NÃO INCIDÊNCIA DO ISS ÀS ASSOCIAÇÕES CIVIS SEM
FINS LUCRATIVOS. RESTRIÇÃO INFRACONSTITUCIONAL
DE COMPETÊNCIA IMPOSITIVA?
1.
Introdução.
O Imposto Sobre Serviços – ISS é tributo que vem merecendo cada vez mais e maiores atenções
da comunidade jurídica, pelas controvérsias doutrinárias e práticas que enseja o seu estudo. Neste artigo
pretenderemos de alguma forma contribuir para a elucidação de uma das questões que atormentam
aqueles que se debruçam sobre essa exação, questão essa de formidável repercussão prática especialmente
para determinadas associações civis sem fins lucrativos: trata-se da averiguação dos contornos do critério
pessoal (sujeito passivo) do ISS delimitados nos âmbitos constitucional e legal.
A Constituição da República – CR, em seu artigo 156, inciso III, reserva aos Municípios da
Federação competência para a instituição de imposto sobre serviços de qualquer natureza, excetuados
aqueles afeitos à moldura do ICMS estadual. Previdente, nossa Carta Magna delega à lei complementar a
missão de implementar, com traços mais firmes, os desígnios de seu artigo 146, quais sejam, os de (i)
dispor sobre conflitos de competência, (ii) regular as limitações ao poder de tributar, e (iii) editar normas
gerais em matéria tributária.
Relativamente ao ISS, desempenha essas tarefas o Decreto-Lei nº 406/68, editado sob a égide da
antiga Carta de 1967, e recepcionado pela atual ordem constitucional com a dignidade de lei
complementar, justamente em razão do artigo 146 acima referido.
Em seu artigo 8º, dispõe o DL nº 406/68 que o ISS “...tem por fato gerador a prestação, por
empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista
anexa”. Embora dedicando o artigo à fixação da materialidade apta a habitar a hipótese de incidência do
tributo, o legislador aí também principiou a delinear o aspecto pessoal do consequente normativo, tarefa
que iria concluir adiante no artigo 10.
Presumivelmente consciente do que estava a fazer, utilizou-se o legislador dos termos empresa e
profissional autônomo, ao invés dos respectivos “genéricos” pessoa jurídica e pessoa física. Com isso
posicionou para além dos limites da incidência do tributo aquelas pessoas ou associações que prestam
serviços sem intuito de ganho – conforme ver-se-á, ainda que só de passo, logo mais –, mesmo quando
sob forma onerosa para seus tomadores.
Talvez induzidas pela dicção do legislador complementar, muitas leis municipais instituidoras do
ISS valeram-se das mesmas expressões, do que é exemplo a Lei nº 691/84 do Município do Rio de
Janeiro1. Outros municípios, contudo, “desobedientes” aos comandos do DL nº 406/68, trataram de
alargar o rol de sujeitos passivos possíveis do ISS, mediante uso dos termos pessoa jurídica e pessoa
física, como o fez, por exemplo, o Município de São Paulo2.
Afinal, ao assentar no polo passivo do ISS somente as empresas e profissionais autônomos, o que,
de um ponto de vista técnico-jurídico, está a fazer o DL nº 406/68? Consignando uma imunidade?
Regulando uma limitação ao poder de tributar? Instituindo uma isenção (heterônima)? Editando
validamente uma norma geral? Editando invalidamente uma norma geral? Essas as indagações cujas
respostas, queremos crer, nos guiarão à elucidação do problema.
A questão que se coloca torna-se exclusivamente acadêmica para aquelas associações sem fins
lucrativos titulares de imunidade constitucional, dedicadas, a teor do artigo 150, VI, c da CR, a fins
educativos e assistenciais. Essas, evidentemente, estarão a salvo do ISS (como de resto de todo e qualquer
imposto) qualquer que seja a exegese conferida ao DL nº 406/68. Da mesma forma, inexistirá
desdobramento prático da controvérsia aqui posta no âmbito dos Municípios que, tal como o do Rio de
1
Eis o texto legal: “Art. 8º. O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza tem como fato gerador a
prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviços de:...
(conforme atualização pela Lei Municipal nº 1.194/87).
2
Confira-se o dispositivo: “Art. 1º. Constitui fato gerador do Imposto Sobre Serviços de qualquer Natureza a
prestação, por pessoa física ou jurídica, com ou sem estabelecimento fixo, de serviços não compreendidos na
competência da União ou dos Estados e, especificamente, a prestação de serviço constante da seguinte
redação...”.
