Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Mariana Leal Rodrigues Mulheres da Rede Fitovida: ervas medicinais, envelhecimento e associativismo Rio de Janeiro 2007 11 Mariana Leal Rodrigues Mulheres da Rede Fitovida: ervas medicinais, envelhecimento e associativismo Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Profª. Drª. Clarice Ehlers Peixoto Rio de Janeiro 2008 12 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CCS/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ___________________________ ____________________ Assinatura Data (Ao imprimir esta folha deverá ficar no verso da folha de rosto- folha anterior) 13 Mariana Leal Rodrigues Mulheres da Rede Fitovida: ervas medicinais, envelhecimento e associativismo Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aprovado em ________________________________ Banca Examinadora: __________________________________________ Profª. Drª. Clarice Ehlers Peixoto (Orientadora) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ __________________________________________ Profª. Drª.Myriam Lins e Barros Escola de Serviço Social da UFRJ __________________________________________ Prof. Dr. César Carvalho Universidade Estácio de Sá Rio de Janeiro 2008 14 DEDICATÓRIA À memória minha querida Vó Thereza, que não era herbalista, mas dominava a arte de cuidar. 15 AGRADECIMENTOS Este trabalho não seria possível sem a boa vontade de inúmeros colaboradores, que abriram portas, indicaram caminhos ou acolheram o projeto. Em primeiro lugar agradeço às integrantes da Rede Fitovida que aceitaram a proposta e permitiram sua realização e à Luciene Simão (UFF), pela gentileza de me apresentá-las. A produção do texto e do vídeo também contou com muitos braços solidários. Agradeço a Bárbara Copque e a meu pai Alcides Redondo, que deram uma mãozinha na captação de som; a André Sutton, que não só editou o filme como colaborou para construção da narrativa, e às revisoras voluntárias Gláucia Cruz e Sheila Dunaevits Sem a tolerância e a escuta de familiares e amigos, a pesquisa teria sido mais penosa. Agradeço a eles e a Dirceu Bellizzi pela compreensão e o apoio de sempre. Finalmente, agradeço ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ, em especial à professora Clarice Peixoto, e à Faperj que forneceram as condições para a realização desta pesquisa, como a possibilidade de participar do programa Bolsa Nota 10. 16 RESUMO RODRIGUES, Mariana Leal. Mulheres da Rede Fitovida: ervas medicinais, envelhecimento e associativismo, 2007. 163 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Existem no Rio de Janeiro cento e oito grupos que produzem remédios com ervas medicinais de maneira voluntária. Desde 2000, formam a Rede Fitovida para transmitir conhecimento e debater soluções conjuntas para as dificuldades que enfrentam. É um movimento sem filiação partidária ou religiosa cujas características principais são o trabalho voluntário e a venda de preparações medicamentosas a preço de custo. É composto por mulheres com 50 anos ou mais, de camadas populares, que se reúnem em cozinhas comunitárias. O objetivo da pesquisa é analisar os aspectos culturais – práticas curativas e transmissão de conhecimentos de um grupo que integra a Rede Fitovida. Através da metodologia antropológica e do registro audiovisual, o que possibilita um olhar mais cuidadoso sobre os fenômenos sociais, esta pesquisa visa compreender quem são essas mulheres, o que fazem e por que o fazem. Na medida em que participam de uma rede de trocas, além de cuidarem da saúde de si, dos familiares e vizinhos, as mulheres da Rede Fitovida se constituem como um movimento social reivindicatório pois demandam o reconhecimento do Estado pelo saber que detêm e transformam a própria percepção enquanto sujeitos em processo de envelhecimento, resignificando alguns estigmas negativos da velhice. Palavras-chave: Plantas medicinais. Envelhecimento. Gênero. Antropologia visual. Filme etnográfico. 17 ABSTRACT In Rio de Janeiro State, there are one hundred and eight groups of women who produce medicines with herbs. Since 2000, they are organized in a network called Rede Fitovida to transmit their knowledge and debate how to deal with their common difficulties. It‟s a social movement without party or religion affiliation composed by old women from popular layers that get together at kitchens of communitarian centers. None of them receive money or any other kind of payment for their work. Their activity is volunteer and nonprofitableThe objective of this ethnography is to analyze cultural aspects of a group that belongs to this network, such as healing practices and knowledge transmission. Through an anthropological methodology and audiovisual documentation which allows a more careful look on the social phenomena this research aims to understand who are those women, what they do and why. As part of a network of exchanges, besides taking care of their health and of their neighborhood‟s, these women create a social movement that demands the recognition for their traditional knowledge by the State. They also change their own perception of individuals in aging process, overcoming the negative elderly stigmas Keywords: Medicinal herbs. Aging. Gender. Visual anthropology. Ethnographic film. 18 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 A REDE FITOVIDA E O GRUPO GRÃO DE MOSTARDA: SURGIMENTO,CONSTITUIÇÃOE PROCESSO DE TRABALHO ...................19 3 O MILAGRE DAS PLANTAS E CONCEPÇÕES DE NATUREZA NA REDEFITOVIDA ....................................................................................................... 57 4 ENVELHECIMENTO FEMININO, SOCIABILIDADE E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES .................................................................................................. 89 5 CÂMERA E PESQUISA: O QUE AUDIOVISUAL REVELA .......................... 113 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 154 REFERÊNCIAS .....................................................................................................158 19 INTRODUÇÃO. Mulheres da Rede Fitovida: um olhar para o envelhecimento Uma vez por semana, um grupo de mulheres se encontra na cozinha comunitária de uma igreja para produzir e distribuir medicamentos naturais a preço de custo. Duas vezes por ano, dezenas de grupos similares se encontram e trocam receitas e experiências. No estado do Rio de Janeiro, hoje, existem cento e oito grupos que produzem remédios com ervas medicinais de maneira comunitária, articulados a partir da Rede Fitovida. Tais grupos são formados majoritariamente por mulheres com 60 anos ou mais, pertencentes às classes populares e, em geral, se reúnem nos espaços cedidos pelas igrejas católica e evangélica. Desde 2000, estão organizados em rede, para que possam trocar conhecimento, compartilhar dificuldades e buscar soluções conjuntas. Estas mulheres já atuavam no ambiente familiar, orientando vizinhos e vendendo suas preparações medicamentosas são xaropes, ungüentos, sabonetes, xampus, tinturas etc, feitos com ervas medicinais. Na medida em que passaram a se organizar em grupos e em rede, começaram a atuar também no espaço público, prestando atendimentos voluntários em saúde preventiva. Esta transição modificou o modo como trabalham e transmitem seu conhecimento, valorizando a figura das mulheres mais velhas como detentoras de um saber. Apesar de se organizarem dentro do ambiente da Igreja Católica, suas práticas não estão ligadas a curas espirituais. Os grupos que integram a rede não se definem como agentes de curas religiosas e o termo fitoterapia revela a intenção de se diferenciarem destes agentes. Em 2003, sem avançar no relacionamento com o poder público1, a Rede Fitovida conseguiu apresentar, com sucesso, uma proposta de registro de saberes como patrimônio imaterial ao 1 Atualmente, quem regula esta atividade é a Agência Nacional de Vigilância, estabelecendo normas e procedimentos para a comercialização de produtos fitoterápicos. Estas leis e normas tornam vulnerável o trabalho comunitário desenvolvido pelos grupos, mesmo sem fins lucrativos, os medicamentos são comercializados ou doados, dependendo da necessidade do doente. Para evitar chamar a atenção de órgãos como a Vigilância Sanitária, os grupos são batizados com nomes que não identificam imediatamente a atividade terapêutica com plantas, como Saúde pela Natureza, Natureza Viva, etc. 20 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, graças ao apoio de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal Fluminense que fazia pesquisas sobre o registro de patrimônio imaterial de práticas culturais. Atualmente, a rede concentra esforços para realizar um inventário de suas receitas, o primeiro passo no processo de registro. Plantas medicinais no Brasil O uso de plantas medicinais no Brasil foi a base da farmacopéia até meados do século XX, quando houve o boom da indústria farmacêutica no mundo. “Até o século XX, o Brasil era um país essencialmente rural, com amplo uso da flora medicinal, tanto a nativa quanto a introduzida. Com o início da industrialização e subseqüente industrialização do país, o conhecimento tradicional começou a ser posto em segundo plano. O acesso a medicamentos sintéticos e o pouco cuidado com a comprovação farmacológica das plantas tornou o conhecimento da flora medicinal sinônimo de atraso tecnológico e charlatanismo. Essa tendência seguiu o que já acontecera em outros países em processo de urbanização. Um segundo aspecto que certamente contribuiu para o afastamento do estudo das plantas medicinais e o restante da ciência foi a ampla resistência desta primeira às profundas alterações que tanto a sistemática vegetal quanto a medicina experimentaram no final do século XIX e todo o século XX. Fortemente baseado em trabalhos mais clássicos, o estudo das plantas medicinais mostrou uma resistência inicial a acompanhar as revoluções científicas ocorridas neste período. Essa inadequação inicial manteve a fitoterapia em um período de obscurantismo, onde esteve mais próxima do misticismo do que da ciência.” (Lorenzi & Mattos, 2002:) A noção de medicina popular, normalmente, engloba diversas técnicas exercidas de diferentes formas, por pessoas que são especialistas em ervas, que receitam, vendem ervas naturais ou produtos compostos, parteiras, benzedeiras e raizeiros. Estas atividades são 21 exercidas em espaços públicos e privados e, muitas vezes, através de agências religiosas católicas, pentecostais, umbandistas e candomblecistas. As críticas e controles que se fazem aos “curandeiros” revelam a importância dos médicos como os detentores do conhecimento oficial sobre a saúde. Autores que se dedicaram ao tema, como L. Boltansky e A. Loyola, mostraram que a medicina natural é constituída de práticas de medicina doméstica, à qual as pessoas recorrem primeiro em caso de doença2. Somente após terem sido esgotadas as alternativas caseiras de cura, o médico é procurado. Atualmente, a fitoterapia e outras terapias consideradas “alternativas” (homeopatia, crenotrapia e acunpuntura) têm sido reconhecidas como práticas médicas e introduzidas nos atendimentos do Sistema Único de Saúde para o tratamento de doenças crônicas e na prevenção. Um olhar, um grão O campo, em si, permite diversas abordagens. É um trabalho voluntário realizado por mulheres, em comunidades de baixa renda, na área de saúde preventiva. É um movimento social reivindicatório que põe em evidência pessoas com 60 anos ou mais. Elas apresentam relatos de cura distintos . Nesta pesquisa, pretendo analisar os aspectos culturais – práticas curativas e transmissão de conhecimentos – de um grupo do município de Belford Roxo que integra a Rede Fitovida, o Grão de Mostarda. 2 Sobre as práticas familiares: “É preciso ter em mente que os moradores do bairro, quando doentes, tratam-se primeiro por conta própria e só recorrem aos diversos especialistas da cura depois de esgotarem todos os recursos terapêuticos familiares. Estes resultam, basicamente, de uma experiência acumulada pela família” (Loyola, 1984:125). 22 Este grupo3 funciona na cozinha da Igreja Nossa Senhora da Fátima, em frente ao posto de saúde do bairro Santa Maria. Todas as quintas-feiras, dezenas de pessoas o freqüentam à procura de xarope para gripe, bronquite, multimistura4, leite forte, pomadas, vermífugos, sabonetes, xampus e mistura de chás, entre outros produtos. Às vezes, o melhor remédio é uma conversa à beira do balcão com algumas das senhoras do grupo. Neste dia, o café, o almoço e o lanche são compartilhados, sempre acompanhando biscoitos e bolos caseiros. A ferramenta de pesquisa utilizada foi uma câmera de vídeo, o que resultou em um material rico em histórias de vida, momentos de sociabilidade, receitas curativas à base de plantas medicinais e, principalmente, narrativas de cura surpreendentes. Através da escolha deste instrumento, foi possível realizar um exame cuidadoso e repetido das atividades registradas. A própria produção do vídeo etnográfico se tornou elemento da construção da relação entre observador e observado e, posteriormente, de preservação da memória do grupo, um processo do qual o Grão de Mostarda e a Rede participaram ativamente. Considerando a Rede Fitovida como uma associação, cujo objetivo das reuniões é não só a transmissão das receitas curativas, mas também a criação de um espaço de sociabilidade para mulheres de 60 anos ou mais já que elas brincam, conversam e trocam experiências nesses encontros - busquei entender qual a importância do projeto fitoterápico e das práticas de sociabilidade para estas mulheres que vivem na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Como são mulheres de idade mais avançada, muitas aposentadas ou pensionistas, é de se imaginar que nesta etapa da vida já não postulariam mais participar de grupos sociais reivindicativos. Assim, a principal questão que pretendo desenvolver é: o que leva essas mulheres de baixa renda a se organizarem em redes e a pleitearem o reconhecimento do seu 3 O Grão de Mostarda é composto por onze mulheres moradoras de Belford Roxo. Cinco delas têm menos de 50 anos, duas afirmam ter entre 50 e 60 anos e o restante tem entre 60 e 75 anos. A renda familiar do grupo varia de meio salário até dois salários mínimos. 4 A multimistura é um produto para fortalecer a alimentação, destinado principalmente às crianças através do projeto da Pastoral da criança. Leva farinhas integrais enriquecidas com outros minerais necessários ao bom desenvolvimento das crianças. A produção do grupo também está voltada a atender a famílias da região registradas no programa de assistência da Pastoral. Segundo a coordenadora do grupo, Elisabeth Martins, a relação com a Pastoral da Criança se resume a isso. 23 saber popular como patrimônio? Quais são as formas de transmissão desse conhecimento e para quem o transmitem? Diante de inúmeras condições desfavoráveis – os integrantes dos grupos que compõem a Rede Fitovida pertencem às classes populares, não dispõem de recursos para investir na fabricação dos medicamentos e na promoção de reuniões etc –, acredito que o trabalho desenvolvido pelos grupos de mulheres seja um exemplo de ação, autonomia e criatividade individual diante de um contexto social em que vivem. Se de um lado existe a proeminência de determinismos sociais sobre estes indivíduos – com a precariedade dos serviços de saúde, a frivolidade das relações entre médico e paciente, o alto custo de medicamentos industrializados e o papel da mulher mais velha na família etc de outro, há a subjetividade dos atores: suas experiências pessoais com a medicina popular, a necessidade de sociabilidade, o valor simbólico do trabalho voluntário etc. Também podemos compreender a Rede como uma forma de resistência às megaestruturas do setor produtivo (como as indústrias farmacêuticas e de alimentos) e a afirmação de valores tradicionais. Ao contrário dos programas para a Terceira Idade “criados” para se enquadrarem no modelo de consumo capitalista – em grupos de convivência, clubes, escolas e cursos que oferecem a “sociabilidade” como uma de suas mercadorias (Britto da Motta, 2004: 113) –, a Rede Fitovida é uma associação de promoção de laços de solidariedade, com ações voltadas para o benefício da comunidade. Devo assinalar que não tenho a intenção de analisar a questão sob o prisma dos estudos de religião. Embora estar inserido nas Comunidades Eclesiais de Base seja uma dimensão importante para a compreensão do fenômeno no estado do Rio de Janeiro, seus valores fundamentais são conceitos humanistas de igualdade, solidariedade e fraternidade, que, antes de serem adotados como um projeto cristão, fundamentaram o projeto democrático moderno. 24 A experiência da Rede Fitovida é um exemplo de prática da medicina natural popular que permite refletir sobre um tema essencial às Ciências Sociais: a polarização entre determinismo pela estrutura e a capacidade de expressão e ação subjetivas. Na medida em que reivindicam a legitimação de suas práticas, as mulheres da Rede Fitovida buscam se colocar em um lugar privilegiado como detentoras de um saber tradicional. Entretanto, a fonte deste conhecimento não se restringe à memória das integrantes mais velhas ou às receitas de família. Suas práticas também são influenciadas por fontes literárias sobre o assunto e pela popularização da medicina alternativa (barroterapia, bioenergética etc) a partir de uma "onda de naturalismo", para usar as palavras de uma integrante do Grão de Mostarda. Portanto, a ação destes grupos é também reflexiva e está se atualizando constantemente, seja na troca de uns com os outros, seja na aquisição de novos conhecimentos médicos, produzindo uma verdadeira “reinvenção” da tradição. Ao distribuírem suas preparações medicamentosas a preço de custo, as integrantes da rede reforçam o princípio ético da não obtenção de lucro através de suas práticas através de um complexo sistema de trocas. Ao contrário da medicina científica, o verdadeiro saber do grupo não é a técnica da fabricação dos medicamentos em si, mas a forma de cuidar, o que põe em destaque as relações pessoais no processo de cura. Minha hipótese é que a experiência da Rede Fitovida seja de enorme importância na vida cotidiana de suas integrantes e das comunidades onde vivem, tendo em vista o grande número de grupos espalhados pelo estado do Rio de Janeiro. A partir deste trabalho, elas resignificam o processo de envelhecimento, combatendo os estigmas de inutilidade, doença e degeneração física e mental aos quais esta etapa da vida é associada. Um caminho O primeiro capítulo é dedicado às informações sobre a Rede Fitovida, a maneira como surgiu, como está constituído como movimento social, seus valores e objetivos, além de 25 sua dinâmica de mobilização. Também apresento o grupo Grão de Mostarda, sua história, suas integrantes, a forma de adesão de cada uma e as preparações medicamentosas que produzem. Este grupo funciona em frente a um posto de saúde municipal e sua coordenadora também é responsável pela condução do Inventário Nacional de Referências Culturais na Rede Fitovida. A questão que a Rede Fitovida reivindica reconhecimento do conhecimento popular sobre uso de plantas medicinais como patrimônio imaterial é uma estratégia de legitimação pela cultura, uma vez que esse reconhecimento não tem sido possível através de políticas públicas de saúde. Nesse capítulo analiso a posição do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária no que diz respeito ao uso de plantas medicinais. No segundo capítulo, analiso como as representações da natureza na cultura brasileira fundam a noção compartilhada pela Rede Fitovida de que os remédios naturais são melhores do que os industrializados e, ainda, como esta Rede resignifica o papel do povo, positivando-o, na medida em que considera o saber popular como um bem imaterial. Tais percepções condicionam técnicas de cuidados com a saúde a prática de uma alimentação e da medicina naturais que caracterizam os grupos da Rede, combinando terapias preventivas com plantas medicinais e medicina científica. A transmissão de conhecimentos realizada de forma individual e coletiva, no ambiente familiar e nos ambientes públicos, é analisada a partir da prática cotidiana das mulheres do grupo Grão de Mostarda e dos encontros da Rede Fitovida. No terceiro capítulo, aprofundo a análise sobre como estas mulheres de camadas populares experimentam o processo de envelhecimento, superando os estigmas negativos da velhice. Enquanto um movimento social de mulheres, a Rede Fitovida se inscreve na tendência mundial de participação feminina em ações sociais. O processo de envelhecimento e as 26 diversas formas de vivenciar esta etapa da vida pelos indivíduos estão relacionados neste capítulo com as transformações demográficas atualmente em curso na sociedade brasileira. O quarto capítulo é dedicado à metodologia aplicada na pesquisa, que teve como principal instrumento o uso do audiovisual durante o trabalho de campo. A fim de situar o leitor quanto ao uso desta ferramenta e para encontrar uma metodologia para o uso do audiovisual na pesquisa etnográfica, precisei ir buscar a história de construção desse campo. O princípio de feedback das imagens, a encenação que o uso da câmera provoca e a necessidade de ser reflexivo na pesquisa antropológica são alguns temas que desenvolvo a fim de mostrar quais foram as escolhas metodológicas, suas vantagens e desvantagens. O uso do audiovisual permite ao espectador perceber a relação entre observador e observado que se estabelece ao longo de todas as pesquisas antropológicas, além de reunir um material que se presta a análises diversas, inclusive para outros pesquisadores. Quem dita o “texto” do vídeo são os próprios agentes, pois são as únicas vozes a contar o que é feito. A autoria fica por conta de um “olhar” particular, um ponto de vista construído a partir de uma experiência. Para percorrer o caminho interpretativo de um fenômeno social, foi preciso perceber o que já trazemos conosco em nossa bagagem de pesquisador. Em se tratando de uma etnografia que usa o audiovisual, é necessário ter atenção às representações sobre o povo na produção audiovisual contemporânea, documentário e ficção, e sobre os espaços comumente consagrados ao povo, como as favelas e as periferias. Alguns filmes serviram de referência, como A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner (2005), e a obra de Eduardo Coutinho, que são citados e analisados. O primeiro coloca uma questão para a realização de seu filme: "Existe vida inteligente na miséria e na pobreza?" que é reveladora sobre a forma como o cinema documental brasileiro tem trabalhado a imagem das camadas 27 populares através da valorização da cultura, principalmente a partir dos anos 80 (Leite, 2006:48). Embora esta pesquisa não ignore questões como a ausência de políticas públicas eficazes para pessoas com 60 anos ou mais e a precariedade do serviço público saúde, o objetivo não é fazer um vídeo etnográfico em tom de denúncia, mas que conte como mulheres vão experimentando novas identidades na medida em que se engajam em uma ação social. O ponto de partida é um questionamento comum a muitos estudos sobre envelhecimento: "É possível envelhecer sem se deixar influenciar pelos estigmas negativos da velhice?" (Peixoto, 2004:9). 28 2 -A REDE FITOVIDA E O GRUPO GRÃO DE MOSTARDA: SURGIMENTO, CONSTITUIÇÃO E PROCESSO DE TRABALHO A Rede Fitovida se formou quando líderes comunitários envolvidos em projetos semelhantes de saúde alternativa, desenvolvidos no estado do Rio de Janeiro, decidiram promover encontros para debater suas atividades. Havia muitos grupos que produziam medicamentos com ervas medicinais por meio de trabalho voluntário que não se conheciam e estavam isolados, a partir da identificação destes grupos feita por Rita de Cássia5 (moradora de Queimados e que pertencia a um grupo na paróquia local), Marta (médica e homeopata que realizava um trabalho semelhante em São Gonçalo) e Marcos 6 (agrônomo que desenvolvia projetos de agricultura urbana com comunidades de baixa renda) organizaram cursos e encontros que resultaram na formação da Rede em 2000. Segundo um artigo assinado por alguns integrantes, a história da formação da Rede está ligada ao surgimento de grupos voltados para atender às demandas das comunidades onde estavam localizados. Em 1980, a Diocese de Nova Iguaçu convidou uma irmã para ministrar um curso sobre manipulação e uso de ervas medicinais, o que motivou a organização de alguns grupos apoiados pelas paróquias locais. Mas foi na década de 90 que grande parte delas se fortaleceu. Três exemplos são: o grupo Energivida, de Xerém; o Sementinha, do complexo de favelas da Penha; e o Grupo Alternativo de Sáude, de Volta Redonda. Em um encontro de partilha realizado em 2001, foi redigida uma carta de princípios e começaram a discutir de que maneira era possível oficializar a atividade 7, sujeita a uma legislação rigorosa. 5 Todos os nomes utilizados neste trabalho são pseudônimos. Engenheiro agrônomo e coordenador do Programa de Agricultura Urbana da AS-PTA, ONG que desenvolve projetos de agroecologia. 7 Segundo o código penal, artigos 283 e 284, quem exerce a medicina popular, receitando substâncias ou usando gestos e palavras para fazer diagnósticos e obter curas, pode ser considerado curandeiro ou charlatão (o charlatanismo está definido no artigo 283 e o curandeirismo pelo 284). As penas variam de três meses a dois anos de detenção. A lei determina o que é uma prática legítima de medicina e o que é ilegítimo. Alguns grupos da Rede chegaram a sofrer ameaças e represálias por comercializarem medicamentos fitoterápicos, o que explica o nome dos grupos serem sempre referências à natureza . Outros, como o Grão de Mostarda, 6 29 O Encontro de 2001 aconteceu no município de Duque de Caxias e apresentava os seguintes princípios: solidariedade; não ter fins lucrativos; estimular trocas solidárias e multiplicação de agentes; preservar a natureza; plantar sempre e colher o que plantar, privilegiando as hortas comunitárias; acreditar na medicina natural e ter independência em relação à indústria farmacêutica; promover o movimento através de trocas; fortalecer a rede; lutar politicamente por melhores condições de vida; resgatar e fortalecer o saber popular como fonte de conhecimento; valorizar e estimular adesões e respeitar a disponibilidade de cada um; respeitar e ouvir a opinião do outro; ter independência do poder público; movimento não-religioso e apartidário; facilitar o acesso a alimentos saudáveis e naturais; socializar a informação e, por último, não aceitar como naturais o oportunismo e a barganha política. Em 2003, após discutirem qual seria a melhor forma de organização, passaram a se denominar “Rede Fitovida, Movimento Popular de Saúde Alternativa”, com o objetivo de reunir as diferentes experiências e refletir sobre o trabalho desenvolvido nos grupos. A Rede é uma “articulação social em prol dos conhecimentos tradicionais sobre plantas medicinais”, formada por um conjunto de grupos constituídos por mulheres idosas, “que possuíam um grande saber tradicional sobre plantas medicinais e remédios caseiros” 8. Sobre o processo de formação da Rede, Rita conta: “A gente percebeu que não queria ser ONG, nem associação, nem cooperativa. Queria ser, de fato, um movimento articulador dessa experiência. (...) E nos amarramos a começar a aprofundar de que forma a gente podia ter o registro dentro dos critérios colocados naquele encontro. E aí, no ano seguinte, a gente descobre que existe por parte do governo federal, através do Ministério da Cultura, um referencial que pensa e discute essa questão do registro a partir de um inventário do saber popular. Onde garante que homens e mulheres possam produzir e trabalhar com as plantas medicinais e serem reconhecidos e respeitados a partir das leis colocadas” (Rita de Cássia, 2006). O caminho para a organização dos grupos esbarrou “na falta de reconhecimento e de políticas públicas que respeitem os saberes do povo como conhecimento culturalmente conseguem uma sinergia com o serviço de saúde local, seus produtos têm eficácia reconhecida e são recomendados pelos médicos que atendem no posto de saúde local. 8 Artigo proposto à Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, no prelo. 30 construído”9. A busca de legitimação desta prática junto à população e ao Estado apontou para um “novo caminho”: o Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Para dar início ao registro da prática da medicina popular como bem imaterial 10 foi preciso a colaboração e a autorização do IPHAN, em 2003. Desta forma, através do Ministério da Cultura, a Rede Fitovida reivindica o reconhecimento pelo trabalho voluntário que realiza. Na cartilha de princípios da Rede destacam-se pontos significativos para compreender o propósito desta organização. Além de afirmar sua natureza voluntária, sem fins lucrativos, alguns tópicos têm clara indicação política (como a afirmação do valor do conhecimento popular e a reserva quanto ao envolvimento dos grupos em ações político-partidárias), enquanto outros visam regular as práticas de saúde alternativa e estimulá-las, principalmente no que diz respeito às formas de organização. Fica evidente no conteúdo desta carta de princípios a reivindicação pelo direito ao exercício de uma medicina natural, a valorização de cultivos orgânicos e a independência das indústrias farmacêuticas e de adubos. Entretanto, no artigo (Matos et al.) é possível identificar de forma mais clara a missão “resgatar os saberes tradicionais no uso das plantas, de antigos moradores, e promover hábitos alimentares mais saudáveis”, a visão - "a natureza como fonte de inspiração para viabilizar opção de saúde independente da indústria farmacêutica" e os valores da organização - "a prática de solidariedade, tendo compromisso com a transformação da sociedade". Podemos ainda identificar neste texto o campo de ação da Rede para além do impacto em suas comunidades: “Sabe-se que muitos são os interesses articulados às corporações internacionais, aos grandes laboratórios, aos saques à biodiversidade, ao registro de patentes, aos problemas referentes à propriedade intelectual, às acusações de prática de curandeirismo, que desqualificam os fazeres da farmacopéia popular. Fora 9 Idem. O inventário tem sido feito sob a orientação de técnicos do IPHAN e coordenado por alguns membros da Rede: Luciene Simão, antropóloga e doutoranda da UFF; Elisabeth Marins, administradora e integrante do grupo Grão de Mostarda; Luzia Martins, mestre em Botânica; Márcio Mattos, mestre em Engenharia Agrônoma e Viviane Ramiro, fisioterapeuta sanitarista. A função dos coordenadores é orientar os interlocutores de alguns grupos no levantamento das informações e consolidá-las para que sejam entregues aos técnicos do IPHAN. 10 31 todos esses conflitos de interesse, temos ainda as agências de saúde pública operando com um olhar burocrático, preocupado apenas com o princípio ativo das plantas”. Desta forma, a Rede Fitovida reconhece que sua função social vai além de permitir trocas solidárias de preparações medicamentosas e que visa, sobretudo, reservar o saber popular tradicional a salvo de interesses comerciais e transmiti-lo. Os integrantes da Rede, através deseus princípios e objetivos, demonstram uma preocupação em fomentar uma nova cultura de prevenção em saúde com a valorização do conhecimento dos mais velhos, promovendo um “resgate”, isto é, restituindo tal conhecimento para a população. O método científico que regula as práticas da medicina e somente reconhece o uso de plantas medicinais mediante estudos farmacológicos foi uma referência para a Rede na elaboração de suas propostas, ainda que seja contestado. O conflito medicina popular x medicina científica vem sendo analisado por diversos autores, entre eles, veremos as considerações de L. Boltanski, Loyola e E. Oliveira. Entretanto, não será o eixo desta pesquisa, uma vez que a própria Rede já abandonou este confronto, posto que sua reivindicação, atualmente, é a autonomia da população para praticar a prevenção e os cuidados com a saúde sem a submissão à lógica médica. Em pesquisa sobre medicina popular entre famílias urbanizadas e rurais na França, Boltanski mostra como a percepção da doença, o recurso ao médico, o consumo de medicamentos e a utilização de práticas de saúde familiares estão relacionados “a uma estrutura de classes, através, de um lado, do uso do corpo, cujas determinações primeiras podem ser buscadas no sistema produtivo, e, de outro, na medicina científica que do ponto de vista ideológico tem sobre aquele um controle quase absoluto” (Boltanski, 1979: 10). Para o autor, a legitimação da medicina científica se pautou na oposição às práticas leigas, como o curandeirismo, com o qual foram identificadas as práticas de medicina popular. No Brasil, essa oposição se fortaleceu no decurso do século XX com a ampliação do acesso à saúde para a população, sobretudo ao longo do rápido processo de urbanização. 32 Loyola desenvolveu uma pesquisa sobre as práticas de saúde da população de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (1976 a 1979), na qual relacionou as diversas práticas de cura com seus atores para mostrar como estavam ligadas à cura do corpo e do espírito, revelando as representações do processo saúde-doença e os diferentes sistemas de cura. Para a autora, naquele momento, a Igreja Católica priorizava a medicina tradicional, científica, em detrimento das práticas populares. Ao mesmo tempo em que a Igreja estimulava a população a reivindicar o acesso aos serviços públicos de saúde, precários na região, repudiava as práticas de cura baseadas em superstições e magias, bem como as exercidas em terreiros de umbanda e candomblé e por outros “profissionais” de cura. Assim, a história da medicina, pelo menos há um século, é a história de uma luta contra os preconceitos médicos do público e, mais especialmente, das classes baixas, contra as práticas médicas populares, com o fim de reforçar a autoridade do médico, de lhe conferir o monopólio dos atos médicos e colocar sob sua jurisdição novos campos abandonados até então ao arbítrio individual, tais como a criação dos recém-nascidos ou a alimentação” (Loyola, 1984, 14). A autora ainda chama a atenção sobre a forma como a medicina popular é descrita por folcloristas, situada fora do contexto das práticas médicas. “Adotando implicitamente o ponto de vista da medicina científica, a única reconhecida oficialmente, eles tendem a conceber o conhecimento e as técnicas da medicina popular como sobrevivências folclóricas de uma época passada, de regiões rurais e comunidades tradicionalmente isoladas e atrasadas, ligando o desaparecimento destas práticas terapêuticas ao desenvolvimento da urbanização” (Loyola, 1982:3). E. Oliveira afirma que a medicina popular é parte da história concreta de determinados grupos sociais e “é constituída por um amplo e heterogêneo espectro de concepções de vida e de valores que possuem um sentido e um significado forte e verdadeiro para aqueles que a utilizam” (Oliveira, 1985:14). Para a autora, a persistência desta prática deve ser 33 compreendida como uma forma de veicular uma visão de mundo, de doença e de saúde, e de promover uma relação de cura marcada por relações mais pessoais e humanas. Explicar o hábito da população em consultar as ervateiras, benzedeiras e parteiras somente como uma alternativa mais barata e acessível do que a medicina tradicional, ou como uma prática exclusiva de camponeses pobres, iletrados e ignorantes, é reduzir sua complexidade a uma perspectiva instrumental e econômica que não leva em conta a prática da medicina popular como parte da cultura. A principal reivindicação da Rede Fitovida é o reconhecimento de sua prática como um saber tradicional, isto é, como uma prática cultural de cuidados com a saúde. É esse o principal aspecto que a diferencia dos demais grupos espalhados em todo o Brasil, que possuem atividades similares. Outra peculiaridade é a forma da organização em rede, um fenômeno tipicamente contemporâneo, como observa M. Castells “a forma mais democrática de organização” (Castells, 1999:85). A Rede Fitovida expressa a horizontalidade do movimento, em que não há uma coordenação central, mas uma gestão participativa com representantes de cada regional da Rede: Metropolitana, Baixada, Sul e Norte Fluminenses. Ainda é preciso compreender a Rede Fitovida como uma organização que funciona graças ao apoio de igrejas, com predominância de igrejas católicas, o que a caracteriza como organização cuja origem da motivação de seus participantes é religiosa. Vale lembrar que são as organizações religiosas que reúnem o maior número de articulações e formas de solidariedade no Brasil. A pesquisa realizada pelo ISER Filantropia e Cidanania no Brasil (2000) demonstra que “entre aqueles indivíduos que têm o hábito de doar, estão mais propensos a doar seu tempo aqueles que têm uma prática religiosa freqüente”; e há maior confiança nas instituições religiosas, pois entre o doador e o receptor existe a intermediação divina, evidenciando a complexidade de um circuito de retribuição que envolve motivações, valores, crenças e outras contrapartidas (Novaes, 2002:44). A Igreja Católica foi ao longo da história a principal aglutinadora da caridade dos mais ricos e a principal parceira do Estado no campo da assistência social. Se ainda hoje não 34 existem dados panorâmicos sobre o universo da ação social católica no Brasil, é possível afirmar que o “mundo católico” reúne em diferentes espaços as mais diversas iniciativas de ação social, sejam de motivação religiosa ou humanitária. “O cardápio da Igreja Católica é diversificado, através de vários espaços institucionais, de movimentos leigos, da territorialidade paroquial e a Igreja acaba absorvendo novas linguagens e novas parcerias do campo assistencial, sem excluir circuitos mais tradicionais” (Novaes, 2002:20). Entre as organizações católicas destacadas na pesquisa, estão a Pastoral da Criança e a Sociedade São Vicente de Paulo. Nestas, a maior parte dos voluntários é pobre e vive em regiões pobres do país. Para Zilda Arns, coordenadora nacional da Pastoral da Criança, o ponto-chave de seu sucesso está, principalmente, na motivação constante para a mística da fraternidade (Novaes, 2002: 24). A Pastoral da Criança é uma referência para Rede, uma vez que muitos dos produtos difundidos pela organização, como o leite forte e a multimistura, também são produzidos em muitos grupos da Rede. A estrutura organizacional também é semelhante; conta com trabalho voluntário de líderes comunitários que vivem nos mesmos bolsões de pobreza de seus assistidos. Embora a Rede afirme em sua carta de princípios ser uma organização a-religiosa e não utilizar recursos mágicos de cura, não podemos deixar de compreender as motivações de suas participantes em separado de seus valores e crenças. Coexistem justificativas e motivações humanísticas e cidadãs, como a necessidade de participar das “questões sociais da comunidade” e das religiosas como “servir a Deus”. Assim como no âmbito nacional pesquisado pelo ISER11, as falas e justificativas das integrantes da Rede revelam que suas motivações para o voluntariado são reconhecidas como formas de retribuir as oportunidades que tiveram na vida, bem como de construir uma sociedade melhor. 11 LANDIM, Leilah e SCALOM, Maria Celi (2000)- Doações e Trabalho Voluntário no Brasil. Rio de Janeiro, NAU Editora. 35 2.1 - Encontros da Rede Fitovida: sociabilidade e associativismo “Todo ano, a gente faz este encontro para trocar receitas de medicina alternativa, aquelas do tempo da vovó, é uma espécie de reciclagem, (...) Então, quem tem vontade, vai aumentando, quem não tem, paralisa, né?”. (Maura) Desde sua formação, a Rede Fitovida promove grandes encontros (ver quadro 1) entre seus membros para debater suas necessidades e promover a troca de experiência e conhecimento. Há dois tipos de eventos; o Encontro de Partilha Estadual e o Encontrão, cada um reunindo, pelo menos, uma centena de participantes. O primeiro acontece de seis em seis meses, durante um dia inteiro e o objetivo principal é a troca de experiências. O segundo é realizado uma vez por ano, durante dois dias, e tem como objetivo discutir questões estratégicas para a Rede, como o inventário 12, por exemplo. Estes temas também são discutidos em reuniões bimestrais, menores, com lideranças das regionais, ao longo do ano. Em 2005 e 2006, aconteceram quatro encontros de partilha ao todo. Em 2007, está previsto um Encontrão. Não haverá Encontros de Partilha. Três Encontros de Partilha foram registrados ao longo da pesquisa. O primeiro, em novembro de 2005, aconteceu no ginásio da Paróquia Nossa Senhora de Aparecida, em Nilópolis. Em maio de 2006, foi na área dos fundos da Paróquia Santa Luzia, em Nova Iguaçu. Já em outubro de 2006, teve lugar no ginásio da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, em Belford Roxo, onde também funciona o grupo aqui estudado, o Grão de Mostarda. As partilhas são apresentadas por um mestre de cerimônias, que normalmente é uma das lideranças da Rede. De acordo com o tema13, são apresentadas técnicas ou receitas. Esta fase prática pode tanto ocupar a primeira metade do evento das nove da manhã até o 12 Um dos temas que será debatido em um Encontrão em 2007 será a forma como a indústria farmacêutica se apropria de princípios ativos de plantas e cria suas patentes. Para discutir esse assunto, foi distribuído, a preço de custo, a cópia de um livro durante o Encontro de Partilha, que aconteceu em outubro de 2006. 13 Em novembro de 2005 o tema discutido no Encontro de partilha foi estética corporal. Em maio de 2006, foi alimentação natural e reaproveitamento de alimentos. Em outubro de 2006, foi sobre o reconhecimento de plantas. 36 horário de almoço quanto a segunda, do final do almoço até às 16h. O início e o final do evento são sempre marcados por ritos católicos, com a fala do padre que recebe a Rede em sua paróquia, preces e cantos católicos, ora animados, ora solenes. O almoço também é uma partilha propriamente dita, pois cada participante leva um prato de comida para si e mais duas pessoas. O grupo que recebe o evento também prepara um prato principal, servido com a variedade de cardápios trazidos. A fartura e a diversidade de comidas são uma constante nesses eventos. Após o almoço, quem quiser apresentar alguma receita relacionada ao tema central pode ir para o centro (onde as mesas e cadeiras são organizadas em círculo), com o microfone em punho. Quadro 1 – Atividades da Rede Fitovida ANO Encontro de Partilha TEMA LOCAL 2000 2001 2003 2004 2005 2005 2006 2006 2007 Legalização das atividades Produção orgânica Homeopatia Estética corporal Alimentação natural Reconhecimento de plantas Encontrão TEMA Formação da rede Cartilha de princípios LOCAL Petrópolis Jardim Amapá, Duque de Caxias Vila de Cava, Nova Iguaçu Nova Friburgo São Gonçalo Nilópolis Nova Iguaçu Belford Roxo Inventário Guapimirim Enquanto as receitas são relatadas, alguns grupos levam seus produtos para serem trocados ou comercializados em balcões ou mesas, sempre a preço de custo: um momento onde é possível observar a diversidade dos grupos. Se no encontro de novembro de 2005 havia cerca de 50 pessoas, no de maio de 2006 eram mais de 150 pessoas. A faixa etária do último foi visivelmente mais elevada do que no primeiro. Já o segundo Encontro de Partilha 37 de 2006, versando sobre reconhecimento de plantas, contou com cerca de 150 participantes e teve uma dinâmica diferente. Divididos em grupos, as pessoas identificaram cerca de 15 plantas cada e relacionaram suas propriedades curativas. À tarde, cada grupo apresentou seu trabalho, e somente ao final do dia temas gerais de interesse da Rede foram discutidos. Um resumo do que acontece em um Encontro de Partilha é registrado em um informativo, chamado Fitoteia, normalmente distribuído entre os grupos ou nos próprios encontros. 