Entre nativos digitais e fossos geracionais. Questionando acessos, usos e apropriações dos novos media por crianças e jovens Cristina Ponte ([email protected])1 Daniel Cardoso ([email protected])2 Baseada em resultados de um estudo comparado entre 21 países europeus promovido pela rede europeia EU Kids Online (www.eukidsonline.net) e nos quais Portugal participou e em inquéritos recentes feitos no país sobre como crianças e jovens usam os meios de comunicação, entre eles a Internet, esta comunicação pretende delinear em traços largos os perfis dos jovens como utilizadores activos das novas tecnologias de informação. A par dos usos dos jovens, é também analisada a forma como os pais e a família percepcionam oportunidades e riscos, como fazem a gestão do acesso dos mais jovens aos media e até que ponto estão em contacto com a realidade dos "nativos digitais" – o "fosso geracional" ganha contornos mais definidos. Palavras-chave: EU Kids Online; Crianças e Internet; Educação para os Media; Infoinclusão; Info-exclusão; Info-integração Um olhar para o fosso (geracional) Um pouco por todo o mundo, muito se tem falado na barreira digital entre os mais novos e os mais velhos. Presume-se, no geral, que as crianças são os nativos digitais, ao passo que os pais são os imigrantes. No caso da Europa, isto é especialmente verdade para a faixa etária entre os 12 e os 17 anos, que coloca os adolescentes como os pioneiros digitais, de acordo com o recente relatório, promovido pela rede do EU Kids Online, que compara as oportunidades e os riscos associados ao uso da Internet pela Europa fora (Hasebrink et al, 2008:116). Isto deve levar-nos num caminho de descoberta: como se lida com este fosso geracional? Como ensinar tanto a adultos como a jovens a forma como lidar com os novos media, com a Web 2.0, e com os receios que muitas vezes rodeiam este assunto? Este relatório traça de forma geral a maneira como os jovens (menores de 18 anos) dos 21 países participantes lidam com a Internet. Para facilitar a análise, os países foram divididos em três grupos, usando como diferenciador a percentagem de crianças 1 Departamento de Ciências da Comunicação, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Coordenadora do Projecto EU Kids Portugal. 2 Assistente de pesquisa do Centro de Investigação Media e Jornalismo; Colaborador do Projecto EU Kids Online Portugal. que usam a Internet. Portugal encontra-se no terceiro grupo, com uma taxa de utilização inferior a 39%, ao lado de países como a Bulgária, o Chipre, a Itália, a Grécia e a Espanha. Ainda assim, concluiu-se que este não é o factor mais determinante em qualquer diferenciação de perfil de uso que possa existir, e o mesmo se aplica para a forma como os pais encaram as oportunidades deste meio de comunicação. Diz o relatório: “De forma geral, quando obtêm acesso (e competência) [no uso da Internet], pode concluirse que as crianças de todos os países dão prioridade à comunicação online, a várias formas de entretenimento e brincadeiras, bem como acesso a informação, enquanto que para os pais, os possíveis benefícios educativos situam-se mais acima nas suas prioridades” (Hasebrink et al, 2008: 26). Convém também notar que, de acordo com os (poucos) dados disponíveis internacionalmente, as competências para lidar com a Internet sobem com a idade, levando assim a um aumento da auto-protecção (muito embora não possamos descontar que alguns adolescentes se “esquecem” convenientemente de tomar as necessárias precauções, em busca da emoção do risco). Portugal: os fossos na escola e em casa Estamos actualmente num período de forte investimento tecnológico, com a distribuição de portáteis a quase todos os níveis de ensino, bem como várias outras iniciativas, particulares e privadas, cujo objectivo é aumentar o acesso à Internet e ao computador. E apesar de isto se coadunar com o processo de modernização que Portugal embarcou com a abertura da sua sociedade no fim da ditadura do Estado Novo, a verdade é que este país ainda reproduz alguns dos padrões de desenvolvimento prémoderno, como se pode ler no relatório que a equipa portuguesa apresentou para o Projecto EU Kids Online (Hasebrink et al, 2007). É ao nível da escolaridade que este ponto mais se torna saliente: segundo dados de 2006, os adultos em idade de serem pais tinham em média cerca de 8 anos de escolaridade, apenas. É entre os 16-24 anos de idade que encontramos a maior percentagem de utilizadores – 83%, segundo os dados de 2007 da OBERCOM. Estes dados são importantes para percebermos que relação se estabelece entre jovens, pais e as novas tecnologias. Porém, é na escola que mais de metade das crianças portuguesas tem o seu primeiro contacto com a Internet, sendo que esta instituição tem uma “relevância estratégica no que toca à promoção e aumento da literacia para os media e à luta contra a info-exclusão” (Cardoso et al, 2007: 113). E o que