2
Janeiro, repetiram o texto do Decreto-Lei, pois nestes casos teremos, quando menos, uma isenção (ou não
incidência pura e simples, conforme a corrente doutrinária) conferida pelo próprio legislador municipal.
Agora, para aquelas associações sem fins lucrativos destinadas a atividades não prestigiadas pela
imunidade constitucional (entidades científicas, culturais, desportivas etc.)3, principalmente se
estabelecidas em Municípios que se desviaram da dicção do DL nº 406/68, aí, então, a investigação que
nos desafia reveste-se de enorme utilidade prática. Pois importará saber qual texto normativo deverá
prevalecer, se o da lei municipal que prescreve a incidência, ou se o do DL nº 406/68, desonerador.
2.
Premissa do Trabalho.
Antes de adentrar o problema, impende consignar que tomaremos como simples premissa, e não
como um objeto central de nossa atenção, que o conceito de empresa afigura-se como organização de
fatores da produção para um escopo lucrativo ao empresário. Vale dizer, empresa é instituto que
efetivamente não se ajusta às atividades corporativas desenvolvidas sem a intenção de percepção de lucro
para os sócios ou associados.
Lucro, enfim, é ganho percebido pelo empresário (sujeito de direito), que desenvolve a atividade
empresarial (objeto de direito). Se esta gera ganhos mas que não se revertem ao empresário,
permanecendo na própria empresa, então não teremos lucro, mas mero superávit. Essa é a lição
majoritária propagada por nossos melhores comercialistas, de que é exemplo Carvalho de Mendonça,
citado por Rubens Requião, para quem a empresa é “...a organização técnico econômica que se propõe a
produzir a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho e capital, bens ou serviços destinados à
troca (venda), com esperança de realização de lucros, correndo risco por conta do empresário...”4.
A idéia de empresa como ente abstrato voltado à percepção de proveito econômico pelo
profissional que a encampa parece agora ainda mais consolidada pelo Novo Código Civil, que abandonou
a surrada teoria dos atos de comércio e assumiu chamada a teoria da empresa. É o que dispõe o seu
artigo 966:
“Considera-se empresário quem exerce
profissionalmente atividade econômica
organizada para a produção ou a circulação de bens e de serviços”.
3
4
Todas aquelas, aliás, que desfrutam de isenção do IRPJ a teor do artigo 15 da Lei nº 9.532/97.
Curso de Direito Comercial. Ed. Saraiva. São Paulo. 1998. 2º vol. p.56.
3
Verdade que a corrente aqui exposta (e acolhida) não goza de unanimidade. Marçal Justen Filho,
forte nos ensinamentos do comercialista italiano Francesco Galgano, defende que empresária é qualquer
atividade que abstrata e potencialmente pode gerar ganhos, ainda que estes não se venham a reverter em
favor do empresário. Confira-se:
“O conceito de empresa não se vincula essencialmente ao intuito lucrativo concreto do
sujeito, mas ao desempenho de modo profissional de uma atividade economicamente
organizada.
...
O fundamental reside na compatibilidade entre a atividade desempenhada e a obtenção de
lucro. Há empresa quando a atividade é teoricamente compatível com o lucro, sendo
irrelevante a ausência ou a presença efetiva”5.
Desde esse ponto de vista, se uma entidade científica sem fins lucrativos engendrasse alguma
atividade que, em potência, é passível de proporcionar ganhos (realização de cursos com cobrança de
taxas de inscrição, à guisa de exemplo), estaria desenvolvendo atividade empresária. Em se assumindo
essa postura doutrinária, então a utilização do termo empresa pelo DL nº 406/68 não terá sido o fator de
discrímen que nele enxergamos para com o termo pessoa jurídica, não desencadeando, portanto, os
questionamentos acima referidos.
Por isso é que, embora não ignorando o dissenso doutrinário, tomemos como premissa o
entendimento da corrente majoritária, segundo o qual empresa (e o seu correspondente na pessoa física,
profissional autônomo) é a atividade abstrata exercida profissionalmente com finalidade lucrativa para o
empresário que a exerce. Aí se abre campo para as investigações a que nos propomos a seguir.
3.
Iniciativa Autônoma do DL nº 406/68.
A primeira ponderação a ser colocada diz com o seguinte: ao excluir da sujeição passiva do ISS
as entidades sem fins lucrativos, o DL nº 406/68 tão somente aclarou um comando previamente implícito
na Constituição? Não, em nosso entender.
