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ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DA CANÇÃO
“O QUERERES”, DE CAETANO VELOSO
Nohad Mouhanna Fernandes*
RESUMO: Ressalta a aplicação de aspectos relacionados aos estudos semânticos
e pragmáticos no processo de interlocução leitor-texto literário. Utiliza, como
instrumento de análise, a canção “O quereres”, de Caetano Veloso, visto que a
leitura detalhada de seus elementos lingüísticos - cujos conteúdos implícitos
dialogam com elementos extratextuais-, incide na busca de sua clarificação e
compreensão.
PALAVRAS-CHAVE:
leitura, texto poético,
interlocução leitor-texto, produção de sentido.
análise
lingüístico-discursiva,
ABSTRACT: The application of aspects related to the semantic and pragmatic
studies in the interlocution process standes out literary reader-text. It uses, as
analysis instrument, the song “O quereres”, of Caetano Veloso, since the detailed
reading of its linguistic elements - whose implicit contents dialogue with extraliteral
elements -, it happens in the search of its clarificação and understanding.
KEY-WORDS: reading, poetical text, linguistic-discursiva analysis, interlocution
reader-text, direction production.
INTRODUÇÃO
À luz dos princípios teóricos interacionistas que têm norteado o
ensino de língua portuguesa nos últimos anos, e da prática que os
efetiva, essa comunicação situa-se na área da leitura em língua
materna e visa a abordar os mecanismos de articulação discursiva na
construção de sentido do texto literário, dando ênfase aos aspectos
semânticos e pragmáticos que atuam no processo de interlocução
leitor-texto e nas suas múltiplas apreensões de sentido.
Para isso, utiliza, como instrumento de análise, a canção O quereres,
de Caetano Veloso, vez que sua organização lingüístico-discursiva
contém vários mecanismos e procedimentos que incidem na
monitoração de uma leitura detalhada para a busca de clarificação e
de compreensão de seu plano do conteúdo.
Desta feita, dá-se destaque à maneira como se integram, se
estruturam, se combinam e se desenvolvem no texto os elementos
lingüísticos que o materializam, e cujos conteúdos implícitos dialogam
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com elementos extratextuais, resultando na sua compreensão e
coerência. Acredita-se que a percepção dos mecanismos de
articulação do texto favorece, por conseguinte, o desenvolvimento
das habilidades cognitivas do leitor, transformando-o em um leitor
ativo.
1 DEBATE TEÓRICO SOBRE A LEITURA DO TEXTO POÉTICO
Numa breve síntese, apresentar-se-á um conjunto de conceitos mais
comuns utilizados pela tradição dos estudos acadêmicos que tomam
por base a leitura como forma dinâmica de produção de
conhecimentos e como processo sociocognitivo e interacional na
interlocução leitor-texto. Esses conceitos adentram na discussão do
desenvolvimento da análise e da interpretação do texto poético e
podem ser caracterizados como operadores de leitura.
De antemão, pode-se dizer que para penetrar nas múltiplas
apreensões e construções de sentido da poesia faz-se necessário
reconhecer a sua natureza especial, vez que o poema opera como
uma caixa de ressonância, na qual lateja cada fonema, cada palavra,
cada frase, que cobra do leitor um olhar especial, argucioso,
minucioso e até mesmo destemido. Requer que o leitor “force a
visibilidade, no poema e em si, de experiências sensíveis e
emocionais amortecidas, indefiníveis às vezes; que ultrapasse a pura
intelecção, que calibre o olhar para um enfrentamento mais sugestivo
de imagens obscuras, resistentes à compreensão imediata.” (CORTEZ
e RODRIGUES, 2005, p. 59)
A expressão literária, como expressão artística, tem como
fundamento a exploração da palavra, que desvencilha hábitos de
linguagem, baseando sua recriação da realidade no aproveitamento
de novas formas de dizer. O texto literário é plurissignificativo,
provoca prazer estético e, assim, esse trabalho de recriação é uma
espécie de jogo com a linguagem, em que os enigmas metafóricos
desempenham papel essencial. Como é uma espécie de armadilha, no
dizer de Maingueneau (1996, p. 39), “impõe a seu leitor um conjunto
de convenções que o tornam legível. Faz esse leitor entrar em seu
jogo de maneira a produzir através dele um efeito pragmático
determinado, a fazer seu macroato de linguagem ser bem-sucedido.”