2.2.1 - É dando que se recebe14 "Inclusive o que tem aqui, quando alguém do grupo da gente quer, eu dou as mudas, as folhas, mas quando vem gente aqui de fora, aí eu vendo a um real uns galhos, uns molhos, que é para eu arrecadar dinheiro para comprar mais mudas para plantar aqui. Porque está faltando muito mesmo para plantar aqui, como o confrei, que já tem aí, a erva de São João...". (Gracinha) Podemos compreender as atividades da Rede e dos grupos através de um sistema de trocas, na qual os indivíduos transitam e se expressam. Tomo como referência o estudo da dádiva empreendido por Mauss, que, segundo ele próprio, “funciona ainda em nossas sociedades”, e percebo os Encontros de Partilha como um fato social total 15, “onde se exprimem instituições religiosas políticas e morais”. Como complementou Lévi-Strauss, ali existe algo mais do que coisas trocadas, é onde se iniciam uma série de vínculos sociais. 14 Um esquema da dádiva opera na Rede. Encontrar tamanha hospitalidade e acolhida, participar dos fartos almoços às quintas-feiras com o grupo Grão de Mostarda, fez com que me sentisse na obrigação de retribuir. Muito além dos bolinhos integrais que procurava levar para a sobremesa nos dias de trabalho de campo, criei um compromisso de restituir o material filmado e fotografado, liberando o seu uso pelo grupo e pela Rede. O mesmo procedimento foi observado por C. Peixoto na sua pesquisa sobre a sociabilidade dos velhos em Paris e no Rio (2000). Tratarei desta questão no capítulo 2. 15 “Nesses fenômenos sociais totais, como nos propomos a chamá-los, exprimem-se ao mesmo tempo e de uma só vez, toda a espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas políticas e familiares ao mesmo tempo; econômicas – supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos que manifestam estas instituições. De todos esses temas muito complexos e desta multiplicidade de coisas sociais em movimento, queremos considerar aqui um único traço, profundo, mas isolado: o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito e, no entanto, imposto e interessado dessas prestações.” (Mauss, 1974: 41) 38 O sistema que opera nos grupos da Rede Fitovida é distinto daquele dos Encontros de Partilha. Estes são uma oportunidade para fazer os produtos circularem, conhecer outras receitas e outras medicações naturais. É um momento de mostrar o que se sabe para todos da Rede. Se o isolamento de grupos com trabalhos semelhantes foi um dos fatores observados pelas lideranças da Rede antes de sua formação e o que motivou o surgimento da organização, o Encontro de Partilha é a estratégia adotada para combatê-lo. Na medida em que são trocadas mudas de planta e receitas, formam-se vínculos entre os diferentes grupos16. A ritualística da Partilha promove o surgimento de alianças e de uma comunhão na qual o almoço compartilhado é o ponto alto. Desta forma, podemos observar a tríplice obrigação de dar, receber e retribuir. Quem doa obtém prestígio e oferece uma aliança. Quem recebe, aceita a aliança e fica obrigado a retribuir. Ofertar uma receita ou uma preparação medicamentosa é validá-la perante a Rede, é ter um produto de sucesso para mostrar. É mostrar que seu grupo trabalha bem. É distinguir-se, é mostrar a sua própria sabedoria e sua própria riqueza, fortalecendo os laços sociais. Dos três Encontros de Partilha observados, dois distribuíram brindes para os participantes: um saquinho com argila (a estética corporal foi o tema e ofereceram uma oficina/sessão de argiloterapia) e um sabonete de glicerina com extrato de ervas. Já os 108 grupos da Rede lidam diretamente com um público local, vendendo medicamentos a preço de custo ou doando para quem não pode pagar. Os produtos circulam quando os integrantes os levam para outros grupos ou feiras em outras igrejas e festas. Embora seja possível compreender o sistema de doação e venda de medicamentos 16 No Encontro de maio de 2006, uma cena me chamou a atenção. Um senhor que integra um grupo de São Gonçalo chegou com uma caixa repleta de garrafadas e foi até a “barraca” onde estavam outros produtos fitoterápicos sob os cuidados de uma irmã, pertencente a outro grupo. Ele começou a retirar uma a uma as garrafas, para o combate de diversos tipos de doença – o que durou alguns minutos. Ela os recebeu com surpresa e perguntou se eram feitas com álcool de cereais. Ele respondeu que sim, aquelas garrafadas eram uma doação para a „obra”. Momentos depois, na entrevista sobre as preparações dispostas na sua barraca, a irmã explicou que seu grupo não integrava a Rede e o que tudo o que produziam era supervisionado por uma farmacêutica. Com a câmera desligada, perguntei se ela distribuiria as garrafadas doadas na sua comunidade, e, para minha surpresa, ela disse que não o faria, pois não sabia como haviam sido feitas. Este episódio revela a obrigatoriedade de receber o produto doado e a desconfiança sobre a sua procedência, ainda que ele tenha sido doado no âmbito do evento ao qual a propria irmã participava. Podería, assim, considerar a irmã como uma outsider na Rede, posto que não compartilhava de seus princípios e não aceitou a aliança proposta. 39 nos grupos da Rede sob o ponto de vista puramente econômico e utilitário, essa explicação sozinha não é suficiente. Os produtos distribuídos e comercializados pela Rede possuem uma função utilitária clara, afinal, são medicamentos. E ainda apresentam uma “vantagem” na relação custo-benefício, pois são mais baratos que remédios semelhantes industrializados (fitoterápicos com extratos das mesmas plantas) e a medicação alopática. Entretanto, é preciso ir mais fundo para compreender que ali também reside “uma mistura de coisas e almas, de objetos e pessoas” (Coelho, 2006: 19). A “venda” das preparações medicamentosas não pode se resumir simplesmente a um comércio, pois não existe um ganho mensurável em dinheiro para quem produz e/ou comercializa. Não ter fins lucrativos é um princípio fundamental da Rede. Além disso, não existe nenhum tipo de recompensa financeira para quem trabalha, nem mesmo uma ajuda de custo, como ocorrem em diversas organizações não-governamentais que também não objetivam o lucro, mas buscam formas de sustentabilidade, além de depender do trabalho voluntário. Normalmente, as cozinhas onde funcionam os grupos da Rede se tornam referências na comunidade onde estão instalados17. A análise de Malinowski sobre o kula, em que possuir é dar e na qual riqueza, poder e generosidade estão relacionadas, pode iluminar a questão. Além de dedicarem um dia inteiro da semana para as atividades do grupo de forma voluntária, as integrantes costumam levar alimentos e seus produtos para pessoas doentes ou “necessitadas”. Desta forma, elas próprias se tornam referência na comunidade. No caso do Grão de Mostarda, aquelas que estão presentes às terças e quintas na cozinha comunitária são mais conhecidas do que as que se dedicam à administração do grupo. A retribuição que elas obtêm, relatam, é ver uma pessoa curada, é o sentimento de utilidade e competência, ou seja, atender quem busca ajuda ou simplesmente uma escuta é uma forma de apresentar-se para a comunidade, de criar uma nova identidade, distinta daquela 17 O trabalho do grupo Grão de Mostarda, por exemplo, é reconhecido pelos médicos do posto de saúde municipal situado em frente a sede do Grão. Ao longo do trabalho de campo, presenciei pessoas que buscavam o grupo para obter doações de roupa e, até mesmo, remédios de alopatia de receita controlada (não disponível no posto e muito menos nas prateleiras do grupo). 40 presumida aos velhos e às classes populares na sociedade contemporânea. Além do prestígio, existe o crédito com as pessoas “ajudadas”. Um relato colhido enquanto o Grão de Mostarda preparava o Encontro de Partilha que iria sediar, concomitantemente ao aniversário de onze anos do grupo, é revelador da expectativa do contradom. As senhoras do grupo escolhiam uma foto de Benedita, uma integrante já falecida, que seria homenageada e uma delas relatou: “Dona Benedita ajudava todo mundo, mas morreu sozinha. Não estava se sentindo bem, foi em casa pegar a carteirinha para ir ao médico, passou mal e caiu na porta de casa. Só no dia seguinte foram descobrir que ela estava morta. Quem a encontrou foi o pai de uma criança que estava sendo levada para que ela desse alguma assistência. O bebê também morreu alguns dias depois”. (Isabel) A solidariedade dos vizinhos pode ser determinante em caso de um acidente ou mal súbito. Neusa conta como conseguiu salvar o marido, que enfartava dentro de casa. “Ele começou a passar mal e não tínhamos como levar para o hospital. Imagina, ficar esperando um ônibus com um homem infartando. Foi um Deus nos acuda. Até que o levamos para o posto de saúde do lote XV. Graças a Deus, ele foi muito bem atendido”. Conforme ressalta Mauss, o sistema da dádiva “funciona de forma desinteressada e obrigatória, ao mesmo tempo. Além disso, esta obrigação se exprime de maneira mítica, imaginária ou, se se quiser simbólica e coletiva: assume o aspecto de interesse ligado às coisas trocadas. Estas nunca são completamente desligadas dos que as trocam: a comunhão e a aliança que eles estabelecem são coletivamente indissolúveis.” (Mauss, 1974:92). Muito além da distribuição de remédios para as pessoas que precisam, está a “convivência gostosa” resultante do trabalho realizado. “Um prazer enorme”, “um alívio” são algumas das expressões utilizadas para descrever os próprios sentimentos de pertencer ao Grão de Mostarda. Colocar-se no lugar de quem doa é uma forma de afirmação social do indivíduo, na qual a reciprocidade estimula a sociabilidade. 41 2.3 - O Grão de Mostarda: um grupo de mulheres da Rede Fitovida Dentre os 108 grupos distribuídos pelo estado do Rio de Janeiro, escolhi um para realizar a pesquisa: o grupo Grão de Mostarda, de Belford Roxo. Foi fundado em 1995 pela iniciativa de algumas mulheres que atuavam nas atividades sociais da Igreja Nossa Senhora de Fátima: a bióloga Lina e a enfermeira Benedita, ambas já falecidas. Contava com a participação de 12 mulheres. O apoio histórico da Igreja Católica da Baixada Fluminense a movimentos comunitários faz com que nesta região estejam alguns dos grupos melhor organizados da Rede. A proposta inicial do Grão era dar apoio e tratamentos alternativos para as mulheres vítimas de câncer de mama. Assim, foi criada uma sala para atendimento exclusivo a este público, onde eram realizadas sessões de bioenergética, reenergização com pirâmides e argiloterapia, a sala Dulce18. A princípio, o preparo dos medicamentos era feito na casa de Lina, depois passou a ser feito em uma cozinha dentro da sede da igreja. Atualmente, esta sala está ocupada com objetos e com os produtos de um bazar de roupas usadas e as atividades do grupo estão restritas à cozinha comunitária que funciona na igreja. Lina é sempre um tema constante nas conversas das mulheres do Grão, foi ela quem convidou a maioria das atuais integrantes a participar do projeto19. Sua fotografia exposta no alto da parede, em frente à porta de entrada, é uma forma de marcar sua importância e influência para o grupo. Atualmente, o Grão de Mostarda é coordenado por Lúcia, que também é a representante da Rede para assuntos relativos ao Inventário Nacional de Referências Culturais. As técnicas usadas para o preparo dos produtos, bem como a dinâmica de funcionamento, diferem das que eram utilizadas há alguns anos. Sob a coordenação de Lina, as integrantes se revezavam durante cinco dias da semana e tinham tarefas definidas. Hoje, o Grão tem atividades às terças e quintas. Às terças, somente duas integrantes produzem medicamentos e atendem o público na parte da manhã. Às quintas, oito mulheres fazem o mesmo das 8h 18 O nome da sala foi escolhido em homenagem a uma mulher que também atuava nas ações sociais da Igreja Nossa Senhora de Fátima e faleceu em decorrência de um câncer no seio. 19 Dona Geralda, uma das integrantes mais velhas e mais antigas, conta que Lina faleceu em decorrência de lúpus, uma doença auto-imune. Quando foi diagnosticada, ela se recusou a seguir o tratamento médico indicado. 42 às 17h. Ninguém recebe pagamento pelo trabalho realizado. O resultado das vendas é revertido para custear as atividades do grupo, como a compra de materiais e insumos. 2.3.1 - Como aderiram? A maioria das integrantes do Grão tem idades entre 43 e 76 anos e começou a participar após já fazer parte de outras atividades dentro da Igreja. O clube de mães (oficinas de artesanato para jovens mães da paróquia), o círculo bíblico (grupos de estudos da Bíblia) e grupos missionários, de orações e cânticos, foram citados como as primeiras atividades com as quais algumas delas se envolveram, para, em seguida, entrarem no Grão. São elas as irmãs Martins Lúcia (45 anos, coordenadora do grupo), Luíza (43 anos) e Luzia (41 anos); Isabel (56 anos), Neusa (47 anos), Fátima (60 anos), Lourdes (54 anos), Gracinha (75 anos) e Geralda (76 anos)20. Gracinha é reconhecida por seu talento em cuidar de plantas e pelo conhecimento que têm sobre ervas medicinais. Era chamada pelas falecidas companheiras do grupo como “a pequena raizeira” e foi convidada a participar depois que preparou um xarope que curou uma gripe insistente do antigo pároco da igreja. Hoje, ela é a responsável pela horta e, para mantê-la, conta somente com a ajuda de Isabel e de outro voluntário que não faz parte do grupo, o Sr. Cândido. As duas colhem e escolhem as ervas para a fabricação de todos os medicamentos. Isabel entrou para o Grão através do convite de Lina e Benedita, pois também participava do círculo bíblico. Ela veio para o Rio de Janeiro já adulta, quando ficou sozinha depois que criou os sobrinhos. Mora em Belford Roxo há mais de 10 anos e criou dois filhos adotivos um rapaz, que hoje é militar, e uma moça, com 17 anos. Ela ainda trabalha como faxineira três vezes por semana, em Santa Amélia, outro bairro de Belford Roxo. 20 Veja adiante o quadro 2. 43 Geralda mora no bairro desde 1970 e começou a trabalhar a convite de Lina. Ela participa de outras atividades da Igreja, como os grupos missionários de evangelização, que visitam a casas de pessoas que não têm condições de freqüentar a Igreja. Muitas vezes, levam produtos do grupo para serem doados “àqueles que precisam”. Lourdes conta sua própria história de cura pelas plantas para atestar a eficácia dos medicamentos que produz. Sua adesão ao grupo aconteceu quando descobriu um câncer no intestino. Na época, em 1997, ela ajudava na sala de curativos aplicando argila, fazendo massagem e garrafadas de babosa, tratamento ao qual se submeteu a fim de aumentar suas chances de sobreviver à doença. Os médicos apostavam que ela teria que ser colostomizada, pois seria necessário retirar parte do intestino em um processo cirúrgico, e submetida à quimioterapia e à radioterapia. Após a cirurgia, seu câncer foi considerado curado. Segundo ela, os médicos se surpreenderam e a questionaram sobre o tratamento alternativo que realizou. Lourdes é conhecida na comunidade pelas geléias e biscoitos que faz e vende, muitos são feitos com cascas de alimentos. Ela é divorciada, vive com a pensão do ex-marido e a complementa com a venda dos quitutes. Neusa participa do grupo há quase três anos e decidiu se engajar “porque já conhecia todo mundo, mas não fazia nada e se sentia uma inútil”. Ela também participava do círculo bíblico e foi convidada por Lina. Tem oito filhos, nasceu em Diamantina e veio para o Rio de Janeiro para tentar uma vida diferente da que a mãe teve, que era alcoólatra e faleceu quando ela tinha 10 anos. Fátima é a mais nova integrante do Grão, apesar de ser uma das mais antigas no movimento comunitário. Moradora do bairro há 40 anos, ela participou ativamente da associação de moradores e dos movimentos sociais da Igreja. Há dois anos, quando deixou o cargo de coordenação, vem se dedicando ao aprendizado de outras coisas que lhe interessavam. Sua adesão ao grupo aconteceu após freqüentar alguns cursos, abertos à comunidade, que realizou sobre terapias alternativas de saúde (argiloterapia, noções de bioenergética, homeopatia e alimentação natural). Fátima foi responsável pela entrada das irmãs Martins 44 no trabalho como agentes de saúde comunitárias. Foi ela quem as indicou para o processo seletivo elaborado na prefeitura de Belford Roxo. Lúcia tornou-se coordenadora depois do falecimento de Lina. Formada em Administração, a única do grupo com Terceiro Grau completo, ela trabalha como agente de saúde comunitária no programa Saúde da Família, implantado pelo Ministério da Saúde. Também participa ativamente da Pastoral da Saúde na Baixada Fluminense. Na Rede Fitovida, é responsável pelo Inventário Nacional de Referências Culturais em curso com o acompanhamento de técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que tem como objetivo registrar as práticas e receitas dos grupos da Rede como patrimônio imaterial. A aproximação de Lúcia das “questões sociais da comunidade” foi gradual. “Primeiro me converti à Pastoral da Saúde, em um retiro que aconteceu em Jardim Amapá, a convite de Lina”. Foi ali que começou sua participação na Rede e, em seguida, no Grão, para onde também levaria suas duas irmãs. A história da mãe, Alzira, falecida em 2003, foi determinante no envolvimento das filhas Lúcia, Luíza e Luzia. Alzira era coordenadora da associação de moradores de Belford Roxo e foi muito ativa na organização da assistência para centenas de famílias desabrigadas em diversas enchentes que assolaram a comunidade nas décadas de 70 e 80. Antes de sua família ir viver em Belford Roxo, elas moravam no bairro de Rocha Miranda, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Lúcia participava de grupos de jovens da Igreja, como a “Cruzada do Adolescente”. A mudança as confrontou com uma outra realidade, o que mobilizou ainda mais o ativismo de Alzira. Durante o curso universitário e início da carreira profissional, Lúcia se manteve distante das atividades sociais, enquanto sua mãe mantinha-se ativa. A reaproximação só aconteceu anos mais tarde. “Minha mãe cobrava muito a minha participação”, afirmou. O falecimento de Alzira, seguido do falecimento de Lina, foi o empurrão final. “Nunca pensei que participaria de nada relativo à saúde, sempre tive medo de fazer curativos, injeções, essas coisas. Quando penso nesse trabalho, penso muito em minha mãe, ela ajudava bastante, era ela quem tinha o conhecimento. Quando a Lina faleceu, achei que era o momento de vir. Aí, não resisti, aprendi a mexer panela e tomei gosto pela coisa”. 45 Como assinalado acima, as irmãs de Lúcia, Luíza e Luzia foram bastante influenciadas pela mãe. Luzia é agente de saúde há seis anos e participou como voluntária na sala de curativos, coordenada por Dona Benedita e que, atualmente, está desativada: “Quando a Benedita faleceu, a Lina me convidou para dar uma mão, mas ainda não tinha sentido „o chamado‟. Faz um ano que estou no Grão e fazem dois anos que comecei a participar da sala de curativos”. Luíza conta que costumava se definir como atéia e nunca participou das atividades da igreja. Seu envolvimento com o Grão foi “uma obra do destino”. "Comecei a ajudar aqui sem compromisso, sem mais nem menos. Quando fui ver, já estava envolvida sem perceber. E minha vida é essa. Agora estou aqui ajudando, aprendendo. Ainda tenho muito que aprender", conta. O fato das reuniões semanais dos agentes comunitários de saúde serem realizadas sempre às quintas-feiras no posto de saúde em frente à igreja, onde o Grão de Mostarda se reúne, também contribuiu para sua adesão. 46 Quadro 2 - Dados biográficos das entrevistadas Idade Renda Familiar Escolaridade Estado Civil Filhos Gracinha 75 2 54 divorciada 2 Geralda 75 alfabetizada fora da escola Médio completo alfabetizada viúva Lourdes Isabel 57 R$ 450,00 aposentadoria R$ 450,00 pensão R$ 450,00 aposentadoria marido R$ 150,00 alfabetizada Solteira Neusa 47 60 Ensino fundamental incompleto Médio completo casada Fátima casada 2 Lúcia 45 Aposentadoria Marido Aposentadoria Marido R$ 600,00 2 adotivos 8 solteira - - - Luzia 41 R$ 600,00 casada 3 1 - Luíza 43 R$ 600,00 Superior completo Médio completo Médio incompleto casada 3 1 - Nome Netos Bisnetos Profissão operária/ dona de casa esteticista casada 2 - Estado de origem MG MG PB - dona de casa/ agricultora faxineira - dona de casa MG dona de casa RJ agente de saúde agente de saúde agente de saúde RJ PE RJ RJ 47 2.3.2 - Referência na comunidade A proximidade com o posto de saúde, em frente à Igreja, e a participação de três agentes comunitárias de saúde no grupo demonstra alguma sinergia entre as ações de saúde preventiva oficiais e as práticas alternativas. O trabalho das agentes é monitorar um determinado número de famílias, mas não há nenhuma relação direta e imediata com o trabalho voluntário. Segundo Luzia21, para as pessoas que buscam ajuda, não há muita diferença se ela é agente de saúde ou voluntária. “Muitas vezes, a gente consegue ajudar mais pela Igreja do como agente de saúde. A Saúde no município é precária, está mais doente que os próprios doentes”, afirma. O público que busca os remédios vem porque ouviu falar dos remédios e da atenção das “meninas”, ou até mesmo porque já é cliente há tempos. A eficácia dos remédios é reconhecida pelos médicos e enfermeiros do posto, que chegam a recomendá-los. Essa interação foi um dos motivos do fechamento da sala de curativos, que funcionava até o início de 2006 ao lado da sala do Grão, dentro da Igreja. Luzia era uma das voluntárias da sala de curativos, onde eram usados muitos dos produtos do Grão de Mostarda, como as pomadas. “O pessoal do posto encaminhava as pessoas para cá para fazerem o curativo. A gente percebeu que, ao invés de ajudar a comunidade, estava substituindo um trabalho que não era de nossa competência”, conta Lúcia Elas são unânimes ao afirmarem a precariedade dos serviços de saúde no município. Apesar de defenderem a maior eficácia dos remédios naturais, elas reconhecem que é necessário seguir o tratamento médico alopata para cuidar de doenças como diabetes, hipertiroidismo, pressão alta, problemas cardiovasculares etc. Somente duas delas afirmam ter plano de saúde privado e só uma faz uso do plano que dispõe. Elas têm muitas histórias para contar sobre como foram mal atendidas nos postos de saúde e hospitais locais e como já tiveram que buscar socorro médico em outros municípios. Também há casos de desistência na procura de atendimento, devido a tais dificuldades. Dentre as tristes histórias sobre a precariedade da saúde em Belford Roxo destacam-se dois casos lembrados por elas nas conversas após os almoços. Um deles é sobre um médico que atendeu no posto durante anos, era considerado excelente médico e querido pela comunidade. 21 Luzia e Luíza são mais conhecidas na comunidade do que a irmã, Lúcia. São elas que estão mais presentes no grupo, enquanto a irmã mais velha freqüenta reuniões da Rede e da Pastoral da Saúde. 48 Quando houve um recadastramento na Prefeitura, descobriu-se que ele não tinha diploma e então, o falso médico foi afastado. Outro caso é o de um médico obstetra que foi eleito deputado estadual recentemente, com expressiva votação. Este médico é conhecido por “conseguir” cirurgias de laqueadura de trompas para as mulheres da Baixada Fluminense e dispõe de um eleitorado feminino fiel. Ele foi o protagonista de uma passagem triste na vida de Neusa. Prestes a dar a luz, em sua última gestação, ela foi ao hospital na hora marcada para a cesariana e foi informada de que não estava cadastrada. Foi necessário um corre-corre para localizar documentos que comprovassem a marcação da cirurgia. Após horas de desgaste emocional, tudo foi esclarecido e a cesariana foi feita, mas, uma hora após o parto, o bebê faleceu. O médico nunca lhe deu satisfações sobre o que houve com a criança e Neusa foi deixada durante horas na enfermaria da maternidade com um berço vazio ao lado de seu leito. 2.3.4 - O processo de trabalho: a preparação dos medicamentos Atualmente, a produção de medicamentos à base de ervas medicinais no grupo Grão de Mostarda segue um ritmo determinado. Das 8h às 17h, elas produzem os remédios, almoçam, voltam à “linha de produção”, atendem a comunidade e encerram o “expediente” com um cafezinho. Os produtos disponíveis são: vermífugo, xaropes, sabão, compostos de chás diversos, pó de ovo, pomada cicatrizante, óleo para dor, pomada de enxofre, multimistura 22, xampu para combater piolhos e leite forte (quadro 3). Tais medicamentos revelam que o destino principal é o público infantil, embora possam ser usados por adultos. Há duas qualidades de xarope: o de gripe comum (com assa-peixe, guaco e laranja da terra) e o de bronquite (umbigo da banana). O leite forte e a multimistura também podem ser usados por pessoas desnutridas, mas são fortificantes feitos para as crianças. 22 A multimistura é um produto para fortalecer a alimentação, destinado principalmente ao público infantil através do projeto da Pastoral da Criança. Leva farinhas integrais enriquecidas com outros minerais necessários ao bom desenvolvimento das crianças. A produção do grupo também está voltada a atender a famílias da região registradas no programa de assistência da Pastoral. Segundo a coordenadora do grupo, a relação com a Pastoral da Criança se resume a isso. 49 É grande o fluxo de mães, acompanhadas de seus bebês e crianças pequenas, em busca dos medicamentos. O contato no balcão vai além de uma relação comercial. Freqüentemente, se alonga em uma conversa sobre o desenvolvimento dos pequenos23. Conselhos sobre cuidados materno-infantis são comuns e estão presentes na vida familiar de cada uma delas, tendo em vista que muitas são avós de crianças ainda pequenas. Quadro 3 - Produtos fabricados pelo Grão de Mostarda Composição Produto Vermífugo À base de sementes de mamão, melão, girassol e abóbora em pó Calda de açúcar mascavo ou cristal diluída em Xarope gripe água com tinturas de guaco, assa-peixe e laranja-da-terra Calda de açúcar mascavo ou cristal diluída em Xarope água com tintura de umbigo da banana bronquite Sabão medicinal Sabão de coco ralado fervido com sumo de ervas batidas em água Compostos de Ervas secas chás Cascas de ovo secas e trituradas Pó de ovo Pomada cicatrizante Óleo para dor Base de lanolina e vaselina com tinturas de babosa, cajueiro e aroeira Óleo com extrato de abacate Pomada de Base de lanolina e vaselina com enxofre enxofre Farelo de trigo enriquecido com folhas de Multimistura abóbora e mandioca secas e trituradas Leite em pó com açúcar mascavo ou cristal com Leite forte farinhas integrais Xampu contra Sabão de coco ralado e dissolvido no sumo de ervas como melão de São Caetano, Confrei e piolhos Macaé. Quantidade Preço Pacote com 20g R$ 1 Frasco com 100 R$ 2 ml Frasco com 100 R$ 2 ml Barra com 50g R$ 1,50 Embalagens de R$ 2 30g Embalagem com R$ 1 20 g Embalagem com R$ 30 g 2,50 Embalagem com R$ 2 10 ml Embalagem com R$ 2 20g Embalagem com R$ 2 200g Embalagem com R$ 3 300g Embalagem com R$ 4 200ml Como disse anteriormente, todas as refeições são compartilhadas, bem como os lanches com biscoitos e bolos caseiros. A preparação do almoço demanda uma dedicação equivalente à dos 23 Esse perfil dominante do consumidor final ficou claro ao observar como o xarope era feito. Fátima, Neusa e Lourdes preparavam um litro de calda para que fossem acrescentadas as tinturas. Elas se confundiram com a proporção de tintura x calda para aquela quantidade e o gosto da tintura, à base de álcool de cereais, ficou muito forte. Elas perceberam o equívoco quando provaram e Lourdes disse: “quem mais toma isso é criança”. 50 remédios e toma quase todo o final da manhã, envolvendo duas ou mais participantes. Talvez seja um dos momentos mais importantes do dia. Como a alimentação é reconhecida pelo grupo como uma das formas de manutenção da boa saúde, é um acontecimento que permite pôr em prática ou discutir os princípios do grupo como, por exemplo, o uso comedido de sal, de açúcar e de gordura. Legumes e folhas estão sempre presentes à mesa, muitos foram cultivados na horta local, como as folhas de mostarda, couve e a abóbora. Tudo indica que não há radicalismos, o que permite levar à mesa refrigerantes, cerveja, vinho e doces. Tal combinação do cardápio foi motivo de brincadeira entre elas algumas vezes. É também este o momento em que se reúnem todas as participantes e os agregados do Grão (outros funcionários do posto de saúde, alguns filhos das integrantes e eventuais visitantes). 2.3. 5 - Mexendo as panelas "Tem uma coisa que as senhoras do grupo falam e que a minha mãe falava também. É para sempre se mexer a panela em um mesmo sentido, nunca mudar, até conseguir mexer todo o conteúdo. Se mexer em vários sentidos, desanda". (Lúcia) O uso de “remédios naturais” é para elas uma tradição de família, aprendida com mães, avós, avôs e vizinhos. Muitas vezes, é justificado como uma opção mais barata aos medicamentos industrializados. “Quando se tem a quantidade de filhos que eu tive, era bem mais barato fazer um xarope de folhas em casa. Eu os levava no médico, saia de lá com uma receita e não tinha dinheiro para comprar”, conta Neusa. Esse diagnóstico é o que, para ela, define a importância do grupo na comunidade. O posto de saúde presta atendimento, mas não dispõe de todos os remédios. Essa percepção sobre a função social do grupo privilegia o aspecto econômico e é de longe a reflexão mais comum que justifica a importância do trabalho para suas integrantes. Perguntadas sobre recursos mágicos de cura, como as rezas, somente Neusa e Isabel afirmaram conhecer pessoas na comunidade que se dedicavam a essas práticas. A primeira conta que recorria com freqüência às rezadeiras quando os filhos eram pequenos e ficavam doentes. “Isso é do tempo da vovó mesmo, elas diziam que estava com o „vento virado‟, a „espinhela caída‟. Eu sempre tive muita fé, não sei se dava certo porque eu acreditava ou porque curava mesmo. Hoje, quase não tem pessoas que rezam”, conta Neusa. Isabel ainda procura as rezadeiras para que rezem a sua cabeça quando não está se sentindo bem. Ela dize 51 que quando tem uma dor de cabeça pede a Deus para passar, não usa remédio nem vai ao médico. Com exceção de Neusa e Isabel, observei a ausência do aspecto mágico de cura e a existência de um processo controlado de fabricação de medicamentos, principais características da Rede Fitovida no que diz respeito aos cuidados com a saúde. Na medida em que os grupos cresceram e saíram do ambiente doméstico, houve um processo de padronização, levado a cabo através da realização de cursos de formação. Misturaram-se o conhecimento tradicional sobre o uso de plantas medicinais e o conhecimento técnico de profissionais da área (farmacêuticos, biólogos e enfermeiro que contribuem ou até mesmo trabalham voluntariamente na Rede). O acesso aos serviços de saúde, ainda que precários, favoreceu o surgimento de novas categorias para definir as doenças. Nenhuma delas afirma sofrer de “vento virado”, “quebranto” ou “espinhela caída”, mas muitas afirmam ter sofrido com catarata, diabetes, mioma, câncer e hipertensão. A busca por um tratamento médico alopata está relacionada à gravidade da enfermidade e sempre que possível, elas o combinam com terapias naturais ou utilizam exclusivamente as plantas. Tal processo resultou em uma reflexão-chave para a Rede e seus grupos: universalizar um padrão de fabricação de medicamentos, ou seja, tornarem-se uma farmácia com remédios à base de plantas medicinais, ou reconhecer a variedade de procedimentos e usos e situá-los como um conjunto de saberes tradicionais sobre cuidados com a saúde. A escolha pela segunda opção ocorreu quando a Rede percebeu que jamais poderia ser bem-sucedida como produtora de medicamentos, o que seria inviável dadas as características dos grupos (trabalho voluntário, ausência de equipamento técnico para produção farmacológica etc) e que o objetivo maior era afirmar uma identidade cultural, que inclui formação de redes de solidariedade e a valorização do conhecimento tradicional. Quem chega mais cedo à cozinha comunitária checa a disponibilidade de material e começa a produzir. As ervas são provenientes da horta, dos jardins das casas das integrantes ou de mercados populares, como o Mercadão de Madureira. Passam por uma lavagem manual, folha a folha, e em seguida são levadas para secar sobre uma mesa forrada com toalhas limpas. Uma vez secas, são picadas e usadas para fabricação de tinturas. Cada 100g de folhas são colocados em 100ml de água e 300ml de álcool em um recipiente de vidro por 15 dias, depois, o líquido é coado e guardado em recipientes de vidro marrom, a salvo da luz solar, dentro de um armário. 52 A fim de garantir um procedimento uniforme24, o grupo dispõe de equipamentos como balança de precisão, copos medidores, forno de esterilização, liquidificadores industriais, um fogão industrial e um normal, uma geladeira, prateleiras e um armário de ferro para o armazenamento dos produtos. Copos graduados e balanças de precisão são instrumentos fundamentais para garantir que as medidas receitadas sejam seguidas. A tintura25 de álcool de cereais, que também pode ser consumida em substituição aos chás, é o veículo dos princípios ativos extraídos das plantas e utilizada, principalmente, para fazer as pomadas e os xaropes. Por isso, elas não estão entre os produtos disponíveis na prateleira. As pomadas são feitas com uma base cremosa de lanolina e vaselina à qual é acrescida a tintura, proporcionalmente ao volume do material de base. Já os xaropes são feitos com uma calda de açúcar mascavo ou demerara como calda de pudim à qual são acrescidas tintura e água fervida. As sementes (de mamão, abóbora e melão) também são matérias-primas importantes para compor os vermífugos e a multimistura. São lavadas, secas e torradas, para, em seguida, serem trituradas, misturadas, pesadas e embaladas. A produção da multimistura, do leite forte e do vermífugo se resume à torrefação dos ingredientes, sua mistura, embalagem e etiquetagem. O xampu e o sabão são feitos à moda antiga, na qual as ervas são levadas ao fogo. O sabão de coco é ralado e colocado em uma panela. No liquidificador são batidas as ervas com água, coadas e espremidas sobre o sabão. Depois de mexido e cozido, a mistura é disposta em um tabuleiro até que seque e possa ser cortada em pequenos pedaços. O xampu segue o mesmo processo: ao invés de sabão de coco, utilizam um produto específico para o seu fabrico, o lauril éter sulfato de sódio. 24 Ao longo de 2006, foram realizados alguns cursos abertos à comunidade o que motivou a compilação das receitas do grupo em uma apostila, que é consultada para a execução de tarefas. Em agosto, um grupo de outra paróquia realizou um curso de fabricação de essências, um procedimento diferente do que atualmente elas usam. O grupo aprendeu a fazer e realizou alguns experimentos, mas ainda não introduziu a nova técnica a seu cotidiano. As integrantes do Grão também conheceram as técnicas de barroterapia utilizadas por Maura (Nilópolis) e os fundamentos da homeopatia, que foram apresentados por Marta e dicas de alimentação natural. 25 Gracinha conta que o modo antigo previa o cozimento das ervas. Após participarem de um curso em Petrópolis, na época da Lina, elas aprenderam que levar as ervas ao fogo por muito tempo poderia provocar a perda do princípio ativo e a tintura passou a ser adotada como padrão. 53 2.4 - Rede Fitovida: um movimento social A trajetória dos movimentos sociais no Brasil a partir da década de 70 passa pelo processo de formação das ONGs. Ao tratar de um movimento social contemporâneo organizado em rede, formado no início do ano 2000, é necessário revisitar a literatura sobre este tema a fim de compreender a natureza deste fenômeno, seus pontos de interseção com o modelo das ONGs e suas diferenças. Segundo L. Landim, organização não governamental é uma expressão que traz em si a marca da polissemia, o que possibilita o uso diverso por diferentes atores. Esta categoria vem sendo usada para designar um conjunto de organizações da sociedade civil com características peculiares. A gênese das ONGs aconteceu na década de 7026, na medida em que começavam a se reunir representantes de diversas entidades dedicadas à educação de base. No início da década de 80, o processo de institucionalização se fortaleceu, com a participação de vários agentes: ex-exilados políticos, representantes das camadas médias, populares, universidades e de igrejas cristãs. A atuação destas organizações é voltada para a questões sociais referentes a setores populares na cidade e no campo. Embora houvesse uma variedade enorme de objetivos e formas de atuação como ambientalistas, feministas, portadores de HIV, grupos voltados ao combate ao racismo, à promoção de segurança alimentar no campo e na cidade etc em comum havia o ideário de "compromisso com a mudança e a transformação social da realidade do país". Historicamente, foi determinante o papel pioneiro de "paróquias, dioceses, organismos eclesiais, bispos, padres, freiras e leigos católicos, assim como uns e outros protestantes" (Landim, 1998: 32). Entre o elementos constitutivos das ONGs que permitem uma analogia com a Rede Fitovida estão a criação de redes de relações horizontais entre determinados agentes na sociedade brasileira e a existência de relações diretas com grupos sociais nas bases da sociedade. O termo ONG começou a ser utilizado em meados dos anos 80, criando uma identidade comum a partir do "Encontro Nacional de Centros de Promoção Brasileiros", 26 "As chamadas ONGs se consolidam na medida em que se constrói e se fortalece um amplo e diversificado campo de associações na sociedade, a partir sobretudo de meados dos anos 70 tendência que caminha em progressão pelas décadas de 80 e 90. (...) Essas organizações podem ser vistas, então, como guardando continuidade com o vasto, tanto novo como muitas vezes bem antigo universo de entidades provadas que se pretendem sem fins lucrativos, voltadas para atuar no campo das questões sociais, no país. "(Landim, 1998:30) 54 realizado no Rio de Janeiro. Cinco anos mais tarde, a identidade institucional se fortaleceu ainda mais com a fundação da Associação Brasileira de ONGs (ABONG). Na medida em que as organizações iam se consolidando, surgiam novas aspirações, novos discursos aplicados por meio de práticas antigas herdadas de canais tradicionais, como os da ação social da Igreja Católica. Especificamente em relação às organizações cristãs, o processo de construção de identidade da organização é também um processo de distinção das hierarquias eclesiais a partir da idéia de secularização e autonomia. Contudo, foram mantidas as alianças de origem27. "Grosso modo: organizações com razoável grau de independência em sua gestão e funcionamento, criadas voluntariamente, sem pretender caráter representativo e sem ter como móvel o lucro material dedicadas a atividades ligadas a questões sociais, pretendendo a institucionalização, a qualificação do trabalho e a profissionalização de seus agentes, tendo a fórmula "projeto" como mediação para suas atividades, onde as relações internacionais incluindo redes políticas e sociais e recursos financeiros estão particularmente presentes. Organizações nas quais, finalmente, o ideário dos direitos e da cidadania é marca de peso, permeando e politizando atividades variadas (muitas vezes formalmente as mesmas que caracterizam o campo dito assistencial." (Landim, 1998:55). Vale considerar que os estudos sobre essas entidades revelam uma "ambigüidade de autonomia/dependência com relação a outros campos institucionais com os quais de relacionam e em torno dos quais gravitam, como igrejas, partidos, sindicatos, órgãos governamentais, movimentos sociais, agências internacionais etc" (Landim, 1998: 49). Outro dado que chama a atenção na pesquisa sobre o perfil das ONGs no Brasil é a presença feminina: 55% do quadro funcional são mulheres, o que se justifica pelo "peso da presença feminina em trabalhos do tipo assistencial, quanto nas bases de movimentos e organizações que se constróem a partir dos anos 70 e 80 (como nos movimentos comunitários em bairros periféricos, nas associações de moradores, nas Comunidades Eclesiais de Base etc)". (Idem, 1998:77) 27 L. Landim (1998: 40) menciona em seu trabalho a fala de um ex-padre que exemplifica a secularização dos movimentos nascidos na Igreja Católica: "Não estamos aqui para fazer uma organização religiosa, estamos aqui para fazer uma organização popular". 55 Entre as atividades variadas executadas pelas ONGs, identificadas nesta pesquisa, estão a reciclagem de lixo, a implantação de tecnologias agrícolas alternativas, as oficinas de produção de cultura, os cursos profissionalizantes, os projetos de geração de renda, a criação de creches, o serviço de prevenção em saúde e as cozinhas comunitárias, entre outras. Desta forma, podemos associar o surgimento dos grupos de mulheres (que mais tarde seriam organizados na Rede Fitovida) a projetos e atividades desenvolvidas por ONGs ao longo da década de 80 e 90, principalmente àqueles desenvolvidos dentro de igrejas. A legislação brasileira não reconhece o termo ONG e ainda não há uma legislação específica. Para se constituir como tal, é preciso criar uma associação ou fundação. A maior parte das ONGs é registradas como associação civil sem fins lucrativos, já que o segundo modelo requer a existência de patrimônio prévio e um instituidor. A Rede Fitovida, logo em seus primeiros anos de existência, optou por não se constituir legalmente como associação, preferindo manter-se somente como um movimento social. Em 2003, a possibilidade de inscrever sua experiência como patrimônio imaterial a partir de uma política pública na área da cultura forneceu um foco para sua militância. O apoio de organizações não-governamentais ligadas à Igreja Católica tem sido fundamental para a realização de seus projetos. A captação de recursos para a manutenção das atividades é proveniente de diferentes fontes e se dá em dois níveis: a Rede, para projetos e promoção de eventos, e nos grupos, no que diz à sustentabilidade das atividades locais. A principal fonte de renda é a venda de preparações medicamentosas à base de ervas medicinais, o que garante o reinvestimento do dinheiro arrecadado na compra de mais matéria-prima. Quando estes recursos não são suficientes, a comunidade é chamada para fazer doações. Quando há necessidade de compra de equipamentos para a cozinha comunitária, que pertence à diocese onde funciona, é a congregação quem subsidia. Entretanto, tal apoio não é suficiente para extrapolar os limites da cozinhas comunitárias e alcançar a Rede. Os custos para promover os encontros da Rede (que envolvem aluguel de equipamentos de som e compra de alimentos, entre outros itens que garantem a infra-estrutura mínima do evento) e as atividades do INRC (passagens, gastos com material de escritório, produção de relatórios etc) são provenientes de um projeto inscrito pela Rede na Petrobrás. 