REVISTA JURÍDICA
MATER DEI
ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO
DE DIREITO DA FACULDADE MATER DEI
ISSN 1676-1278
Vol. 1 – nº 1 – jul./dez.2001 – semestral
PATO BRANCO - PARANÁ
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
1
REVISTA JURÍDICA MATER DEI
-
COMPOSIÇÃO
DIRETOR GERAL DA
FACULDADE MATER DEI :
EDITOR :
SUPERVISOR EDITORIAL :
CONSELHO EDITORIAL :
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
PROF. FLORI ANTONIO TASCA
PROF. DIRCEU ANTONIO RUARO
PROF. ANDREY HERGET
PROF. CÉLIO ARMANDO JANCZESKI
PROF. FERNANDO ELEUTÉRIO
PROF. GENÍRIO JOÃO DE FÁVERO
PROF. GÉRI NATALINO DUTRA
PROF. JEDERSON SUZIN
PROF. JUAREZ MATIAS SOARES
PROF. MANOEL JÚLIO GARCEZ SEGANFREDO
PROF. NILSON DE FARIAS
PROF. NORIVAL JOÃO CENCI
PROFª. ROSANGELA APARECIDA MARQUEZI
PROF. RUDI RIGO BÜRKLE
CONSELHO CONSULTIVO :
PROF. DR. ABILI LÁZARO CASTRO DE LIMA (UFPR)
PROF. MS. ALCÍDIO SOARES JÚNIOR (UEPG)
PROF. MS. ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA (CESCAGE)
PROF. DR. ALVACIR ALFREDO NICZ (UFPR)
PROF. DR. CLAYTON REIS (UEM)
PROF. DR. EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE (UFPR)
PROF. DR. ELIMAR SZANIAWSKI (UFPR)
PROF. MS. EROULTHS CORTIANO JÚNIOR (UFPR)
PROF. MS. JOÃO PAULO CAPELLA NASCIMENTO (UEPG)
PROF. DR. JOSÉ ANTONIO PERES GEDIEL (UFPR)
PROF. MS. JOSÉ ROBSON DA SILVA (UEPG)
PROF. MS. JOSÉ SEBASTIÃO FAGUNDES CUNHA (CESCAGE)
PROF. DR. LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT
PROF. DR. LUIZ EDSON FACHIN (UFPR)
PROF. DR. LUIZ GUILHERME BITTENCOURT MARINONI (UFPR)
PROF. DR. LUIZ RODRIGUES WAMBIER (UEPG)
PROF. DR. MANOEL EDUARDO ALVES DE CAMARGO E GOMES (UFPR)
PROFª. DRª. SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO (UEPG)
PROFª. DRª. TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER (PUC-SP)
REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
PROFª. ROSANGELA APARECIDA MARQUEZI
VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA:
PROFª. THELMA BELMONTE
CAPA:
ROSANA M. CAMPESTRINI RAVANELLI
DIAGRAMAÇÃO:
PROF. GÉRI NATALINO DUTRA
SECRETÁRIA EDITORIAL:
MARISOL TOMASINI DUTRA
R454
Revista Jurídica Mater Dei / Faculdade Mater Dei
Pato Branco-PR, 2001-10-24
Peridiocidade semestral
ISSN 1676-1278
1. Direito – Periódicos.
CDD: 20.05
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
2
FACULDADE MATER DEI
ESTRUTURA ADMINISTRATIVA
DIRETOR GERAL:_______________________________________________________
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
______________________________________________________________________
VICE-DIRETORA GERAL: ________________________________________________
PROFª. IVONE MARIA PRETTO GUERRA
______________________________________________________________________
DIRETOR ADMINISTRATIVO: _____________________________________________
PROF. JUAREZ MATIAS SOARES
______________________________________________________________________
SECRETÁRIO ACADÊMICO: ______________________________________________
PROF. DIRCEU ANTONIO RUARO
______________________________________________________________________
SECRETÁRIO FINANCEIRO: ______________________________________________
PEDRINHO DE BORTOLI
______________________________________________________________________
BIBLIOTECÁRIA:________________________________________________________
BERENICE DE LIMA RODRIGUES
______________________________________________________________________
COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO: __________________________________
PROF. FERNANDO ELEUTÉRIO
______________________________________________________________________
NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS: _______________________________________
DR. ANDREY HERGET
DR. JEDERSON SUZIN
______________________________________________________________________
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
3
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
4
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...........................................................................................................................................
7
EDITORIAL ......................................................................................................................................................
8
ARTIGOS .........................................................................................................................................................
9
UMA PROPOSTA EM TORNO DO CONCEITO DE JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE –
LUIZ RODRIGUES WAMBIER ......................................................................................................................
9
OBRIGAÇÃO PROPTER REM E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE –
JOSÉ ROBSON DA SILVA ............................................................................................................................
19
DIREITO CIVIL EM TRANSFORMAÇÃO:
BREVE LEITURA A PARTIR DA OBRA DE MAX WEBER - FLORI ANTONIO TASCA .............................
62
A POSSE COMO FATO SOCIAL - ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA .........................................................
80
ALIMENTOS ENTRE CONVIVENTES: UMA ANÁLISE CRÍTICA - JÚLIO CÉSAR BACOVIS ................... 128
O DANO MORAL E A JUSTIÇA DO TRABALHO. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES –
ALCÍDIO SOARES JÚNIOR ........................................................................................................................... 152
DA RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO E DO SERVIÇO E A RESPONSABILIDADE
PELO VÍCIO DO PRODUTO E DO SERVIÇO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR –
JOÃO FLÁVIO MADALOZO ........................................................................................................................... 161
ASPECTOS DA HERMENÊUTICA CONTRATUAL NO DIREITO DO CONSUMIDOR –
MARIA CLAYDE ALVES PACE ...................................................................................................................... 176
ANÁLISE DO CONCEITO DE CRIME - FERNANDO ELEUTÉRIO ............................................................. 183
TENTATIVA DE DELITO. TIPO PRÓPRIO. PENA - FRANCISCO CARLOS JORGE ................................ 195
UMA VISÃO CRIMINOLÓGICA DO ADOLESCENTE INFRATOR - RUDI RIGO BÜRKLE ........................ 212
A RESPONSABILIDADE PENAL DOS MENORES NA ESPANHA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE - JOSÉ SEBASTIÃO FAGUNDES CUNHA ...................................................................... 222
PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: IMPOSTO SOBRE A RENDA E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O
LUCRO - LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT ...................................................................................... 236
REQUISITOS PARA A ADMISSIBILIDADE DO PROCESSO: BREVE ESTUDO - FERNANDO VOIGT ... 244
v
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
5
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
6
APRESENTAÇÃO
A presente publicação, vinculada ao Curso de Direito da Faculdade Mater Dei,
visa oferecer à comunidade jurídica do Sudoeste do Paraná espaço permanente para a
divulgação dos estudos concernentes à Ciência do Direito, em suas mais diversas
manifestações.
Três objetivos norteiam a Revista Jurídica Mater Dei : 1º) a publicação de
artigos pertinentes à pesquisa, extensão e epistemologia do direito; 2º) a difusão da
produção científica do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei; 3º) a propiciação do
debate teórico e pragmático sobre novas tendências do Direito Contemporâneo.
Com periodicidade semestral, a revista pretende ser um valioso instrumento
para a interlocução entre o corpo docente e discente do Curso de Direito da Faculdade
Mater Dei com todos aqueles que se dedicam ao estudo e à prática do Direito.
Em sua composição, a Revista Jurídica Mater Dei envolve todos os Professores
do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei (Conselho Editorial), contando ainda com a
colaboração de renomados Professores de Direito (todos Mestres ou Doutores) de
outras Instituições de Ensino Superior, que integram seu Conselho Consultivo.
Com a publicação de textos atinentes aos mais variados ramos do Direito, a
Revista Jurídica Mater Dei resguarda e valoriza a pluralidade do pensamento,
pretendendo, assim, contribuir para o crescente aperfeiçoamento da Ciência Jurídica.
Assinale-se, porém, que as idéias expostas nos artigos são de exclusiva
responsabilidade de seus autores, não expressando, necessariamente, a opinião da
Instituição.
Oxalá possa a Revista incentivar e fortalecer a produção científica do Corpo
Docente da Faculdade Mater Dei e dos demais profissionais e estudiosos do Direito,
todos comprometidos com a elaboração de um novo saber jurídico, que atenda as
expectativas sociais do novo milênio.
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI
v
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
7
EDITORIAL
Para além de reproduzir um conhecimento dogmático e estagnado, a missão de
um Curso Superior, notadamente de um Curso Jurídico, é construir um conhecimento
atento às mudanças sociais da humanidade neste momento histórico, sendo o periódico
científico, por seu alcance e dinamismo, um valioso instrumento para a construção e a
transformação da Ciência do Direito.
O Direito é dinâmico, transforma-se diuturnamente pelas novas exigências
sociais, sendo missão da Revista Jurídica Mater Dei contribuir para a construção desse
"novo conhecimento jurídico" coerente com as demandas da sociedade do terceiro
milênio.
O Curso de Direito da Faculdade Mater Dei não está voltado apenas à formação
de Bacharéis em Direito, futuros profissionais de excelência, senão visa à formação de
cidadãos conscientes da necessidade de um atuar constante em prol da concretização do
"projeto social" enunciado pela Constituição Federal:
"[...] Instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias [...]"
No dizer de Edgar Morin, "a missão do ensino é transmitir não o mero saber, mas
uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que
favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre" ("A cabeça bem-feita repensar a reforma - reformar o pensamento", 2000, p.11).
Em um Curso Jurídico o ensino deve estar indissociavelmente ligado à pesquisa,
pois mediante a pesquisa científica o conhecimento é renovado, transformado,
oportunizando condições para a elaboração de uma visão crítica da realidade sóciojurídica, tão essencial na formação ética e técnica dos futuros Bacharéis e profissionais do
Direito.
Com tal visão, a Faculdade Mater Dei abre espaço para que seu Corpo Docente
(e colaboradores) concretize a necessária interlocução com a comunidade acadêmica e
jurídica do Estado do Paraná, em especial com seu Corpo Discente, aliando a pesquisa
ao ensino, certa de que está cumprindo seu dever.
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
EDITOR DA REVISTA JURÍDICA MATER DEI
v
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
8
ARTIGOS
UMA PROPOSTA EM TORNO DO CONCEITO DE
JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE
LUIZ RODRIGUES WAMBIER
Advogado no Paraná; Professor Associado do Curso de Graduação em Direito da
Universidade Estadual de Ponta Grossa e Professor Adjunto do Curso de Mestrado em
Direito da PUC/PR; Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina e Doutor
em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
RESUMO: O artigo trata da possibilidade de o relator de um recurso negar-lhe
seguimento quando estiver em confronto com a jurisprudência dominante do respectivo
tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça (artigo 557 do
Código de Processo Civil), salientando a polêmica em torno da norma que possibilita o
julgamento monocrático em casos que, tradicionalmente, deveriam ser submetidos a
julgamentos colegiados. O autor debate o conceito de jurisprudência dominante e, ao
final, apresenta proposta para uniformizar tal conceito levando em conta critérios
estatísticos e temporais da jurisprudência de dado tribunal, especialmente do Superior
Tribunal de Justiça.
ABSTRACT: The article deals with the possibility of a reporter of an appeal deny
pursuing to it when being in confrontation with the dominant jurisprudence of the
respective court, the Supreme Federal Court or the Court of Appeals (article 557 of the
Code of Civil Process), pointing out to the controversy around the rule that makes the
monocratic judgment possible in cases that, traditionally, should be submitted to
collegiate judgments. The author discusses the concept of dominant jurisprudence and,
at the end, presents a proposal to standardize such concept taking into account statistical
and temporal criteria concerning the jurisprudence of a particular court, especially of the
Court of Appeals.
O juízo de admissibilidade de qualquer recurso precede ao exame de seu
mérito, tanto sob o ponto de vista lógico, quanto sob o cronológico. De acordo
com o que sustenta NELSON NERY JÚNIOR1, os requisitos que devem ser
atendidos para que o juízo de admissibilidade dos recursos seja positivo se
1 Princípios fundamentais – teoria geral dos recursos, 5ª ed., p. 222.
__________________________________________________________________
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
9
situam no mesmo plano das condições da ação, “no procedimento já realizado
no primeiro grau de jurisdição”.2
Questão que surge em relação a isso diz respeito à redação do art. 557
do CPC. De acordo com esse dispositivo, o relator negará seguimento a recurso
manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com
súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo
Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.
À primeira vista, não fosse a inclusão da possibilidade de desprovimento
do recurso – juízo de mérito, portanto – que se infere do uso do vocábulo
improcedente 3, não haveria dúvida de que os poderes do relator se referem ao
exercício do juízo de admissibilidade. De fato, pode o relator negar seguimento a
recurso que se mostre inviável, do ponto de vista de seus requisitos intrínsecos
ou extrínsecos. Estes últimos, de natureza formal, referem-se ao preparo (i.é, ao
pagamento) das custas relativas ao recurso, à tempestividade, pois os prazos
dos recursos são peremptórios (isto é, são prazos inalteráveis, quer pela vontade
das partes, quer por determinação judicial4) e à regularidade relativa ao ato de
recorrer, nos termos do que dispõem os arts. 514, 523 e 541 do Código de
Processo Civil. Os requisitos intrínsecos dizem respeito à recorribilidade da
mesma, e são: o cabimento do recurso interposto pela parte, a legitimidade e o
interesse do recorrente e a ausência de fatos que o impeçam de recorrer.5
O problema que surge – e que se revela seriíssimo – diz respeito a
possibilidade de o relator julgar monocraticamente o mérito do recurso,
rechaçando-o, porque manifestamente “improcedente”. Da mesma forma contém
2 NELSON NERY JÚNIOR, op.et loc.cit.
3 Cuja escolha não é também das mais felizes, já que se trata de expressão atinente ao juízo de mérito de ações. Aos recursos se dá, ou
não se dá, provimento.
4 LUIZ RODRIGUES WAMBIER, FLÁVIO RENATO CORREIA DE ALMEIDA e EDUARDO TALAMINI, Curso avançado de processo civil,
vol. 1, 2ª ed., 2ª tiragem, p. 183.
5 O art. 881 do CPC, tratando do atentado praticado no curso do processo, estabelece uma vedação ao exercício do direito de recorrer
(i.é, um impedimento). Segundo esse dispositivo, só pode o réu “falar nos autos” (em nosso sentir, realizar qualquer ato processual) se
houver purgado o atentado. No mesmo sentido, com outro impedimento (e, portanto, nesse caso, ausente estaria requisito intrínseco
para recorrer) a regra do art. 503, segundo a qual a parte que aceitar expressa ou tacitamente a sentença, ou a decisão, não poderá
recorrer. Há, nessa hipótese, preclusão lógica, impeditiva do ato de recorrer.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
10
regra inusitada o parágrafo primeiro do mesmo art. 557, ao conceder poderes ao
relator para juízo de mérito positivo, isto é, para prover o recurso, se a decisão
recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.6
A questão, aqui qualificada de seriíssima, - porque de certo modo rompe
com a tradição dos julgamentos colegiados nos tribunais, ainda que se trate de
decisão recorrível – mereceu tal qualificação em razão da pouca probabilidade
de que se tenha conhecimento, com base em levantamentos estatísticos
confiáveis, daquela que seja a jurisprudência dominante num determinado
tribunal. Aliás, o problema é ainda maior, porque essa expressão –
jurisprudência dominante – é absolutamente fluida, indeterminada, sendo difícil
para a parte recorrente quantificar a jurisprudência a ponto de saber, com
desejável grau de probabilidade de acerto, se trata ou não de “dominante”.
Tem razão CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO7 quando sustenta existir
certa tendência de valorizarem-se os precedentes jurisprudenciais. Em seu
sentir, esse incremento caminha rente com o acréscimo de poderes em mãos do
relator. A nosso ver, todavia, essa constatação não elimina a necessidade de
que se encontrem parâmetros dentro dos quais se possa “conter” a expressão
jurisprudência dominante. É preciso que se saiba, com a ajuda da doutrina e,
sobretudo, que se uniformize nos vários tribunais, com clareza, quais
precedentes, e em que medida, podem servir de fundamento para decisões
singulares no juízo vocacionado para a colegialidade. Em resumo, é preciso
esclarecer o que pode estar contido na expressão jurisprudência dominante,
tanto no tempo, quanto no espaço. Decisões recentes? Havidas em que período
de tempo? Verificáveis após completa pesquisa em cada tribunal? Ou em cada
órgão fracionário?
6 Para ARAKEN DE ASSIS (Condições de admissibilidade dos recursos cíveis, Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de
acordo com a Lei 9.756/98, Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Júnior., p.13) a regra do art. 557, caput, abreviou o
julgamento colegiado do recurso, permitindo ao relator “a fiscalização de quaisquer requisitos de admissibilidade”.
7 O Relator, a jurisprudência e os recursos, Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei 9.756/98, Coord.
Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Júnior, p. 132.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
11
Com base na experiência (e em regra regimental) do Supremo Tribunal
Federal, PRISCILA KEI SATO8 faz tentativa de sistematização da matéria,
apontando critérios de que se serve o STF para considerar predominante a sua
jurisprudência e, com isso, traçar contornos mais definidos para o conceito vago
trazido pela Lei 9.756/98”9.
Segundo essa autora, existem dois critérios: o primeiro prevê a existência
“de mais de um acórdão que reflita aquele entendimento, ou unicidade de
decisão”.10 O segundo critério, em seu sentir, exige a decisão do Tribunal Pleno,
ainda que não tenha havido unanimidade de votos no julgamento da matéria.
Segue PRISCILA KEY SATO sugerindo que o STJ adote os mesmos
parâmetros, apenas com a observação de que, nesse tribunal, ao invés do
Órgão Pleno (que tem funções administrativas) tome-se a jurisprudência
dominante a partir das decisões de sua Corte Especial. Quanto aos Tribunais
Estaduais, sugere essa autora que adotem outros critérios, levando em conta a
quantidade de órgãos fracionários que tenham.
Em que pese o brilho da autora, a coragem de ter abordado tema tão
delicado e a excepcional contribuição trazida para o debate a respeito do tema,
parecem-nos insuficientes os parâmetros por ela traçados para delinear o
conceito de jurisprudência dominante. Imaginamos que melhor seria para a
sociedade (para as partes, portanto) que esse conceito fosse determinado no
tempo e no espaço, tendo como referencial, no caso do direito federal, apenas e
exclusivamente o Superior Tribunal de Justiça. Não é de competência dos
Tribunais Estaduais, do Tribunal Distrital ou dos Tribunais Regionais Federais,
definir, pela reiteração de seus julgamentos, o entendimento do Direito Federal.
Assim, não pode o relator de determinada matéria, no Tribunal de Justiça de
qualquer dos Estados (ou do Distrito Federal ou ainda dos TRFs), decidir
8 Jurisprudência (pre)dominante, Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, Nelson Nery
Júnior e Teresa Arruda Alvim Wambier, p. 583.
9 Op.cit.
10 PRISCILA KEY SATO, op.et loc.cit.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
12
monocraticamente (desnaturando, por assim dizer, a função colegiada dos
tribunais) e “dizer” o Direito Federal é aplicável à espécie.
Assim, as regras dos artigos 120, 544, 545 e 557 do Código de Processo
Civil, somente podem dizer respeito à competência do Superior Tribunal de
Justiça, pois seria inadmissível, do ponto de vista de sua competência para o
exercício “fracionado” da jurisdição, pretender que relator, em tribunal local,
negue seguimento “a recurso manifestamente inadmissível, improcedente,
prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do
respectivo tribunal,”11 a não ser quando se trate de lei Estadual ou Municipal. A
incumbência de dizer a última palavra sobre o Direito Federal é do STJ e, em
última análise, se o Tribunal Estadual o fizer, estará usurpando essa atribuição.
Assim, o relator, no Tribunal Estadual (Distrital ou Regional Federal) só pode
negar seguimento a recurso que estiver em confronto com Súmula ou
jurisprudência dominante do STJ, e, ainda mais, somente enquanto esse
confronto efetivamente existir, pois poderá haver mudança na posição adotada
pela Corte Especial do STJ, quando, então, deixará de ser dominante a
jurisprudência.
Está absolutamente equivocada a posição que vem sendo adotada por
setores minoritários da jurisprudência, no sentido de se negar seguimento a
recurso que confronte com a posição do tribunal local ou, pior ainda, de órgão
fracionário do tribunal local. Prevalecendo este entendimento, visível e
evidentemente equivocado, haverá quebra da ordem constitucional, justamente
em razão da usurpação de competência do Superior Tribunal de Justiça. Nem se
diga que o texto da lei confere poderes aos tribunais locais. Ao prever que possa
o relator negar seguimento a recurso que confronte com a jurisprudência
dominante do respectivo tribunal, a lei somente pode ter querido referir-se à
hipótese de existir jurisprudência local que não colida com aquilo que também no
STJ se tiver entendido como tal.
11 Art. 557, caput.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
13
Assim,
estão
absolutamente
equivocados
acórdãos
de
órgãos
fracionários que, usurpando função definida pelo texto da Constituição Federal,
decidem com base na “jurisprudência dominante” do próprio órgão. Nesse exato
sentido, confira-se a decisão proferida pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de
Alçada do Paraná. Nesse acórdão, cuja ementa refere-se à jurisprudência
dominante do tribunal, colhe-se, no corpo do voto do Juiz Relator, que “o tribunal
se manifesta através de seus órgãos fracionários, de modo que se a Câmara já
se pronunciou, em casos anteriores, sem qualquer divergência entre os
integrantes do quorum julgador, nada impede que o relator se utilize da
faculdade de negar seguimento ao recurso...”. Tratava-se de hipótese em que o
relator havia monocraticamente negado seguimento ao recurso, tendo sido
interposto agravo dessa decisão. De todo modo, essa Colenda Câmara do TAPR
entendeu que poderia aplicar, tanto pelo relator, monocraticamente, quanto pelo
julgamento colegiado, o seu próprio entendimento a respeito da matéria, tendo-o,
portanto, como jurisprudência dominante.12 A dúvida que permanece é, e se se
tratar de entendimento discrepante daquele que à mesma matéria (Direito
Federal) dê o STJ? E se no STJ ainda não houver jurisprudência dominante a
respeito?
Os
textos
legais
que
permitem
que
julgamentos
se
realizem
monocraticamente pelo relator certamente levam em conta, em primeiro plano, o
valor celeridade na prestação da tutela jurisdicional, matéria a que já nos
dedicamos noutro espaço, por considerá-la extremamente importante e, ao
mesmo tempo, profundamente perigosa, na exata medida em que privilegiar a
12 Ag. 148.196-7/01, j. 30/11/99.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
14
celeridade pode redundar em desprestígio para a segurança jurídica. Trata-se de
evidente conflito de valores, a respeito de que a sociedade deve refletir.13
Remanesce, todavia, sem completa resposta a questão do que seria a
jurisprudência dominante, a que alude o texto legal sob comentário.
A primeira questão seria, portanto, entender-se como dominante, em
matéria de Direito Federal, apenas a jurisprudência do STJ.
Nesse exato sentido decidiu recentíssimamente o próprio Superior
Tribunal de Justiça, por sua Segunda Turma. Segundo consta da ementa do
Acórdão de que foi relator o Min. FRANCIULLI NETTO, “A expressão
jurisprudência dominante do respectivo tribunal” somente pode servir de base
para negar seguimento a recurso quando o entendimento adotado estiver de
acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal, sob pena de negar às partes o direito constitucional de acesso
às vias ordinárias”.14
Quanto ao mais, pensamos que um critério aceitável para o
“preenchimento” desse conceito indeterminado seria sua delimitação no tempo.
É preciso um período referencial, para que se possa falar em jurisprudência
dominante. Assim, o entendimento da Corte Especial do STJ, a respeito da
interpretação do direito federal poderia considerar-se dominante se houvesse a
reiteração de decisões majoritárias daquela Corte, no mesmo sentido, na
proporção de 70% por 30%, durante o período de cinco anos (ou três anos, ou
dois anos, por exemplo, contados retroativamente. E poder-se-ia pensar na
flexibilização da questão, permitindo-se a subida de recurso ao STJ (e, portanto,
13 Liquidação de sentença, 2ª ed., p. 172. No texto indicado fizemos referência à problemática surgida com a adoção, pela jurisprudência, da objeção de
pré-executividade, para evitar que o executado deva submeter à penhora (e às suas conseqüências, por óbvio), bens em valor muito superior ao da
execução. Defendemos, naquele trabalho, que ao invés de remeter-se a matéria para os embargos do devedor, com fundamento no excesso de
execução, admita-se a objeção de pré-executividade, como expediente hábil a fazer com que a execução se dê exata e precisamente em razão do real
valor da dívida. A observação que lá fizemos, e que serve para demonstrar nossas reflexões a respeito do conflito celeridade versus segurança jurídica,
é a seguinte: “Tememos o risco que representa para um Estado-de-direito tão incipiente o sacrifício de garantias constitucionais a qualquer pretexto,
ainda que se trate de motivação nobre, como é a que deseja imprimir maior celeridade processual. Entre o processo rápido e que sacrifica garantias e o
moroso que as respeita integralmente, ficamos com o segundo, embora seja ideal e possível o encontro entre a celeridade e o respeito aos direitos
fundamentais de cada pessoa”.
14 RESp 193.189-CE, julgado em 20/06/2000, Informativo de Jurisprudência do STJ, n. 62, 19 a 23 de junho de 2000.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
15
a vedação ao ato do Tribunal Inferior, a teor do art. 557, com base na
jurisprudência dominante), na medida em que naquele Tribunal Superior
houvesse demonstração de tendência à alteração do entendimento, o que poderse-ia aferir pelo estreitamento das proporções entre um e outro entendimentos
(60% por 40%, por exemplo).
Se nos afastarmos de critérios numéricos, objetivamente aferíveis pelas
partes, pela tão só consulta à base estatística das decisões do Superior Tribunal
de Justiça, corremos o sério risco de que prevaleçam opiniões falsamente
dominantes, como seriam aquelas tomadas por Tribunal Estadual, com
fundamento num restrito número de acórdãos, tirados quando da presença num
ou noutro órgão fracionário, por exemplo, de um juiz convocado, mas que se
impõe pelo conhecimento e poder de convencimento de seus pares. Terminado
o período de sua convocação, pense-se na ocupação de seu lugar, no órgão
fracionário, por outro juiz, com outro entendimento a respeito do mesmo tema.
Qual seria, então, a jurisprudência dominante? E se houver nova substituição?
Haveria o Estado que indenizar a parte pelo julgamento açodado, equivocado,
tirado com base falsa, como se de jurisprudência dominante se tratasse? O fato
é que a sociedade não pode ser lançada à busca “mágica” do pensamento
dominante, sem que se lhe dêem parâmetros objetivos e temporais para tanto, e
que se lhe permita o acesso a dados organizados e quantificados pelos próprios
tribunais.
A adoção de critério de precedentes não se fará com seriedade, em
nosso sistema, se não houver uma base estatística confiável, que permita à
sociedade aferir objetivamente, longe dos humores deste ou daquele julgador,
qual efetivamente seja o pensamento dominante no STJ (e só nele, insistimos,
quando se tratar de interpretação do Direito Federal) a respeito daquela matéria,
num determinado período (período referencial).
Por outro lado, é necessário salientar que essa constatação da
jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça com base em dados
objetivos não é difícil de se fazer, mormente se levar em conta a excepcional (e
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
16
elogiável) condição em que se encontra o STJ do ponto de vista de sua
organização administrativa. A conquista da certificação ISO 9002 é um exemplo
eloqüente dessa condição15. O site do STJ na Internet é primorosíssimo. A busca
de informações é fácil e há dados disponíveis a respeito de tudo quanto se
queira obter. Poder-se-ia pensar numa “janela” naquele site a respeito da
jurisprudência dominante, que estivesse acompanhada dos acórdãos que a ela
dão sustentação e do referencial estatístico e temporal (x decisões nesse
sentido, à proporção de 70 por 30 [essa proporção é sugerida aqui], durante o
espaço de tempo y).
O mundo da informação – que cada vez é mais precisa – não mais
admite o “achismo”, expressão coloquial com que se pode definir a tendência
irrefreável do ser humano no sentido de tentar dar a palavra final a respeito de
qualquer assunto com fundamento em seus conhecimentos empíricos sobre o
tema.
Não se coaduna com a seriedade do serviço jurisdicional e sua
imprescindibilidade para o vigor democrático que a sociedade quer imprimir ao
Brasil, a circunstância de existirem decisões tomadas com base falsa, como se
de jurisprudência dominante se tratasse. Há que se construir uma base sólida,
confiável, para que a sociedade possa entender a legitimidade das decisões dos
tribunais (inclusive locais) nesse ou naquele sentido.
15 Segundo dá conta o noticiário do STJ, publicado por sua Assessoria de Imprensa, no site www.stj.gov.br/stj/noti.../detalhes, em 31/03/2000. Segundo
consta dessa nota, “O Superior Tribunal de Justiça é o primeiro tribunal superior do mundo a conquistar o cobiçado certificado ISO 9002, que só é
emitido quando são satisfeitos todos os requisitos estabelecidos segundo normas internacionais para modelos gerenciais, visando à melhora na
qualidade dos serviços” (...) “A certificação conquistada reconhece a qualidade e segurança dos trâmites dos processos da Secretaria Judiciária do STJ,
principalmente nas rotinas de autuação, classificação e distribuição das ações originárias, como habeas corpus, mandado de segurança, medida
cautelar, reclamação e suspensão de segurança. Esses serviços foram submetidos a uma rígida auditoria que verificou a excelência dos trabalhos de
acordo com normas internacionais, conhecidas como ISSO 9002/94”.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
17
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Araken de. Condições de admissibilidade dos recursos cíveis, Aspectos
polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei 9.756/98, Coord.
Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Júnior, 1ª ed., 2ª tiragem, São
Paulo: Revista dos Tribunais,1999.
DINAMARCO, Cândido Rangel. O relator, a jurisprudência e os recursos,
Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda
Alvim, Nelson Nery Jr e Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios fundamentais – teoria geral dos recursos, 5ª
ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,1999.
SATO, Priscila Key. Jurisprudência (pre)dominante, Aspectos polêmicos e atuais
dos recursos, Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, Nelson Nery Jr e
Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação de sentença, 2ª ed., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000.
WAMBIER, Luiz Rodrigues, CORREIA DE ALMEIDA, Flávio Renato, e
TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, vol. I, 2ª ed., 2ª tiragem,
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
18
OBRIGAÇÃO PROPTER REM E A FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE
JOSÉ ROBSON DA SILVA
Professor de Direito Civil, Agrário e Ambiental na Universidade Estadual de Ponta
Grossa. Advogado do Instituto Ambiental do Paraná. Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Paraná.
RESUMO: O artigo cuida da "obrigação propter rem" à luz da função social da
propriedade prevista na Constituição Federal (artigo 5º, XXIII). Sustenta o autor que tal
obrigação deve subordinar sua natureza privada ao interesse público da função social da
propriedade imobiliária. O texto aponta a superação do conceito meramente econômico
da função social da propriedade, que atualmente abrange também questões sociais e
ambientais, como as relativas ao uso do solo e à qualidade de vida de quem cultiva a
terra. Afirma o autor a conexão da função social da propriedade com o artigo 3º da
Constituição Federal, que determina a erradicação da pobreza e a redução da
desigualdade social.
ABSTRACT: This article is concerned with the "propter rem obligation" in the light of the
social function of the property foreseen in the Federal Constitution (article 5º, XXIII). The
author maintains that such obligation must subordinate its private nature to the public
interest of the social function of the real estate property. The text points out the outdated,
merely economic concept of the social function of the property, that currently also
encloses social and environmental issues, as the ones related to the use of the soil and
to the quality of life of whom cultivates the land. The author refers to the connection of the
social function of the property with the article III of the Federal Constitution, which
determines poverty eradication and the reduction of social inequality.
INTRODUÇÃO
Função social e obrigação propter rem são conceitos que repercutem em
uma ampla gama de problemas jurídicos. Conceitos que concentram uma
grande carga de sentidos. O inventário doutrinário produz vários sentidos. Para
além de discussões acerca da Jurisprudência16 como uma ciência de símbolos
lingüísticos fechados, parece ser essencial uma certa precisão ou explicitação
dos termos empregados, conforme a doutrina ou corrente filosófica que se filie.