se tem assistido é a um discurso que segue uma abordagem top-down, em que as crianças são enquadradas como recipientes essencialmente passivos de conteúdos (ou tecnologias) e de formação (que é essencialmente focada nas tarefas escolares e de recolha de informação). Os dados mais recentes A ERC levou a cabo, durante o ano de 2007, uma sondagem representativa do panorama português, que foi depois complementada com um estudo que abrangeu crianças (e respectivos pais) de onze escolas públicas da área da Grande Lisboa. Os resultados, em conjunto, permitem uma primeira avaliação significativa de, por um lado, a forma como o país em geral se relaciona com as novas tecnologias (neste caso específico, na faixa dos mais jovens) e, por outro, de avaliar as diferenças entre esse panorama nacional e aquela que é provavelmente a região mais dinâmica e mais infoincluída do país. Em linha com o que foi mencionado anteriormente, uma das diferenças mais evidentes é a média de escolaridade dos pais: na sondagem nacional, mais de 60% dos pais não ultrapassa os nove anos de escolaridade e apenas 11,5% têm mais de doze anos de carreira escolar; o estudo feito na Grande Lisboa apresenta uma demografia semelhante em termos etários, mas com 46% dos pais a terem frequentado o ensino secundário e 23% o ensino superior. Vendo as coisas por outro prisma, 96% dos pais da sondagem nacional que têm o ensino superior usam a Internet (contra 22,5% dos pais que apenas têm o ensino básico); na Grande Lisboa, 75% dos pais usam o PC, e 62,5% referem que a Internet é a actividade mais frequente. Do questionário levado a cabo na área da Grande Lisboa, podemos retirar outros números interessantes: - 70% das crianças envolvidas (que vão dos 9 aos 14 anos de idade) dizem utilizar a Internet de forma frequente em casa, sendo que cerca de 41% das crianças não a usam em casa de amigos nem na escola; - Metade das crianças colocam-se na posição de quem mais sabe sobre a Internet em casa, à frente dos pais, mães e irmãos; porém, na faixa dos 9-11 anos, os pais recusam esta visão, e colocam-se a si mesmos como quem mais entende do assunto. Curiosamente, são as raparigas entre os 12 e os 14 anos quem mais vê as suas competências validadas pelo encarregado de educação; - 43% das crianças dizem ter aprendido a usar a Internet sozinhas, sendo outras influências a do grupo de pares da mesma faixa etária e a dos irmãos, ao passo que a influência de pais e professores vem muito mais abaixo na escala (cerca de 15%); - As três maiores preocupações dos pais no que toca ao uso da Internet focam-se na possibilidade de o filho conhecer estranhos (89,3%), dar informação sobre dados pessoais (75,9%) e visitar sites pornográficos (70,6%), sendo que convém notar que, em todas as três categorias, o grupo que suscita as maiores preocupações é também aquele que se considera mais competente, isto é, as raparigas entre os 12 e os 14 anos. As actividades que mais ocupam os jovens são também mal avaliadas pelos pais, mostrando aqui uma falta de contacto fundamental entre aquelas que são as experiências reais do uso da Internet pelos filhos e a percepção dos pais. Gráfico 1: O que faz a criança na Internet, segundo pais e filhos (%) Visita sites de tempos livres Visita sites para rir Visita sites pornográficos Publica fotos ou informações Cria sites ou blogs Pais Faz download de software Filhos Faz download de músicas Faz compras Jogos on-line Procura informação Trabalhos de casa Envia e recebe e-mails Conversa no MSN Conversa no Chat 0 20 40 60 80 100 Fonte: Ponte & Malho (2008) O que aqui se pode ver é que, à excepção do MSN, os usos relacionados com a comunicação e o lazer são claramente ignorados pelos pais, que se preferem concentrar na procura de informação e nos trabalhos de casa, para um uso mais instrumental e normativo da Internet. Isto deixa de lado todo um nível de possibilidade de envolvimento social e cultural, comunicativo, cujo peso é – julgando pela frequência de uso – muito mais importante para estes jovens. Mas há algo mais que deixa de lado, e que merece especial atenção. Foi anteriormente dito que a terceira maior preocupação dos pais se prendia com a possibilidade de os filhos acederem a conteúdos pornográficos. Porém, apenas 0,7% dos encarregados de educação que responderam ao estudo acham que os filhos acedem por sua livre iniciativa a conteúdos pornográficos na internet – na verdade, as filhas, neste caso, já que todos os que tinham rapazes a seu cargo disseram que estes não o faziam de todo – o que choca claramente com os 11,1% de jovens que o afirmaram fazer. O resultado disto parece ser bipartido: por um lado, maior info-inclusão não significa automaticamente que os pais estejam mais inteirados do que a Internet significa para os filhos (e, portanto, necessariamente mais bem preparados para lidar com riscos e oportunidades online); por outro lado, os pais parecem