56 Como a Rede não está constituída legalmente como uma associação, a instituição que submeteu o projeto foi a Cáritas de Nova Iguaçu. A coordenadora do Grão de Mostarda é a responsável pelo projeto. Embora não esteja constituída legalmente, a Rede Fitovida funciona de acordo com o modelo de muitas ONGs: conta com trabalho voluntário e doações, um sistema de trocas que garante sua sustentabilidade e investe na formação de seus integrantes através dos encontros de toda a Rede e de pequenos cursos realizados nos grupos. Como o trabalho desenvolvido pela Rede depende de voluntariado e de doações, é preciso rever o histórico destes termos dentro da tradição brasileira. O trabalho voluntário tem ganhado espaço no debate contemporâneo sobre promoção da cidadania e responsabilidade social. O tema se tornou um tópico de agenda pública, principalmente, a partir da década de 90, com a criação da Lei do Voluntariado (Lei n º 9.068, 199828) e até mesmo de políticas públicas nacionais29. L. Landim (2001) afirma que é preciso atentar para o contexto político e cultural latino-americano a fim de compreender o fenômeno das ações voluntárias de indivíduos. No Brasil, "em survey nacional domiciliar, 50% das pessoas adultas afirmaram fazer doações em dinheiro ou bens para instituições 21% doam dinheiro e 29% apenas bens. (...) Por outro lado, são 22,6% os que doam alguma parte que seja do seu tempo para ações de "ajuda" a alguma entidade ou pessoa fora de suas relações mais próximas"30. Para a autora, é preciso distinguir o significado contemporâneo do termos voluntariado das práticas 28 Lei n° 9.608, de 18 de fevereiro de 1998: Dispõe sobre o serviço voluntário e dá outras providências Art. 1° - Considera-se serviço voluntário, para fins desta Lei, a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a Instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade. Parágrafo único. O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista, previdenciária ou afim. Art. 2° - O serviço voluntário será exercido mediante a celebração de Termo de Adesão entre a entidade, pública ou privada, e o prestador do serviço voluntário, dele devendo constar o objeto e as condições de seu exercício. Art. 3° - O prestador de serviço voluntário poderá ser ressarcido pelas despesas que comprovadamente realizar no desempenho das atividades voluntárias. Parágrafo único. As despesas a serem ressarcidas deverão estar expressamente autorizadas pela entidade a que for prestado o serviço voluntário. Art. 4° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 5° - Revogam-se as disposições em contrário. (Lei assinada pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em Brasília, no dia 18 de fevereiro de 1998). 29 PRONAV - Programa Nacional de Voluntariado da LBA, foi criado em 1979 e vigente até 1992; Programa Voluntários, parte do Comunidade Solidária, presidido pela então primeira-dama Ruth Cardoso. 30 Dados apresentados no Seminario "Filantropia, Responsabilidad Social y Ciudadanía", CEDES - Fundación W. K. Kellog, 2001. Os dados do survey são referentes a Global Civil Society - Dimensions of the Nonprofit Sector. 57 de "ajuda" existentes nas sociedades latino-americanas, permeadas pela pessoalização e a reciprocidade. Outro fenômeno são ações reconhecidas como militância e ativismo, que remetem à recente de construção da democracia e do espaço público nas sociedades latinoamericanas. Historicamente, refletir sobre as práticas tradicionais de voluntariado e doação nos obriga a lidar com relações que fazem parte das estratégias de sobrevivência material de amplas camadas das populações, relações entre o institucionalizado e o informal, o religioso e o secular e entre o público e o privado. "Através dessa temática, caímos necessariamente no vasto terreno de práticas abaixo da linha d'água, nas formas de sociabilidade marcadas pela pessoalização, nos laços de solidariedade e variadas redes comunicativas e de reciprocidade às quais correspondem obrigações diversas como se disse, terrenos socialmente significativos na composição do tecido social, nessas sociedades, e particularmente frágeis quanto a componentes cívicos" (2001: 6) Para a autora, caso a referenciada pesquisa 31 tivesse utilizado somente a palavra voluntariado ao invés de questionar se o entrevistado costumava ajudar sem receber pagamento ou troca, o resultado seria bem menor dos quase 20 milhões de brasileiros considerados voluntários. Acredito que a linha que separa as diferentes práticas de doação e voluntariado é muito tênue, misturando-se, principalmente, quando existe relação com práticas religiosas. Desta forma, é preciso compreender o voluntariado e as doações na Rede e nos grupos levando em conta toda esta complexidade. Nos grupos predominam as percepções mais tradicionais de prática de solidariedade; na Rede encontramos um voluntariado ativista. A Rede caminha no sentido de construir um modelo militante e reivindicatório para participar de políticas públicas e promover a consciência cívica. E, na medida em que se fortalece e conquista novas adesões, essa mentalidade se difunde. A palavra doação é tão recorrente no vocabulário da Rede e do grupo Grão de Mostarda que a considero uma categoria nativa. Para Geralda, uma das mais antigas integrantes do grupo, este termo sintetiza toda a atividade desenvolvida por elas. Foi tão enfática que chegou a repetir 31 Landim, Leilah e Scalom, Maria Celi. Doações e Trabalho Voluntário no Brasil - uma pesquisa, Rio de Janeiro: Ed. 7 letras, 2000. 58 quatro vezes ao longo de sua entrevista: "Isso aqui é uma doação. Estamos aqui para servir e não para sermos servidas". Muitas das integrantes compartilham da mesma motivação: "Sinto uma satisfação grande, quando as pessoas chegam para pedir e a gente tem para atender. A Lina costumava dizer: a gente trabalha com o povo e para o povo - o objetivo é servir. Não é fácil ir no posto de saúde, pegar uma receita e não ter como comprar. A doença vai continuar e o problema vai continuar. Ajudar, poder fazer algo pelo próximo, é muito satisfatório. Falam tanta coisa para você, que, no final, você se sente bem. (...) O jeito da gente ver a situação da comunidade, é difícil trabalhar mas é satisfatório. Às vezes, você quer fazer tudo e não dá. Se você for estudar bem direitinho a situação das pessoas, da comunidade, é muita pobreza, muita dificuldade, quando se dispõe a fazer algo para ajudar quer fazer o melhor possível, mas nem sempre dentro das nossas possibilidades consegue fazer. A gente tenta fazer o melhor que a gente pode, as vezes não é tudo mas é o que se pode fazer. (Neusa) "Não sou idealista, mas nunca trabalhei por dinheiro. Prefiro o trabalho de doação, em que eu mesma me exijo, do que estar ali toda hora. Aqui, ninguém tem a ilusão de que vai receber dinheiro, é visão de doação mesmo" (Fátima) "A gente está ajudando as pessoas que precisam, as mais pobres que não têm dinheiro grande para comprar remédio. E qualquer remédio desse aí, de dois reais, já dá para aliviar as crianças" (Isabel). “Isso aqui é uma doação, e a gente doa de acordo com o tempo da gente. Você não pode doar uma coisa que você não tem. E para mim eu trabalho em muitas comunidades, são três fixas, não parece mas eu dou puxadeira de canto das comunidades às vezes fica difícil. Tem que marcar médico que não caia na quinta feira, pois também trabalho na pastoral social, arrumando as bolsas de alimento. Um dia só é tão pouco, a pessoa não fica doente só na quinta feira, nem terça, fica doente qualquer dia da semana. Mas é melhor doar um dia só bem doado do que abrir a semana toda e você não fazer nada direito”. (Lourdes) "O meu interesse é servir, ajudar os mais necessitados, que dão mil graças a Deus quando não podem comprar e a gente cede o medicamento". (Geralda) "Tem os dois lados, o de apagar o incêndio e o ensinar como apaga. A gente não dá o peixe, a gente ensina a pescar também". (Luzia) 59 A utilização do termo doação por parte das integrantes do Grão de Mostarda revela a forma como qualificam sua ação social, baseada em valores de solidariedade cristã, na percepção do problema (precariedade dos serviços públicos de saúde, baixo nível sócio-econômico da população etc) e o que cabe a cada indivíduo fazer para modificar a situação. A doação de trabalho ao grupo é uma entre as outras atividades voltadas para o bem-estar da comunidade das quais muitas delas participam, como visitas a famílias em situação de risco social, crianças e adultos que necessitam de orientações em saúde e até mesmo atividades de caráter religioso como grupos missionários, de oração, estudo da bíblia etc. Desta forma, o tempo disponível é dividido entre a família, Igreja e o Grão de Mostarda. Existe uma diferença entre a percepção da função do trabalho entre as integrantes do grupo e a Rede. Localmente, os objetivos e resultados do trabalho realizado são percebidos de forma concreta na melhoria das condições de saúde daqueles que buscam as preparações medicamentosas. Nos encontros da Rede, a doação realizada pelos integrantes dos diversos grupos é resignificada. As curas obtidas entre os usuários dos produtos dos 108 grupos não são colocadas como meta da organização, cujo principal objetivo é difundir as práticas dos grupos e a troca de experiências e receitas e alcançar o reconhecimento pelo trabalho realizado. É neste meio que podemos perceber uma aproximação com a concepção moderna de voluntariado, difundida principalmente a partir dos anos 90 e estimulada por organismos internacionais como as Nações Unidas. O trabalho voluntário, para a Rede, é entendido como uma forma de transformação social e a "doação" de tempo realizada por cada integrante dos grupos se torna um ativismo em defesa do conhecimento popular. Para a Rede, o mais importante é que o uso de plantas medicinais seja difundido para outros grupos e se torne uma prática doméstica de cuidados com a saúde. Entre as integrantes do Grão de Mostarda, Lúcia é que está em maior sintonia com os objetivos da Rede, uma vez que é a coordenadora do grupo e a representante para a realização do inventário. Suas irmãs, as novas integrantes, e o resto do grupo estão mais engajados em obter aos resultados concretos na comunidade através da produção, venda e doação dos produtos. 60 2.5 - Fitoterapia na política pública de saúde A descoberta da penicilina, em 1928, foi um divisor de águas na indústria farmacêutica. A partir de então, os medicamentos tradicionais, muitos de origem vegetal, foram sendo substituídos pelos medicamentos sintéticos. Entretanto, o uso de medicamentos fitoterápicos32 não desapareceu, manteve-se como parte da cultura. O processo de regulamentação no Brasil teve início em 1967, com a Portaria 22. Desde então, ela vem sendo atualizada, como em 1995, quando foi editada a Portaria 6 pela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária. Em 2000, a então Agência Nacional de Vigilância Sanitária publicou a resolução RDC17 e, em 2004, a RDC 48, atualmente em vigor. A fitoterapia está em alta nas discussões de políticas públicas na área de saúde e meio ambiente. Em 2006, o país sediou a 8ª Convenção sobre Diversidade Biológica, um encontro criado em 1992 durante a Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, onde são debatidos temas como conservação da biodiversidade, uso sustentável e repartição justa e eqüitativa de recursos genéticos. Neste encontro, foi consolidada a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos 33. Participaram da redação do documento representantes da Gerência de medicamentos isentos, específicos, fitoterápicos e homeopáticos (Gmefh), da Anvisa; do Ministério da Saúde; membros de comunidades quilombolas e indígenas, da Febraplame (Federação Brasileira de Associação para o Estudo de Plantas Medicinais), da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) e da Alanac (Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais). A ampliação de opções terapêuticas dos usuários do SUS que poderão se tratar com fitoterapia, homeopatia, acunpuntura e crenoterapia (uso de águas termais) tem objetivo de melhorar o atendimento em saúde e é regulada pela Política Nacional de Práticas Integrativas e complementares no Âmbito do SUS, publicada em maio de 2006. 32 Fitoterápicos são medicamentos produzidos a partir de de derivados vegetais, como extrato, tintura, óleo, cera e suco. Segundo a Organização Mundial de Saúde, 68% da população de países em desenvolvimento usam plantas ou preparados obtidos a partir delas para cuidar da saúde. 33 "A Casa Civil sancionou no dia 22 de junho de 200, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, que estabelece as linhas de ação prioritárias para o uso racional desses medicamentos e as diretrizes para a melhoria da qualidade de vida da população e do complexo produtivo na área de saúde" Boletim Informativo da Anvisa, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, novembro de 2006, página 6. 61 Em novembro do mesmo ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária publicou um boletim informativo34 cujo tema principal era a política nacional de fitoterápicos, que, entre outras determinações, ampliaria seu uso para o Sistema Único de Saúde (SUS). O boletim trazia um editorial, uma reportagem principal e uma entrevista sobre o tema, demonstrando sua atualidade no que tange às políticas públicas de atendimento em saúde. A publicação nos permite perceber qual é a posição do Ministério da Saúde e da Anvisa e quais serão as ações nesta área nos próximos anos. Entre elas, segundo o diretor de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, Manoel dos Santos, estão a catalogação das plantas com potencial curativo; a elaboração da Relação Nacional de Medicamentos Fitoterápicos (Rename- Fito), um banco de dados acessível a profissionais de saúde e à população em geral; o financiamento de projetos em parceria público-privado sobre práticas de saúde alternativas no SUS e a criação de base de dados sobre conhecimento tradicional de plantas medicinais. Esta teria como função orientar projetos de pesquisa para desenvolvimento de produtos, organizar o registro e o conhecimento tradicional de transmissão oral a fim de "proteger os detentores desse conhecimento". O papel da Anvisa neste processo é registrar produtos e fiscalizar as indústrias produtoras de medicamentos com o objetivo de proteger a saúde da população. Os medicamentos derivados de plantas devem ter composição padronizada, oferecer garantia de qualidade e ter efeitos terapêuticos comprovados antes do registro na Anvisa, que exige a avaliação de segurança e eficácia (resolução 48 e 88/2004) e estudos de toxidade pré-clínica (resolução 90/2004). Em defesa da necessidade de registro de fitoterápicos, o que não acontece em alguns países como os Estados Unidos35, um médico especialista citado na reportagem afirma: "O chá da vovó é aceito como experiência histórica, mas o processo de produção, o controle de qualidade e o estudo clínico vão sustentar a eficácia e a segurança desses medicamentos". As farmácias de manipulação podem produzir fitoterápicos desde que não sejam em escala industrial. O técnico da Gmefh36 Edmundo Machado alerta para o perigo do mau uso deste tipo de medicamento, que pode causar alterações na pressão arterial, problemas no sistema nervoso central, no fígado e nos rins: "Pensar que o que é natural não faz mal é errado". 34 Boletim Informativo da Anvisa, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, novembro de 2006. Alguns países consideram os fitoterápicos como suplemento nutricional. 36 Gerência de medicamentos isentos, específicos, fitoterápicos e homeopáticos. 35 62 O tema está constantemente em pauta nas publicações do Ministério da Saúde. Em março de 2007, o boletim Saúde, Brasil informava a premiação de um programa de fitoterapia vinculado ao SUS: o programa Farmácia Viva, no SUS de Betim, em Minas Gerais. Este programa foi desenvolvido pela prefeitura desde 2004 e recebeu, em junho de 2006, um prêmio nacional do Ministério da Saúde sobre projetos inovadores que dão certo no sistema público de saúde. Profissionais da rede municipal, como médicos, enfermeiros, farmacêuticos e odontólogos, foram capacitados em fitoterapia. O Projeto Farmácia Viva foi criado em 1985 pelo farmacêutico Francisco José de Abreu Matos, da Universidade Federal do Ceará, e é direcionado para a saúde pública. As plantas medicinais de uso consagrado entre a população são investigadas e aquelas que têm eficácia comprovada cientificamente são usadas no tratamento de aproximadamente 80% das enfermidades mais comuns nas populações de baixa renda. Os bons resultados das farmáciasvivas motivaram o governo cearense a criar o Programa Estadual de Fitoterapia, nos moldes do projeto, que é hoje aplicado em cerca de 30 comunidades do interior, como complemento do Programa Saúde da Família (PSF). O projeto das farmácias-vivas está presente, também, em Brasília e nos municípios de Picos, no Piauí e Altamira, no Pará. Para os defensores do projeto, a principal vantagem da combinação de garantias científicas com práticas populares não é fazer economia na área de Saúde, mas o resgate da sabedoria popular. A produção destes medicamentos é toda feita em laboratórios. A pequena reportagem sobre o programa mineiro premiado afirma que o uso de plantas medicinais deve ser incorporado ao atendimento em saúde pública, pois, "além de baixo custo, resgata o conhecimento popular e promove seu uso racional" (2006:6). O processo de criação deste programa inclui uma pesquisa, na comunidade, sobre as plantas mais usadas, as indicações terapêuticas e formas de preparo. Em seguida, após uma seleção, houve uma orientação direcionada à comunidade quanto ao" uso racional das plantas medicinais". O resultado foi a incorporação de vinte e quatro plantas medicinais ao programa. "Os medicamentos fitoterápicos se mostraram eficazes, isentos de efeitos colaterais nas doses terapêuticas indicadas e aumentaram a adesão ao tratamento por parte dos pacientes. O programa se revelou como uma alternativa terapêutica eficiente e viável, pois, ao mesmo tempo 63 em que reduz os custos dos medicamentos em cerca de três vezes, reestabelece de forma mais suave e duradoura a saúde do paciente" (idem). A publicação destes boletins é reveladora de como a questão do uso de fitoterápicos tem sido tratada pelo Estado, que começa a preocupar-se com o resgate de um conhecimento que supostamente está se perdendo. Embora no boletim da Anvisa não haja mais informações sobre a elaboração do documento da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, chamou minha atenção o fato dos representantes não-técnicos serem somente de comunidades indígenas e quilombolas, como se o uso de plantas medicinais na cultura brasileira estivesse restrito às culturas afro-descendentes e indígenas. As práticas culturais, como o chá da vovó, são (des)qualificadas pelos técnicos, nesta reportagem, como simples experiência histórica. É interessante notar que no discurso dos veículos de comunicação biomédicos, como os citados acima, o uso popular de plantas medicinais é feito de forma errada e se faz necessária a capacitação dos agentes de saúde e uma "orientação direcionada à comunidade quanto ao uso racional das plantas". Está clara a preocupação do Estado em registrar o uso cultural das plantas medicinais para curas a fim de preservar o conhecimento e protegê-lo de possíveis biopiratarias. O caminho sinalizado para realizar este projeto parece ser o já demarcado pelas normas e resoluções técnicas seguidas até então, com uma tímida participação da sociedade. A Rede Fitovida, através de seus representantes37, reivindica voz ativa neste processo, além do direito de produzir seus medicamentos e de comercializá-los a preço de custo, em benefício de suas comunidades. Esta é a principal diferença em relação a outros projetos de fitoterapia, como o Farmácia Viva. Esta questão não será facilmente resolvida, uma vez que a origem do conflito está nos procedimentos médicos e farmacêuticos oficiais, recomendados não só por órgãos nacionais, como o Ministério da Saúde, mas internacionais, como a Organização Mundial de Saúde. No embate com o conhecimento científico, a saída foi buscar a legitimação de suas práticas pela cultura, através do INRC. A Rede questiona o processo de construção de uma política pública na área de fitoterápicos que não leve em consideração os hábitos da população: 37 Artigo apresentado por Márcio Mattos de Mendonça no I Encontro Nacional de Agroecologia, em 2006: 64 "Infelizmente, o que tem acontecido, quando se trata de plantas medicinais, é que essa ferramenta (plantas medicinais) tem sido utilizada não para o benefício e independência das pessoas, mas sim em prol dos lucros econômicos, destaque social e muitas vezes dominação cultural e classista profissional. Cada vez mais, a orientação do pensamento econômico e social dominante leva a crer que as plantas medicinais devam ser catalogadas pelos cientistas, que, detentores do conhecimento, terão condições de avaliar a real funcionalidade das plantas com relação a seu poder curativo. Cabe às empresas privadas e ao Estado, por intermédio de seus técnicos especializados, o beneficiamento dessas plantas, transformando-as em remédios de custos menos elevados, que, comercializados ou cedidos à população, trarão relevantes benefícios econômicos e sociais. Essa ótica leva a crer que o papel da população na sociedade deve ser passivo, esperando a resolução de seus problemas (de ordem medicinal, social, etc.) por parte dos órgãos competentes. Mais do que isso, acoberta o poder de mobilização e desconsidera o valor do conhecimento popular, comprovado pela experimentação cotidiana. Alguns do grandes desafios que hoje se apresentam são: Como tratar e utilizar essa ferramenta em benefício dos cidadãos e cidadãs, tornando a população cada vez menos dependente das empresas e do poder público? Qual é o papel dos indivíduos das comunidades, da sociedade civil organizada e do poder público institucionalizado? Que tipos de políticas públicas relacionadas às plantas medicinais devem ser implementados em conjunto por esses segmentos da sociedade? Como fazer para se integrarem esses segmentos?" M. Araújo analisou a experiência do Projeto de Implantação de Fitoterapia na Rede Municipal de Saúde, em Londrina, Paraná, entre os anos de 1995 e 1998. À época, a cidade era administrada por um grupo político que tinha à frente o Partido dos Trabalhadores. No setor de saúde, havia uma preocupação em implementar "formas mais humanizadas de atenção à saúde, que respeitassem as concepções e práticas de cura próprias da população a que se destinam os serviços públicos de saúde" (2000: 104). A implantação da fitoterapia seria uma forma de aproximar médicos e pacientes, uma vez que o uso de plantas nos processos de cura é comum nas camadas populares. Eis que surgiu uma das contradições nesse processo que, para a autora, comprometeu o sucesso do projeto. "No entanto, se por um lado, o grupo de fitoterapia propunha uma incorporação das ervas nos procedimentos médicos terapêuticos das Unidades Básicas de Saúde, por outro, estas ervas não 65 poderiam ser utilizadas nem indicadas em seu estado natural. Mais que isso, uma planta apenas poderia ser recomendada após a comprovação científica de seu princípio ativo" (2000: 105) Nesta experiência fica evidente o dilema de médicos. Se por um lado são favoráveis à incorporação de práticas populares de cuidados com a saúde e reconhecem as limitações do saber biomédico, por outro estão limitados aos protocolos da medicina oficial. Outros problemas são a dificuldade dos médicos em compreenderem a visão de mundo dos usuários das ervas e suas concepções de doença e cura que regem os princípios de utilização das ervas medicinais e dietas alimentares. "Apesar da abordagem fitoterápica desconsiderar a lógica que orienta o uso das ervas medicinais nos meios populares, sua inclusão no campo da discussão das possibilidades aceitáveis de cura no interior da medicina oficial abre um espaço para que seja produzida uma transformação nas condições de uso do saber tradicional sobre as ervas medicinais. Neste sentido, a discussão do projeto de implantação da fitoterapia foi tomada pela população como uma forma de dar mais credibilidade a suas práticas" (2000: 109) Apesar do trabalho desenvolvido pelo grupo de fitoterapia, esta prática não foi implantada na rede municipal de saúde de Londrina. A experiência revela que existe uma possível abertura dos médicos a outras práticas de cura. O desejo de incorporar práticas de medicina alternativa esbarra em uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM nº1499/98) que proíbe o uso de terapias não reconhecidas cientificamente. A autora atribui tal desfecho ao "desencontro de dois mundos no plano da cognição". Como o caminho escolhido pela Rede Fitovida é o a legitimação pela cultura, via patrimônio imaterial, é possível que o desfecho desta experiência seja diferente da relatada por M. Araújo. Entretanto, no campo do saber médico oficial, a discussão sobre as práticas alternativas de saúde (que não restringem à fitoterapia, mas incluem terapias florais, homeopatia e medicina ayruvédica, entre outras) ainda será longa, tendo em vista que tais questionamentos são recentes. É possível que o desfecho do INCR que está sendo realizado pela Rede Fitovida traga uma solução inédita para este conflito, criando um meio-termo, no qual sejam respeitados os critérios de segurança farmacêutica e a agência dos detentores do conhecimento popular sobre plantas medicinais. 66 3. O MILAGRE DAS PLANTAS E CONCEPÇÕES DA NATUREZA MANIFESTAS NA REDE FITOVIDA As integrantes do Grão de Mostarda e os membros da Rede Fitovida apresentam relatos de cura que constroem uma memória coletiva sobre cuidados com a saúde a partir do uso de plantas medicinais e terapias alternativas. Todas acreditam no poder de cura das plantas, consideram o remédio natural melhor que o industrial e têm alguma história para contar sobre como as plantas curaram doenças, até mesmo para a surpresa dos médicos. Tais relatos surgem em conversas com clientes do grupo ou entre elas mesmas, além das entrevistas. O termo “natural” é usado com freqüência para qualificar os medicamentos, como uma categoria nova. Quando se remetem ao passado, contando como utilizavam e como aprenderam a usar tais medicamentos, utilizam “remédio de mato” ou “remédio da vovó”. Isso demonstra que as antigas práticas de medicina popular incorporam elementos de terapias corporais alternativas ─ difundidas, principalmente, a partir dos anos 70 e 80, como a bioenergética, a homeopatia etc ─ e dos movimentos pela defesa do meio ambiente, que compreende a natureza como um patrimônio e estabelece seus direitos e deveres. Luzia conta que tratou de um senhor que tinha uma ferida na perna que já estava chegando no osso e, com a pomada cicatrizante, conseguiu fazer a ferida se fechar. Fátima diz que sua filha tinha uma infecção de vermes que o médico não conseguia curar, “que já estavam saindo pela cabeça”, e com uma terapia de aplicações de cataplasmas e de argilas e chás conseguiu curála. Geralda afirma que ficou dez anos sem se resfriar depois que tomou um xarope caseiro. Para elas, os remédios “naturais” não oferecem tantos riscos nem provocam tantos efeitos colaterais quanto os de farmácia. As curas, quando obtidas com remédios naturais nos casos em que a medicina alopata falhou, são percebidas como prova desta superioridade 38. 38 O câncer é uma das doenças mais citadas entre as indicações para o uso de ervas medicinais. No Encontro de Partilha da Igreja Nossa Senhora de Fátima, em Belford Roxo, em outubro de 2006, o tema era o reconhecimento de plantas e suas propriedades. Foram inúmeras as plantas identificadas como capazes de curar “até o câncer”. Lourdes relata sua experiência com a garrafada de babosa como importante auxiliar no tratamento que fez há nove anos. Entretanto, esse discurso não está presente entre as integrantes do grupo, nem nenhum medicamento lá produzido tem essa finalidade. Várias as curas com o uso de plantas são consideradas um milagre da natureza, já aquelas com remédios alopatas são mais naturalizadas. 67 É comum as integrantes do grupo realizarem visitas a pessoas que estão doentes ou que estejam em situação econômica precária. Elas levam alguns produtos para doação e procuram orientar sobre alguns cuidados básicos com a saúde. “Fomos visitar um casal de velhinhos que vive atrás do lixão, em uma casa abandonada. A senhora sofre com uma dor de estômago e está dependente de Mylanta Plus39, que é doado por pessoas da vizinhança. Veja só, às vezes as pessoas falam que não se pode dar planta medicinal sem conhecer e tomar de qualquer maneira. Mas o medicamento de laboratório pode! A gente questiona isso”. (Lúcia) Durante a visita, que foi acompanhada pelo pároco, Lúcia identificou no quintal da casa algumas plantas que poderiam ser úteis para o casal, como o gervão roxo, o boldo e a espinheira santa, e ensinou-os a usá-las. A categoria natural e a forma como cuidam da saúde com plantas medicinais revela a particularidade dos cuidados com o corpo praticados pelas mulheres da Rede Fitovida. Uma mistura de saber tradicional, “mística” da natureza e noções médicas e alternativas de cuidado com a saúde. Existe entre elas a consciência de que é preciso ter cuidado ao receitar tratamentos fitoterápicos diferentes dos já disponíveis, testados e aprovados. Muitas pessoas chegam ao balcão e perguntam sobre tratamentos para doenças como pedras nos rins, diabetes etc. Gracinha é a primeira a ser consultada, mas só recomenda quando conhece alguma planta que possa ser usada. Plantas que podem ser tóxicas se ingeridas a longo prazo, como confrei, arnica, erva-de-santa-maria, são receitadas chamando a atenção para o uso correto. “O efeito depende muito da pessoa, o alecrim, por exemplo, tem gente que não se dá bem com ele”, contou Luzia para uma cliente que procurava remédios que provocassem diurese. 3.1 - Sobre “natureza” e “natural” ... natureza e cultura Gracinha − Tudo o que se planta dá, só não dá para quem tem preguiça...., né, Isabel? Isabel − É, aqui tudo o que se plantar dá, só não nasce defunto.(...) Às vezes, dá vontade de ir me embora, sair daqui, mas as plantas não deixam. 39 Um remédio que combate acidez estomacal. 68 As palavras natureza e natural são constantemente empregadas pelos membros da Rede Fitovida, seja para designar a origem dos medicamentos seja para qualificá-los. Diria que são representações sobre a natureza que fazem da parte dos fundamentos do pensamento social brasileiro, expressas tanto na literatura quanto em teorias científicas a respeito do Brasil. Vale lembrar que é a partir da contraposição homem x natureza que surge o conceito de cultura, o objeto principal da antropologia. O fundamento deste conceito no pensamento moderno está no Iluminismo, que entende o Homem como uma unidade invariável, universal, regulado por leis tais quais as leis da Física. Rousseau construiu a categoria “estado de natureza” e enunciou a problemática da passagem deste estágio para a sociedade, dando início à reflexão sobre o confronto natureza x cultura enquanto o “estado de natureza” é entendido como um momento na qual o homem está totalmente integrado ao meio ambiente, à terra, e não existe desigualdade nem linguagem. Com a organização em sociedade, a felicidade do “bom selvagem” se degenera e, a caminho da civilização, surgem outros conflitos, como a propriedade privada e a desigualdade. Trazendo esta discussão para a antropologia contemporânea, vale somar a indagação de Geertz (1989:46) sobre o surgimento do conceito de cultura em relação ao conceito de natureza humana. A possibilidade de pensar o homem em relação a seu meio e suas circunstâncias, levou à formulação do conceito de cultura na antropologia. O homem é o único ser que depende de mecanismos extragenéticos para sobreviver e necessita de fontes simbólicas para se orientar pelo mundo. Esta concepção vai de encontro ao conceito iluminista e rompe com as generalizações sobre o Homem. Mas, se por um lado, combate a noção de Homem como um ser universal, por outro, arrisca perder de vista a perspectiva de Homem, dissolvendo-a no tempo e no espaço e sujeitando-o aos determinismos sociais. Do iluminismo ao relativismo cultural, o pensamento social brasileiro buscou diversas “explicações” sobre o Brasil, na qual o papel da natureza teve grande peso, ora como um desafio ora como um estímulo. Pretendo rever alguns destes conceitos e “explicações” de forma rápida, começando com o pensamento social brasileiro à época da Primeira República (passagem para a ordem burguesa), passando pelo trabalho de Silvio Romero, seguindo o rastro de Euclides da Cunha, Os Sertões adentro. Completo a análise com o a importância de 69 Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil, duas obras cruciais para as Ciências Humanas no Brasil. A escolha destes autores se deve ao fato de que muitas de suas idéias serem fortes constituintes das “explicações” sobre o Brasil, e para chegar até eles utilizo uma “trilha” aberta por Roberto DaMatta. O Brasil é representado como uma bela paisagem na visão de muitos de seus habitantes: um território enorme, com uma natureza farta, onde não há vulcões, terremotos, maremotos nem furacões, com uma biodiversidade infinita. Esse discurso sobre as características do País encerra um conjunto de valores e símbolos que orienta práticas e representações sociais do dia-a-dia e que impregnam nossa visão de nação e de cultura. Para DaMatta, as representações sobre a natureza trazem, em si, correspondências com o dilema brasileiro: o conflito entre o moderno e o tradicional. O sistema social brasileiro combina valores modernos como o individualismo igualitário e justiça social, com um conjunto de práticas tradicionais, como a patronagem, o clientelismo e o nepotismo, que reproduz uma vida social relacional e hierárquica. Sua tese é que o círculo vicioso constituído por teorias modernas e por práticas tradicionais caracteriza a dinâmica da sociedade brasileira. A explicação estaria em nosso processo histórico, nossa moderna República não se constituiu através de revoluções reestruturantes, mas por meio de um processo superficial sem muitas mudanças sociais. Esse dilema se reproduz nas representações brasileiras de natureza, que também se inscrevem no quadro de referências culturais brasileiras. DaMatta inicia seu percurso com a seguinte anedota sobre a criação do mundo e do Brasil: “Dizem que, quando Deus criou o mundo e fez o Brasil, ouviu uma série de reclamações. Habitantes de outros países disseram que Ele tinha sido injusto criando uma terra rica, dotada de extraordinária beleza. Um país banhado pelo sol de um eterno verão, que, ademais, não tinha terremotos, tufões, tempestades de neve e furacões, desertos e animais selvagens. “Isto não é justo, disseram em coro para Deus, que, com divina indiferença, calou a inveja dos reclamantes, replicando: “É, mas esperem o tipo de gente (gentinha, povinho) que Eu vou colocar lá...” (DaMatta, 1993: 97) 70 A anedota é reveladora do dilema que se encerra nesta construção: se Deus criou uma terra com natureza exuberante e generosa, foi preciso contrapor tamanha vantagem preenchendo-a com um “tipo de gente” cujo caráter é pouco desbravador. Segundo o autor, há elementos básicos que constituem tal anedota: a construção da natureza como mátria, o que aproxima do conceito arcaico de mãe-terra; uma representação relacional da natureza-homem, na qual o ser humano é a peça que coroa o sistema e a relação de forças entre ambos é o que característica o sucesso da civilização. A anedota reforça a crença de que para ser uma sociedade desenvolvida, política e economicamente, é preciso que haja um povo com um caráter forte para transformar e dominar os obstáculos naturais. Ao invés de fazer parte da natureza, tal povo vence a natureza, o que sugere que o ambiente inóspito induziria a tal atitude. Em contraponto a esta visão de mundo, está a representação luso-brasileira de natureza, que compreende um cenário visual, pleno em atrativos, um verdadeiro paraíso perdido à espera da exploração do homem, que começa a ser expressa na famigerada carta de Pero Vaz de Caminha. Tal visão, com enorme força ideológica, norteou desde a economia extrativista à plantation e resistiu até a consolidação do novo regime político, expressa no simbolismo da bandeira nacional. Dádiva da natureza Silvio Romero é um dos grandes autores do século XIX que buscou estabelecer a relação entre o meio brasileiro e a literatura pátria, bem como entre o caráter e a raça. Para ele, “o meio tem operado entre nós como agente diferenciador em toda a direção da vida nacional, pelos fatos e circunstâncias que vão se enumerar”. (Romero, 2001:25) Ao contrário da América Espanhola, o Brasil não é uma nação desagregada, tampouco um Estado centralizado. A União brasileira, antes de ser resultado de processos históricos e políticos, já era uma dádiva da natureza. Pois o País seria uma terra de formação geológica antiga, cercada por bacias hidrográficas ao norte e sul e ainda pelo oceano Atlântico. O que 71 caracteriza essa unidade é a variedade de zonas geográficas. “A extensão do país, produzindo as grandes distâncias, foi a causa determinante não só das linhas gerais de sua primitiva divisão territorial, como ainda da formação lenta da vida social e jurídica”. (Romero, 2001:27) A grandiosidade do território brasileiro determinou a legislação sobre a cobrança de impostos, sobre a comunicação interna, o uso da mão-de-obra escrava (fosse na captura dos indígenas ou na importação de escravos africanos) e, sobretudo, influenciou hábitos, costumes, trabalho, até mesmo criações estéticas e literárias. Contemplar a paisagem foi uma das formas possíveis de ufanar-se sobre o Brasil. Romero reconstruiu a visão da natureza como fonte inesgotável de riquezas prestes a ser explorada pela ação humana. “Foi o incitamento da posse de tantas riquezas ocultas no seio das terras sertanejas que, açulando a cobiça dos homens, os levou a descobrirem e povoarem tantas e tão consideráveis porções de nosso território” (Romero, 2001:33).40 A “colaboração da terra” foi a base da economia nacional. Quando a exploração econômica requer o uso da técnica, a “moda” dos ciclos econômicos passa. Foi assim com o ouro, a canade-açúcar, a borracha e o café. Para Romero, entretanto, a natureza é mãe inesgotável em seus dons; quando um ciclo se encerra, abre-se outro. Desta forma, nossas criações industriais estiveram sempre sujeitas ao influxo do meio. A influência do meio vai além e chega a moldar o aspecto fisiológico do povo. Enquanto tipo ideal de país tropical, o Brasil tem como característica um clima úmido e quente que favorece toda sorte de doenças tropicais. Tal característica seria responsável pelo temperamento bilioso, linfático ou nervoso dos tipos dominantes na população brasileira, bem como a superexcitação dos órgãos da periferia com prejuízo aos órgãos centrais. 40 Roberto DaMatta destaca que a versão de que o Brasil foi “descoberto” ao invés de fundado, revela uma construção “naturalista segundo a qual Portugal encontrou e se apropriou do Brasil, por acaso, no curso de uma bem-fadada viagem”(DaMatta, 1993:105), enquanto fundar pressupõe a ação de humanos e suas instituições. 72 O temperamento pouco afeito ao desprendimento de energia do povo só encontra compensação na fertilidade da terra, o que gera “facilidades de viver que mantêm o grosso da população num bem-estar aparente, inimigo do progresso, por não aguilhoar o esforço, a iniciativa, fontes de todo o adiantamento” (Romero, 2001: 40). Só escapam deste caráter os sertanejos do norte, que, por enfrentarem condições incertas do clima, são “pertinazes, enérgicos, resistentes em grau notável”, apesar de sua aparência fraca. Tal tese a respeito da influência da natureza sobre a formação social brasileira foi dominante durante todo o século XIX. O encanto pelo povo sertanejo e o desprezo pela mestiçagem degenerada do litoral se estendeu por Os Sertões, o livro que abalou o Brasil no início do século XX e que o próprio Sílvio Romero ajudou a consagrar. "E o sertão é um paraíso...” (Cunha, 1992:59) Enquanto Sílvio Romero descreve o país a partir de sua paisagem, Euclides da Cunha inaugura um novo tipo de narrativa sobre a natureza, ainda sob o referencial teórico do determinismo geográfico e do racismo científico. Para além da uma visão edênica, o autor descreve um cenário desafiador que lapidou o caráter do homem nacional e, somado à mestiçagem, criou um novo tipo: o sertanejo. A natureza se torna um personagem ativo na formação da gente brasileira: o jagunço é um dos produtos deste meio e traz em si muitas das características de sua terra. R. Abreu (1998), que analisa o papel da crítica literária na consagração de Os Sertões, ressalta que o livro trouxe à tona um tema fundamental para a emergência da nação republicana: o território. O livro é uma matriz para a representação do Brasil, principalmente no que tange ao predomínio da natureza sobre a identidade nacional em uma época na qual predominava uma construção romântica da natureza, glorificada através da literatura cujo maior exemplo é a obra de José de Alencar41. 41 Iracema e O Guarani são narrativas em que a natureza é um fator fundamental na gênese da sociedade brasileira, celebrando o encontro entre o índio e o colonizador português. 73 Se o homem do litoral representa a influência da civilização européia, o homem do interior, o sertanejo, está mais próximo da natureza. Daí sua autenticidade e de onde seria possível emergir a nova civilização, pura e singular. O litoral de costas para o sertão é o principal dilema brasileiro expresso em Os Sertões. A civilização nacional só poderia vir de dentro para fora, o sertanejo é o tipo mais adaptado ao meio físico apesar de rude e de estar separado da população litorânea por quase três séculos de progresso, ainda não havia sido contaminado pelas influências da civilização européia. A variabilidade do meio físico influenciou a colonização e condicionou a criação de dois brasis. Uma interpretação mais superficial de sua obra conduziria à polarização entre barbárie e civilização, mas a verdadeira tensão está entre uma civilização artificial, importada, versus outra autêntica e autóctone. A tropicalização positiva Outro texto-chave do pensamento social brasileiro para compreender as representações da natureza é Casa Grande & Senzala. Em 1933, Gilberto Freyre passou a limpo a história do patriarcado brasileiro com uma obra que supera o modelo de explicação do Brasil na qual estava inscrita a determinação pelo meio, raça e biologia. Aluno de Franz Boas, Freyre se volta para a história e introduz o conceito de cultura, em substituição ao de raça, redimindo o que fora o pesadelo dos cientistas sociais como Oliveira Vianna e Nina Rodrigues: a marca da mestiçagem. Ao invés de negativo, o encontro entre branco, negros e indígenas passa a ser o lado positivo do caráter nacional, um passo importante na superação do paradigma biológico para chegar no cultural42. Casa Grande & Senzala mostra as mediações entre pares antagônicos e equilíbrios precários entre senhores e escravos, entre dominador e dominados. Freyre descreve os tipos sociais que compuseram a sociedade patriarcal brasileira em conjunção com outros elementos. Em suas descrições sobre as condições do brasileiro, os elementos naturais estão presentes. O clima teve enorme influencia sobre a saúde da população, propiciando doenças tropicais e até mesmo comprometendo a qualidade de vida, através da deterioração dos alimentos. 42 Entretanto, Benzaquen afirma que Freyre não chega a romper completamente com o determinismo biológico. 