16 O Termo Jurisprudência é aqui articulado como sinônimo de ciência do Direito.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
19
A designação propter rem (ou própria da coisa) qualifica o conceito
jurídico, obrigação a exigir que se lance um breve e limitadíssimo olhar sobre o
mesmo e que, para muitos é um conceito que estabelece uma ponte entre os
direitos reais e pessoais.
A função social da propriedade encontra-se no cerne da discussão que
se trava sobre os limites e possibilidades dos direitos reais e também fornece
base para que se insira nos contratos uma função social como preconiza o
projeto de Código Civil em trâmite pelo Congresso Nacional.
A doutrina nacional em seus manuais reconhece que o conceito
obrigação é polissêmico e que o legislador utiliza-o em diversos sentidos.17 O
direito clássico busca, entretanto, a precisão conceitual e a explicitação do
sentido posto no Código Civil: “As relações obrigacionais, disciplinadas pelo livro
III, do Código Civil, têm sentido peculiar e próprio, mais restrito e mais técnico.
As obrigações aí reguladas são as que vinculam uma pessoa a outra, através
das declarações de vontade e da lei, tendo por objeto determinada prestação.”18
A arquitetura do Código Civil propicia uma definição estrita do conceito
vinculada à idéia de relação jurídica. Este conceito (relação jurídica) também
comporta vários sentidos e pode ser articulado com uma abertura ampla ou
estrita19. Dentro do termo relação jurídica uma série de outros conceitos é
justaposta: Direito Subjetivo, Dever, Sujeição20. A intercalação destes conceitos
transforma o Estudo do Direito Obrigacional em uma possibilidade racional
complexa.
17 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações, 1ª parte. 4º vol. São Paulo : Saraiva, p. 3 – 4.
18 MONTEIRO, Washington de Barros. Ob. cit., p. 3.
19 “Os diversos sentidos do termo”. — Num sentido mais amplo, relação jurídica é toda a situação ou relação da vida real (social)
juridicamente relevante (produtiva de conseqüências jurídicas) isto é, disciplinada pelo Direito.
Numa acepção mais restrita — que será a visada daqui por diante — relação jurídica é toda relação da vida social disciplinada pelo
Direito, mas só enquanto esta disciplina reveste uma dada fisionomia típica...
Relação jurídica — stricto sensu — vem a ser unicamente a relação da vida social disciplinada pelo Direito, mediante a atribuição a uma
pessoa (em sentido jurídico) de um direito subjectivo e a correspondente imposição a outra pessoa de um dever ou de uma sujeição.
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica: sujeitos e objecto. Vol. I. Coimbra : Almedina, 1992, p. 2.
20 ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ob. cit., p. 3 – 4.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
20
Nessa quadra é razoável destacar que a concentração doutrinária em
conceitos fechados para além de uma otimização, pode provocar a perda de
excelentes oportunidades de reflexão e um esvaziamento da complexidade em
que se move o mundo.
A conexão estabelecida entre obrigação e relação jurídica é realizada
pela doutrina clássica, e esta não consegue escapar das conotações ideológicas
liberais que imantam instrumentais jurídicos como e.g., sujeito de direito, objeto
de direito. Produzindo o que Michel MIAILLE, designa como a falsa
transparência do direito.21
Tal qual o taxidermista, o legista procede uma dissecação da
complexidade e a partir daí promove a construção de monumentos conceituais
que se pretendem perenes. É a inescapável prisão da segurança jurídica e o
repúdio às transformações.
Privilegiar o estudo estrito do conceito de obrigação conforme uma
específica interpretação dos dispositivos do Código Civil é perder uma
oportunidade ímpar de estudar todas as possibilidades do conceito. Perde-se
assim o sentido das transformações porque passa o direito obrigacional como
magistralmente registrado por Orlando GOMES: “Orienta-se modernamente o
Direito das Obrigações no sentido de realizar melhor equilíbrio social, imbuídos
seus preceitos não somente da preocupação moral de impedir a exploração do
fraco pelo forte, senão, também, de sobrepor o interesse coletivo, em que se
inclui a harmonia social, aos interesses individuais de cunho meramente
egoísticos”.22
O mestre baiano, em 1967, vinculava o direito obrigacional à sua função
social. Com este marco teórico tentar-se-á olhar as obrigações propter rem.
21 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2ª ed. Lisboa : Editorial Estampa, 1994, p. 38.
22 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo : RT, 1967, p. 2 – 3.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
21
A doutrina clássica ao se orientar por concepção estrita do direito
obrigacional concentra-se nas dicotomias: Poder, Obrigação/Sujeição.23 Esta
perspectiva parece que privilegia o conflito e não a cooperação entre os sujeitos.
O que o sujeito de direito pode exigir ou impor ou exigir de outro sujeito de
direito? Esta é a nervura em que se tenciona o direito obrigacional do Código
Civil. Estratificada e orientada por estas premissas metodológicas a doutrina
clássica não se concentra no homem e sim nos conceitos.
O referencial teórico que se pretende seguir perfilha uma outra idéia,
respalda-se na repersonalização do direito, em que o direito privado nos dias
atuais se tem algum sentido é porque privilegia o homem e seus direitos numa
panorâmica de convivência cooperativa e harmônica.24 Com isto não se
desconhece a leitura sociológica do conflito, o que se quer afirmar é que a
orientação metodológica não se pauta por um sincretismo mas, por uma análise
que não descure de nenhum destes fatores.
A obrigação propter rem espelha esta possibilidade. Neste quadro podese dizer que tais obrigações se articulam tanto nas relações jurídicas quanto nas
situações jurídicas.25 Com esta afirmativa principia-se por um alargamento do
campo de incidência de tais obrigações para além do campo do direito de
vizinhança.
A vinculação das obrigações propter rem com os direitos reais exige uma
leitura de como se articulam no sistema jurídico nacional tais direitos. Nesse
rumo assume importância capital a definição da técnica do numerus clausus.
23 A colocação dos vocábulos Obrigação/Sujeição, guarda relação com as leituras técnicas de direito subjetivo. Que num sentido stricto
implica o poder de exigir de outrem o cumprimento de uma obrigação, em sentido amplo incorpora a noção de direito potestativo que
possibilita ao titular impor a outrem um sujeição. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3.ª ed. Coimbra :
Coimbra, 1996, p. 172 – 175.
24 CARVALHO, Orlando. A teoria geral da relação jurídica : seu sentido e limites. Coimbra : Centelha, 1981.
25 O recurso à categoria situação jurídica é para evidenciar problemáticas que desbordam de uma certa concepção de relação jurídica
que se vincula à idéia de apenas poder existir relação entre pessoas. Sem qualquer intenção de caminhar por esta polêmica e na busca
de uma ampliação do conceito das obrigações propter rem para além das relações de vizinhança é que se costura o texto com o
instrumental da situação jurídica. Assunto muito bem tratado por TASSO, Torquato. Da situação jurídica. Revista do Curso de Direito
da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia. v. 10, nº ½, p. 185 – 221.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
22
Esta técnica é para muitos de ordem pública, para outros, um mecanismo
montado para perpetuar exclusões e perenizar dominações.
No plano da função social da propriedade percebe-se que há muito
tempo se desvinculou do direito de vizinhança. Esta vinculação foi feita e reduzia
o conceito a um nicho que não representava a sua magnitude. No mesmo rumo
encontram-se as obrigações propter rem.
Esta se encontra asfixiada pelo direito de vizinhança. O propósito é fazer
uma leitura que integre a obrigação propter rem à função social da propriedade.
A OBRIGAÇÃO PROPTER REM – MODALIDADE DE OBRIGAÇÃO OU
FÓRMULA PARA DESIGNAR DIREITOS REAIS: O PROBLEMA DO
NUMERUS CLAUSUS
Abalizada doutrina brasileira representada por F. C. de San Tiago Dantas
afirma que: “não dizemos que seja de se abandonar a denominação técnica de
‘obrigação propter rem, se com ela o que se quer é designar os ‘direitos reais
inominados’, os direitos e deveres de natureza real que emanam do domínio ou
dos iura in re aliena”.26
Com essa afirmativa coloca-se em causa algumas questões; a primeira, é
a de que o estudo da obrigação propter rem não pertence aos direitos
obrigacionais e sim aos direitos reais; a segunda, é a mitigação do princípio do
numerus clausus como técnica de arrumação dos direitos reais pois tal técnica é
incompatível com a idéia de direitos reais inominados.
O sistema jurídico não rompe com a idéia da clausura dos direitos reais
representada pelo numerus clausus. Não obstante isto, permite alguns
“vazamentos” que propicia algumas aberturas no sistema. Como ocorre uma
vinculação genética das obrigações propter rem com os direitos reais principiase segunda problemática analisando-se os efeitos que a mitigação do princípio
26 O conflito de vizinhança e a sua composição. Forense : Rio de Janeiro, 1972, p. 249.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
23
do numerus clausus provoca no tema principal que é a do estudo das obrigações
propter rem.
A doutrina dominante entende que o numerus clausus é uma das
características do Código Civil no que concerne ao estatuto da apropriação de
bens imobiliários. Um código opta por um sistema fechado amarrado por
doutrinas que afastam as criações sociais e que incorporou uma armadura que
excluiu algumas manifestações espontâneas do povo.
A técnica do numerus clausus representa uma destas doutrinas que
privilegia uma espécie de ditadura do legislador. Para justificar e dar conteúdo à
técnica promove-se uma ligação entre ela e o princípio da reserva legal. Isso
quer dizer que apenas o legislador pode criar novas figuras com a textura de
direito real.27
Dois pontos, entretanto, destacam-se e não podem ser confundidos: o
primeiro, vincado pelo moderno conceito da tipicidade, para o qual não basta a
criação de lei para que cientificamente ocorra uma figura de direito real. É
necessário que o instituto criado tenha um conteúdo com as características
desse direito. O segundo ponto revela que a figura do legislador não se restringe
ao Parlamento, novos tipos de direito real poderão ser criados por outros centros
de poder v.g., o Executivo.
É preciso considerar que o numerus clausus, além de ser um conjunto de
direitos determinados pelo legislador, está vinculado precipuamente a princípios
27 A doutrina brasileira diverge em relação ao problema de o ordenamento jurídico nacional ter ou não incorporado a doutrina do
numerus clausus. Sem a pretensão de indicar uma extensa lista de escritores apresenta-se apenas dois expoentes do direito civil:
Washington de Barros MONTEIRO afirma que: “Outros direitos reais poderão ser ainda criados pelo legislador, ou pelas partes desde
que não contrariem princípios de ordem pública”. (Curso de direito civil. São Paulo : Saraiva, 1982, p.12. v. 3: Direito das Coisas). A
possibilidade de terceiros criarem direitos reais parece superar a doutrina do numerus clausus e sugere que o professor adote o numerus
apertus em matéria de direitos reais. De outro lado, Orlando GOMES, assevera: “O proprietário da coisa pode constituir apenas os
direitos reais especificados na lei. Não tem a liberdade de criá-los, devendo conformar-se com os tipos regulados legalmente e com
conteúdo que a lei lhes atribui. Outras espécies que não as definidas na lei são inadmissíveis”. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro :
Forense, 1991, p. 10.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
24
de ordem econômica28 e a ordem pública. Entende-se que o atrelamento à
ordem pública não é a melhor forma de entender a técnica.
Nesse rumo, José de Oliveira ASCENSÃO afirma que, em sede de direito
real, a principal linha de defesa contra o numerus apertus e a favor do numerus
clausus é a contrariedade daquele e a conformidade deste à ordem pública. Mas
o que é ordem pública? “Da manipulação de princípios de extrema generalidade
não se pode tirar nenhuma conclusão”.29
O suporte do numerus clausus é de ordem econômica, e esta não se
confunde com ordem pública. Esta técnica serve, como afirma Oliveira
ASCENSÃO,
para
perpetuar
situações
econômicas
consolidadas.
Desmistificando a sua vinculação com a ordem pública, tem-se uma determinada
opção econômica a lhe sustentar. Esta opção é a do direito centrado no regime
das titularidades espelhadas por um sistema notarial que no caso brasileiro é
flagrantemente falho. Cabe ressaltar e reafirmar que a sua predominância
parece implicar uma opção sistêmica que tolhe as construções espontâneas, o
que pode desaguar em flagrantes injustiças.
Considera-se que o princípio da tipicidade pode ser utilizado para, sem a
violação do sistema, minimizar a sua rigidez e incorporar construções sociais ao
ordenamento jurídico. A doutrina e jurisprudência dominantes entendem que no
Estatuto Privado atual prevalece o princípio do numerus clausus, e que este
determina que direitos reais apenas poderão entrar na ordem jurídica através da
lei.
Nada impede, entretanto, que o intérprete com o recurso da tipicidade,
busque mediante a subsunção, novas figuras de direito real que se encontram
postas na lei, de modo não muito claro. Esta afirmação aponta uma primeira
conclusão: O sistema positivo pode agasalhar direitos reais inominados.
28 Segundo Pietro Trimarchi: “O número fechado dos direitos reais se justifica primeiro porque a pluralidade de direitos reais sobre uma
mesma coisa reduz a possibilidade de modificar a sua destinação; segundo porque auxilia na circulação dos bens”. Istituzioni di diritto
privato. Milano : Giuffrè, 1991, p. 122-123.
29 ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa : Petrony,1968, p. 87.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
25
O princípio do numerus clausus pode, desse modo, ser vazado através
da tipicidade.30 Essa prática deve ser orientada para a proteção do homem e não
para “revelação” de direitos reais que mais se prestam a construir uma camisa
de força que exclui e isola.
Ônus reais, servidões, a tutela do meio ambiente, de bens históricos,
turísticos, paisagísticos, direitos de minorias, como é o caso dos índios, apontam
uma interessante vereda metodológica pela qual pode transitar o intérprete, sem
que com isso se violente o sistema.
Com a tipicidade orientada para a proteção do homem, e não apenas
como um método de encarceramento das relações, é possível buscar direitos
reais que estão “escondidos” no direito positivo. Essa orientação é interessante
porque, para a doutrina clássica, os direitos reais oferecem aos seus titulares
uma garantia diferenciada e mais potente do que a que se tem nos direitos
pessoais.
A tipicidade direciona-se para o conteúdo dos direitos reais, para os
elementos que lhes conferem identidade. Nessa perspectiva, a recepção da
doutrina que percebe o direito real como um tipo aberto é fundamental: “As notas
características indicadas na descrição do tipo não precisam, pelo menos
algumas delas, de estar todas presentes; podem nomeadamente ocorrer em
medida diversa”.31 Com a presença dessas notas fundamentais em determinadas figuras previstas em lei, mostra-se coerente a vinculação destas ao
sistema que disciplina os direitos reais. Nesse plano é necessário ter cuidado
para que não se transformem figuras de direito pessoal em direito real.
Retomando os motivos que engendram o numerus clausus, é necessário
precisar o aspecto da ordem pública. Ao perfilhar a idéia de que a orientação
econômica é o substrato da técnica, não se descarta a ordem pública, como um
suporte a dar alguma substância ao conceito. Essa substância pode ser
30 Id. ibid., p. 102.
31 LARENZ, op. cit., p. 260.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
26
encontrada no princípio da reserva legal32 que, conectado à matéria do direito
real, coloca a questão da ordem pública, ao assimilar a idéia de que essa
espécie de direito submete terceiros com o efeito erga omnes.33
Uma tão poderosa conseqüência afetaria a organização das relações
civis se deixasse a criação de direitos à plena autonomia da vontade dos
cidadãos. Interessante destacar que o numerus clausus e a autonomia da
vontade, “têm a mesma matriz liberal que pretendem no regime jurídico
revolucionário, franquear o tráfego jurídico, fomentando a celeridade de negócios
criados pelas partes e com força de lei entre elas, expressão da filosofia
individualista [...]”.34 Por outro lado, o seu contrário, que é o numerus apertus,
segundo José de Oliveira ASCENSÃO, também tem uma estrita vinculação com
o princípio da autonomia da vontade.35
Evidenciada a técnica do numerus clausus, é preciso considerar que a
sua utilização poderá se direcionar para produzir injustiças. A realização da
leitura do numerus clausus sem considerar a tipicidade de algumas figuras de
32 O princípio da reserva da lei é um tema que ultrapassa o objeto desta dissertação. Considera-se que uma passagem mesmo rápida
pelo assunto, pode oferecer a medida das possibilidades que se abrem quando se articula o princípio do numerus clausus com o da
reserva da lei. O numerus clausus, conforme doutrina aqui perfilhada, é uma técnica que se fundamenta principalmente em motivos
econômicos e, em certa medida, às questões de ordem pública. A perspectiva que se apresenta é a determinação de quem seja o
Legislador. O princípio da reserva legal não se confunde com o princípio da reserva do Parlamento: “Segundo a doutrina tradicional do
duplo conceito de lei, lei em sentido formal é todo o ato parlamentar revestido de forma de lei, independentemente do seu conteúdo. Lei
em sentido material é a regra de direito[...]. Significa isto que para a lei em sentido material a forma de lei não é necessária nem
suficiente: as leis formais podem representar leis em sentido material, mas os regulamentos também o poderão ser”. VAZ, Manuel
Afonso. Lei e reserva da lei: a causa da lei na Constituição portuguesa de 1976. Porto : [s.e.], 1992, p. 17-18. Destaca-se da doutrina
tradicional que apenas o Legislador, nesse plano, referido como o Poder Legislativo poderia modificar o numerus clausus. Ocorre que o
princípio da reserva da Lei é diferente do princípio da reserva do Parlamento: “O verdadeiro alcance da reserva da lei, como expressão
do princípio da legalidade, ultrapassa a distribuição orgânico-funcional do poder legislativo e questiona as relações da lei perante outros
atos estaduais não legislativos. Trata-se não de organizar uma função estatal, mas de delimitar as funções estatais. Reserva da lei é aqui
diferente de Reserva do Parlamento, do mesmo modo que conceito de lei material é diferente do de lei formal”. VAZ, op. cit., p. 34. Não
sendo pois idênticos o princípio da reserva de lei e reserva do Parlamento, cumpre questionar se o elenco de direitos reais consignados
em nosso ordenamento poderia ser alterado por normativas que não oriundas do Parlamento. Parece que o ordenamento jurídico
brasileiro admite a idéia de que o elenco de situações jurídicas, taxativamente, definidas em lei, possa ser alterado por dispositivos
normativos oriundos de outros centros de poder, sem ter portanto o status de lei em sentido formal. Nesse passo, normas do Executivo
poderão alterar o elenco de direitos reais acrescentando novas modalidades.
33 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o código civil, a legislação ordinária e a Constituição.
Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 83-84, 1989.
34 TEPEDINO, Gustavo, op. cit., p. 83-84.
35 ASCENSÃO, A tipicidade ..., p. 87.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
27
direito real, propicia o isolamento do sujeito de direito e contribui para a
manutenção de injustiças sociais.
Isto ocorreu durante um bom tempo na jurisprudência brasileira, que não
considerava o contrato não registrado de promessa de compra e venda de lotes
urbanos como produtor de direito real.36
Pode-se aferir que a armadura conceitual montada no Código Civil
brasileiro, com aspirações sistêmicas de um positivismo científico neutro,
contribuiu para afastar o direito da vida, encarcerando-a em conceitos abstratos.
Nesse momento da vida nacional a Constituição Federal,37 no que concerne ao
Estatuto da apropriação de bens imóveis urbanos e rurais, desempenha um
papel fundamental, isto porque, os institutos que nela foram encartados
encontram-se perpassados por uma doutrina que tem o homem como o centro
do sistema.
Uma vinculação estrita ao princípio do numerus clausus dos direitos reais
se opõe ao raciocínio do Professor SAN TIAGO DANTAS de que a obrigação
propter rem é uma técnica que propicia a identificação de “direitos reais
inominados”. Pois em sua radicalidade o numerus clausus não admite a
possibilidade de direitos reais inominados.
A ampliação do horizonte teórico da clausura dos direitos reais parece
possível quando se utiliza o instrumental fornecido pela tipicidade dos direitos
reais. Presente as notas fundamentais deste direito em outros institutos que não
aqueles indicados expressamente no direito positivo, ter-se-ia direitos reais
inominados.
A correção lógica do pensamento do professor San Tiago Dantas é
dependente de uma perspectiva que privilegia o Código Civil como o único
36 Nesse sentido, consultar a excelente monografia de Marcelo DOMANSKI. Posse: da segurança jurídica à questão social. (Na
perspectiva dos limites e possibilidades de tutela do promitente comprador através dos embargos de terceiros). Rio de Janeiro : Renovar,
1998.
37 A posição que adotada para o vocábulo Constituição perfilha a idéia transcrita por José Joaquim Gomes Canotilho: “Constituição é
uma ordenação sistemática e racional da comunidade política plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos
fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político”. O direito constitucional entre o moderno
e o pós-moderno. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 9, p. 78, 1990.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
28
estatuto privado a disciplinar as relações de vizinhança. Esta leitura talvez
explique a conexão estrita das obrigações propter rem neste autor aos direitos
de vizinhança. A idéia que orienta este trabalho não se conforma com um olhar
estrito do direito obrigacional contido no Código. O direito obrigacional não
emana apenas de relações jurídicas intersubjetivas. Situações jurídicas implicam
também em obrigações. O sujeito de direito ao assumir determinada posição
incorpora para além das vantagens um plexo de responsabilidades. Neste rumo
a proliferação dos microssistemas gerou uma expansão teórica do direito
obrigacional e das obrigações propter rem especificamente.
Assim o conceito obrigação assume uma textura muito maior do que a
vinculação de uma pessoa a outra em que um sujeito pode exigir de outro uma
prestação. Neste quadro as obrigações propter rem parece que efetivamente
configuram uma ponte de ligação entre os direitos reais e pessoais.
Como um conceito de ligação assimila e contém peculiaridades tanto de
um quanto de outro ramo. A pessoa na situação jurídica de proprietário ou titular
de outro direito real assume por sua vez uma série de obrigações.
As obrigações que decorrem da posição irradiada pelo direito real
implicam tanto em ligações de âmbito restrito ou ampliado. Apanhe-se o caso do
proprietário urbano ou rural. Nestas circunstâncias deve responder por todas as
emissões38 que tornem a vida cotidiana dos vizinhos insuportável.
As obrigações que decorrem da situação proprietária não se restringem
também apenas aos direitos de vizinhança. Ultrapassam esses quadrantes e
alcança aspectos relativos à função social da propriedade. Antes de adentrar
nesta questão uma avaliação deve ser feita. Trata-se da vinculação das
obrigações propter rem aos direitos de vizinhança.
38 O conceito de emissão foi magnificamente trabalhado por F. C. de San Tiago Dantas.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
29
OS DIREITOS DE VIZINHANÇA E AS OBRIGAÇÕES PROPTER REM
As obrigações propter rem recebem diversas designações e são
apresentadas como sinônimo de questão diversa ou ainda para indicar outras
técnicas. Afirma-se que são obrigações ambulatórias; obrigações reais,
obrigação ob rem; obligationes in rem scriptae. Encontra-se ainda algumas
conexões com ônus ou dever jurídico.
A utilização de termos sem a devida explicitação de seu conteúdo
provoca uma mistura que obscurece o sentido. Apanhe-se a título de análise a
vinculação entre obrigações propter rem e ônus. Efetivamente são termos que se
relacionam com problemáticas distintas.
A conceituação de ônus de Carnelluti ao Professor Manuel Andrade
DOMINGUES, passando ainda por DIAS MARQUES, refere-se a uma situação
em que o adimplemento ou inadimplemento provoca conseqüências jurídicas
apenas na esfera do sujeito.
Por conta desta análise tornar-se-ía lícito ao sujeito uma conduta que
desatendesse o ônus, visto que, integrante, da autonomia da vontade, o prejuízo
eventualmente provocado pelo sujeito será suportado.
No mesmo rumo vincula-se à obrigação propter rem a noção de dever. É
preciso ressaltar que obrigações desta espécie não geram rigorosamente um
dever jurídico e sim verdadeiramente uma obrigação. “O dever, sendo a
necessidade de adotar uma conduta para a satisfação dum interesse de outrem,
é um meio jurídico de solução de conflitos intersubjetivos de interesses.
Diversamente, o que há de característico no ônus é o sacrifício dum interesse
próprio. O ônus é o sacrifício dum interesse próprio.”39
A distância que separa os vocábulos Obrigação, Dever e Ônus é
registrada pela doutrina. O uso de um conceito fora de um rigor pode
eventualmente comprometer a transmissão da mensagem.
39 DIAS MARQUES. Apud. GARCEZ NETO, Martinho. Ônus real. In. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Vol. XXXV. Coord. J.
M. CARVALHO SANT0S, Rio de Janeiro : Borsoi, s/d, p. 181.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
30
As obrigações propter rem surgem a partir do momento em que o sujeito
encontra-se em dada situação jurídica, titular de um dominus, e que por
evidência trava relações de vizinhança.
SAN TIAGO DANTAS, tantas vezes referido neste opúsculo, afirma que
nem todas as relações de vizinhança emanam do domínio. O autor sem quebrar
a homogeneidade do direito de vizinhança inserida no Código Civil e tomando
cuidado em não apontar nas disposições normativas servidões legais afirma que:
“é
inegável que,
entre os
direitos
de
vizinhança,
alguns
são
consubstanciais ao domínio, plasmam-se com ele, e correspondem a
restrições que não diminuem ao vizinho aquela extensão de poderes que,
como proprietário, lhe assiste sobre o seu prédio; enquanto outros são
melhoramentos ou acréscimos, e tem, quer para o beneficiário das
vantagens, quer para o portador dos encargos, todas as aparências da
servidão.
Três direitos de vizinhança, sobretudo, parecem-nos estar neste último
caso: o direito de passagem forçada, o de aqueduto, e o de madeirar na paredemeia consagrados respectivamente nos artigos 559, 567 e 579 do Código
Civil.”40
Por outro lado, PONTES DE MIRANDA cortante afirma : “ Os deveres
oriundos dos arts. 554, 555, 557, 558, 559, 563, 564, 565, 567, 569-571, 572588 (deveres correspondentes a direitos de vizinhança, que são direitos
limitativos) não são deveres propter rem”.41
Sem qualquer pretensão de imiscuir na batalha de conceitos e
classificações o que se quer evidenciar com os direitos de vizinhança e a sua
conexão com as obrigações propter rem é o fato inescapável de que ser titular
de um direito (qualquer um) real implica em obrigações. Um complexo de
obrigações encartadas no Código Civil e em outras normativas.
40 SAN TIAGO DANTAS. Ob. cit., p. 251 – 252.
41 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Tomo XVIII. 3ª ed. Rio de Janeiro : 1971, p. 24.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
31
O que parece ser inovador na expansão teórica da técnica da obrigação
propter rem é a possibilidade de ligá-la à função social da propriedade.
A função social da propriedade é hoje uma normativa constitucional que
impõe ao sujeito de direito inúmeros e ainda inexplorados espaços de análise. A
começar pela ideológica e comprometida idéia de que trata de uma norma
programática destituída de sanção.
A função social da propriedade alcança todos os direitos reais (não
apenas a propriedade) e projeta-se sobre coisas móveis ou imóveis, bens de
uso, consumo ou de produção, ingressa no patrimônio cultural, ambiental,
nacional, genético, bem de uso comum do povo.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO INFORMADORA DO
CONTEÚDO DAS OBRIGAÇÕES PROPTER REM
De início é preciso destacar que função social da propriedade e os limites
decorrentes do direito de vizinhança são radicalmente distintos. Este último
implica em limitações de ordem pública e privada como com uma acentuada
vinculação ao direito de propriedade e posse numa perspectiva de limitações ao
direito de propriedade.
A função social da propriedade não se configura como uma mera
limitação ao direito de propriedade. É muito mais, pois implica em comandos
positivos que conformam-se em obrigações de fazer, em tutela de pessoas não
proprietárias. Quebra-se assim o núcleo clássico das obrigações propter rem que
se destinava a regular tão somente relações entre vizinhos. A função social da
propriedade contendo obrigações propter rem empurra estes limites.
O direito de vizinhança da forma como se articula no Código Civil foi
montado para, além da tentativa de se alcançar uma relativa harmonia entre
vizinhos, dotar o sujeito atingido por emissões de um instrumental jurídico capaz
de lhe propiciar uma reação. Foi estampado com uma carga de proibições,
limitações e sanções.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
32
Destaque-se que o conceito de vizinhança ultrapassou a muito a idéia de
contigüidade. Ampliado, incorporou sujeitos que embora não estejam nesta
proximidade venham a ser atingidos por emissões nocivas materiais ou não.
Com texto centrado na idéia de que o conceito de obrigação propter rem
é uma técnica ponte integradora de ramos classicamente referenciados como
distintos como é o caso dos direitos reais e pessoais, passa-se a examinar em
que medida a função social da propriedade pode ser um conceito informador
desta modalidade de obrigação.
O professor Luiz Roldão de Freitas GOMES afirma que :
“No tocante à propriedade urbana, surge expressiva inovação: faculta-se
ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída em
seu plano, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano
não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento. Sob pena de parcelamento ou edificação compulsória,
tributação progressiva ou desapropriação (art. 182, I a III).
Cria-se, pois, para o proprietário, um dever, uma obrigação em relação ao
imóvel, com o caráter de obrigação propter rem, o que desloca a
concepção do direito de propriedade de exclusivo feixe de poderes, sobre
a coisa, concedidos a seu titular para compreendê-lo também, como
explicitam juristas modernos (UGO NATOLI, “La proprietà”, Milano. 1965,
p. 12; RODOTÀ, ‘Proprietà, Novíssimo Digesto Italiano’, G ALPA, “Nuovo
Diritto Privatto, UTET, 1985, PS. 316 e segs) sob a ótica de uma
disciplina que incide sobre o conteúdo da situação jurídica do proprietário
que se apresenta também passiva, na medida em que se lhe impõem
ônus
e
comandos
obrigatórios
visando
ao interesse
social da
comunidade, sem compensação em seu patrimônio”.42
Com esta doutrina bem longe se encontra da estreita vinculação das
obrigações propter rem a questões relativas a direito de vizinhança ou apenas
42 FREITAS, Luiz Roldão de Freitas. O estatuto da propriedade perante o novo ordenamento constitucional brasileiro. In. Revista
Forense. Vol. 309. Rio de Janeiro : Forense, 1990, p. 25 – 32.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
33
como uma técnica de identificação de direitos reais inominados. Salienta-se
assim que para além de poderes o proprietário encontra-se também em uma
posição passiva própria daquela forma de obrigação, não apenas em relação
aos vizinhos, mas perante toda a sociedade.
O conceito função social da propriedade é histórico.43 Essa sentença está
a revelar que o conceito detém uma maleabilidade44 que se metamorfoseia no
desenrolar da história, variando conforme o tempo e o espaço em que é
aplicado. Por tratar-se de um conceito propenso a mudanças, parece receber um
fluxo de penetrações que, em dada circunstância, pode alterar-lhe a composição;
tanto pode servir a um Estado totalitário como também ser um aríete na
demolição de leituras neutralizantes. A sua aplicação in concreto envolve
conexões com valores agasalhados pela ordem constitucional, dentre eles, a
dignidade da pessoa humana.
Ser titular de um direito real passa a ter importância num âmbito que
extrapola o plano individual e alcança os não proprietários.45 O outro passa a ter
importância à medida que o sistema trata não do homem individualizado, mas do
homem em comunicação.
Essa filosofia encarta-se na idéia de que o Direito está para além do
aspecto estático, é pois relacional e dinâmico, haja vista que o direito de
propriedade privada, na ordem constitucional brasileira, gravado como um direito
fundamental,46 deve atender à sua função social. Olhar o sentido, a extensão e o
conteúdo da funcionalidade da propriedade privada é tarefa que se impõe.
43 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a Legislação Ordinária e a Constituição.
Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 73, 1989.