Com efeito, a tributação das receitas auferidas por tais entidades não importa violação ao
princípio da capacidade contributiva. Conforme nos dá notícia Hugo de Brito Machado, em legislações
5
RDDT nº 3/74. Ed. Dialética. São Paulo. 1995.
4
alienígenas o princípio da capacidade contributiva não se resolve na capacidade econômica revelada na
hipótese de incidência, levando em consideração também um segundo elemento, definido como um dever
de solidariedade, ou um dever “...orientado e caracterizado por um prevalecente interesse coletivo”6. Por
assim dizer, a capacidade contributiva equivaleria à capacidade econômica qualificada pela aptidão para
realizar o interesse público. Nos ordenamentos que assim formatam o princípio da capacidade
contributiva, seria até cogitável dele extrair a vedação à tributação das receitas de qualquer entidade sem
fim lucrativo, na medida em que, possivelmente, não haveria interesse público na oneração de suas
atividades, que normalmente se voltam à integração e ao bem estar social de uma forma geral.
Não assim, contudo, nos contornos que a nossa Constituição confere a este caro princípio. Aqui,
quis o constituinte formatá-lo nos exclusivos limites da capacidade econômica do contribuinte, conforme
conclui o mesmo mestre Hugo de Brito, após cotejar a nossa Carta Magna com as concepções
estrangeiras acima mencionadas:
“Seja como for, as referidas construções doutrinárias não são válidas no direito brasileiro,
posto que nossa Constituição, diversamente do que acontece com a italiana, não se
reporta à capacidade contributiva, mas à capacidade econômica.
Realmente, nos termos do §1º, do art. 145, da Constituição Federal de 1988, os impostos
devem ser graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, e sempre que
possível devem ter caráter pessoal”7.
Se assim é, no Brasil, não é a relevância social da atividade desempenhada pela entidade que irá
dela retirar a possibilidade de pagar tributos (ability to pay). Mas também se fixando apenas na
capacidade econômica do contribuinte, a conclusão a que se chega é a de que as entidades não lucrativas
poderão revelá-la, ao menos para um imposto que tenha por base de cálculo o valor cobrado pelo serviço.
Isso porque nos chamados tributos reais, em cuja quantificação leva-se em conta apenas a matéria
tributável, como é o caso do ISS8, a capacidade econômica deve ser analisada sob enfoque objetivo9. No
momento em que executa algum serviço mediante paga, está a entidade não lucrativa a dar uma
6
Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1998. Ed. Dialética. São Paulo. 2001. p.74.
op. cit. p.75.
8
À exceção do ISS uniprofissional, que se apega a características pessoais do contribuinte na fixação do
critério quantitativo.
9
Sacha Calmon recusa a capacidade econômica objetiva em nosso sistema constitucional, defendendo que o
constituinte elegeu como princípio a capacidade econômica subjetiva relativa – ou capacidade econômica real
do contribuinte (nesse sentido, v. Manual de Direito Tributário. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 2001. p.14).
Com o devido acatamento, não enxergamos uma tal intentio legis restritiva na dicção do artigo 145, §1º da
CR. Ao contrário, aceitar a capacidade econômica objetiva é a única forma de conciliar esse princípio com o
da igualdade, relativamente aos tributos ditos reais.
7
5
manifestação objetiva de capacidade econômica, suficiente para que venha a ser chamada, por este seu
ato, a fornir os cofres públicos.
Não ostentam capacidade contributiva para sofrerem tributação de lucro, pois que lucro não
auferem, como já visto. Agora, analisando a materialidade em si da atividade (serviço prestado
onerosamente), revela-se a nosso ver, em toda a sua plenitude, a capacidade contributiva (econômica
objetiva).
Ainda sobre a eventual procedência constitucional da restrição subjetiva perpetrada pelo DL nº
406/68, também não acreditamos que a mesma decorra do conceito de serviço implícito na Constituição.
Aqui valerá um breve esclarecimento, necessário para demonstrar que, ao assim nos posicionarmos, não
estamos indo de encontro ao que ensina a nossa doutrina prevalecente, cujo pensamento é assim resumido
por Misabel A. Machado Derzi:
“A Doutrina e a jurisprudência extraem da Constituição as seguintes características da
hipótese de incidência do tributo:
...
5. assim como ser objeto de circulação econômica, executado com objetivo de lucro,
excluindo-se os serviços gratuitos ou de cortesia, beneficentes ou a preços baixos, como
alimentação servida a empregados gratuitamente ou a preço de custo”10.