74 A visão da natureza dadivosa e farta é contestada, os alimentos eram escassos na mesa do brasileiro. O caráter colonizador e mercantilista do português fez com que este fosse o primeiro povo a criar um sistema de produção local, ao invés de somente extrair. A monocultura da cana-de-açúcar não deixava espaço para o cultivo de alimentos de maior valor nutricional, como cereais, frutas e legumes. A exuberância e glória da paisagem, tão característica da narrativa romântica, é substituída pela grandiosidade caprichosa da natureza. A chegada do colonizador europeu ao Brasil é descrita como o encontro de terra e homens em estado bruto. A invasão européia desequilibrou a relação homem e natureza que existia aqui. “Enormes massas de água, é certo, davam grandeza à terra coberta de grosso matagal” (Freyre, 2005: 87). Entretanto, apesar de serem menos impactantes visualmente, foram os pequenos riachos e arroios que tornaram possível a fixação do homem à terra, já que as margens dos grandes rios estavam sujeitas aos caprichos da natureza, com enchentes que varriam tudo o que estava por perto. A mulher teve um papel importante na mediação com a natureza, principalmente a mulher indígena, que levou para dentro da casa grande o conhecimento dos autóctones e foi responsável pela sua transmissão. Vale notar a aproximação da mulher com a natureza, uma relação que se fez presente em toda a cultura ocidental e que, inclusive, associa a figura feminina a forças malignas da natureza. R. Benzaquen ressalta a importância que Freyre atribui à figura feminina, é ela o elemento conservador, estável e que mantém a ordem na sociedade patriarcal brasileira. A tese de Freyre é que só foi possível aos portugueses vencerem as condições desfavoráveis do clima e do solo através da união com o índio e o negro (Freyre, 2005:74). Neste aspecto, ele valoriza a cultura como forma de superação da natureza, esta, sempre em uma polaridade oposta, passível de ser conquistada. A dieta pobre do brasileiro era uma das responsáveis pela fraqueza do povo. Desta forma, ele desloca a responsabilidade do clima quente pela indolência e focaliza no processo produtivo do sistema patriarcal. Não é a mistura de raças que faz com que o povo seja fraco, mas a fome, a sífilis, a malária... Ao descrever a influência das condições geográficas no caráter brasileiro, Freyre ressalta que as “condições físicas e as longas distâncias poderiam ter contribuído para diferenças, mas, 75 ao contrário, criou uma cultura regionalista, mas não separatista” (Freyre, 2003:92). A natureza também se faria presente em diversas práticas culturais genuinamente brasileiras: na culinária através das plantas cultivadas pelos indígenas (como a mandioca), na medicina natural eram usadas as ervas medicinais da farmacopéia indígena, entre outros costumes. Raízes e fronteiras Outro trabalho clássico que discorre sobre a formação do caráter brasileiro, com ênfase nas visões de mundo e nas mentalidades, é o de Sérgio Buarque de Holanda. Em Raízes do Brasil, o autor enuncia o que considera o dilema brasileiro: a contraposição entre os valores herdados ibéricos e a modernização e urbanização. A ausência do culto ao trabalho, a predominância das emoções nas relações sociais condicionaram a formação do homem cordial. A cordialidade, por sua vez, é a fonte da manutenção do ruralismo, comprometendo o processo de modernização e avanço do capitalismo. Em outros trabalhos, como Monções, Visões do Paraíso e Caminhos e Fronteiras, ele concilia os valores ibéricos com o processo de modernização, conforme analisa Robert Wegner (2000). Nessa interpretação histórica do país, também estão presentes as representações sobre a relação homem x natureza. Especialmente em Visão do paraíso, sua tese de cátedra publicada em 1959, Buarque de Holanda destaca como a associação das terras do Novo Mundo a uma utopia paradisíaca combinada a uma fantasia demoníaca (repleta de monstros e canibalismo) foi determinante na relação do homem português com as terras recém-descobertas. Entretanto, ele ressalta que o caráter prático e utilitário lusitano o tornou um agente de desencantamento do mundo. Para o autor, as visões do paraíso tomaram tiveram um lugar restrito na América portuguesa. Ao contrário da América Espanhola, com lendas de eldorados, serras de prata, lagoas mágicas e fontes da juventude, aqui predominou o raciocínio prático e a busca pelo ouro foi substituída pela lavoura da cana. Isso se explica pelas características do povo português – explorador e navegante – que iniciou um processo de desencantamento do mundo na Renascença continuado na expansão ultramarina. (Pesavento, 2000). Alguns fatores foram fundamentais na formação do caráter brasileiro. A face plástica dos valores lusitanos, que fez com que os colonos fossem passivos em relação ao que o ambiente oferecia, foi determinante para a forma como foram construídas as cidades. Enquanto o caráter do ladrilheiro, com planejamentos e critérios rígidos, predominou na construção das 76 cidades hispânicas, no Brasil dominou o caráter semeador, na qual o ordenamento do mundo é regido pelo modelo oferecido pela natureza. Outro fator é a noção de terra prestes a ser explorada. No processo de ocupação do território brasileiro, destaca-se a feitorização, ao invés da colonização. Para Buarque de Holanda, a colonização portuguesa não é dominada pelo espírito do trabalhador, mas pela ética do aventureiro, que tira proveito das riquezas fáceis disponíveis na terra. A história da economia no Brasil, com ciclos econômicos de descoberta e esgotamento de produtos naturais, é norteada por esses valores e se distingue do modelo puritano e individualista. O centro gravitacional da economia estava no mundo rural. A povoação acentuada do litoral destaca o caráter exploratório da natureza, de acordo com as circunstâncias. Sob o aspecto da rudeza dos recursos técnicos, a agricultura da cana-de-açúcar é similar à mineração43. O principal agente deste movimento, o bandeirante, foi uma figura reconstruída através do trabalho de Buarque de Holanda. Ele contestou a representação clássica do bandeirantes de botas, desbravador dos sertões. O bandeirante que ele revela andava descalço na mata e teve que aprender como sobreviver com os índios, longe de um ser acima da natureza e dos selvagens que subjugou. Iniciada cerca de duzentos anos antes da fronteira norte-americana, a conquista do oeste brasileiro foi mais lenta e tecnicamente rudimentar, ao contrário de construir um continente, criou um território em forma de arquipélago. A obra de Sérgio Buarque de Holanda foi amplamente criticada por apresentar uma versão sobre a formação brasileira de forma simplificada. Antônio Cândido, um dos fundadores da Escola Paulista de Ciências Sociais, como outros críticos de sua obra, ressalta a influência de Weber sobre o surgimento do espírito da racionalidade capitalista burguesa e, conseqüentemente, sobre a modernização brasileira e sua oposição ao tradicionalismo. A concepção de natureza em Raízes do Brasil é construída a partir de seu papel dentro da tradição, como natureza farta, e da noção de fronteira que aponta para o surgimento de outro pólo: imigrante-cidade-indústria. 43 Esses aspectos observados por Werner são relacionados a Raízes do Brasil. Em Visão do Paraíso, o autor vai fundo na construção do imaginário europeu e no caráter do povo lusitano. 77 Já em Gilberto Freyre, a concepção da natureza é o oposto. O Brasil é o maior legado dos portugueses para o mundo, o paraíso é aqui, graças à capacidade do povo lusitano de se misturar com a cultura local para gerar uma nova civilização. Aqui, o português se transmudou em aventureiro ou bandeirante, levando a cabo uma colonização feita por indivíduos, que reproduziu o ciclo extrativista predador vigente em Portugal. Sob este ponto de vista, não é o produto explorado que determina o quadro de valores, mas a concepção específica da natureza, que orienta e legitima práticas econômicas e políticas. As representações do mundo natural e da sociedade refletem um mesmo conjunto de valores. No sistema social ibérico, natureza e sociedade se organizam por meio de relações complementares que vão desde o outro mundo, passando por animais, plantas até a hierarquia dos homens. A exploração da natureza fica a cargo daqueles que estão mais próximos dela: os nativos e escravos que na nova ordem republicana foram substituídos pelos subordinados e camponeses. A representação da natureza como esfera passiva corresponde a uma estrutura social fundada na passividade histórica do trabalhador e em sua submissão ao senhor. No Brasil, quanto mais próximo da natureza, mais inferiorizado. Entre os homens e a natureza estabeleceu-se a mesma lógica que governa os homens entre si: a lógica da desigualdade, que ignora o direito do subordinado como ser igual ou autônomo. O escravo é o melhor exemplo histórico de representação da junção natureza-sociedade na sociedade tradicional hierárquica. As manifestações da natureza se fazem sentir dentro e fora da sociedade. Fora, como passividade inesgotável ou força ameaçadora que representa os desígnios de Deus; dentro, como fonte dos instintos, irrupções incontroláveis e violentas, as paixões que conectam o homem a seu lado animal e egoísta, que se contrapõem á vertente altruísta e fundamentalmente social. A vitória do individualismo igualitário traz consigo uma demarcação entre o mundo social e natural. Aquilo que tinha a ver com os instintos, passa a corresponder às motivações individuais e autônomas do sujeito, transformando a paixão (cega e irracional) em interesse 78 (calculado e racional). É dentro desta perspectiva que a representação moderna de natureza é apresentada como uma natureza autônoma, que tem direitos e deveres, limites e fronteiras, e não pode ser mutilada, mas protegida. No Brasil, a visão ecológica de conservação e preservação só começou a ganhar terreno na década de 60, época da criação dos primeiros parques nacionais (Itatiaia, Bocaina e Serra dos Órgãos). A preocupação com a racionalização da exploração dos recursos naturais conquistou a Escola Superior de Guerra após o golpe militar e culminou com a promulgação do Código Florestal em 196744. A ratificação do Brasil na trilha da conservação pelo governo militar subordinou a causa às metas de desenvolvimento econômico. Enquanto o País experimentava o milagre econômico e a repressão às manifestações sociais, os países desenvolvidos começavam a debater a questão ambiental. O prognóstico assustador apresentado na Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente, em 1972, foi rejeitado e entendido como um estratagema para frear o desenvolvimento do país. Enquanto isso, projetos de usinas hidroelétricas, a exploração da madeira, a necessidade de uma matriz energética alternativa e a criação do pró-álcool foram realizados. Esse breve histórico permite refletir sobre como as representações sobre a natureza são o amálgama da identidade nacional e como tais representações acompanham o sistema de pensamento vigente. Do uso aventureiro e irresponsável dos primeiros ciclos econômicos à crise do café pouco se modificou na relação prática do Estado com a natureza. Esta permaneceu como espaço simbólico da identidade nacional, o ventre da nova civilização. A modernização, a despeito dos entraves tradicionais (sob o ponto de vista dos americanistas), chegou e modificou o estatuto dessa mesma natureza. Da terra mais garrida, tornou-se a matéria-prima para nossa ascensão ao mundo industrial moderno, um input de energia na linha de montagem do desenvolvimentismo. A montanha deixou de ser o espaço do poeta Dirceu para se tornar um amontoado de ferro. Décadas foram necessárias para introduzir a racionalidade burguesa e dar início ao processo de proteção ambiental, ainda tão deficiente, feito de forma burocratizada pelo Estado. 44 (Dean, 1996) 79 Mas o quadro simbólico não mudou muito desde que o povo assistiu a entrada do País no sistema político republicano. A natureza ainda é o lastro de nossa identidade nacional, além de ser motivo de ufanismo. DaMatta defende que hoje vivemos entre a visão encantada da natureza e uma visão ecológica, inscrita em uma lógica racional e igualitária. A visão encantada da natureza também encontra correspondência em uma visão encantada da sociedade, “na qual a natureza e o outro mundo se juntam para formar um domínio ambíguo, denso e desconhecido que se manifesta a todo instante entre nós” (DaMatta, 1993:118). Ainda predomina uma ideologia nacional permeada por elementos naturalistas que garantem a manutenção positiva do sistema sem que seja necessária a ação social. O paradoxo apontado por DaMatta se estende para além das visões da natureza. As representações da natureza e o caráter brasileiro presentes nestes autores difundiram-se amplamente para além dos círculos acadêmicos e fazem parte do discurso do senso comum sobre o Brasil (que DaMatta identifica tão bem) e também se expressa nas representações da Rede Fitovida sobre a natureza e o povo brasileiros. A Rede Fitovida aspira a “transformação da sociedade” no que diz respeito à revalorização do conhecimento popular de cuidados com a saúde através da ação organizada de transmissão de conhecimento, familiar e coletiva. A percepção da natureza como dádiva é fundamental para viabilizar esta ação, à qual se mistura soma ao arquétipo da mãe-terra, que oferece aos seus filhos o alimento e a cura, algo que se aproxima da “visão encantada” que DaMatta identifica45. Outro fragmento é a legitimidade dos homens da terra (o sertanejo que se transforma em imigrante), o povo, como o principal agente de transformação. Somente o saber popular teria capacidade de extrair da natureza todas as dádivas que ela é capaz de fornecer, somente o conhecimento “autêntico” e “puro” daqueles que sempre estiveram relegados ao lugar de quem coloca a mão na terra. Assim a polarização sertão/litoral que Euclides da Cunha polemizou é fundamental na construção desta idéia. Outro ponto de cruzamento entre a visão 45 A intermediação Divina é a peça principal deste encantamento. Gracinha evita arrancar ou mexer nas plantas após as 18h, quando elas “estão dormindo”. Isabel afirma que gosta muito do trabalho na horta, só não gosta da abóbora. “Ela não gosta de mim e eu não gosto dela, fico sempre com coceiras quando tenho que mexer nessa planta”. 80 de natureza da Rede e a presente em Os Sertões é o território. A preocupação da Rede em evitar que plantas e terapias de uso popular sejam patenteadas pela indústria farmacêutica revela o aspecto nacionalista da organização, que visa proteger os bens nacionais, ainda que imateriais, dos interesses do comércio internacional46. Confrontando com a forma pejorativa que a anedota mencionada por DaMatta trata o povo brasileiro, a proposta homem x natureza presente no discurso da Rede Fitovida defende que esse povo não é fraco de caráter, muito ao contrário. E nesse aspecto, é a bem-sucedida combinação índio-negro-português, que resultou no que Freyre entende por “povo brasileiro”, que torna o projeto viável. Pois, a reivindicação da Rede é a legitimação de suas práticas através da cultura, ou seja, o reconhecimento de uma prática terapêutica não pelos critérios das ciências médicas e da química, mas sob critérios culturais, como, por exemplo, a alimentação natural saudável, que aproveite ao máximo o valor nutritivo de alimentos (talos, folhas, cascas etc). Essa proposta, por si só, já demandaria um esforço enorme. Conforme Freyre assinala, historicamente a alimentação tem enorme influência no comportamento de um povo e a dieta pouco variada do brasileiro seria uma das causas de suas “fraquezas”, antes atribuídas ao clima e ao próprio caráter. A Rede Fitovida propõe um novo modelo de alimentação, em sintonia com os preceitos das modernas correntes de alimentação natural (vegetarianismo, macrobiótica, agricultura orgânica). A questão da alimentação natural revela como a noção de saúde e bem-estar está ligada ao controle do corpo. A origem dos grandes movimentos cristãos contra o consumo de carne data do período subseqüente à Reforma Protestante, no qual é possível identificar setores tão hostis aos prazeres do corpo que recusavam carne e relações sexuais. O vegetarianismo norte-americano, por exemplo, teve origem com William Cowherd‟s New Church, em Manchester, na Inglaterra, e foi levado para a América pelo reverendo William Metcalf, que praticava medicina homeopática e ajudou a começar o movimento de reforma de saúde norte-americana. Um de seus seguidores na causa foi Sylvester Graham, cujo nome qualifica até hoje um tipo de pão artesanal feito com farinhas integrais, com trigo plantado em casa. Graham foi um dos responsáveis pelo conceito de vida saudável para uma vida feliz sem carne, álcool, café, chá e tabaco fundou o Journal of Health and Longevity e o Graham Boarding House, onde jovens poderiam comer uma dieta integral, 46 Talvez, isso explique o interesse do Ministério do Meio Ambiente em oferecer capacitações para os integrantes da Rede. 81 exercitar-se e conversar sobre não fazer sexo. Em 1863, James Caleb Jackson lançou um biscoito feito com a farinha integral de Graham para ser consumido no café da manhã chamado Granula. Logo em seguida, o movimento vegetarianista norte-americano passou a contar com uma de suas maiores líderes religiosas: Ellen White, fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Imbuída da missão de propagar uma dieta austera, White fundou o Western Health Reform Institute, que ganhou fama sob a direção de John Harvey Kellog. Em 1878, é lançada uma versão da Granula, que logo foi renomeada como Granola, após um processo judicial movido por seu criador. A mistura de cereais tinha o objetivo de aliviar o desejo de consumir carne e fazer sexo e logo evoluiu para outro produto: o corn flakes. A empresa de John Harvey Kellog cresceu e, sob a direção do irmão, Keith, seus produtos ganharam um maior apelo comercial. Ele adicionou açúcar aos cereais e retirou da literatura da empresa as recomendações contra carne e sexo. Décadas mais tarde, durante a revolução sexual dos anos 60, a alimentação natural foi totalmente resignificada e deixou para trás qualquer resquício de puritanismo. A Granola tornou-se tão vinculada ao naturalismo e ao amor livre que chegou a ser sinônimo de uma categoria social (Hecht, 2007:185). A natureza é compreendida como algo que está em harmonia, próximo de Deus, que tem suas próprias regras (daí ser preciso aprendê-las e respeitá-las) e cuja expressão está acima da racionalidade humana. “Se um pé de tansagem nasceu de forma espontânea, é porque você deve estar precisando”, disse uma integrante da Rede no Encontro de Partilha (outubro de 2006). E é a cultura popular, daqueles que sempre estiveram próximos da terra, a única forma capaz de transformar esse saber intuitivo em conhecimento, através das formas terapêuticas já consagradas pelo seu uso, o que fica claro na afirmação do pároco da igreja que abriga o Grão de Mostarda: “Os pobres conhecem o caminho da roça demais”. 82 3. 2. - Cuidados com saúde: química x natural "Olha, ter boa saúde é a gente se cuidar. Obedecer às receitas médicas e seguir também essas que a gente faz. Esses remédios são muito bons, não se deve confiar só no remédio dos médicos. A vantagem desses remédios que a gente faz é que não tem química é muito bom para a saúde e sem contraindicação." (Geralda) Cuidados com a saúde e qualidade de vida estão comumente associados quando se trata de envelhecimento. L. Boltanski (1979) observa que são as mulheres as que mais se queixam de sintomas como dores de cabeça, dores no corpo, tonteiras, enxaquecas etc. A responsabilidade do cuidado com a saúde da família e com a própria saúde recai sobre a figura feminina, entretanto, nem sempre isso significa que a manutenção do próprio bem-estar seja garantida. A Bassit (2002: 181) chama a atenção para o quanto a responsabilidade com a saúde dos outros dificulta a preocupação com a própria, pois nem sempre as mães, avós e bisavós passam de cuidadoras dos outros a cuidadoras de si próprias. A autora identificou em suas entrevistadas o desconhecimento de informações sobre a manutenção da saúde e cuidados com o corpo, o que condicionava o entendimento do que era saúde como a ausência de doença. "Tais costumes que se reproduzem no cotidiano especificam os cuidados que essas mulheres demandam em termos de prevenção e promoção de sua saúde. Elas sentem dificuldade em discutir a prevenção porque parecem acreditar que a saúde é apenas uma dádiva de Deus, e só recorrem aos serviços de saúde quando estão muito doentes, o que significa que sua autonomia e sua independência já estão em risco." (Bassit, 2002:185) Se a educação é condicionante de qualidade de vida e da noção e atitude no envelhecimento, conforme afirma a autora, a inserção social e os vínculos pessoais são fundamentais para o cuidado com a saúde para as mulheres (Attias-Donfut, 2004: 91). No caso das integrantes do Grão de Mostarda, até mesmo o acesso a médicos e exames depende de suas redes sociais47. A educação formal apontada por A. Bassit em sua pesquisa sem dúvida facilita a aquisição de novos conhecimentos em prevenção em saúde, mas, no caso das integrantes do Grão de Mostarda, a baixa escolaridade não as impede de criar estratégias de prevenção, adquirir e transmitir conhecimentos. Desta forma, a bagagem cultural que possuem sobre o uso de 47 Sobre as experiências na utilização do serviço público de saúde, Gracinha conta que só encontrou um bom atendimento em um hospital de Saracuruna, subúrbio do Rio de Janeiro, na qual uma vizinha é enfermeira. "Fui muito bem atendida, fiz todos os exames", disse ela. 83 plantas medicinais influencia na maneira como cuidam da própria saúde, embora elas também entendam a saúde como dádiva de Deus e a doença como algo inexorável. O comportamento das integrantes do Grão em relação à própria saúde é diversificado. Há incidência de doenças não transmissíveis como doenças cardiovasculares e diabetes e outras enfermidades específicas. A forma como as tratam revela uma combinação de terapias naturais e da medicina científica. Somente Isabel afirmou que dificilmente procura um médico; quando está com dor de cabeça ou com crises de pressão alta pede à Deus para curar. Apesar de preferirem a terapia fitoterápica, muitas buscam o tratamento médico e, inclusive, já se submeteram a cirurgias. Apenas Lourdes afirmou ir ao médico com freqüência, pois dispõe da assistência de saúde da Marinha, instituição a qual pertenceu seu ex-marido, e necessita fazer acompanhamento dos hormônios da tireóide. “Tenho problemas de tireóide, às vezes eu uso o caroço da maçã, faço uma farinha, que é bom para tireóide. Mas uma vez a cada um mês e meio, faço exame de sangue para controlar os hormônios. Vou ao médico da Marinha, na Tijuca”. (Lourdes) “Devido a problemas emocionais, tenho problemas no sistema nervoso, que piora com pequenas coisas do dia-a-dia, como filho desempregado, marido doente, ele é a única renda dentro de casa”. (Neusa) “Quando minha pressão fica alta, só Deus. Às vezes tenho tonteiras, moleza no corpo, fico tombando. Tenho que fazer um operação de hérnia, mas não vou fazer, não vou tomar remédio não”. (Isabel) “A minha é a vesícula, era uma lama e virou pedra. Vou ter que entrar na faca”. (Luzia) “Boa saúde é você ter uma boa alimentação. A gente vai no médico, né? Mas o remédio medicinal é melhor, porque não faz mal nem intoxica a gente. Minha comida era assim da roça sabe, um angu, a couve. (...) Eu não sinto nada, mas depois que o meu marido morreu apareceu o diabetes em mim. Eu me cuido, não como doce. Uso adoçante para tudo”. (Gracinha) Então, os cuidados com a saúde, para elas, compreendem a atenção a uma alimentação adequada, o acompanhamento médico e o uso de fitoterapia como alternativa mais "natural". Neste sentido, o comportamento alimentar é rico em significados e indica a maneira como 84 praticam a medicina natural, já que entendem o alimento como o primeiro medicamento. Embora se combinem nessa dieta legumes da horta e refrigerantes, existe uma preferência pela comida caseira, sem muita gordura e sal. Os legumes e folhas da horta comunitária são mais valorizados e estão sempre presentes nas refeições. "Aqui a gente fez uma carne, uns bolinhos, não leva gordura não. Aqui tem um arroz. A gente faz o arroz sem sal. Aqui tem um feijãozinho e a couvezinha. Essa couve é da horta daqui. Essa é a verdadeira couve manteiga. Essa abobrinha também é da nossa horta". (Gracinha). Penicilina, baralgin e insulina – farmácia direto da horta "Temos aqui baralgin, novalgina".( Gracinha). Quando fui levada à horta pela primeira vez, encontrei plantas medicinais que nunca tinha visto nem ouvido falar. Entre as que mais me chamaram a atenção estavam aquelas que eram designadas com nomes de remédios conhecidos: baralgin, novalgina e penicilina. Segundo as entrevistadas, algumas das plantas medicinais disponíveis na horta têm ação eficaz até contra doenças consideradas graves, como o câncer e a tuberculose. É a partir destes relatos de cura e terapia com ervas medicinais que é possível perceber a maneira como os conhecimentos curativos populares vêm se renovando. Para M. Araújo, que elaborou uma pesquisa em Londrina, no Paraná, sobre um projeto de implantação de fitoterapia em um posto de saúde, o uso de nomes comerciais dos medicamentos industriais para designar plantas promove um mal-entendido entre médico e paciente que faz com que ambos acreditem estar falando a mesma linguagem. Esta estratégia de aproximação com os médicos, segundo a autora, é uma forma de manter as práticas da medicina popular sem criar conflitos. “A incorporação destes nomes deve ser entendida como uma forma de reinterpretar elementos da biomedicina, incluindo-os na lógica que orienta e dá sentido aos cuidados corporais no meio popular”.(Araújo, 2000:107). Os depoimentos sobre cuidados com a saúde e uso de ervas medicinais baseiam-se na concepção científica de prevenção e tratamento, com algumas particularidades. O “encantamento” das terapias utilizadas pelo grupo se aproxima mais de terapias alternativas 85 contemporâneas, como a bioenergética e a própria fitoterapia (que denomina a Rede) e a alimentação natural. M. Queiroz (1993:275), em artigo sobre as estratégias de consumo em saúde de moradores da cidade de Paulínea, em São Paulo, ressalta que é típico do mundo rural latino-americano o "reconhecimento de que a saúde é promovida por um equilíbrio do organismo humano com seu meio externo, intermediado principalmente pela alimentação". Desta forma, a Rede Fitovida e o Grão de Mostarda são exemplos de como a medicina popular tradicional pode se aproximar da medicina alternativa, resignificando a primeira e superando os estigmas de atraso e ignorância a qual essa vem sendo associada. Este processo difunde e populariza as práticas da medicina alternativa como homeopatia, acunpuntura, bioenergética etc. Entre as técnicas de bioenergética remanescentes no Grão, destaca-se o uso de uma pirâmide de metal na sala de curativos. "Tinha argila, na antiga sala de curativos, e tinha a pirâmide, que é uma outra terapia. É uma pirâmide que tem a questão da energia, para você melhorar não só o problema físico, mas aquelas energias negativas que estão no organismo. Ajuda a relaxar, é muito bom". (Lúcia) Destaca-se o uso do termo "vermes" para denominar os múltiplos agentes causadores de doenças. Os "vermes" são a origem de diversos males e não se resumem aos parasitas (lombrigas, tênias etc). Podemos comparar o uso desta nomenclatura genérica com o uso de nomes de remédios para a identificação de plantas, o que cria um "mal-entendido produtivo" entre médicos e pacientes. Fátima conta que foi através da bioenergética que a filha, já adulta, descobriu recentemente a causa de nervosismo, tosse, insônia e abatimento. A terapia de aplicação de argila durou um mês e 20 dias até que os vermes saíram da cabeça da filha. No Encontro de Partilha de Nilópolis, Maura, uma das participantes, afirma. “Todos nós sabemos que nosso corpo tem muitos vermes. Então, sempre falo assim, desde o câncer até a AIDs, um tipo de verme. Então, a gente combate com a semente de girassol. Não serve só para expelir os vermes que nós temos no corpo, serve também para triglecerídeos, colesterol, ácido úrico. Tira uma porção de coisas do organismo, até os ossos fortalece. Uma 86 sementinha que ninguém dá muito valor, na medicina alternativa tem um valor enorme”. (Maura) A ação do barro sobre o corpo é justamente a de expurgar toxinas e impurezas, nas quais se incluem as vermes. O barro, colhido em local onde não há decomposição de matéria orgânica, é seco, peneirado, misturado a soro fisiológico, a tintura de ervas, e é aplicado em forma de cataplasma sobre a área a ser tratada. O tempo de tratamento é de uma a duas horas, até que a mistura seque. “Enquanto não forem eliminando todas as bactérias, toda a febre que dá, não seca e vai tirando as toxinas do organismo. Se você tirar e jogar em uma planta, mata a planta”. (Maura) “E quando tem uma dor que você está vendo que não vai embora, faz a argila, que é o barro. A gente faz o barro e mistura com a tintura da tansagem que é antibiótico, da penicilina. Bota, fica uma hora e meia e o barro vai puxando. A pessoa sente e a dor vai embora”. (Gracinha) De certa forma, além dos parasitas que se alojam no sistema digestivo, são considerados "vermes" outros agentes, como a ameba (um protozoário) e até mesmo vírus e bactérias. Esta categoria parece designar doenças que podem ser tratadas com remédios e terapias naturais. Outras enfermidades que elas relataram ter, como hipertensão, diabetes, miomas, pedras na vesícula e glaucoma, são tratadas por médicos, sendo que duas integrantes realizaram cirurgias durante o período em que realizei a pesquisa. A relação com os médicos é ambígua. Por um lado, o reconhecimento dos médicos quanto à eficácia de tratamentos naturais é motivo de grande satisfação e uma forma encontrada pelas participantes de legitimar o que fazem. Isso se deve, segundo elas, a uma “onda de naturalismo”. A referência aos médicos que usam terapias naturais foi muito freqüente. "As doenças que podem ser tratadas com ervas são, em primeiro lugar, o resfriado, pode curar com o xarope. E também a tuberculose, com a erva de Santa Maria, com o jatobá, a gente pega a casca dele, seca, bem seca na sombra, depois, soca no pilão e pode fazer um chá daquele pó e pode botar no leite, fica bem. Cura tuberculose. A casa do jatobá também cura pedra no rim. Minha colega que trabalha comigo disse que tem um médico que ensinou a ela e dizia 'eu me curei com jatobá'". (Geralda) 87 "O meu neto, por exemplo, desde que nasceu só toma o xarope, quando a minha filha leva ela no médico, aqui no posto de saúde, ela diz que o Artur toma o xarope da minha mãe, ela trabalha ali na saúde. E o médico diz: continua dando que o xarope é uma maravilha". (Neusa) Por outro, é justamente diante da incompetência dos médicos para curar e/ou diagnosticar a doença que leva ao uso da medicina alternativa. Durante o Encontro de Partilha, cujo tema era reconhecimento de plantas, uma das fundadoras da Rede, que é médica, afirmou algumas vezes ao microfone que a legitimidade do uso de plantas medicinais deveria vir do conhecimento tradicional e não depender da aprovação de "doutores". De certa forma, este reconhecimento por parte dos "doutores" ainda é considerado algo importante para as integrantes do grupo e da Rede, reflexo das relações de interação entre as terapias médicas científicas e a medicina natural. Isso demonstra que essa interação é considerada possível e faz parte do caminho escolhido pela própria Rede Fitovida, na medida em que os processos de produção são controlados e sistematizados. Esta aproximação entre a medicina popular baseada em uso de plantas medicinais e a medicina tradicional científica resignifica estas práticas de cuidado com a saúde. A primeira fica mais "precisa" e a segunda fica menos "agressiva" com o corpo humano. "Apesar da abordagem fitoterápica desconsiderar a lógica que orienta o uso de ervas medicinais nos meios populares, sua inclusão no campo da discussão das possibilidades de curas aceitáveis no interior da medicina oficial abre um espaço para que seja produzida uma transformação nas condições de uso do saber tradicional sobre as ervas medicinais. Neste sentido, a discussão do projeto de implantação da fitoterapia foi tomada pela população como uma forma de dar mais credibilidade a suas práticas. Não foram poucas as vezes em que ouvi comentários do tipo: 'As ervas são tão boas para curar que até os médicos estão querendo aprender a usá-las'." (Araújo, 2000:109) Para as integrantes do Grão de Mostarda, as terapias naturais são responsáveis por curas que os médicos não conseguem alcançar. Esta crença foi expressa em diversas falas de participantes de Encontros de Partilha: "Cura até o câncer", "Cura tuberculose" etc. Os próprios testemunhos de curas relatam feridas que não fechavam. 88 "Eu acho que cura, sabe por quê? Porque minha avó curava só com raízes, broto e triste do doente que ela dissesse 'Aquele não se levanta'. (...) Tenho parente que foi desenganada do médico e levantou-se com a cuité. O chá é uma beleza." (Geralda) Para elas, a principal vantagem das plantas medicinais é de não possuírem química. "As vantagens dele é porque é remédio que não tem química e é muito bom para a saúde, não tem contra-indicações. Então, a gente passa, tem o tipo da doença, porque, quando as pessoas vem atrás de remédio, a gente pergunta se ela foi ao médico, o que é que ela está sentindo, que é para a gente poder passar o remédio." (Geralda) Nem sempre ser "natural" ou "não ter química" significa que não há contra-indicações. Embora elas falem genericamente sobre o baixo risco do uso de plantas, diversas vezes, ao falarem sobre plantas que são consideradas tóxicas (confrei, saião, poejo, arnica) elas ressaltam os cuidados necessários para utilizá-las. "Diferença tem bastante, porque o alopata a gente usa para melhorar uma coisa e prejudica outra. Não que com as ervas, conforme se toma, não possa acontecer alguma coisa, mas as ervas têm feito muito mais curas e milagres do que alopatia." (Luzia) É importante ressaltar que a preferência pela fitoterapia não exclui a aceitação de tratamentos da medicina científica tradicional. Ao que parece, a precariedade dos serviços de saúde na região é a principal responsável pelo fato de a maioria delas não consultarem médicos com mais assiduidade. Sem exceção, elas categorizaram a qualidade do atendimento público de saúde como péssimo, uma vez que o atendimento leva meses, sempre atrasa e não há possibilidade de realizar os exames necessários para o diagnóstico de suas enfermidades. "A saúde da população aqui está uma porcaria. Infelizmente, a saúde está mais doente que os doentes", (Luíza). "Acho uma humilhação o modo que eles [médicos] nos tratam. Eles passam receita e lá você não encontra o remédio. Tem que vir ao alternativo, que é o xarope, o leite forte, a vitamina que o médico passa para a criança", (Lourdes) 89 A medicina natural é para elas uma alternativa de cuidados de saúde, pois, além de ser mais acessível, provoca menos efeitos colaterais e tem resultados comprovados, uma vez que suas mães e avós usavam estes remédios para tratar toda a sorte de doenças. Somente buscam terapias da medicina tradicional quando estão esgotadas as possibilidades de tratamento. Conforme afirma Gracinha, depende da doença. Uma farmácia na horta "Agora é que a gente está arrumando os canteiros. Já temos a abóbora, a folha da abóbora serve para multimistutra, a flor serve para dor de ouvido, aipim para multimistura, a batata, capim limão, babosa que é bom pro câncer também, poejo, hortelã, a jurubeba. Tem muito troço aí...". (Gracinha) "Isso aqui é lágrima de nossa senhora, nove sementinhas dessas para quem tem menopausa é bom, a gente torra e faz um pozinho também é muito bom para quem tem diabetes". (Gracinha) Somente algumas ervas disponíveis na horta do Grupo Grão de Mostarda são utilizadas com na produção regular das preparações medicamentosas. A enorme variedade restante é usada de acordo com necessidades específicas das próprias integrantes e dos consumidores. Fátima conta que algumas tinturas são feitas de acordo com a demanda dos usuários. "Vamos coar as tinturas que foram feitas, preparadas há quinze dias atrás, como a babosa, a amora. A amora está sendo muito cobrada por que é usada para inibir os calores da menopausa". É comum que as integrantes do grupo pesquisem sobre o uso de ervas no combate a sintomas específicos, como exemplifica esta conversa registrada no balcão, às vésperas do Encontro de Partilha que o Grão de Mostarda ia organizar. Usuária - E para os rins, já fizeram algo? Para perder o cálculo? Luzia – Tinha uma tintura que o pessoal de Niterói fez. O rapaz até expeliu a pedra. (enquanto conversam, ela consulta o livro) Usuária - E a embaúba? Queria usar a folha, mas não conheço direito e tenho medo. 90 Luzia - Eu conheço, mas vou olhar no livro. Dona Gracinha, para cálculo nos rins, o que a Dona Benedita fazia? Não sei o quê com azeite? Macaé? A embaúba pode ser tomada? (...) Por que você não vem aqui no sábado? Vai ter um encontro de partilha, você poderia perguntar.. Usuária – Partilha? Ah, sei , eu já participei da que teve lá em Nova Iguaçu [maio, 2006]. Muitas receitas e tratamentos que foram aprendidas com as mães e avós das integrantes ficam de fora da prática devido à dificuldade de encontrar as ervas que eram utilizadas em seus estados de origem (vale lembrar que metade do grupo nasceu nos estados de Minas Gerais, Pernambuco e Paraíba, e a outra metade no Rio de Janeiro). Isso implica a necessidade de "importar" ervas de outros locais, como faz Gracinha, e revela a importância da realização dos Encontros de Partilha, por reunir pessoas de diferentes municípios do estado, que também migraram de outros estados do País e cultivam espécies de sua terra natal. "Fazia de hortelã, de casca de aroeira, eu fazia. O melhor que eu fiz, que me curou, foi do olho do cajazeiro, dos brotos do cajazeiro, cozinhava e fazia o xarope conforme só que é diferente, aqui eu aprendi a fazer de uma forma diferente. Como do broto do cajazeiro, eu tomei muito e fiquei curada por dez anos do resfriado. Depois de dez anos eu comecei a ficar resfriada. Lá no Norte, a gente fazia de raízes, da casca do mussumbu, da raíz do fedegozo. E mais outras que a gente fazia também. Fazia de uma planta rasteirinha assim, o Pai Gonçalo, para resfriado, para tosse. Fazia para minha mãe, do mangará da banana, quando ela estava doente. Aprendi com minha avó e com minha mãe." (Geralda) Há plantas que não são facilmente encontradas, pois são comuns aos estados de origem e outras que são designadas por nomes distintos."Erva aqui é diferente, lá já é outro nome", afirma Isabel. Esse detalhe reforça a idéia de que o registro do uso de plantas medicinais possui dois aspectos: o do resgate da memória de cuidados com a saúde, conforme revela o depoimento de Geralda, pois são usos que não são mais praticados, devido à dificuldade de aquisição da planta; e o registro de uma prática corrente, do uso de plantas facilmente cultivadas em quintais e hortas comunitárias. Na horta do Grão de Mostarda, encontramos as seguintes ervas, entre outras, cujas indicações terapêuticas Gracinha identifica: 91 Mostarda - as folhas podem ser consumidas como salada e com a semente se faz cataplasma, bom para dor de cabeça. Moçambê que é africano, é muito bom como xarope. Sete sangrias - doenças do coração Arnica - dores musculares Cardo santo - a semente serve para rugas e faz-se tintura, "serve para tudo, depende da doença que tem a gente vai no livro e vê". (Gracinha) Cana do brejo - para dirurese, "que muita gente chama canela de macaco".(Gracinha). Erva moura - indicado para erisipela, para inflamação da perna. Mastruz - combate os vermes Erva baleeira - dores musculares. Erva de são João - "serve para tudo, nós fazemos tintura dela". (Gracinha) Alfavaca miúda - usada como tempero de cozinha e no xarope para gripe. Jurubeba - indicada para tratar do fígado, "dá uma sementinha fortificante, muito bom!". (Gracinha) Babosa - indicada para o câncer, para o cabelo, e quando usada em queimaduras, evita a formação de bolhas. Poejo - Usado nos xaropes expectorantes, "Serve para tudo, mas ele é mortífero também. É abortivo". (Gracinha) 92 3.3 - Disseminando os grãos - a transmissão de conhecimento "As meninas vão entrando e a gente vai ensinando. Também tem os dias de oficinas, quando se junta todo mundo." (Geralda) “Tudo o que a avó da gente, a mãe da gente passava para a gente, é a mesma coisa que tem aqui. Mas tem as coisas novas que a gente também está aprendendo. Para mim é uma coisa nova que estou aprendendo, quer dizer, eu já sabia, mas uma coisa é você saber, a outra é ter a prática. Hoje eu sei, estou aprendendo, também na prática. Em relação às pessoas também vou aprendendo. Isso tudo ajuda a pessoa a crescer, eu acho, essa é a minha opinião." (Luíza) No período do trabalho de campo no Grão de Mostarda, o grupo estava em pleno processo de reorganização, com novos procedimentos de produção e controle de estoque sendo introduzidos. Na avaliação de Geralda, uma integrante veterana, o momento era de retomada dos trabalhos: "Minha comadre Lina, essa criatura era uma pessoa santa, uma pessoa de Deus, que deixou muita saudade muita falta, mas se Deus quiser, junto com essas outras irmãs a gente vai retomar tudo aí. Se Deus quiser, recuperar a falta dela e a saúde [como o projeto é chamado]." (Geralda). A transmissão de conhecimento sobre identificação e uso de plantas medicinais acontece de forma individual, na medida em as integrantes mais antigas são consultadas, e coletiva, a partir de cursos de formação, de visitas a outros grupos e de participação de encontros. As irmãs Lúcia, Luzia e Luíza, ambas com menos de 50 anos, e Fátima são as integrantes mais "novas", o que representa metade do grupo. Para quem está começando, o aprendizado é diário. O princípio ativo das plantas é extraído através da tintura (diluída em diferentes produtos é usada em xaropes e pomadas). As principais receitas − de tintura, xarope, sabão e pomada − estão registradas em uma pasta. Mesmo assim, ainda acontecem equívocos e surgem dúvidas. "Algumas [receitas], a gente ainda tem a dúvida, então vai lá no livro. Mas tem muitas ervas que a gente vai conhecendo no dia a dia e vendo para que serve. Tem uma senhora, que é a Gracinha, a mãe de todos, quando a gente tem alguma duvida vai nela" (Luzia). A fonte de informações sobre a indicação terapêutica das plantas são os livros e a memória de suas integrantes. Muitas vezes, recordações e associações vezes têm origem na infância, nas terapias ministradas por mães e avós, um conhecimento que nem sempre é posto em prática. 