44 Idem, ibidem, p. 74.
45 Idem, loc. cit.
46 Jorge Miranda comenta que “a locução ‘direitos fundamentais’ tem sido nas últimas décadas a preferida pela doutrina e pelos textos
constitucionais para designar os direitos das pessoas frente ao Estado que são objeto da Constituição [...] os direitos fundamentais
presentes na generalidade das constituições do século XX — e até, em grau bastante menor, nas do século XIX — não se reduzem a
direitos impostos pelo direito natural. Há muitos outros: direitos do cidadão ativo, do trabalhador, do administrador, etc.. Há direitos
conferidos a instituições, grupos ou pessoas coletivas. E muitos são direitos pura e simplesmente criados pelo legislador positivo, de
harmonia com as suas legítimas opções e com os condicionalismos do respectivo país”. Manual de direito constitucional. 2. ed.
Coimbra : Coimbra, 1993, p. 48-51. t. 4: Direitos fundamentais.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
34
A função social da propriedade é um conceito que absorve outros. A
Constituição Federal determina no artigo 186 uma plêiade de requisitos para a
sua concretização.47 O aproveitamento racional e adequado da propriedade; a
utilização equilibrada dos recursos naturais; a preservação do meio ambiente;
observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores são
parâmetros objetivos que regulam a extensão e o conteúdo do conceito. Nesse
sentido, para que se alcance a sua efetividade é necessário valer-se das
inúmeras leis que regulam os diferentes aspectos.
Embora a função social tenha uma certa dose de empirismo,48 conclui-se,
por outro lado, que esta possui um conjunto de dados jurídicos descritos na
Constituição e precisados nas leis infraconstitucionais. O manejo dos elementos
do conceito deve ser integrativo, ou seja, não é possível descurar de nenhum
sob pena de inconstitucionalidade.
Cabe lançar nesse estádio de desenvolvimento do tema uma breve
digressão sobre a função social e também uma questão: a propriedade
imobiliária privada é uma função social?
A resposta com fundamento em nosso ordenamento jurídico tende a ser
negativa, pois é dominante o entendimento de que, mesmo que não cumpra a
função social, o titular da propriedade, ao ser esta desapropriada, deverá
receber indenização. Pelo visto, isso implica o respeito à situação jurídica e se
inscreve na proibição do confisco.
47 O artigo 186 da Constituição Federal estabelece um conjunto de institutos jurídicos que preenchem o conteúdo da função social da
propriedade privada imobiliária rural. Para que o preceito seja cumprido, é necessário que todo o conjunto seja observado pois não basta
atender uma imposição e deixar outras.
48 MAGALHÃES, Maria Luísa Faro. Função social da propriedade e meio ambiente: princípios reciclados. In: BENJAMIN, Antônio
Herman V. [Coord.]. Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo : RT, 1993. p.150.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
35
A propriedade privada, independentemente do cumprimento da função
social, é um direito subjetivo por si só tutelado, pelo menos no que concerne à
indenização, quando da desapropriação.49 É de se argüir se é possível outro
modelo de interpretação. Nesse passo, parte da doutrina afirma que a
propriedade é uma função social e que os poderes dos proprietários são
condicionados por deveres.50 A função passa, então, a integrar o elemento
estrutural da propriedade. Em conseqüência, pode-se concluir que se não for
cumprida a função social, não haverá também a propriedade.
É difícil, com essa posição, justificar a obrigatoriedade de o Estado
indenizar o titular que não cumpre com a função social quando da
desapropriação. Se sem o cumprimento da função social não há propriedade,
logo, não há razão para indenizar onde não há propriedade.51 Esse modelo de
interpretação, entretanto, depende da mudança da organização social — de um
Estado liberal capitalista,52 para um Estado socialista. Auscultar a conformação
do Estado nessa doutrina é importante, pois em caso contrário teríamos uma
interpretação despregada da realidade social, ao ignorar os pressupostos
jurídicos que vigoram. Com essa observação, parece que o sistema jurídico
49 Quanto à tutela da propriedade que não cumpre a função social, é preciso frisar que se está a referir aos processos de
desapropriação por interesse social, para fins de Reforma Agrária. E mesmo nesse caso o valor da indenização deverá atender o
princípio da igualdade com expressiva redução de valor, em comparação com o preço de mercado. Vale lembrar que o ordenamento
jurídico constitucional brasileiro determinou o caso limite de perda da propriedade, quando esta é utilizada como instrumento de
realização de crimes como é o caso de culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243 CF/88). O fundamento dessa conseqüência
encarta-se na função social da propriedade, por outro lado, é de se destacar que tão contrário e, pode-se dizer, tão vil quanto, é a
utilização de mão-de-obra escrava, fato que reduz o homem à condição de objeto, e por conseqüência lógica, deveria receber do
sistema o mesmo tratamento dado ao plantio ilegal, ou seja, dever-se-ía nesses casos, adotar o confisco.
50 CARBONNIER, Jean. Flexible droit : Pour une sociologie du droit sans rigueur. 7. ed. Paris : LGDJ, 1992, p. 262.
51 Celso Antônio Bandeira de Mello conclui que, se a propriedade privada fosse uma função social, o bem seria protegido tão só na
medida em que a realiza. As propriedades deveriam então ser suscetíveis de serem perdidas, sem qualquer indenização para
proprietários que não cumprem a função social. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito
Público, São Paulo, n. 4, p. 41, 1987.
52 O Estado liberal “se inspira no princípio de dar livre curso aos projetos individuais em todos os ramos de atividade, do econômico ao
religioso, cada qual desenvolvido com maior ou menor eficiência com um maior ou menor recrutamento de forças, encontrando uma
audiência maior ou menor, e o conjunto dos motores particulares assegurará o movimento social, no qual o Estado apenas desempenha
o papel de ajustador”. Jouvenel, Bertrand de. As origens do Estado moderno: uma história das idéias políticas no século XIX. Rio de
Janeiro : Zahar, 1978, p. 18.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
36
brasileiro, pelo menos no estágio em que se encontra, não oferece substância
para que se perfilhe o entendimento de que a propriedade é uma função social.
O direito subjetivo sobre a propriedade privada não foi suprimido com a
nova Constituição, que se inscreve com letras claras entre os sistemas da livre
iniciativa e da autonomia privada. Cabe ressaltar que não se quer dizer com isso
que a autonomia privada se restrinja ao aspecto econômico53, pois, segundo a
professora Ana PRATA: “Nem a problemática da autonomia privada é exclusiva
do setor privado da atividade econômica, nem basta que exista esse setor para
se afirmar que, adentro dele, os sujeitos são livres de se autodeterminarem
juridicamente”.54 Mas, conforme a autora, a autonomia privada só tem sentido
numa economia em que a satisfação das necessidades é obtida no mercado.55
O fato de não termos condições objetivas para a doutrina que entende a
propriedade privada como uma função social, não quer dizer que ela seja
teoricamente incorreta. Verifica-se apenas que ainda não foi conquistada tal
realidade. É o que conclui o professor Luiz Edson FACHIN que, tendo por
parâmetro a Constituição de 1967, afirma: “entender, hoje, que não há
propriedade rural sem função social é construção teórica correta, mas cuja base
jurídica ainda deve ser conquistada”.56 As condições que imperavam na
Constituição de 1967 em matéria de função social pouco se alteraram, até
porque, ao tempo dessa Constituição encontrava-se em vigor, como ainda hoje
têm vigência, o Estatuto da Terra,57 que apresenta uma função social para a
53 Ao fazer menção à autonomia privada, não se restringe esse conceito ao sistema de produção e reprodução de riquezas. Parece que
a autonomia privada é um conceito que ultrapassa em muito a uma circunscrição ao sistema econômico, vai além e integra e.g., a esfera
da intimidade privada, em que as pessoas têm a possibilidade de organizar a sua vida sem que o Estado possa fazer penetrações
jurídicas. Nesse passo, o Estado que, agigantando-se em demasia, adentrar nessas esferas descaracterizando-as, incorrerá em uma
invasão indevida. Há fronteiras para o direito estatal, ele não pode organizar todas as esferas da vida privada. Os valores constitucionais
postos em nossa Constituição garantem a intimidade como direito fundamental, as invasões estatais deverão ser feitas com muito
cuidado para que não se promovam inconstitucionalidades.
54 Prata, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Lisboa : Almedina, 1982, p. 197.
55 Idem, loc. cit.
56 Fachin, Luiz Edson. Terras devolutas e a questão agrária brasileira : anotações preliminares para um ensaio. Revista dos Tribunais,
São Paulo, v. 629, p. 56, 1988.
57 BRASIL. Lei federal n. 4.504, de 1964, art. 2º. Disciplina a função social da propriedade rural com o mesmo teor da Constituição
Federal de 1988.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
37
propriedade imobiliária rural, com a mesma textura que a atual Constituição
contém. Houve uma transposição do texto do Estatuto para a Constituição de
1988.
A diferença entre a Constituição Federal de 1967 e a Constituição de
1988, em matéria de função social da propriedade, para além de considerações
que envolvem o fato de a primeira ter sido outorgada e a segunda produzida
dentro de princípios democráticos, encontra-se ligada ao status que o instituto
recebe nessa última. A Constituição de 1988 elevou a função social da
propriedade à categoria de direito fundamental. Fábio Konder COMPARATO
conclui que, destes dispositivos, duas conseqüências lógicas podem ser
extraídas: o não cumprimento da função social da propriedade privada impõe ao
Estado o dever de lançar sanções; a desapropriação, quando do desatendimento
da função social, tem caráter punitivo.58
Destaque-se, ainda, que a inserção da função social da propriedade
privada, no título dos direitos e garantias fundamentais, produziu uma limitação
material explícita ao poder de reforma da Constituição, não sendo permitido ao
legislador revogá-la por intermédio de emenda ou qualquer outro artifício, a não
ser com a ruptura da ordem constitucional.59 Essa consagração revela bem a
medida da mudança que se opera, pois a propriedade privada adjetivada pelo
social encontra-se num plano jurídico que rompe com as clássicas fronteiras do
Código Civil e passa a ser um dos pilares da ordem jurídica nacional.
58 Fábio Konder COMPARATO, ao comentar os artigos 182 e 186 da Constituição conclui que: “Duas conseqüências lógicas, segundo
me parece, devem ser extraídas desses dispositivos constitucionais. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que essas sanções pelo
descumprimento da função social da propriedade não são mera possibilidade, mas autêntico dever imposto ao Estado, sob pena de
inconstitucionalidade por omissão administrativa. Em segundo lugar, o reconhecimento, também óbvio, de que a expropriação pelo
descumprimento da função social, por força de seu caráter punitivo, não está sujeita às restrições determinadas no art. XXIV da
Constituição: a indenização não precisa ter a mesma amplitude e as mesmas garantias de que é devida quando não há disfunção no uso
da propriedade”. Estado, empresa e função social. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 732, p. 43, 1996.
59 “As limitações do § 4º do art. 60 da Constituição, são limitações materiais explícitas, assim configuradas na sede da norma
constitucional”. HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte : Del Rey, 1995, p. 124. No mesmo sentido,
Manuel Gonçalves FERREIRA FILHO. Do processo legislativo. São Paulo : Saraiva, 1995, p. 284-286.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
38
Uma outra questão que pode ser posta, após fixada a idéia de que a
função social corresponde ao uso,60 mais precisamente ao modo como se usa o
bem e não como ele se estrutura, é saber se no sistema jurídico brasileiro
podem ser distinguidos como direitos autônomos, o direito de propriedade e o
direito de usá-la.61
A SUPRESSÃO E A RESTRIÇÃO DA FACULDADE DE NÃO-USO DO
TITULAR DO DIREITO DE PROPRIEDADE PRIVADA IMOBILIÁRIA
O direito subjetivo de propriedade encartado em nossa Constituição
encontra-se condicionado pela função social. Inúmeras limitações de ordem
pública afetaram o uso do imóvel, multiplicadas que foram por inúmeras leis e
atos administrativos. Nesse plano, coloca-se em causa o conteúdo mínimo da
propriedade, ou seja, o núcleo que, se atingido pelo Estado, implica o dever de
indenizar. Uma questão se impõe: é possível a separação entre o direito de
propriedade e o direito de uso, pelo qual teríamos, então, e.g., a possibilidade de
edificar apenas se o Estado fornecesse uma concessão?62 Parece não restar
dúvidas na doutrina acerca da necessidade de intervenção estatal, no momento
em que o titular resolve construir. Essa intervenção, entretanto, não se confunde
com a concessão em sentido stricto.
Se não há a necessidade de concessão do Estado para que se possa
construir, também não se pode concluir ipso facto que esse direito (de construir),
esteja visceralmente ligado ao direito de uso do bem. Em determinadas
situações, o titular do dominus encontrar-se-á impedido de construir, sem que
60 A utilização do substantivo usado não tem ligação com o direito previsto no artigo 674, IV, do Código Civil, tem o sentido de aplicação
do bem para determinado fim. De outro lado, o direito real de uso é direito sobre coisa alheia de âmbito mais restrito que o usufruto.
WALD, Arnoldo. Direito das coisas. São Paulo : RT, 1988, p. 185.
61 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de direito público,
São Paulo, n.84, p.41, 1987, conseqüência lógica, deveria receber do sistema o mesmo tratamento dado ao plantio ilegal, ou seja, deverse-ia nesses casos, adotar o confisco.
62 Celso Antônio Bandeira de MELLO, afirma que não é possível considerar que o direito de construir é uma concessão do Poder
Público, por consistir em algo diverso do direito de propriedade, pois existe um conteúdo mínimo no direito de propriedade. Ibid., p. 43.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
39
com isso o Estado tenha de indenizar.63 Essa proposição não se vincula à
preceitos gerais, harmoniza-se com uma apreciação tópica do suporte fático,
e.g., a Serra do Mar no Estado do Paraná que foi tombada,64 o que restringe o
uso e impede a destruição, sem que com isso o Estado tenha que recompor a
redução do conteúdo econômico que a limitação impôs.65 Portanto, questões
ambientais, de segurança e de salubridade públicas, podem ser barreiras
objetivas ao direito de uso do proprietário.
Os dispositivos legais que disciplinam o meio ambiente em situações
problemáticas, impedem o titular de usar e, por conseqüência, construir em sua
propriedade. Nessas condições teríamos, aparentemente, um choque entre dois
direitos fundamentais: o direito de construir,66 decorrente do direito subjetivo de
propriedade, e o direito a um ambiente equilibrado, também considerado pela
Constituição de 1988, como direito fundamental.
Assim, para solucionar tal questão levantada, deve-se buscar uma
coordenação entre o Código Civil, a Carta de 1988 e as diversas leis que
disciplinam a matéria. O dispositivo civil prevê que o direito subjetivo de
propriedade contém a faculdade do uso; a Constituição condiciona o uso a
metas que se inscrevem na fórmula política do Estado Democrático de Direito.
Dessa articulação, o uso de bens imobiliários em dada situação desvincula-se do
direito subjetivo de propriedade e se autonomiza. Ganha relevância, então, a
63 Doutrina contrária à idéia exposta, afirma que “no atual estágio, é urgente que nossa jusadministrativa corrija a sua falha, até para
refletir importante tendência jurisprudencial, que vem reconhecendo a ocorrência de desapropriação indireta em casos como o
tombamento de prédios ou da cobertura vegetal de terrenos — e isso mesmo quando o imóvel não tenha de ser transferido ao Estado”.
SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 40, 1993.
64 Em 25 de julho de 1986, o Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná através de edital, procedeu o tombamento
da Serra do Mar envolvendo 386 mil ha. Publicado no Diário Oficial do Estado, n. 2.290, de 05 de junho de 1996.
65 Existe uma viva polêmica doutrinária sobre ser o tombamento um instrumento apto à realizar a função social da propriedade, alguns
afirmam que apenas a desapropriação pode alcançar tal intento, entretanto: “É perfeitamente adequada a invocação da função social da
propriedade na defesa do tombamento, sendo o instituto legítimo tendo a embasá-lo norma constitucional que o prevê
expressamente[...]. Não intentamos, pois, atrelar o instituto jurídico do tombamento à indenização só pode ser avaliada in concreto”.
PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural. Belo Horizonte : Del Rey, 1994, p. 260-261.
66 Ricardo César Pereira LIRA. aduz que, à luz do artigo 572 do Código Civil, o direito de construir é um direito subjetivo condicionado pelas “limitações
de ordem privada, ou de ordem administrativa, que, apenas, digamos, roçam a sua substância, ou, mais precisamente condicionam o seu exercício”. A
propriedade urbanística. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 300, p. 53, 1987. Segundo o mesmo autor essa concepção se reproduz no projeto de
reforma do Código Civil e fatos novos desencadeados pela cidade exigem uma nova concepção de direito de propriedade. Op. cit., p. 54.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
40
orientação de que o uso dos recursos ambientais demanda uma autorização e
não uma licença.67 Entretanto, o confronto entre o direito subjetivo de
propriedade e seu uso, parece ser aparente, pois à medida em que se incorpora
a idéia de que o Direito público e o privado encontram-se em linha de
coordenação e limites, o direito de propriedade apenas pode ser utilizado nas
fronteiras estabelecidas pela função social da propriedade, na qual encontra-se a
tutela a um meio ecologicamente equilibrado.
Percebe-se, assim, que a função social da propriedade é o instituto
jurídico central para a determinação do conteúdo da propriedade. Esse conteúdo
expressa-se em muitas variáveis: dentre elas, a econômica assume grande
importância. Nesse contexto, a afetação do conteúdo econômico deve ser
medido no caso concreto. A determinação a priori e minuciosa desse conteúdo
não implica uma redução do conceito ao aspecto econômico, em renúncia a um
manejo equilibrado dos diversos aspectos que se articulam no conteúdo da
propriedade que, para além dos direitos subjetivos de uso, gozo, disposição e
seqüela, deve-se harmonizar com os deveres impostos pela função social da
propriedade, que são econômicos, sociais e ambientais.
A função econômica da propriedade imobiliária é indiscutível: entretanto,
outros componentes encontram-se presentes e não é possível descartá-los de
nossa ordem jurídica, haja vista a expressa disposição constitucional sobre a
matéria. Aspectos sociais e ambientais, em determinados momentos, podem,
inclusive, ter uma maior relevância do que o aspecto econômico. A articulação e
a verificação de eventual supremacia de uns sobre outros, repete-se, podem ser
melhor realizada no balanço in concreto que se faz desses institutos. É coerente
concluir que, se a Constituição determina que, para além do aspecto econômico,
a função social da propriedade contém questões ambientais, de uso do solo, de
67 A distinção doutrinária sobre autorização ou licença está conectada ao tema no sentido em que se vincula a segunda (licença) à existência de um
direito subjetivo, o que demandaria no dever do Estado de licenciar determinada atividade. No primeiro instituto (autorização), temos um ato
administrativo precário sem a existência do direito subjetivo. Paulo de Bessa ANTUNES afirma que: “a licença ambiental, in casu não pode ser entendida
como se fosse uma simples licença de Direito Administrativo. Assim é porque as licenças de Direito Administrativo, uma vez concedidas passam à
condição de Direito adquirido para aquele que a recebeu”. Direito ambiental. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 1996, p. 88.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
41
garantia de qualidade de vida de quem trabalha a terra e das relações de
trabalho, não é lícito ao intérprete ignorá-las.
Por último, acolhe-se como razoável a idéia de que normas de Direito
Público em determinadas situações destaquem a faculdade de uso de parte da
propriedade, sem que o Estado tenha que indenizar. Um exemplo candente da
possibilidade são as limitações ambientais postas no Código Florestal.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PARA ALÉM DO ASPECTO
ECONÔMICO
Deve-se destacar que a função social da propriedade não se limita ao
plano econômico. Esse aspecto tem, de certo modo, preocupado ou
monopolizado as atenções, principalmente em decorrência de um modelo de
Reforma Agrária.68 O elemento produtividade é o fator que implica a
possibilidade de o Estado intervir desapropriando o bem do sujeito de direito. O
instituto, entretanto, é uma cláusula elástica que recebe uma infinidade de
situações, deve-se proceder a sua vinculação com a dignidade do homem e com
a solidariedade.69 O acento econômico turva o instituto. A meta da função social
da propriedade não é apenas garantir níveis satisfatórios de produção, é muito
mais: pode servir para impedir a supressão da vida. O sujeito de direito encontrase proibido de utilizar o bem para agredir terceiros. Questões atinentes à
dignidade da pessoa humana, aos direitos da natureza, ganham um novo
68 Pela primeira vez na história, o Estado brasileiro desapropriou um imóvel rural em razão do trabalho escravo. A desapropriação da
Fazenda Flor da Mata no Estado do Pará aconteceu em 28 de novembro de 1997. Essa é a notícia de Abnor GONDIN. Trabalho Escravo
causa desapropriação. Folha de S. Paulo, 29 de novembro de 1997, p. 14. 1. Caderno.
69 COMPORTI, Marco. Ideologia e norma nel diritto di proprietà. Rivista di Diritto Civile, Padova, a. 30, n. 3, p. 330, 1984.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
42
espectro.70 Como medidas positivas, o proprietário passa a ter deveres que lhe
impõem um fazer.
A desapropriação para fins de Reforma Agrária ou para fins de
constituição de unidade de conservação, quando o sujeito de direito esteja
descumprindo o princípio da função social na sua vertente ambiental, amplia a
aplicação do instituto. Nesse caso, vem à baila também a questão da
indenização do dominus desapropriado. O balanço de direitos constitucionais
pode ofertar uma solução adequada.
Tomem-se, por exemplo, alguns casos hipotéticos. Um latifúndio ainda
que produtivo mas que esteja pondo em prática agressões ambientais. O imóvel,
para além de ser um instrumento de produção, é na verdade um mecanismo de
destruição. Nesse âmbito algumas ligações poderão ser feitas: a primeira seria
considerar o bem suscetível de desapropriação. A interpretação não pode ser
outra: a função social é um complexo que exige do sujeito de direito proprietário
o dever de cumprir com todas as exigências consignadas no mandamento
constitucional e, nesse ordenamento, é possível a desapropriação do bem frente
a uma agressão ambiental. É de se ponderar que a poluição ambiental, para
justificar a desapropriação, deve ser de monta que efetivamente venha a colocar
em risco a saúde pública ou a deterioração do ecossistema. Um corte de árvores
sem autorização administrativa, realizado em vegetação secundária e sem uma
importância ambiental relevante, parece não ser motivo suficiente para a
desapropriação. Cabe aqui explicitar que essa modalidade de desapropriação
imanta-se de uma coloração punitiva, decorrente de um ato anti-social do titular
do domínio.
70 Para o professor Luiz Roldão de Freitas Gomes, na propriedade urbana, regulada no artigo 182, I a III, “ Cria-se, pois, para o proprietário um dever,
uma obrigação em relação imóvel, com o caráter de obrigação propter rem, o que desloca a concepção do direito de propriedade de exclusivo feixe de
poderes sobre a coisa, concedidos a seu titular, [...] sob a ótica de uma disciplina que incide sobre o conteúdo da situação jurídica do proprietário, que se
apresenta também passiva, na medida em que se lhe impõem ônus e comandos obrigatórios visando ao interesse social da comunidade, sem
compensação em seu patrimônio”. O estatuto da propriedade perante o novo ordenamento constitucional brasileira. Revista Forense, Rio de Janeiro, v.
309, p. 30, jan./mar. 1990.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
43
Apanhe-se o mesmo exemplo do parágrafo anterior substituindo a
questão ambiental pela questão das relações de trabalho: muitos proprietários
praticam condutas lesivas aos interesses dos trabalhadores. Promover a
desapropriação para fins de Reforma Agrária nesses casos, é um dever do
Estado. No Brasil, pessoas são submetidas a uma
vexatória exploração,
obrigadas a trabalhar porque estão devendo para os patrões. Essa distorção,
que muitas vezes conta com a inoperância do Estado, é um atentado à
dignidade humana. A imprensa nacional é pródiga em denunciar e.g., a
exploração de crianças por proprietários de usinas de carvão vegetal. Nesse
caso, o fundo agrário é o instrumento através do qual o sujeito de direito pratica
atos atentatórios à dignidade humana. A função social da propriedade é um
instrumento teórico-jurídico que pode ser utilizado para combater essa prática
teratológica. Nesses casos, é necessário que se pratique a desapropriação para
fins de Reforma Agrária e que o titular do domínio desapropriado não receba o
“prêmio” de uma indenização conforme o mercado. Essa última possibilidade é
vital para uma concretização da função social como um instrumento punitivo de
condutas antijurídicas e anti-sociais.
Aflora nesses exemplos que a função social da propriedade pode ser
utilizada para além do aspecto econômico a gerar, assim, a transformação do
direito de propriedade. Nessa direção, é possível questionar se o comando
constitucional que regula a função social da propriedade conformou o seu
conteúdo como um número fechado ou aberto.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO NUMERUS APERTUS
Retomando tema anteriormente abordado, a técnica do numerus clausus
instala-se no Código Civil para delimitar o número de direitos reais que a ordem
jurídica aceita. Assim, fica vedado por essa técnica que particulares criem figuras
de direito real. Apenas o legislador pode criar figuras que tenham essa natureza.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
44
Parte da doutrina entende que a função social é numerus clausus, essa é
o entendimento do jurista Tupinambá Miguel Castro do NASCIMENTO: “Os
requisitos arrolados no artigo 186 tem a natureza de exaustivos. Há um
verdadeiro numerus clausus constitucional. Nenhuma lei infraconstitucional pode
criar outros requisitos”.71 Nesse rumo doutrinário, a Constituição assimilaria a
técnica
do
Código
Civil
e
restringiria
a
criatividade
do
legislador
infraconstitucional. Não obstante a respeitável posição do autor mencionado, sua
doutrina merece reparos.
A função social da propriedade parece se inscrever entre aqueles
conceitos que a doutrina conceitua como indeterminados. E são indeterminados
pela razão de que o seu preenchimento se dá com o material que a vida, em sua
dinâmica, oferece. O componente social, por sua própria natureza, implica
movimento; característica esta incompatível com uma ordem estática. O
numerus clausus impõe-se aos jurisdicionados em face da opção sistêmica de
produzir um limite em matéria de direitos reais, em que se coaduna uma
percepção de ordem pública, por um lado, e uma opção econômica, por outro. E,
mesmo assim, a jurisprudência tem recebido algumas alterações que se
processam no âmbito da realidade; é o caso da promessa de compra e venda de
imóveis, objeto de loteamento, sem que o contrato tenha sido registrado à
margem do título em Cartório de Registros Imobiliários. Se nos direitos reais
admitem-se extrapolações (com muita dificuldade é certo), o que não dizer de
novos requisitos para a função social da propriedade privada imobiliária rural?
A doutrina do numerus clausus não se amolda aos valores e princípios
privilegiados pela Constituição. O elenco de requisitos para o cumprimento da
função social da propriedade posto na Constituição é apenas exemplificativo e
não taxativo. Serve de parâmetro para os processos de decidibilidade de
conflitos e de produção normativa.
71 Nascimento, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à Constituição Federal : ordem econômica e financeira. Porto Alegre :
Livraria do advogado, 1997, p. 182.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
45
Nesse ângulo, a função social da propriedade privada permite ao juiz
uma apreciação crítica de conflitos e uma exegética direcionada por soluções
que se fundamentam mais para o problema do que para um silogismo hermético.
Essa postura harmoniza-se com o fato de a Constituição ter considerado a
função social da propriedade como um direito fundamental.
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA COMO DIREITO
FUNDAMENTAL
De início destaca-se que a função social como direito fundamental não se
harmoniza com a conceituação de direito subjetivo privado de alguém poder
exigir de outrem uma prestação ou omissão. É um princípio informador, ou seja,
que condiciona o direito subjetivo.
A função social da propriedade imobiliária tornou-se um direito
fundamental e, como tal, um princípio que não pode ser eliminado sem a quebra
da ordem jurídica. Nesse sentido, é preciso entrelaçar o conceito com todos os
valores positivados pelo Estado brasileiro. O princípio deve ser conjugado com o
artigo 1º da Constituição,72 que estabelece os fundamentos do Estado. A
cidadania e a dignidade da pessoa humana passam a interferir no conteúdo do
conceito e propiciam a sua expansão teórica e prática.
O exercício da cidadania é a movimentação do homem no espaço
privado e público. Na sociedade capitalista exige-se um mínimo de patrimônio
para que isso possa ocorrer. Ao vincular a função social da propriedade
imobiliária à cidadania, o Estado está a reconhecer que a manifestação política
das pessoas depende de patrimônio. Num Estado capitalista em que falta esse
mínimo patrimonial, o homem passa a mercantilizar alguns direitos inerentes à
cidadania. Não se tem a ilusão de que apenas a inexistência de patrimônio
macula esses direitos, questões subjetivas ingressam nessa seara e turvam a
72 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil a Legislação Ordinária e a Constituição.
Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 75, 1989.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
46
análise. Educação, tendências individuais, ou seja, um complexo de fatores pode
intervir para a deflagração dessa corrupção. Entretanto, parece que um dos
fatores fundamentais, no Brasil, e que está a engendrar tal anomalia, guarda
estreita vinculação com o fato de a pessoa não ter um patrimônio suficiente que
lhe permita um mínimo de autonomia política. A amarração que ainda se faz do
conceito (função social da propriedade imobiliária) à dignidade da pessoa
humana encarta-se num plexo de ligações nervais. A propriedade privada
imobiliária e, em relevo, a pequena propriedade são institutos fundamentais para
que as pessoas possam ter uma vida digna. A pequena propriedade imobiliária,
como fonte produtora da vida; bem de produção capaz de permitir que a pessoa
possa ter uma vida privada e uma vida pública.
O conteúdo da função social da propriedade imobiliária encontra-se,
também conectado com o artigo 3º, da Constituição Federal, que determina a
erradicação da pobreza e da marginalidade, bem como das desigualdades
sociais e regionais.73
A redução das desigualdades parece ser o escopo do Estado
Democrático de Direito. A fórmula política encontra-se, pois, vinculada à
efetividade dos Direitos Fundamentais. É necessário ultrapassar a idéia de que
na Constituição deu-se apenas o reconhecimento da igualdade formal. É preciso
esclarecer que não se busca a utópica meta de, apenas através da lei, realizar a
igualdade patrimonial, pois para que isso ocorra é necessário muito mais e
passa e.g., por um sistema econômico menos concentrador e um Estado atuante
e com efetivas políticas públicas de previdência, saúde, segurança, etc... Na
verdade, o que pode ser feito é um deslocamento do rumo de interpretações
clássicas da apropriação privada, garantindo ao homem recursos suficientes
para que a sua vida seja digna, para tanto, buscando um máximo de efetividade
dos direitos.
73 Idem, loc. cit.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
47
Sendo pois um direito fundamental, o conceito função social da
propriedade passa a ser um excelente instrumento do legislador (tanto aquele
que produz normativa no processo legislativo formal e material, quanto o que
através da interpretação e aplicação in concreto, corporifica e constrói o direito),
para a transformação de uma realidade de tristes cores. O conteúdo da função
social74 da propriedade imobiliária passa a ser, no Estado brasileiro, preenchido
e predeterminado pela dignidade da pessoa humana e pela erradicação da
pobreza.75
O conceito de direito de propriedade é único, incide porém sobre bens
diversos, que possuem fins e usos diferentes. A presente dissertação
circunscreve-se a imóveis rurais e urbanos. Nessa perspectiva, se as regras
variam de acordo com a qualidade do imóvel, é razoável argüir para esses bens
diferentes funções sociais. Para atender essa via, analisar-se-á a função social
da propriedade urbana e rural.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA RURAL
O elemento função exige que se olhe a propriedade privada não apenas
no seu aspecto estático, mas também na sua vertente dinâmica. A Constituição
Federal de 1988 determinou um plexo de requisitos para que se cumpra a
função social. A propriedade deve permitir o sustento de seus titulares e de
quem nela trabalha, o uso tem de ser racional e adequado é preciso ainda
respeitar o equilíbrio ambiental e as leis trabalhistas.
O cumprimento desses requisitos deve ser realizado simultaneamente,
não sendo permitido que se cumpram uns e outros não. A conseqüência do não
cumprimento de todas as exigências implica a possibilidade de o Estado
desapropriar o bem por interesse social para fins de Reforma Agrária, impor uma
74 A função social da propriedade: “encerra consigo, inequivocamente, um conteúdo. Conteúdo este que o próprio texto constitucional
não quis definir de maneira estática, é uma idéia evolutiva; ela muda conforme muda a estruturação da própria sociedade”. BASTOS,
Celso Seixas Ribeiro. A função social da propriedade. Revista da Procuradoria do Estado de São Paulo, n. 25/26, p. 75, 1986.
