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PREFÁCIO
por Mário Soares
José Augusto Seabra foi um português singular. Sob muitos aspectos. Filho de uma família
modesta, do norte, fez o seu curso de Direito em Lisboa. Foi na Faculdade que participou nas lutas
político-académicas da época, em plena ditadura salazarista, tendo sido dirigente da Associação de
Estudantes da Faculdade de Direito de 1959 a 1961.
Esses anos agitados foram os do rescaldo da candidatura frustrada do General Humberto
Delgado a Presidente da República, acontecimento que provocou uma enorme agitação política e
social em Portugal. 1961 foi o ano de todos os desastres para Salazar: o início das guerras coloniais,
com a revolta sangrenta nas prisões de Luanda; o rapto do navio Santa Maria, dirigido pelo
destemido capitão Henrique Galvão; a conspiração do general Botelho Moniz, que abortou antes de
se manifestar; a invasão - sem resistência - e a perda de Goa, Damão e Diu, o chamado Estado
Português da Índia, e, finalmente, a 31 de Dezembro de 1961, a revolta de Beja, com a morte de
um Secretário de Estado, vários feridos e muitos presos, o que poderia ter sido, se não fossem
circunstâncias fortuitas adversas, uma espécie de 25 de Abril, com 13 anos de antecipação.
De qualquer modo, o regime salazarista, obscurantista e despótico, ficou ferido de morte.
Todos os portugueses o sentiram assim e, particularmente, os jovens académicos, idealistas e
generosos, mais ou menos apanhados pela acção persistente do Partido Comunista, clandestino.
José Augusto Seabra foi um desses jovens. Exilado em França, terra generosa de
acolhimento, presidente da União de Estudantes portugueses em França, aceitou o convite para ir
para Moscovo, trabalhar na rádio "Portugal Livre", que emitia diariamente para Portugal e era,
religiosamente, ouvida na clandestinidade pelos anti-fascistas portugueses. Contudo, sujeito à
rigidez do sistema soviético a experiência que ali viveu, constituiu uma desilusão tremenda, que
marcaria a sua trajectória futura.
De regresso a França, José Augusto Seabra passou a ser visto não como um militante político
- que nunca deixou realmente de ser - nem, muito menos, como um jurista (a sua formação de
base) - mas como um escritor, um poeta de rara qualidade, um crítico e um ensaísta. Foi assim que
abriu caminho para fazer uma carreira académica, doutorando-se em estudos ibéricos, na
Universidade de Paris e, depois, sob a direcção de Roland Barthes, tendo apresentado uma tese
sobre os heterónimos de Fernando Pessoa na Universidade de Paris III Sorbonne Nouvelle, que
mereceu a menção honrosa de "muito bom" e as felicitações do júri".
Conheci José Augusto Seabra quando estudante da Faculdade de Direito de Lisboa. Salvo
erro, fui colega de curso da sua primeira mulher. Reencontrei-o depois, em Paris, como colega de
exílio. Era um jovem extremamente enérgico, de pequeno talhe, muito trabalhador, cintilante de
ideias, com uma grande e aguda inteligência.
Convivemos mais, depois, no regresso do exílio de ambos. Socialista - ou social-democrata,
que sempre foi - não se inscreveu no Partido Socialista, como seria de esperar, mas sim no Partido
Popular Democrata, de Francisco Sá Carneiro. Para isso, deve ter contribuído o facto de se ter fixado
no Porto - onde seguiu a sua brilhante carreira académica - e as amizades que estabeleceu na
cidade invicta.
No Porto, foi a alma e o refundador da "Nova" Renascença - revista de grandes tradições
literárias e culturais, onde escreveram intelectuais como Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoais,
Leonardo Coimbra, e muitos outros grandes escritores - e foi, laboriosamente, escrevendo e
construindo uma obra considerável de que destaco: os estudos (vários) sobre Fernando Pessoa, de
grande argúcia interpretativa, "Poligrafia poética", "O Coração do texto", "Cultura e Política ou a
Cidade e os Labirintos", "De exílio em exílio", memórias. Como inspirado poeta publicou: "A vida
toda", "O tempo táctil", "Democracia", "O Anjo", "Gramática Grega", "Perguntas do Delírio", "Do
nome de Deus", "Enlace", em colaboração com a professora Norma Tasca, sua mulher, "Sombra do
Nada" e "Amar a Sul".
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José Augusto Seabra foi fundador da Associação Portuguesa de Semiótica e membro de
vários Comités Científicos e de diversas Academias. Foi deputado e ministro da Educação do IX
Governo Constitucional. Foi então que mais convivi com ele e melhor o conheci. Foi ministro
esforçado, que se interessou muito pela difusão da educação cívica nas escolas e que realizou um
trabalho difícil, numa época particularmente conturbada.
O IX Governo foi o muito polémico Governo do Bloco Central, como foi chamado, ao qual
coube a ingrata tarefa de reequilibrar as contas públicas, como condição sine qua non para a adesão
de Portugal à então chamada CEE, Tratado subscrito em 12 de Junho de 1985. Poucos dias depois o
PPD/PSD retirava-se da coligação e o Presidente Eanes dissolvia a Assembleia da república,
provocando novas eleições.
José Augusto Seabra viveu esse período com grande intensidade. Amigo de Mota Pinto, que
morreu subitamente, menos próximo de Cavaco Silva, que lhe sucedeu, José Augusto Seabra foi
nomeado embaixador de Portugal junto da UNESCO (1986-92), que conhecia muito bem e depois,
sucessivamente, embaixador na Índia, na Roménia (onde o visitei e fez uma obra notável) e na
Argentina, onde atingiu o limite de idade.
O livro póstumo, que agora se publica, "Das Europas à Europa", tem a ver com a sua fé
ardente no projecto de construção europeia - projecto de paz, de reconstituição entre europeus, de
desenvolvimento sustentado. essencialmente político, social e cultural tanto ou mais do que
económico-financeiro - projecto em que acreditou a sério e para o qual deu uma importante
contribuição.
Por isso, seguramente, a professora Norma Tasca, sua mulher, tanto insistiu comigo para que
fizesse este modesto prefácio, que tanto me honra e de que lhe fico muito grato.
Lisboa, 14 de Julho de 2004
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