93 A produção regular de fitoterápicos é restrita a uma determinada variedade, o que consome somente parte das plantas da horta. Ocasionalmente, outras preparações são feitas, para outros fins, de acordo com a disponibilidade das plantas e a demanda do público. “Lúcia já nos deu carta branca para chegar aqui e começar a trabalhar sem ter que esperar por ela. É só ter o material que a gente faz”, explicou Fátima. Questionada sobre o que ela já sabia fazer, antes que respondesse, Lourdes interferiu em tom de brincadeira: Lourdes − Nada. Fátima − Sei fazer xarope, que a Neusa me ensinou. Há produtos e tarefas que agradam mais cada participante, ainda que afirmem que todas fazem de tudo. Luzia prefere as pomadas, produto que mais aplicava quando fazia curativos. Geralda gosta de fazer xarope. Para Isabel, o melhor é fazer o leite forte e é simples repetir as receitas e os procedimentos. “A gente aprende a fazer e pronto, num instante faz. O difícil é reparar as plantas, tem que saber qual são as plantas e qual é o mato para poder tirar”. As práticas organizadas e coletivas de transmissão de conhecimento ─ realização de cursos e palestras abertos à comunidade na última semana de cada mês, com duração de uma tarde cada um ─ é uma das estratégias para trazer outros integrantes da comunidade para o Grão. A articulação do Grão de Mostarda a outros movimentos de saúde alternativa e popular (Rede Fitovida e Pastoral da Saúde) foi fundamental para atrair novas adesões, pois permitiu a realização de cursos para garantir a formação continuada do grupo como acontecia "no tempo de Lina". Em julho de 2006, foram realizadas aulas práticas de preparação de essências com destilador, alimentação natural, preparo de leite forte e multimistura. Em agosto, os temas apresentados foram a argiloterapia para fins medicinais e estéticos (apresentado por Maura, de um grupo de Nilópolis), alimentação natural com receitas de sucos de hortaliças e noções de homeopatia (apresentado por Marta, uma das fundadoras da Rede). Em outubro, o tema foi uma oficina de meio ambiente, apresentado por técnicos do Ministério do Meio Ambiente envolvidos com o Inventário Nacional de Referências Culturais. Eles apresentaram a medida 2186/16 que regulamenta o uso do conhecimento tradicional do patrimônio genético brasileiro. Outro local de capacitação é o Centro de Formação de Líderes, em Nova Iguaçu, onde funciona o núcleo 94 da Pastoral da Saúde da Baixada Fluminense. Lá aconteceu um curso de bioenergética. Mas, nem sempre, existe interesse e disponibilidade de tempo das integrantes em participar de atividades além dos dias em que se "doam" ao grupo. "A resistência das pessoas em participarem dos cursos e palestras é complicada. Nem mesmo conseguimos sensibilizar todas as integrantes do grupo sobre a importância de participar." (Lúcia) Para Lúcia, é difícil mobilizar a comunidade para a participação nos cursos e no grupo, pois é mais fácil ir até lá e pegar o xarope pronto do que se dispor a aprender a manipular as ervas e ser voluntário. Essa dificuldade de mobilização até mesmo para o aprendizado das terapias naturais, com alimentação e produção de medicamentos fitoterápicos, é um dos desafios do grupo. A história do engajamento das integrantes atuais revela que os laços pessoais de amizade foram determinantes na aproximação e no comprometimento, assim como já terem participado ou participarem de outras atividades na Igreja. "A maioria entra por convite, todas têm suas famílias", diz Fátima. Na esfera pessoal, a transmissão de conhecimento tem fins práticos de combater isoladamente determinadas doenças. Em uma conversa após um almoço em que estiveram presentes os três filhos de Luíza e uma das filhas de Neusa, perguntei como era a transmissão do conhecimento em casa e se as filhas se interessavam pelo trabalho voluntário que as mães realizavam. "Sempre acreditei em folha, porque sempre ouvia as pessoas mais velhas falando. Essas coisas de ervas têm mais resultado que farmácia. Tento ensinar para minha filha mais velha e para a outra que está grávida, minha mãe tentava passar e a gente não levava a sério. Tem que semear uma sementinha dentro de casa." (Neusa) Neusa ensina às filhas, mães de seus netos, como se faz o xarope, uma delas já chegou a ajudá-la no Grão. Lourdes se mostrou mais pessimista sobre adesões de familiares, ressaltou que as filhas estão envolvidas demais com suas próprias famílias ou trabalho e que não se interessam em aprender. Neusa, ao contrário, tinha mais esperança quanto ao interesse juvenil. “Elas não se interessam hoje. Eu mesma, só fui me interessar quando já estava mais velha”. A 95 demanda familiar, ou profissional, torna impeditiva a participação de jovens mães com filhos pequenos que se dedicam somente ao lar. Assim, são as mulheres adultas e mais velhas que estão disponíveis para o voluntariado no Grão e muitas já tinham o hábito de consumir estes produtos. Para Geralda, muitas pessoas pensam que a atividade no grupo é remunerada e demonstram interesse em participar, mas desistem quando descobrem que o trabalho é voluntário. Para ela, é mais fácil sensibilizar pessoas que já estão engajadas em outras atividades da Igreja. "Só ficar toda vida no círculo bíblico, nunca sai do círculo bíblico. Então, a gente convida para participar de outras pastorais, para que cresçam. Como aqui, precisa crescer. Não cresce porque falta gente para trabalhar, a gente convida, mas é difícil." (Geralda) Para ela, com mais integrantes, o trabalho poderia ter um impacto maior e poderia funcionar todos os dias da semana. “No tempo de Lina”, havia um revezamento para que o projeto ficasse aberto todos os dias da semana. Mas se há dificuldade para atrair novas adesões para o Grão, isso não significa que o modelo do grupo não seja "exportado” para outras comunidades. Em Jardim Amapá, na divisa com Duque de Caxias, o grupo da Paróquia São Simão foi criado em 2001 a partir da experiência do Grão de Mostarda. "Sempre tem um cursinho aqui, eles vão perguntar, e eu digo, ensino tudo direitinho. Vem aí gente do lote XV, um grupo de lá, vem do posto XIII. A gente já foi em Niterói ensinar. A gente sai, é só chamar, que a gente vai ensinar. No lote XV, tem a cozinha, no posto XIII, tem. Hoje é que não tem, mas sempre vem gente de fora aprender aqui, eles gostam de ver fazer. Aí escrevem tudo, saem e vão embora, mas eles aprendem aqui." (Gracinha) A transmissão dos conhecimentos é, ao mesmo tempo, um processo de aprendizado. Aprender coisas novas é tão importante para estimular as integrantes do grupo em suas atividades quanto se sentirem detentoras de um conhecimento que interessa a outras pessoas. Embora a legitimidade do saber de cada uma passe pela origem rural, as "raízes", pelo que lhes foi transmitido por suas mães e avós, não existe um saber congelado, parado no tempo. De fato, é 96 uma reinvenção da tradição, pois misturam-se as novas aquisições técnicas, terapias e usos medicinais das plantas com antigas práticas. Questionada se o conhecimento que detinham corria o risco de se perder, Geralda respondeu: "Não pode, não. Na semana passada, esteve aqui um professor de conhecimento de ervas e ele falou para a gente : 'Olha, vocês devem fazer o que aprenderam com a avó, nunca deixem essas raízes se perderem'. Só que a gente faz, mas a gente aprende também. A gente transmite do mesmo jeito que aprendeu com os avós. Eu conheço aquele xarope antigo. E aqui, a gente aprendeu de três formas. Então, eu ensino do jeito antigo, mas sou mais de ensinar dessa forma nova que a gente aprendeu. Porque acho que fica... o processo fica melhor desse jeito novo. Porque não fica muito tempo no fogo, então nesse processo é mais aproveitado." (Geralda) Na aquisição e transmissão de conhecimentos, combinam-se livros, troca de experiências com outras pessoas, medicina científica tradicional e o conhecimento familiar. É dessa maneira que também se define o estatuto de quem detém o conhecimento sobre o uso de plantas medicinais. O que não é transmitido A identificação de plantas e sua colheita são tarefas fundamentais para o grupo, o que muitas vezes fica a cargo de Gracinha. Ao afirmar seu isolamento nessa tarefa, ela o faz também como uma forma de protesto, pois para ela esse é o maior patrimônio do grupo e não se justificam as reclamações de que o "trabalho na terra" é muito cansativo. Com freqüência, ela é procurada por usuários e pelas próprias integrantes para identificar plantas, uma forma de transmitir seu conhecimento. Muitas vezes, os nomes que utiliza para classificar as plantas não conferem com os usados por outras pessoas. É o caso da espinheirasanta localizada na horta. “Tem gente que fala 'isso não é isso'. Eu digo isso é do tempo da minha avó que eu conheço, né? Que nem a Lúcia, ela disse 'isso não é espinheira-santa não'. Essa é espinheira-santa de casa. Você conhece a espinheira-santa do mato, mas essa é de casa.” (Gracinha) 97 A identificação das ervas, a escolha de novas plantas, tudo passa pelo crivo de Gracinha. Muitas espécies disponíveis foram trazidas por ela própria. "Essas ervas, quando vou para Minas, assim, eu trago muda. Eu preciso hoje de erva terrestre, que é difícil, aqui não tem. Esse cardo santo, eu trouxe de Valença. Essas mostardas que dão essas folhonas grandes, também trouxe de Valença, no estado do Rio, lá moravam os meus primos. Eu ia lá, mas agora não está dando mais para eu ir." Ela também é a principal conhecedora “do que é planta e do que é mato”, sem a sua avaliação é impossível limpar o terreno sem jogar fora ervas medicinais. Esse conhecimento nem sempre é compartilhado, uma vez que está baseado na experiência e o grupo ainda não desenvolveu estratégias de sistematização desse conhecimento, o inventário é uma delas e ainda está sendo experimentado pelo Grão de Mostarda. A Rede Fitovida já havia identificado a necessidade de focar na identificação de plantas e seus usos terapêuticos. No Encontro de Partilha de novembro de 2005, houve uma votação para escolher os temas dos encontros seguintes: reaproveitamento de alimentos e identificação de plantas foram os mais votados. O segundo tema foi tratado no encontro do segundo semestre de 2006, sediado na igreja que abriga o Grão de Mostarda, em Belford Roxo. Às vésperas desse encontro, presenciei um atendimento no balcão de uma usuária antiga, simpatizante, que conhecia a Rede. Reconhecer plantas medicinais é um assunto de grande interesse na Rede Fitovida e é um dos temas preciosos do inventário que tem sido realizado. Acredito que esse processo pela qual a Rede está passando irá resultar em estratégias de transmissão de conhecimento sobre plantas medicinais mais eficazes. O Encontro de Partilha que teve esse tema já é um exemplo de como é possível reunir receitas curativas, uma vez que os participantes, divididos em grupos, registraram em papel quais eram as ervas disponíveis naquele dia e para que serviam. 98 4. ENVELHECIMENTO FEMININO, SOCIABILIDADE E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES A análise do processo de transmissão de saberes da Rede Fitovida requer investigar a forma como suas integrantes experimentam o processo de envelhecimento. A superação dos estigmas associados à velhice se alcança através da construção de uma identidade positiva, como detentoras de um conhecimento valorizado. Ao mesmo tempo em que estabelecem uma malha de solidariedade e apoio intergeracional, praticam atividades voluntárias dinâmicas e disseminam técnicas de cuidados com a saúde, elas experimentam uma velhice ativa e criam novos lugares para os velhos na sociedade. As experiências, coletivas e individuais, na Rede Fitovida e no grupo Grão de Mostarda, transformam as percepções particulares sobre saúde e envelhecimento e podem explicar as motivações para cada uma se engajar em um trabalho voluntário na área da saúde, experimentando novas formas de associativismo. Ao fazerem parte de um projeto comunitário de saúde, muitas dessas mulheres abrem mão do principal papel que exerceram a vida inteira e rompem com alguns impedimentos dos modelos tradicionais femininos, como a limitação ao espaço doméstico. O papel de cuidadora, de gerir e preservar vidas, se estende para além da família. Assim, confirmam a tendência mundial de participação feminina em movimentos sociais. Os depoimentos das integrantes do Grão de Mostarda permitem perceber a maneira como combinam afazeres domésticos com o trabalho de “doação”, as estratégias para disfarçar a idade e como vivenciam uma sociabilidade intergeracional marcada pelo afeto. 4.1 - Processo de envelhecimento e construção de identidade O envelhecimento da população brasileira é um fenômeno já bastante analisado pelos demógrafos e cientistas sociais e tem ganhado cada vez mais importância na formulação de políticas sociais. São as mulheres, em função da maior expectativa de vida, que representam a maior parte da população idosa mundial e brasileira. Segundo o censo de 2000, do IBGE, a população com 60 anos ou mais é 14.536.023 pessoas (cerca de 8,5% da população), deste 99 total 8.002.245 são mulheres, aproximadamente 55% da população de idosos. Mas se elas vivem mais, isso não significa que tenham melhor qualidade de vida 48. C. Peixoto ressalta como o processo de urbanização e industrialização das sociedades complexas produziu transformações nas relações familiares que destituíram os velhos de seu lugar privilegiado. Diante de novos modelos, as pessoas de mais idade criaram estratégias de sociabilidade49 e de solidariedade para além da rede familiar (Peixoto, 1997:71). São nos grupos organizados, com os mais diversos propósitos, que as pessoas idosas desenvolvem uma sociabilidade marcadamente intergeracional. Para as mulheres do grupo de Belford Roxo, bem como para as de outros grupos da Rede Fitovida, freqüentar as reuniões semanais para a produção de medicamentos naturais é uma importante forma de socialização, bem como de afirmação de sua importância enquanto indivíduos. Ali, elas adquirem um estatuto dentro de sua comunidade, tornam-se úteis na medida em que disponibilizam um conhecimento tradicional sobre cuidados com a saúde que se materializam em remédios fitoterápicos distribuídos na vizinhança, resignificando assim o próprio entendimento do que é velhice. Lins de Barros (2004) analisa a particularidade do conceito contemporâneo de velhice no contexto da modernidade. A noção de indivíduo é uma chave para a compreensão dessa configuração. “Comparativamente às sociedades tradicionais, onde o grupo prevalece em relação ao indivíduo, estando este englobado por uma estância maior (o clã, a linhagem, a aldeia, a tribo), na sociedade moderna a ideologia individualista é dominante. O indivíduo passa a ser um valor social. Decorrente do foco do indivíduo e não mais no grupo, é a percepção de si mesmo como 48 "Para Veras, há três outros fatores que atingem diretamente a sobrevida do sexo feminino, diferenciando-a do masculino: 'a) diferença de exposição às causas de risco de trabalho - acidentes de trabalho e outros, ocorrem em maior proporção entre os homens; b) diferenças no consumo de álcool e tabaco produtos associados, principalmente às doenças cardiovasculares, doenças para as quais as mulheres têm maior proteção, em relação à isquemia coronariana, através dos hormônios femininos; c) diferenças de atitudes em relação à doença as mulheres são mais atentas em relação aos sintomas de saúde, o que as leva a utilizar constantemente os serviços médicos, neste sentido, o diagnóstico precoce aumenta a expectativa de vida (1994:41/42). Entretanto, pesquisas européias parecem indicar que, se por um lado, as mulheres vivem mais que os homens, por outro suas condições de saúde são mais precárias" (Peixoto,1997: 55). 49 C. Peixoto ressalta a ampla utilização do termo em diversos quadros metodológicos e que a maioria dos autores o utiliza como “conjunto de relações sociais tecidas pelos indivíduos e as formas como estas são estabelecidas”. Em sua pesquisa, o compreende como "malha de relações sociais tecidas pelos indivíduos em sua vida cotidiana" (2000:45/46). Já A. Motta utiliza a definição de Simmel, como "a forma lúdica da sociação", no que expressa um aspecto fundamental da natureza cultural dos indivíduos, a associatividade, sobretudo em sua expressão desinteressada: essas “formas ganham vida própria. São liberadas de todos os laços com o conteúdo; existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação desses laços” (2004:110). 100 ser inigualável e singular que permite a construção da idéia de trajetória de vida, de ciclo de vida, de projeto de vida e de percepção de uma memória individual”. (Lins de Barros, 2004:14). A noção de velhice é construída em oposição à de juventude e representa o declínio da capacidade produtiva e do controle do corpo e da mente. “A aparição da velhice como um estigma e como exclusão social se dá paralelamente ao advento da aposentadoria para a população trabalhadora, associando-a à pobreza.” (Lins de Barros, 2004: 17). No Brasil, essa associação se sedimentou a partir da instituição de políticas sociais para a velhice. A legislação brasileira ampliou o sistema de aposentadorias na década de 30 e a criação da Previdência Social se deu na década de 60. Em 1973, foi instituída a aposentadoriavelhice, para aqueles que nunca tinha contribuído com a previdência social, que garantia rendimentos aos homens a partir do 65 anos e às mulheres a partir dos 60. Somente na Constituição de 1988, a questão do envelhecimento foi mais reconhecida, os rendimentos passaram a ser atrelados ao salário-mínimo e foram incluídas categorias profissionais que estavam de fora, como os trabalhadores rurais, domésticos e autônomos. Segundo C.Peixoto (2000: 61), a aposentadoria-velhice contribuiu para acentuar a representação social do aposentado à improdutividade, independentemente da idade. “A associação entre velhice e decadência atinge, então, todos os domínios da sociedade brasileira". 101 Terceira Idade, idosos e velhos O uso das palavras esconde significados e representações. As maneiras de designar pessoas com 60 e mais têm evoluído de acordo com o desenrolar das políticas públicas, revelando como o envelhecimento tem sido representado. C. Peixoto ressalta que o termo Terceira Idade é um “decalque do vocábulo francês” e é: “empregado nas proposições relativas à criação de atividades sociais, culturais e esportivas; idoso simboliza sobretudo as pessoas mais velhas, os velhos respeitados; enquanto terceira idade designa principalmente os jovens velhos, os aposentados dinâmicos de modo semelhante à representação francesa”(1997: 62). O alongamento da faixa de idades promoveu o uso de novos termos: a quarta (75 a 85) e quinta idades (> que 85 anos), classificação usada em alguns países europeus. “O desenrolar das políticas públicas voltadas para a velhice repercutiu nas formas de classificação das pessoas de 60 anos e mais: de “velhos” passaram a aposentados, com a criação dos sistemas de aposentadoria; de idosos passivos e reclusos à vida privada se tornaram a terceira idade; através do dinamismo e autonomia se transformaram em seniores, pois com a crise econômica e o desemprego dos mais jovens, os aposentados têm maior poder de consumo.” (Peixoto, 2005: 35 ). No início dos anos 90, uma nova categoria passou a ser utilizada, substituindo o termo idoso. A palavra “sênior” foi criada para distinguir um novo nicho de mercado: jovens aposentados com grande poder de compra. Essa evolução no uso das palavras é indicativo de como o imaginário social contemporâneo percebe os indivíduos com 60 anos e mais. 102 4.1. a) As duas faces do envelhecimento Associar o envelhecimento a processos de doença e morte tem sido uma tendência teórica e metodológica dominante, principalmente pela medicina, o que dificulta a análise de modo a poder associar esse processo à saúde e à qualidade de vida. O conceito de velhice foi medicalizado e estatizado, reduzindo a complexidade desse fenômeno a um "problema de saúde" e a um "problema político". Entre os aspectos que compreendem o conceito de velhice, o biológico é o que mais condiciona a percepção do indivíduo sobre si mesmo, o que segrega o velho para um não-lugar na sociedade. “Da mesma forma como sempre as mulheres foram ligadas à natureza, como forma de dominação e controle – e toda fase inicial do feminismo dos anos 60/70 foi um enorme movimento de esclarecimento e recusa a esse determinismo biológico – ainda assim é feito com os velhos. Mas de maneira diferente – e pior. É como se eles estivessem em uma dimensão não produtiva e terminal da natureza – resíduos da natureza, objetos de necessário descarte. Não se reproduzem mais, não produzem trabalho e bens materiais (ou não se permite que produzam, segundo os cânones do capitalismo). Em suma, não reproduziriam a sociedade. Portanto, „não pertencem‟ a ela. Até o ponto da análise de Birman (1995:43), “este lugar impossível que a modernidade ocidental construiu para a velhice” (Motta, 2002: 38). O envelhecimento feminino, sob a perspectiva da decadência, é ainda mais doloroso. C. Attias-Donfut destaca que, apesar delas possuírem rendas menores, serem mais frágeis socialmente e terem sobrevida maior, ainda assim elas experimentam novas atividades centradas na satisfação própria e demonstram grande habilidade para estabelecer redes de solidariedade. "Aos 50 anos, as mulheres sofrem, muito mais que os homens, com o desemprego e a saída antecipada da vida ativa. É também entre elas que encontramos uma tendência maior à permanência na vida ativa depois dos 60 anos, para completar o tempo de cotização (em face do curto tempo de carreira) e poder se beneficiar de uma aposentadoria mais elevada. Na passagem à aposentadoria, elas são mais numerosas do que os homens ao se depararem sozinhas, sem cônjuge e, assim, fragilizadas econômica, social e psicologicamente. Mas, e é um outro paradoxo do envelhecimento feminino, aposentadoria é também mais claramente para elas a ocasião para desempenhar novas atividades centradas na satisfação de si; o que, para Joffre Dumazedier (1989) significa o lazer" (Attias-Donfut, 2004:100/101). 103 Segundo a autora, as desvantagens sofridas pelas mulheres, tanto na vida familiar quanto profissional, se acentuam na medida em que envelhecem, o que vai além da inferioridade econômica, pois as transformações da imagem corporal têm impacto sobre a identidade pessoal, no campo simbólico (Attias-Donfut, 2004:92/93). Vale lembrar que: "Dependendo da classe social, e dos arranjos familiares, ser velha pode significar viver em grande pobreza, ou até na miséria, mesmo para aquelas originalmente de classe média, por tratar-se de uma geração de escassa participação no mercado de trabalho e, portanto, com poucos recursos pessoais de sobrevivência. Também pode significar solidão, devido à viuvez, separações, solteiras com filhos, mulheres chefiando famílias que nunca se constituíram completas. Não raro, são os arrimos de família de filhos adultos" (Motta:1999:210). Mas, se para as mulheres, o processo de envelhecimento é marcado pela perda de algum dos predicados socialmente reconhecidos como ligados à juventude: a beleza e a capacidade de reprodução, isso não as impede de organizarem outra forma de dinâmica de vida na velhice. Elas conseguem exercitar outras características do feminino, mostrando “talentos, competência e distinção. A habilidade de exercer ou lidar com o social parece ser a habilidade valorizada de mulher (e de esposa) e um elemento importante na constituição da identidade feminina” (Motta, 1998:115). A construção de uma nova identidade para quem envelhece passa pela superação de muitos estigmas da velhice. O reconhecimento social de uma mulher depende da construção de uma imagem positiva de si própria, ou seja, a “percepção de si como sujeito capaz de autoreflexão como indivíduo singular, portanto com condições psíquicas para isso, como sujeito independente para garantir seu status social e sua reprodução. Trata-se de assegurar seu lugar social como indivíduo em uma sociedade de indivíduos” (Lins de Barros, 2004: 17). Sobre esse aspecto, C. Peixoto chama a atenção para o papel do velho bem sucedido economicamente e com melhor estatuto social e que nem sempre é percebido como velho. Conforme já demonstraram autores como A. Motta, C. Peixoto, R. Veras, A. Bassit, entre outros, estão em curso transformações sobre o papel do velho na sociedade brasileira, com a crescente participação deste segmento da população no espaço público. “Movimentam-se, homens e mulheres, em sentidos diferenciados, conforme suas trajetórias de vida: os homens para o lazer e o descanso (Motta, 1997) ou, em bem menor número, para as 104 atividades públicas ou políticas, principalmente o movimento dos aposentados (Pereira et al., 1992; Simões, 1994); as mulheres, para atividades de mais clara liberação existencial, de lazer e cultura (Debert, 1994; Motta, 1998). Mas todos tendo, em comum, a intensificação ou a retomada de uma universalmente desejada sociabilidade (Motta, 1999b; Peixoto, 1997)” (Motta, 2002:45). Nesse contexto de transformação de modelos familiares tradicionais, de aumento da população maior de 65 anos e de protagonismo dos velhos a construção de um novo imaginário social depende do abandono de preconceitos normalmente associados a esse estágio da vida (fragilidade, dependência e incapacidade). Atualmente, as mudanças no perfil de atividade dos aposentados são bastante diversas. Os aposentados de hoje são menos dependentes dos filhos e contribuem para melhores condições econômicas das famílias na qual habitam50. Verifica-se o prolongamento das atividades profissionais para complementar as aposentadorias e a renda dos aposentados como principal referência na família. Os motivos são a idade precoce da aposentadoria e o baixo valor das pensões (Peixoto, 2004:57). A solidariedade familiar é um fator determinante para promover a reinserção no mundo do trabalho na pós-aposentadoria. Segundo os dados da pesquisa de C. Peixoto, “a grande maioria ajuda os filhos adultos, tanto financeiramente quanto através da prestação de pequenos serviços” (idem, 75). Entre as mulheres, predominam as atividades domésticas remuneradas (costura, faxina, preparo de doces, etc), uma característica de uma geração que foi socializada com o objetivo de exercer papéis domésticos. No Grão de Mostrada, há casos de mulheres, avós e bisavós, cujos netos vivem com elas, que são as provedoras principais de sua sobrevivência. A gravidez desses netos jovens acaba impactando a qualidade de vida dessas mulheres, pois são elas que os apóiam, como no caso de Geralda, cujo neto vive com a mulher e a filha em sua casa. Já a filha de Luíza não mora mais com ela, mas com os sogros e sua filha de 4 anos. "Moro eu e meu esposo. Agora mesmo, tem uns netos lá, fez um ano em fevereiro que estão lá. A casa da mãe dele era muito pequena. Meu neto arrumou uma menina. Aí, minha filha, como eu também , acolheu, porque a mãe não quis a menina. Então, ela veio da casa da mãe dela. E depois, no calor do ano passado, estava morrendo sufocado todo mundo, aí vieram lá para casa. 50 Cerca de 52% da renda das famílias que contêm idosos é proveniente das aposentadorias ou recursos gerados por eles (Camarano, 199:21; Apud Peixoto). 105 'Vó, deixa eu ficar aí até o calor passar?'. Eu sei que já tem um ano, em fevereiro, estão lá até hoje, um ano passado, e nada. E eu tenho é que acolher, porque tem a bebezinha de dois anos, que vai fazer três anos no dia nove de agosto. E assim vai morando todo mundo até quando Deus quiser" (Geralda). As mudanças dos papéis exercidos pelos idosos vêm acompanhadas de uma gradual reconstrução do imaginário sobre essa fase da vida, o que passa pela percepção dos próprios indivíduos sobre o processo de envelhecimento experimentado. A. Bassit afirma que a visão de mulheres nascidas entre 1922 e 1936, pertencentes a camadas populares e médias de São Paulo, difere daquela dos especialistas na área, focalizada na doença e na dependência. “O envelhecimento como período de exclusão pode ser entendido a partir da perda de espaço dos significados e valores que anteriormente estruturaram suas vidas e que hoje não são suficientes para reorganizar sua velhice. Daí o movimento de negar a própria velhice, tanto por sua associação com doenças, uma vez que não estão doentes e não são velhas, como também de torná-la objeto de reflexão.”(Bassit, 2002:185). A partir das entrevistas realizadas, a autora concluiu que a maioria reconhece as perdas e os ganhos do processo de envelhecimento e têm sugestões positivas para quem está passando pela mesma situação. Tal perspectiva dos sujeitos vai de encontro à compreensão dessa fase da vida como uma exclusão da vida cotidiana identificada com a dependência. "Agora, estamos, finalmente, no limiar de um reconhecimento social dos idosos, seja por uma imagem social de dinamismo que eles vêm construindo, seja pela sua participação em grupos (Motta, 1999a), seja pela constante visibilidade a eles dada na imprensa. Entretanto, ainda que estejam progredindo muito, continuam pouco inseridos nos grandes circuitos das relações sociais. São ainda, como expressou Birman (1995:43): 'sujeito em suspensão'. Na expectativa de um lugar que possa ser novo e mais satisfatório e que dependerá precipuamente da consolidação de uma identidade coletiva de idosos que apenas começaram a construir, principalmente nos seus grupos, e de uma ação política que se imponha à sociedade” (Motta, 2002:47/48). As integrantes do Grão de Mostarda contribuem para a construção de uma imagem dos mais velhos associada ao dinamismo. Elas preenchem o tempo livre com inúmeras atividades e não se sentem cansadas. Lourdes costuma sempre ir andando de Belford Roxo até a Pavuna (bairro limítrofe do município do Rio de Janeiro) e quando precisa agendar sua visita mensal 106 ao médico, procura marcar em dias que não coincidam com seus compromissos sociais (separação de bolsas de alimento na pastoral social, cantos da igrejas, etc). Se, por um lado, o crescimento de espaços e atividades voltados para a chamada "Terceira Idade" torna os velhos mais visíveis, por outro existe o risco da segregação geracional, que os mantêm como "sujeitos em suspenso". A sociabilidade intergeracional em ações comunitárias, de cultura, em programas de voluntariado e até mesmo no mercado de trabalho é apontada como uma forma de resgate de auto-estima, na valorização e no reconhecimento de si mesmo como um ser integrado na sociedade na medida em que recebe e doa serviços (França et Soares, 1997:161). No Grão de Mostarda, esses novos papéis estão sendo amplamente experimentados. Há três grupos etários diferentes: da faixa dos 75 anos, dos 60 anos e dos 45 anos. As mais idosas, antigas integrantes, já se afastaram e “a mais velhinha de todas”, eu nunca encontrei durante a realização do trabalho de campo. O avanço da idade afasta a mulher do círculo de sociabilidade e a limita novamente ao ambiente doméstico. É nessa fase em que elas se encontram mais vulneráveis às representações negativas da velhice, na medida em que experimentam cada vez mais o isolamento social e o aumento do grau de dependência física e mental51. Engajar-se nas atividades sociais da igreja e associar-se em prol da transmissão de um conhecimento de cuidados com a saúde permite construir uma imagem positiva como detentoras de um saber. Entre integrantes do Grão, não há diferença de comportamento no que diz respeito ao dinamismo dessas mulheres. Todas são ativas, apesar das dificuldades da vida, cada uma apresenta alternativa para a vivência de uma velhice com qualidade de vida, alegria e satisfação. A medicina popular, antes considerada exemplo de atraso e ignorância, alcança outros significados, torna-se medicina natural, fitoterapia e "até os médicos" utilizam. A construção de um imaginário coletivo para essa velhice positiva acontece através dos encontros, nos almoços, nas orações e nas cantigas, como uma cujo refrão diz o seguinte: "Entra na roda com a gente, você é muito importante". 51 Algumas exercem hoje atividades informais para gerar renda, o que demonstra maneiras de experimentar o envelhecimento distintas dos tradicionais estigmas que acompanham essa fase da vida. Lourdes faz compotas, geléias e biscoitos para vender na vizinhança. Fátima costura e, assim como Gracinha, faz artesanatos em crochê. Isabel trabalha como faxineira. 107 Entre os estereótipos sobre velhos mais recorrente está relacionado à experiência, o saber, "que pode ser traduzido na experiência de vida, no aspecto cultural e, principalmente, no desenvolvimento intelectual.O idoso que detém muita informação é, em alguns casos, mais respeitado do que aquele que tem posses" (França e Soares, 1997:155). Ao pleitearem o posto de detentoras do saber, elas se afirmam como sujeitos. Conforme ressalta A. Motta: "Auto-afirmar-se no cotidiano é a primeira forma de diferenciação da velhice segundo os gêneros e as classes sociais. As mulheres, voltadas desde o início à domesticidade e ao cotidiano, e alguns dos mais pobres, que não têm quem os proteja ou os substitua em tarefas e na provisão da família, têm permanecido mais ativos. E reconhecem-se assim. Declaram-se vigorosos, saudáveis, independentes, principalmente as mulheres. " (1999:209). A atividade profissional na velhice possibilita uma sociabilidade intergeracional. No caso das atividades voluntárias desenvolvidas pelo Grão de Mostarda, elas trocam lições de vida e aprendem umas com as outras. Para as mais velhas, talvez seja a primeira experiência com uma vida diferente da doméstica, uma vez que foi uma geração sociabilizada para a maternidade e o lar. Para as mais novas, é uma experiência de resgate de um conhecimento transmitido de mãe para filha e o aprendizado de como se tornar avó, uma figura feminina importante e, porque não, fundamental, no que diz respeito a cuidados com a saúde e alimentação. "Minha avó que criou a gente, eu chamava ela de mãe e a minha mãe pelo nome, ela veio para Valença trabalhar." (Gracinha) O resgate de ensinamentos familiares e culturais sobre cuidados com a saúde e uso de plantas medicinais é um processo que, para muitas das integrantes, só pôde ser experimentado graças a mudanças estruturais na vida. Livres das obrigações familiares, elas têm tempo para se dedicarem a aprender novas receitas e a fazer amigos, ampliando os laços de sociabilidade. "No encontro com seus iguais geracionais, (re) descobrem interesses, memórias, experiências e até possibilidades de atuação que a vida no âmbito familiar de aposentados ou de donas-decasa menos exigidas não deixava entrever. Esse movimento de autonomia em relação à família são comuns em diferentes classes sociais; nas camadas populares, o sentimento de proximidade geracional é experimentado através do companheirismo, liberação de tristezas e conflitos na vida familiar na pobreza." (Motta, 1999:214) 108 Tanto no Grão de Mostarda, quanto nos Encontros da Rede Fitovida, a interação de diferentes gerações reforça os laços de amizade e solidariedade e ajudam a romper com muitos dos estigmas negativos relativos à velhice, pois suas atividades são associadas à figura das afetuosas avós que, com carinho e suas técnicas de cuidados com a saúde, acolhem a todos. Estratégias anti-envelhecimento "Eu, depois que o meu marido morreu, fiquei sozinha. Você sabe, as meninas vão ficando moças, vão se mandando e a avó fica sozinha." (Gracinha) A realidade do grupo e de suas integrantes apresenta particularidades quanto à percepção do processo de envelhecimento. A passagem da vida ativa para a inativa – um marco na construção da identidade do aposentado – não foi experimentada pela maioria das integrantes do grupo, pois quatro delas ainda trabalham e cinco são donas-de-casa e vivem da pensão dos maridos. Embora estejam mais livres do trabalho doméstico, suas famílias ainda demandam dedicação. Portanto, é a partir do corpo e das mudanças estruturais em suas famílias – casamentos dos filhos, nascimentos de netos e bisnetos e perdas familiares que o processo de envelhecimento é experimentado. Alguns relatos interessantes só foram proferidos quando a câmera estava desligada. Sentada em um banco do lado de fora da cozinha, Isabel contou que ia comprar tinta para pintar os cabelos, pois as crianças da vizinhança já estavam lhe chamando de vó. E como ela não era avó de ninguém, não queria ser identificada como tal. Todas são cuidadosas com a aparência e a maioria tinge os cabelos, o que demonstra a preocupação com sua própria imagem. Outra conversa reveladora aconteceu com Gracinha. Com seu bom humor habitual, ela explicou porque não havia procurado um médico para diagnosticar uma tosse persistente. "Todas as vezes que eu tossia, fazia um pouco de xixi. Imagina se eu ia ao médico, ficar lá esperando. O doutor ia falar, 'mas que velha fedida'." (Gracinha) C. Peixoto observa que entre as pessoas de mais idade, principalmente entre as camadas médias e altas, o cuidado com a aparência não se restringe à manutenção da saúde, mas à adoção de estratégias de cuidado e apresentação de si para disfarçar a idade e seduzir o outro. 109 “Os artifícios para disfarçar a idade traduzem de fato a intenção de descartar a imagem de uma velhice decadente e de conservar um papel ativo no seu meio de vida.”(2000:172). Gracinha, por exemplo, disse que não poderia ir ao médico porque não estava minimamente apresentável, assim o tingimento dos cabelos brancos e o exercício de atividades diárias intensas são maneiras de preservar a imagem. Se por um lado, elas experimentam perdas decorrentes do envelhecimento, por outro, têm maior disponibilidade de tempo que empregam para realizar outras atividades que não sejam apenas as tarefas domésticas. Fátima nunca teve um emprego formal, mas costurava e fazia artesanato para contribuir com o orçamento familiar. Hoje, as filhas estão criadas e ela afirma ter mais tempo para se dedicar a novas atividades, como o Clube de Mães e o Grão de Mostarda. "O engraçado, o bom, é que sobra tanto tempo que quero preencher”. Aprender coisas novas, ensinar a outras pessoas, atender às demandas de jovens mães e escutar as necessidades de quem as procura lhes permite vivenciar o envelhecimento de maneira positiva. Sobre os sentimentos que afirmam ter a partir do trabalho em grupo, o prazer é um dos mais citados. Como a família não demanda tanto, elas podem exercer um papel de cuidadora de um público mais amplo. − "Eu gosto mesmo é de estar com o pé no chão, porque, eu, na idade que eu tenho, só pisando na terra é que não sinto fraqueza interna não. Vou para lá, vou para cá, tenho 74 anos. Faço isso tudo e não sinto canseira nenhuma." (Gracinha) − "Eu não fico cansada não, porque eu gosto, por isso que não fico cansada, uma coisa que eu gosto, que eu quero, então não cansa." (Geralda) − "Prazer, a intimidade da gente, a convivência é gostosa. Os xaropes e produtos do Grão já são uma marca registrada. Os vizinhos pedem." (Lourdes) − "Aqui eu me dou com minhas amigas. Eu acho bom, sinto um alívio..." (Isabel) − "Sinto uma satisfação grande, de ver as pessoas chegarem para pedir e a gente ter para atender. " (Neusa) 110 − "O clima de carinho é muito forte e faz muito bem. Tem vezes que você chega aqui meio chateada e elas logo percebem, querem saber o que está acontecendo." (Luzia) Trabalho, descontração e sociabilidade "Às quintas, aqui, é só rir. Eu só me divirto". (Luíza) O “ambiente de trabalho” é marcado pela descontração, um aspecto fundamental expressado na forma de brincadeiras umas com as outras. Radcliffe-Brown52 já dizia que a descontração é uma forma de reforçar as relações de respeito mútuo, entre as pessoas mais novas e as mais velhas, e no Grão de Mostarda as piadas são freqüentes nos afazeres cotidianos. A formação da Rede Fitovida, que se deu a partir do trabalho, já existente, de diversos grupos de idosas espalhados no estado do Rio de Janeiro, pode ser comparada à criação e desenvolvimento dos clubes da terceira idade como espaços de sociabilidade 53. Em artigo sobre a Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI) da UERJ, Peixoto faz a seguinte observação sobre a importância da sociabilidade intrageracional: "Se considerarmos que nas sociedades capitalistas, o não-trabalho, mesmo no caso da aposentadoria, é percebido como uma forma de marginalidade, a interiorização deste estigma cria, nas pessoas idosas, sentimentos de impotência e desvalorização bastante fortes. Assim, a identificação do peso que o exercício de atividades sociais e culturais adquire na vida cotidiana destas pessoas, permite não somente avaliar este processo de reescolarização, mas também, refletir sobre as transformações das relações familiares: a mudança no papel desempenhado no interior da família não produz a ruptura dos laços familiares, mas a convivência não é mais praticada predominantemente no núcleo familiar." (Peixoto, 1997: 52) É importante ressaltar o contraste do modelo dos grupos da Rede em relação a outros grupos de sociabilidade de idosos de camadas médias e altas. As atividades voltadas para a Terceira Idade passaram a ser muito lucrativas para os produtores de atividades sócio-culturais e prestadores de serviços voltados para esse grupo de idade. Como assinala A. Motta, os 52 Em Parentesco por brincadeira, Radcliffe-Brown destaca a função da jocosidade entre parentes em distintas culturas para o equilíbrio de relações sociais. 53 "Um fenômeno próprio da sociedade atual é o encontro de pessoas idosas em grupos organizados, de variadas propostas, desenvolvendo uma sociabilidade marcadamente intrageracional." (Motta, 2004: 109) 111 programas de lazer que incluem cursos, festas e viagens para uma "velhice saudável", fazem circular o dinheiro dos velhos e, ao mesmo tempo, procuram promover a circulação social dos próprios velhos, grande parte deles "sem lugar" na sociedade contemporânea (Motta, 2002: 38). A finalidade das atividades da Rede é a assistência social e a transmissão do conhecimento sobre plantas medicinais, enquanto que as organizações de Terceira Idade têm como objetivo a satisfação individual de seus participantes. Apesar do caráter político da Rede Fitovida, isso não impede que, individualmente, as integrantes afirmem encontrar satisfação pessoal no que fazem e reconhecem o valor de estarem aprendendo alguma coisa nova. Manter-se ativa e em contato com os outros é uma preocupação constante em mulheres com 60 anos ou mais que independe de classe social. "As mulheres dessa faixa etária estariam mais interessadas em manter suas relações pessoais do que em qualquer outro projeto” (Bassit, 2002: 181). A mesma disposição pode ser percebida entre as integrantes dos grupos e, em especial, do Grão de Mostarda. Os momentos dedicados a ficar em casa estão sempre associados ao cuidado dos filhos, netos e maridos. Liberadas destas tarefas, elas buscam outras atividades, muitas delas ligadas à Igreja, como grupos de orações, clube de mães, etc. Entre os grupos da Rede, existe um movimento de visitas mútuas a fim de possibilitar a troca de receitas e o melhor relacionamento. Esse exercício da sociabilidade intergeracional, que permite a construção de laços de solidariedade e amizade, depende da existência de um local comum. Daí, os espaços de convivência do Grão serem bem demarcados, uma espécie de área intermediária entre o público e o privado. 112 4.2 -Territórios comuns nem público nem privado "Para que haja encontros, é necessário que existam lugares marcados com fronteiras precisas." (Peixoto, 2000: 157) Em pesquisa sobre sociabilidade de velhos parisienses e cariocas nos espaços públicos, C. Peixoto chama a atenção para a demarcação de territórios como forma de garantir o pertencimento a determinados grupos sociais. Assim como em sua pesquisa, os limites do Grão de Mostarda são muito bem marcados e protegidos. A sala onde funciona o grupo e a horta são espaços controlados pelas integrantes, ao contrário de outros espaços da igreja onde estão localizados, como a cozinha e o ginásio, sobre os quais não possuem gerência alguma. De todos os espaços do grupo, é na horta onde os limites estão melhor demarcados, inclusive os domínios de cada integrante. São Gracinha e Isabel quem freqüentam o local com maior assiduidade. Um funcionário da igreja ajuda no trabalho pesado. Mas Gracinha está lá ao menos duas vezes na semana. "Quem cuida da horta é seu Cândido que vem aqui e arruma e eu, que estou sempre aqui, todas as segundas e quartas-feiras, limpando, arrancando as folhas, replantando. Quem cuida dessa horta daqui sou eu". (Gracinha). A horta é o local onde é preciso ter o maior cuidado e controle, uma vez que está sujeita à intervenção de estranhos. A porta é fechada com um cadeado e, mesmo assim, muitas vezes alguns frutos são colhidos sem o consentimento das integrantes do grupo. Gracinha, ao me mostrar o local, fez questão de esconder uma abóbora por debaixo das folhas para evitar que fosse retirada por outras pessoas. A lida com a terra, os cuidados e o reconhecimento das plantas não é considerada tarefa fácil para muitas das integrantes. "Bem que eu chamo as colegas para vir pára cá, 'ah, eu tenho alergia, ah, a terra, o mato. Poxa, pisar na terra?'", contou-me Gracinha. Lourdes conta que foi criada "de pé no chão", plantando verduras e ervas em sua casa, mas não se envolve com a horta do Grão. Ainda que muitas não coloquem a “mão na terra”, a horta é para elas cenário ideal para as fotografias do grupo. 