75 TEPEDINO, Gustavo, ibidem, p. 76.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
48
tributação progressiva, transformar o bem em unidade de conservação,
determinar a co-gestão das empresas rurais, e outros tantos deveres que a
dinâmica social exigir.
A função social da propriedade ultrapassa, portanto, as limitações
negativas. O proprietário passa a ter deveres jurídicos para com a comunidade76
deve lançar mão de condutas positivas para atender aos requisitos da função
social. Assim, o legislador encontra-se autorizado com fundamento no dispositivo
constitucional da função social a promover limitações com o alcance de
obrigação de fazer. O termo obrigação não é utilizado em seu sentido técnico
estrito, qual seja a de uma relação de crédito, embora guarde, é certo, uma
proximidade com ele, isto não quer dizer também que esteja destituído de
qualquer imperatividade. A expressão mais adequada talvez seja dever jurídico.
Um exemplo prático dessa possibilidade refere-se ao uso adequado da
propriedade.
Com fundamento no requisito do uso adequado da propriedade
imobiliária rural, é possível que o Estado possa fazer zoneamentos rurais e
assim precisar a vocação agrária de determinada região. Essa limitação ao uso
da propriedade pode, inclusive, se direcionar para uma planificação técnica da
agricultura e pecuária de algumas regiões e.g., impedir que nelas se cultivem
algumas espécies de plantas ou se crie certo tipo de animal, na razão direta de
que o uso racional e adequado apontado no zoneamento indica outros usos
específicos.
O proprietário poderá, assim, se ver na impossibilidade jurídica de
usufruir como bem pretender da unidade de produção agrária. Essa
possibilidade do zoneamento constitui uma revolução, tendo-se em mente os
parâmetros da propriedade clássica, pelos quais o titular podia usar, gozar e
principalmente dispor da coisa segundo o seu interesse.
76 RUSSOMANO, Rosah. Função social da propriedade. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 75, p. 265, 1985.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
49
O zoneamento insere-se numa perfeita adequação com os valores
consignados na Constituição e poderá auxiliar na correção do histórico problema
do Brasil, que é a monocultura. Mediante o zoneamento poder-se-á estabelecer
regiões onde deverão ser plantadas culturas de primeira necessidade, que
atenda as exigências alimentares básicas do povo brasileiro. Nessa linha ter-seiam um desdobramento e uma ampliação do conteúdo da função social da
propriedade posto na Constituição. Essa possibilidade está a demonstrar que a
função social não é um numerus clausus.
No âmbito do uso racional da propriedade um outro aspecto parece
emergir com relevância: o poder de dispor dos produtos oriundos do bem. Não
parece razoável que o proprietário de bens de extrema utilidade, como é o caso
dos produtos agrícolas, possa destruir esses bens, quando e.g., o preço não
alcançar o que ele esperava. Assim, a destruição de bens móveis de consumo
da população não se insere entre os poderes do proprietário, pois ao praticar a
destruição estará afrontando diretamente o uso racional e adequado da
propriedade. Nesse sentido, o Estado pode intervir e impedir que o proprietário
destrua tais bens. Essa medida parece correta principalmente num país
deficitário de calorias onde crianças continuam a morrer por subnutrição,
principalmente no Nordeste Brasileiro.77
Orlando GOMES afirma que apenas os bens de produção constituem o
pressuposto de fato da função social.78 A identificação dos bens de produção na
sociedade capitalista atual é tormentosa, pois, muitos bens, podem, em uma
primeira serem considerados bens de produção e na seguinte bens de consumo.
A definição a priori do que seja bem de produção, portanto, parece não
poder ser realizada em todos os casos. Manufaturas, produtos agrícolas,
destinados à comercialização, enquanto nessa situação enquadram-se na
77 F. Edson Teófilo Filho, afirma que: “O marketing que se faz da ‘supersafra’, repetindo governos anteriores, encobre o fato objetivo de
que 55 milhões de brasileiros passam fome e essa situação não tem perspectiva de mudança, haja visto, a redução do salário real nos
últimos dois anos”. A organização da produção nos assentamentos : subordinação ou autogestão. In: ROMEIRO, Adhemar et. al. [Org.].
Reforma Agrária : produção, emprego e renda: o relatório da FAO em debate. Petrópolis : Vozes, 1994, p. 102.
78 GOMES, Orlando. A função social da propriedade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 426, 1989.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
50
categoria de bens de produção, pois a “função” imediata é a de gerar lucro:
tornam-se bens de consumo quando prontos para tal. Mas enquanto
permanecem nas gôndolas dos supermercados ou nas propriedades rurais,
esses produtos são bens de produção de riquezas, essa é, por assim dizer, a
sua natureza tópica. Considerando tal definição é possível, então, justificar a
impossibilidade de tais bens serem destruídos pelo fato de serem bens de
consumo e sobre estes não incidir a função social da propriedade. Bens de
consumo conforme Orlando GOMES não tem uma função social, prestam-se a
atender necessidades individuais. Esta característica, entretanto, não pode
obscurecer e turvar o entendimento, pois, é de se exigir, em certos casos, para
essa espécie de bens o atendimento aos princípios constitucionais da função
social da propriedade. Ressaltamos que professor rejeita e.g., a idéia de que o
titular possa ao seu talante destruir e.g., bens de primeira necessidade:
“Permitido não deve ser que destrua, por exemplo, gêneros de primeira
necessidade destinado ao consumo público, se com esse ato se coloca contra o
interesse coletivo”.79
No rumo das idéias até aqui lançadas, parece que não é possível a
redução da função social a bens de produção. “O princípio da função social tem
relevância em todas as modalidades de direitos reais [...]. O problema coloca-se
com maior acuidade no que toca aos bens de consumo. Mas a disciplina da
requisição demonstra só por si que também os direitos sobre bens de consumo
são limitados pela função social”.80
Ainda no campo dos exemplos e com fundamento no uso racional e
adequado do bem, encontra-se o dever de recompor as reservas florestais de
preservação permanente e as reservas legais da propriedade.81 O proprietário
79 Idem. Introdução ao direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1983, p. 68.
80 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil : Reais. 5. ed. Coimbra : Coimbra, 1993, p. 206-207.
81 As reservas florestais de preservação permanente não se confundem com as reservas legais, porque aquelas são reservas que têm
como função propiciar a defesa ambiental de determinados sítios, morros, mangues, rios. A reserva legal insere-se na perspectiva de
dotar o bem de uma reserva florestal que servirá para atender as necessidades de produtos florestais das propriedades. Percebe-se
assim que as reservas florestais de preservação permanente são insuscetíveis de exploração econômica. O que não ocorre com as
reservas legais, suscetíveis de exploração desde que secundadas de plano de manejo sustentado que garanta a sua permanência.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
51
poderá, assim, se ver obrigado a recompor as florestas em determinadas regiões
para atender ao uso racional da propriedade.82
Para concluir, percebe-se um entrelaçamento entre o plano estrutural e estático,
consignado no direito subjetivo, e a função social a que o uso do bem deve
obedecer. A coordenação e limites recíprocos possibilitam uma transformação
do modelo clássico da propriedade privada dos bens imobiliários rurais.
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA
A função social da propriedade, como o momento dinâmico, deve ser
posta para atender aos interesses da sociedade, sendo portanto um dever que o
titular da propriedade privada assume por estar na condição de sujeito do
dominus. Assim, alinhava-se a idéia de que a propriedade deverá atender
finalidades para além do interesse individual. Desse modo, em determinadas
circunstâncias, os interesses podem se contrapor. Nada obstante, a função
social da propriedade pode perfeitamente harmonizar-se com o interesse privado
do sujeito de direito proprietário. A função social da propriedade urbana inscrevese, assim, na leitura que vem sendo feita sobre o direito público e o privado que
estabelecem regras de coordenação e limites, sem a supressão de nenhum de
seus aspectos.
A Constituição Federal de 1988 inova e insere todo um capítulo sobre a
política urbana. E aí destaca-se a função social da propriedade urbana. Antes de
tentar estabelecer os seus contornos gerais, faz-se importante uma breve
digressão acerca dos usos e abusos que cercam o prédio urbano.
O prédio urbano pode receber múltiplos usos, porém, nele, tanto quanto
no rural, o potencial para especulação e reserva de valor é acentuado. A
especulação imobiliária lança para a periferia e na marginalidade da cidade
82 A lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política agrícola estabelece no artigo 99, a obrigação de recompor a
reserva florestal. Esse dispositivo é interessante porque determina ao proprietário de um imóvel degradado, a obrigação de recompor
essa espécie de florestas. Uma espécie de obrigação propter rem. O sujeito passivo da obrigação é determinado pela sua situação
jurídica enquanto titular do direito de propriedade.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
52
milhões de brasileiros. Esse é um fato social que se apresenta nas cidades
brasileiras. A par dessa distorção, no mundo urbano são criados centros de
civilidade, onde o estado parece funcionar com um certo grau de eficiência. Essa
situação, além de lançar muitos no mundo periférico do sistema estatal, provoca
um subproduto. Os integrantes dos centros de civilidade, embora possam
desfrutar da vida pública e de adequadas instalações privadas para desenvolver
a sua personalidade, encontram-se como que sitiados. Os efeitos da
concentração de riquezas derramam-se por dentro da cidade e nela inoculam os
corrosivos e explosivos produtos da exclusão, por exemplo, a violência. Tem-se,
então, um paradoxo: as ruas se tornam, nos grandes centros, ambientes que
provocam o medo. Em contraponto, criam-se locais onde o mundo não penetra.
Espaços onde os que têm, podem em segurança, exercer suas atividades, sejam
elas de lazer ou de profissão.
Esses espaços privados, imunes à penetração dos excluídos, trazem
também a violência, o que se parece muito com parte do direito positivo,
orientado cada vez mais para atender a interesses localizados. Muitas leis são
lançadas no mercado consumidor de normas jurídicas para satisfazer os
consumidores de segurança e, tais quais os shopping centers e casas de lazer,
muitas de acesso a um público restrito.
O mundo urbano transformado em diversos microcosmos orienta-se em
uma infinidade de direções, mas com uma decisiva predileção para o sujeito de
direito proprietário. Nesse âmbito ocorre a revolta dos fatos contra o direito e o
Brasil depara-se com parte da população em levante. Pessoas se insurgem
contra o direito estatal e em especial contra o Estatuto da dominialidade privada
sobre bens urbanos e rurais.
A insurgência contra o Estatuto da Dominialidade Privada sobre bens
imobiliários deve ser analisada com um certo cuidado. Parece que a insurreição
das populações, manifestada através de invasões de bens privados e públicos,
não é uma demonstração de que o povo queira abolir a propriedade privada.
Tem mais o sentido de lutar por um direito fundamental que é o direito a um
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
53
lugar onde possa habitar e ter uma vida privada minimamente condizente com a
condição humana. Assim, as invasões se dão contra o uso especulativo da
propriedade urbana. O professor Joaquim de Arruda FALCÃO, em trabalho
realizado na cidade do Recife, detecta que:
Um segundo aspecto da estratégia do invasor é que este é contra um
determinado direito de propriedade e a favor de outro; seu ideário não
corresponde à versão ingênua, que a imprensa às vezes fornece, de
alguém disposto a lutar pela abolição da propriedade privada, do regime
etc.. Isso são conotações muito ideológicas e limitadas, que fazem a
cabeça do Judiciário, mas que não constituem a realidade. A realidade é
outra, é um direito de moradia que se sobrepõem a um direito de
propriedade especulativa.83
O Estatuto da dominialidade privada encartado no Código Civil, em suas
linhas gerais, privilegia um sujeito que se escora em estatutos que estimulam o
lado estático da propriedade. O titular da propriedade privada imobiliária poucas
preocupações tem em manter a sua propriedade em desuso, pois não lhe pesa
nenhuma sanção.
Deslocando o rumo dessa situação, a Constituição Brasileira de 1988
impõem novas coordenadas jurídicas. A função social da propriedade urbana
ganha parâmetros que ampliam em muito a sua textura jurídica. Num plano
diferente
da
função
social
da
propriedade
imobiliária
rural
que,
desnecessariamente, elevou a produtividade como o centro desse conceito: a
função social da propriedade urbana estabeleceu contornos mais homogêneos
entre produtividade e o direito fundamental de habitação.
A função social da propriedade imobiliária urbana poderá ser delineada
em detalhes nos planos diretores dos Municípios.84 Linhas básicas, entretanto,
são traçadas na Constituição Federal. Em relevo, destacam-se o parcelamento e
83 FALCÃO, Joaquim de Arruda. Invasões urbanas, conflitos de direito de propriedade. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 300, p. 44,
1987.
84 “A fixação do conteúdo do direito de propriedade urbana, isto é, pode produzir-se ‘ope legis’ ou pelos planos, e normas edilícias”.
COLLADO, Pedro Escribano. Apud SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo : Malheiros, 1995, p. 68.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
54
a edificação compulsória. Tanto um como a outra oferecem a medida que
norteou o legislador constitucional. São instrumentos que têm por meta atacar a
especulação e a concentração de espaços urbanos e assim privilegiar o homem
no seu direito fundamental de habitação.
O parcelamento e a edificação compulsória por certo não são os únicos
instrumentos que fazem parte de uma política de desenvolvimento urbano. Eles
funcionam como parâmetros que não poderão ser ignorados nos planos
diretores dos municípios. Nesse rumo, o projeto de lei do Senado Federal nº
5.788 de 1990 (Estatuto da Cidade), prevê criar inúmeros instrumentos de
política de desenvolvimento urbano. Resumidamente no artigo 16 dispõem dos
seguintes instrumentos: Fiscais — impostos progressivos e regressivos, taxas e
tarifas diferenciadas, incentivos e benefícios fiscais — ; Financeiros e Econômicos — fundos especiais, tarifas diversificadas de serviços públicos, coresponsabilização dos agentes econômicos — ; Jurídicos — edificações compulsórias, obrigação de parcelamento e remembramento, desapropriação, servidão
administrativa, limitação administrativa, tombamento, direito real de concessão
de uso, direito de preempção, direito de superfície, usucapião especial — ;
Administrativos — reservas de áreas para utilização pública, regularização
fundiária; licença para construir apoiada em código de obras e edificações,
autorização para parcelamento, desmembramento ou remembramento do solo
para fins urbanos, em observância ao Plano Diretor — ; Políticos —
planejamento urbano, que deverá conter o Plano Diretor, participação popular.
Um amplo espectro jurídico se vê no Estatuto da Cidade, aumentando em
muito as perspectivas jurídicas do conceito função social da propriedade privada
imobiliária urbana.
Gravado no princípio da função social, a usucapião moradia, prevista na
Constituição, também pode se transformar em efetivo instrumento de
modificação da propriedade privada clássica. Destaque-se a usucapião coletiva
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
55
em áreas urbanas com mais de 250 metros, ocupadas por populações de baixa
renda, previsto no artigo 34 do projeto do Estatuto da Cidade.85
A usucapião coletivo pode redesenhar o mapa das titularidades dos
grandes centros, pois conforme o professor Joaquim de Arruda FALCÃO, “a
maioria da população brasileira tem um direito de propriedade que não tem nada
a ver com o que o Código diz, que é o direito de propriedade”.86 E se a
titularidade da imensa maioria da população “não tem nada a ver com o que o
Código diz” é porque este encontra-se superado frente aos fatos. A dinâmica
social impôs um novo arranjo em matéria de ocupação do espaço urbano. As
pessoas edificaram suas habitações e não têm como se inserir no direito
clássico. Essa situação as coloca em posição de extrema fragilidade frente a
sujeitos especuladores. O direito do Código não atende a essas pessoas porque
não as reconhece como sujeitos de direito.
CONCLUSÃO
O Direito é plural, conceitual, instrumental, social, liberal, democrático,
injusto, justo, e outros tantos adjetivos que se queira dar. Nada obstante a
tentativa de qualificá-lo, permanecem algumas questões em aberto. Porque para
além de explicações filosóficas, sociológicas, com toda a tecnicidade contida nas
normas jurídicas não se soluciona problemas cruciais como a habitação, direito a
uma vida digna, etc (?)
A excessiva e cega prisão a conceitos jurídicos herméticos pode ser uma
das explicações. Outras tantas pode-se colar no texto, juízes ausentes dos
problemas sociais, que se afastaram das academias, que se afastaram do povo.
85 Nelson Saule Júnior traça algumas críticas aos projetos de Lei n. 2191/89 e n. 5.788/90 que visam regulamentar os artigos 182 e 183 da
Constituição. Afirma que “O usucapião urbano não foi regulamentado da maneira devida para a sua aplicação, como por exemplo a falta de previsão do
procedimento processual a ser adotado para a promoção da ação judicial, a falta de previsão do usucapião coletivo, de permitir a restrição das áreas
sujeitas ao usucapião pelo plano diretor”. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro : Ordenamento constitucional da política urbana :
Aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre : S. Fabris, 1997, p. 180.
86 Falcão, op. cit., p. 40.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
56
Advogados preocupados exclusivamente com o seu entorno e com os seus
honorários. Enfim um rosário de lamentações pode aqui ser trançado. O que
moveu a pena a materializar estas linhas foi uma certa sensação de Dejà vu em
relação a textos constitucionais ou não, que são restringidos em uma leitura
conceitual limitante.
A propalada constitucionalização do direito privado pode ser apenas um
café requentado. E isto tornar-se-á inevitável se o apego a conceitos fechados
continuarem a orientar a Jurisprudência.
A função social da propriedade recebe críticas das mais diversas : para a
direita trata-se de uma socialização do direito de propriedade, para a esquerda
apenas um amortecimento das contradições sociais. Correu-se aqui um risco.
Pois a vinculação de um conceito polêmico e controverso como é a da obrigação
propter rem, a um outro ainda mais polêmico como é o caso da função social da
propriedade não é comum.
A função social da propriedade para alguns é um conceito destituído de
conteúdo, mesmo que isto fosse correto, o que efetivamente não é, a técnica das
obrigações propter rem oferece esta carga de conteúdo que talvez dê um novo
torque ao conceito. Não se procurou nesta monografia o desfilar de novidades a
título de tese. Buscou-se um olhar quiçá inovador de conceitos jurídicos
ancestrais. Tudo dentro de uma repersonalização do Direito e por conseqüência
do direito obrigacional e real.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Manuel A. Domingues de.
Teoria geral da relação jurídica:
sujeitos e objecto. Vol. I. Coimbra : Almedina, 1992, p. 2.
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Rio de Janeiro : Lumen Juris,
1996.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
57
ASCENSÃO, José de Oliveira.
A tipicidade dos direitos reais.
Lisboa :
Petrony, 1968.
— Direito civil : Reais. 5. ed. Coimbra : Coimbra, 1993.
BASTOS, Celso Seixas Ribeiro. A função social da propriedade. Revista da
Procuradoria do Estado de São Paulo, n. 25/26, 1986.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Revista Brasileira de Direito Comparado,
Rio de Janeiro, n. 9, 1990.
CARBONNIER, Jean. Flexible droit : Pour une sociologie du droit sans rigueur.
7. ed. Paris : LGDJ, 1992.
CARVALHO,Orlando. A teoria geral da relação jurídica : seu sentido e
limites. Coimbra : Centelha, 1981.
COLLADO, Pedro Escribano. Apud SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico
brasileiro. São Paulo : Malheiros, 1995, p. 68.
COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 732, 1996.
COMPORTI, Marco. Ideologia e norma nel diritto di proprietà. Rivista di Diritto
Civile, Padova, a. 30, n. 3. 1984.
DIAS MARQUES. Apud. GARCEZ NETO, Martinho. Ônus real. In. Repertório
Enciclopédico do direito brasileiro. Vol. XXXV. Coord. J. M. CARVALHO
SANT0S, Rio de Janeiro : Borsoi, s/d.
DOMANSKI, Marcelo. Posse: da segurança jurídica à questão social. (Na
perspectiva dos limites e possibilidades de tutela do promitente
comprador através dos embargos de terceiros). Rio de Janeiro: Renovar,
1998.
FACHIN, Luiz Edson. Terras devolutas e a questão agrária brasileira : anotações
preliminares para um ensaio. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 629,
1988.
FALCÃO, Joaquim de Arruda. Invasões urbanas, conflitos de direito de
propriedade. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 300, p. 44, 1987.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
58
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Do processo legislativo. São Paulo :
Saraiva, 1995.
FREITAS, Luiz Roldão de Freitas. O estatuto da propriedade perante o novo
ordenamento constitucional brasileiro. In. Revista Forense. Vol. 309. Rio de
Janeiro : Forense, 1990, p. 25 – 32.
GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 309,
jan./mar, 1990.
GOMES, Orlando. A função social da propriedade. Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, 1989.
GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1991.
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São
Paulo : RT, 1967, p. 2 – 3.
GONDIN, Abnor. Trabalho Escravo causa desapropriação. Folha de S. Paulo,
29 de novembro de 1997, p. 14. 1. Caderno.
HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte :
Del Rey, 1995, p. 124.
JOUVENEL, Bertrand de. As origens do Estado moderno : uma história das
idéias políticas no século XIX. Rio de Janeiro : Zahar, 1978.
LIRA, Ricardo César Pereira. A propriedade urbanística. Revista Forense, Rio
de Janeiro, v. 300, p. 53, 1987.
MAGALHÃES, Maria Luísa Faro. Função social da propriedade e meio ambiente
princípios reciclados. In: BENJAMIN, Antônio Herman V. [Coord.]. Dano
ambiental : prevenção, reparação e repressão. São Paulo : RT, 1993.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Novos aspectos da função social da
propriedade no direito público. Revista de direito público, São Paulo, 1987.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 4,
1987.
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2.ª ed. Lisboa : Editorial
Estampa, 1994, p. 38.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
59
MIRANDA,
Jorge.
Manual
de
direito
constitucional.
t.
4:
Direitos
fundamentais.2ª ed. Coimbra : Coimbra, 1993.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das
obrigações, 1.ª parte. 4º vol. São Paulo : Saraiva, p. 3 – 4.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo : Saraiva,
1982.
NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários
à Constituição
federal : ordem econômica e financeira. Porto Alegre : Livraria do advogado,
1997.
PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3.ª ed. Coimbra :
Coimbra, 1996, p. 172 – 175.
PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural. Belo
Horizonte : Del Rey, 1994.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Tomo XVIII. 3ª ed. Rio de
Janeiro : 1971, p. 24.
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Lisboa :
Almedina, 1982.
RUSSOMANO, Rosah. Função social da propriedade. Revista de Direito
Público, São Paulo, n. 75, 1985.
SAN TIAGO DANTAS, F. C. de. O conflito de vizinhança e a sua composição.
Forense : Rio de Janeiro, 1972.
SAULE JÚNIOR , Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico
brasileiro : Ordenamento constitucional da política urbana : Aplicação e
eficácia do plano diretor. Porto Alegre : S. Fabris, 1997.
SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 1993.
TASSO, Torquato. Da situação jurídica. Revista do Curso de Direito da
Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, v. 10, nº 1,2.
TEÓFILO FILHO, F. Edson. A organização da produção nos assentamentos :
subordinação ou autogestão. In: ROMEIRO, Adhemar et. al. [Org.]. Reforma
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
60
Agrária : produção, emprego e renda: o relatório da FAO em debate.
Petrópolis : Vozes, 1994.
TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o
código civil, a legislação ordinária e a Constituição. Revista Forense, Rio de
Janeiro, v. 306, 1989.
— A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o Código civil, a legislação
ordinária e a Constituição. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, 1989.
— A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o Código civil a legislação
ordinária e a Constituição. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 75,
1989.
TRIMARCHI, Pietro. Istituzioni di diritto privato. Milano : Giuffrè, 1991..
WALD, Arnoldo. Direito das coisas. São Paulo : RT, 1988.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
61
DIREITO CIVIL EM TRANSFORMAÇÃO: BREVE LEITURA A
PARTIR DA OBRA DE MAX WEBER
FLORI ANTONIO TASCA
Professor Titular na Faculdade Mater Dei e Professor Adjunto na Universidade Estadual
de Ponta Grossa. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
Advogado no Paraná.
RESUMO: O artigo aborda o Direito Civil contemporâneo a partir da obra de Max Weber,
analisando os "tipos ideais de direito" imaginados pelo eminente sociólogo. O autor trata
das transformações sofridas pelo Direito Civil nas últimas décadas, que se manifestam
por fenômenos como a "descodificação", "constitucionalização" e a "repersonalização"
do direito. Observa o autor que apesar da evolução do pensamento jurídico, a realidade
social retrata uma situação de injustiça e exclusão, que se afasta dos princípios jurídicos
de proteção das pessoas enunciados pelo "Novo Direito Civil".
ABSTRACT: This article approaches the contemporary Civil Law from the work of Max
Weber, analyzing the "ideal types of right" imagined by the eminent sociologist. The
author deals with the changings undergone by the Civil Law in the last decades, which
are revealed through phenomena such as the "decodification", "constitutionalization" and
the "repersonalization" of the right. The author observes that despite the legal thought
evolution, the social reality portrays a situation of injustice and exclusion, which moves
away from the legal principles of protection of the people enunciated by the "new Civil
Law".
INTRODUÇÃO: NOTAS DA SOCIOLOGIA JURÍDICA EM MAX WEBER
Uma das facetas da riqueza da obra de Max Weber é revelada pela
profunda análise das estruturas sociais, em seus múltiplos aspectos: culturais,
políticos, éticos, jurídicos ou econômicos, circunstâncias que ensejam a reflexão,
contribuindo para uma leitura crítica da sociedade atual.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
62
A sólida formação cultural de Weber
87
certamente foi decisiva para sua
visão sociológica da existência humana, sendo a sociologia encarada como
ciência
compreensiva,
no
sentido
de
que
"pretende
compreender
interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e
em seus efeitos". 88
Ao buscar a compreensão da realidade social nas raízes de suas
diversas manifestações, o pensamento weberiano reconhece a impossibilidade
de proceder-se uma "análise puramente 'objetiva' da vida cultural" ou dos
"fenômenos sociais". 89
Os imperativos éticos, culturais, religiosos, jurídicos ou econômicos são
fundamentais para uma compreensão holística da sociedade, notadamente hoje,
revelando-se atual e relevante o pensamento weberiano para o estudo das
ciências sociais.
87 "Weber nasceu em ambiente privilegiado intelectual e materialmente. Sua mãe, descendente de uma família de industriais têxteis, culta, piedosa,
humanista e defensora de uma religiosidade pétrea. O pai, deputado no Parlamento Federal, o Reichstag de Berlim, político liberal conservador, opunhase, com o seu pragmatismo, ao idealismo da esposa ... O ambiente erudito e intelectual do lar contribuiu para sua precocidade. Aos treze anos de idade
Weber já escrevia ensaios históricos penetrantes. Em 1882, ingressou na universidade de Heidelberg como estudante de direito, embora tenha cursado
inúmeras outras matérias, como economia, filosofia, história." ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O ícaro da modernidade: direito e política em Max
Weber. São Paulo : Acadêmica, 1997, p. 18-29.
88 COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber e a História. Tradução de Eduardo Biavati Pereira. São Paulo : Brasiliense, 1995, p. 99.
"A sociologia deve ser 'compreensiva' porque seu objeto é a ação humana, e porque esta possui uma característica à qual os
procedimentos das ciências da natureza não podem fazer justiça : a ação humana é dotada de sentido. Esta constatação, para Max
Weber, não é motivo para abandonar o projeto de explicação racional da ciência em geral. Contra aqueles que extraem argumento dessa
especificidade do objeto das ciências humanas para lhes subtrair o ideal de objetividade racional das ciências exatas, Weber replica que
o caráter significativo da ação autoriza uma inteligibilidade racional ainda maior. 'A ação individual, do fato de que ela pode ser
interpretada segundo seu sentido (seiner sinnvollen Deutbarkeit wegen), é principal e especificamente menos 'irracional' que o processo
natural individual". Idem, p. 100-101.
89 WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: Max Weber - Sociologia. Organização Gabriel Cohn.
Consultoria Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Ática, 1986. Traduzido de "Die 'Objektivität' Sozialpolitischer Erkenntniss".
Gesammelte Aufätze zur Wissenschaftlehre, 4ª edição. Organização e Revisão Johannes Winkelmann. (Tübingen, 1973).
"Não existe qualquer análise científica puramente 'objetiva' da vida cultural, ou - o que pode significar algo mais limitado, mas
seguramente não essencialmente diverso, para os nossos propósitos - dos 'fenômenos sociais', que seja independente de determinadas
perspectivas especiais e parciais, graças às quais estas manifestações possam ser, explícita ou implicitamente, consciente ou
inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposição, enquanto objeto de pesquisa. Deve-se isso ao caráter
particular do alvo do conhecimento de qualquer trabalho das ciências sociais que se proponha ir além de um estudo meramente formal
das normas - legais ou convencionais - da convivência social. A ciência social que nós pretendemos praticar é uma ciência da realidade.
Procuramos compreender a realidade da vida que nos rodeia e na qual nos encontramos situados naquilo que tem de específico; por um
lado, as conexões e a significação cultural das suas diversas manifestações na sua configuração atual e, por outro lado, as causas pelas
quais se desenvolveu historicamente assim e não de outro modo”. Idem, p. 87-88.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
63
Com ampla formação no campo do direito, Weber constrói as bases de
uma sociologia jurídica cuja função é "compreender o comportamento
significativo dos membros de um grupamento quanto às leis em vigor e
determinar o sentido da crença em sua validade ou na ordem que elas
estabelecerem", 90 como explica Julien Freund.
Para estudar o direito, Weber lança mão do conceito que é marcante em
sua obra, a idéia de "tipo ideal", que, no dizer de Catherine Colliot-Thélène, é a
"noção forjada por Weber para especificar o aspecto construtivo a toda
elaboração conceitual". 91
90 FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber, 3ª edição. Tradução de Luís Claudio de Castro e Costa. Rio de Janeiro : Forense
Universitária, 1980, p. 178. "Procura, pois, apreender até que ponto as regras de direito são observadas, e como o indivíduos orientam
de acordo com elas sua conduta. Para a dogmática jurídica uma norma é válida desde que seja estabelecida ou figure em um código;
para a sociologia trata-se de controlar sua importância no curso da atividade social dos indivíduos, pois não é sempre que uma lei
estabelecida é respeitada. Acontece, com efeito, muitas vezes, que a massa se orienta inconscientemente, por hábito, segundo as
prescrições legais, sem Ter nenhum conhecimento de sua vigência ou de seu texto, por vezes ignorando mesmo sua existência." Idem,
p. 178-179.
