DOM CASMURRO INCOMPREENDIDO Sabe-se que tradução literária é uma das atividades mais fascinantes e difíceis que existem. Há inúmeras obras literárias traduzidas, mas não são muitas obras que têm uma aceitação positiva do público-alvo ou, até mesmo, que foram traduzidas de forma satisfatória. Inúmeros questionamentos ocorrem no ato tradutório e, muitas vezes, são tomadas decisões precipitadas no processo de transferência de um significado de uma língua à outra. Há tradutores que defendem a ideia de que uma tradução tem de ser feita sob uma perspectiva „criativa‟, outros acham que deve ser feita de forma fiel à obra. Em verdade, existem muitas decisões a serem tomadas no ato tradutório que vão além da vontade e criatividade do tradutor. Além disso, o resultado final de uma tradução torna-se, naturalmente, uma nova obra. No entanto, traduzir uma obra literária é uma grande responsabilidade, pois não se trata apenas de traduzir palavras, mas também conhecimento e, muitas vezes, tem de se “traduzir” primeiro o pensamento do autor para começar o trabalho de tradução. No livro Escola de tradutores, Rónai afirma que: “[...] ao tradutor não lhe basta um conhecimento aproximativo da língua do autor que está vertendo. Por melhor que maneje o seu próprio instrumento, não pode deixar de conhecer a fundo o instrumento do autor. O tradutor deve conhecer todas as minúcias semelhantes da língua de seu original a fim de captar, além do conteúdo estritamente lógico, o tom exato, os efeitos indiretos, as intenções ocultas do autor [...]”(1987: 22-3)” Por outro lado, a tradução inadequada de um texto literário pode ocasionar certo desconforto para quem lê. É certo que todas essas questões tratadas até aqui se aplicam a qualquer tipo de tradução, mas o objetivo deste artigo é discutir sobre as dificuldades e impasses na tradução de uma obra literária. Qual a responsabilidade do tradutor? O que deve ser considerado? A literatura é traduzível? Inicialmente, para que possamos entender um pouco sobre o processo de tradução e sua complexidade, analisaremos alguns trechos da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Escrita em 1899, tem como personagem principal Bento Santiago, narrador da história, que relata em primeira pessoa dois momentos de sua vida: a mocidade e sua atual fase. Entre esses dois momentos, Bento conta sobre suas lembranças enquanto jovem, sua vivência no seminário e seu romance com Capitu – surgindo desse romance o tema principal da obra: o ciúme. A obra recebeu inúmeros estudos, adaptações e teve variedades de interpretações por possuir um forte detalhamento do retrato moral da época. É uma das obras mais importantes da literatura brasileira. Atualmente, existem várias versões desta obra em outros idiomas, porém, a análise em questão será feita da tradução português-inglês dos tradutores e autores Scott-Buccleuch e John Gledson. Para que se possa entender melhor o processo de tradução é importante saber sobre ela. Vários especialistas defendem que a tradução surgiu no Império Romano. Diz-se que é importante incorporar a cultura estrangeira nela própria. Para alguns tradutores e estudiosos da área, a arte da tradução vai além de uma simples transição de um idioma a outro. É necessário um entendimento de conceito da época, os fatores que estavam se passando no momento da criação do texto que será traduzido. Uma das melhores definições sobre o que é uma tradução, seja ela literária ou descrita, foi feita por Geir Campos, “Não se traduz afinal de uma língua para outra, e sim de uma cultura para outra; a tradução requer assim, do tradutor qualificado, um repositório de conhecimentos gerais, de cultura geral, que cada profissional irá aos poucos ampliando e aperfeiçoando de acordo com os interesses do setor a que se destine o seu trabalho.” (CAMPOS, 1986, p.27,28) Este artigo apresentará excertos em que ocorreram situações que fogem da compreensão do conceito de tradução como também os acertos e percalços que acontecem e que foram adquiridos no processo e entendimento de uma tradução. Observe que no capítulo V, o título “o agregado”, em Dom Casmurro, Scott-Buccleuch opta por (re)traduzir o título para “A friend of the family” (um amigo da família). Essa tradução é feita devido a uma complexidade que na época havia para encontrar uma palavra que se adequasse a “agregado”, pois a palavra que melhor se referia a essa expressão é „retainers’ (retentor, aderente). Na tese de doutorado de Heloisa Gonçalves Barbosa, ela comenta sobre a complexidade de encontrar palavras corretas, quando não se tem um equivalente na língua-alvo; e a possível incompreensão do tradutor ao trabalhar a obra de Machado de Assis. "Deve-se salientar que Scott-Buccleuch traduz o título deste capítulo como 'O Amigo da Família", talvez desejando tornar a situação menos alienada para os dias de hoje, o leitor de língua Inglesa, pode não estar familiarizado com o conceito de "retainers". Talvez esta decisão tradutória seja devido a uma falta de compreensão da situação por parte da Scott-Buccleuch, o que pode ter repercussões na compreensão da obra de Machado pelos leitores de língua Inglesa. Scott-Buccleuch não faz uso da palavra "retainer" em qualquer outra parte do romance onde o "agregado" é mencionado por este epíteto; em vez disso, ele substitui o nome do personagem, ou a expressão por "um amigo da família'." (154) No entanto, John Gledson traduz “o agregado” para “the dependent”, que é o que melhor adequa-se no contexto da obra. Pois, o capítulo refere-se à chegada de José Dias a casa de Bento, que por ali chega; por ali se acomoda e fica até conquistar um espaço na casa. Em inglês „Dependent’ significa precisar da ajuda de alguém ou de algo. No caso de José