focar-se num discurso do uso idealizado (para eles), que acabará sempre por condicionar as respostas educativas dadas por estes. E isto poderá, por vezes, levar a efeitos negativos no que toca à educação para os media e à relação que o jovem pode estabelecer com as novas tecnologias. Da info-inclusão à info-integração A ideia de info-inclusão aborda os novos media de forma essencialmente estatística e estática. Olhar para o número de computadores per capita, ou para o número de pessoas com Internet de banda larga em casa tem certamente interesse quantitativo. Certamente que estes parâmetros influenciam o uso das TIC. Mas não será por isso que têm que se tornar a medida principal ou central da relação entre pessoas e tecnologias de comunicação. Preferimos, face a esta questão, introduzir um novo conceito que, cremos, será uma ferramenta analítica mais adequada – o conceito de info-integração. O que é a info-integração? Queremos com este termo sublinhar a forma como os utilizadores interagem a um nível pessoal e social com as tecnologias de informação e com os novos media, como as usam para alterar a sua visão do mundo, a sua vida. A info-integração não se refere a nenhuma competência técnica específica, mas ao nível de interacção humano/tecnologia, e como o primeiro elemento reage em conjunto com o segundo. O que o conceito de info-integração tenta avaliar (ao invés de medir) é como as pessoas se relacionam com a tecnologia, e como essa relação é considerada pelas pessoas como fazendo parte delas mesmas. A tecnologia é integrada em nós mesmos, como parte do que é ser social, ser pessoa, para além de um savoir-faire técnico. Evitamos assim o falso dualismo real/virtual; aliás, como o Projecto EU Kids Online identificou, “a pesquisa deve afastar-se da simplista polarização entre “real” e “virtual” ou entre offline e online, para poder identificar as intersecções e influências mútuas [entre estes dois campos]”. Desafios na abordagem à educação para os media Tanto a info-inclusão como a info-integração podem considerar-se factores a ter em conta na educação para os media, em especial no contexto criado pela Web 2.0, que nos tem vindo a mostrar cada vez mais que tipos diferentes de ferramentas e estilos de vida podem interagir. Por outro lado, temos também que ter em conta um factor que, por vezes, fica fora do discurso relacionado com a Internet, especialmente nos media noticiosos – o agenciamento dos jovens. Crianças e adolescentes não são receptores passivos de conteúdos, e a utilização das ferramentas e informações online pressupõe um elevado nível de interactividade, selecção e acção pessoal. Eles podem escolher o que mais lhes agrada, aquilo que mais querem usar – e fazem-no. Aqui, o ponto-chave é o empowering: fornecer os dados e ferramentas cognitivas necessárias para que os jovens possam aproveitar melhor a sua relação com os novos media e evitar os perigos indesejáveis. Isto requer um esforço permanente e progressivo, adaptado às diferentes idades e perfis de utilização. É precisamente partindo daquilo que os jovens já fazem no seu diaa-dia com os media que podemos construir uma base de educação para os media mais forte e duradoura. A equipa portuguesa do EU Kids Online está incorporada numa plataforma que pretende precisamente responder a esta e outras problemáticas, fazendo parte de um grupo de trabalho para a formação de jovens formadores, juntamente com o IPJ, a FDTI, a Associação Mulheres Contra a Violência, entre outras ONG’s da área dos direitos da Criança e afins. A premissa de base é precisamente formar jovens para treinar jovens. Ultrapassando a um primeiro nível a barreira da falha geracional ao usar formadores com idades não muito diferentes dos formandos, obtém-se uma maior empatia e consonância (de linguagem, de usos, de percepções) entre uns e outros. Ao invés do modelo top-down, de transmissão cega de informação, desenha-se então um modelo bottom-up, reticular, de criação e recriação de informação, educação e info-integração a um mesmo nível. O foco principal irá recair sobre a união dos elementos técnicos com os elementos sociais. Os formadores terão a preocupação de adaptar as explicações às vivências práticas dos formandos, questionando-os sobre que vivências são essas, encorajando-os a falar, a perguntar, a responder, ao invés de prescrever um padrão de comportamento normalizado. Mesmo a exploração que possa ser mais técnica será sempre abordada de um ponto de vista prático, e percorrerá todo o curriculum subordinado aos usos em si, com ligações entre os vários pontos a serem apresentados. Também o local é importante: o grupo quer afastar os jovens das típicas zonas de enquadramento de poder do adulto (como a sala de aula) que obstam a este nivelar da posição dos vários actores sociais, que colocam o jovem como inferior hierárquico, como aluno, como (alguém) sujeito. Será ademais necessário