113 Entre as fotos que mostram a formação antiga na época de Lina, quando as tarefas eram diferentes para cada uma existe a foto de Nair no meio das plantas. Ao mostrar essa foto, Gracinha fez o seguinte comentário: “Está na horta, mas ela não trabalhava na horta não, mandaram ela ir para lá para tirar retrato”. A criação de um espaço comum é uma estratégia fundamental para reforçar o sentimento de distinção do grupo. Conforme C. Peixoto, a apropriação do espaço por seus freqüentadores revela a construção de um território suspenso entre o público e o privado. "Um mergulho na análise da representação do espaço nos permite distinguir dois eixos classificatórios: um de uso coletivo e aberto como a rua, as praças, as escolas e o trabalho, etc, e o outro privado e fechado como a casa, principalmente. Assim, as relações que se desenvolvem nestes lugares pertencem respectivamente aos domínios público e privado. Ou seja, a apropriação simbólica do espaço público se constrói através de uma gama de sentimentos de pertencimento e identidade."(Peixoto, 1997:71 ). Esse espaço permite manifestações sociais na qual se desenvolvem relações entre gerações e solidariedades cotidianas. O mesmo pode ser observado no Grão de Mostarda, pois a proximidade às moradias das integrantes permite que circulem rapidamente entre a casa e o Grão, o que é fundamental para a viabilidade do projeto. Pois como C. Peixoto ressalta: "Uma das características da velhice é o apego ao lugar de moradia. As limitações impedem, muitas vezes, que os idosos utilizem o sistema de transportes urbanos para efetuar longos trajetos; assim, o espaço de circulação se restringe, pouco a pouco, ao bairro em que vivem." (1997: 66) Esse aspecto pode nos ajudar a compreender o precário envolvimento da maior parte das integrantes com as atividades da Rede, uma vez que as reuniões e encontros são freqüentemente realizados em outros municípios. "No tempo da Lina", as atividades do grupo eram mais intensas. "A gente participava mais, tinha aqueles cursos. Tinha a doutora Eliane. A gente participava mais, ia para aqui e para ali, né? Foi muito bom, mas depois, vai ficando mais velha, aqui é mais perto de casa e eu prefiro mais ficar perto de casa" (Gracinha). 114 Conforme revela Gracinha, é o processo de envelhecimento que dificulta a participação nas atividades da Rede Fitovida. Isabel confirma a indisposição para participar de eventos distantes. Ela relatou uma experiência em outro encontro de partilha, realizado em Nova Friburgo, em que não se sentiu muito bem. “No outro encontro eu fui e passei mal. Gostei de lá, os rapazinhos todos muito legais, mas o negócio foi que eu fiquei em um estado de nervos que botei os bofes para fora.” (Isabel) Questionada se participaria do encontro de partilha sediado pelo Grão de Mostarda, disse que não. Na data da partilha, ela não só estava no ginásio da igreja onde funciona o Grão, como foi a mais presente, pois ficou responsável pela exibição e venda dos produtos. Mas ela foi das poucas integrantes do Grão presentes nessa reunião da Rede. A ausência que se deveu ao fato de estarem envolvidas com os últimos preparativos para a comemoração dos 11 anos do Grão de Mostarda durante a partilha. Elas terminavam de preparar e assar os bolos e separavam os brindes que iam ser distribuídos: pequenos sabonetes medicinais. Esse episódio reforça a existência de limites espaciais e também de pertencimento. 115 4.3- Mulheres em evidência No grupo Grão de Mostarda a presença masculina se resume a alguns visitantes esporádicos e ao trabalho independente de Cândido, o voluntário que ajuda a cuidar da horta; na Rede Fitovida, os homens são mais presentes, ainda que minoria. O terceiro Encontro de Partilha foi o que mais reuniu homens e credito esse fato à atratividade do tema: reconhecimento de plantas. A lida com a terra, no espaço de hortas e plantações, é construída culturalmente como uma atividade masculina, enquanto a alimentação natural e o preparo de receitas de estética, temas dos outros dois encontros, são assuntos que interessam mais às mulheres. O Encontro de Partilha sobre reconhecimento de plantas contou com a contribuição de homens e mulheres na identificação de plantas medicinais e suas propriedades. Entre os homens, alguns dos assuntos recorrentes eram sobre como crescem e como devem ser cuidadas determinadas plantas. Mesmo com essa maior participação masculina, o perfil dominante da Rede é, sem dúvida, feminino. A predominância de mulheres na Rede Fitovida deve-se a inúmeros fatores. É conhecido o peso da presença feminina em trabalhos assistenciais e, por isso, vale considerar a importância delas como agentes de mudança social. Paralelamente, assistimos à crise dos modelos tradicionais de família e à crescente participação da mulher no mercado de trabalho, ainda que precária, o que as coloca ainda mais em evidência no espaço público. O enfraquecimento do modelo patriarcal e a crise do modelo familiar baseado na autoridade/dominação masculina é um fenômeno contemporâneo que tem sido amplamente estudado sobre diversos ângulos. O resultado dessas tendências associado a fatores demográficos, como o envelhecimento da população e com a diferença das taxas de mortalidade entre os sexos, provoca uma grande variedade de estruturas domésticas, na qual a presença feminina é dominante. Mas se o crescimento da chefia feminina nas famílias e o aumento do número de separações, somados ao incremento do nível educacional das mulheres e sua maior participação em atividades remuneradas, promovem mudanças nos arranjos familiares, estas "não atravessam de forma monolítica todos os estratos sociais e as gerações na sociedade" (Machado, 1996:117). Observa-se que setores urbanos pobres são os mais apegados aos valores tradicionais, onde a realização feminina se cristaliza no casamento e na maternidade. 116 "O modelo de família idealizado por esses grupos é o de base nuclear desenvolvido pela burguesia no século passado a partir de uma clara definição de papéis de gênero, que coloca as mulheres em posições subalternas em relação aos homens. Este padrão de família encontra uma série de dificuldades para se manter, diante de diferentes processos em curso nas sociedades modernas: a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho; o aumento das separações de casais; a feminização das chefias de família; a radicalização do processo de individualização e 'sentimentalização' das relações familiares etc." (Machado, 1996:190) A família é uma categoria fundamental para as mulheres do Grão de Mostarda e da Rede, já que um dos princípios do movimento é respeitar a disponibilidade de cada integrante em doar seu tempo para as atividades exercidas em grupo. "Todas têm suas famílias", explicou-me Fátima ao se referir às formas de adesão ao grupo. Ela mesma só participa às terças e quintas e sempre justifica sua ausência, durante o final da manhã e o começo da tarde: "às 11h tenho que ir para casa preparar o almoço do meu marido, um senhor de 65 anos que está me esperando". É curioso, pois apesar de cumprir sua tarefa, Fátima também afirma não gostar de horários, nem gostar de ser mandada, motivo pela qual não se engajou em nenhuma atividade profissional ao longo de sua vida. As doenças dos familiares são os principais motivos para o afastamento temporário das atividades do grupo, o que já aconteceu com Gracinha, Neusa e Fátima. As ausências do lar para o engajamento nas atividades do grupo, muitas vezes, demandam uma negociação com os maridos. Há cônjuges que não reclamam da participação de suas mulheres, outros que sim. "Ninguém reclama não, só o velho que às vezes fala umas coisinhas, mas não incomoda não. Ele fala, 'Por que não leva logo a cama se vai ficar lá o tempo todo?'. E eu digo a ele que aqui não tem lugar para colocar cama não." (Geralda) "Ele reclama, não adianta que ele reclama. Meu marido às vezes pergunta: 'Tá indo aonde?'. Eu respondo, estou indo para o projeto, hoje é quinta-feira, não lembra? E ele diz: 'ah, tá, então hoje você só vai voltar de noite." (Neusa) Esse tipo de reação negativa da família sobre a participação intensa das mulheres nas atividades sociais da igreja, na medida em que expressam um ato voluntário e uma decisão 117 autônoma, também foi um dado observado na pesquisa de M. Machado (1996) sobre os processos de adesão e conversão à Renovação Carismática e ao Pentecostalismo. Ter como objetivo "servir a Deus" é uma justificativa muito forte a dedicação a atividades extradomésticas, como agremiações religiosas. As atividades do grupo Grão de Mostarda não são religiosas, mas se desenvolvem no espaço cedido pela Igreja. Esta pode ser, talvez, uma das razões pelas quais os familiares fazem pouca objeção à participação de suas mulheres. Assim, filhos e netos aparecem constantemente para falar com suas mães e avós, algumas vezes ajudam em alguma atividade, em outras aproveitam para almoçar. O próprio grupo é percebido como uma extensão da família. Neusa afirma que foi acolhida por Alzira e se sente como irmã de Lúcia, Luzia e Luíza, já que ela mesma não tinha mais sua própria família, somente a do marido. Gracinha é mencionada por Luzia como a "mãe de todos nós" e afirma "Aqui formamos uma família muito grande, principalmente depois que perdi minha mãe". Fátima se diz quase uma prima das três irmãs, pois além de ter o mesmo sobrenome, foi ela quem as incentivou a fazerem o concurso para agente de saúde comunitário da prefeitura de Belford Roxo. Embora esta pesquisa não tenha como objetivo analisar as questões de gênero e as representações dos papéis de gênero na sociedade, é possível sugerir que o Grão é um espaço onde se reproduzem modelos tradicionais de gênero, ainda que aberto às novas configurações familiares em curso na sociedade brasileira. Das nove integrantes, uma é viúva, uma é divorciada, duas são solteiras, cinco são casadas. Uma das mulheres casadas vive um segundo relacionamento e uma das solteiras tem dois filhos de criação. Sobre o futuro de suas duas filhas, Luíza confessa se preocupar muito, principalmente com a possibilidade delas repetirem o mesmo "erro" da mãe: abandonar os estudos para constituírem família sem ter uma profissão, como sua filha mais velha que já lhe deu uma netinha. "As meninas... é complicado. Marcela não concluiu a 5ª série, não conseguiu acabar os estudos, não por falta de incentivo. Jéssica está no último ano, na 8ª série, já está me dando dor de cabeça por causa de namorado. Digo a elas: marido não dá futuro a ninguém, a gente se ilude e acaba que vê que não é nada daquilo. Eu poderia ter terminado o meu segundo grau e feito até uma faculdade, como a Lúcia, mas fui me iludir e estou aqui." (Luíza) 118 O processo de envelhecimento permite que essas mulheres construam uma nova visão de mundo sobre os papéis de gênero, a partir de sua própria experiência, e vivenciem novas identidades no espaço público já que a demanda pelas tarefas de cuidadora doméstica diminui. Segundo M. Machado, "A dinâmica de gêneros na sociedade brasileira mostra que a velhice é um estágio da vida que traz respeitabilidade às mulheres. Retomar a imagem contraditória da mulher nas doutrinas cristãs ajuda a compreender como isso se torna possível para as mulheres de sociedades marcadas pelo machismo e por outros elementos patriarcais, onde elas são tuteladas pelos pais, maridos e irmãos.(...). Em outras palavras: com a idade, a mulher deixa de ser um objeto sexual, uma ameaça, e pode então abrir mão de um homem para ampará-la e defendê-la de outros homens". (Machado, 1996: 149) Para M. Castells (1996), a presença maciça da mulher nas ações coletivas dos movimentos populares em todo o mundo e sua auto-identificação explícita como participantes de um todo está transformando a conscientização das mulheres e seus papéis sociais, mesmo na ausência de uma ideologia feminista articulada. Segundo o autor, é preciso compreender a formação de redes de sociabilidade feminina também como uma característica da reprodução de gênero, centrado na figura materna. "Quando as mães envelhecem, as filhas se tornam mães, dando continuidade ao sistema. As mães tornam-se avós, reforçando as redes de apoio, tanto em relação a suas próprias filhas e netos como em relação às filhas e netos de outros lares em rede" (Castells, 1996:268). A esse processo de reprodução, são acrescidas as experiências individuais de cada uma, transformando pouco a pouco, alguns parâmetros sobre o comportamento feminino. O processo de adesão à causa e a decisão de trabalhar voluntariamente nos grupos da Rede Fitovida combinam modelos femininos privados e públicos. Na medida em que criam redes de solidariedade, nas quais os laços afetivos são comparados a laços familiares, elas reproduzem o modelo feminino tradicional em um projeto coletivo, pois a prioridade é sempre a própria família e sua ação dentro desse espaço é fundamental para a manutenção da ordem. Ao mesmo tempo, essas mulheres percebem a necessidade de desempenharem uma ação positiva no espaço público, na área da saúde, o que as leva a superar as limitações do espaço doméstico e de suas comunidades imposto pelo modelo ideal de mulher. Se, em Belford Roxo, elas são conhecidas e seu trabalho é respeitado até mesmo pelos médicos do posto de 119 saúde, a articulação em Rede e a reivindicação do reconhecimento de suas atividades extrapolam os limites locais, propondo um novo estatuto para as mulheres das camadas populares que fazem uso de medicina natural. Castells chama a atenção para a multiplicidade do movimento feminista hoje 54 e questiona se muitas ações coletivas levadas a cabo por mulheres em todo o mundo também não devem ser consideradas feministas, ainda que tais movimentos não se considerem como tal. Dessa forma, seguindo o raciocínio do autor, faz sentido considerá-las feministas, uma vez que as protagonistas do movimento são mulheres que propõem um novo modelo de identidade 55, ativista. "A tarefa fundamental do movimento, realizada por meio de lutas e discursos, é a de desconstruir a identidade feminina destituindo as instituições sociais da marca de gênero. (...) As múltiplas identidades femininas redefinem modos de ser com base nas experiências, vividas ou fantasiadas, das mulheres. Além disso, suas lutas pela sobrevivência e pela dignidade capacitaas, subvertendo desse modo a mulher patriarcalizada, que recebeu essa definição precisamente por causa da sua submissão. O feminismo dilui a dicotomia patriarcal homem/mulher na maneira como se manifesta, de formas diferentes, e por caminhos diversos, nas instituições e práticas sociais. Agindo assim, o feminismo constrói não uma, mas muitas identidades, e cada uma delas, em suas existências autônomas, apodera-se de micropoderes na teia universal tecida pelas experiências adquiridas no decorrer da vida" (1996:238) A Rede Fitovida é, sem dúvida, um movimento de mulheres maduras e idosas, mas que não exclui aqueles que desejam se engajar na mesma causa. Por isso, é um movimento que possibilita a sociabilidade intergeracional. Existe uma identidade e um projeto comum de não 54 O autor tipifica os movimentos feministas como reivindicatórios de: direitos da mulher; feminismo cultural; essencialista; lesbiano, pragmático e identitário (étnico, nacional e auto-definido). 55 Sobre identidade, subscrevo o proposto por M. Castells: “No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo, ou ainda, um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. No entanto, essa pluralidade é a fonte de tensão e contradição tanto na autorepresentação quanto na ação social. Isso porque é necessário estabelecer a distinção entre a identidade e o que tradicionalmente os sociólogos têm chamado de papéis. Papéis (por exemplo, mãe, vizinho, militante, sindicalista, jogador de basquete, frequentador de uma determinada igreja e fumante, ao mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações em sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de influenciar o comportamento das pessoas depende de negociações e acordos entre os indivíduos e essas instituições e organizações. Identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação” (Castells, 1996: 22). 120 se submeterem a uma ordem vigente, que limita a atuação de grupos populares na produção e no comércio de fitoterápicos e que limita as mulheres ao espaço doméstico. Para essas pessoas, fazer parte da Rede é compartilhar uma nova identidade que redefine o seu papel na sociedade (no caso da Rede, a preservação do conhecimento tradicional de medicina natural). Dentre as formas (e origens) da construção de identidade propostas por M. Castells, a Rede Fitovida se insere no que seria uma identidade de projeto: "quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social." (1996:24) Esse processo de construção da identidade produz sujeitos − “o ator social coletivo pelo qual os indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência" (1996:26). A dinâmica da identidade está inserida no contexto do surgimento da sociedade em rede, o que induz a novas formas de transformação social de forma distinta dos processos de transformação registrados na modernidade. A Rede Fitovida não chega a ser um movimento de resistência à globalização, mas se opõe aos "interesses de corporações internacionais, grandes laboratórios e os saques à biodiversidade" e reivindicam a construção de políticas públicas eficazes que levem em consideração os "portadores dos saberes". A convivência entre diferentes gerações põe em contato diferentes valores e modelos femininos, cuja segmentação é mais por gerações do que por classe social (Bassit). Ou seja, com as modificações nos parâmetros de família, elas experimentam novas formas de solidariedade intergeracional, em que os papéis femininos são resignificados. "Não faz muito tempo, as mulheres deviam conquistar seus direitos não somente contra a resistência dos homens, mas, também, contra as de suas mães e sogras. Ainda é o caso, nas sociedades tradicionais, onde as mulheres mais velhas têm o papel de guardiã da tradição marcada pela dominação masculina. Assistimos hoje a uma transformação histórica das relações entre as gerações femininas com a emergência de uma solidariedade inédita na conquista do saber e do trabalho. Essa nova forma de solidariedade feminina intergeracional, que se exerce em diferentes domínios da vida familiar, social e profissional, ocasiona profundos efeitos cuja extensão ainda não se pode medir. Estas transformações irreversíveis perturbam as relações das gerações e têm implicações diretas nas formas de reprodução social." (Attias-Donfut, 2004:104) 121 Desta maneira, o uso de medicamentos feitos com plantas medicinais na medida em que traz em si uma série de conceitos acerca de natureza, cultura e o papel das "guardiãs da tradição" é posto em circulação, como um "objeto" de troca cujo valor está muito além, de seu potencial curativo. É transmitido através de uma malha intergeracional de pessoas de idade. Esta rede de solidariedade feminina permite a suas integrantes usufruir de apoio, em caso de necessidade, uma espécie de matriarcado informal (Attias-Donfut, 101/102) que tem capacidade de interferir na prevenção em saúde das pessoas de suas comunidades. São verdadeiras redes sociais de troca de conhecimento na qual as mais velhas vivenciam experiências que a vida familiar nunca lhes proporcionou como o trabalho voluntário e a construção de uma imagem pública como detentora de um saber , o que só é possível graças a soma de esforços das diferentes gerações; e as mais novas aprendem a envelhecer de maneira positiva. 122 5. CÂMERA E PESQUISA: O QUE O AUDIOVISUAL REVELA "Naquele momento, a única maneira que eu tinha de provar, de ter um feedback, era pelo filme, pela imagem. Nesse caso, estamos em face de um problema que é extremamente apaixonante e que é a porta de entrada para um conhecimento proibido aos professores da Sorbonne ou às pessoas letradas, alfabetizadas, que vão estudar pessoas que não dominam a escrita mas que possuem outra coisa. E então, eu penso que aí está o futuro da antropologia, ela será visual ou não existirá" Jean Rouch56 O cinema é uma das linguagens mais características da cultura de massa, uma experiência estética moderna, tipicamente urbana. O documentário, um de seus gêneros mais tradicionais e nobres, é capaz de fornecer uma experiência do real através de uma linguagem sofisticada. De um modelo fundador, o documentário hoje pode ser compreendido como uma das formas mais livres de se fazer cinema. Desde que Jean Rouch, com seu cinema verdade, inaugurou um modus operandi que libertava o cineasta do aparato técnico e industrial (Parente, 2004), novas linguagens no documentário têm sido possíveis. No campo da antropologia visual, que vem se consolidando nos últimos trinta anos, existem diversas formulações sobre como conduzir uma pesquisa etnográfica com recursos audiovisuais. O interesse na experimentação audiovisual por parte das Ciências Humanas é crescente e permite uma maior expressão do objeto, que à frente da câmera, torna-se sujeito. “A era do audiovisual é tão revolucionária quanto a de Gutemberg” e constitui um novo campo de exploração definindo um novo sistema de apreensão, elaboração e comunicação (Piault, 1994:62). Antropologia e cinema possuem uma origem comum, ambos surgiram no final do séc. XIX, e muitas vezes uma prática esteve associada à outra. Como uma disciplina de observação por natureza, a antropologia contribuiu para que o cinema revelasse imagens de um mundo exótico e atraente às fantasias ocidentais. Para M. Piault, enquanto o cinema desenvolveu rapidamente suas técnicas e ampliou seu campo de investigações e de aplicações, o uso do audiovisual pela antropologia ficou restrito aos “instrumentos de observação, instrumentos de transcrição e interpretação de realidades sociais diferentes quanto instrumentos para difusão 56 ( apud Sztutman, 2004). 123 das pesquisas” (idem: 63). Tal uso esbarrou em dificuldades como a ignorância em relação às linguagem e técnicas cinematográficas pelos antropólogos e em uma crença arraigada de que somente o texto é capaz de apresentar a objetividade necessária a um produto científico. Até a Primeira Guerra Mundial, houve um período de experimentação. Só então começou a se delinear o debate sobre as relações entre o realizador-antropólogo e o realizador-cineasta, ficção e realidade, as possibilidades e os limites da reconstituição, bem como a definição das características metodológicas do filme antropológico. D. Vertov e R. Flaherty – o primeiro com seu “cinema de improviso" e o segundo com sua “câmera participante” foram considerados responsáveis por dois modelos fundadores da antropologia visual, mesmo não sendo antropólogos. Foi no período entre guerras que se desenvolveu “um cinema documentário voltado sobretudo para a provocação, denúncia ou comprovação” (idem, 66). Enquanto na Europa Central e Oriental esse cinema teve características etnográficas, na Inglaterra, Grierson inaugurou o cinema social, na qual uma abordagem realista comprova um discurso sociológico com o objetivo de mobilizar e formar cidadãos do Império Britânico. É no final dos anos 30 que o cinema começa a deixar de ser uma ilustração secundária nas pesquisas de campo. Os trabalhos de Franz Boas, Marcel Griaule, Gregory Bateson e Margaret Mead aprofundaram as reflexões sobre o uso do cinema e seu valor instrumental para a antropologia. Influenciados por F. Boas, M. Mead e G. Bateson utilizaram a fotografia e o filme em suas pesquisas em Bali a fim de "mostrar práticas, condutas e comportamentos culturalmente estereotipados que dificilmente poderiam ser descritos em palavras" (Peixoto, 1999:99). O material fílmico e fotográfico (o célebre livro Balinese Character) só foi montado e publicado na década de 50; os autores pretendiam mostrar que, em determinados estudos, os métodos clássicos de observação e anotação em cadernos de campo não eram suficientes para analisar os fenômenos sociais. Sem se preocupar em propor uma metodologia específica, o uso da câmera como instrumento de registro oferecia muitas possibilidades, como rever as imagens como estímulo à memória individual ou coletiva e a observação à distância sem interferir nos acontecimentos. 124 No pós-guerra, Jean Rouch, então um jovem engenheiro civil, iniciou filmagens na África. Seu trabalho foi pioneiro em criar uma nova combinação entre cinema e antropologia e antecipar um novo olhar sobre o continente, que foi ao encontro de uma perspectiva póscolonial, apesar de seu primeiro filme Au pays de mages noir (1946) vendido à Actualitées Françaises e montado de acordo com os critérios do comprador – ainda apresentar uma visão objetificante dos africanos. Suas intenções iniciais eram bem diversas e Rouch deu seqüência à sua produção com o objetivo de apresentar as sociedades africanas sem o vício do olhar etnocêntrico que insistia em caracterizá-las como primitivas. “[Iniciou] uma luta acirrada para eliminar não somente toda a direção dos filmes, mas a teatralização convencional do discurso cinematográfico: o cinema etnográfico busca, desde então, purificar-se daquilo que é estranho ao diálogo entre o observador e o observado; trata-se, por vias diversas, de elaborar uma linguagem que se constrói especificamente em relação com o objeto que se constrói e se investiga ao mesmo tempo” (Piault, 1994: 67). As propostas de Jean Rouch encontraram eco entre os que defendiam um modelo de filme etnográfico diferente dos seguidos até então, na qual predominava um olhar etnocêntrico. Para Rouch, “um filme dá nascimento a outro", e assim sucederam-se Les Maîtres fous (1955), Jaguar (1956-1964), Moi, un noir (1958), entre outros (Stoller, 2005:107). O período foi marcado pelo debate sobre o uso do audiovisual na pesquisa antropológica, principalmente em torno da objetividade desse instrumento de registro. Apesar de posições divergentes em relação ao método de filmagem, havia um reconhecimento unânime sobre a contribuição dos recursos audiovisuais para a compreensão das práticas culturais de inúmeros povos do planeta (Peixoto, 1999:101). É a partir da década de 60 que aumenta o uso do filme em pesquisas antropológicas. O surgimento de câmeras portáteis que permitiam a captação do som sincronizado permitiu que os cineastas-antropólogos seguissem os princípios do cinema-verité postulado por D. Vertov nos anos 20. Chronique d‟un eté (1961), de Edgar Morin e Jean Rouch, foi o primeiro filme europeu a utilizar esse equipamento e também inaugurou um método de filmagem com roteiro flexível, que veio a influenciar Godard e outros cineastas do movimento da Nouvelle Vague. 125 No Brasil, entre os documentaristas, seu cinema-verdade virou uma referência, assim como na própria antropologia visual57. Os princípios da antropologia visual contemporânea foram enunciados com a publicação de Principals of Visual Anthropology, organizado por P. Hockings (Henley, 2004:168) em 1975. Nessa publicação, tornou-se célebre a introdução feita por M. Mead na qual afirma que a antropologia ainda permanecia ligada às descrições verbais, limitada ao papel e ao lápis, o que colocava a perder o verdadeiro entendimento das culturas estudadas. Um dos modelos metodológicos propostos na obra, o cinema de observação descrito no texto de C. Young e aplicado pelo Programa de Treinamento para Filme Etnográfico, da Universidade da Califórnia pressupõe que seja um cinema participativo, “no sentido de que essa prática deva ocorrer a partir de um relacionamento de compreensão e respeito do tipo que só pode surgir quando quem está encarregado da filmagem participa ativamente do mundo dos sujeitos durante um período prolongado de tempo” (Henley, 2004:164). Semelhante ao método etnográfico fundado por Malinowski, acompanha as ações dos sujeitos e permite uma análise aprofundada sobre detalhes dos eventos e seus significados. A câmera, “desprivilegiada”, deve viabilizar o engajamento entre sujeito e público, posicionada como um indivíduo, deve ser móvel, evitando pré-arranjos e atuações preparadas. As tomadas devem ser longas, para preservar a integridade dos eventos em seu todo, de forma espontânea. Os virtuosismos técnicos e estéticos devem ser usados com cautela. Entretanto, a subjetividade e a autoria são plenamente aceitas. O importante é permitir que o público perceba a mediação do pesquisador-diretor. Para tanto, devem ser mantidas as configurações espaciais do mundo social representado e seu sentido de contingência, um aspecto do real, que permita ao público ver a si próprio. O roteiro do filme só poderá se construir após a análise das filmagens, pois não existe um script pré-determinado. Segundo MacDougall, é necessário "humildade perante o mundo", pois "a estória e a experiência dos sujeitos é mais importante que a do diretor do filme." (MacDougall, 2005) 57 P. Stoller questiona por que os aspectos filosóficos e políticos do trabalho de Rouch são subestimados na Europa e praticamente desconhecidos na América do Norte e atribui essa “curiosidade” ao academicismo dominante entre os críticos, antropólogos e filósofos que sempre preferem o discursivo em detrimento do figurativo (Stoller, 2005:108). 126 A voz em off não é recomendada, uma vez que o cineasta-antropólogo não deve se apresentar como um perito, a “voz do saber”, nem contar, mas mostrar. Daí surge a dificuldade de comunicar conhecimento antropológico à maneira como a antropologia textual tem feito. É um desafio introduzir referências teóricas, já que não há uma relação direta desse conhecimento com os sujeitos. “Na verdade, quando se emprega o comentário de experiência distante, normalmente se paga um preço alto em termos de objetivização dos sujeitos e da perda do sentido de estar lá, sem se chegar, contudo, bem perto de uma contextualização abrangente." (Henley, 2004:180) A dificuldade de conciliar o conhecimento antropológico clássico com o produzido pela mídia visual ainda não foi solucionada pelas diferentes linhas de pesquisa em antropologia. D. MacDougall afirma que a antropologia visual incorporou as características sociológicas dos respectivos países onde se desenvolviam: "A antropologia visual alemã ressaltou a coleção e classificação de dados comparativos. A antropologia visual britânica produziu filmes que descreviam pequenas e remotas sociedades sob uma perspectiva funcionalista. A americana, por sua vez, enquanto demonstrava interesse semelhante por culturas isoladas, tinha um pendor por abordagens comportamentais e psicanalíticas, bem como por filmes didáticos. A antropologia visual francesa, financiada pelo Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS), encarou a filmagem mais como um processo de pesquisa do que um meio de documentação e publicação, focalizando as instituições políticas e religiosas da África Ocidental francófona." (MacDougall, 2005:24) Definir caminhos para conciliar conhecimento científico e linguagem audiovisual tem suscitado reflexões entre os que acreditam que o uso do audiovisual pode ser muito mais do que um diário de campo ou como material de aula, na qual se destacam autores como australiano D.MacDougall e o norte-americano J. Ruby. D. MacDougall (2005:19) propõe novos princípios da antropologia visual58: é necessário aproveitar as possibilidades expressivas da mídia visual, explorar formas de conhecimento 58 "É possível no momento postular três princípios para uma antropologia visual reconceitualizada, entre os muitos que se tornaram auto-evidentes no presente: a) utilizar as distintas estruturas expressivas do meio visual em contraposição àquelas oriundas da prosa expositiva; b) desenvolver formas de conhecimento antropológico 127 antropológico sem o rigor de métodos tradicionais de prova e focalizar em temas acessíveis à mídia visual (como corpo, pessoa, topografia e tempo). O autor também traça a trajetória desse debate a partir da publicação de Principles of Visual Anthropology59. Apesar da obra não esclarecer tais princípios, havia nela duas correntes dominantes. A primeira pressupunha que os “antropólogos visuais deviam usar as próprias filmagens em suas pesquisas ou estudar filmes realizados por outros etnólogos” (MacDougall, 2006:19), e a disciplina era compreendida muito mais como um aparato técnico usado para construir uma antropologia visual à imagem e semelhança do filme etnográfico da época. A outra defendia que “os filmes deveriam ser fundamentalmente realistas e instrumentais, ilustrando correntes antropológicas existentes. Entre aqueles que defendiam estas correntes estavam Margaret Mead e Timothy Asch”60 (MacDougall, 2006:19). Mas qual é a diferença entre uma etnografia filmada e um filme etnográfico? Esse questionamento feito por J. Ruby, em 1976, foi uma das tentativas de definir parâmetros do filme etnográfico a fim de escapar das armadilhas da objetividade absoluta, da subjetividade e da construção midiática. Ele enumera quatro critérios de definição de um filme etnográfico: "De acordo com estas hipóteses, uma etnografia deve conter os seguintes elementos: (1) o maior foco de um trabalho etnográfico deve ser a descrição de uma cultura como um todo ou de uma unidade definida da cultura; (2) um trabalho etnográfico deve estar embasado por uma teoria da cultura de forma implícita ou explícita, o que condiciona os enunciados que ordenam a etnografia de forma particular; (3) um trabalho etnográfico deve conter afirmações que revelem a metodologia do autor; (4) um trabalho etnográfico deve empregar um léxico distintivo e o jargão antropológico." (Ruby, 1975: 107) J. Ruby também trouxe para o campo da antropologia visual, um questionamento que sacudiu a antropologia como um todo, enfatizando a necessidade da auto-examinação, um reflexo do fenômeno pós-moderno da crise da representação colocado por J. Clifford e G. Marcus. Ao contrário do documentário tradicional no estilo consagrado de Grierson, que visa a objetividade através do realismo para apresentar um ponto de vista sociológico sobre o tema que não dependam dos princípios da metodologia científica para validá-las; c) explorar as áreas da experiência social em que o meio visual demonstre determinada afinidade expressiva, como a topográfica, a temporal, a corporal e a pessoal." (MacDougall, 2005:27). 59 Op cit. 128 retratado é fundamental deixar claro que existe uma autoria, um local de onde se observa o fenômeno social, uma teoria e um método. Para D. MacDougall, o que separa J. Ruby do positivismo é explicitar o quanto o conhecimento humano é construído e alertar para esse perigo no filme. Mas, segundo ele, o apego do norte-americano à necessidade de justificar cada escolha na realização do filme para torná-lo verdadeiramente científico faz dele um "positivista frustrado". Entretanto, apesar de J. Ruby não deixar claro como é possível representar em imagens o conhecimento antropológico, sua obra estabeleceu princípios que podem nortear o comportamento do antropólogo visual em campo, como a representação visual colaborativa, reflexiva e ética. A aproximação da cultura visual mediática e da antropologia visual requer muitos cuidados por parte do pesquisador. J. Colleyn chama atenção para a negligência de muitos documentaristas com a colaboração de especialistas no campo que não dispõem de informações suficientes sobre o tema estudado. Constantemente, o resultado é uma seqüência de clichês61, sem que haja sequer uma hierarquização da informação. É uma espécie de aglomerado de versões psicanalíticas, etnológicas e ecológicas que vende uma pseudoraridade como um produto de bazar. Um dos maiores desafios do documentário etnográfico é escapar do didatismo e das representações-clichê consagradas pela grande mídia. Para tanto é necessário lançar mão das possibilidades expressivas da mídia visual. Outro autor que demonstrou essa preocupação foi T. Asch: "os registros visuais de verdadeiro valor etnográfico são infelizmente poucos. Isso ocorre, em grande parte, porque a maioria dos chamados filmes etnográficos foi feita não por antropólogos treinados, mas por diretores interessados em expressão criativa. Estes filmes nos contam mais sobre eles e seus preconceitos culturais do que sobre as pessoas filmadas" (Asch, 1995:85). 61 "Desfilam pelos filmes, sob a forma de comentários ou de questões estruturantes das entrevistas, os clichês das ciências humanas revistos pela 'filosofia de botequim': tudo o que é martelado sobre o exotismo, os mundos esquecidos, a sabedoria dos corpos, o matriarcado, a mãe terra, a medicina pelas plantas, 'Índia terra de contraste', 'Japão das gueixas e das artes marciais', 'África dos mistérios' etc."[Défilent alors dans les films, sous forme de commentaire ou de questions structutant de les interviews, les cliches des sciences humaines revue par le café du commerce: tout ce que si rabâche sur l‟exotisme, les mondes oubliés, la sagesse du corps, le matriarcat, le terre-mére, la médicine par le plantes, 'L‟ Inde terre de constraste', 'Le Japon des geishas et les arts martiaux','L‟Afrique des mysteres' etc]" (Colleyn, 1993:62). 129 O Manifesto de Leiden62 (2006) defende uma posição mais flexível em relação às linguagens audiovisuais na pesquisa antropológica e, sobretudo, ressalta que é preciso levar em consideração o interesse dos sujeitos retratados no material filmado, em seu décimo tópico: "O cinema etnográfico oferece a oportunidade de levar a antropologia para fora dos muros acadêmicos – de criar uma Antropologia Compartilhada, nas palavras de Rouch – com as comunidades que o filme representa e com um público maior no mundo". A democratização dos meios de produção de imagens, com a tecnologia digital, ampliou ainda mais as possibilidades de filmagem e edições caseiras, facilitando o uso do audiovisual nas pesquisas científicas. É possível explorar outras dimensões da vida social, muito além do que é visível, e, sobretudo, construir narrativas sobre as experiências sociais dos indivíduos com a participação destes. As novas tecnologias audiovisuais trouxeram a promessa de que as pessoas poderiam ter a autoridade de representar a si mesmas e ter suas opiniões respeitadas. A nova consciência sobre o olhar documental na antropologia visual, defendida e praticada por J. Rouch e outros defensores do cinema-verdade como o casal MacDougall, permitiu que a voz e a percepção dos “nativos” fossem, de fato, ouvidas. Sobre esta tendência de "dar voz aos nativos”, J. Ruby comenta: "Ser capaz de escutar as pessoas contarem suas histórias e observar suas vidas, ao invés de ser informado sobre o que pensam e o significado de seu comportamento oferece claramente aos sujeitos uma maior participação na construção de sua imagem" (Ruby, 1991:53). O próprio autor lembra que se mais vozes começaram a ser ouvidas, isso não quer dizer que as formas tradicionais de autoria foram significativamente modificadas. Nem sempre a promessa de “dar voz aos nativos” se cumpriu por completo. Muitas vezes, “a voz de Deus” foi substituída pelas testemunhas especializadas, os "talking heads", que continuaram a "revelar" a verdade. Daí ser fundamental evidenciar a relação entre o pesquisador e o pesquisado. Ser reflexivo é um dos caminhos para a objetividade possível. Se não é possível eliminar a interpretação na representação fílmica (nem da representação escrita), ao menos que se diga como foram as condições de realização da pesquisa. 62 Tal manifesto foi redigido por antropólogos e realizadores em 2006, na Holanda, e foi publicado na revista da XI Mostra do Filme Etnográfico do mesmo ano. 130 "Os debates sobre os métodos não progridem, pois eles remetem a um objeto indefinido da antropologia que seria o Outro ou o Eu. Na verdade, a antropologia visual remete a uma situação que deveria ser o objeto mesmo da antropologia: como é possível pensar a relação de um com o outro, do único com o múltiplo, da vida com a substância, do indivíduo com a sociedade, da sociedade com a natureza? O objetivo não é, na realidade, descrever fatos e objetos, mas refletir sobre a possibilidade de toda e qualquer relação." (Piault, apud Peixoto, 1999:104) Desta forma, conforme ressalta C. Peixoto, menos do que "para quê" e "para quem" os filmes são feitos, o que importa é de que maneira as imagens e os sons contribuem para "a melhor compreensão do sujeito antropológico" (idem:106). 5.1 - Reflexividade no filme antropológico A antropologia visual foi usada durante o processo de construção da própria antropologia como disciplina a fim de validar projetos realistas e positivistas, o que lhe rendeu acusações de ser uma prática não-ética, objetificante e não-reflexiva. O processo de autocrítica pela qual a antropologia atravessou ou ainda atravessa – com propostas de J. Clifford, P. Bourdieu e A. Giddens, somente para citar alguns pensadores sociais - inclui questionar os métodos científicos consagrados que tem a pretensão de construir um texto que traduza a experiência etnográfica de forma objetiva, sem levar em conta a relação entre observador e observado63 e o lugar de onde cada um fala. Na antropologia visual, o debate sobre objetividade x subjetividade surgiu principalmente a partir do trabalho de J. Rouch e do casal MacDougall. A reflexividade tornou-se uma questão-chave na literatura sobre pesquisa visual e muitas vezes "uma virtude que distingue a boa da má pesquisa" (Pink, 2005:75). É compreendida como uma forma de evidenciar a maneira como o conhecimento etnográfico foi construído. Isto é, reconhecer que existe uma mediação entre os pesquisadores e seus informantes e que ela influencia a obtenção de dados e a análise destes. Seguidor de J. Clifford, D. MacDougall defende que a reflexividade profunda demanda que a posição do autor se revele no processo de construção do trabalho. Esta posição é transitória, já 63 A obtenção de dados dos informantes é conseqüência de uma relação de interesses de cada sujeito envolvido e é influenciada pelas diferenças de habitus, visão de mundo e de classe. 