91 COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Obra citada, p. 158.
Pode-se entender o significado da categoria do "tipo ideal", quando escreve Weber : "As 'idéias' que dominaram os homens de uma
época, isto é, as que neles atuaram de forma difusa, só poderão ser compreendidas, sempre que formem um quadro do pensamento
complicado, com rigor conceitual, sob a forma de um tipo ideal, pois empiricamente elas habitam as mentes de uma quantidade
indeterminada e mutável de indivíduos, nos quais estavam expostas aos mais diversos matizes, segundo a forma e o conteúdo, a clareza
e o sentido. Os elementos da vida espiritual dos diversos indivíduos em determinada época na Idade Média, por exemplo, que
poderíamos designar pelo termo de 'cristianismo' dos indivíduos em questão, constituiriam , caso fôssemos capazes de expô-los por
completo, um caos de relações intelectuais e de sentimentos de todos os tipos, infinitamente diferenciados e extremamente
contraditórios, se bem que a Igreja da Idade Média tenha sido capaz de impor, em elevado grau, a unidade da fé e dos costumes. Posta
a questão do que correspondia, no meio daquele caos, ao 'cristianismo medieval', com o qual temos de trabalhar continuamente como se
se tratasse de um conceito já estabelecido, ou o problema de saber em que consistia o elemento 'cristão' que encontramos nas
instituições da Idade Média, logo descobriremos que utilizamos constantemente um quadro mental puro por nós criado. Trata-se de uma
combinação de artigo da fé, de normas éticas e de direito canônico, de máximas para o comportamento na vida, e de inúmeras relações
particulares, que nós combinamos numa só 'idéia'; numa síntese que seríamos incapazes de estabelecer de modo não contraditório sem
recorrer a conceitos típico-ideais." WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: Max Weber - Sociologia,
citado, p. 111-112.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
64
A VISÃO WEBERIANA DO DIREITO A PARTIR DOS TIPOS IDEAIS
Julien Freund esclarece que a distinção entre direito formal e direito
material na obra weberiana é importante na medida em que condiciona a
racionalização do direito. 92
A dicotomia direito racional/irracional
93
também é fundamental para a
compreensão dos tipos ideais de direito em Weber, que são assim
apresentados, na síntese de Julien Freund:
"Os comentaristas de WEBER distinguem em geral quatro tipos ideais do
direito: 1º, o direito irracional e material: quando o legislador e o juiz se
fundamentam em puros valores emocionais, fora de qualquer referência a uma
norma, para consultarem apenas a seus próprios sentimentos. Como os demais
tipos, este não é encontrado em seu estado puro, embora a justiça feita por um
déspota possa aproximar-se dessa qualidade. Da mesma forma a do Cádi, ou
juiz muçulmano que, do ato de sua autoridade, parece fazer justiça apenas em
função de seu arbítrio...; 2º, o direito irracional e formal: o legislador e o juiz se
deixam guiar por normas que escapam à razão, porque se pronunciam com base
em uma revelação ou em um oráculo (ordálios); 3º, o direito racional e
material: a legislação ou o julgamento se referem a um livro sagrado (por
exemplo, o Corão), à vontade política de um conquistador ou a uma ideologia;
92 "WEBER entende por lei formal a disposição jurídica que se deixa deduzir logicamente apenas dos pressupostos de um sistema
determinado do direito. O direito formal é, pois, o conjunto do sistema do direito puro do qual todas as normas obedecem unicamente à
lógica jurídica, sem intervenção de considerações externas ao direito. O direito material, ao contrário, leva em conta os elementos
extrajurídicos e se refere no curso de seus julgamentos, aos valores políticos, éticos, econômicos ou religiosos. Daí, duas maneiras de
conceber a justiça: uma se atém exclusivamente às regras da ordem jurídica, é justo o que é estabelecido e conforme a letra ou a lógica
do sistema: a outra leva em conta a situação, as intenções dos indivíduos e as condições gerais de sua existência." FREUND, Julien.
Obra citada, p. 184.
93 Como escreve Katie Argüello: "O Direito pode ser 'racional' em diversos sentidos, conforme as diferentes direções que pode tomar o
processo de racionalização do pensamento jurídico. Weber enfatiza dois caminhos desta racionalização, que vão desde o sentido de
processo mental mais simples até ao mais complexo ... o recurso a normas gerais e abstratas, no processo de decisão, é característica
de uma ordem jurídica racional, que permite um grau elevado de previsão e cálculo. Contraria um sistema jurídico irracional, em que
seus operadores atuam de forma arbitrária, com base em valores afetivos, emocionais, e não em razão de uma norma geral e abstrata
que permite previsibilidade e calculabilidade. Logo, a irracionalidade ou racionalidade do sistema está referida ao grau de previsibilidade
do mesmo, embora seja fundamental não esquecer que Weber trabalha com tipos ideais, e, portanto, na realidade, mesmo em uma
ordem jurídica irracional, podem aparecer alguns aspectos de racionalidade e vice-versa." ARGÜELLO, Katie. Obra citada, p. 1.128-130.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
65
4º, o direto racional e formal: a lei e o julgamento são estabelecidos
unicamente com base em conceitos abstratos, criados pelo pensamento
jurídico". (grifou-se) 94
No dizer de Weber, "a interpretação 'racional' da lei, à base de conceitos
rigorosamente formais, opõe-se ao tipo de adjudicação ligado primordialmente
às tradições sagradas". 95
94 "Diferentemente do direito formal, que tende a sistematizar as normas jurídicas, o direito material permanece empírico, porque é, por
força das circunstâncias, casuístico. Entretanto, esses dois direitos se deixam racionalizar: um malgrado a racionalização crescente, um
e outro conservam elementos irracionais, por exemplo, o juramento. Além disso, o júri, como instituição penal, é o sinal mais patente da
irracionalidade, como o provam os ataques de que é alvo. Uns vêem nele um instrumento da luta das classes, outros uma ocasião para
que os jurados darem livro curso a seu ressentimento, a seus instintos ou a seus complexos, outros o consideram como um anacronismo
que desafia o progresso entendido como uma racionalização da esfera jurídica. Em suma, passa por uma espécie de oráculo irracional
nas mãos de profanos, inimigos de classe ou 'perversos'." FREUND, Julien. Obra citada, p. 184-185.
95 "O caso à parte, que não pode ser resolvido sem ambigüidades pela tradição, é solucionado pela 'revelação' concreta (oráculo,
profecia ou ordálio, isto é, pela justiça 'carismática') ou - e apenas esses casos nos interessam aqui - pelos juízos informais prestados em
termos de avaliações éticas concretas, em outras avaliações práticas. É a justiça do Cádi', como adequadamente a chamou R. Schmidt.
Ou os julgamentos formais são feitos não pela suposição de conceitos racionais, mas no recurso às 'analogias' e dependendo dos
'precedentes' concretos e de sua interpretação. É a 'justiça empírica'. A justiça do Cádi não conhece qualquer julgamento racional. Nem
a justiça empírica do tipo puro apresenta quaisquer razões que possam, em nosso sentido, ser chamadas de racionais. O caráter
avaliativo concreto da justiça do Cádi pode avançar até o rompimento profético com toda a tradição. A justiça empírica, por sua vez, pode
ser sublimada e racionalizada numa 'tecnologia'. Todas as formas não-burocráticas de domínio evidenciam uma coexistência peculiar :
de um lado, há uma esfera de tradicionalismo rigoroso, e, de outro, uma esfera de arbitrariedade livre e de graças senhoriais. Portanto,
as combinações e as formas de transição entre esses dois princípios são muito freqüentes; serão discutidas em outro contexto. WEBER,
Max. Ensaios de Sociologia, 3ª edição. Organização H. H. Gerth. Revisão técnica da tradução por Fernando Henrique Cardoso. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 152-252.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
66
O exemplo kafkiano da irracionalidade do direito96 contrasta com um
modelo racional e formal, como o construído pelo pensamento kelseniano,
mediante uma teoria jurídica "purificada de toda a ideologia política e de todos os
elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua
especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto". 97
Assim,
essencialmente,
sob
num
o
enfoque
sistema
racional-formal
integrado
de
"todo
normas
direito
consiste,
abstratas",98
com
96 Formado em direito pela Universidade de Praga, em 1906, o escritor tcheco Franz Kafka, ao escrever "O Processo", fornece uma idéia da
irracionalidade do direito, sendo o julgamento de Josef K. (personagem principal do livro), absolutamente alheio à racionalidade :
"Tu és Josef K. - disse o sacerdote, erguendo a mão do parapeito do púlpito e fazendo com ela um impreciso movimento.
Sim - confirmou K. ...
Estás acusado - declarou o sacerdote, com voz excessivamente baixa.
Sim - disse K. - assim mo notificaram.
Então és aquele que procuro - declarou o sacerdote - ; eu sou o capelão do cárcere.
Fiz com que viesses aqui -, disse o religioso - para falar comigo ...
Sabes que teu processo caminha mal ? - perguntou o sacerdote.
Também me parece assim - disse K. - Não me descuidei de nenhum esforço, mas até agora não consegui nenhum resultado satisfatório. É certo que
ainda não tenho redigido o primeiro escrito.
Como supões que terminará o teu processo ? perguntou o religioso.
Antes eu acreditava que terminaria bem - respondeu K. - mas agora duvido-o muito. A dizer a verdade, não sei como terminará. Sabes tu?
Não - replicou o sacerdote -; mas temo que termine mal. És considerado culpado. Provavelmente teu processo não saia da esfera dos tribunais
inferiores. Ao menos pelo momento considera-se provada a tua culpa.
Mas, não sou culpado - replicou K. - ; trata-se de um engano. Como poderia ser culpado um ser humano ? Todos somos aqui homens, tanto uns como
os outros.
É certo - disse o sacerdote -; mas precisamente assim é como costumam falar os culpados." KAFKA. Franz. O processo. Tradução de Torrieri
Guimarães. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 225-226.
97 "A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria
geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da
interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conheceu o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão; O que é e
como é o Direito ? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e
não política do Direito. Quando designa a si própria como 'pura' teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um
conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se
possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isto qer dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe
são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental." KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 2ª edição. Tradução de João
Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1987, p. 01.
98 WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática : uma construção do tipo ideal. In: Sociologia da Burocracia. Organização
Edmundo Campos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966, p. 16. Traduzido de "The Essentials of Bureaucratic Organization: na IdealType Construction", em Robert K. Merton et. al. Reader in Bureaucracy (Glencoe, Illinois : Free Press, 1963).
"Ademais, a administração da lei consiste na aplicação dessas normas a casos particulares. O processo administrativo é a busca
racional dos interesses - especificados pelos preceitos legais e segundo princípios susceptíveis de formulação geral - aprovados pelas
ordenações da associação ou, pelo menos, não desaprovados por elas”. Idem, ibidem.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
67
características de previsibilidade dos resultados e com pretensa neutralidade
axiológica.99
Em tal contexto, válida a ponderação de Katie Argüello, no sentido de
que, "da análise da relação entre direito racional-formal e direito racionalmaterial, fica evidente um antagonismo profundo e insuperável, que permanece
ao longo da História, entre o formalismo lógico, cujas decisões se referem a
conceitos gerais e às necessidades humanas materiais que necessitam ser
cumpridas através do Direito".100
O paradoxo se evidencia ainda mais na sociedade hodierna, que viveu e
vive em transformação, caracterizada por um crescente processo de
desigualdade econômico-social, marcante na onda neoliberal deste momento
histórico.
Ao lado da imensa massa de excluídos, o ordenamento jurídico, em
teoria, assegura aos homens uma "igualdade formal" perante a lei, concedendo
a oportunidade de gozo de "direitos virtuais", aqueles que se encontram
cristalizados na legislação mas distantes da realidade social. [...]
DIREITO CIVIL E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Uma das leituras possíveis da realidade social na atualidade pode ser
feita mediante o Direito Civil, que regulamenta as relações entre as pessoas,
sendo visto por alguns juristas como a própria essência do direito. 101
99 Na esclarecedora lição de Luiz Edson Fachin, "um sistema pretensamente neutro calcado em abstratas categorias jurídicas,
destinado a um ser impessoal, praticamente inatingível e com pretensões a perenidade, desenhou a formulação mais acabada do projeto
ideológico de sustentação do direito civil nos últimos dois séculos". FACHIN, Luiz Edson. Limites e possibilidades de uma nova teoria
geral do direito civil. In: Jurisprudência brasileira nº 172. Curitiba: Juruá Editora, 1994, p. 46.
100 ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. Obra citada, p. 133.
101 “O direito civil como essência do direito. Os direitos subjetivos constituem as células ou unidades do direito [...] Os direitos subjetivos civis formam a
essência ou a base dos direitos subjetivos em geral, pela proximidade ou mais íntima vinculação ao homem. E também porque este, como ser livre e
racional, constitui a unidade moral e finalística: a família, a escola, a igreja, o sindicato, a empresa, a cidade e o Estado são instrumentos de sua
realização pessoal [...] Donde a conclusão inafastável: o direito é semelhante a um foguete; a ogiva, com a tripulação humana, é o direito civil, enquanto
a estrutura de combustível, subdividida em fases ou etapas de propulsão, são os demais ramos do direito, os quais haverão de conduzir essa carga
nobre pela grande rota da vida em sociedade.” COSTA, Dilvanir José da. O direito civil como essência do direito. In: Revista de Informação Legislativa nº
106. Brasília: Editora do Senado Federal, abril/junho 1990, p. 225-226.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
68
Pode-se entender o direito, examinando-o dentro da realidade social em
que está inserido, sendo útil a análise da variação de significados que a
expressão "Direito Civil" tem sofrido no tempo e no espaço.
Costuma-se afirmar que o Direito Civil (cujo modelo ainda hoje
prevalece), teve origem com o advento do Estado Moderno, particularmente com
o Estado Liberal, caracterizado pela ascensão da burguesia ao poder.
Classe social que surge na Europa em fins da Idade Média com o
desenvolvimento econômico, a burguesia passa gradativamente a dominar a
vida política, social e econômica a partir do final do século XVIII, vindo a
consolidar-se seu poder no curso do século XIX.
Lutava a burguesia por liberdade e igualdade, "conquistadas" pela
Revolução Francesa e "consagradas" no Código Napoleão de 1804, pedra
fundamental do Direito Civil tradicional e paradigma das codificações do século
XIX.102
Foi nesse contexto histórico, segundo esclarece Maria Celina B. M.
Tepedino,103 que o Direito Civil passou a ser identificado com o próprio Código
Civil, criado com o objetivo de ser a "Constituição do Direito Privado", resultado
das exigências metodológicas do jusracionalismo aliado à ideologia liberal
burguesa, consagrando-se como o reino da liberdade individual.
A liberdade perante o Estado, a autonomia privada, a igualdade formal, o
exercício do direito “sagrado” de propriedade em sua forma absoluta, eram
102 Autores marxistas vislumbram no Código Napoleão como "a Bíblia da classe burguesa", como se depreende do texto de Petr
Ivanovich Stucka : "Como se sabe, a grande revolução francesa começou com a triunfante proclamação da Declaração dos direitos do
homem e do cidadão. Realmente esse direito da grande revolução francesa, este direito para toda a humanidade, foi somente um direito
do cidadão como classe, um código da burguesia (o Código Civil). Esse Código de Napoleão, o grande contra-revolucionário, constitui
efetivamente a formulação sintética da própria natureza da grande revolução francesa e, podemos acrescentar, de toda revolução
burguesa. Trata-se do texto predileto, ou, se se preferir, quase da Bíblia da classe burguesa, uma vez que contém a base da verdadeira
natureza da burguesia, do seu sagrado direito de propriedade." STUCKA. Petr Ivanovich. Direito e luta de classes. Teoria geral do direito.
Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p. 13.
103 Afirma a autora que há controvérsias conceituais em torno do direito civil, sendo que “a noção se explica melhor através da história
das instituições do que mediante uma discriminação racional do conteúdo [...] Entende-se tradicionalmente por direito civil aquele que se
formulou no Código Napoleão, em virtude da sistematização operada por Jean Domat.” TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um
direito civil constitucional. In: Revista de Direito Civil nº 65. São Paulo: RT, p. 21.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
69
princípios acolhidos pelo
Código Civil Francês. Assim o Direito Civil, em
oposição ao Direito Público, bem traduzia a racionalidade do Estado Liberal.
O Direito Civil era aquele que tutelava os interesses privados. O Direito
Público, por sua vez, protegia os interesses públicos, vigorando o princípio da
limitação do poder estatal ao mínimo necessário.
Ao indivíduo era concedida tutela, ampla o suficiente para de modo
isolado desenvolver toda sua potencialidade. Ao Estado era lícito intervir apenas
em função dos interesses dos próprios indivíduos.
Seguindo o modelo europeu, mais propriamente o Código Civil Francês e
o Código Civil Alemão de 1896, surge o Código Civil Brasileiro (CCB), elaborado
na virada do século (entrando em vigor em 1917), que espelhou, no plano
jurídico, a conjuntura econômica, social e política da época.
Como os demais códigos do seu tempo, o CCB materializou, num
sistema de regras jurídicas, os valores da sociedade liberal do século XIX.
Trata-se de um código essencialmente patrimonial, imobiliário e rural,
“expressão dos interesses da burguesia mercantil, mais liberal, e da burguesia
agrária, mais conservadora, do final do século XIX”, no dizer de Francisco
Amaral. 104
Todavia, a pretensão da existência de um corpo homogêneo e abstrato,
que tecnicamente deveria regular com a máxima amplitude todas as relações da
vida privada e ideologicamente atender a um determinado grupo de valores e
ideologias dominantes em sua época, sucumbiu diante das transformações
econômicas, sociais, políticas e culturais ocorridas ao longo deste século.
Sendo o direito um produto sócio-cultural, modifica-se juntamente com as
transformações ocorridas na sociedade, não podendo mais ser visto nos moldes
104 “As transformações da sociedade civil brasileira no curso deste século, co-envolta no processo da revolução industrial e tecnológica,
com a intervenção crescente do Estado no âmbito da autonomia privada, têm causado, porém, notórias modificações de natureza formal
e material do sistema de direito civil brasileiro..” AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro. Separata da
Revista O Direito, 1994, p. 79-80.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
70
do pensamento liberal burguês e do direito individualista que se consubstanciou
nos códigos dos séculos XIX e início do século XX. 105
Com o advento da 1ª Guerra Mundial, as transformações econômicas e
políticas ocorridas alteraram sensivelmente a consciência jurídica. O Estado
deixa de lado sua conduta abstencionista e passa gradativamente a intervir na
economia e na vida social, abalando radicalmente a base filosófica do estado
liberal, fulcrada na rígida separação entre a sociedade civil e o Estado. 106
As ações passam a ser dirigidas para os interesses coletivos e sociais,
determinando uma transformação estrutural no Direito Civil em razão do
enfraquecimento ou do perecimento de seus princípios, valores e construções
conceituais.
No âmago das novas tendências do Direito Privado, estão os fenômenos
da descodificação, constitucionalização e repersonalização, a oferecer uma nova
visão das instituições básicas do Direito Civil.
A DESCODIFICAÇÃO
O CCB foi editado sob o "mito da completude", segundo o qual a
codificação seria capaz de dar conta de todas as relações intersubjetivas entre
os particulares.
Entretanto, as transformações sociais, econômicas, culturais (dentre
outras) ocorridas no curso do século XX, evidenciaram o equívoco dos
105 "Durante os séculos XVIII e XIX, o pensamento individualista adotou um padrão mais distintamente econômico. Com o pleno impacto
da Revolução Industrial e o crescimento da empresa capitalista, o individualismo passou a ser mais do que um princípio filosófico ou
psicológico; converteu-se num lema político e econômico na forma de laissez-faire. Durante grande parte desse período e, na verdade,
prolongando-se até o século atual, o pressuposto de que a lei deveria interferir o menos possível na liberdade individual de ação e, em
especial, de ação econômica, sublinha quase toda a especulação jurídica e sociológica." LLOYD, Dennis. A idéia de lei. Tradução de
Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1985, p. 172.
106 A ideologia do social, explanada em valores de justiça social ou distributiva, são as marcas de um novo estado emergente. A tutela
dos interesses individuais dá lugar aos interesses coletivos, da pessoa humana integrada na sociedade; as concepções burguesas são
substituídas pelas concepções proletárias, fruto principalmente da industrialização e do trabalho subordinado; a ilusória igualdade formal
é substituída pela idéia de igualdade de fato.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
71
pressupostos apresentados pela legislador, porquanto surgiram na sociedade
conflitos de interesses que não encontravam solução no direito codificado.
A nova realidade exigia a criação de outras normas para atender as
demandas nascidas em decorrências das mudanças havidas em sociedade.
107
A descentralização jurídica gerou novas leis, cujo principal objetivo era
preencher as lacunas deixadas pela codificação.
A partir de então, verifica-se uma tendência na criação de microssistemas
jurídicos, fora do âmbito do CCB, para regulamentar relações privadas, isto é,
entre particulares.
Tal fenômeno demonstra a impossibilidade de aglutinação de todas as
normas jurídicas tendentes a regular a vida das pessoas, em um único diploma
legal, o que de certo modo, derruba o "mito da completude" pensado pelo
legislador civil.
As transformações da sociedade no correr do século XX revelaram que
as pretensões de unidade e generalidade do CCB não lograram êxito. Da
mesma forma, o direito individualista de caráter igualitário e libertador do
passado, gradativamente não mais atendia aos interesses da grande maioria da
população.
As dificuldades do Código em se adaptar a uma nova realidade sócioeconômica que se desenvolvia no Brasil, em substituição àquela existente na
época da codificação, ocasionaram uma crescente avalanche de leis
especiais.108
Tais leis, criadoras de microssistemas, possuem autonomia, valores e
princípios próprios, muitas vezes até incompatíveis com a ótica do CCB,
acolhendo-se, pois, outros valores emergentes das transformações por que
passou e passa a sociedade brasileira neste momento de sua história.
107 Foi o que ocorreu, por exemplo, com a edição da Lei sobre Parcelamento do Solo Urbano, a Lei do Inquilinato, dentre outras
surgidas das novas demandas sociais não previstas pelo codificador de 1916.
108 O processo de produção legislativa, no início compatível com a função pretendida para o CCB, ou seja, de estatuto fundamental do
direito privado, chegou a tamanha produtividade e especialidade, que veio a deslocar o CCB da posição central do sistema de direito
privado para uma localização periférica e subsidiária.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
72
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO
Na medida que as Constituições vão mudando seu caráter liberal de
mero instrumento de limitação do poder político do estado para uma
"Constituição Dirigente", com políticas reguladoras e de controle constantes na
ordem econômica e social (o que se consagrou com a Constituição Federal de
1988) a norma constitucional passa a ocupar o lugar que pertencia ao CCB,
operando a reunificação do sistema de Direito Privado.
Assim, a Constituição da República, como norma suprema do
ordenamento jurídico a garantir a unidade do sistema, impõe que seus princípios
e valores se estendam a toda normativa infraconstitucional, resultando, em
conseqüência, inaceitável a rígida contraposição Direito Público-Direito Privado.
Ocorre, assim, uma releitura de todo o sistema normativo à luz do texto
constitucional, com a “aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da
Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo mas também na relação
interindividual, situada no âmbito dos modelos próprios do direito privado”.109
Isso não significa, porém, uma invasão do Direito Público na esfera
privada, e sim admitir uma estrutural transformação conceitual do Direito Civil,
capaz de absorver a nova realidade social.
Importante salientar, entretanto, que a viabilidade desta proposta sugere
alguns pressupostos de ordem metodológica, além da superação da clássica
dicotomia entre Direito Público e Direito Privado.110
Primeiramente, deve-se destacar a consciência da unidade do sistema e
da hierarquização do ordenamento jurídico, onde a constituição detém o título de
109 TEPEDINO, Maria Celina B. M. Obra citada, p. 28.
110 Max Weber se ocupa da distinção entre direito público e direito privado, consoante escreve Julien Freund : "Nos moldes da maioria
dos estudos de direito na Alemanha, ele começa por examinar o valor da oposição clássica entre direito privado e direito público, para
constatar que se esta distinção é muitas vezes cômoda, não repousa em nenhum critério jurídico ou sociológico satisfatório." FREUND.
Julien. Obra citada, p. 181-182.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
73
norma fundamental, determinando os valores éticos e morais a serem seguidos
pelo legislador infra-constitucional na elaboração das leis.
A seguir, necessário afastar o equivocado entendimento de que as
Constituições são meros documentos políticos a impor limites ao legislador, com
suas normas programáticas.
Ao contrário, o que se deve ter em mente é que a Constituição contém
normas jurídicas dotadas de aplicabilidade direta às relações de Direito Privado,
que por sua vez devem refletir os princípios e valores que a Constituição elege,
sob pena de não serem tutelados pelo ordenamento.
Assim, os princípios e valores constitucionais são o fundamento de
validade de todo o ordenamento jurídico, orientando a atuação do juiz, do jurista
e do legislador, que tanto ao aplicar, interpretar ou elaborar a norma legal, em
particular a de caráter privado, devem necessariamente fazê-lo em consonância
com a “vontade” da Constituição.
Por tais razões, o Direito Civil, fundado numa concepção individualista,
apegado a valores patrimoniais e comprometido com um sujeito jurídico abstrato
e ideológico, totalmente alheio à realidade, é transformado pela ótica
constitucional.
A REPERSONALIZAÇÃO
Com o gradativo abandono de seu caráter patrimonialista, o Direito Civil
passa a valorizar cada vez mais o ser humano, como destinatário último do
direito, sendo denominada "repersonalização" essa retomada dos valores
humanos como centro dos interesses jurídicos.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
74
No dizer de Orlando de Carvalho, a repersonalização do Direito Civil
consiste em colocar a pessoa humana e os seus direitos no topo da
regulamentação jurídica. 111
Ao escrever sobre o assunto, observa Eroulths Cortiano Junior que, “o
fenômeno da repersonalização do direito vai se impondo como uma resposta à
ordem criada e que não mais se encaixa na moldura dos fatos, e tampouco nas
esperanças do homem. O direito não está apenas centrado funcionalmente em
torno do conceito de pessoa, mas também seu sentido e sua finalidade são a
proteção da pessoa”.112
Com efeito, a partir do momento que a Constituição elegeu como o
núcleo de seu sistema os valores existenciais da pessoa humana, não isolada
mas integrada em sociedade, o Direito Civil clássico dá lugar a um novo Direito
Civil, caracterizado como regulamento da vida social, em cujo ápice está, não
mais o patrimônio, mas os valores supremos do indivíduo na sua vida em
relação.113
Nesse contexto, ganha impulso a teoria dos direitos de personalidade,
114
a valorizar o ser humano e seus atributos fundamentais, em contraste com o
caráter individualista e patrimonialista do Direito Civil Clássico, inspirado na
Legislação Napoleônica.
111 A repersonalização do direito civil, ou a polarização da teoria em volta da pessoa, trata de “repor o indivíduo e os seus direitos no
topo da regulamentação jure civile, não apenas como o actor que aí privilegiadamente intervém mas, sobretudo, como o móbil que
privilegiadamente explica a característica técnica dessa regulamentação”. CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica –
seu sentido e limites (nota prévia), 2 ed. Coimbra: Centelha, 1981, p. 10.
112 “O centro nuclear do direito civil é a pessoa humana. Todo e qualquer instituto jurídico só tem razão de ser a partir do momento em
que exista (e seja considerado) em função do homem. O próprio direito encontra sua razão de existir na noção de pessoa humana, que é
anterior à ordem jurídica. Esta, construindo a noção de personalidade, o faz com base num dado pré-normativo, que é, ao mesmo tempo
ontológico (a pessoa é) e axiológico (a pessoa vale).” CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Ob. cit., p. 41-53.
113 Tal circunstância é plenamente observada quando a Constituição, por exemplo, impõe à propriedade privada, tida como direito
inerente ao homem e predicado de sua personalidade, o conceito de função social, resultando, em conseqüência, que o direito de
propriedade exercido de forma absoluta em sintonia com o que prescreve o Código Civil, somente merecerá a tutela se atender a sua
função social.
114 Observa Ricardo Luis Lorenzetti que, “o grupo de direitos fundamentais atua como um núcleo, ao redor do qual se pretende que gire
o Direito Privado; um novo sistema solar, no qual o Sol seja a pessoa”. LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado.
Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998, p. 145.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
75
CONCLUSÃO : EVOLUÇÃO DO DIREITO E REALIDADE SOCIAL
Apesar da sensível evolução a que foi submetido o Direito (especialmente
o Direito Civil) no decorrer deste século, o modo de produção capitalista gera
uma sociedade de contrastes.
É notória a crescente exclusão social, consistente em populações
marginalizadas, para as quais os direitos previstos na letra da lei não passam,
efetivamente, de "direitos virtuais", no dizer de Michel Miaille.115
A própria noção de "sujeito de direito", entendida como "o ponto ao redor
do qual circulam todas as categorias jurídicas",116 é colocada em xeque frente à
realidade capitalista, como bem observa Michel Miaille : "a noção de sujeito de
direito como equivalente de indivíduo está longe de ser evidente conforme o
sistema social no qual nos situamos. Não é 'natural' que todos os homens sejam
sujeitos de direito. Isto é o efeito de uma estrutura social bem determinada : a
sociedade capitalista. Mas, então, porque é que isso é necessário nesta
sociedade? Precisamente para permitir a realização das trocas mercantis
generalizadas".117
Em tal contexto, pode-se concluir que a visão de um direito racionalformal, isento de valores e calcado em um complexo de normas jurídicas
hierarquizadas, serve muito bem aos interesses da elite capitalista dominante,
que se vale de tal aparato jurídico para agravar a desigualdade econômico-social
entre a pessoas.118
115 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2ª edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 114 e ss.
116 "O sujeito de Direito é o ponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas. E mais, é no sentido de garantir um
determinado tipo de 'liberdade' que o Direito tutela os interesses deste mesmo sujeito de Direito que, em essência, são interesses
egoísticos que se contrapõem àqueles dos demais membros da sociedade [...] Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito
encontra-se situado no mercado como um agente econômico, isto é, como comprador e vendedor de mercadorias." Comentário de Paulo
Bessa, na apresentação da obra de Pasukanis. In: PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direito e o marxismo. Tradução de Paulo Bessa.
Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. XIII.
117 MIAILLE, Michel. Obra citada, p. 117.
118 Como adverte Weber, "as massas sem propriedades, especialmente, não são servidas por uma ' igualdade perante a lei ' formal, e
uma adjudicação e administração previsíveis, tal como o demandavam os interesses ' burgueses ' " WEBER, Ensaios de sociologia. Obra
citada, p. 256.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
76
Não basta, pois, que a Teoria do Direito evolua do individualismo e
patrimonialismo (legados da revolução burguesa) para uma visão social, voltada
aos interesses do homem, como propugna a nova doutrina do Direito Civil.
Tomando como parâmetro o Direito Civil, é insuficiente se afirmar a
evolução
das
instituições
e
o
aparecimento
de
fenômenos
como
a
descodificação, constitucionalização ou repersonalização, se a realidade social
se afigura cruel para os que são menos favorecidos economicamente.
Como adverte Luiz Edson Fachin, "o direito civil deve ser concebido
como 'serviço da vida' a partir de sua raiz antropocêntrica".119
Infelizmente, a realidade social tem demonstrado que a política neoliberal
característica deste momento histórico, tem excluído do "mercado" capitalista
aqueles que são vítimas de um sistema injusto de distribuição de riquezas.
Particularmente no Brasil, a proposta que se intitulava "social democrata",
acabou por revelar uma nefasta faceta do neoliberalismo, com a abertura
indiscriminada das fronteiras para o grande capital especulativo internacional e
poderosos grupos industriais, em detrimento de uma massa populacional
miserável e sem perspectivas.
A entrega do patrimônio público aos interesses estrangeiros, a falta de
políticas sociais concretas e o comprometimento total com as bases capitalistas
nacionais e internacionais, são notas marcantes da realidade social brasileira na
atualidade.
Cabe ao direito resgatar de fato o valor do homem como centro de suas
preocupações, criando oportunidades para que a "igualdade formal" deixe o
papel e ganhe vida, diminuindo os índices de miséria e violência que dominam a
sociedade brasileira.
119 “A realidade contemporânea arquivou o projeto do conceitualismo. Mas, se mesmo assim, o século XIX continua em moda, a
rejeição a essa fundamentação do direito pode alcançar uma afirmação da qual a consciência crítica não pode fugir: não há sistema
neutro. O direito civil deve, com efeito, ser concebido como ‘serviço da vida’ a partir de sua raiz antropocêntrica, não para repor em cena
o indivualismo do século XVIII, nem para retomar a biografia do sujeito jurídico e da Revolução Francesa, mas sim para se afastar do
tecnicismo e do neutralismo. O labor dessa artesania de repersonalização e rectização leva em conta um sistema aberto e rente à vida,
ciente de que, como arrematou, do alto de sua autoridade, o professor ORLANDO DE CARVALHO: ‘a solidariedade não se capta com
esquemas jurídicos: constrói-se na vida social e econômica’.” FACHIN, Luiz Edson. Obra citada, p. 49-50.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
77
Para isso, as reflexões ensejadas pela obra de Max Weber contribuem
substancialmente para a transformação do pensamento social e jurídico,
necessária para a construção de um novo direito, de fato comprometido com o
povo e não a serviço das oligarquias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro. Separata
da Revista O Direito, 1994.
ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O ícaro da modernidade: direito e política em
Max Weber. São Paulo : Acadêmica, 1997.
CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica – seu sentido e
limites (nota prévia), 2 ed. Coimbra: Centelha, 1981.
COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine . Max Weber e a história. Tradução de Eduardo
Biavati Pereira. São Paulo : Brasiliense, 1995.
COSTA, Dilvanir José da. O direito civil como essência do direito. In: Revista de
Informação Legislativa nº 106. Brasília: Editora do Senado Federal, abril/junho
1990.