Para
tanto,
como
propõe
Grice
(1982)
nas
“máximas
conversacionais”, o leitor deverá mostrar-se cooperativo nesse
intercâmbio verbal, contribuindo para construir o sentido do texto a
partir das indicações ou marcas que o poema no seu todo lhe
apresenta. O autor do poema presume que o leitor colaborará para
superar a reticência do texto. Desse modo, aproveitando as palavras
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de Umberto Eco (1986, p.7) o leitor deve “tirar do texto o que o texto
não diz, mas pressupõe, promete, implica ou implicita, a preencher
espaços vazios, a ligar o que existe nesse texto com o resto da
intertextualidade, de onde ele nasce e onde irá se fundir”.
Dessas observações, atenta-se para o fato de que ler o poema não se
limita apenas a um mero ato de decodificação linear dos signos, ou a
apenas relacionar significantes escritos a significados lingüísticos,
conforme a crença dos estruturalistas. A par disso, não cabe, em sua
leitura, a exigência de considerar a referência como relação direta
das palavras com as coisas do mundo, e um sujeito cuja mente é
locus de representações. Nessa medida, Brown e Yule esclarecem:
O falante não precisa supor que a descrição é verdadeira
para o referente, basta que ele acredite que, usando essa
expressão, possibilitará que o ouvinte selecione o referente
pretendido. Assim, o conceito que interessa à analise do
discurso não é o da correta (verdadeira) referência, mas o
da referência bem sucedida. A referência bem-sucedida
depende de o ouvinte identificar, para os propósitos da
compreensão de mensagens na linguagem corrente, o
referente intencionado pelo falante, com base na expressão
usada. (BROWN; YULE, 1983 apud ARAÚJO, 2004, p. 206)
Ante o texto poético, o leitor, compreendendo que não se observa um
cordão ligando as palavras às coisas, compara, reexamina e revisa o
já lido. Esforça-se, pois, para captar a motivação dos signos para
além da superfície textual. Passa, então, da mimese à semiose,
vendo a própria linguagem como fator constitutivo de uma relação
entre indivíduos se comunicando em situações complexas. O enfoque
discursivo-pragmático entra em cena por meio da chamada
referenciação, que é dada por inferência e não pela designação
explícita dos referentes. Estes são compreendidos pelo ouvinte/leitor,
por meio do próprio jogo discursivo. Ademais, o leitor ativo consegue
perceber a coerência semântica do discurso literário pelas
virtualidades significativas presentes nele e que o fazem ter unidade,
tais como “a reiteração, a redundância, a repetição, a recorrência de
traços semânticos ao longo do discurso” (FIORIN, 2005, p.112) e que
o diferem de um amontoado de frases sem qualquer relação. É o
fenômeno da isotopia que remete à compreensão de que a coerência,
no texto literário, não é tanto uma propriedade vinculada ao texto.
Conforme pressupõe Maingueneau (1996, p.33), ela é “a
conseqüência das estratégias, dos procedimentos que os leitores
empregam para construí-la a partir das indicações do texto. A
coerência não está no texto, é legível através dele, supõe a atividade
de um leitor.”