131 que ele experimenta "diferenças nos níveis de compreensão e nas alterações de humor e entrosamento características do trabalho de campo" (MacDougall, apud Pink, 2005:77). O auto-exame, no documentário, é reflexo do fenômeno pós-moderno e a crise da representação. J. Ruby tem sistematizado formas de explorar a relação entre o filme reflexivo e a antropologia reflexiva. Ele argumenta que não é mais possível ignorar a responsabilidade dos pesquisadores em relação às pessoas filmadas e à audiência do trabalho (1980:154). Daí a importância do antropólogo se expor no processo de pesquisa, sendo reflexivo, o que significa muito mais do que simplesmente ser autoconsciente. "Ser reflexivo, em termo de um trabalho de antropologia, é insistir que os antropólogos sistematicamente e rigorosamente revelem sua metodologia e a si mesmos como instrumento de geração de dados. Já que é possível argumentar que a narrativa é a maneira lógica de reportar etnografia, o filme é hereditariamente um meio narrativo (pelo menos em nossa cultura) e tem um grande potencial como um modo de comunicação antropológica." (Ruby, 1980:153) Adiante, o autor complementa: "Ser reflexivo não é somente ser autoconsciente, mas ser suficientemente autoconsicente para saber quais aspectos de si mesmo necessitam ser revelados para a audiência a fim de que o processo empregado possa ser compreendido, assim como o produto final, e saber que a revelação em si é proposital, intencional e não meramente narcissística ou acidental." (Ruby, 1980:156) Assim, para o autor, somente os trabalhos de J. Rouch, T. Asch e M. Mead possuíam características reflexivas. A antropologia na época não dispunha de um modelo metodológico que pudesse ser compartilhado para a produção de filmes etnográficos. Isso se deve ao fato de que a maioria das pessoas em nossa cultura entende o filme como uma forma de expressão artística. O abismo entre arte e ciência, objetividade e subjetividade limita a elaboração de modelos que possam ser seguidos pela antropologia visual. É comumente aceito que a arte acontece quando o diretor manipula a realidade para servir a seus próprios fins de expressão pessoal. Esta manipulação acontece em três momentos à frente da câmera através da 132 intromissão do diretor, na medida em que se insere na cena cultural gravada; no uso do estilo de câmera e técnicas para expressar a visão do diretor e não se resumir a somente gravar imagens; e no uso da edição para construir uma visão, estética e subjetiva, do diretor. Em um extremo oposto, a tendência dominante na antropologia norte-americana é seguir algumas regras para o uso da câmera na pesquisa científica a fim de neutralizar a manipulação estética: "Para resumir essa posição, um estilo positivista/cientificista consiste na câmera no tripé que é tocada com a tão minimanente quanto seja tecnicamente possível e que produza os planos mais longos possíveis. Estas seqüências de planos longos são montadas em ordem cronológica (...) As filmagem das tomadas conforme enunciado acima são virtualmente não-editáveis dentro das convenções do filme documentário." (1980, 171) Neste modelo, não existe espaço para reflexividade nem para evidenciar o processo de construção do filme, pois pressupõe que existe um mundo cheio de significados objetivos e que o papel do cientista é descobrir tais significados e não interpretá-los. J. Ruby sugere que uma antropologia visual significante só poderá surgir quando for superado o paradigma positivista que reduz a produção de imagens como uma atividade menor, separando arte e ciência. O modelo reflexivo esteve ausente na antropologia visual pelos mesmos motivos que esteve ausente na antropologia escrita: a crença de que a arte é interpretação da realidade e a ciência como um espelho da realidade. Ruby entende o filme como uma forma de comunicação e, assim como a antropologia, como um sistema ideológico. Essa constatação se opõe à idéia de que o filme é simplesmente arte. É bem verdade que desde 1980, quando o autor publicou o artigo citado, a antropologia visual tem ganhado mais espaço na academia, com a consolidação de grupos e centros de pesquisa, superando a discussão sobre realidade x representação. Tendo como método de pesquisa a antropologia interpretativa, reconheço a incapacidade de compreender os fenômenos pesquisados da mesma maneira que meus entrevistados. O filme é mais do que uma fonte de dados objetivos, é uma forma de compartilhar a experiência etnográfica e isso só é possível na medida em que a alteridade, a diferença do Outro é preservada, é preciso deixá-lo falar, no texto, e no filme. A maneira como acredito ser possível ser reflexiva é mostrar que sob a construção narrativa existe uma seleção de cenas 133 feita à luz de teorias sobre alguns aspectos (nesta pesquisa são envelhecimento e associativismo). A subjetividade vai se manifestar nesse recorte, expressa na filmagem e na edição, é inevitável. 134 Entre receitas e simpatias, doces e venenos A empatia com o grupo de pessoas estudadas em uma pesquisa de Ciências Sociais é como um canto de sereia. Se por um lado, é um fator que desperta o interesse pelo objeto e sua problemática, por outro, pode prejudicar o entendimento do que o Outro pensa a respeito do que você está fazendo (Geertz, 1997:88). Como usuária da chamada medicina alternativa (homeopatia, fitoterapia e acupuntura), foi necessário um enorme esforço para distinguir, a partir do uso de ervas, o que é a percepção do grupo e da Rede Fitovida sobre os cuidados com a saúde e aquela que é a minha própria. A tentação de aderir uma percepção à outra foi enorme. Possuo uma visão particular sobre o uso de fitoterápicos (com um “ranço” cientificista, que só reconhece o valor de uma planta através das propriedades farmacologicamente comprovadas), mesclada com uma crença de que só os remédios naturais são capazes de curar determinadas enfermidades sem causar danos ao resto do corpo. Nos piores momentos de tentação, um alerta de Geertz iluminou a prática da pesquisa, levando-me a abrir os olhos para as diferenças entre a minha própria percepção e a do grupo estudado. "A imagem do passado (ou do primitivo, clássico ou exótico) como uma fonte de sabedoria medicinal, corretivo protético para uma vida espiritual danificada – imagem esta que influenciou grande parte do pensamento e da educação humanista, é nociva porque nos leva a ter a expectativa de que nossas incertezas diminuirão se tivermos acesso aos mundos de pensamentos construídos segundo princípios diferentes dos nossos, quando na realidade essas incertezas se multiplicarão." (1997: 70) O conhecimento sobre cuidados com a saúde das integrantes da Rede é distinto do meu próprio e não se trata de olhar para ele com a esperança romântica de que possa trazer um novo-velho modelo de equilíbrio da saúde. Tampouco, seria produtivo construir polarizações sobre o que considera a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), como representante do pensamento médico-científico e reguladora das práticas fitoterápicas no país, e o grupo estudado. A noção de corpo expressa nos cuidados de saúde praticados pelo grupo e pela Rede é complexa e não se resume às idéias pré-concebidas sobre a "medicina natural tradicional". Foi somente a partir deste entendimento que foi possível seguir com a pesquisa etnográfica e compreender que o objetivo não é provar as práticas do grupo e da Rede estão certas ou 135 erradas. São justamente essas diferenças e nuances que trago à tona. Para chegar à compreensão do significado das práticas de saúde para o grupo estudado, segui um caminho apontado por Geertz, um bordejar dialético contínuo entre o todo e suas partes. Busquei trabalhar com o Grupo Grão de Mostarda a fim de compreender quem são, como se organizam e o que motiva estas mulheres a se dedicarem à prática de uma medicina "natural" voluntária. Interessou-me saber quais eram as estratégias utilizadas para a transmissão do conhecimento adquirido e o processo de inventário dos medicamentos fitoterápicos. Desta forma, esta etnografia buscou, sobretudo, compreender os significados compartilhados pelo grupo e pela Rede. O trabalho de campo teve início em uma reunião de lideranças da Rede, em setembro de 2005, e continuou com a observação participante de dois encontros de partilha, no final de 2005 e em meados de 2006. De maio a outubro de 2006, realizei visitas mensais ao Grão de Mostarda para observar e registrar suas atividades. O trabalho de campo terminou no último Encontro de Partilha do mesmo ano, realizado no ginásio da Igreja onde o Grão de Mostarda funciona. O contato com o grupo Grão de Mostarda e com a Rede Fitovida teve sempre a presença de uma câmera, fotográfica ou videográfica. Além de registrar práticas e conversas, gravei entrevistas a partir de um roteiro semi-estruturado. Este previa desde perguntas sobre o perfil sócio-econômico de cada integrante, o uso de remédios “naturais” na infância e na família, a motivação para dedicar-se ao trabalho voluntário na comunidade, as próprias condições de saúde da entrevistada e sua avaliação sobre os serviços de saúde locais. As entrevistas foram revelando outros aspectos não considerados no princípio da pesquisa, como a importância de laços familiares e de amizade na decisão de integrar o grupo, todas foram convidadas por pessoas próximas. Nas palavras de Luzia, “O Grão é uma grande família”. Se na Rede Fitovida existem grupos ligados às igrejas católicas e evangélicas, no Grão de Mostarda predomina o perfil católico. Tal especificidade determina a forma final de representação da realidade para estas mulheres, o que torna suas interpretações de vital importância para compreender sua cultura. Valores e práticas católicas como solidariedade e 136 “servir a Deus” condicionam suas visões de mundo e, nesse sentido, o ethos familiar influencia na decisão de tomar parte do grupo. Registrar o trabalho do Grão de Mostarda resultou em um material que reúne desde histórias de vida, receitas curativas a base de plantas medicinais e, principalmente, o registro de momentos de sociabilidade em que a descontração e o senso de solidariedade com a comunidade são dominantes. Detalhes como o teor das conversas, o ritmo e o tempo das tarefas executadas, as brincadeiras, os elementos simbólicos presentes no espaço, entre outros aspectos que vão além das meras aparências, são revelados no estudo do material bruto. O foco das filmagens é a atividade do grupo, o que elas estão fazendo: recebendo os clientes no balcão, limpando as plantas, preparando refeições, pomadas, xaropes, etc. O registro permitiu analisar qual é sua importância e o que está sendo transmitido através dele. Se a câmera de vídeo foi meu instrumento principal na coleta de dados, seu papel não se resumiu a esta função utilitária, abriu caminho para um mergulho no campo e para a reflexão de minhas próprias representações sobre envelhecimento e mulheres de classes populares. O primeiro efeito da escolha do audiovisual como instrumento de pesquisa foi estabelecer uma relação de troca com o grupo estudado, na qual o interesse pelo material e o meu compromisso em compartilhá-lo foi deixado claro desde o início. Na medida em que se desenvolveu o trabalho de campo, um novo dado foi se revelando: a importância da imagem para a memória do grupo Grão de Mostarda. Elas dispõem de um acervo fotográfico que identifica antigas participantes e eventos importantes (como os cursos oferecidos para outras comunidades, a visita do bispo ao grupo, cerimônias, etc). Desde que J. Clifford alertou para a falácia da "autoridade etnográfica", tornou-se necessário ter clareza do lugar de onde se constrói a etnografia e ter a humildade de reconhecer que esta não é absoluta nem definitiva. Se a transposição da experiência de campo para o texto científico é limitadora e monológica por natureza, o uso do audiovisual permite modificar a maneira como se relata tal experiência (desde que o pesquisador esteja comprometido a incluir outras vozes na etnografia). O uso da imagem documental é entendido como uma forma de registro do real e foi esta característica que o tornou um instrumento da antropologia desde seus primórdios para objetificar o outro e até mesmo dominá-lo. Nesta pesquisa, o audiovisual é instrumento de 137 registro, mas, sobretudo, uma forma de construir um relato sobre a realidade que possibilite a coexistência de outras vozes além da do pesquisador. Quando vai passar na Globo? A televisão, com suas reportagens e dramaturgia, tem ampla penetração em todas as classes sociais brasileiras. Ligar uma câmera de vídeo não é um ato que passa despercebido e desencadeia atitudes específicas por parte de quem é retratado. Conforme afirma M. Piault, "não há imagem sem mise en scène", o processo imagético é uma disposição do olhar para o conhecimento da mesma forma que todo o trabalho escrito também é uma elaboração. Na primeira vez que cheguei à cozinha comunitária do grupo Grão de Mostarda, em Belford Roxo, com o equipamento de vídeo para dar início ao trabalho de campo, pude perceber o efeito-câmera. O riso e as brincadeiras sobre “aparecer na Globo” demonstravam não só a inquietação que a câmera provocava, mas também a total consciência de sua presença e a conseqüente mise-en-scène. Inevitável, ligar a câmera é iniciar um discurso sobre o Outro a partir de um ponto de vista, não é possível ser totalmente objetivo. O Outro não está alheio ao poder de quem tem a câmera e quer interferir nesse processo64. Todas as vezes que estive com o grupo, a brincadeira sobre "passar na Globo" se repetiu, o que revela a consciência destas mulheres de que o registro audiovisual é uma construção da qual elas mesmas podem participar como autoras. Desta forma, o grupo também participa da construção de um discurso visual, como lembra S. Novaes: Se, por um lado, ela é a obra daquele que capta as imagens ou do diretor do filme, por outro lado, no caso de filmes em que não há atores profissionais, como aqueles feitos por antropólogos ─ os chamados filmes etnográficos ─, esse discurso visual é também obra dos próprios informantes. Ou seja, a própria presença da câmera já é, em si, elemento que aciona, naqueles que serão filmados, a consciência da imagem que eles exibem para o equipamento e seu operador. Isso desencadeia o processo de construção de uma imagem a ser exibida, não aquela que é vivida cotidianamente e sim aquela que se quer projetar, num âmbito externo à comunidade" (Novaes, 2004:12). 64 Geertz ressalta que não é possível enxergar o Outro sem a lente polida por si mesmo. No caso do audiovisual, este exemplo se encaixa literalmente. O enquadramento da câmera é revelador de um ponto de vista específico e que é evidenciado, com a construção da narrativa. 138 Desta forma, procuro evidenciar esta relação observador x observado no próprio filme. Acredito que assinalar essa presença o tempo todo é um dos caminhos para atingir a objetividade possível e realizar uma descrição antropológica sobre essas mulheres, dando lhes voz, pois é a partir dessa escuta que é possível compreender o que julgam relevante sobre o seu próprio trabalho. Geertz destaca o quanto é necessário apreender as categorias nativas para que o trabalho do etnógrafo seja eficaz, esta abordagem valoriza o discurso do sujeito e de sua ação individual. Considero que a maneira como as mulheres da Rede Fitovida cuidam de sua saúde e de seus familiares é reveladora de um estilo de vida e da própria percepção enquanto grupo. Da mesma forma, é o discernimento das integrantes do grupo sobre as práticas que merecem ser registradas. Como diz Geertz: "A meu ver o etnógrafo não percebe – principalmente não é capaz de perceber – aquilo que seus informantes percebem. O que ele percebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é o „com que‟ e através do que os outros percebem" (Geertz, 1997:89). Retornar as imagens que foram produzidas, o princípio do feedback tão defendido por Jean Rouch, tem sido a principal estratégia para estabelecer uma relação de confiança. Para Rouch, esta é uma condição sine qua non para a realização cinematográfica. Em uma pesquisa que usa o registro audiovisual como principal instrumento de coleta de informações e de análise, "a cinematografia é apenas um recurso alternativo para representar certos aspectos da realidade social, que em certos contextos pode ser mais eficaz que a redação de um texto, mas que em outros será certamente menos eficaz. Deve-se, por conseguinte, buscar filmes de modo a complementar aos textos para enriquecer o processo antropológico como um todo" (Henley, 1999:45). Sobre a colaboração de "nativos" na construção do filme etnográfico, é possível traçar uma linha do tempo que começa nos anos 20 com os esforços de R. Flaherty em compartilhar a autoria até o presente. 139 "Enquanto a maioria dos documentaristas é vertoviano, quer dizer, os realizadores de filmes/autores nos apresentam suas visões, alguns documentaristas têm aspirado replicar a as visões de mundo dos sujeitos. Suas intenções duplicam o objetivo tradicional da etnografia "capturar o ponto de vista dos nativos, sua relação com a vida, para perceber sua visão de mundo” (Malinowski 1922 (1961):25). O documentário supõe 'dar voz àqueles que não têm voz', o que retrata a realidade política, social e econômica de minorias oprimidas e outras cujo acesso aos meios de produção de suas própria imagem fora negado anteriormente. Desta perspectiva, o documentário não é somente uma forma de arte, é um serviço social e um ato político.”65 (Ruby, 191:50) Elegi como estratégia de filmagem focar somente as integrantes da Rede e do grupo Grão de Mostarda. São elas que contam suas histórias e explicam o que fazem, não há "talking heads" estranhos ao "objeto" de estudo. Posicionei-me de acordo com alguns critérios estabelecidos pelo cinema de observação dentro de campo. Procurei não interferir nas atividades do grupo, mas, simplesmente, registrá-las. "É com base nisso, então, que existe uma relutância por parte de antropólogos-cineastas que trabalham com filmes de observação em intervir pro-ativamente nos eventos que são filmados: não porque isso corromperá a evidência, mas antes porque se os sujeitos começarem a pensar que eles têm que começar a atuar de um modo particular a fim de satisfazer as expectativas do diretor, isso deixará de ser a história deles. Ao mesmo tempo, isso reduz as probabilidades de que venham a abrir caminhos de investigação interessantes e totalmente inesperados." (Henley, 2004:171) Acredito que minha presença tenha causado algum impacto em tais atividades, já que existia plena consciência das integrantes do grupo de que estavam sendo gravadas. Entretanto, escolhi não encenar nenhuma atividade para a câmera, ou seja, pedir para que recomeçassem uma atividade não filmada ou que repetissem o que deixei escapar no registro sonoro. Tal escolha, muitas vezes, comprometeu a qualidade técnica do material, principalmente a captação de som. Ruídos de liquidificadores, conversas ao fundo, os barulhos mais diversos foram gravados. Se por um lado permite o registro de manifestações espontâneas de sociabilidade para uma análise minuciosa posterior, por outro, nem sempre produz imagens 65 Adiante no mesmo texto, o autor procura mostrar trata de é incapaz de mudar uma situação social. Em nota de rodapé, ele afirma que para fazer a revolução, é melhor usar uma arma do que de uma câmera. 140 com boa qualidade técnica (som, iluminação, planos) que possam ser aproveitadas para a edição do vídeo. Há seqüências inteiras que poderiam ser melhor aproveitadas, devido ao conteúdo das falas e ao desenrolar das ações, que ficarão eternamente ocultas do grande público. Só me resta como consolo saber que não fui a primeira, nem serei a última, antropóloga em apuros técnicos com o equipamento de audiovisual, pois há dois males que afligem este tipo de empreitada a falta de dinheiro e a falta de experiência (Gourhan apud Peixoto, 2002:75). A lição que fica desta experiência é que é necessária uma mini-equipe para garantir um resultado satisfatório, mas é fundamental que essa equipe conheça a pesquisa profundamente, a metodologia antropológica e tenha conhecimento técnico, já que é também durante as filmagens que se constrói a relação observador e observado. "Nesta busca de uma abordagem que tornasse possível avaliar a boa distância entre o antropólogo-cineasta e os personagens, a explicitação da noção de participação torna mais nítidas as regras do jogo da encenação. Com relação a este exercício etnográfico-fílmico, defini 'participar' simplesmente como 'estar com' (être avec) ou seja, uma tentativa de entrar em seus jogos desempenhando o papel de um metteur en scène qualquer. Nessa abordagem, freqüentemente designada como antropologia participante, o antropólogo se deixa levar pelas ações dos personagens observados, preservando, no entanto, seu objetivo primeiro: a compreensão das práticas sociais e culturais do grupo investigado." (Peixoto, 2002:76) Em relação ao posicionamento da câmera, escolhi fazer movimentos "descritivos" panorâmicas e tilts sobre um tripé. Embora a câmera fixa não seja o modelo preferido dos cineastas-antropólogos, justifico essa escolha para obter ao menos um nível mínimo de qualidade de imagem, tendo em vista que a câmera utilizada é leve e pequena, o que não permite apoiá-la nos ombros, o que a tornaria mais estável66. Como quase todas as atividades do Grão aconteceram dentro de um mesmo ambiente, não creio que essa escolha tenha comprometido o rendimento das filmagens. Entretanto, algumas tomadas foram feitas com câmera na mão, principalmente as que demandaram acompanhar alguma das integrantes. Closes fechados e planos americanos em contra-plongé67 foram amplamente utilizados, principalmente em situações de entrevista, a fim de provocar uma aproximação do "espectador" com as pessoas filmadas. 66 Tecnicamente, o equipamento ideal para fazer tomadas de câmera subjetiva é um steady cam apropriado ao modelo da câmera usada. O mecanismo ameniza os movimentos e tremores da câmera a partir de um colete ajustado ao corpo do cinegrafista com um contrapeso que equilibra a câmera. 67 Plano inclinado de baixo para cima, ou câmera baixa. 141 Mesmo tendo experiência profissional em fotografia, não consegui escapar de alguns problemas de iluminação. A limitação do espaço da cozinha do Grão de Mostarda me restringiu a dois locais para posicionar a câmera, as duas extremidades da sala, perpendiculares à janela. Ora eu me colocava ao lado do balcão, ora me colocava atrás da mesa, isso me levou a experimentar alguns planos que ficaram em contraluz, o que combinado com a falta de intimidade com a câmera de vídeo comprometeu várias tomadas principalmente aquelas realizadas nas primeiras idas ao campo. Para analisar e sistematizar doze horas de material gravado, criei fichas nas quais relacionei o conteúdo de cada fita, discriminando as ações desenvolvidas, os personagens e avaliando a qualidade técnica da imagem e do som. Durante as gravações dos encontros de partilha contei com um ajudante, o que aconteceu somente em duas visitas ao Grão de Mostarda. Reconheço que realizar as filmagens sozinha representou mais desvantagens do que vantagens. O que justificou essa escolha foi minha preocupação em causar o menor impacto possível com minha presença, daí ter evitado ao máximo a formação de uma equipe de filmagem. Essa escolha foi positiva no que diz respeito à construção da relação com as pessoas retratadas, mas comprometeu a qualidade técnica do material. As gravações foram feitas nos encontros de partilha realizados entre novembro de 2005 e outubro de 2006 e de maio a outubro de 2006 no Grão de Mostarda. Foram sete visitas ao grupo, na qual entrevistei suas nove integrantes, sempre com a câmera de vídeo. Outras duas integrantes, menos atuantes, não foram entrevistadas, pois em nenhuma das visitas estiveram presentes na cozinha comunitária, uma tinha dificuldades de sair de casa devido à idade e não participa tão ativamente, a outra estava mais envolvida na venda das preparações medicamentosas fora da comunidade e não estava envolvida nas atividades de produção dos remédios fitoterápicos nem na transmissão e aquisição de conhecimentos por ter que cuidar de seu próprio comércio. Foi utilizado um roteiro semi-estruturado para conduzir as entrevistas. Eram perguntas sobre motivação, cuidados com a saúde, a história de cada uma em relação ao uso de plantas medicinais e o envolvimento com o grupo, os serviços de saúde locais. Muitas vezes, a 142 câmera permaneceu desligada no tripé a fim de possibilitar uma interação maior com as pessoas. Só gravei imagens do almoço, por exemplo, nas duas últimas idas ao campo. Esse "intervalo" proposital nas gravações me permitiu entender melhor a dinâmica do grupo, sua história e até mesmo ter conversas sobre assuntos particulares com as personagens, histórias que não seriam jamais publicadas em vídeo ou texto, mas que revelaram muito sobre a vida destas pessoas. Avaliando a relação custo x benefício da utilização do vídeo na pesquisa antropológica, considero que as desvantagens dizem respeito somente ao tour de force que demanda para que seja realizado. O pesquisador solitário certamente tem momentos de apuros em que não consegue "registrar, descrever, compreender, explicar, interpretar...". A maior vantagem é a riqueza de informações - comportamentais, pessoais, temporais, etc - que um registro de trabalho de campo concentra, fornecendo material para outros recortes analíticos e, até mesmo, outros pesquisadores. Câmera utilizada: Sony PD-150, DV Cam; Horas gravadas: 12 horas e 36 minutos; Captação de som: microfone externo tipo boom, microfone lapela e microfone externo acoplado à câmera. Edição: em ilha digital não-linear, com programa Avid. Trilha Sonora: "As plantinhas do mato" (Renato Teixeira) interpretada por Adriana Manhane (voz e violão) e Mazinho (viola caipira). 143 "Existe mais alguma coisa que a senhora gostaria de dizer que eu não tenha perguntado?" "Já está filmando?", perguntou Maura, que apresentava a oficina de barroterapia no encontro de partilha de Nilópolis, em 2005, antes de começar a explicar o que ela estava fazendo naquele dia. São gestos, olhares e convocações para que a câmera as siga e mostre o que estão fazendo. Não há invisibilidade do pesquisador, embora elas não possam ter certeza de quando o equipamento está ligado, a câmera sempre presente é incorporada na relação com o pesquisador na medida em que o grupo se acostuma com a presença do pesquisador-câmera68. Este fenômeno já foi observado por C. Peixoto em sua pesquisa sobre a sociabilidade de velhos parisienses e cariocas. "Ao longo do tempo, a câmera acabou se integrando à minha própria imagem, transformando seus comportamentos, fazendo-os evoluir para uma postura menos ostentatória , uma 'espontaneidade reservada' diante da câmera que eu supunha ser uma aparente 'naturalidade'" (Peixoto, 2002:79). Durante o trabalho de campo, registrei momentos engraçados desta relação com a gravação. Por mais de uma vez, mesmo com todo o aparato montado (câmera no tripé e boom preso em uma vara), surpreendi minhas personagens, "Não é que ela está filmando?", disse Luzia quando atendia uma beneficiária no balcão. Já Isabel era mais propositiva em sua relação com a câmera, algumas vezes ela deixou a timidez de lado e fez verdadeiras encenações. [Isabel estava parada na porta, ela percebeu que tinha apontado a câmera em sua direção] Isabel - Minha gente, deixa eu falar. Estou entrando agora aqui no projeto Grão de Mostarda [Ela passa da porta de entrada para atrás do balcão]. Luzia [Na pia da cozinha] - Já que você está entrando agora, atende a moça, pronto. Em meu primeiro contato com os membros da Rede, durante o Encontro de Partilha em novembro de 200569, após a apresentação oficial para o grupo, a explicação sobre a pesquisa e como iria ser realizada, muitas foram as pessoas que me perguntaram quando ia passar na televisão. Tanto para os membros do Grão de Mostarda quanto para os da Rede Fitovida, 68 "A presença de uma equipe de cinema pode induzir a atitudes artificiais, mas é difícil saber se a câmera realmente altera o comportamento dos personagens" (Colleyn, 1993:88). 69 O II Encontro de Partilha de 2005 aconteceu em Nilópolis na Paróquia Nossa Senhora de Aparecida, com o tema estética corporal. Foram trocadas receitas diversas pela manhã, votados os temas das próximas partilhas, que seriam realizadas em 2006, e apresentado a todos o que é o Inventário Nacional de Referências Culturais do IPHAN. 144 qualquer filmagem é associada à reportagem televisiva. E não foi por acaso que sempre fui apresentada como a jornalista70. No segundo encontro de partilha, a experiência foi diversa. Não houve perguntas nem questionamentos, simplesmente, fui designada por uma das lideranças da Rede como a "fotógrafa oficial" do evento e saí de lá com o compromisso de enviar algumas fotos por email para que pudessem ser usadas em uma apresentação futura71. No terceiro encontro de partilha, realizado na Igreja que abriga o grupo Grão de Mostarda, fui apresentada oficialmente pela coordenadora da Rede, que explicou que eu iria filmar mas que não era necessário preocuparem-se pois eu “retornaria o material para a Rede em seguida”. Este é um dado que acredito ser fundamental para a reflexão sobre a metodologia desta pesquisa, pautada na antropologia visual. Foi o ponto de partida para balancear a relação entre pesquisador-pesquisado. Produzir imagens sobre pessoas e grupos envolve cessão de direitos e gera uma preocupação legítima sobre o uso que será feito destas imagens. Estabelecer um feedback foi minha principal estratégia de aproximação com as lideranças da Rede e do grupo pesquisado a fim de dobrar as desconfianças iniciais. O produto final, bruto ou editado, pode ser usado pela própria Rede e até como objeto de análise por outros pesquisadores e estudantes. Mas qual seria a importância desse material para quem está sendo videografado? A experiência com o grupo Grão de Mostarda e com a Rede Fitovida mostra que para os grupos e pessoas que estão sendo registradas, o interesse por esse material pode ser o mais diverso possível. Desde o reconhecimento individual pelo trabalho realizado, podendo ser exibido para familiares e amigos, até o uso do registro para apresentar as atividades desenvolvidas oficialmente em eventos externos. A característica principal do material recolhido até então é a desconstrução das pré-noções que envolvem o tema: a medicina pelas plantas e a sabedoria popular das pessoas de mais 70 Sou formada em Comunicação Social, trabalhei como repórter e fotógrafa para jornais e revistas até iniciar o mestrado em Ciências Sociais. 71 Sobre a cessão de uso de imagens, desde que comecei a fotografar e a gravar em vídeo os encontros do grupo e da Rede, comprometi-me em ceder as imagens para fins não comerciais. 145 idade72. O primeiro impacto é perceber que a atividade deste grupo, e dos demais que pertencem à Rede (o que se percebe nos encontros de partilha), é organizada e está longe da precariedade que se costuma associar às atividades de grupos populares. As técnicas usadas pelo Grão de Mostarda são padronizadas e seguem uma metodologia que respeita medidas e proporções. Os princípios ativos das ervas são extraídos através de tinturas, que são medidas e misturadas a diferentes bases para compor diferentes produtos como xaropes e pomadas. O sabão e o xampu ainda são feitos da “maneira antiga” 73, as ervas são batidas no liquidificador após lavadas e coadas, em seguida são misturadas ao sabão derretido e levadas ao fogo. As imagens do ambiente de trabalho revelam a organização do grupo. Em um armário são guardadas as tinturas, em outro as embalagens de cada produto, as etiquetas de identificação. A cozinha é equipada com um fogão e liquidificador industriais, uma máquina moedora de café para moer sementes, uma balança de precisão, uma geladeira, um fogão convencional e duas pias. Ao final de cada produção, os medicamentos são embalados e etiquetados, registrados e disponibilizados nas prateleiras que se localizam abaixo do balcão. Muitos nem chegam às prateleiras e são logo vendidos. A riqueza do material audiovisual também se expressa no inesperado. Erros na feitura dos xaropes, como dúvidas sobre as concentrações de tintura, a presença de uma garrafa de coca-cola no almoço e uma lata de leite condensado na sobremesa revelam que não há uma rigidez comportamental na dieta alimentar "natural". São elementos diversos e dispersos que se encadeiam na medida em que o material é assistido e que revelam as maneiras como são experimentados os cuidados com o corpo e a saúde. O desafio para a montagem de um filme etnográfico é manter as diferentes vozes que interagem nesse processo de pesquisa, como em um diálogo, e transmitir informações hierarquizadas em uma narrativa que comunique um processo metodológico de pesquisa sobre o Grupo Grão de Mostarda e sua relação com a Rede Fitovida. Como pesquisadora, domino o enquadramento e reforço o meu ponto de vista na construção da narrativa, a montagem. Nesse sentido, "A construção do filme é muito mais do que uma simples metodologia destinada a compreender as situações sociais através da imagem: é a 72 No terceiro capítulo, analiso como a velhice é tratada pela literatura científica social e médica como um problema e das representações sociais negativas predominantes. 73 Dona Gracinha, 74 anos, integrante do grupo desde a sua fundação conta que a maneira de fazer mudou depois que aprenderam que não se deve ferver as ervas muito tempo. 146 maneira pela qual o antropólogo fabrica suas imagens e reflete sobre a contribuição que elas aportam à análise do objeto" (Peixoto, 2000: 76). Minha estratégia é criar uma transparência do processo fílmico, utilizar a câmera como um objeto de interlocução 74, manter os elementos filmados que revelam essa relação. Afinal, a câmera não é um meio para chegar às coisas em si mesmas, mas a uma representação das coisas (Colleyn, 1993:65). A montagem seguirá um modelo documental, na qual estarão presentes as linhas gerais traçadas por alguns dos autores citados principalmente D. MacDougall. A participação do grupo é fundamental na construção final do vídeo, já que será submetido à aprovação das pessoas filmadas75. O objetivo é fazer com que este material não fique restrito aos muros da academia, mas que possa ser usado pelos próprios personagens retratados. Segundo M. Piault dois dos modelos de montagem postos em prática atualmente são a montagem narração e a montagem afetiva. A primeira ordena logicamente planos em seqüência articulando uma história, criando uma dramaturgia a partir do qual o espectador compreenda a ação e as motivações humanas e sociológicas. A segunda visa produzir sobre o espectador um sentimento específico na medida em que assiste o desenrolar cinematográfico. Este tipo de montagem não está comprometido em tornar inteligível o desenrolar de uma história, ao contrário, ela "pode produzir uma ruptura, fazer emergir reações afetivas produzidas por uma confrontação visível e sentida com as imagens propostas" (Piault, 2001:158). Esse interesse na apropriação das imagens por parte do Grupo e da Rede ficou clara com a produção do vídeo Uma partilha da Rede Fitovida (12 minutos, 2006), realizadas a partir das primeiras filmagens do Encontro de Partilha76 de novembro de 2005. Após uma verdadeira distribuição do DVD durante o Encontro de Partilha seguinte, o vídeo foi anexado ao material 74 Piault (2000). “Permitir aos sujeitos representarem a si mesmo na tela e submeter-se a sua aprovação após terem revisto as filmagens representa uma mudança definitiva na voz e na autoridade documentais. A distância mantida por aqueles que preferem uma objetividade jornalística é abandonada em favor de uma autoridade partilhada. A visão dos sujeitos sobre eles mesmos é reconhecida como um valor que deve ser representado e validada." (Ruby, 1991:56). 76 Esse vídeo foi realizado no curso Oficina de Imagem: imagens do campo e da cidade, oferecido pelo PPCIS/UERJ em parceria com o CPDA/UFRRJ e coordenado pelos professores Clarice Peixoto, Luiz Flávio de Carvalho e Héctor Alimonda. 75 147 entregue aos técnicos do IPHAN que orientam a realização do inventário. Durante o encontro de outubro de 2006, o vídeo foi exibido para os integrantes da Rede. Foi possível compreender melhor este interesse na medida em que o trabalho de campo avançava e surgiam laços de afetividade entre mim e as integrantes do grupo. O registro das imagens, principalmente a fotografia, são formas de preservação da memória no Grão de Mostarda. O acervo de fotografias é uma importante fonte de dados para o grupo e sua história e de suas participantes é contada através das imagens 77. Os filmes produzem o efeito de ativar a memória (Peixoto, 2001:173) e são de muita importância em um projeto que tem como objetivo principal preservar um patrimônio imaterial, o conhecimento sobre plantas medicinais. As imagens permitem o reconhecimento das pessoas, da identidade individual, que fazem parte de uma identidade coletiva, o Grão de Mostarda e a Rede Fitovida. Se o que fazem pode ser caracterizado como um movimento social, para elas é importante que não seja um movimento de anônimos, a evocação da memória das pessoas que contribuíram para a formação do grupo e a transmissão de conhecimento é fundamental. Este entendimento explica a constante evocação das integrantes falecidas e a homenagem prestada na arrumação das fotografias que contam a história do grupo. Talvez também explique a necessidade de deixar claro as minhas intenções e o comprometimento a finalizar o material somente após a aprovação do Grupo. Embora a construção da narrativa videográfica não seja compartilhada (é, antes de tudo, autoral) pedir tal aprovação é uma forma de validar o discurso sobre o outro. 77 Uma cena muito feliz é a explicação de Dona Gracinha sobre as fotografias do grupo emolduradas para a comemoração de 11 anos de existência. 148 5.2 – “A pessoa é para o que nasce”– mulheres do “povo” no cinema Entre os novos princípios da antropologia visual propostos por D. MacDougall, e também expresso no Manifesto de Leiden, está a utilização da linguagem característica da comunicação visual modos de organização, de intensidade, ritmo e timbre a fim de criar filmes que transmitam conhecimento antropológico. Entre as referências escolhidas para a realização deste vídeo etnográfico estão o documentário A pessoa é para o que nasce (Berliner, 2004) e a obra de Eduardo Coutinho. Ambos são exemplos de como é possível construir uma narrativa audiovisual em que se evidencia o processo de retratar o Outro, tão diferente e semelhante ao mesmo tempo. 149 Rápida história das três personagens de A pessoa é para o que nasce Nascidas numa família de camponeses sem-terra, passaram a infância perambulando pelas cidades do Nordeste do Brasil, seguindo os passos do pai alcoólatra que trabalhava como mão-de-obra temporária para os proprietários de terra da região. Para complementar a renda, a mãe dedicava-se ao artesanato e elas aprenderam a cantar nas feiras e nas portas das igrejas em troca de esmolas. Após a morte do pai, a cantoria tornou-se a principal fonte de renda de uma família numerosa, e que não parava de crescer. Houve um momento em que elas sustentavam, com seus míseros ganhos, 14 pessoas, entre irmãos e irmãs, um deles adotado, sobrinhos, a mãe e seu novo marido. Maria Barbosa, a mais habilidosa e autônoma das três irmãs, foi a única que casou. E por duas vezes, ambas com deficientes visuais, tendo enviuvado também duas vezes. O primeiro marido foi Manuel Triquilino, violeiro e cantador, que passou a apresentar-se com elas nas feiras. Tiveram uma filha, Maria Dalva, que nasceu em 1989. Após o nascimento da filha, Maria foi viver com o marido em Natal, no Rio Grande do Norte. Foi o único período de suas vidas em que as irmãs estiveram separadas. Quando a filha já tinha completado cinco anos, Manuel morreu e Maria voltou para junto de suas irmãs, em Campina Grande. Lá conheceu Silvestre, o grande amor de sua vida com quem viveu dois anos, até o marido ser assassinado. Quando a equipe da TV ZERO entrou em contato com as personagens pela primeira vez, em 1997, elas viviam praticamente sós, em uma pequena casa numa vila em Campina Grande. A mãe delas tinha morrido há cerca de seis meses e Silvestre estava morto há menos de quatro. A filha de Maria vivia com uma tia distante que se recusava a devolver a filha para a mãe. O que aconteceu deste momento em diante está no filme. (material de divulgação do filme em www.apessoa.com.br) O filme de Berliner teve êxito e chamou minha atenção. Ao longo de sete anos, o diretor filmou três irmãs cegas que cantavam cocos e emboladas78 e pediam esmolas nas ruas de Campina Grande, na Paraíba. Deste encontro, foram produzidos filmes de curta-metragem para o projeto "Som da Rua", realizado com músicos populares de todo o Brasil, e o longa-metragem em questão. 78 Ritmos nordestinos populares que utilizam as palmas das mãos e ganzás. 150 "São irmãs. São três. São cegas. Unidas por esta característica incomum do destino, elas viveram toda sua vida cantando e tocando ganzá em troca de esmolas nas cidades e feiras do Nordeste do Brasil, a região mais pobre do país. O filme acompanha os afazeres cotidianos destas mulheres e revela as curiosas estratégias de sobrevivência da qual participam parentes e vizinhos. Mergulha em sua história, flagrando uma trama complexa de amor e morte, miséria e arte. E acompanha, numa reviravolta inesperada, o efeito-cinema na vida destas mulheres, transformando-as em celebridades. Um filme em que diretor e personagens confrontam-se com os laços que surgem entre eles, revelando a sedução e os riscos do ofício de documentarista." (material de divulgação do filme) A partir da análise dos recursos visuais e dramáticos, é possível tecer considerações úteis das representações sobre as mulheres velhas, os nordestinos e a criatividade do povo, temas que também estão presentes nesta pesquisa. O cinema brasileiro, seja no documentário ou na ficção, tem se dedicado a retratar a cultura popular principalmente a partir das décadas de 50/60. O povo, o Nordeste, a miséria, a favela, o samba, entre outros elementos da cultura popular nacional, inspiraram inúmeros filmes. A realidade daqueles que são "a cara do Brasil" é a temática recorrente no cinema brasileiro desde a década de 50, abordada de diferentes maneiras nas décadas de 50/60, no cinema novo e nos anos 80/90 (Leite, 2006:40). A representação audiovisual do "povo brasileiro" exprimiu a busca pelo projeto moderno de construção da identidade nacional e, desta forma, propôs soluções para um país partido, campeão em desigualdade social, onde as diferenças culturais, sociais e econômicas produzem um outro percebido como exótico, seja na periferia das cidades, seja no campo. No filme A pessoa... as irmãs são retratadas com uma extrema proximidade, o que em alguns momentos tem-se a impressão de invasão de privacidade. O resultado é um documentário sobre o cotidiano de pessoas "reais", sujeitos de sua própria existência, que sofrem os determinismos sociais, regionais, biológicos e de gênero, como muitas outras. O diretor Roberto Berliner afirma, em entrevista, que a sua intenção ao filmar A pessoa é para o que nasce era "provar que existe vida inteligente na miséria e na ignorância", isto é, apresentar a cultura popular no cinema valorizando as ambivalências de suas personagens, desconstruindo algumas representações sobre a miséria, deficiência visual, a mendicância e 151 caracterizando suas personagens com agentes sociais. O documentário é a experiência de um diretor carioca em busca da musicalidade das ruas que se traduz em um encontro pessoal, subjetivo e seus desdobramentos na vida das pessoas retratadas, o "efeito cinema". O meio de expressão capaz de conectar mundos tão distintos é a música, "um complexo e diversificado lugar de interação social, criação e reprodução de representações que falam de culturas e identidades específicas – sejam elas mais locais, regionais e globais" (Vianna, 2003:71). Verdadeiro amálgama da identidade nacional através do qual é possível viver em um país ideal. A indústria cultural soube aproveitar este simbolismo para reforçar uma identidade nacional ao longo do século XX, inventando o que deveria ser tradicionalmente brasileiro, como o samba, o choro, o baião, a música caipira, a bossa nova, etc (Vianna, 2003). Como produtor cultural, Berliner utiliza as mesmas estratégias para construir uma narrativa. Logo nas primeiras cenas, o filme convida o espectador a se posicionar no lugar do outro, a tela fica escura como se houvesse uma falha técnica na projeção. Em seguida, a narrativa recomeça com o despertar das três irmãs em um dia qualquer. Através de atitudes banais, é possível compreender como essas mulheres percebem o mundo e como o simples ato de vestir-se pode ser complicado para quem é privado da visão. Na medida em que cada uma diz seu nome completo e data de nascimento, fica evidente que não são pessoas alijadas de sua cidadania, têm identidade e, sobretudo, autonomia. A relação diretor x personagens vai se revelando ao longo do filme, a ponto de produzir no espectador a sensação de ter compartilhado a experiência de conhecê-las profundamente. Os planos com closes ultrafechados em detalhes como bocas, olhos, mãos revelam uma estratégia de aderência ao “objeto” filmado. O "caso de amor", propriamente dito, fica evidente quando Maria Regina, a Maroca, insinua estar apaixonada pelo diretor, que também se torna personagem79. Inevitável, sua participação esclarece as "regras do jogo", seja na 79 "É estranho, muito estranho. Aconteceu porque se tornou inevitável, não é uma posição confortável. Estou acostumado a interagir de forma a lançar questões e situações para os personagens dos documentários que faço, quando passei a viver situações do filme junto com elas, claro que passei por um grande desconforto, mas o pior foi na ilha quando percebi que tudo aquilo poderia ficar dentro do filme"(depoimento de Berliner na página www.apessoa.com.br). 