À primeira vista, poder-se-ia depreender de um tal ensinamento que a não tributação de serviço
prestado sem objetivo de lucro decorreria mesmo, para a maior parte dos doutrinadores, do conceito
constitucionalmente implícito de serviço. Permitimo-nos, contudo, deduzir que não é isso o quanto está
referido nas lições da Profa. Misabel e no restante da Doutrina. A leitura atenta e sistêmica do trecho nos
guia à conclusão de que estarão alheios ao desenho constitucional de serviços aqueles prestados (“sem
objetivo de lucro”) gratuitamente, desinteressadamente, sem conteúdo econômico algum, sem circular
numerário (ou em quantidade irrisória). O “sem objetivo de lucro”, queremos crer, está aí no sentido de
“sem objetivo de receita”. Ora, nesse caso, realmente, estamos de acordo em que um tal serviço não será
alcançado pela incidência da norma de tributação, justamente por inexistir aí capacidade econômica
(objetiva) constitucionalmente exigida.
10
Direito Tributário Brasileiro. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 1999. p.491.
6
Mas a situação que nos instiga não é essa, qual seja, a do serviço prestado gratuitamente ou quase
gratuitamente, e sim a do serviço prestado onerosamente, com superávit, pela entidade sem fins
lucrativos. E quanto a essa situação, estamos com Marçal Justen Filho, para quem “...a Constituição
Federal anterior não induzia, como também não faz a atual, que o ISS atinja apenas serviços prestados
com intuito lucrativo”11.
Diante de todas essas ponderações, conclui-se que, ao excluir as associações sem fins lucrativos
do rol de sujeitos passivos do ISS, o DL nº 406/68 não esteve regulando uma limitação constitucional ao
poder de tributar, pautado no artigo 146, II da CR. Em outras palavras, a iniciativa de posicionar tais
pessoas jurídicas a salvo do ISS é toda ela do Decreto-Lei, que não veio aclarar nada que estivesse
implícito no Texto Magno, mas sim para inovar no perfil legal do tributo. Resta saber, então, se assim o
fez validamente, para tanto sendo necessário investigar o sempre e ainda polêmico tema das funções da
lei complementar em matéria tributária.
4.
Funções da Lei Complementar Tributária.
Em grosso modo, são duas as correntes doutrinárias que se armam em torno do tema: a primeira
delas, chamada dicotômica, propugna que compete à lei complementar tão somente regular limitações ao
poder de tributar e dirimir conflitos de competência, desempenhando uma e outra tarefas através de
normas gerais. Da corrente dicotômica, o seguinte excerto das lições de Paulo de Barros Carvalho é boa
amostra:
“O primeiro passo é saber que são as tão faladas normas gerais de direito tributário. E a
resposta vem depressa: são aquelas que dispõem sobre conflitos de competência entre as
entidades tributantes e também as que regulam as limitações constitucionais ao poder de
tributar. Pronto: o conteúdo está firmado”12.
Outro conjunto de tributaristas reúne-se em torno da chamada teoria tricotômica, que enxerga a
aptidão para edição de normas gerais como atributo de lei complementar autônomo daqueles outros
referidos nos incisos I e II do artigo 146 da CR. Dessa corrente é partidário, entre outros, Hamilton Dias
de Souza, in verbis:
11
12
RDDT nº 3/73. Ed. Dialética. São Paulo. 1995.
Curso de Direito Tributário. Ed. Saraiva. São Paulo. 2000. p.208.
7
“Temos para nós, entretanto, que a norma geral tem campo próprio de atuação consistente
em completar a eficácia de preceitos expressos e desenvolver princípios decorrentes do
sistema. Isto porque a realidade brasileira exige uma formulação jurídica nacional que
garanta a unidade e racionalidade do sistema, principalmente tendo-se em vista a estrutura
federativa do regime...”13.
Estamos com a corrente tricotômica. E assim pensamos, primeiramente, a partir de uma
interpretação histórica do dispositivo constitucional. Em verdade, esse dissenso doutrinário originou-se da
má redação do artigo 18, §1º da EC 1/69, que dava azo à duplicidade de entendimentos. Ora, pois o artigo
146 da atual CR manteve rigorosamente o mesmo conteúdo do antigo dispositivo, tão somente alterando a
forma de disposição dos preceitos, dividindo-os analiticamente em três incisos, assim procedendo quiçá
com intuito exclusivo de pôr fim à controvérsia!
Além disso, concordamos com as ponderações de Dias de Souza no sentido de que nossa
organização federativa requer prescrições tributárias que lhe sirvam à harmonia. Das implicações entre a
lei complementar tributária e o sistema federativo trataremos com mais detença adiante.
