre o sujeito e o objeto. É no ponto máximo da angústia de castração que os
Tebanos desviam seus olhos de Édipo, que os faz contemplar de frente esse mal “terrível de
ver”. A luz que os deuses projetaram sobre Édipo era luminosa demais para que um olho
mortal pudesse fixá-la e é por isso que Édipo é expulso desse mundo, feito para a claridade do
sol, do olho humano.
Édipo expressa o profundo desamparo sentido pelo sujeito, que necessita do Outro
para dizer sobre seu desejo. O neurótico, ao ocupar o lugar fálico para o Outro e perceber a
impossibilidade de seu intento, sente-se tal qual Édipo, um exilado do Outro, expulso e, por
isso, um apátrida. Essa sensação de desamparo que acompanha Édipo ao longo da peça é
sentida também pelos tebanos, ao terem visto nele o rei salvador que vinha em suplência ao
rei morto. Sua queda do lugar de exceção leva a um profundo desamparo social e confronta o
89
espectador com seu próprio exílio. Sem controle dos acontecimentos, todos se sentem,
igualmente ao herói, sem lugar, sem nome. O nome totêmico representado por Édipo
desmancha-se em seu exílio, causando o confronto com a dor da extinção da raça e do próprio
indivíduo. Somente a ultrapassagem desse momento em uma análise permite com que o
sujeito saia de seu estado de exilado e possa aceitar a perda como o caminho para sua
transformação e mudança.
Édipo encontra-se exilado do desejo e, em Colono, torna-se enigma, encarnação da
palavra última a ser decifrada. Édipo representa “o sujeito nadificado – nadificado numa
forma que é, falando propriamente, a encarnação imajada do menos - fi (-φ) da castração, a
qual centra para nós toda a organização dos desejos através do quadro das pulsões
fundamentais” (LACAN, 1964, p. 88).
Édipo passa para a zona compreendida entre duas mortes, representando, nesse
momento em que profere “me funai”, “antes não ter nascido”, o tragikós, o bode expiatório,
o representante do pai da horda que, ao ser morto, causa grande lamento aos seus filhos. Só
que Édipo, embora seja seu representante, é imputado pelo Coro de ter cometido grande
insolência aos deuses, uma falta trágica, correspondendo a essa expectativa do Coro. O espaço
compreendido entre-duas-mortes, a morte simbólica e a morte real, é aquele que não pode ser
simbolizado, o vazio da morte. O personagem torna-se, então, a encarnação do lugar
incognoscível, colocando a premissa lógica de que todo homem é mortal, isto é, de que nãosabe sobre a morte.
Dessa forma, a psicanálise considera o sujeito como aquele que ao tomar posse de sua
existência, no momento em que aceita sua falta-a-ser, se encontra nesse entre-dois, entre a
morte simbólica e a morte física, no espaço em que pode apropriar-se de seu desejo. O sujeito
se manifesta como sendo o resíduo da falta de saber e, no decurso da análise, esta falta de
saber opera em uma conversão ética radical, introduzindo o sujeito na ordem do desejo. O
analisante, em seu percurso analítico, perde sua ilusão de felicidade plena a ser garantida pelo
Outro, aceitando sua castração. Édipo, ao riscar seu ser, consente na maldição, que é
verdadeira substância do ser. A angústia, nos aponta Lacan, é um termo intermediário entre o
gozo e o desejo, uma vez que é depois de superada a angústia e fundamentado no tempo da
angústia, que o desejo se constitui (LACAN, 1963, p. 193).
90
4.4 Não-Saber que Leva à Criação
Lacan diz que a pulsão de morte, por estar situada no âmbito histórico, funciona de
acordo com a natureza. Portanto, Lacan não considera a questão da pulsão como destinada à
destruição. A pulsão de morte deve estar para além da tendência ao retorno ao inanimado,
fazendo surgir à vontade de Outra-coisa, para além do significante, de vontade de criação a
partir do nada, vontade de recomeçar.