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Para atingir a coerência do texto e decifrá-lo e, portanto, estabelecer
o diálogo com o texto, o leitor ativa “diversos níveis de
conhecimento, como o conhecimento lingüístico, o textual, o
conhecimento de mundo” (KLEIMAN, 1997, p. 13). Além disso, o
texto literário requer que o destinatário, com os seus conhecimentos
prévios, leve em conta a situação em que o texto se mostra, a sua
função comunicativa. Ainda, a percepção do gênero discursivo faz-se
necessária, exigindo o correlacionamento do texto a um discurso
literário. De fato, como diz Marques:
[...] diante dos enunciados em que ocorrem metáforas, o
leitor procura ajustar os significados das palavras ao
contexto e à situação, a fim de entender, interpretar o
significado global dos enunciados, sempre a partir do
pressuposto de que o uso da língua em enunciados
discursivos tem a finalidade de dizer alguma coisa, veicular
significados que permitem a intercomunicação.” (MARQUES,
2003, p.156)
Nessa visão, lecionam os manuais que ler poesia implica desenredar
os estratos do poema, “o semântico, o sonoro, o lexical, o sintático e
o visual” (CORTEZ; RODRIGUES, 2005, p. 61). Visualiza-se, pois,
uma complexa inter-relação dos significados das palavras, das
expressões, da organização sintática e textual, dos aspectos visuais e
gráficos que constituem o texto poético.
Todas as considerações acima expostas mostram-se apropriadas para
a construção do sentido da letra da canção “O quereres”, que será
analisada a seguir. Não obstante, dentre esses estratos, tenham sido
selecionados para a análise do discurso apenas os que se relacionam
à busca desse sentido, vislumbrando a apreensão das estratégias
enunciativas dos planos textual e discursivo. Como se verá, intentase, de forma modesta, dar destaque à inventividade e à riqueza da
escrita do compositor baiano. Afastadas de sua melodia, as palavras
ganham em materialidade e mostram-se enfáticas nos versos de
Caetano, fazendo com que a letra da canção torne-se uma referência
preciosa tanto para a poesia escrita como para a canção brasileira.
2 ANÁLISE REFLEXIVA DA CANÇÃO
Á primeira leitura, é pouco provável que um leitor ou ouvinte que
busque atingir a significação da canção “O quereres”, de Caetano
Veloso, apenas a partir do sentido literal de suas palavras, consiga
depreender dele a sua coerência, ou, de outro modo, consiga elaborar
a significação que estaria nele. Tudo parecerá caótico e sem sentido,
visto que as palavras estão dispostas como se não tivesse qualquer
relação umas com as outras. Poder-se-ia questionar, por exemplo, o
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que tem a ver revólver com coqueiro, dinheiro com paixão, descanso
com desejo, caubói com chinês, lar com revolução?
Embora não se possa saber com certeza o que o escritor pretende
dizer, posto que é impossível penetrar em sua mente, a insistência e
repetição nos verbos querer e ser já revelam ao leitor uma verdadeira
disjunção entre um Eu e um Tu. Querer, como se sabe, é proveniente
do latim quaerere, que significa procurar, buscar, cujo sentido,
atualmente, é o de desejar. Visto desse ângulo, trata-se de um ser
que se mostra, em sua essência básica, com características díspares
em relação ao que o outro busca, procura ou deseja. Assim, em nível
profundo, observa-se que o poema gira em torno de tensões. A
organização lingüístico-discursiva é construída em torno de oposições
e de antíteses, que buscam retratar a dificuldade da convivência
amorosa, afirmada pelos quereres distintos, contraditórios,
enovelados, confusos.
Na medida em que se passa a processar as informações e vai se
construindo, por implicaturas e inferências, os sentidos mais locais do
texto, vai se deparando com elementos ou significados contraditórios
que se opõem e que, no dizer de Antonio Candido (1999, p.30),
“poderiam até desorganizar o discurso, mas na verdade criam as
condições para organizá-lo por meio de uma unificação dialética”.
Um rápido exame pelo plano de expressão, ou mais propriamente
pela estrutura do poema, mostra o estabelecimento da relação entre
expressão e conteúdo do texto. Percebe-se que a forma do poema é
semelhante ao adotado por Camões em Os Lusíadas, isto é, seis
oitavas (6 estrofes de oito versos) em decassílabo (10 sílabas
poéticas), cuja tônica cai na sexta sílaba, mais um refrão em
redondilha maior ou heptassílabo (sete sílabas poéticas), composto
de um dístico que intervém a casa duas oitavas. Aqui já se percebe a
genialidade do poeta, vez que, para a realização de tal arquitetura
isométrica, o trabalho não é fácil, como disse Olavo Bilac: “o poeta
trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua.”