FACHIN, Luiz
Edson. Limites e possibilidades de uma nova teoria geral do
direito civil. In: Jurisprudência brasileira nº 172. Curitiba: Juruá Editora, 1994.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber, 3ª edição. Tradução de Luís Claudio
de Castro e Costa. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1980.
KAFKA. Franz. O processo. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 2ª edição. Tradução de João Baptista
Machado. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1987.
LLOYD, Dennis. A idéia de lei. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
Fontes Editora, 1985.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera
Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
78
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2ª edição. Lisboa: Editorial
Estampa, 1989.
STUCKA. Petr Ivanovich. Direito e luta de classes. Teoria geral do direito.
Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.
TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um direito civil constitucional. In:
Revista de Direito Civil nº 65. São Paulo: RT.
WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In Max
Weber - Sociologia. Organização Gabriel Cohn. Consultoria Florestan
Fernandes. São Paulo: Editora Ática, 1986. Traduzido de "Die 'Objektivität'
Sozialpolitischer Erkenntniss". Gesammelte Aufätze zur Wissenschaftlehre, 4ª
edição. Organização e Revisão Johannes Winkelmann. (Tübingen, 1973).
________________. Ensaios de Sociologia, 3ª edição. Organização H. H. Gerth.
Revisão técnica da tradução por Fernando Henrique Cardoso. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1974.
________________. Os fundamentos da organização burocrática : uma
construção do tipo ideal. In: Sociologia da Burocracia. Organização Edmundo
Campos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966, p. 16. Traduzido de "The
Essentials of Bureaucratic Organization: na Ideal-Type Construction", em
Robert K. Merton et. al. Reader in Bureaucracy (Glencoe, Illinois : Free Press,
1963).
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
79
A POSSE COMO FATO SOCIAL
ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA
Professor na Faculdade de Direito dos Campos Gerais (CESCAGE). Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina. Advogado no Paraná.
RESUMO: O artigo analisa a posse na perspectiva histórica, estudando as duas
principais teorias surgidas na Alemanha (Século XIX) para explicar o fenômeno
possessório (a Teoria Subjetiva de Savigny e a Teoria Objetiva de Ihering), apontando as
influências das teorias no Código Civil brasileiro. O autor aborda o polêmico tema da
natureza jurídica da posse (se é fato ou direito), trabalhando a idéia de posse à luz do
princípio constitucional da função social da propriedade imobiliária.
ABSTRACT: The article analyzes ownership in a historical perspective, studying the two
main theories that arose in Germany (Century XIX) to explain the possessory
phenomenon (the Subjective Theory of Savigny and the Objective Theory of Ihering),
pointing out the influences of these theories in the Brazilian Civil Code. The author
approaches the controversial subject of the legal nature of ownership (whether it is fact or
right), working on the idea of ownership in the light of the constitutional principle of the
social function of the real estate property.
INTRODUÇÃO
A posse no curso da história do direito revela-se como uma das questões
mais polêmicas a serem enfrentadas no discurso acadêmico quanto a sua
natureza jurídica.
Poucas matérias há, em direito, que tenham dado margem a tantas
controvérsias como a posse. Sua bibliografia é amplíssima e constante a
afirmação dos embaraços de seu estudo, como anota Moreira Alves.120
A partir da discussão de situar-se a posse, quer como fato, quer como
direito, quer como fato elevado a condição de direito, decorrerão os direitos
diretos e reflexos, inclusive quanto a propriedade.
120 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, in Posse, vol. I, Evolução histórica, Editora Forense, p. 01.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
80
A relevância do tema tem enfoque quanto às alterações do direito de
propriedade - hoje limitado muito mais que ontem e condicionado pelo princípio
da função social, modificado em sua essência de ser indeterminado quanto a
pessoa que deve respeitá-lo.
Buscou-se, através do presente estudo, a discussão da posse como fato
social relevante
em relação aos denominados
'sem-terra' e categorias ou
estamentos sociais hipo-suficientes em relação ao direito posto por aquele que
detém a parcela econômica dominante.
Nesse contexto desenvolveu-se o trabalho envolvendo o fato social como
elemento de aglutinação da norma, gerando a legitimidade do direito posto
quanto ao inconsciente coletivo que não domina, mas que detém o entendimento
do que efetivamente seria justo.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE POSSE
BREVE HISTÓRICO
É imprescindível, para qualquer jurista que se proponha a analisar o
fenômeno possessório, a imersão na evolução histórica da posse, visto que na
história encontramos a causa existencial das normas, dando-se isto com maior
evidência neste instituto, pois sua noção é essencialmente histórica.
Lecionou FIGUEIRA Jr.:
A análise mais aprofundada de qualquer instituto jurídico requer de todo
estudioso, inafastavelmente, a busca de uma resposta preliminar a nível
histórico-dogmático, sem que isso signifique qualquer retrocesso
científico ou puro retorno e apego ao passado. Pelo contrário, sem um
questionamento prévio desta ordem, a doutrina estará fadada à
mediocridade e ao insucesso, porquanto a história do direito e das
civilizações caminham lado a lado, oferecendo-nos instrumentos dos
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
81
quais não podemos prescindir para a compreensão da realidade,
121
tratando-se de valioso método de hermenêutica.
Desta forma, a análise histórica do instituto se fez necessária, uma vez
que o Código Civil Brasileiro recebeu influência de várias teorias possessórias
elaboradas no caminhar da civilização.
MOREIRA ALVES, na mesma linha,
pronunciou-se acerca dos
componentes históricos da posse dizendo que:
Ela
sofreu,
também,
influência,
maior
ou
menor,
do
instituto
correspondente no direito germânico medieval - a Gewere - e do conceito
de posse plasmado, embora com
base nos textos romanos, pelos
canonistas. Resultou, portanto, da combinação de elementos históricos
heterogêneos, que se mesclaram por motivos de ordem étnica (costumes
dos povos bárbaros que invadiram o Império Romano do Ocidente),
religiosa (a influência do direito canônico sobre o direito laico) e cultural (a
recepção do direito romano na Europa, no período compreendido entre
122
os séculos XIII e XV).
Assim sendo, apreciou-se primeiramente a evolução do instituto no direito
romano, elucidando-se algumas características da posse nesse período. Após,
analisou-se as principais influências do direito canônico, notadamente no que diz
respeito a 'espiritualização' do conceito de posse e, por fim,
algumas colocações
relativamente ao
delineou-se
instituto correspondente no direito
germânico - a Gewere.
121 FIGUEIRA Jr; Joel Dias. Posse e Ações Possessórias.: fundamentos da posse. Editora Juruá: Curitiba. pág. 35.
122 ALVES, J. C. Moreira.
Posse: evolução histórica. 1. ed. Editora Forense.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
Rio de Janeiro. 1985. pág. 2.
82
A POSSE NO DIREITO ROMANO
Antes de adentrarmos à seara do direito romano, urge transcrever as
palavras de FUSTEL DE COLANGES, extraídas de sua obra "A cidade antiga":
Sabe-se terem existido povos que nunca chegaram a instituir a
propriedade privada entre si, e outras só demorada e penosamente a
estabeleceram. Com efeito, não é problema simples,
no início das
sociedades, saber-se se o indivíduo pode apropriar-se do solo e
estabelecer tão forte união entre sua própria pessoa e uma parte da terra,
a ponto de poder dizer: Esta terra é minha, esta terra é parte de mim
mesmo. Os tártaros admitiam o direito de propriedade, quando se tratava
de rebanhos e já não o concebiam ao tratar-se do solo. Entre os antigos
germanos, segundo alguns autores, a terra não era propriedade de
ninguém; cada ano, a tribo indicava a cada um dos seus membros um
lote para cultivo, lote que era trocado no ano seguinte. O germano era
proprietário da colheita, mas não o dono da terra. O mesmo acontece em
uma parte da raça semítica e entre alguns povos eslavos.
Ao contrário, as populações da Grécia e da Itália, desde a mais longínqua
antigüidade, sempre reconheceram e praticaram a propriedade privada.
Nenhuma lembrança histórica nos chegou, e de época alguma, que nos
123
revele a terra ter estado em comum.
A propriedade, como visto, era desconhecida nos povos da antigüidade,
no entanto já estava presente entre eles o fenômeno possessório que em Roma
iria ganhar tratamento desde os períodos mais remotos.
Oportuno salientar que a posse recebeu abordagens diversas em cada
época do direito romano, observação de muita importância para quem pretenda
124
incursionar pelos caminhos que conduzem às origens do instituto.
123 São Paulo: Hemus, 1975. pág. 49.
124 Para melhor análise da origem da posse , ver "A posse e sua proteção" de Astolpho Rezende.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
83
Lembrou SCIALOJA, citado por Astolpho Rezende:
É impossível dar-nos conta da propriedade romana, se antes não
conhecermos, pelo menos em suas linhas gerais, o desenvolvimento
histórico do domínio, desde os seus primórdios até ao tempo de
Justiniano. A história do Direito Romano desenvolve-se em 12 séculos,
durante os quais ocorreu a mais completa transformação econômica e
social do mundo moderno. Roma, de pequena communa, tornou-se
soberana da Europa então conhecida, da África setentrional e de parte da
Ásia, sofrendo a mais radical transformação. Quando se fala, pois, da
prosperidade romana é mister distinguir, se fala da de Rômulo ou da de
Justiniano, ou da propriedade de uma época intermédia. Se por direito
romano devêssemos entender o revelado pelas fontes justinianas, não
poderemos deixar de observar que, pela própria natureza da obra de
Justiniano, encontramos nessa legislação traços de um anterior
regulamento da propriedade, de natureza essencialmente diversa. Lendo
o Digesto, encontram-se textos que foram em parte alterados pelos
compiladores [...], mas que em substância, tendo por autores originários a
jurisconsultos que no maior numero vão do II ao III século, representam
um direito de propriedade em relação às condições sociais daquele
tempo, as quais, pelo menos sob certos aspectos, são as mais
correspondentes
as
hodiernas.
Se
se
examina
o
Código
independentemente do Digesto, encontra-se uma longa série de
constituições imperiais, a maior parte das quais é de um tempo posterior
à época central do direito das Pandectas.
Fora da compilação Justinianea, Gaio, que pertence ao 2º século P. C. e
que na sua exposição tende a descrever um direito também precedente
ao do seu tempo, contém regras jurídicas, mesmo diversas das que
resultam das Pandectas.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
84
Se, portanto, lermos as fontes históricas, que dão informações
especialmente sobre relações econômicas, veremos uma diversidade tal,
que põe um abismo entre o direito do princípio do império e o da
decadência, a que pertencem as fontes Justinianeas.
Por isso, quando se trata de direito romano, é mister dar-se conta de que
125
direito se entende falar.
Por esta razão examinou-se a evolução do conceito de posse nas três
grandes épocas da história de Roma: Época Pré-Clássica, Imperial-Clássica,
Clássica e Justinianea.
A POSSE NA ÉPOCA PRÉ-CLÁSSICA E REPUBLICANA
As dificuldades encontradas pelos romanistas modernos para o
desenvolvimento dos estudos da evolução da posse nesta época, dão-se,
principalmente, em função da escassez de fontes e das modificações suportadas
pelos textos clássicos antes da compilação do Corpus Iuris Civilis, o que, de
certa forma, não permitiu que se alcançasse conclusões seguras, embora
possam ser traçadas algumas características.
Acerca da questão lecionou SANTIAGO DANTAS:
Na época pré-clássica ainda não se fala em posse, em possessio. Tanto
a lei como o jurisconsulto, para designarem a posse, usam uma
expressão extremamente longa e composta: usus fructus possessio ou,
então, uti frui habere possidere. Observando-se a instituição possessória
nessa época, nota-se a existência de dois institutos inteiramente distintos,
designados, habitualmente, com a mesma expressão. O primeiro, que
deve ser o mais antigo, é o usus fructus possessio. [...]
125 REZENDE, Astolpho. A posse e a sua proteção. 1. ed. São Paulo: Saraiva & Cia, 1937.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
85
Mas ao mesmo tempo que este instituto, na época pré-clássica já se
encontra uma outra possessio; é o segundo instituto que se teve ensejo
126
de falar.
Em resumo, pode-se dizer que o primeiro dos institutos está ligado aos
casos de concessões de terras para uso tanto pelo ager privatus quanto
pelo
ager publicus.
O segundo está
transmitia a propriedade
ligado aos casos em que se
sem observância
das solenidades exigidas
para a validade do ato, não se tornando dono o adquirente.
MOREIRA ALVES, após explicar a evolução da posse neste período,
seguindo as linhas traçadas por BOZZA, afirmou:
Enquanto a possessio é a senhoria de fato, o usus é o gozo, de fato, de
um direito, e se caracteriza como poder irrevogável, ilimitado no tempo,
sem proteção jurídica, e conducente à aquisição de direito. A possessio
originariamente, tinha por objeto apenas o ager publicus, e era tutelada
pela controversia de loco; posteriormente, estendeu-se aos imóveis
privados, o que possivelmente decorreu da extensão, feita pelo pretor,
dos interditos por ele criados para proteger a possessio sobre o ager
publicus à senhoria de fato sobre imóveis privados que se encontravam
em condições semelhantes à daquele (senhoria de fato sobre coisa
alheia reconhecida pelo próprio possuidor; senhoria de que o possuidor é
investido por ato de um magistrado; senhoria sem limitação no tempo e
insuscetível de conduzir ao usucapião). Essa extensão, portanto, não
pode ter ocorrido anteriormente a 367 a.C., data da criação da pretura,
magistratura que veio a criar tais interditos; e como as características da
possessio sobre o ager publicus se encontram em três casos de posse
sobre imóveis privados (os que SAVIGNY designou como sendo de
posse derivada) - o do precarista, o do sequester e o do credor
pignoratício -, foram eles os primeiros a que se aplicou a possessio no
campo do direito privado, só se tornando anômalos mais tarde, no
126 SANTIAGO, Dantas. Programa de direito civil III. edição histórica. Rio de Janeiro. 1979. pág. 27-28.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
86
período imperial, por não darem margem ao usucapião, ao contrário do
que, em regra, acontecia, nessa época, com as outras hipóteses de
posse que também fundavam em título jurídico. É desses três casos que
se pode extrair a noção primitiva de posse no direito romano: é ela a
senhoria de fato, revogável e sem limite no tempo, sobre imóvel de que o
concedente tem senhoria de direito, e senhoria de fato exercitada com o
animus de ter a coisa para si, insuscetível, porém, de transformar-se em
senhoria de direito.127
Notou-se, sem embargo das divergências doutrinárias, que o período préclássico é marcado pela senhoria de fato sempre acompanhada da senhoria de
direito, inexistindo a caracterização do animus neste período. Constatou-se a
existência de duas espécies de posse: a primeira, revogável, chamada por uns
de possessio, incapaz de conduzir ao usucapião, estando despida da proteção
interdital; a segunda, irrevogável, identificada por alguns como usus, suscetível
de proteção interdital e conducente ao domínio.
Na época republicana ocorreram mutações interessantes na doutrina
possessória; a primeira delas está ligada a generalização do conceito de posse,
decorrente da extensão da proteção possessória aos casos em que a posse era
revogável.
Vejamos, nesse sentido, o ensinamento de MOREIRA ALVES:
Nessa época, deixara de ser Roma um pequeno centro, para tornar-se
cidade
florescente,
mediterrâneos.
Os
com
relações
estrangeiros,
ao
comerciais
adquirirem
com
res
os
países
mancipi
-
especialmente escravos - por meio de compra e venda consensual, não
se tornavam proprietários ex iure Quiritium, motivo por que o pretor
peregrino lhes concedia, para sua proteção, interditos. A mesma
orientação foi adotada pelo pretor urbano em negócios jurídicos
semelhantes celebrados entre cidadãos romanos. Dois fatos corroboram
essas conjecturas: o vendedor romano se obriga, não a transferir a
127 ob. cit. Posse: evolução histórica. vol. I, pág. 17.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
87
propriedade da coisa, mas a assegurar ao comprador seu gozo pacífico;
e a criação do interdito utrubi para tutelar a posse do escravo, o que
implica a extensão da possessio às coisas móveis. Começam, então, a
desaparecer as características da posse primitiva. A partir do momento
em que o pretor urbano, na linha do pretor peregrino, concede interditos
aos que, por adquirirem as res mancipi mediante simples tradictio
(tradição), não se tornam proprietários dela, permanecendo o domínio
com o transmitente, a possessio passa a conduzir ao usucapião. Inicia-se
assim, a generalização do conceito de posse, aumentando as causae
possessionis.
128
É válida, nessa esteira, a opinião de SANTIAGO DANTAS:
O Direito Romano estava imbuído da idéia de eqüidade. Insurge-se
contra a tirania do dominus, em relação ao adquirente imperfeito, até
mesmo naquele caso de que resulta o usucapião. Só a uma consciência
jurídica mais rústica satisfaz a idéia de que dentro de um ano o possuidor
se terá transformado em dono. À uma consciência jurídica mais sensível
já repugna esta idéia de que, se, naquele espaço de tempo, o proprietário
tomar as coisas das mãos do ocupante, expiram as esperanças deste,
embora tenha pago um preço e se tenha comportado com a mais
rigorosa boa-fé. É uma época em que se está procurando proteger a
figura do adquirente imperfeito, que vive o seu ano de consolidação do
domínio. [...]
Está terminada a evolução da posse, pois, agora, convergiram os dois
institutos num único, caracterizado sempre pela proteção interdital, mas a
transformação em domínio, esta contínua a ser característica da posse
129
irrevogável.
Pode-se, pois, reduzir a duas as principais mudanças ocorridas até o
final da República no campo possessório. São elas: 1) os interditos protegem
128 ob. cit. Posse: evolução histórica. vol. I, pág. 18.
129 apud. pág. 42.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
88
qualquer senhoria de fato, sendo que isto ocasionou a desconsideração das
causae possessionis como fator de distinção entre a posse e a detenção, que
doravante passaram a distinguir uma da outra pela presença do animus
possidendi; 2) a utilização dos interditos pelos proprietários como meio de defesa
do domínio.
A POSSE NA ÉPOCA CLÁSSICA
Nesse período da história de Roma aconteceram mudanças importantes
na disciplina possessória, verbi gratia, era possível a distinção entre a posse e a
detenção e aparece a tricotomia, possessio naturalis - possessio civilis possessio ad interdicta.
MOREIRA ALVES, com base na tese de RICCOBONO - dominante entre
os romanistas modernos - explicou com propriedade o significado dessas
expressões:
A detenção, caracterizada pelo elemento material da posse, é a
possessio naturalis, que por ser simples fato material, não entra em
nenhuma categoria jurídica, quer do ius honorarium, quer do ius civile,
não produzindo conseqüências jurídicas, sequer sendo tutelada pelos
interditos possessórios, mas, apenas indiretamente, por meio da
utilização, pelo detentor, da actio iniuriarum, uma vez que a turbação da
posse era uma iniuria praticada contra a pessoa do detentor. A possessio
civilis é a posse oriunda de causa reconhecida como idônea pelo ius
civile e até pelo ius gentium para a aquisição do domínio; a ela, além dos
elementos de fato que constituem a possessio ad interdicta (o corpus e o
animus possidendi, ou seja, o elemento objetivo e o elemento subjetivo),
acresce um elemento jurídico (a causa apta á aquisição do domínio), que
é a condição fundamental para a produção das conseqüências
substanciais da posse, como o usucapião, a aquisição de frutos, a
utilização da actio publiciana. [...]
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
89
Finalmente, a possessio ad interdicta (também denominada possessio) é
relação de mero fato - posse integrada por um elemento objetivo (a
detenção) e por um elemento subjetivo (o animus possidendi, isto é, a
vontade de ter a coisa de modo livre e exclusivo) -, reconhecida e
defendida, pelos interditos possessórios, no âmbito do ius honorarium,
130
não produzindo efeitos na esfera do ius civile.
SANTIAGO DANTAS, ensinou que "...compreende-se bem, portanto,
que, na época clássica, todas as vezes em que o jurisconsulto analisa a posse,
vê dois elementos: a detenção material e o animus; este animus, este desejo
de ter a coisa para si, de se comportar como senhor, é a característica da posse
131
padrão, é a característica da posse irrevogável.”
Observou-se, por conseguinte, a presença do ius honorarium e do ius
civiles convivendo lado a lado nessa época, existindo clara diferença entre a
posse e a propriedade; notou-se, também, o início da
espiritualização do
conceito de posse, visto que já se admite sua manutenção solo ânimo.
A POSSE NA ÉPOCA PÓS-CLÁSSICA
Neste período a posse começou a ser estendida aos direitos reais, não
estava mais restrita aos casos em que existia uma senhoria de fato sobre a
coisa. É aplicável a qualquer direito. Começou-se a admití-la como exercício de
direito, como exteriorização de um direito.
SANTIAGO DANTAS,
colocou as razões que
justificaram esse
entendimento:
É fácil acompanhar as razões desta transformação. Pode-se dizer que ela
resultou do predomínio, na sistemática da posse, do tipo da posse do
proprietário. O tipo de possuidor, que na época pós-clássica orienta a
130 ob. cit. Posse: evolução histórica. vol. I, pág. 25.26.
131 ob. cit. pág. 43.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
90
legislação e a doutrina, é o tipo de possuidor que é, também, proprietário.
Nem é mais o tipo de possuidor que está usucapindo, nem o tipo do
possuidor que nunca poderia usucapir; agora, é o tipo do [?] proprietário
que, sendo também possuidor, lança mão dos remédios possessórios
como uma proteção mais completa, mais fácil, mais cômoda do que seria
a complicada proteção das reivindicações, com suas tremendas
132
dificuldades probatórias.
MOREIRA ALVES, após comentar acerca dos estudos desenvolvidos por
LEVY - que obscureceram a distinção entre posse e propriedade -, elucidou as
principais modificações ocorridas nessa fase:
Com JUSTINIANO, volta-se à distinção precisa entre posse e
propriedade, mas, com relação à posse, se processam modificações
substanciais, em virtude de várias causas, como o desaparecimento da
dicotomia ius civile - ius honorarium, a importância dada, em geral, ao
animus no campo do direito (o que é defendido pela doutrina dominante,
embora atacado por RICCOBONO, para quem o animus é elemento de
relevo já no direito clássico) e a desaparição da diferença ente interditos
(interdicta) e ações (actiones). Altera-se - e isso em decorrência de não
se distinguirem nesse período o ius civile e o ius honorarium - a tricotomia
possessio civilis - possessio ad interdicta (ou simplesmente possessio) possessio naturalis,
a
qual se reduz à dicotomia possessio civilis -
possessio naturalis [...] É no direito justinianeu que nasce a figura da
possessio iuris, em contraposição à possessio rei.
A inovação é
substancial, pois a quasi possessio deixa de ser quase senhoria sobre a
coisa e passa a ser senhoria sobre o direito (coisa corpórea). Há nela o
germe da idéia que veio a influir, largamente, na concepção moderna da
posse: a de que a posse é exercício de fato de qualquer direito
duradouro, sendo o gênero de que resultam as espécies possessio rei
132 ob. cit. pág. 44.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
91
(posse do direito de propriedade) e possessio iuris (posse de outro
133
direito, que não a propriedade).
À evidência, a posse desapegou-se da coisa aproximando-se do direito
e nisto consistiu a
principal característica do instituto neste período: sua
espiritualização.
Conclui-se, pois, que o pragmatismo das teorias impediu que se
conferisse a este instituto o devido refino. As contradições dos textos romanos
sobre a posse dificultaram os trabalhos dos exegetas, impossibilitando-se, dessa
forma, a elaboração de um conceito único que a explicasse com fidelidade. No
entanto, os doutrinadores manteram-se uníssonos no que se refere ao conceito
básico do instituto: situação de fato em que alguém, a despeito de ser ou não
titular de algum direito, onde se exerce ostensivo poder de utilização, defesa e
conservação sobre algo material.
A "GEWERE"
A doutrina nacional não tratou satisfatoriamente desse instituto, o que,
de certa forma, dificultou o trabalho de pesquisa; no entanto é possível tecer
algumas considerações acerca dele que, inegavelmente, influenciou
o
legislador pátrio, notadamente no que diz respeito a organização vertical da
posse (posse direta e indireta).
Há autores que afirmaram não ter existido no período medieval o
desenvolvimento do instituto da posse, tendo permanecida apagada nesta
134
época.
MOREIRA ALVES, disse que:
A Gewere - a que as fontes jurídicas francesas aludem com o termo
saisine; as italianas, com a expressão tenuta;
e as inglesas, com a
133 ob. cit. Posse: evolução histórica. pág. 33-38.
134 BESSONE, Darcy. Da posse 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
92
palavra seisin - é o instituto que, no direito germânico medieval,
corresponde à possessio, só foi introduzida no direito alemão com a
recepção, na Alemanha, do direito romano, o que, como já se salientou,
apenas ocorreu no século XVI.
Mas note-se, correspondência não significa igualdade: a Gewere,
apresenta pontos de contato com a possessio, dela se afasta em outros
aspectos. Basta atentar para o fato de que, enquanto o direito romano
distinguiu, nitidamente, as três posições em que decorre para uma
pessoa poder sobre a coisa (propriedade, posse e detenção), o direito
germânico medieval desconhecer, quanto às coisas móveis, a diferença
entre posse e detenção, e - embora a maioria dos germanistas entenda o
contrário - há autores que negam que o direito germânico medieval tenha
feito distinção entre propriedade e posse (essas figuras estariam
135
abrangidas pela Gewere).
FIGUEIRA Jr., tratando do tema, elucidou que "...a Gewere não indicava
um conceito jurídico ideal, mas sim um fato material, a relação entre a coisa e a
pessoa que a detinha. Qualquer relação de uso e gozo entre sujeito e um bem,
136
mesmo que temporária, constituía a Gewere".
Observou-se que a Gewere teve importância na evolução do conceito de
posse, pois influenciou diretamente na construção da doutrina de IHERING, a
qual foi consagrada pelo nosso Código Civil, como veremos adiante.
A POSSE NO DIREITO CANÔNICO
O direito canônico contribuiu muito para a concepção da teoria da posse
e da proteção possessória. Nesse período a Igreja
concentrava um grande
135 ob. cit. Posse:evolução histórica. pág. 77-78. Para melhor compreensão consulttar o capítulo que trata deste instituto, onde o autor
salienta quais as principais teses que foram construídas para explicação deste instituto, trazendo a luz a classificação da GEWERE,
posteriormente, tratando dos elementos que a compõem, espécies, aquisição perda e efeitos.
136 ob. cit. pág. 42-43.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
93
poder em suas mãos, tanto político quanto econômico; esta circunstância forçou
a criação de mecanismos para proteção de certas situações não previstas no
direito romano. A posse no direito canônico não se afastou da concepção
romanista acerca da posse - poder de fato sobre a coisa - contudo ampliou-se o
campo de abrangência do instituto atingindo direitos públicos, privados e
pessoais.
MOREIRA ALVES, afirmou que:
A partir do século IV d.C., já se encontram, no direito canônico, as
providências iniciais que, daí até o século XIV, iriam permitir a construção
de suas duas contribuições fundamentais para a teoria possessória: uma
- a relativa ao conceito de posse, resultante da extensão que se deu à
possessio iuris; a outra - a concernente à defesa possessória, com a
criação da exceptio spolii e condictio ex canone redintegranda (a actio
spolii, como foi geralmente denominada a partir do século XVII), com o
alargamento do conceito de esbulho (spolium) e com a tutela da mera
137
detenção.
Foi essa amplitude conferida ao possuidor de, através da actio spolii,
obter a restituição de bens ou direitos espoliados dirigindo-a contra o esbulhador
ou terceiros e que talvez tenha originado a idéia, não muito precisa - em que
pese acolhida por renomados doutrinadores e tribunais - de atribuir aos remédios
possessórios natureza real, inobstante a posse não apresentar esse caráter,
138
conforme demonstraremos mais adiante.
137 ob. cit., Posse, vol. I, p. 110.
138 FIGUEIRA Jr., Joel Dias. Posse e ações possessórias. vol. I, p. 41.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
94
CONCEITO
APRECIAÇÃO DAS TEORIAS DE SAVIGNY E IHERING
As legislações do mundo ocidental, ao tratarem do conceito de posse,
optam por se filiarem a uma de duas fundamentais teorias atinentes à
caracterização desse instituto, quais sejam: a concepção chamada subjetiva e a
concepção chamada objetiva.
TEORIA DE SAVIGNY - CONCEPÇÃO SUBJETIVA
No "Tratado da Posse", publicado em 1803, SAVIGNY tentou reconstruir,
sistematicamente, a elaboração da posse no Direito Romano.
Notou Savigny que, no direito romano, decorriam dois efeitos da posse proteção
jurídica
pelos
interditos
e
condução
ao
usucapião
-,
isto
independentemente de qualquer direito e concluiu ele que a posse "consistia
na faculdade real e imediata de dispor fisicamente da coisa com a intenção de
139
dono, e de defendê-la contra as agressões de terceiros".
MOREIRA ALVES, explicou magistralmente a conclusão a que chegou
SAVIGNY:
Parte ele da observação de que, no direito romano, só dois efeitos legais
se atribuem à posse como tal e independente de qualquer idéia de
propriedade: o usucapião e os interditos possessórios. A posse é a
condição de existência desses dois efeitos. É ela fato e direito - por sua
própria essência é um fato; por suas conseqüências assemelha-se a um
direito. O ius possessionis, que é o direito que resulta da posse, consiste
apenas na faculdade de invocar interditos possessórios, quando a
violação da posse assume forma determinada. Sobre a vexata quaestio
do sentido das três expressões que se encontram nas fontes romanas
139 Tito Fulgêncio. Da posse e das ações possessórias. Rio de Janeiro: Forense: 1959. v. I. p. 08.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
95
(possessio, civilis possessio e naturalis possessio), sustenta Savigny que
a expressão civilis possessio indica a posse que reúne as condições
necessárias a conduzir à propriedade em virtude do usucapião
(possessio ad usucapionem); que a palavra possessio, desacompanhada
de qualificativo, designa a posse protegida pelos interditos (possessio ad
interdicta); e que a expressão naturalis possessio varia de significado
conforme seja empregada em oposição a civilis possessio (caso em que
abrange tanto a simples detenção, quanto a possessio ad interdicta), ou
em contraposição a possessio (hipótese em que designa, apenas, a
detenção). Daí se concluir que só há duas posses jurídicas: a civitas
possessio e a possessio; mas como a posse que leva à aquisição da
propriedade por usucapião (a civilis possessio) nada mais é do que a
possessio a que se reúnem outros elementos (que haja começado com
bona fides e com iusta causa, e que a coisa possuída seja susceptível
da usucapio), tem-se que, em verdade, hão há senão uma posse no
sentido jurídico da palavra - a possessio, que, por si só, dá direito aos
interditos possessórios, e, acrescida de outros elementos, produz o
140
usucapião.
Para a caracterização da posse seriam imprescindíveis, pois, dois
ingredientes: o corpus (o fato físico) e o animus (a vontade). O corpus é o
elemento material, que se identifica com a apreensão material da coisa, ou no
poder físico da pessoa sobre a coisa, com exclusividade. O animus, por sua vez,
é o elemento volitivo consistente na intenção de ter a coisa como sua.
"Não basta o 'corpus', como não basta o 'animus' ".
141
Quando não existir
o animus não haverá posse no sentido jurídico, da mesma forma que esta
também não estará configurada quando não existir o corpus, visto que, neste
caso nem relação de fato existirá entre a pessoa e a coisa. Nos casos em que
há ausência do animus domini caracterizar-se-á a detenção.
140 ob. cit., vol. I, pág. 211-212.
141 GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, pág. 19.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
96
SERPA LOPES, ao se perguntar qual o ponto fundamental da teoria de
SAVIGNY e qual a razão dela ser denominada teoria subjetiva, afirmou:
A razão é a seguinte: a posse é a síntese do CORPUS e do ANIMUS. O
corpus designa o elemento externo em oposição ao elemento animus que
é interno. O corpus consiste na possibilidade material de fazer da coisa o
que bem pareça e de afastar toda ação estranha; exige, para sua
integração , os seguintes elementos: 1º) disponibilidade da coisa; 2º)
possibilidade direta e imediata de submetê-lo a seu poder físico; 3º)
142
excluir toda intervenção estranha.