152 divisão dos prêmios alcançados pelo filme, seja em explicitar os laços de amizade e seus limites. A fotografia, os enquadramentos e as "locações" onde são feitos alguns depoimentos revelam um cuidado estético no qual até as roupas das personagens combinam. Se por um lado, pode parecer artificial, o conteúdo da "palavra filmada" é tão veemente que equilibra o princípio de realidade. A narrativa segue o modelo ficcional tradicional: os personagens iniciam uma jornada. Se antes do projeto do filme, elas eram uma pitoresca atração das ruas de Campina Grande, como mostra Regina Casé, em seu Programa Legal (onde repete uma das máximas do senso comum a respeito da relação entre a cegueira e a música), elas vão se afirmando como artistas, até se tornarem “estrelas de cinema”. O filme chega ao final em um encontro com o mar - tão cantado e sonhado -, que acontece na praia de nudismo de Tambaba, na Paraíba. Elas fazem, na frente das câmeras, o que fizeram durante todo o filme através da palavra: desnudam-se. Após os créditos, vem o reconhecimento oficial, são condecoradas com a "Ordem do Mérito Cultural" pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Um olhar anarquista Mas como este se distingue de outros filmes documentários que também têm como objeto, ou pano de fundo, a miséria, as manifestações culturais populares, como festas e músicas? O "objeto principal", o nordestino pobre e o camponês expropriado da terra, é o mesmo de muitos filmes de ficção e documentários produzidos no cinema brasileiro nos últimos dez anos e nos leva a questionar essa insistência na medida em que refletimos sobre as categorias povo e massa no cinema. A fim de pensarmos sobre como estas representações foram construídas, acredito que seja válido analisar a experiência de Eduardo Coutinho - autor de Cabra Marcado Para Morrer (1984), Santa Marta – duas semanas no morro (1987), O Fim e o Princípio (2005), entre outros. 153 Ao filmar Cabra Marcado para Morrer, em 196280, Coutinho planejava fazer uma ficção, didática, sobre as lutas camponesas. "Eles não aceitariam um documentário. Por pura e simples razão de mercado e de política cultural. O CPC queria que o filme tivesse público por razões políticas. Fazer um documentário de longa-metragem em 64 era brincadeira. Depois, o próprio Joaquim [Pedro de Andrade] fez o Garrincha [A alegria do povo, 1965]. Mas o Garrincha era um ídolo, ganhou a Copa do Mundo." (Galano, 2000:101) Esta explicação dá pistas sobre o esquema de pensamento da época e de como o cinema representava o povo através de uma visão edificante. O foco de interesse era as práticas associativas e organizacionais dos trabalhadores. Enquanto as atividades que constituem o cotidiano - por exemplo, a religiosidade - eram vistas como mais um obstáculo à tomada de consciência, despolitizadas e insignificantes. Vinte e cinco anos depois das filmagens de Cabra..., que felizmente não se tornou um filme didático sobre a luta camponesa, A pessoa... também se volta para pobres do interior da Paraíba e para seu cotidiano "severino". Nesse sentido, aproxima-se muito mais de uma noção anarquista do papel do povo na cultura. Barbero (1997) defende que a origem do debate sobre o papel do povo se encontra em dois grandes movimentos: o iluminismo, que desenvolve o mito do povo na política, e o romantismo, que defende seu papel na cultura. Se o pensamento ilustrado construiu um lugar de soberania, como uma instância legitimadora do poder civil, no âmbito da cultura, o lugar do povo é onde resiste tudo aquilo que precisa ser varrido pela razão: a superstição, a ignorância e a desordem. Os românticos, por sua vez, realizam a "descoberta" do povo dotando-o de uma idéia de coletividade que, unida, ganha força e de onde saem heróis para combater o mal, no melhor estilo "exaltação revolucionária". O aspecto "reacionário" do movimento romântico se contrapôs à fé racionalista e idealizou o passado, revalorizando o primitivo e o irracional. O 80 O filme começou a ser elaborado durante a caravana na União Nacional dos Estudantes, a UNE Volante, com estudantes membros do CPC (Centro Popular de Cultura da UNE), duas semanas após o assassinato de João Pedro Teixeira, fundador da Liga do Sapé. Em 1964 começaram as filmagens com a viúva do líder, Elizabeth, seus filhos e outros camponeses que representaram os papéis das personagens da trama do longa metragem, que deveria contar a história de vida de João Pedro. Com o golpe, em abril de 1964, as filmagens foram interrompidas e alguns membros da equipe chegaram a ser presos. Somente em 1980, Coutinho retomou as filmagens, após uma busca por Elizabeth e seus filhos, e conclui o documentário. 154 romantismo construiu um novo imaginário no qual, pela primeira vez, o que vem do povo adquiriu estatuto de cultura. Ao longo do século XIX, a idéia de povo gerada pelos românticos é totalmente diluída pela esquerda, através do conceito de classe social. Essa passagem é motivo de um intenso debate entre os anarquistas e os marxistas. Enquanto o anarquismo manteve alguns traços da concepção romântica combinados com as práticas revolucionárias, o marxismo rompeu completamente com o romântico, recuperando traços da racionalidade ilustrada. “A racionalidade que inaugura o pensamento ilustrado se condensa inteira nesse circuito e na contradição que encobre: está contra tirania em nome da vontade popular, mas está contra o povo em nome da razão (...). A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que esta invocação a articula sua exclusão da cultura.” (Barbero, 1997: 25). A concepção de povo segundo o anarquismo se situa no meio do caminho entre o romantismo e o marxismo. Se de um lado, define-se pelo enfrentamento estrutural e sua luta contra a burguesia, de outro, não o reduz a noção de proletariado, já que a relação do sujeito social com a estrutura não se restringe à luta de classes, nem aos meios de produção, mas com a opressão em todas as suas formas. O povo é sujeito da ação política, capaz de conquistar sua liberdade através da revolução. Tal concepção contrapõem-se à categoria proletário, difundida pelo pensamento marxista. “Enfim, a sensação que me refiro remete talvez mais, muito mais, a nossa cumplicidade com essa deformação que converteu a afirmação de Marx – as idéias dominantes de uma época são as idéias de uma classe dominante – na justificação de um etnocentrismo de classe segundo a qual as classes dominadas não têm idéias, não são capazes de produzir idéias” (Barbero, 1997:98). No filme de Berliner estão presentes indivíduos e não somente "a cultura popular". Estas personagens provam a hipótese do diretor de que existe "vida inteligente na miséria e na ignorância". É justamente "espirituosidade" das ceguinhas, sua visão de mundo, que torna o filme tão atraente, uma mistura de resignação com bom humor. Maroca, Poroca e Indaiá são 155 artistas de rua e dominam a técnica de combinar trágico e cômico. Berliner não sucumbiu à tentação de construir uma imagem moralmente aceitável de suas personagens, as traições e as mágoas estão todas presentes. Tampouco, quis esconder aspectos que possam parecer cruéis como o fato delas continuarem a pedir esmolas mesmo depois do "efeito cinema" em suas vidas. Em diversos momentos, ele revela que as personagens estão conscientes do que estão fazendo, inclusive esclarecendo suas próprias intenções, como afirma Maroca: "não estou fazendo o filme para ganhar dinheiro, mas para ficar conhecida em todo o canto". Ao contrário de modelos clássicos de documentários, principalmente os de caráter jornalístico que apresentam dados e especialistas, o filme apela para a emoção do espectador. Berliner consegue fazer esta "releitura" do popular de forma original, sem recorrer a fórmulas prontas, ora utiliza recursos dramáticos clássicos, como a musicar dramas pessoais, ora lança mão de uma estética visual sofisticada, sem cair no discurso pronto que a mídia repete sobre as encantadoras ceguinhas. A trajetória das heroínas começa em uma vida ordinária, recheada de dramas pessoais, para terminar no estrelato, "posando" nuas e sendo reconhecidas pela autoridade máxima da República. Elas deixam o espaço da tradição – a praça, as feiras e ruas, onde o povo pode se expressar livremente e onde o folclore se manifesta – para irem cantar no cinema, na TV, nos mass media. É um caminho individual, uma exceção, mas que se inscreve dentro da lógica do igualitarismo moderno, para os pobres, as mulheres e os deficientes. Seu repertório, na voz de grandes artistas, ganha sofisticação, já não é mais o som cru, com voz e ganzá. É uma forma de apresentar ao grande público o som das ruas. Das ceguinhas para as velhinhas O filme de Berliner é uma referência para a realização do filme etnográfico relativo a essa pesquisa pelos seguintes motivos: concilia uma linguagem mediática sem repetir antigos clichês a respeito de classes populares, mulheres idosas e deficientes visuais; é um filme reflexivo, na medida em que revela o processo de construção da película e a relação entre observador e observado e, sobretudo, constrói uma identidade positiva de mulheres de classe populares. Há claramente direção de cenas ao mesmo tempo em que se revelam as 156 fragilidades das estratégias do diretor (como em cenas em que as legendas da cena, escritas em tábuas de madeira colocadas pela produção em um canto do quadro, tombam seguidamente com a força do vento). Entre todas as características a serem mencionadas, a mais importante é a construção da identidade de suas personagens como agentes sociais, produtoras de cultura, resgatando-as do lugar restrito do folclore e colocando-as no centro de um processo de produção e consumo de bens culturais. É um filme inspirador, pois constrói uma triangulação personagens-diretor-espectador e retrata suas personagens como produtoras de cultura. E. Coutinho é outra referência fundamental no documentário brasileiro. Assim como R. Flaherty e D. Vertov, ensina mais a respeito de fazer filmes etnográficos do que muitos antropólogos-cineastas. Sua obra possui aspectos amplamente discutidos na antropologia visual contemporânea, como dar voz aos entrevistados, a responsabilidade ética e a reflexividade no processo cinematográfico. Sobre a ética em relação a seus personagens, o cineasta afirma ser um quesito que não abre mão: “Eu tenho que me preocupar é que eu não vá prejudicá-la [a pessoa filmada que se torna personagem], que é uma preocupação ética. Às vezes, o personagem é maravilhoso, mas eu não posso usar na íntegra porque eu sei que ela pode ser prejudicada. Demitida do emprego, desmoralizada, etc e tal. Fora disso o que existe para mim é o personagem.” (Coutinho, 2002) A maneira como realiza suas filmagens e constrói suas narrativas pode funcionar como resposta para muitas questões do pesquisador em seu trabalho de campo. A intervenção da câmera e seu impacto sobre o comportamento dos personagens, que para muitos põe em risco a objetividade da pesquisa, é para E. Coutinho matéria de seus filmes e leva à reflexão sobre a construção do discurso sobre o outro. “Assim como os criadores do cinema-verdade, os franceses Jean Rouch e Edgar Morin, Coutinho aposta na intervenção explícita para realizar um documentário. Consciente de que qualquer realidade sofre uma alteração a partir do momento em que uma câmera se coloca diante ou no meio dela e que o esforço de filmá-la tal qual é inteiramente vão, ele intervém, provoca e faz dessa metodologia, matéria a ser filmada.” (Lins, 1987:7). 157 Dar a palavra ao outro e evidenciar a relação estabelecida entre o entrevistador e o entrevistado, mediada pela câmera, é uma saída digna para diversos "problemas" metodológicos que podem surgir em uma pesquisa. É também uma forma de trazer a pessoa, sua temporalidade e sua performance para o foco da cena. O discurso tem um papel primordial no cinema deste diretor, seus personagens tomam gosto pela palavra e diante das câmeras são capazes de contar fragmentos de suas próprias histórias. C. Lins, em uma análise dos filmes de Coutinho Santa Marta: Duas Semanas no Morro, Boca do Lixo e Cabra Marcado para Morrer, ressalta a estratégia de filmar com o "Outro", interagindo e dando-lhe a palavra, da mesma forma que o entrevistado dá a palavra para o diretor. "De fato, em muitos momentos, algo se constrói entre a palavra e a escuta que não pertence nem ao entrevistado nem ao entrevistador. É um contar em que o real se transforma num componente de uma espécie de fabulação, onde os personagens formulam suas idéias, fabulam, se inventam, e assim como nós aprendemos sobre eles, eles também aprendem algo sobre suas próprias vidas. É um processo onde há um curto-circuito da pessoa com um personagem que vai sendo criado no ato de falar." (Lins, 1998) As possibilidades de narração dos próprios personagens permitem que os entrevistados tomem gosto pela palavra, e esta palavra é o objeto de seu cinema. Inspirei-me em E. Coutinho quando escolhi explorar o discurso do entrevistado, o que realizei na medida em que perguntei a cada entrevistada: "existe algo que a senhora gostaria de dizer que eu não tenha perguntado?". Após um breve silêncio, todas as respostas revelaram conteúdos interessantes, verdadeiros "atos de fabulação" que muitas vezes revelavam formulações de síntese sobre si próprias e o trabalho desenvolvido no grupo. Outra característica do cinema de E. Coutinho, embora não seja exclusiva deste cineasta, apontada por C. Lins é filmar um espaço restrito, o "princípio da locação única", como nos filmes Babilônia 2000, Santa Marta: duas semanas no Morro, entre outros. Todas as filmagens por mim realizadas ficaram restritas ao espaço de sociabilidade do grupo Grão de Mostarda e aos locais dos eventos, como os encontros de partilha. Inicialmente, pretendia acompanhar as integrantes do grupo pelo bairro e até mesmo ir até suas residências, mostrar suas hortas domésticas. Após a segunda ida à cozinha do grupo, percebi que havia uma 158 geografia bem definida do fenômeno estudado: a cozinha do Grão e a horta, os demais espaços (outras dependências da igreja, as ruas do bairro, o posto de saúde) eram locais de transitoriedade onde não se preservava mais a identidade grupal. Nestes espaços próprios, aos poucos foram se revelando as fronteiras com o "mundo lá fora", onde outros agentes interagem (familiares, colegas da igreja, de trabalho, etc). Desta forma, restringi-me a trabalhar nos limites em que o próprio Grão de Mostarda trabalha. Além da obra de Coutinho e do filme de Berliner, outros documentários foram importantes para a definir minhas escolhas durante as gravações, pois foram exemplo de como abordar algumas questões. O Homem Urso, de Werner Herzog, é um documentário sobre Jim Treadwell, um cineasta e ambientalista que se dedicou ao registro dos ursos pardos do Alaska por 13 anos, até que foi literalmente comido por um urso pardo junto com sua namorada. O ambientalista era uma celebridade nacional e se destacava pela forma temerária com que se aproximava dos animais para produzir imagens e estudá-los. Este filme traz inúmeras maneiras de compreensão da relação homem-natureza e mostra a construção, por parte do protagonista, de uma noção de natureza humanizada, com direitos e demanda por ser preservada. Este tema também está relacionado com o conteúdo aprofundado no segundo capítulo, que foi analisado seguindo um caminho aberto por pensadores sociais como Freyre, Buarque de Hollanda e DaMatta. A série de quatro documentários representando os capítulos de Casa Grande & Senzala, dirigida por Nelson Pereira dos Santos, também contribuiu para a apreensão de formas de narrativa e ligação entre obra textual e imagem. O documentário O Santo Rebelde, sobre a vida de Dom Hélder Câmara, apresentou-me o universo católico e as comunidades eclesiais de base, além de demonstrar a importância de uma relação harmoniosa entre música-imagem no documentário. Com imagens de arquivo e entrevistas, a diretora Érika Bauer apresenta um panorama sobre a vida e a obra de Dom Hélder Câmara, personagem marcante na história política e religiosa do país. Alguns filmes de Jean Rouch não podem deixar de serem citados como referência, não só pela abordagem colaborativa, mas, sobretudo, pela liberdade e perspicácia de seu olhar. Igualmente importantes foram os filmes etnográficos produzidos por C. Peixoto, que abordam 159 de forma criativa questões relacionadas ao envelhecimento: Bebela e a revolução gaúcha de 1923 (2004) e Em busca do pequeno paraíso (2000). 160 Última seqüência "Seria, então, possível envelhecer de outra forma, sem se deixar influenciar pelas representações estereotipadas e caricaturais da velhice?" Este questionamento de C. Peixoto abre um artigo que analisa as representações sobre a velhice em dois documentários e permeia muitos trabalhos sobre envelhecimento (Brito da Motta, Peixoto, Bassit, Lins e Barros, entre outros). Tomei-o emprestado para nortear a realização desta pesquisa etnográfica. O audiovisual é o principal instrumento de descrição antropológica sobre o tema e a própria escolha desta metodologia influencia a forma como a pesquisa foi realizada. A construção da narrativa fílmica implica a utilização de uma linguagem cinematográfica que descreve, explica e interpreta um fato social e envolve o observado-pesquisador-espectador. O objetivo é comunicar a construção do ser humano em sociedade pela imagem e pelo som, transcrevendo as relações interpessoais, suas diferentes formas de sociabilidade e as condições de uma construção da pessoa através de diferentes modos sociais (Piault, 2001:161). "A narrativa cinematográfica se autonomiza de uma certa maneira e toma consciência dela mesma, colocando rapidamente e em definitivo a questão da intenção significante e a questão das modalidades analíticas de observação. Quer se trate de um relato ficcional ou de uma descrição significativa do real, a questão da transferência da significação permanece a mesma, e para além da instrumentalização mesma desta transferência tem-se uma tríplice interrogação sobre o sentido: qual é o sentido para os protagonistas da situação, qual é a percepção do cineasta e, finalmente, o que acontece com o espectador? Seria preciso acrescentar a este questionamento a proposta de uma antropologia que coloca em perspectiva dinâmica os cruzamentos de olhares e os efeitos indefinidos de reciprocidades, o inacabamento necessário de uma troca ao mesmo tempo desigual, mas generalizada e, portanto, instável, o estabelecimento de um espaço permamente de intercomunicabilidade onde a abordagem de cada um será um démarche constante e inelutável de apropriação e diferenciação" (Piault, 2001:156). O diálogo e a troca entre o observador e observado é a única maneira de garantir a apreensão do sentido sobre a realidade registrada. O feedback das imagens e a autoria compartilhada balanceiam as diferentes perspectivas na medida em que se estabelece uma relação de 161 simpatia, afeto e respeito na qual a alteridade é mantida. Seria inviável realizar um filme etnográfico sem o compartilhamento. E as relações estabelecidas ficam evidentes na construção da narrativa fílmica. Há sempre pessoas com as quais temos maior simpatia e que se tornam o centro de cenas importantes para compreender a dinâmica do grupo. "Esta é, talvez, uma das características do trabalho audiovisual: a relação entre aquele que filma e aquele que é filmado é refletida na imagem e o espectador testemunha a distância e/ou proximidade estabelecidas nesta relação. Aliás, sendo esta uma de suas principais discussões metodológicas - a câmera como um pivot relacional na elaboração das imagens - a antropologia visual pode contribuir de forma enriquecedora para o eterno debate antropológico sobre a relação observador & observado" (Peixoto, 1999:360). Com base na hipótese de que o trabalho voluntário realizado pelas integrantes do Grão de Mostarda de outros grupos da Rede Fitovida é uma forma de afirmação de uma identidade positiva na velhice, acredito que a realização do filme etnográfico deva mostrar a maneira como estas mulheres constroem uma imagem positiva de si próprias através de suas próprias falas, dando-lhes voz. Não é só o filme de Gracinha, Lourdes e Isabel, é o filme de um grupo que pertence a um movimento social, que só pode se constituir como tal se Gracinha, Lourdes e Isabel, etc, experimentarem suas identidades de maneira positiva. De certa forma, esta "positivização da velhice" traduz a "'ideologia da Terceira Idade', na qual a descoberta dessa nova etapa da vida é marcada por uma 'alegria de viver' em que a autonomia, o dinamismo e a sociabilidade são elementos preponderantes"(Peixoto, 2001: 369), mas não só, pois também expressa valores de solidariedade e valorização da cultura popular como forma de transformação social. Afeto e fraternidade são alguns dos sentimentos que permeiam a sociabilidade do grupo. A forma escolhida para montar o filme foi montar um discurso a partir das falas das integrantes sobre como se constituiu o grupo, sua adesão e os cuidados com a saúde usando plantas medicinais, a transmissão deste conhecimento e a ação social que realizam. O objetivo da montagem-narração é permitir a compreensão da ação dos personagens e suas motivações e provocar os sentimentos experimentados por mim no trabalho de campo no espectador, ou 162 seja, partilhar a minha experiência a fim de contribuir para uma melhor compreensão do sujeito antropológico. 163 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho no Grão de Mostarda é uma experiência que transforma as visões de mundo de suas integrantes, tanto no que se refere às noções particulares acerca de corpo, saúde e envelhecimento, quanto no que diz respeito à sociedade – redes de solidariedade e associativismo na área de saúde. Na medida em que se aprofunda a reflexão sobre as mulheres da Rede Fitovida – mais especificamente através da observação do grupo Grão de Mostarda – surgem outros aspectos que possivelmente escapam às primeiras impressões. Pois à primeira vista, são mulheres que trabalham voluntariamente na produção de preparações medicamentosas feitas à base de ervas. A convivência com o grupo ao longo do trabalho de campo revelou uma complexidade de fatores que distingue a Rede de outras experiências, na área de saúde, que utilizam o conhecimento popular sobre plantas medicinais. A Rede Fitovida é composta por mulheres, e homens, que reivindicam o protagonismo em um processo de reconhecimento da cultura popular como bem imaterial. A motivação principal é a solidariedade, o que está em sintonia com um ethos familiar da qual também fazem parte os cuidados com a saúde. Se a precariedade do atendimento público na área da saúde aparece como uma justificativa para a existência dos grupos, a maioria localizada em comunidades de baixa renda, esta é uma dimensão superficial para o entendimento do trabalho realizado. Conforme foi percebido no Grão de Mostarda, a terapia com plantas medicinais e outras técnicas denominadas alternativas (como barroterapia, bioenergética, etc) não exclui o tratamento com a medicina científica. A medicina alternativa praticada pelos grupos é utilizada como auxiliar no tratamento dessas doenças, mas não como substituta. As preparações medicamentosas feitas à base de ervas medicinais são somente um dos itens que fazem parte do sistema de trocas simbólicas comum à Rede Fitovida. Na Rede, existe a consciência de que mesmo sem o objetivo de substituir o atendimento público em saúde, os grupos exercem um papel social a partir do trabalho voluntário realizado – pois oferecem um atendimento "humanizado" e personalizado no qual existe escuta para o paciente. O uso da palavra "doação" significa muito mais do que os bens e as horas de trabalho despendidos sem receber valores monetários em troca. As doações são as ações individuais e coletivas de mulheres que oferecem alternativas de cuidados com a saúde. No 164 caso do grupo Grão de Mostarda, o histórico familiar de engajamento em trabalhos sociais, bem como os laços pessoais de amizade se mostraram determinantes para a adesão de cada integrante. "Doação" também é uma forma de “servir à Deus”, de estar em contato com algo que é superior à racionalidade humana, às relações de custo-benefício, e, sobretudo, de se inserir em um sistema de trocas não-comerciais, que pode ser compreendido através do clássico estudo da dádiva empreendido por M. Mauss. Por meio da prática desta medicina "natural", as pessoas questionam o controle quase absoluto que a medicina científica detém sobre o corpo. O principal recurso que a Rede Fitovida detém, neste embate, é a cultura popular de cuidados com a saúde que vem se reinventando e resignificando ao longo dos anos, até mesmo com a democratização do acesso aos serviços de saúde, o que torna mais familiares os termos de diagnóstico da medicina. No processo de legitimação de suas práticas, a Rede deseja ser um agente ativo na construção de políticas públicas de saúde que envolvam terapias com ervas medicinais. A Rede Fitovida não se contenta em ser somente uma fonte de informações que devem ser validadas por cientistas, como meras "experiências históricas". "Natural" é um termo que integra a visão de mundo compartilhada na Rede Fitovida. A forma como relacionam natureza e cultura revela uma perspectiva fundamental para compreender a especificidade de seus cuidados com a saúde. Se a natureza está próxima de Deus, os alimentos e remédios naturais são também remédios e alimentos "divinos". Os cuidados com o corpo, que pertencem ao domínio da cultura, também se tornam mais "divinos" na medida em que utilizam estes elementos. As representações da natureza na cultura brasileira são o alicerce do imaginário coletivo da Rede Fitovida. Além de ser uma dádiva de Deus, também é percebida de forma semelhante à visão contemporânea sobre meio-ambiente, na qual a natureza ganha outro status (meio ambiente) e adquire direitos (ser preservada e protegida). Assim, o conhecimento do popular sobre uso de plantas medicinais, parte da cultura, também deve ser protegido, pois é a forma de garantir a preservação de espécies ameaçadas por não terem uso comercial e só serem importantes para a população que delas faz uso. Nesta pesquisa, o vídeo está circunscrito aos objetivos da antropologia visual: transcrever, através da imagem e do som, as práticas e representações sociais do grupo Grão de Mostarda. No caso do tema estudado, o foco foi a construção da identidade deste grupo de mulheres 165 com 60 anos ou mais, enfatizando as relações interpessoais, suas diferentes modalidades de sociabilidade, e a relação com a natureza. Para elas, o vídeo tem uma função clara: registrar as informações sobre o uso de plantas medicinais e seus valores comuns, de forma a possibilitar a comunicação à sociedade sobre o trabalho que fazem. A maneira escolhida para esta representação é a construção de uma narrativa sobre a história de constituição do grupo e da Rede a partir do discurso de suas integrantes. A ferramenta de registro não poderia ter sido mais apropriada. Além de permitir um registro preciso sobre práticas curativas com plantas medicinais – receitas, técnicas, aspectos das plantas, etc –, foi uma escolha feliz para construir a relação pesquisador x pesquisado e possibilitar o uso do conhecimento gerado com a pesquisa para além dos muros da universidade. O objetivo desta pesquisa não foi validar a prática de um grupo social, nem analisar se o modelo pode ser usado para criação de políticas públicas ou não. Observei à medida que exercem uma função social de preservação e difusão de um bem cultural, as mulheres da Rede Fitovida mostram que indivíduos de mais idade são pessoas integradas à sociedade através de sua capacidade de associação e de realização de um projeto social. As integrantes do Grão de Mostarda responderiam à pergunta "é possível envelhecer sem se deixar influenciar pelas representações estereotipadas e caricaturais da velhice?", de maneira positiva. O dinamismo, a autonomia e a alegria de viver são alguns dos aspectos que podem ser comparados a outros grupos de pessoas com 60 anos ou mais e que reproduzem a "ideologia da Terceira Idade", conforme já foi analisado por vários autores que tratam do envelhecimento. Mas há outros dois elementos que devem ser somados: a prática da solidariedade e o posicionamento político que as caracteriza como um movimento social. Este conjunto é o que caracteriza os grupos da Rede Fitovida. Conforme ressalta A. Motta, quando se trata de envelhecimento da população pouco se fala na predominância feminina sob um ponto de vista que não seja estatístico e demográfico, mesmo sendo o envelhecimento uma questão global e particularmente feminina. No Brasil, são as mulheres que dão o tom dos grupos de terceira idade, exceto entre os movimentos reivindicatórios de aposentados (Motta, 1999:208). As mulheres com 60 anos ou mais estão em toda parte, respondem às rápidas transformações dos modelos familiares, ao enfraquecimento do Estado e à precariedade de políticas públicas que atendam às suas necessidades. No rápido processo de mudança no perfil demográfico, há agentes sociais e 166 institucionais que percebem as possibilidades lucrativas do consumo dos velhos, que estimulam a formação de grupos de natureza e fins variados que tecem grande parte da estrutura que está tornando os velhos cada vez mais visíveis na sociedade. No que diz respeito às camadas populares, as possibilidades de lazer e consumo da "Terceira Idade" são limitadas. Vale ressaltar que os estigmas desta etapa da vida estão vinculados à posição social que detém as pessoas de mais idade e que são aquelas das camadas populares as que dispõem de menos possibilidades de retardar a velhice e de combater seus sinais estigmatizantes. No caso dos grupos da Rede Fitovida, eles mesmos criam suas formas de interação social para além do âmbito familiar e são os protagonistas de um processo de geração e transmissão desse conhecimento. Tal experiência aponta para um campo no qual a visibilidade dos velhos não é tão explorada: o associativismo e da sociabilidade. A adesão ao trabalho voluntário no Grão de Mostarda, e presumo que em outros grupos da Rede, é motivada pelo fortalecimento de laços sociais. A transmissão do conhecimento sobre o uso de plantas medicinais ganha uma nova dimensão, além da familiar e individual que já ocorria independentemente da existência dos grupos e da organização em rede. As mulheres mais novas, adultas e maduras, e as mais velhas trocam o que sabem, aprendendo e ensinando, fortalecendo o espaço dos grupos como um local onde a reciprocidade é regra. Se entre os desafios dos grupos que integram a Rede está a captação de recursos, humanos e financeiros, para viabilizar os trabalhos, considero que as estratégias para atrair voluntários devem levar em conta as motivações individuais. A gratificação que cada uma é experimentada por meio dos laços afetivos e da construção de uma identidade positiva da mulher de 60 anos ou mais como detentora de um conhecimento valorizado. 167 REFERÊNCIAS ABREU, Regina – O livro que abalou o Brasil: a consagração de Os sertões na virada do século. História, Ciências, Saúde. Rio de Janeiro, V.5, pág. 103-110, 1998. ANVISA. Boletim Informativo. Ministério da Saúde, Brasília, N. 64, 2006. ARAÚJO, Melvina Afra Mendes de. Bactrins e quebra-pedras. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. São Paulo, V.4, n.7, pág. 103-110, 2000. ARAÚJO, Roberto Benzaquen de – Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. ASCH, Timothy. Porque e como os filmes são feitos.: Cadernos de Antropologia e Imagem/PPCISNAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº3, pp 85-99 , 1995. ATTIAS-DOFUT, Claudine. Sexo e Envelhecimento. In PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.) Família e Envelhecimento. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2004. BASSIT, Ana Zahira. Histórias de Mulheres: reflexões sobre maturidade e velhice. In MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.) Antropologia, Saúde e Envelhecimento. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. BERLINER, Roberto. Entrevista. In www.apessoa.com.br, Rio de Janeiro, 2005. BOLTANSKI, Luc. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1979. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BRITTO da MOTTA, Alda. Sociabilidades possíveis: idosos e tempo geracional. In: PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.). Família e envelhecimento. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2004. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Vol.2, São Paulo: Paz e Terra, 1996. __________ A sociedade em Rede. A era da informação, economia, sociedade e cultura. Vol. 1, São Paulo: Paz e Terra, 1999. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica. Antropologia e Literatura no século XX. Rio de Janeiro: ed. UFRJ, 1998. COELHO, Maria Cláudia. O Valor das Intenções. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. COLLEYN, Jean-Paul. Regard Documentaire. Paris: Editions du Centre G. Pompidou, 1993. 168 COUTINHO, Eduardo. Revelações sobre a vida e ponto final Entrevista In www.criticos.com.br , Rio de Janeiro, 2002. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. DAMATTA, Roberto. Conta de Mentiroso. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e da devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo, Cia. das Letras, 1996. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2005. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos (LTC), 1989. __________. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropológico. In: O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, Vozes, 1997. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: ed. Unesp, 1991. HECHT, Jennifer Michael. The Happiness Myth: why smarter, healthier and faster doesn't work. New York: Harper Collins, 2007. HENLEY, Paul. Cinematografia e Pesquisa Etnográfica. Cadernos de Antropologia e Imagem/PPCIS-NAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº9, pp 29-50, 1999. __________.Trabalhando com filme: cinema de observação como etnografia prática. Cadernos de Antropologia e Imagem/PPCIS-NAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº18, pp 163-189, 2004. LANDIM, Leilah e SCALOM, Maria Celi. Doações e Trabalho Voluntário no Brasil. Rio de Janeiro: Nau, 2000. LANDIM, Leilah. Experiência Militante: histórias das assim chamadas ONGs. In LANDIM, Leilah (org.) Ações em sociedade. Militância, caridade, assistência etc. Rio de Janeiro: Nau, 1998. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. LINS E BARROS, Myriam Moraes. Velhice na Contemporaneidade. In: PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.). Família e envelhecimento. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2004. LINS, Consuelo. O cinema de Eduardo Coutinho: uma arte no presente. Cadernos de Antropologia e Imagem/PPCIS-NAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº15, pp 39-51, 2002. __________ Imagens em Metamorfose. Eco/UFRJ, mimeo, 1998. 169 LORENZI, Harri et MATOS, Francisco José de Abreu. Plantas Medicinais no Brasil: nativas e exóticas cultivadas. São Paulo: Instituto Plantarum, 2002. LOYOLA, Maria Andréa. Médicos e Curandeiros – conflito social e saúde. São Paulo: Difel, 1984. MACDOUGALL, David. Mas afinal, existe realmente uma antropologia visual? Catálogo II Mostra Internacional do filme etnográfico. Interior Produções, Rio de Janeiro, 2004. __________Novos Princípios da antropologia visual. Cadernos de Antropologia e Imagem/PPCISNAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº21, pp 19-33, 2005. MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e Pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. São Paulo: ed. ANPOCS, 1996. MARTIN-BARBERO, Jésus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: EDUSP, 1974. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Farmácia Viva e Inclusão Social. Saúde, Brasil. N.124, Brasília, 2006. MOREIRA LEITE, Miriam Lifchitz. Análise de um documentário: Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho. Cadernos de Antropologia e Imagem/ PPCIS NAIUERJ, Rio de Janeiro, nº15, pp 177-181, 2002. MOTTA, Alda Brito da Motta. Gênero e Classe Social na análise do Envelhecimento. Cadernos Pagu Gênero em gerações. Campinas? Ed. Unicamp, 1999. __________ Sociabilidades possíveis: idosos e tempo geracional. In: PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.). Família e envelhecimento. Rio de Janeiro: FGV, 2004. __________Envelhecimento e sentimento de corpo. In MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.) Antropologia, Saúde e Envelhecimento. Rio de Janeiro: ed. Fiocruz, 2002. MOTTA, Flávia de Mattos. Velha é a vovozinha: identidade feminina na velhice. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998. NOVAES, Regina. Hábitos de doar: motivações pessoais e as múltiplas do espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Iser, 2002. __________ Santa Marta: duas semanas no morro, Cadernos de Antropologia da Imagem//PPCIS-NAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº2, pp 39-53, 1998. 170 NOVAES, Sylvia Caiuby. Imagem em Foco nas Ciências Sociais. In: Escrituras da Imagem/ NOVAES, Sylvia Caiuby [et al.] (orgs). São Paulo: Fapesp: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. PARENTE, André. O cinema amizade de Jean Rouch. Cadernos de Antropologia da Imagem/PPCIS-NAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº18, pp 21-27, 2004. PEIXOTO, Clarice Ehlers (org.). Família e envelhecimento. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2004. __________ Envelhecimento e Imagem: as fronteiras entre Paris e Rio de Janeiro. São Paulo: Annablume, 2000. __________. Caleidoscópio de Imagens: o uso do vídeo e sua contribuição à analise das relações sociais. In FELDMAN BIANCO e MOREIRA LEITE. Desafios da Imagem. Fotografia, Iconografia e vídeo nas ciências sociais. São Paulo: Papirus, 2001. __________ De volta às aulas, ou de como ser estudante aos 60 anos. In VERAS, Renato (org.). Terceira idade: desafios para o terceiro milênio. Relume-Dumará: UnATI/UERJ, 1997. __________ A imagem da velhice nas telas do cinema documentário. Cadernos Pagu, Campinas, v. 13, 1999. __________ Antropologia e filme etnográfico: um travelling no cenário literário da antropologia visual. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, 1999. __________. Memória em imagens: uma evocação do passado. In: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org.). Imagem e memória. Ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. PESAVENTO, Sandra. Paraísos Cruzados. In www.unicamp.br/siarq/sbh/paraisos_cruzados.pdf, Campinas, 2003. PIAULT, Marc. Real ou ficção: onde está o problema? In: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro(org.). Imagem e memória. Ensaios em Antropologia Visual. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. __________ Anthropologie et Cinéma. Paris: Editions Nathan, 2000. __________ Uma espera incesante. Jean Rouch (1917-2004). Cadernos de Antropologia e Imagem/ PPCIS-NAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº18, pp 17-21, 2004. __________ Antropologia e Cinema. Catálogo II Mostra Internacional do filme etnográfico. Interior Produções, Rio de Janeiro, 2004. 171 PINK, Sarah. Agendas interdisciplinares na pesquisa visual: reposicionando a antropologia visual. In Cadernos de Antropologia e Imagem/ PPCIS-NAI - UERJ. Rio de Janeiro, nº21, pp 61-87, 2005. QUEIROZ, Marcos. Estratégias de consumo em saúde entre famílias trabalhadoras. Cadernos de Saúde Pública, v. 9 (3), Rio de Janeiro: ed. Fiocruz, 1993. RADCLIFFE-BROWN. A Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis, Vozes, 1973. RIZZO OLIVEIRA, Elda. O que é Medicina Popular. São Paulo: Brasiliense, 1985. ROMERO, Sílvio – Compêndio de História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, Imago: 2001. ROUSSEAU, Jean-Jacques – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. RUBY, Jay. Is an ethnographic film a filmic ethnography?. Visual Communication, vol.2, nº2, 1975. __________. Exposing yourself: Reflexity, anthropology, and film. Semiotica, 1980. __________.Speaking for, speaking about, speaking with, or speaking alongside - an anthropological and documenary dilemma. Visual Anthropology Review, vol. 7, number 2, 1991. STOLLER, Paul. A respeito de Rouch: reinterpretando a cultura colonial na África Ocidental. Cadernos de Antropologia e Imagem/PPCIS NAI-UERJ, nº21, pp 97-115, Rio de Janeiro, 2005. SZTUTMAN, Renato. Jean Rouch: Um antropólogo cineasta. In Escrituras da Imagem/ NOVAES, Sylvia Caiuby [et al.] (orgs) - São Paulo: Fapesp: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. VIANNA, Letícia. Movimentos musicais e identidades culturais no contexto da cultura de massa no Brasil: uma reflexão caleidoscópica. In TRAVANCAS, Isabel, FARIAS, Patrícia (orgs.) Antropologia e Comunicação. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. WERNER, Robert. A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2000. 172 A pessoa é para o que nasce. Produção de Roberto Berliner. TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil. 2003. DVD (83 min). son., color. Bebela e a revolução gaúcha de 1923. Produção de Clarice Ehlers Peixoto. Rio de Janeiro, Brasil, 2004. Vídeo cassete (36 min.) VHS son., color. Cabra Marcado para morrer. Produção de Eduardo Coutinho, Brasil. 1985, Videocassete (119 min.) VHS son., color. Casa Grande e Senzala. Produção de Nelson Pereira dos Santos. Videofilmes, Brasil. 2000, DVD (240 min) son.,color. Em busca do pequeno paraíso.Produção de Clarice Ehlers Peixoto. Brasil. 2000. Videocassete (26 min), VHS, son. color. Jean Rouch: Subvertendo fronteiras.Produção de Ana Lucia Ferraz, Edgar da Cunha, Paula Morgado e Renato Sztutman. LISA. São Paulo, Brasil. 2000. DVD (50 min.) son., color. O fim e o princípio. Produção de Eduardo Coutinho. Vídeofilmes. Rio de Janeiro, Brasil. 2005. DVD(110 min.), son., color. O Homem Urso (Grizzly Man). Produção de Werner Herzog. EUA. 2006. DVD (103 min.), son., color. O Santo rebelde. Produção de Érika Bauer. Brasil. 2006. DVD (74 min.), son.color. Santa Marta: duas semanas no morro. Produção de Eduardo Coutinho, Rio de Janeiro, Brasil. 1987. Videocassete (50 min.) VHS, son., color.