Agora, uma vez aceitas como sendo três as funções da lei complementar tributária, é necessário,
ato contínuo, pena de incorrer em incoerência de pensamento, aceitar também que todas ensejam ao
legislador complementar prerrogativas de iguais magnitudes. E é essa conclusão que a “doutrina
tricotômica”, segundo nos parece, ainda hesita em admitir.
Em outras palavras, sendo mesmo três e autônomas as incumbências da lei complementar,
inexistirá razão para “discriminar” o inciso III perante os outros dois incisos: tudo o que assistir à lei
complementar na sua “batalha” para dirimir conflitos de competência ou para regular limitações ao poder
tributante, também deverá estar à sua disposição na edição de normas gerais acerca de fato gerador, base
de cálculo e contribuinte de impostos. E entre essas prerrogativas, utilizáveis pela lei complementar na
consecução de qualquer dos seus três desígnios, está a de restringir a competência tributária outorgada
aos Poderes Públicos. Apressemo-nos em nos explicar, que a assertiva pode parecer ousada.
Quando, por exemplo, o mesmo DL nº 406/68 prescreve caber o ISS ao município onde se situa o
estabelecimento prestador14, está ele tipicamente laborando para solucionar potenciais conflitos entre as
13
referido por GANDRA MARTINS, Ives, in Sistema Tributário na Constituição de 1988. Ed. Saraiva. São
Paulo. 1998. p.66.
14
Malgrado a orientação jurisprudencial que se vem consolidando no E. STJ acerca do assunto.
8
pretensões impositivas dos mais de 5.500 Municípios da Federação. Esse é o fim almejado pelo legislador
complementar. Para alcançá-lo, o meio utilizado é uma norma de estrutura que vem restringir a
competência tributária mais amplamente outorgada na Constituição. O legislativo municipal, que tinha
todo e qualquer serviço, de qualquer natureza, à sua disposição para contemplar na sua norma instituidora
do ISS, teve, via lei complementar, limitada a amplitude de fatos imponíveis elegíveis, restando não
tributáveis todo e qualquer serviço prestado por estabelecimento situado fora de seu território. Reduzir a
gama de eventos econômicos sobre os quais cada Município pode atuar na instituição do ISS, retirandolhe assim parte da competência que lhe fora outorgada pela CR, é isso o que faz o DL nº 406/68, em seu
artigo 12, para controlar potenciais conflitos impositivos.
Note-se que é possível implementar a restrição de competência não somente pelo critério material
da regra matriz de incidência do tributo. Assim como a isenção é fenômeno que mutila parcialmente
qualquer dos critérios da regra matriz, também a norma limitadora de competência (ou mesmo uma
imunidade constitucional) pode atuar sobre qualquer dos aspectos que virão a ser preenchidos pela norma
de incidência. É assim que trabalhou, no exemplo dado, o artigo 12 do DL nº 406/68, restringindo o
critério pessoal e/ou espacial da norma de incidência possível do tributo.
Pois essa pretensão do Decreto-Lei, apenas porque se voltava à finalidade de dirimir conflitos
entre os Municípios, sempre foi aceita sem grandes questionamentos, ao que nos parece15. Pois por que
não poderá a lei complementar valer-se do mesmo artifício na igualmente importante tarefa de editar
normas gerais?
Estamos em que não é meramente declaratória a função da lei complementar na difusão de
normas gerais tributárias, como se extrai com freqüência da Doutrina16. Ora, se esse fosse o seu mister,
não seria ela norma geral, mas mero enunciado prescritivo geral. Como se sabe, norma é juízo hipotéticocondicional mínimo completo de significação, hábil a regular a conduta humana (normas de
comportamento) ou a regular a “conduta” de outras normas (normas de estrutura). Quando tão somente
declara, o texto legislado não veicula norma jurídica, mas simples enunciado prescritivo, a espera de
posterior integração em unidades normativas.
15
O que é objeto de acesa controvérsia é qual o melhor critério para restringir a competência – local de
execução dos serviços, local do estabelecimento prestador etc. – mas não a necessidade e conveniência da
restrição em si.
16
Nesse sentido, a lição do Prof. Roque Carrazza: “Ao legislador complementar será dado, na melhor das
hipóteses, detalhar o assunto, olhos fitos, porém, nos rígidos postulados constitucionais, que nunca poderá
acutilar. Sua função será meramente declaratória. Se for além disso, o legislador ordinário das pessoas
políticas simplesmente deverá desprezar seus comandos” (Curso de Direito Constitucional Tributário. Ed.