A par disso, tem-se que a arte organiza o que na vida não se
consegue controlar. Em outras palavras, as contradições próprias do
amor, os quereres diferentes, peculiares a cada amante, a
indomesticabilidade do corpo na vida, representadas pelo conflito
entre o eu-lírico do poema e o tu da mensagem, encontram, no corpo
do poema, a ordem, a regra, as rimas os cálculos, enfim, a harmonia
não encontrada na relação amorosa. O querer do cotidiano esbarra-se
no sistema métrico e rítmico do poema, consistente de um
exuberante arcabouço de antíteses e de suas variantes, tais como o
oxímoro e o paradoxo, os quais fazem lembrar o conceptismo
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barroco, que se caracterizou pelo abuso no emprego dessas figuras.
Caetano, ao apelar para a antítese, parece querer refletir a própria
realidade do relacionamento amoroso, que é em si contrastante. O
leitor, por meio do jogo de contrastes elencados, capta, compreende
e sente esses contrastes em todas as suas dimensões. Aliás, é da
própria natureza a procedência dos contrastes, como diz Victor Hugo:
A natureza procede por contrastes. É por meio de oposições
que ela dá realce aos objetos e nos faz sentir as coisas: o
dia pela noite, o calor pelo frio... Toda claridade projeta
sombra. Daí, o relevo, o contorno, a proporção, as relações,
a realidade... O poeta, esse pensador supremo, deve fazer
como a natureza: proceder por contrastes... Se um homem
um pouco letrado se der ao trabalho de sondar a sua
memória, de aí rebuscar tudo quanto se gravou através da
leitura dos grandes poetas, dos grandes filósofos, dos
grandes escritores, há de ver que, em cinqüenta citações
que lhe ocorram, quarenta e nove pertencem ao que se
convencionou chamar de antítese. (VICTOR HUGO apud
GARCIA, 2002, p.100)
E é isso que Caetano faz: procede por contrastes, por metáforas
antitéticas, as quais são definidoras do tema. Mas vai além, vez que
ao usar esse recurso expressivo abastece-se de artifícios para tornálo ainda mais expressivo. Esses artifícios mostram-se claros na
concisão e na economia de palavras que traduzem as antíteses e no
paralelismo rítmico de seus versos que enaltece ainda mais os seus
efeitos.
No título da canção “O quereres”, o poeta utiliza o recurso semânticosintático de substantivar o verbo querer por meio de um
determinante No entanto, curiosamente, no aspecto morfossintático,
a forma verbal do infinitivo é flexionada, quereres, e a ela se combina
extravagantemente um artigo definido no singular. Vê-se, pois, que o
que dá nome ao texto é um sintagma nominal que provoca
estranheza, já que composto de um determinante no singular e um
verbo substantivado no plural, o que pode sugerir o refluxo à forma
verbal flexionada de segunda pessoa do singular, quereres, por meio
da evocação de um tu elíptico entre ambos. Naturalmente, a
expressividade resulta do surgimento de conotações e de nuances
interpretativas dúbias que a mudança de classe acarreta. Poder-se-ia
argumentar que a significação nominal é mais viável devido à
conexão sintática com o determinante; por outro lado, poder-se-ia
conjecturar a presença de um pronome tu subentendido,
supostamente pouco provável em tal construção. De qualquer modo,
verifica-se a intenção do poeta em provocar a ambigüidade. O cantor
pop manipula com habilidade o estranhamento ao relacionar essa
expressão à infinitivamente pessoal (verso 49, quinta estrofe),
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fazendo referência literal a um dado gramatical: denota que o modo
infinitivo pode, além do verbo querer, produzir uma derivação
imprópria e ser tratado como advérbio, por meio da infiltração da
pessoalidade de seu uso. Ou seja, deixa transparecer uma reflexão
sobre as originalidades e as possibilidades da língua e da cultura em
língua portuguesa. O uso da expressão infinitivamente pessoal, com o
sentido de ser infinitamente pessoal, sugere, então, que tal qual a
possibilidade singular do idioma, o modo de querer do sujeito da
canção é algo também pessoalíssimo, singular. Percebe-se, ainda,
nesta estrofe, que o discurso em 1ª pessoa cria um efeito de
subjetividade e envolvimento do sujeito Eu que declara os seus
anseios, os seus valores desejados em relação ao amor, sugerindo
uma transformação do estado de disjunção para a construção da
conjunção amorosa. No entanto, pelo fato de a vida ser real e de
viés, os valores desejáveis não se mostram possíveis de serem
realizados na vida; ao contrário, são possíveis no poema.