Como em Sade, a noção da pulsão de morte é uma sublimação criacionista,
ligada a esse elemento estrutural que faz com que, desde que lidamos com o
que quer que seja no mundo que se apresenta sob a forma da cadeia
significante, haja a uma certa altura, mas certamente fora do mundo da
natureza, o para-além dessa cadeia, o “ex nihilo” sobre o qual ela se funda e
se articula como tal (QUINET 2006, p. 260).
É neste momento de criação que o homem experimenta o máximo de suas faculdades
simbólicas. Ou seja, a condição de possibilidade para a criação ex-nihilo, criação a partir do
nada, daquilo que está fora da representação no sentido do Simbólico e do Imaginário. A
argumentação de Lacan continua, assim, pautada nos princípios freudianos do “Além do
princípio do prazer” (1920), onde a Natureza é substituída por um sujeito, sendo ele, de
acordo com Freud, aquele que subsiste à Natureza, ou seja, que transpõe esse limite do não
saber, “ponto de ignorância limite”. Por esta razão, pode-se relacionar Sade a Freud, pois o
conceito de sublimação é desenvolvido a partir do instinto de morte, na teoria freudiana. E
essa sublimação é criacionista, pois é a partir da criação que se desenvolve o que é histórico
na pulsão.
Naquilo que lhes digo neste instante não é dessa morte que se trata. Trata-se
da segunda morte, a que se pode ainda visar depois que a morte está
efetuada, como lhes mostrei concretamente no texto de Sade.
Afinal, a tradição humana jamais cessou de conservar presente essa segunda
morte, vendo aí o término dos sofrimentos, assim como ela nunca cessou de
imaginar um segundo sofrimento, sofrimento além da morte indefinidamente
sustentado na impossibilidade de transpor o limite da segunda morte. E é
isso que a tradição dos infernos sempre permaneceu tão viva, e ainda é
presente em Sade, com a idéia de fazer perpetuar os sofrimentos infligidos à
vítima. (...) Qualquer que seja portanto o alcance dessa imaginação
metapsicológica de Freud que é o instinto de morte, tê-lo forjado seja ou não
fundado, a questão, pelo simples fato de ter sido colocada, se articula sob a
seguinte forma – como o homem, isto é, um vivente, pode aceder ao
conhecimento desse instinto de morte, de sua própria relação com a morte?
Resposta- pela virtude do significante e sob a forma radical. É no
significante, e uma vez que o sujeito articula uma cadeia significante que ele
sente de perto, que ele pode faltar à cadeia do que ele é (Ibid).
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A afirmação de Lacan de que “Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte"
(LACAN, 1966, p. 848), refere-se ao fato de que é a partir da morte do significante que a
pulsão passa a demandar satisfação, só assim o desejo pode existir. Este é o eixo do
entrelaçamento lacaniano entre estética e ética. Na morte e aniquilação, o ser se une ao Real
indizível que entrelaça Eros e Thânatos, faces complementares que permitem a contradição
entre o amor e a destruição, entre a beleza e a ética, movendo o desejo.
92
5. CONCLUSÃO
Freud percebeu o mito de Édipo, trabalhado na obra de Sófocles, como expressão das
fantasias inconscientes, alcançando o seu núcleo trágico por ser a expressão poética das
primitivas pulsões humanas e dos mais profundos desejos da civilização. A arte e a análise se
encontram na possibilidade de transformar as fantasias em obra de ficção, ao dar expressão
aos desejos, isso porque a cena trágica, da mesma forma que a “Outra cena”, é representada
pela linguagem no campo pulsional, que se articula ao redor do centro de desconhecimento
do ser.
Os sonhos representam em imagens os traços mnésicos do objeto perdido no “núcleo
do sonho” que não pode ser atingido e a fantasia constrói, através dos representantes
lingüísticos, um espaço de representação desse “núcleo do sonho” que fica fora da
possibilidade de ser atingido diretamente. Assim, o sujeito se constitui nos laços sociais,
tomando os pais como seus representantes psíquicos em sua relação com a linguagem
marcada por uma falta. Os pais irão compor o complexo de relações através dos quais o
sujeito poderá criar seu enredo fantasmático, no qual comparece a falta de um significante
que marca a entrada no simbólico. Entrada traumática que implica em uma perda, é em torno
dela que toda a trama trágica se organiza.