Malheiros. São Paulo. 1999. p.571).
9
Para fixar nossa posição, valhamo-nos de elucidativo exemplo trazido pelo Prof. Roque Carrazza.
Debruça-se o professor sobre a atividade de recauchutagem de pneumáticos, indagando se se trataria de
industrialização, tributável pelo IPI da União, ou se, ao contrário, consistiria em serviço, tributável pelo
ISS Municipal; informa, ato contínuo, que, para afastar previsível conflito de pretensões impositivas, vem
o DL nº 406/68 aclarar que a recauchutagem é serviço; e ao final conclui: “e se tal ato normativo tivesse
estabelecido que recauchutagem de pneumáticos é processo de industrialização e, como tal, tributável
pela União, por meio de IPI? Apressamo-nos em responder que ele seria inconstitucional, porque teria
dilargado o campo tributário da União (nele enxertando uma prestação de serviços)”17.
Com o devido acatamento, arrojamo-nos em discordar do insuperável mestre. Entendemos que
nesse passo a lei complementar está sendo discricionária: validamente discricionária. Não está aclarando
que a recauchutagem é serviço, mas “decidindo” que o é.
É que as materialidades dispensadas pela CR às respectivas competências impositivas dos entes
federativos são estanques só mesmo nos planos lógico e legal. No mundo fenomênico, não raro diluemse, fundem-se, encontram-se, de maneira verdadeiramente indissociável, em um mesmo evento. Pois
recauchutagem são ambos, serviço e processo de industrialização, impregnados em uma mesma realidade.
A lei complementar, então, engajada no propósito de dirimir conflitos impositivos, opta, discricionária e
soberanamente, qual a materialidade prevalecente e, por conseqüência, qual Poder Público competente a
tributá-la.
Não pretendemos conferir “carta branca” à lei complementar editora de normas gerais tributárias.
É-lhe defeso desfazer o que já está feito pela Constituição, por exemplo outorgando à competência
tributária de um ente público um signo presuntivo de riqueza deferido pela Carta Magna a outro. Agora,
respeitando embora essa distribuição de competências, entendemos assistir à lei complementar reamoldálas, ainda que restritivamente. É tarefa possível no âmbito da edição de normas gerais.
E isso principalmente no que se relaciona a outros critérios da regra matriz de incidência que
não o material (e, pela relação umbilical que com este mantém, a base de cálculo). A outorga
constitucional de competência tributável foi levada a cabo com apegos às materialidades (renda, serviços,
circulação de mercadorias etc.). Nisso a CR foi precisa. Relativamente a todos os demais critérios
17
op. cit. p.584.
10
(espacial, temporal, sujeito passivo e alíquota), o que se extrai de texto magno é o alcance, digamos,
máximo possível de cada um18.
Por isso, cremos que, no tocante a esses outros critérios indiretamente tratados pela CR, a lei
complementar geral deve ostentar ainda maiores prerrogativas de delinear os contornos que irão fixar a
regra matriz a ser oferecida à norma de incidência. Não pode ir além, mas pode ficar aquém.
Especificamente com relação ao ISS, entendemos que a assertiva deve ser ainda mais
enfaticamente reconhecida, uma vez que nem mesmo do critério material a CR se propôs a tratar
exaustivamente. Com efeito, reconhece no artigo 156, III, com toda a “franqueza”, que o desenho dos
fatos imponíveis do ISS será formatado em lei complementar, a quem competirá eleger quais serviços
poderão desencadear o tributo. Uma vez mais: não poderá ir além, mas assistir-lhe-á ficar aquém 19. A
competência para instituição do ISS é, assim, apresentada aos Municípios tal como previamente talhada
pela CR e pela lei complementar editora de normas gerais. Somente depois da atuação dessas duas fontes
legais é que se cogita de competência tributária. Nesse sentido, a lição de Bernardo Ribeiro de Moraes:
“Somente após a edição de lei complementar, definindo os serviços tributáveis pelo ISS,
é que se pode falar em competência tributária municipal.
...
Antes dessa definição da Lei Complementar não há possibilidade dos Municípios criarem
o ISS, legislando sobre certo e determinado serviço, por falta de competência
tributária”20.