No que diz respeito ao elemento psíquico, verificou-se que esta "vontade
de possuir" pode apresentar-se de duas maneiras, como lembrou DARCY
BESSONE:
[...] uma pessoa pode exercer o direito de propriedade próprio, ou exercer
o direito de propriedade alheio. Só no primeiro caso se configurará o
'animus possidendi', idôneo para converter a detenção (simples fato
físico) em posse. Tal 'animus possidendi' consiste, assim, no 'animus rem
sibi habendi', o que quer dizer que só se considera verdadeiro possuidor
o detentor da coisa que procede, em relação a ela, com o espírito de
proprietário. Não é necessário, todavia, esclarece Savigny, que o
possuidor tenha a convicção de que é realmente proprietário ('opinio suo
cogitatio domini'). Basta que proceda com o espírito de proprietário,
usando e gozando da coisa em proveito próprio, ainda que sem a
convicção de que é dono. Não será possuidor, portanto, quem se tornar
detentor da coisa em nome de outrem ('alieno nomine'), ainda que, nesse
caso, não se possa negar a existência de certa vontade - a vontade de
deter a coisa em nome e proveito de outra pessoa. Tal a vontade de deter
a coisa em nome e proveito de outra pessoa. Tal vontade constituiria o
'animus tenendi', mais seria insuficiente para configurar o 'animus domini'
142 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Freitas Bastos , 1962. vol. VI, pág. 107-108.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
97
(vontade de dono) ou o 'animus rem sib habendi' (vontade de ter a coisa
como sua), que, como autêntico 'animus possidendi', eleva a detenção
143
(simples fato físico) à categoria de posse.
RUGGIERO, também chamou a atenção para as diversas graduações do
elemento subjetivo da posse e assim se pronunciou:
Convêm antes de mais nada ter em atenção que o animus em geral tem
graduações diversas e que dos diferentes modos de o compreender
derivam todas as diversidades na formulação dogmática ou legislativa da
posse.
1) A espécie mais elementar é aquela que acompanha qualquer ato de
detenção e que se concretiza no próprio ato de deter (animus detinendi),
é a simples vontade de se manter em relação com a coisa, de a ter e
nada mais.
2) A espécie mais elevada é, pelo contrário, aquela em que o possuidor
não só tem o ânimo de ter a coisa como sua (animus domini), mas tem
também a opinião de que é o proprietário (opinio domini); baseia-se num
título suscetível de transferir o domínio, cujos vícios, que impedem a
transferência efetiva desse domínio, são ignorados do possuidor (p. de
boa fé).
Entre estes dois extremos estão figuras intermédias, nas quais o animus
assume um conteúdo diverso conforme o direito que se quer exercer e o
interesse da pessoa a quem a relação possessória pertence ou se
destina.
3) Há detentores que têm a coisa não como sua, isto é, não por qualquer
vantagem ou utilidade própria, mas exclusivamente no interesse alheio;
nem
mesmo para uma relação determinada eles querem a coisa
submetida à sua faculdade de gozo ou de apropriação econômica; têmna em custódia e estando privados, portanto, de um animus possidendi.
É, entre outros, o caso do depositário, do mandatário, etc;
143 ob. cit. pág. 48.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
98
4) Há alguns, pelo contrário, que têm a coisa no interesse próprio, para a
destinar a uma necessidade própria, para sobre ela exercerem um ato de
gozo, quando não seja de apropriação econômica; quer dizer usam-na e
não a têm em simples custódia como os primeiros. Nessas pessoas, se
por animus possidendi se entende o animus domini, falta tal animus, pois
não têm nem podiam ter a intenção de tratar a coisa como proprietários
ou de exercer qualquer direito real, mas nem por isso deixa de haver um
animus, que tem um grau mais intenso que o das figuras precedentes,
visto que a vontade se destina a ter a coisa não no interesse alheio, mas
no próprio. Tal é o caso, por exemplo, do comodatário. [...]
5) Em face das duas categorias já vistas está, finalmente, a daqueles que
possuem a coisa como sua, de modo livre e independente, que têm
animus domini, que querem assenhorear-se dela, tê-la como sua (animus
rem sibi habendi). Nela entram, porém, duas ordens diversas de
possuidores; enquanto por um lado estão aqueles que querem ter a coisa
como sua, isto é, que têm o ânimo de a ter como proprietários, por outro
lado estão aqueles que a querem sujeita não em todas as suas relações,
mas apenas numa ou mais, que exercem assim apenas um direito real
menor de propriedade (ex.: usufructuário, possuidor de uma servidão
predial) e quanto a este o animus, com pouca correção, designa-se como
animus domini. No entanto, a locução pode justificar-se, quando por ela
se entenda que, com respeito ao ius in re aliena, o possuidor se comporta
144
como um titular efetivo, como proprietário daquele direito.
É válido registrar, porque condiciona e limita o alcance da sua teoria, que
Savigny teve como objetivo estabelecer uma teoria jurídica da posse e por
conseguinte, em sua obra, ocupou-se apenas dos direitos que derivam da posse
(ius possessionis), não versando sobre o direito de possuir, ao qual juristas
contemporâneos denominaram ius possidendi. Esse direito de possuir, cabendo
144 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. vol. II. pág. 500-501.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
99
ao proprietário, interessaria tão-somente à teoria da propriedade, e não a uma
145
teoria acerca da posse.
TEORIA DE IHERING - CONCEPÇÃO OBJETIVA
A segunda teoria que teve importância fundamental foi a desenvolvida
por Rudolf Von Ihering, em 1867, quando criticou a construção formulada por
Savigny. A doutrina de Ihering influenciou diversas legislações, inclusive a
nossa.
Para IHERING, a posse não é a possibilidade imediata de ter a coisa a
disposição com a intenção de ser dono como queria SAVIGNY, mas é revelada
pela aparência, pela
exterioridade da propriedade, pela visibilidade do
146
domínio.
IHERING, citado por MOREIRA ALVES colocou que "na relação com a
propriedade se encontra a chave para a compreensão de toda a teoria material
da posse: tanto para a extensão abstrata do instituto da posse - ela segue
paralelamente à propriedade - como para os requisitos da posse concreta - eles
se reduzem á relação exterior sobre a coisa correspondente à propriedade. A
designação da posse como a exteriorização ou a visibilidade da propriedade
147
encerra toda a teoria da posse".
Portanto, Ihering não negou a existência dos elementos da posse: corpus
e animus, apenas os entendeu diferentemente de Savigny. O corpus, para ele,
"é a relação exterior que há normalmente entre o proprietário e a coisa, ou a
148
aparência da propriedade".
Desta forma, o corpus (elemento material) é a maneira de comportar-se
da pessoa com relação a coisa, é a relação externa que há entre a pessoa e a
145 BESSONE, Darcy. ob. cit. pág. 56.
146 BESSONE, Darcy. ob. cit. pág. 57.
147 ob. cit. Posse: evolução histórica vol. I, pág. 224.
148 SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. vol. iv. pág. 23.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
100
coisa, à semelhança do que ocorre com o proprietário. De fato, é o aspecto de
proprietário que determina a existência da posse. Pois, quando se dá a
destinação econômica, a coisa está se agindo conforme o proprietário, e isto,
por si só, é o que caracteriza a posse.
Para IHERING, não é necessário buscar-se o elemento intencional para
encontrar a posse, pois é difícil distinguir entre a vontade de possuir em nome
próprio e a vontade de possuir em nome alheio. Entende que o animus não se
situa na intenção de ter a coisa como sua, mas consiste na vontade de proceder
como o faz normalmente o proprietário (affectio tenendi).
A distinção entre posse e detenção faz-se tão-somente pela presença de
um fator objetivo: a lei que retira de algumas situações a possibilidade de
utilização da proteção possessória. É impossível pelo animus domini de se
estabelecer esta distinção.
MOREIRA ALVES, comentando a propósito da teoria de IHERING,
explicou que para ele “tanto a posse quanto a detenção exigem o corpus e o
animus, não como elementos independentes, mas, sim, indissoluvelmente
ligados, nascendo ao mesmo tempo pela incorporação da vontade na relação
do sujeito com a coisa, e não podendo existir um sem o outro, pois o corpus
149
está para o animus como a palavra para o pensamento”.
SERPA LOPES, após traçar os princípios fundamentais da teoria de
Ihering reduziu-a da seguinte forma:
Podemos, então, sintetizar o ponto de vista de IHERING:
a) o corpus é, por assim dizer, espiritualizado, pois deve representar um
comportamento por parte do possuidor só compatível com o exercício da
propriedade;
b) este comportamento do possuidor, apto a denunciar a propriedade,
pode efetivamente corresponder a esta ou pode não corresponder,
quando o ius possidendi está unido ao ius possessionis;
149 ob. cit. pág. 229.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
101
c) embora destinado a defesa do domínio, a posse pode, em dadas
circunstâncias, se volver contra o titular do ius possidendi;
d) a segurança da posse não se fundamenta só no elemento físico, isto é,
nas medidas de segurança tomadas para sua proteção, senão também
no elemento moral e jurídico, ou seja, no temor de lesar os direitos de
outrem, inspirado pelo sentido jurídico ou pela lei.
e) ao autor, em matéria de posse, é bastante provar o corpus, e ao réu
cabe provar que o autor tem apenas uma detenção;
f) a detenção é igual a posse, em seu aspecto material, de modo que
somente por exceção, isto é, quando a lei o determina, se pode privar o
150
detentor da proteção possessória.
Assim, sucintamente, pode-se elucidar os principais pontos da teoria de
IHERING, caracterizada pela oposição à construção formulada por SAVIGNY,
geradora das controvérsias doutrinárias quanto ao conceito de posse. Pelo fato
destes juristas terem desenvolvido seus estudos com base no direito romano,
para formulação de suas teses, alguns autores afirmam que a causa das
divergências encontra-se no fato de terem fundamentado suas pesquisas em
fases distintas da história romana, preocupando-se em diferenciar a possessio
151
da detencio e a possessio ad interdicta da possessio ad usucapionem.
FÁBIO ULHOA COELHO em um estudo comparativo entre as duas
concepções, apresentou solução simplista para se descobrir qual teoria
fundamenta determinado código:
As conseqüências práticas da adoção legislativa de uma ou outra teoria
caracterizadora da posse é deixar ao desabrigo certas relações entre
homem e coisa. Ou seja, o interesse em definir teoricamente a posse em
um ou outro sentido resume-se a circunscrever o conjunto de
'apreensões fáticas' que gozará da proteção pelos interditos. A adoção da
teoria subjetiva implica em tornar inacessível a proteção possessória
150 ob. cit. pág. 114.
151 SANTIAGO DANTAS, ob. cit. pág. 30.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
102
àqueles que, embora exercendo uma apreensão sobre certa coisa, não o
fazem com o intuito de proprietário, como é o caso do locatário, do
mandatário e outros. A adoção da teoria objetiva, ao contrário, implica em
se conceber a proteção possessória a todos que exerçam sobre uma
coisa um poder de apreensão, traduzindo pela utilização econômica que
dela façam, salvo se o legislador expressamente (e movido por critérios
de oportunidade legislativa) excluir certos casos desta proteção" [...]
"O critério de aferição da filiação de certo sistema jurídico a um ou outro
pensamento deve ser construído a partir dos postulados mesmo de cada
corrente e não em função das suas conseqüências práticas. Fazendo,
pois, um completo enxugamento das teorias de Savigny e de Ihering, com
o intuito de alcançar-lhes a essência íntima, obtém-se a seguinte idéia
que serve para o alcance do critério perseguido: 'em Savigny, a posse é
uma detenção especial e em Ihering a detenção é uma posse especial'.
Explico-me melhor: por posse [grifo no original] entenda-se a apreensão
que goza de proteção jurídica (interditos) e por detenção [grifo no
original] a que não goza. Na sede da teoria subjetiva, a posse é uma
detenção especial porque o possuidor é dotado de uma vontade
inexistente no detentor, que é a vontade de ser dono. Há na posse uma
especialidade (animus domini) [grifo no original] inexistente na
detenção. Especialidade essa que justifica a proteção pelos interditos. Na
sede da teoria objetiva, a detenção (apreensão não protegida) é uma
posse especial porque o ordenamento jurídico a trata de forma especial
quando lhe nega acesso aos interditos. Há para a detenção uma
especialidade (norma jurídica que a exclue da proteção por interditos)
que inexiste para a posse. Especialidade essa que justifica a negativa da
152
proteção pelos interditos.
152 COELHO, Fábio Ulhoa. Dos elementos da posse no direito comparado. JUSTITIA, V. 126, pp. 77-100, jul/set, 1984.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
103
A POSSE NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
Cumpre, primeiramente, ressaltar que o Código Civil não conceituou a
posse, apenas definiu a figura do possuidor; isto, na verdade foi a dificuldade
na qual os juristas, estudiosos do fenômeno possessório esbarraram em todas
as épocas, encontrar um conceito harmônico de posse.
Predomina entre os doutrinadores pátrios o entendimento de que o
153
Código Civil Brasileiro orientou-se pela teoria objetiva de Ihering,
surgindo a
controvérsia quando procura-se saber se o Código a teria consagrado em sua
integralidade ou teria sofrido as influências de outras teorias, notadamente da
teoria subjetiva de Savigny. Procurando trazer algumas orientações acerca da
matéria consignamos abaixo alguns posicionamentos doutrinários.
Tal é a redação do artigo 485, do Código Civil Brasileiro:
"Considera-se possuidor todo aquele que tem, de fato, o exercício, pleno
ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio ou propriedade".
BARROS MONTEIRO, disse que "verifica-se, por esse dispositivo legal,
que a posse, em nossa sistemática jurídica, é o exercício de fato dos poderes
constitutivos do domínio, ou propriedade, ou de algum deles somente, como no
154
caso de direito real sobre a propriedade alheia".
Já DARCY BESSONE, sustentou que não há dúvida de que o código
acolheu a teoria de IHERING,
mas que ao dispor acerca do usucapião,
fundamentando-o no animus, tal como sustentado por SAVIGNY, não estaria o
legislador intencionando confrontar dois conceitos de posse - possessio ad
interdicta - possessio ad usucapionem - entendeu, contudo, que houve
um
153 Parte da doutrina nacional entende que o Código Civil consgrou totalmente a teoria objetiva. Neste sendio, por exemplo, v.
BEVILÁQUA (Cód. Civil, vol. III, p. 5). Contrariamente, admitindo a influência da teoria subjetiva, v. ORLANDO GOMES (Dir. Reais, p.
24); CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (ob. cit. p., 26).
154MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das coisas. 4. ed. rvv. e amp. São Paulo: Saraiva, 1961. pág. 1819.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
104
lapso do legislador que ocasionou uma incoerência no sistema normativo do
155
Código.
FIGUEIRA JR., filiou-se a corrente dos que admitem a aceitação da
doutrina de IHERING, sem contudo aceitar que a mesma tenha sido consagrada
em sua plenitude, vale transcrever seu posicionamento com relação ao tema:
A sistematização adotada demonstra, inicialmente, o acerto do legislador
em concebê-la como instituto pertencente ao mundo fáctico, não a
incluindo dentre os direitos reais. Seguiu-se a orientação que o BGB
(Bürgerliche Gesetzbuch) imprimiu à posse, acolhendo a teoria objetiva
de IHERING quase em toda sua inteireza.
Porém, não comungamos da idéia de que o Código Civil tenha
consagrado totalmente a teoria iheringuiana; diríamos que o legislador
perfilhou.
Constata-se que o modelo escolhido cedeu em algumas essencialmente
a concepção objetivista da posse situações ao elemento subjetivo,
conforme depreende-se dos arts. 493, III (aquisição da posse por
qualquer dos modos de aquisição em geral),494, IV (constituto
possessório), 520, II, (a perda da posse pela tradição, cuja entrega pode
ser simbólica, isto é, a tradictio ficta, onde o acordo de vontade entre as
partes e a consignação simbólica substituem, de certa forma, a relação
direta com o bem), 520, IV (pela posse de outrem, ainda que contra a
156
vontade do possuidor), e 520, V (pelo constituto possessório).
No que tange à terminologia utilizada para confecção do artigo 485,
muitos se discutiu até chegar-se a sua redação final, mas, ainda assim, não
esteve a salvo de críticas.
Para SANTIAGO DANTAS, "há redundância nesta expressão - exercício
de fato -, por isso que se faz uma diferença entre o direito e seu exercício.
Exercício é o momento em que o direito se exterioriza, mas o Código quis
155 ob. cit. pág. 59-60.
156 ob. cit. Posse e ações possessórias. pág. 44-45.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
105
sublinhar, com esta expressão, que não se precisa indagar, para conferir a
qualidade de possuidor, do motivo em virtude do qual alguém exerce poderes
sobre a coisa. Se estes poderes são daqueles inerente ao domínio, não se tem
157
dúvida em reconhecer na pessoa que os exerce a qualidade de possuidor".
Corroborou este entendimento MOREIRA ALVES dizendo que "a fórmula
e o exercício de fato de um direito procura traduzir a idéia de que é possuidor
quem, independentemente de ser titular de um direito, se comporta, em face de
uma coisa como se o fosse, e não que ela deva necessariamente consistir em
atividade que concretize o exercício de um direito, do qual seria a manifestação
158
e no qual acharia a sua justificativa".
Podemos dizer, portanto, que "a posse, em nosso direito positivo, não
exige, portanto, a intenção de dono, e nem reclama o poder físico sobre a coisa.
É a relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização
econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem procede como
159
normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio (Cód. Civil, art. 485)".
Percebeu-se, pela análise da doutrina, que o Código Civil Pátrio recebeu
influência do direito romano, canônico e germânico, inobstante ter se pautado
pela teoria da aparência de Ihering.
MOREIRA ALVES, explicou a gênese dos artigos 483 a 523 que
disciplinam a posse e a detenção em nosso Código e afirmou que entre eles:
Convivem, na desarmonia natural dos inconciliáveis, princípios da posse
romana, da posse canônica e da 'Gewere' (...) É essa heteregoneidade
de princípios encontráveis nos diverso códigos civis modernos - que,
como já acentuamos, dificulta, sobremodo, a construção dogmática da
posse à luz de cada um deles. No Brasil a dificuldade cresce pela
freqüência de elementos constantes entre si, dada a diversidade de
origem, com os quais se teceu a disciplina da posse. Por isso, a
157 ob. cit. pág. 49.
158 ALVES. J. C. Moreira. Posse: estudo dogmático. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1990. vol. II. tomo I, pág. 19-20.
159 PEREIRA, C. M da Silva. ob. cit. pág. 26.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
106
necessidade de distingui-los, para que se possa construir a dogmática da
posse
com base
nos preceitos fundamentais
que se ajustam,
caracterizando-se os inadaptáveis como exceções que se explicam com
sua gênese. Querer proceder de outra forma, na tentativa de conciliar
princípios contraditórios
pelo simples ideal de unitarismo lógico, é
pretender solucionar problema análogo ao da quadratura do círculo.
Pode-se negar que o conceito de posse, no Código Civil Brasileiro, é o
exercício de fato de um direito, porque ele não abarca a hipótese do
herdeiro que, por ignorar que se lhe transmitiu automaticamente a posse
dos bens do 'de cuius', não se comporta com relação a estes como titular
de qualquer direito? A exceção não destrói a regra; apenas comprova
que, no terreno jurídico, a lógica se submete à realidade que a ela
160
resiste.
A POSSE NA FENOMENOLOGIA JURÍDICA COMO FATO SOCIAL
Entramos, nesse tópico, na discussão a que nos propomos inicialmente.
Observou-se no estudo das duas principais teorias acerca da posse teoria objetiva e teoria subjetiva - que havia necessidade da ocorrência dos dois
elementos que compõem a posse - o animus (elemento volitivo) e o corpus
(elemento material) - para sua caracterização, sendo que estas duas teorias
diferenciavam-se uma da outra pela forma como entendiam estes elementos.
Pela análise da bibliografia nacional percebeu-se que, relativamente ao
tema da posse como fato social, a mesma é escassa, entretanto foi possível
encontrar
o
ponto
fundamental
das
teorias
que
sustentaram
este
posicionamento e concluir que, para os seus defensores, os elementos - animus
e corpus - são prescindíveis para a caracterização da posse, visto que para se
determinar se alguma situação é ou não posse é necessário apenas analisar se
160 ob. cit. Posse: estudo dogmático. vol II. , págs. 369-371.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
107
há poder de fato (poder fáctico) sobre a coisa, abstraindo-se dos elementos da
posse. Delineou-se abaixo alguns posicionamentos que tentaram justificar o
fundamento da teoria da posse como fato social.
BARASSI, citado por Figueira Jr., doutrinou que:
[...] para determinar quando um estado exterior que represente o
exercício de um direito seja considerado como posse merecedora de
tutela, isto é, por si mesma, precisa demonstrar estes estados exteriores,
no quais encontramos o contato de uma pessoa com um coisa (é o caso
mais simples e normal) de um ponto de vista mais amplo do que aquele
que não seja o puro interesse do indivíduo [...]
[...] toda relação de poder entre uma pessoa e uma coisa, à qual o
comum juízo de valor, que se pode chamar de 'coscienza sociale', atribui
o caráter de senhoria de fato, merecedora, pela sua social importância,
161
de ser tutelada por si mesma. [...]
Infere-se da doutrina de BARRASSI, que a teoria do fato social distanciase dos elementos animus e corpus, pois vê na relação entre a coisa e a pessoa
uma relação de poder que assim aparece diante da sociedade (fato social).
PONTES DE MIRANDA doutrinou neste sentido salientando que:
A posse é estado de fato, em que acontece poder, e não
necessariamente ato de poder. A relação possessória é inter-humana e a
posse exerce-se por atos ditos possessórios; mas tem-se de distinguir,
ainda no mundo fático, o poder e o exercício do poder. A posse é
poder, pot-sedere, possibilidade concreta de exercitar algum poder
inerente ao domínio ou à propriedade. Não é o poder inerente ao domínio
ou
à
propriedade;
nem,
tampouco,
o
exercício
desse
poder.
Rigorosamente, a posse é estado de fato de quem se acha na
possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem
fosse
proprietário ou tivesse, sem ser proprietário, poder que sói ser incluso no
161 ob. cit., Posse e ações possessórias. vol. I, p. 92.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
108
direito de propriedade (usus, fructus, abusus). A relação inter-humana é
com exclusão de qualquer outra pessoa; portanto é relação entre
possuidor e o alter, a comunidade. Se bem que no mundo fático, é
situação erga omnes; ou, melhor, real. [...]
[...] nos nossos dias, eliminado o voluntarismo Kantiano, a posse é tida
como poder fático, o que elimina a necessariedade do corpus e do
animus, ao mesmo tempo que se mantém a noção de relação inter162
humana, social, sem se ter de pensar em 'vontade'.
Conclui-se que para caracterizar a posse não é necessário que se
pratique qualquer ato, pois a mesma é poder.
JOEL DIAS FIGUEIRA JR., desenvolvendo a teoria do fato sócioeconômico potestativo, concluiu que para se identificar uma situação
possessória não é necessário analisar os elementos que compõem a posse
como defendido por IHERING e SAVIGNY, assim doutrinou :
A caracterização da posse prescinde do exercício de atos (exteriorização
material que é própria, como dissemos, de um concepção naturalista do
corpus), bastando, em qualquer hipótese, a existência de poder sobre um
bem. Por isso, exemplificando, é admissível a posse de um imóvel sem
que o possuidor o cultive, explore ou visite. Como não existem
parâmetros ou diretrizes que determinem a atuação máxima ou mínima
do titular de um direito, pela mesma razão, sendo a posse
desmembramento fáctico de alguns dos poderes inerentes a propriedade
ou direitos reais, também não encontramos parâmetros legais que
determinem a atividade de quem exercita qualquer desses poderes.
A posse não é o exercício do poder, mas sim o poder sócio-econômico
propriamente dito que tem o titular da relação fática sobre um
determinado bem. A posse caracteriza-se tanto pelo exercício como pela
162 ob. cit., tomo X, p. 7 e 16.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
109
possibilidade de exercício. Ela é a disponibilidade e não a disposição; é a
163
relação potestativa e não necessariamente o efetivo exercício.
E adiante, ressaltando que o segundo aspecto deste poder de fato
consiste na abstenção de terceiros em relação à posse respectiva,
esclareceu que estes dois aspectos do poder de fato provocam uma
reação na coletividade donde surge a posse como fato social.
ALFREDO FEDELE, citado por Figueira Jr., corroborou este ensinamento
de que "o poder de fato não consiste na possibilidade material de excluir
terceiros, mas no fato de que os terceiros se abstenham e que não exista
obstáculo físico, ao menos duradouro, à ingerência do possuidor sobre a coisa.
Da relação entre sujeito e a coisa passa-se então a uma relação entre sujeitos,
164
isto é, a posse como fato social".
Bem salientou ASTOLPHO REZENDE:
O que se verifica é que a posse é protegida, e deve ser protegida por si
mesma,
independentemente
de
qualquer
outra
consideração.
O
possuidor deve ser protegido pelo simples fato de possuir, por isso só
que possue, qualquer que seja a origem da sua posse. A posse não é
protegida por ser proibida a violência; a violência é que é proibida porque
a posse é e deve ser protegida. É na posse mesma, uma posse em si
mesma, e não caráter ilícito ou delictuoso da turbação que se deve
buscar a razão de ser da proteção possessória.
O possuidor é protegido, não porque seja uma pessoa; toda pessoa deve
ser protegida contra os actos ilícitos ou delictuosos mas sim porque é
possuidor, e, como tal, tem mais direito do que aquele que não possue.
(sic)
163 FIGUEIRA Jr., Joel Dias. Liminares nas ações possessórias. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 30 e 32.
164 idem, ibidem, p. 33
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
110
NATUREZA JURÍDICA DA POSSE
A natureza jurídica da posse é tema que muito incômodo trouxe aos
doutrinadores, e não houve, relativamente a este assunto, jurista que não teceu
considerações. Diga-se, ainda, que essa matéria tem relevância tanto no direito
civil quanto no direito processual e, sobretudo, deve ser estudada pelo prisma
da dogmática jurídica, restringindo-se, portanto, sua análise ao sistema jurídico
ao qual se vincula.
Inúmeras concepções existem acerca da natureza jurídica da posse,
contudo, podemos reduzí-las a três grupos: os que entendem que ela é
puramente um fato; os que tem-na como um direito; e aqueles que a
consideram um fato e um direito ao mesmo tempo.
Importante destacar, antes de colocarmos alguns posicionamentos sobre
o tema, as palavras de MOREIRA ALVES:
Com efeito, para os que sustentam que a posse é um direito, sua
posição, no sistema do direito civil, vai depender da espécie desse direito:
se real, se pessoal, se real e pessoal ao mesmo tempo, se nem real nem
pessoal. Já para aqueles que entendem que ela ou é um puro fato, ou é
uma situação jurídica que não um direito subjetivo, o critério para essa
colocação terá de ser diverso, e poderá ser o da extensão horizontal que
se lhe atribui (o que vai depender de maior ou menor amplitude que a
ordem jurídica em causa dá à posse de direitos); ou a importância de
algum dos efeitos jurídicos que se lhe reconhecem; ou, ainda, de outro
aspecto que sirva para a valorização dela, e, conseqüentemente, para a
165
determinação de seu lugar dentro da sistemática do direito civil.
165 ob. cit., vol. II, tomo. I, p. 126.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
111
A POSSE COMO FATO
Os que sustentam que a posse é puramente um fato, procuram justificar
seu posicionamento afirmando que a posse não se transforma em um direito
(não é um fato jurídico) tão somente pelos efeitos que a lei lhe atribui, visto que
pode estar a serviço de quem não é titular de qualquer direito sobre a coisa que
é seu objeto.
PONTES DE MIRANDA, entendeu que há necessidade da ocorrência de
um outro fato, para que a posse adentre ao mundo jurídico, ou seja, os efeitos
que dela decorrem dependem da realização de outro ato ou fato, visto que ela
por si só não é fato jurídico. Assim, expressa seu entendimento:
A posse não é efeito jurídico, nem soma de efeitos jurídicos; é o suporte
fático possessório (Besitztatbestand), que permanece pronto para a
entrada no mundo jurídico quando se dê o ato ou o fato que o suscite, e
só então há efeitos, portanto direitos, pretensões, ações e execuções.
Os direitos que exsurgem são direitos que resultam de algo mais que o
simples estado de fato. Quem transfere a posse não dispõe de direito - o
direito nasce ao adquirente do ato de disposição, com a transferência.
Antes, só se estava no mundo fáctico. [...] O que mais importa saber é
que o direito contemporâneo (à frente, e melhor que todos os outros
sistemas jurídicos, o sistema jurídico brasileiro) chegou à caracterização
da posse como fato puro, como acontecimento do mundo fático, que
somente penetra no mundo jurídico quando algum ato jurídico ou alguma
investida na esfera da ação de outrem suscita a tutela jurídica da posse.
Daí pode-se dizer que a posse entra no mundo jurídico, como fato jurídico
stricto sensu, quando objeto de algum ato jurídico ou quando ofendido o
status quo, indispensável a paz social. A posse, só por si, não se
juridiciza; a posse não é mais do que um dos elementos do fato jurídico
stricto sensu (posse + ato jurídico, ou posse + ofensa à ordem social).
Porque é valor, serve de objeto a atos jurídicos. Por que há o princípio
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
112
Quieta non movere, permite-se que funcione a tutela possessória, que
então se cria no momento mesmo da ofensa.
Após essa fixação de quando a posse se judiciosa e a verificação de que
não é simultânea a ela - acontecimento do mundo fático - a juridicização,
à diferença do que ocorre a respeito dos outros fatos jurídicos stricto
sensu, como o nascimento e a morte, e um tanto parecida com a avulsão
que somente entra quando encontra o terreno de alguém, é que se há de
166
mencionar a abrangência do suporte fáctico das posses.
FIGUEIRA Jr., em referência ao tema, disse que "a posse, sem dúvida, é
antes de mais nada um fato, que, por sua vez, gera efeitos jurídicos. Contudo,
não é por esse motivo que deve ser considerada como um mero estado ou
situação de fato que se transforma em direito em virtude da proteção que a lei
lhe confere, ou, ainda, concomitantemente, como pensam alguns, um fato e um
167
direito".
EBERT CHAMOUN, citado por Figueira Jr., seguiu a mesma linha
afirmando que "é a posse um estado de fato, um poder de fato que alguém
exerce sobre uma coisa, e cujo conteúdo é exclusivamente econômico, porque
se relaciona com o aproveitamento econômico da coisa, considerada como
objeto de satisfação das necessidades humanas. Mas é um estado de fato
apenas no sentido de prescindir da existência de um título jurídico: há um direito
168
à proteção da posse sem que a posse esteja fundada em direito".
RANDA, citado por Astolpho Rezende, acerca dessa questão manifestouse com muita propriedade dizendo que:
[...] a posse não é nenhum direito, mas um simples fato que, não
obstante, está próximo do direito. A proteção possessória não forma um
conteúdo de um direito de posse. A pretensão a esta é uma
166 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Direito das coisas:posse. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor Bolsoi, 1971. TOMO
X, pp. 15, 17-18.
167 ob. cit., Posse e ações possessórias. vol. I, p. 125.
168 ob. cit, p. 125.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
113
conseqüência da posse, e não a posse mesma, nem é em si direito
algum. É verdade que todo direito requer um facto para seu nascimento,
porém continua ainda que o facto cesse; ao passo que a posse exige,
169
para sua continuação, a existência do facto da detenção. (sic)
O entendimento, acima exposto, é o qual nos filiamos, posto que a posse
pelas peculiaridades que apresenta não enquadra-se como um direito e não
pode ter ao mesmo tempo dupla natureza jurídica como querem alguns.
A POSSE COMO DIREITO
Os defensores dessa corrente, sustentam que a
posse é um direito
subjetivo, por conter todos os elementos necessários para a configuração deste.
Esta opinião tem sustentáculo no conceito que IHERING formulou sobre o
direito subjetivo, definindo-o como o interesse juridicamente protegido, vendo
na relação possessória uma relação jurídica.
IHERING, citado por MOREIRA ALVES, concluiu "que todos os direitos
sem exceção se apresentam como conseqüências jurídicas, isto é, como
conseqüências juridicamente protegidas em favor daqueles a que elas se
170
destinam".