Outro aspecto interessante a notar é a variação temporal do verbo
principal do poema, já analisado pelo poeta e professor Eucanaã
Ferraz (2003). Diz esse autor que ora está projetado no gerúndio
querendo da estrofe final, ora no querer do estribilho, ora no quero
ativo do sujeito, ora no anafórico queres, que impregna toda a
canção, conferindo-lhe uma batida –aliterativa e semântica – que
induz o ouvinte a esperar a próxima comparação, para com ela
exercer as conexões.
Não passa despercebido, ainda, quando, ao som reiterado do
vocábulo mais importante do poema, a forma verbal queres, associase a palavra quaresma – Onde queres quaresma, fevereiro (verso
43)-, cujos fonemas básicos são repetidos. Nota-se, neste verso, que
o poeta elege a palavra fevereiro, que lembra um mês caracterizado
pela festividade, pelo carnaval, opondo-se ao querer a quarentena
pós-carnaval. O contraste do querer, em termos semânticos, revelase pelo fato de o eu-lírico desejar os festejos do carnaval, tempo
dedicado à orgia, aos prazeres, ao extravasamento, à alegria
coletiva, à folia, e o tu desejar o período de 40 dias compreendido
entre a quarta-feira de cinzas e o domingo de Páscoa, período este
caracterizado entre nós pelo isolamento e reflexão espiritual.
De forma engenhosa, estabelece uma aliança de palavras na
construção dulcíssima prisão (verso 28), cujos conteúdos são
incongruentes, utilizando-se do oxímoro. Por meio dessa imagem
paradoxal,
fortalece,
por
conseguinte,
a
estabilidade
do
relacionamento amoroso: ao mesmo tempo em que se mostra
adocicado, é a imposição de uma pena que restringe a liberdade
individual.
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Prosseguindo na análise, nota-se que o verso 1, Onde queres
revólver, sou coqueiro, no qual se opõe revólver – que conota a
briga, a luta, a desavença e até a morte -, a coqueiro – que sugere a
paz, o descanso, a sombra-, é repetido em E onde queres coqueiro,
eu sou obus (verso 44), mas, conforme se pode notar, com a
inversão na ordem dos termos antitéticos. Ressalte-se que obus é
uma espécie de morteiro ou a granada que dele se lança, portanto,
uma arma, um “revólver”. Logo, vale questionar a intenção dessa
repetição. Lendo com atenção, observa-se que há uma alteração na
atitude dos sujeitos, já que agora, tanto um quanto o outro deseja
coisas diferentes das que queriam anteriormente. Essa inversão
sugere a reversibilidade dos desejos, implicando um percurso
transitório de desejos que transcende os limites normais da
compreensão dos envolvidos no plano amoroso, que pode ser visto na
fórmula: quando o Tu quer isso, o Eu quer aquilo; quando o Eu quer
isso, o Tu quer aquilo. Ou seja, os desejos se alteram e impedem a
harmonização.
Por toda a letra da canção, as tensões se dispõem em pares
metaforizados antitéticos que revelam a disparidade de desejos.
Algumas delas são explícitas, transparentes; outras, implícitas, com
conteúdos opostos que dialogam com elementos extratextuais,
pertencentes à cultura, ao conhecimento de mundo e, portanto,
dependentes do contexto extralingüístico para obterem coerência.