Ao aceitarmos que os contornos da competência tributária não se extraem unicamente da CR,
caminhamos distantes talvez da maioria, mas não sozinhos. Luciano Amaro, com a inteligência que lhe
prestigia, assim se pronuncia sobre o assunto:
“Ademais, a constituição abre campo para a atuação de outros tipos normativos (lei
complementar, resoluções do Senado, convênios), que, em certas situações, também
balizam o poder do legislador tributário na criação ou modificação de tributos, o que
18
Os sujeitos passivos possíveis do ISS, extraídos implicitamente da CR, são, em nosso ver, qualquer
prestador ou qualquer tomador, que contracenam a materialidade do tributo. Desse limite máximo a lei
complementar não há de desbordar. Dentro dele, contudo, poderá atuar com desenvoltura.
19
Não poderá a lei complementar, por exemplo, elencar “locação de bens móveis” como serviço, uma vez
que, se essa atividade não é serviço, estará indo além da prescrição constitucional.
20
O Conceito de Serviço e o Local de Incidência do ISS, conforme decisões do STF e do STJ. in 10º Simpósio
Nacional IOB de Direito Tributário. 2001.
11
significa que os limites da competência tributária não se resumem aos que estão
definidos no texto constitucional.
Esse complexo normativo delimita a competência, vale dizer, traça as fronteiras do
campo em que é exercitável o poder de tributar”21 (grifos do autor).
5.
Nosso Federalismo e a Autonomia Municipal.
Argumento que se coloca em rebate às idéias aqui defendidas é o de que a permissão a que o
legislador infraconstitucional restrinja a competência tributária dos Poderes Públicos implica atentado à
autonomia municipal e, em conseqüência, vilipêndio ao princípio federativo. Nesse sentido, utilizaremos
uma vez mais como paradigma as lições do mestre Roque Carrazza:
“Em suma, o Município, no Brasil, é entidade autônoma. Pessoa política, legisla para si,
de acordo com as competências que a Carta Magna lhe deu.
...
Nem o governo federal nem o estadual podem interferir no exercício da competência
tributária dos Municípios. ...É patente que o Congresso Nacional não pode usurpar
faculdades que, pela Constituição, foram consignadas aos Municípios”22.
Segundo se colhe da Doutrina, o Congresso Nacional encampa três diferentes funções 23: (i) a de
constituinte derivado, ao discutir e aprovar emendas à Constituição; (ii) a de legislador federal, ao atuar
como fonte legislativa da União, enquanto pessoa jurídica de direito público interno; e (iii) a de legislador
nacional, ao atuar como fonte legiferante da República Federativa do Brasil, vinculante a todas as pessoas
políticas da Federação. Ao investir-se na figura de cada um desses “órgãos”, o Congresso Nacional
funciona sob os processos legislativos respectivamente próprios (Emenda Constituicional, Lei Ordinária,
Lei Complementar etc.).
Pois quando edita normas gerais em matéria tributária, a lei complementar traduz produto do
legislador nacional. Vale dizer, quem está a legislar é a República Federativa do Brasil, da qual os
Municípios fazem parte, e com cujas deliberações estão, via de representação, consentindo. Conforme
muito bem detectou Sacha Calmon Navarro Coêlho, “...há tantos federalismos, diversos entre si, quantos
21
op. cit. p.104.
op. cit. p.131.
23
Nesse sentido, v. as lições de Heleno Torres, in RDDT nº 71/92.
22
12
Estados federativos existam. O importante é que haja um minimum de autodeterminação política, de
autogoverno e de produção normativa da parte dos Estados Federados”24.
Ora, assim é o nosso federalismo, aliás em tudo coerente com sua origem histórica
descentralizadora. Quis o constituinte originário que, em nosso sistema federativo, o legislador nacional
mantivesse ingerência sobre o exercício de competência tributária pelos Municípios, pelos Estados e pela
própria União. A autonomia municipal já nasceu assim, já foi assim posta com esse “freio” pela
Constituição. Em remate, melhores são as palavras do mesmo Sacha Calmon:
“No Brasil, ao menos em tema de tributação, o constituinte optou pelo fortalecimento das
prerrogativas do poder central. Esse fato, por si só, explica porque avultou a área
legislativa reservada à lei complementar tributária. A assertiva é comprovável por uma
simples leitura do CTN redivivo e do art. 146, III, da CF, que reforça o centralismo
legislativo em sede de tributação... Para compreender normas gerais é preciso entender o
federalismo brasileiro”25.
Para logo concluímos que a vedação à isenção heterônima prevista no artigo 151, III não se aplica
ao DL nº 406/68, uma vez que se dirige, aquele preceito constitucional, ao poder legislativo federal, à
União enquanto Poder Público “concorrente”, por assim dizer, dos estados e dos municípios26.
6.
Catalogação do Fenômeno.