Édipo é o representante desse significante que, transformado em herói pelo poeta
trágico, traz à cena o ato trágico que fura a ilusão imaginária de completude alcançada
através do Outro. Ao estar identificado ao desejo do Outro, o sujeito aferra-se em sua visão
especular que o aliena e o angustia, impedindo-o de ultrapassar os conflitos edípicos. É por
meio da dialética do desejo na qual o objeto pode faltar que o sujeito poderá reconhecer sua
falta-a-ser e assim, libertar-se dessa identificação especular.
A representação promove o espaço em que o sujeito pode agir sobre o objeto “a” que
vem ocupar o lugar do objeto perdido nessa relação. Édipo apresenta-se como esse objeto
“a”, estruturando a ordem simbólica, de forma a indicar que o sujeito pode determinar o lugar
que ocupa no desejo do Outro. Édipo vem ocupar o lugar trágico do sujeito do inconsciente,
apresentando o sujeito em sua divisão.
A tragédia é a representação de uma ação nobre levada até seu término e que
transmite seu pathos, a paixão do significante primevo. Dessa forma, o destino do herói
reproduz a identificação ao pai não castrado de Totem e Tabu, sendo necessário que a
tragédia passe da sorte ao infortúnio. É, por repetir essa experiência mítica do inconsciente,
que o espectador passa pelo efeito catártico que transforma o desprazer em prazer.
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Identificado ao herói, o espectador revive a cena inconsciente não tendo, entretanto, que
passar pelo mesmo destino fatídigo. O herói representa todos os homens diante de sua
divisão, de seu saber inconsciente, e, por isso, tem que sofrer a marca deixada pelo crime.
Assim, a pulsão de morte, vem exigir satisfação em seu gozo pulsional, de forma que a arte
trágica transforma os desejos impossíveis de serem suportados em estado de êxtase. O herói
reedita o crime do assassinato do pai mítico, momento que estrutura o sujeito no simbólico,
inscrevendo-o no Nome-do-Pai.
A tragédia, portanto, evidencia o nível de contradição dos sujeitos diante de suas
escolhas, conflito diante de seus desejos. Isso porque o pai, ao barrar o desejo ao objeto
materno, leva ao deslizamento da cadeia significante e a possibilidade do sujeito vir a tornarse desejante. A não aceitação do corte implica numa impossibilidade do sujeito posicionar-se
diante da diferença sexual, ficando preso em sua neurose, ao momento traumático do
inconsciente.
A análise, portanto, visa levar o sujeito a reencontrar o pai mítico através da função
simbólica, de forma a relacionar a lei e o crime. Édipo é a metáfora sintomática da falta do
representante paterno, possuindo um corpo cambaleante que traz a herança do gozo e que o
coloca como o “senhor dos significantes”. Ele encarna o enigma do homem em relação ao
seu próprio destino, por representar a marca do gozo mortífero do Outro. O nome próprio é o
código que fixa as significações e as transforma em outras significações, por acumular mais
de um sentido, e Édipo, ao não receber um nome, fica alienado ao gozo que marcou seu
nascimento.
Sua trajetória marca a importância simbólica de voltar o olhar para si mesmo e
encontrar o sentido oculto nas marcas deixadas pelos significantes do Outro. Édipo possui, no
apelido que recebe, o sentido último da interpretação enigmática da Esfinge. Ele é o filho do
acaso, a representação do impossível de ser dito e a encarnação da impossibilidade lógica
existente na “relação de parentesco”, porque a interdição do pai é elevada ao impossível.