Entre as primeiras, cujos conteúdos opostos inscrevem-se no texto e
podem ser reconhecíveis pela grande maioria dos falantes da Língua
Portuguesa, podem-se destacar os seguintes pares, alguns deles com
comentários sugestivos de interpretação semântica: alto X chão (alto
X baixo (chão)); sim e não X talvez; livre X decassílabo (verso livre,
alheio a regras, simbolizando, então, uma pessoa que gosta da
liberdade X medido, regrado, versos com 10 sílabas poéticas,
simbolizando uma pessoa metódica, com regras a seguir . Nesse
caso, o poeta faz uma alusão ao próprio poema, composto de versos
decassílabos); bandido X herói (malfeitor, pessoa de mau caráter,
cruel X benfeitor, homem honrado, notável); lua X sol; mistério X luz
(pode sugerir: incompreensão, coisa oculta, inexplicável, reserva,
segredo X evidência, compreensão, esclarecimento).
No segundo caso, podem-se elencar diversos pares expressos por
sentidos contrários, que puxam o significado para extremos opostos e
que dependem de um esforço interpretativo do leitor. Dentre eles,
destacam-se os versos em que os pares antitéticos, de um lado,
fazem referência à abstração, ao campo das idéias, dos sentimentos,
do estado psíquico, da poesia e, de outro, ao erotismo, ao corpo
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físico, ao desejo carnal, ao concreto, à materialização, ao campo da
sexualidade: 3. Onde queres descanso, sou desejo; 4.E onde sou só
desejo, queres não; 12. E onde queres eunuco, garanhão; 20. E onde
queres ternura, eu sou tesão; 22. E onde buscas o anjo, sou mulher;
23. Onde queres prazer, sou o que dói.
Transparecem,
nesses
versos,
carências
distintas,
nítidas
divergências de vontades, em que o Tu quer “descanso”, “eunuco”,
“anjo”, “prazer”, e o Eu quer “desejo”, “garanhão”, “tesão”, “o que
dói”. Como comentário, toma-se como exemplo o par opositivo
eunuco X garanhão, que pretende significar homem impotente,
estéril, castrado, sem desejo, se opondo a homem mulherengo, viril.
Ainda, o par enigmático anjo X mulher, já que só pode ser visto como
antitético a partir do seu valor contextual, pois, se as palavras forem
tomadas em sentido de dicionário, não se percebe oposição entre
elas. Pelo contrário, sabe-se que essas palavras já foram tomadas
como sinônimas em outros textos, como na poesia romântica. Dessa
feita, para não quebrar o desenvolvimento do tema, a leitura pode
ser efetuada no sentido de anjo conotar um ser imaculado, puro,
ingênuo, tranqüilo, inocente, desprovido de desejos carnais e mulher
conotar um ser ambíguo, pecador, uma mulher sedutora com
necessidades de prazeres carnais.
Merece destaque, dentre os valores semânticos dos versos da canção,
já que afasta as possibilidades de entendimento imediato do leitor, o
par romântico X burguês. Aqui, configura-se a expressividade da
linguagem poética, que, após uma leitura cuidadosa, reivindica a
ativação do conhecimento enciclopédico do leitor, no sentido de ver
que Romantismo e Burguesia, no século XIX, caminharam juntos, o
homem romântico aparece com a ascensão do homem burguês.
Dessa feita, a coerência dos versos é mantida a partir da visão do
romântico como o ser apaixonado, sentimentalista, sonhador, que se
deixa levar pela emoção, e do burguês como o ser apegado a valores
materiais, capitalista, ganancioso, que se deixa levar pela razão. O
reconhecimento
dessas
referências
semânticas
permite
o
entendimento de dois sujeitos que buscam valores desejados
destoantes.
As considerações e análises que tipificam a canção como sendo as
incorrespondências de quereres tão diversos não se esgotam aqui.