Está visto que o artigo 8º do DL nº 406/68 opera, validamente, uma desoneração das entidades
sem fins lucrativos quanto ao recolhimento do ISS. Resta, por fim, procurar “catalogar” essa desoneração
dentre os institutos que a tanto se prestam.
De imunidade não se trata. Esta, sabemos, é preceito constitucional que reformata negativamente
a área de competência fixada positivamente na própria Carta Magna. Assim sendo, embora vislumbrando
certa proximidade no âmbito material, a desoneração do DL nº 406/68 é com a imunidade incompatível
desde o ponto de vista formal, uma vez que esta há de vir expressa necessariamente no texto
constitucional.
24
op. cit. p.38.
op. cit. p.38.
26
E aqui acabamos por discordar de Marçal Justen Filho, quem, após negar origem constitucional à não
tributação das entidades não lucrativas, conclui que o artigo 8º do DL nº 406/68 veicula isenção heterônima
(v. op. cit. p.73).
25
13
Norma regulamentadora do poder de tributar também não é o DL nº 406/68, vez que, como
defendido no capítulo 3 deste despretensioso estudo, não decorre da nossa CR a não-tributação, pelo ISS,
das entidades sem fins lucrativos.
De isenção ou não incidência stricto sensu também não se cogita. É que ambas operam, via de
exceção ou omissão, respectivamente, já dentro do campo de incidência possível da norma tributária ou,
em outras palavras, dentro dos limites da competência tributária autorizada. São “concedidas”
necessariamente pelo Poder Público competente para tributar. A norma do artigo 8º do DL nº 406/68 atua
na própria definição desse limite de competência, precedendo, portanto, a atuação do poder tributante.
A não incidência latu sensu tampouco parece ser um sub-grupo adequado às feições do fenômeno
perpetrado pelo artigo 8º do DL nº 406/68, pois esta refere-se aos eventos que sequer resvalam a hipótese
de incidência, tal como respirar, caminhar etc. Os serviços prestados pelas associações sem fins
lucrativos, evidentemente, estão margenado a hipótese de incidência, somente não a desencadeando em
virtude da norma do DL nº 406/68.
Estamos, assim, na contingência de termos que admitir uma nova categoria de preceitos
normativos desoneradores, que seriam as (válidas) normas gerais limitadoras de competência. Fica aí a
sugestão, para que a comunidade tributária, em enxergando alguma razoabilidade no que foi exposto,
aprofunde os estudos de modo a ratificá-los ou refutá-los.
7.
Conclusões.
Resumidamente, podemos extrair os seguintes postulados das idéias aqui expostas:
(a) a desoneração das associações sem fins lucrativos quanto ao pagamento do ISS,
quando prestem serviços mediante paga, não decorre do texto constitucional, seja do
princípio da capacidade contributiva, seja do conceito implícito de serviço;
(b) a veiculação de normas gerais em matéria tributária é incumbência de lei
complementar autônoma das outras duas que lhe confia o artigo 146 da CR (dirimir
conflitos e regular limitações ao poder tributante), assistindo-lhe, na consecução de
14
qualquer delas, prerrogativas de igual amplitude, entre as quais a de restringir a
competência tributária inicialmente prevista na CR;
(c) principalmente quanto a outros critérios da regra matriz de incidência do tributo que
não o material e a base de cálculo, e mormente quanto ao ISS, com a franquia especial
conferida pelo artigo 156, III da CR, pode a lei complementar atuar na limitação da
competência tributária, vedando-se-lhe, contudo, desfazer o que já esteja feito pela CR;
(d) o DL nº 406/68 é obra do legislador nacional, a quem o nosso federalismo, tal como
concebido pelo constituinte originário, reconhece aptidão para limitar a atividade de
instituir tributos;
(e) a vedação à isenção heterônima prevista no artigo 151, III da CR é preceito voltado ao
legislador federal, inaplicável, portanto, ao DL nº 406/68;
(f) o artigo 8º do DL nº 406/68, ao fixar como sujeitos passivos do ISS somente as
empresas e os profissionais autônomos, atua como válida norma geral limitadora de
competência impositiva; e
(g) as associações sem fins lucrativos, mesmo aquelas não imunes, estão a salvo da
tributação pelo ISS, sendo, portanto, ilegais as leis municipais que, como a do Município
de São Paulo, pretendem impor-lhes a incidência desse tributo.
Autor:
Paulo Roberto Andrade, advogado em São Paulo, formado pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo.
(obs: artigo publicado na Revista de Direito Tributário nº 90. São Paulo: Malheiros, junho de
2004).
15
Download

Baixe em PDF