No Complexo de Édipo, o sujeito passa pelo conflito em aceitar a castração a partir
da identificação do sujeito ao pai e no declínio do Édipo incorporar o pai real. As palavras,
por seu estatuto de materialidade, permitem que através do simbólico seja possível intervir no
real do pai, levando a introjeção da lei e fazendo o sujeito olhar em direção aos significantes
que o regem e que deixam suas marcas nos sintomas.
Édipo, por não possuir a interdição, segue gozando e encarnando a falha da
comunicação, que torna a linguagem seja sempre “coxa” como ele. A palavra dita em análise
comparece com os “defeitos” que trazem à tona o sujeito do inconsciente nos atos que o
94
revelam. A tyché, que foge à lógica, comparece, fazendo cair o véu opaco da verdade
inconsciente. Essa verdade é revelada pelo elemento trágico que se encontra nos traços da
letra, de forma que o real torna-se signo e insiste em ganhar sentido.
É por isso que as fantasias, ao serem produzidas pela narrativa do analisante,
percorrem as ruínas sombrias dos desejos inconscientes, levando-o a querer saber sobre sua
herança, o que o põe em ação através de sua fala. Édipo, ao representar o sujeito do
significante, apresenta a possibilidade da análise levar o sujeito a fazer laço com o
impossível, com o resto pulsional exigido pela linguagem. Isso porque comete o erro lógico,
antecipando o ato que gera a certeza. Ele está fora da lei paterna e realiza o ato de casar-se
com sua mãe sem saber e, assim, ocupa o lugar do pai morto, retornando ao corpo materno e
unindo-se ao Outro. Une-se ao significante que falta à cadeia, pois não há significante que
possa falar da mulher, por ser primordialmente reprimido. Édipo torna-se imaginariamente
completo reinando sobre o significante.
Por essa razão, a peste retorna sobre Tebas, exigindo explicação sobre o assassinato
do pai. Os movimentos da peça permitem o encontro com a questão “que sou eu no desejo do
Outro?”. A constatação de sua perda ocorre no final da peça, ao ver-se como nada. Édipo está
na hiância que marca o sujeito dividido que possui um não-saber sobre a diferença sexual.
Sendo assim, a peça trágica mimetiza a presença estética de um ser ausente. Por sua
montagem imaginária traz o enigma do homem sobre o destino que o rege, o trágico acende a
consciência.
O momento da queda do herói de sua arrogância traz de volta a fantasia do sujeito
como objeto caído do amor do Outro, como objeto “a” na perda de sua completude
imaginária. Ao se cegar, o tempo se contrai e todo o mal se manifesta. O olho cai, deixando
ver o hiato no qual a pulsão se presentifica como objeto pulsional que se desprende do corpo,
simbolizando a castração. A revelação trágica, transmitida na comunicação do espetáculo,
revela o saber inconsciente naquilo que se opera entre o saber e a castração. O olhar,
portanto, não depende da visão, mas, pelo contrário, prescinde desta para avançar em uma
nova dimensão na qual o cego apreende o tempo em sua simultaneidade.
Do desejo de ver e de ser visto, abre-se a via na qual o sujeito pode ver-se sendo visto,
implicando-se na “Outra cena” e atravessando-a. Assim, o olhar opera numa certa queda de
desejo, porque o desejo inconsciente, ao ser desejo do desejo do Outro, deixa de comparecer
como desejo no Outro. Sendo assim, o sujeito, ao separar-se do Outro que o aliena em seu
desejo, faz surgir uma nova presença no mundo, encontrando sua imagem para além da
imagem da qual foi feito. Desaparecendo no quadro da fantasia, faz semblante de objeto “a”,
95
sendo tomado pelo olhar impossível conjugando a visibilidade com a invisibilidade. O sujeito
re-significa a falha do Nome-do-Pai, transformando o significante da falta em criação, de
forma que a pulsão de morte torna-se vontade para além do significante, de criação a partir
do nada, na expressão máxima das faculdades simbólicas. O gozo perversamente possível
permite, assim, que o desejo se manifeste em entusiasmo.
96
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A tragédia e o percurso analítico