que os espaços estejam bem fornecidos em termos de equipamentos: quer-se aqui uma iniciativa da ordem do fazer, não da ordem do ouvir, não da ordem do receber. Um outro factor a ter em conta no contexto da educação para os media é a mediação parental. De acordo com o estudo internacional do Projecto EU Kids Online, baseado neste ponto em resultados de 17 dos países, a principal forma que os pais usam para lidar com a questão da utilização da Internet é através de restrições de tempo (resposta de 11 desses 17 países, dos quais 9 dizem ser a forma mais importante de mediação). Vem depois a supervisão/controlo; falar com as crianças e ensiná-las sobre boas práticas online não vem senão em terceiro lugar, pelas respostas de 8 países. Ainda assim, outros dados ligados a este terceiro lugar levantam novas dúvidas, diz-nos o relatório dos estudos. Na República Checa, por exemplo, 82% dos pais disseram falar com os filhos sobre como usar a Internet com segurança; mas apenas 39% das crianças dizem que os pais falaram com elas. Podemos também recorrer a uma conclusão interessante sobre Portugal: conforme vão crescendo, os jovens portugueses vão sendo alvo de cada vez maior controlo parental, ao invés de menor, e em oposição ao que se concluiu em 11 outros países da Europa. Espalhar informação, espalhar integração Pelo acima exposto, pode concluir-se que a educação para os media e o empowering das crianças e jovens é um assunto complexo e multifacetado. E que não são apenas os jovens que irão receber formação a beneficiar dela – devido precisamente à natureza reticular dos mecanismos de comunicação que as novas tecnologias vêm espalhar, os grupos de pares, os pais, professores, irmãos, etc, poderão beneficiar indirectamente. E conforme os jovens se vão tornando info-integrados, conforme a tecnologia passa a fazer parte deles, da vida deles, também mais facilmente se poderá tentar encetar um movimento de convergência que sane esta falha (geracional) e outras semelhantes. Queremos partir de um ponto de cisão bipolar entre os supostos jovens que não largam os seus computadores e os supostos adultos que nem sequer se aproximam deles (como nos diz o estereótipo) para uma intersecção destes dois pontos. E isso não tem que ser especialmente complicado: apesar de tudo o que se diz sobre o alheamento e isolamento dos jovens, o facto é que os seus usos da Internet são eminentemente sociais, e são-no de forma muito vincada. Ainda assim, uma parte do trabalho cabe aos pais. São eles que têm que contactar mais directamente com a forma como os seus filhos usam estes dispositivos, são eles que têm que procurar uma maior compreensão para compensar uma menor proibição, tentando entender a óptica do jovem que usa as novas tecnologias como qualquer outra parte da sua experiência do quotidiano. É agora necessário substituir o paradigma do controlo parental por uma racionalidade dos bons usos, do empowering, que esteja a par da fluidez comunicativa da Internet. No fundo, é essencial manter viva a ideia de que não podemos nem queremos eliminar o risco da experiência dos jovens, sob pena de afectarmos negativamente o seu desenvolvimento e as suas competências para lidar com conteúdos que possam achar nocivos. E, também, saber – académica e jornalisticamente – ver o que são efeitos da Internet e das novas tecnologias e o que são efeitos do contexto social mais abrangente, no que toca a comportamentos e atitudes. Precisamente porque a dicotomia entre real e virtual não existe, muito do que vemos online tem já uma expressão (e, por vezes, causa) que não se prende, de todo, com as novas tecnologias. Tentar utilizá-las como causa de algo não-relacionado vai apenas afastar-nos da resposta a alguns dos desafios que a tecnologia nos coloca. Os esforços para educar e preparar os jovens (e também os adultos) para estes novos media têm que ser alargados e alinhados com a pesquisa disponível, permitindo a cada geração – a cada pessoa, até – ter a sua própria relação com a tecnologia de informação, dentro de um paradigma de pluralidade ao invés de um paradigma de controlo. Referências bibliográficas Cardoso, G., Espanha, R., & Lapa, T. (2007). E-Generation: os usos de media pelas crianças e jovens em Portugal. Lisboa: CIES/ISCTE. Hasebrink, U., Livingstone, S., Haddon, L. (2008) Comparing children’s online opportunities and risks across Europe: Cross-national comparisons for EU Kids Online. London: EU Kids Online (Deliverable D3.2). Hasebrink, U., Livingstone, S., Haddon, L., Kirwill, L., & Ponte, C. (2007). Comparing Children's Online Activities and Risks across Europe. A Preliminary Report Comparing Findings for Poland, Portugal and UK. London: London School of Education, Project EU Kids Online. Ponte, C., & Malho, M. J. (2008). Crianças e jovens. In J. Rebelo (Ed.), Estudo de Recepção dos Meios de Comunicação Social Lisboa., Entidade Reguladora da Comunicação