Dias, embora tenha condição de trabalhar faz uso de suas “artimanhas” para ter uma posição social elevada à de sua realidade, ou seja, o termo “Dependent” representa um conceito concreto sobre o que é a personagem José Dias na obra de Machado do que simplesmente “A friend of a Family”, que atribui um conceito generalizado para a personagem. É interessante também observar o uso de superlativos feito pela personagem de José Dias, há uma dosagem de ironia, fazendo dessa característica o estereótipo da personagem. E cada tradutor fez a seguinte escolha no excerto: “um dever amaríssimo”: “the bitterest of duties” por Scott-Buccleuch e “the harshest of duties” por John Gledson. Esses excertos traduzidos para o inglês foram retirados do capitulo III: "Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo...” (2009;11) No excerto acima, trata-se do “inocente” aviso de José Dias à mãe de Bento, alertando-a sobre um suposto namoro entre Capitu e Bento, ele finaliza seu discurso usando o adjetivo “amargo” no superlativo que remete a ideia de agir de forma ingênua e honesta. Logo, vemos que a tradução para “bitterest” dada por Scott-Buccleuch, sugere uma ação “maquiavélica” de José Dias; faz dele uma personagem desagradável. O excerto em inglês pode ser lido a seguir: “If I had known I wouldn't have spoken -- but I did so out of esteem, out of affection, to fulfil a duty, the bitterest of duties.” Porém, John Gledson traduziu “amaríssimo” para “harshest”, que literalmente significa “áspero, desagradável”. A ideia que se tem no trecho em que ocorre “a denúncia” de José Dias, é fazer o leitor pensar que para ele (a personagem) é muito desagradável contar à D. Glória sobre o suposto caso dos dois. A seguir, o excerto traduzido: "If I'd known, I wouldn't have spoken, but I did so out of veneration, out of esteem, out of affection, to fulfill a harsh duty, the harshest of duties...." (1997;9) Outra perda de caracterização da personagem ocorreu no capítulo intitulado “Capitu”. Nele a personagem de Capitu tem a cor dos olhos definidos para azuis, na tradução de ScottBuccleuch. Observe no excerto a seguir: Original: “Morena, olhos claros e grandes” Scott-Buccleuch: “She was dark, with large blue eyes” Gledson: “She was of a dark complexion, with large, pale eyes” No entanto, o que é notável entre as traduções de Gledson e Scott-Buccleuch, é a dificuldade de encontrar uma palavra que melhor se adéqua à “morena”. Segundo o dicionário Aurélio, a definição da palavra morena é: s.f. Mulher de cor trigueira. /Eufemisticamente, mulata, cabrocha. Resultando, assim, em possíveis diferentes interpretações. Ao ler “she was dark”, temse a imagem de uma personagem de tom de pele escura ou negra. Na tradução de Gledson, ele optou por usar “of a dark complexion” termo que se refere ao tom de pele que não é tão escuro (dark) nem claro demais. Percebe-se, nos exemplos citados, que não existe uma forma padrão para que cada tradutor consiga deixar a obra mais fiel ao texto original, mas é necessário que haja um bomsenso dele em seu trabalho. No processo de tradução, deve-se levar em consideração a sensibilidade do autor, bem como, a estética que ele usa. Ronai afirma que: “[..]Assim a fidelidade alcança-se muito menos pela tradução literal do que por uma substituição contínua. A arte do tradutor consiste justamente em saber quando pode verter e quando deve procurar equivalências. Mas como não há equivalências absolutas, uma palavra, expressão ou frase do original podem ser frequentemente transportadas de duas maneiras, ou mais, sem que se possa dizer qual das duas é a melhor.” (1987: 22-3)” De fato, traduzir uma obra literária ou não, requer um vasto conhecimento linguístico e cultural. No que concerne às obras de Machado de Assis, apresentou-se nesse artigo as dificuldades na tradução de Dom Casmurro, entende-se que a missão de traduzir uma obra dessa magnitude não é tão fácil. Essa obra é tida como uma das mais complexas a ser traduzida, em virtude das características machadianas como a concisão, a omissão de palavras e o contexto cultural contido nela. Ao tradutor, ter conhecimento linguístico de ambas as línguas não é o suficiente, se não houver o conhecimento cultural profundo de nossa cultura. Não é de se surpreender que a tradução de John Gledson seja o que mais se aproxima em nível de equivalência linguística e cultural, devido a sua forte relação com a cultura do país e por ser um profundo estudioso machadiano. Em relação às traduções das obras machadianas em uma entrevista à revista eletrônica “Escritos. Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa” afirma que: “Nos detalhes da tradução de Machado (como de outros, Milton Hatoum, Roberto Schwarz etc.) acho que só tentei fazer uma versão fiel e legível, natural, o que no caso de Machado não é tão difícil assim, para quem tem (como espero que eu tenha) as antenas ligadas ao ritmo da prosa, e, sobretudo à ironia, e está disposto a pacientar, não se apressar.” (Gledson, John. 2011: 282) Em conclusão, é de grande importância ao traduzir uma obra saber com o que vai lidar e saber contornar os percalços no ato tradutório. Portanto, deve-se ter não só um bom conhecimento da cultura para o qual vai se traduzir, mas tem de ter a perspicácia nos impasses adquiridos no processo de tradução. Na prática, nem sempre será possível manter uma fidelidade ponto-a-ponto em uma tradução, devido às várias diferenças culturais que existem entre um país e outro. No entanto, jamais deve ser feito uma escolha tradutória baseada nas próprias interpretações do tradutor, mas sim, no conhecimento adquirido no estudo que foi realizado para a tradução de qualquer obra. Diogo Natal Ramos Curso de Letras, Tradutor e Intérprete 3 ALENTI, 2014