De tudo, a flor do querer é uma bruta flor, que marca o discurso dos
conflitos da vida cotidiana a dois, e que faz relembrar os versos de
Almeida Garret, no poema Não te amo, em que o poeta escreve Ai!
não te amo, não; eu só te quero/ De um querer bruto e fero, os
quais sugerem uma interpretação dos versos poéticos como um
campo de forças no qual atua uma poética da vida amorosa num
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esplendor de fragmentos. O labirinto da linguagem encontra
ressonância com o labirinto da canção, os quais anseiam pela busca
da justa adequação entre o Eu e o Outro.
Chegado a esse ponto, as sábias palavras de Marisa Lajolo cabem
como luva para o arremate da análise da canção de Caetano que aqui
se procedeu, visto que não se pode dizer que ela se esgotou, devido
à complexidade de significados que ela abarca:
Cada leitor, na individualidade de sua vida, vai entrelaçando
o significado pessoal de suas leituras com os vários
significados que, ao longo da história de um texto, este foi
acumulando. Cada leitor tem a história de suas leituras,
cada texto, a história das suas. (LAJOLO, 1993, p. 106)
Reconhecidos esses dados, fica evidente que a leitura é o resultado
de uma interação entre o texto e leitor, e que a compreensão dos
sentidos de um texto poético depende da apreensão das estratégias
enunciativas dos planos textual e discursivo. Salienta-se, pois, que no
plano do significado ou do conteúdo semântico das formas
lingüísticas, o sentido das palavras ou a recuperação da referência de
palavras ou expressões e as especializações de sentido que elas
podem assumir só podem ser estabelecidos em função dos contextos
(lingüísticos, sociais, estilísticos, discursivos e qualquer outro) de uso
da língua. Nesse caso, o leitor “não só descodifica o significado das
formas lingüísticas, mas atribui-lhes também valores potenciais
momentâneos, que devem ser decifrados ou recriados, porque não
existem já preestabelecidos no uso comum da língua.” (MARQUES,
2003, p, 23). Ele capta, por conseguinte, os efeitos especiais de
significado que incluem fenômenos conotativos da linguagem.
Pode-se dizer, então, que a análise da materialização lingüística do
texto, cujos conteúdos implícitos dialogam com elementos
extratextuais, resulta na compreensão e na coerência do texto e
favorece, por conseguinte, o desenvolvimento das habilidades
cognitivas do leitor.
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ANEXO
O quereres (Caetano Veloso)
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
9. Onde queres família, sou maluco
10. E onde queres romântico, burguês
11.Onde queres Leblon, sou Pernambuco
12. E onde queres eunuco, garanhão
13. Onde queres o sim e o não, talvez
14. E onde vês eu, não vislumbro razão
15. Onde queres o lobo, eu sou o irmão
16. E onde queres caubói, eu sou chinês
17. Ah! Bruta flor do querer
18. Ah! Bruta flor, bruta flor...
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
Onde queres o ato, eu sou espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
Onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
Eu queria querer-te e amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero e não queres como sou
Não te quero e não queres como és
35. Ah! Bruta flor do querer
36. Ah! Bruta flor, bruta flor...
37. Onde queres comício, flipper-vídeo
38. E onde queres romance, rock’n’roll
39. Onde queres a lua, eu sou sol
40. E onde a pura natura, o inseticídio
41. Onde queres mistério, eu sou a luz
42. E onde queres um canto, o mundo
inteiro
43. Onde queres quaresma, fevereiro
44. E onde queres coqueiro, eu sou obus
45. O quereres e o estares sempre a fim
46. Do que em mim é de mim tão
desigual
47. Faz-me querer-te bem, querer-te mal
48. Bem a ti, mal ao quereres assim
49. Infinitivamente pessoal
50. E eu querendo querer-te sem ter fim
51. E, querendo-te, aprender o total
52. Do querer que há e do que não há em
mim.
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*Mestre em Lingüística Aplicada ao ensino/aprendizagem de língua
materna pela UEM; Professora de Língua Portuguesa, Linguagem e
Argumentação e Tópicos Especiais de Lingüística na UNIGRAN-MS.
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“o quereres”, de caetano veloso