SERPA LOPES, corroborou este pensamento dizendo que:
Não temos dúvida em que a posse é um direito e não simplesmente uma
pura relação de fato. Demais, ex facto ius oritur. Se formos considerar a
posse como um não direito pela circunstância de se basear num fato, tal
marca teríamos de lançá-la em outros muitos institutos, porquanto, do
mesmo modo, se fundam em relações de fato. E entendemos assim
169 loc. cit., p. 280. José Carlos Moreira Alves, coloca que "...este fato - e este é segundo aspecto singular -, ao contrário dos fatos
que geram direitos subjetivos (que, uma vez nascidos, independem daqueles), é necessariamente duradouro (não importando que seja
maior ou menor a duração), pois a posse só existe enquanto ele perdura, o que implica dizer que a posse é um estado de fato (ob. cit.,
vol I., tomo II, p. 75)".
170 cf., vol. II, tomo II, pp. 88-89.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
114
como um direito por isso que se nos afigura incontestável a presença de
uma relação jurídica em todo e qualquer fato tutelado pela ordem jurídica
171
e aparelhado da actio.
HERNANDEZ GIL, sustentou entendimento contrário de que a posse seja
um direito, contudo, não afirmou categoricamente que a mesma seja um fato
tão-somente, pois isto a eliminaria do mundo jurídico. Advertiu, ainda, que os
que procuraram defender a posse como sendo um direito,
preocuparam-se
mais com sua tutela do que com seu conteúdo:
...En el fondo de todo e lo se advierte el juego de una espontánea
floración social rebelde a las categorias acuñadas por la construcción
juridica. El legislador ha tenido, sin duda, que afrontar el problema del uso
y disfrute de los bienes, sin más, y ha dictado normas de protección;
normas rudimentarias, poco evolucionadas. Los juristas, acostumbrados
a la tarea de la racionalización, no encuentran el encaje adecuado para
esta pieza extraña y sutil, esencial y zigzagueante. La contraposición
hecho-derecho señala los extremos de la antítesis; pero hay otras
posiciones intermedias: hecho jurídico, estado o situación de hecho,
relación, interés legítimo. Es la misma realidad social, que se venga del
que la elude y se sobrepone a las cerradas sistematizaciones. Estra
realidad, en los derechos propiamente dichos, queda como aprisionada y
dotada de completa normatividad. En la posesión, en cambio, siguem
fluyendo. Porque se trata de una estructura no transformada del todo en
institución jurídica; dicho de otro modo:
apoyándose en realidad social.
la efectividad jurídica sigue
172
Talvez, por isso, tenha a posse ensejado o surgimento de tantas teorias
acerca da sua natureza jurídica. Não obstante, as peculiaridades que apresenta
171 ob. cit., p. 90.
172 HERNANDEZ GIL, António. La función social de la posesión: ensayo de teorización sociológico-jurídica. Madrid: Ediciones Castilha
S/A, p. 123.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
115
a posse, há autores que afirmam categoricamente que "não se póde deixar de
173
considerar a posse 'um facto jurídico'; ella o é incontestavelmente".
A POSSE COMO FATO E DIREITO
SAVIGNY, citado por Astolpho Rezende, resumiu esse entendimento e
salientando que "...a posse é um facto, enquanto se baseia num estado de
coisas completamente estranhas ao direito, sobre a detenção. Mas a posse é
em si mesma um direito, porque direitos estão ligados a esse estado de coisas.
174
E assim, ela é, ao mesmo tempo, um direito e um fato”. (sic)
Infere-se, desta assertiva de Savigny, que o mesmo entendeu que a
posse em sua origem caracterizou-se como um fato, no entanto pelos efeitos
que ela produz deve também ser tida como um direito.
Essa concepção foi questionada principalmente por existirem situações
em que se reconhece os efeitos jurídicos da posse, sem contudo exista o fato
que lhe dá base.
Pelos posicionamentos colacionados percebeu-se que em relação a esse
tema muita dificuldade existe, o que, de certa forma, levou o arquiteto do Código
175
Civil Pátrio, definir a posse como "um direito de natureza especial".
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A Constituição de 05/10/88 trouxe em seu bojo inovações dentre as quais
afigura a afirmação inequívoca da função social da propriedade, de importância
inestimável na atualidade.
Buscou-se encontrar qual o posicionamento da doutrina acerca deste
novo texto legal, procurando responder se esta inovação trouxe ou não uma
173 cf., p. 281.
174 ob. cit., p. 278.
175 ob. cit. p. 43.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
116
mudança no conteúdo do direito de propriedade. A doutrina diverge sobre o
tema. Oportuno trazer a baila alguns ensinamentos, notadamente no que tange
a aplicabilidade das normas constitucionais que versam sobre a propriedade
em detrimento do Código Civil.
ROGER RAUPP RIOS, após traçar algumas linhas acerca das principais
doutrinas do direito subjetivo afirmou que:
Nossa lei fundamental, ao disciplinar o regime jurídico da propriedade,
acolhe a moderna concepção de direito subjetivo, segundo a qual
conjugam-se o poder e o dever. [...] Rompe o constituinte de 1988, de
maneira insofismável com a concepção individualista do direito subjetivo
de propriedade, traçando-o como verdadeiro direito-função, instituidor de
176
nova dinâmica nas relações sociais entre os titulares e a sociedade.
Para ORLANDO GOMES "as limitações, os vínculos, os ônus e a própria
relativização do direito de propriedade constituem dados autônomos que
atestam suas transformações no direito contemporâneo, mas que não
consubstanciam um princípio geral que domine a nova função do direito com
reflexos na sua estrutura e no seu significado e que seja a razão pela qual se
assegura ao proprietário a titularidade do domínio".
177
ROSALINDA P. C. RODRIGUES PEREIRA, assim colocou a questão:
A propriedade, assim, se justifica desde que cumpra sua função social,
ela não é uma função social, mas tem uma função social, no que
podemos definir função social da propriedade como os deveres positivos
que devem ser exercidos pelo proprietário no exercício do direito de
propriedade, ou seja, a observância de determinadas condições - o
178
interesse coletivo - no exercício do direito de propriedade.
176 RIOS, Roger Raupp. Função social da propriedade. LEX vol. 55, 17-25, março; 1994. Neste sentido JOSÉ AFONSO DA SILVA,
Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, RT, 1990, p. 419.
177 GOMES, Orlando. A função social da propriedade. Boletim da faculdade de direito. Coimbra. v. II, número especial. pp. 423-427,
1989.
178 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica de
propriedade. Revista de Direito Civil. vol. 65, pp. 104-128, jul/set.; 1993.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
117
IVAN LIRA DE CARVALHO, corroborou este entendimento e afirmou
que:
E é pela lente da atualização que o juiz deve enxergar o instituto da
propriedade, acobertado na vigente Constituição Federal. Só que
acolitado pela indispensável função social que norteia o exercício dos
direitos fluentes da referida garantia constitucional. Essa expressão
(função social), escrita no art. 5º, inciso XXIII e repetida no art. 186,
ambos da Lex Mater, goza realmente da seriedade que se espera de um
requisito alçado à sede constitucional. Assim, o Estado só garante a
179
propriedade que esteja produzindo e sendo útil à sociedade.
Com base no texto constitucional alguns entendem que a inserção da
função social da propriedade retirou a proteção possessória da propriedade
que não cumpre com sua função social, sendo este o alcance da expressão,
tendo o Código, via de conseqüência , de adequar-se à Constituição e não esta
ser lida a luz daquele.
180
MARIA CELINA B. M. TEPEDINO, após tecer considerações sustentando
seu entendimento de que não existe mais a clássica dicotomia direito público/
direito privado, conclui que:
Em matéria de propriedade, essencial torna-se a normativa constitucional
para a reconstituição do instituto, no âmbito das relações privadas. A
atribuição constitucional da função social parece incompatível com a
tradicional forma de tutela do proprietário, aquele a quem era permitido
usar e abusar do bem de sua propriedade. As profundas restrições que,
pouco a pouco, foram sendo impostas às faculdades inerentes ao
domínio, acarretaram a crise do conceito tradicional e perplexidade entre
os operadores do direito civil com relação à determinação do conteúdo
179 CARVALHO, Ivan Lira de. O judiciário, a propriedade e os sem-terra. Revista de Informação Legislativa. vol. 114, pp. 337-345;
abr/jun, 1992.
180 FACHIN, Luiz Edson. Terra, direito e justiça: do código patrimonial a cidadania contemporânea. Revista do IAP. Curitiba. vol. 24,
pp. 201-208, abr/out 1991. Do mesmo autor ver também: O regime jurídico da propriedade no Brasil contemporâneo social. Revista do
IAP Curitiba. vol. 21, abr/out., pp. 189-198.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
118
mínimo da propriedade, sem o qual se desnatura o próprio direito. [...] Em
razão da supremacia da Constituição, que passou a se constituir como o
centro de integração do sistema jurídico de direito privado, a lógica da
propriedade privada deve obsequiar a regulamentação lá estabelecida,
que determina um novo regime jurídico para a matéria. [...]
Reformulando, pois, a antiga concepção, pode-se afirmar que a função
social passa a ser vista como elemento interno da estrutura do direito
subjetivo, determinando sua destinação, e que as faculdades do
proprietário privado são reduzidas ao que a disciplina constitucional lhe
concede, na medida em que, 'o pressuposto para a tutela da situação
proprietária é o cumprimento de sua função social', que por sua vez, tem
conteúdo predeterminado, voltado para a dignidade da pessoa humana e
181
para a igualdade com terceiros não proprietários.
AYRES BRITO, consignando opinião contrária, defendeu "que o perfil da
nova Carta, em matéria de propriedade, foi tomado de empréstimo à
Constituição Militar de 69: tutela-se o direito de propriedade, mas não o direito à
propriedade. E quanto ao perfil da propriedade mesma, está na caracterização
de uma propriedade privada do tipo individualista, e não de uma propriedade
182
privada do tipo solidarista”.
HERNANDEZ GIL, analisando a função social da posse e a função social
da propriedade esclareceu de que forma a primeira mostra-se afetada pela
segunda :
Como resulta afectada la posesión por la función social de la proprieda?
En cuanto las normas configuradoras de las limitaciones de la propriedad
dejan de ser meramente negativas y obligan a una gestión socialmente
útil de los bienes, la figura de la propriedad estática y formal cede el paso
a uma propriedad dinámica,
ocupando
el primer plano no el tener
181 TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de direito civil. São Paulo, vol. 65, pp. 22-32,
jul./set., 1993.
182 BRITO, Carlos Ayres. Direito de propriedade. Revista de direito público. n. 91, p. 44-51, jul./set., 1989.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
119
atributivo, sino el disfrute actuante, la posesíon en suma. Mientras en la
propriedad a imagem
del individualismo la coletividad sólo es
contemplada encarnando deberes de abstención que hagan posible el
poder del proprietario, en la propriedad con función social la colectividad
tiene una intervencíon muy distinta: la de receptora de los deberes
conexos con el derecho de
propriedad. Aunque una consideración
superficial del problema permite pensar que la posesíon afectada por la
función social de la propriedad es la que forma parte del contenido de
este derecho, en rigor no queda de tal modo circunscrito el efecto de la
función social. Porque la función social abarca la gestión económica, la
explotación; consiguientemente, se extiende a cuantas personas y
situaciones resultan comprendidas en esos conceptos, o sea no sólo al
proprietário, aunque éste siempre experimente, de um modo directo o
indirecto, los efectos de la función.
Además de la función social derivada de la propriedad, existe otra
especificamente predicable de la posesión. La función social de la
propriedad estriba fundamentalmente en lo que hay en ella de eliminable.
La de la posesión radica, ante todo, en lo que tiene de imprescindible.
Como hemos indicado antes, tambíem cumple la propriedad una función
social
cuando se facilita el acesso a ella respecto de los bienes de uso
necessario.
Toda
fórmula
tendente
a
evitar
la
concentración
monopolística de la propriedad introduce un fenômeno socializador. Sin
embargo, aun en tal hipótesis se aprecia la diferencia de que la
propriedad privada
no es el instrumento jurídico indispensable para
conceder el goce, mientras que sí lo es la posesión.
183
183 ob. cit., pp. 173-174.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
120
A POSSE NA VISÃO DOS TRIBUNAIS
Da análise da Jurisprudência observou-se que os julgados confirmam o
entendimento doutrinário de que o Código perfilhou a teoria de Ihering, não
obstante haja certa confusão na terminologia empregada pelos tribunais, o que
enseja que sustente, como demonstrado, que para caracterização da posse não
se faz necessário analisarmos os elementos que a compõem, sendo suficiente
estar demonstrado o poder de fato, fundamento da teoria da posse como fato
social. Vejamos alguns julgados:
"As questões de domínio devem ser arredadas nas ações possessórias,
não havendo lugar no possessorium para as alegações de caráter
petitório. Conforme tem sido decidido, a posse é um estado de fato, é a
visibilidade do domínio ou a exteriorização da propriedade. Não é
título de domínio que a transmite e, sim, o seu efetivo exercício. Sendo a
posse questão de fato, bem por isso a sua prova não se faz através de
título de domínio, mas sim pela demonstração de ocupação física". (1º
TACiv. - SP - unân. da 1ª Câm., de 13-09-93 - Ap. 531978/6 - Juiz Santi
Ribeiro - Rubens Soares x FEPASA - Ferrovia Paulista S/A).
"O cessionário de herdeiros a quem por escritura pública foi transferida a
totalidade dos bens inventariados, bem como os direitos e ações
correspondentes, tem legitimidade para propor ação possessória contra
quem ilegitimamente detém parte dos bens transmitidos. Para que se
verifique a posse jurídica não é preciso que o possuidor resida no imóvel.
Basta que tenha possibilidade de dispor da coisa, o que é possível
independentemente da sua ocupação material". (TACiv. - RJ - unân. da
8ª Câm.., reg. em 19-4-94 - Ap 439-94 - Juiz Javro Ferreira - José Inácio
Sobrinho x Serrinha Futebol Clube).
"Para que se verifique a posse jurídica não é preciso que o possuidor
resida no imóvel, nele permaneça, edifique ou faça plantações; basta que
tenha a possibilidade de dispor da coisa". (TACiv. - RJ - unân. da 4ª
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
121
Câm., reg. em 28-6-94 - Ap. 14115/93 - Juíza Mariana Pereira Condomínio do Edifício Castelo de Bragança x Maria Messias Paz de
Carvalho).
"Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno,
ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade.
(CC, art. 485). Para a caracterização da posse não é necessário que o
possuidor tenha contato físico permanente com o imóvel, bastando que o
detenha com 'animus rem sibi habendi'”.
Além da prova documental demonstrativa da posse, esta é evidenciada
pela existência de benfeitorias no imóvel, onde o possuidor mantém
empregado e realiza visitas freqüentes. A ausência de cercas em
determinada
parte
descaracteriza a
do
posse,
imóvel
não
configura
abandono,
considerando-se, ademais,
nem
que esta
é
reconhecida por todos, inclusive pelo próprio Estado. Apelação
desprovida". (TRF - Ap. Cível n. 89.01.037017 - Rondônia - Ac. unân. da
3a. Turma - j. em 05.02.90 - p. em 02.04.90 - DJU, II, pág. 5.728 - Rel.
Juiz Vicente Leal).
"Provados os requisitos legais deve ser dispensada a proteção
possessória a quem detém a posse, desmerecendo beneplacidadas
invasões coletivas e planejadas de grileiros. A solução do problema social
quanto à ocupação produtiva das terras e dos conflitos decorrentes esta
afeta, primordialmente, aos governantes. O Juiz, todavia, deve ter cautela
e sensibilidade na outorga da prestação jurisdicional, evitando agravá-las,
autorizando medidas precipitadas, e omitindo-se quanto à prática
de
violências contra as pessoas. Em conflitos coletivizados a postura do juiz
não pode ser impassível, não devendo seguir a parêmia 'fiat justitia et
pereat mundus'". (TJ/MT - Rec. de Ap. Cível n. 14.209 - Comarca de
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
122
Nova Xavantina - Ac. unân. - 2ª Cãm. Civ. - Rel: Des. Atahide Monteiro
184
Silva - in: DJMT, 25.02.92, pág. 4.).
Pela análise dos julgados conclui-se, também, que
não se admite a
posse de direitos pessoais.
"A doutrina pátria não reconhece garantia possessória a mero direito
pessoal, como o é o direito ao uso e gozo de linha telefônica. Não se
pode invocar interditos possessórios quando se quer proteger direito
pessoal que não é componente do domínio ou da propriedade. A nossa
lei substantiva não conhece posse de direitos pessoais". (TACiv. - RJ unân. da 8ª Câm., reg. em 3-3-94 - Ap. 7641/93 - Juiz Walter D'Agostino
- Conceição Aparecida Rodrigues Nunes Cordeiro x Telecomunicações
185
do Rio de Janeiro S.A. - TELERJ.).
"É pacífico o entendimento de que não cabe ação possessória tendo por
objeto direitos pessoais. Portanto, não é admissível a pretensão de ser
reintegrado em direitos estatutários de agremiação clubística. Apelo
provido". (TACiv. RJ. - da 6.a. Câm., reg. em 22-11-94 - Ap. 1497/94 Juiz Nilson Diao - Luiz Roberto Fuser x Floresta Country Club).
"Os direitos pessoais relativos aos interesses de sócios em sociedade por
quotas não são suscetíveis de proteção pelas ações possessórias".
(TACiv. - RJ - unãn. da 2ª Câm., reg. em 08-06-9 - Ap. 5732/92 - Juiz
Gustavo Leite - Adilson Nunes Luiz x Nilda Souza Mendes).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. O conceito de posse evoluiu desde os primeiros tempos em que foi
concebido, tendo sido tratado diferentemente em cada época da história.
184 Ainda neste sentido: RT'S 268/315, 268/213, 268/320, 249/151, 230/135, 195/285, 188/250, 187/714, 177/310, 173/195 e 167/692;
Consultar a obra de Guido Arzua (Posse: o direito e o processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1967), onde este autor
comenta os artigos do Código Civil que tratam da posse trazendo um repertório de jurisprudência juntamente com cada artigo.
185 Admitindo a proteção possessória nestes casos: COAD, boletim 07, ano 1994, cód. 064563; Jurisprudência do STJ, n. 35295.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
123
2. A sistematização adotada no Código Civil sofreu influência
principalmente do direito romano, canônico e germânico.
3. O Código Civil recepcionou a Teoria de Ihering chamada teoria
objetiva, no entanto
cedeu em algumas situações à Teoria de Savigny
(elemento subjetivo).
4. Acerca da natureza jurídica da posse observou-se que a doutrina não
é pacífica, encontrando-se autores que a entenderam como um direito (SERPA
LOPES, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, PINTO FERREIRA, ASTOLPHO
REZENDE, MARIA HELENA DINIZ), outros que entenderam-na como fato
(PONTES DE MIRANDA, JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR, SANTIAGO
DANTAS), e outros, ainda, que a entendem como fato e direito (LIMONGI
FRANÇA, CONSELHEIRO LAFAYETE, SAVIGNY, EDUARDO ESPÍNOLA,
LUIZ EDSON FACHIN).
5.
O Código Civil admite o desdobramento da posse
em direta e
indireta , admitindo também a posse da coisa ao lado da posse de direito.
6.
Que a discussão doutrinária acerca da posse centralizou-se
principalmente nos elementos que a compõem (corpus e animus) justificando-a
como exteriorização da propriedade.
7.
Que a doutrina da posse, como fato social, abstraiu dos elementos
que a compõem (animus e corpus) sendo suficiente para caracterização da
posse a ocorrência do poder de fato (poder fáctico) sobre a coisa.
8.
A jurisprudência consagra a teoria de Ihering, no entanto existem
alguns julgados que aceitam a caracterização da posse pela existência do poder
de fato sobre a coisa,
sem analisar os elementos da posse,
revelando a
tendência moderna de se entender a posse como fato social.
9.
Com
o advento da
Constituição de 05/10/88 que trouxe -
no
capítulo que trata da ordem econômica - o princípio da função social da
propriedade,
ocorreu uma mudança no conceito de propriedade, não se
admitindo que vigore o conceito adotado pelo Código Civil Pátrio.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
124
10. O fim social da propriedade só pode ser atingido por intermédio da
posse, embora os tribunais ainda não apliquem a norma constitucional como
deveriam, fundamentando suas decisões nos conflitos possessórios na doutrina
tradicional.
11. Pela análise jurisprudencial concluiu-se que a sistematização
adotada não admitiu a posse de direitos pessoais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, José Carlos Moreira. Posse: evolução histórica, 1. ed. Rio de Janeiro:
Ed. Forense, 1985, vol. I, 427 p.
_______________________. Posse: estudo dogmático. 1. ed. Rio de Janeiro:
Ed. Forense, 1990, vol. II, tomo I, 635 p.
ARZUA, Guido. Posse: o direito e o processo. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1967.
BESSONE, Darcy. Da posse. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
BEVILÁQUA, Clovis.
Direito das coisas.
Edição histórica. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1941. vol. I.
BRITO, Carlos Ayre. Direito de propriedade. Revista de Direito Público. n. 91,
p. 44-51, jul./set., 1989.
BUSSI, Nilton. A função social da propriedade. Revista da Faculdade de Direito.
Curitiba, n. 27. p. 165-182. 1989.
CARVALHO, Ivan Lira de. O judiciário, a propriedade e os "sem terra". Revista
de informação legislativa. Brasília: n. 114, p. 337-347, abr./jun., 1992.
COELHO, Fábio Ulhoa.
Dos elementos da posse no direito comparado.
JUSTITIA. São Paulo: v. 126, p. 77-100, jul./set., 1984.
COLANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Helmus, 1975.
DANTAS, F. C. San Tiago. Programa de direito civil III: direito das coisas. 15.
ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
125
ESPÍNOLA, Eduardo.
Posse - propriedade: compropriedade ou condomínio
direitos autorais. Rio de Janeiro: Ed. Conquista., 1956.
FACHIN, Luiz Edson. Terra, direito e justiça: do código patrimonial a cidadania
contemporânea. Revista do IAP Curitiba, n. 24, p. 201-208, abr./out., 1991.
________________. O regime jurídico da propriedade no Brasil contemporâneo
e o desenvolvimento econômico social. Revista do IAP . Curitiba: n. 21, p.
189-198.
FIGUEIRA Jr., Joel Dias. Posse e ações possessórias: fundamentos da posse.
1. ed. Curitiba: Juruá, 1994.
________________. Liminares nas ações possessórias.
1. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1995.
FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias. 4. ed. Rio de Janeiro:
Ed. Forense, 1959, vol. I.
GOMES, Luiz Roldão de Freitas.
O estatuto da propriedade perante o novo
ordenamento constitucional brasileiro. Revista Forense. São Paulo, vol. 309,
p. 25-32, jan./mar., 1990.
GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
_____________.
A função social da propriedade.
Boletim da faculdade de
direito. Coimbra, vol. II, número especial, p. 423-437, 1989.
LEVENHAGEN, Antônio José de Souza.
Código civil
à luz da nova lei
processual. 1. ed. São Paulo: Ed. Atlas S.A., 1974.
MONTEIRO, Washington de Barros M. Curso de direito civil: direito das coisas.
4. ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 1961.
PEREIRA, Caio M. da Silva. Instituições de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1978. vol. IV.
PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade
rural e seus reflexos na acepção clássica de propriedade. Revista de Direito
Civil. vol. 65, p. 104-128, jul./set., 1993.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Tratado de direito privado.
Direito das coisas: posse. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Borsoi, 1971.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
126
REZENDE, Astolpho. A posse e sua proteção. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1937.
RIOS, Roger Raupp. A função social da propriedade. Lex. São Paulo, vol. 55,
p. 17-27, março, 1994.
RUGGIERO, Roberto de.
Instituições de direito civil.
3.
ed.
São Paulo:
Saraiva, 1972, vol. II.
SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil: direito das coisas. 2. ed.
São Paulo: Livraria Freitas Bastos S/A, 1962.
TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade.
Revista forense. v. 306, p. 73-78,
abr./jun., 1989.
TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um direito civil constitucional.
Revista de Direito Civil São Paulo: vol. 65, p. 21-32, jul./set., 1993.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
127
ALIMENTOS ENTRE CONVIVENTES :
UMA ANÁLISE CRÍTICA
JÚLIO CÉSAR BACOVIS
Advogado no Paraná. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
RESUMO: O artigo trata do direito de pensão alimentícia entre "conviventes", pessoas
(homem e mulher) que vivem em regime de união estável, formando entidade familiar
nos termos do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal. Após análise histórica sobre a
obrigação de prestar alimentos, o autor cuida especificamente da Lei 9.278/96, a qual
prevê a hipótese de alimentos na união estável, enfrentando a sempre polêmica questão
da fixação do valor devido, o chamado "quantum" da pensão alimentícia.
ABSTRACT: The article deals with the right of alimony between "consorts", people (man
and woman) that live in a consensual marriage, constituting a family entity in the terms of
§ 3 of article 226 of the Federal Constitution. After a historical analysis on the obligation
to maintain a person, the author focuses specifically on Law 9.278/96, which foresees the
alimony hypothesis in consensual marriages, always facing the polemical question over
the settlement of the value of matter in controversy, the so-called "quantum" of the
alimony.
CONCEITO
São expressivas as palavras de YUSSEF CAHALI ao afirmar que “o ser
humano, por natureza, é carente desde a sua concepção; como tal, segue o seu
fadário até o momento que lhe foi reservado como derradeiro; nessa dilação
temporal – mais, ou menos prolongada – a sua dependência dos alimentos é
uma constante, posta como condição de vida.” 186
186 CAHALI, Yussef S. Dos alimentos. São Paulo. RT. 1a ed. p. 1
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
128
Após transcrever a definição de Pontes de Miranda inserta no seu
Tratado de Direito Privado, que define alimentos como sendo “o que serve à
subsistência animal” diz o ilustre jurista que bastaria acrescentar a esse conceito
a idéia de “obrigação” que é imposta a alguém, em função de uma causa jurídica
prevista em lei, de prestá-los a quem necessita.” Daí a sua definição à palavra
“alimentos” vem a significar tudo o que é necessário para satisfazer aos
reclamos da vida; são as prestações com as quais podem ser satisfeitas as
necessidades vitais de quem não pode provê-las por si; mais amplamente, é a
contribuição periódica assegurada a alguém, por um título de direito, para exigíla de outrem, como necessária à sua manutenção”.187
Para Clóvis Beviláqua “a palavra alimentos tem, em direito, uma acepção
técnica, de mais larga extensão do que na linguagem comum pois compreende o
que é necessário à vida: sustento, habitação, roupa e tratamento de
moléstias”.188
A palavra alimentos significa, em síntese, tudo o que é necessário à vida
e tem obrigação de prestá-los somente àquelas pessoas designadas em lei ou
em função de uma causa jurídica pois afora isso se estará diante da prestação
de alimentos voluntários.
SÍNTESE
HISTÓRICA
SOBRE
A
OBRIGAÇÃO
DE
PRESTAR
ALIMENTOS
A obrigação de alimentos foi reconhecida pelo direito romano, desde que
se fundasse em qualquer das seguintes causas: (a) na convenção; (b) no
testamento; (c) na relação familiar; (d) na relação de patronato; (e) na tutela.
A obrigação alimentícia baseada nas relações familiares não esteve
presente nos primeiros momentos da legislação romana, haja vista que, por
força da estrutura do “paterfamília” em que o titular do “pátria potestas”
187 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo IX, § 1.000. Rio de Janeiro: Borsoi, 1976, p. 207.
188 apud CAHALI, Yussef S. p. 2
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
129
concentrava toda a autoridade patrimonial sobre seus dependentes, a estes não
era dado o direito de pleitearem qualquer desejo de ordem patrimonial pois,
sendo totalmente privados de capacidade patrimonial, a recíproca da
exigibilidade de alimentos não existia.189
Não há uma determinação precisa do momento histórico a partir do qual
essa estrutura foi se permeabilizando no sentido do reconhecimento da
obrigação alimentar no contexto da família.
Terá sido a partir da época do principado, em concomitância com a
progressiva afirmação de um conceito de família em que o vínculo de sangue
adquire uma importância maior, quando então se assiste a uma transformação
do dever moral de socorro, embora largamente sentido, em obrigação jurídica
verdadeira e própria, a que corresponderia o direito alimentar, tutelável através
da “cognitio extraordinem”; a controvérsia então se desloca para a extensão das
pessoas vinculadas à obrigação alimentar.190
No direito justinianeu foi seguramente reconhecida uma obrigação
alimentar recíproca entre ascendentes e descendentes, paternos e maternos na
família legítima, entre ascendentes maternos, pai e descendentes na família
ilegítima, com exclusão daquela constituída ex nefaniis vel incestis vel damnatis
complexibus; talvez entre irmãos e irmãs; e muito provavelmente pertence a
esse período a extensão da obrigação alimentar à linha colateral.
Discute-se, também, a existência de uma obrigação alimentar recíproca
entre cônjuges.
Para Moreira Alves, “no direito clássico – segundo tudo indica (v. Carlo
Longo), impõe-se a negativa; quanto ao direito justinianeu, entende Bonfante
(mas a matéria é controvertida) que a mulher tem direito a alimentos, mas o
marido não.” 191
189 CAHALI, Yussef Said. Ob. cit. p. 28-29
190 Idem p. 29-30
191 CAHALI, Yussef S. ob. cit. p. 31
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
130
O DIREITO BRASILEIRO PRÉ-CODIFICADO
Sob esse título, leciona Cahali que “nas Ordenações Filipinas, o texto
mais expressivo a respeito da obrigação alimentar (pelo menos o mais citado na
doutrina) encontra-se no Livro, título LXXXVIII, 15, na medida em que, embora
provendo sobre a proteção orfanológica, traz a indicação dos elementos que
comporiam a obrigação: “Se alguns órfãos forem filhos de tais pessoas, que não
devam ser dados por soldadas, o Juiz ordenará o que lhes necessário for para
seu mantimento, vestido e calçado, e tudo mais em cada ano. E mandará
escrever no inventário, para se levar em conta a seu Tutor ou Curador. E
mandará ensinar a ler e escrever aqueles, que forem para isso, até idade de 12
anos. E daí em diante lhes ordenará sua vida e ensino, segundo a qualidade de
suas pessoas e fazenda.”192
Nessa fase, o documento mais importante é o Assento de 9 de abril de
1772, que “proclamando ser dever de cada um alimentar e sustentar a si
mesmo", estabeleceu quais exceções àquele princípio.
Eram exceções os descendentes legítimos, os descendentes ilegítimos;
os ascendentes; os transversais.
Em relação aos descendentes legítimos não havia obrigação – direito e
ação dos filhos nos casos em que os pais ou quaisquer outros ascendentes, não
tivessem o indispensável para a própria sustentação; (no caso em que os filhos
tivessem ocupação própria e, pois, condições próprias para se manterem; no
caso de terem cometido ingratidão; no caso de afastamento dos pais sem justa
causa; nos casos de casamento sem consentimento dos pais.
As mesmas exceções eram impostas aos descendentes ilegítimos.
192 CHALI, Yussef S. p. 34
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
131
Quanto aos transversais – não há parente algum nessa linha que deva
alimentos a outros transversais, pelo direito de sangue, porque como os
transversais não deram o ser uns aos outros, nem também o receberam de
algum de sua linha.
Os parentes colaterais, por mais próximos que sejam em grau, não são
obrigados a alimentarem os colaterais ilegítimos, prova-se pela Ord. do liv. 1 tit.
88 par. 11.193
O Alvará de 29/08/1776 deu força e autoridade de lei ao referido assento.
Teixeira de Freitas, na Consolidação das Leis Civis, articula em vários
dispositivos o dever de sustento dos filhos, os direitos recíprocos de alimentos
entre pais e filhos e entre parentes.194
POSIÇÃO DO TEMA NO CÓDIGO CIVIL
Os alimentos decorrentes do casamento estão previstos no art. 231, III,
do Código Civil sob a forma de “mútua assistência”; ou fazendo competir ao
marido, como chefe da sociedade conjugal, “prover a manutenção da família”
(art. 233, IV).
A Lei do Divórcio assegura o direito aos alimentos para o cônjuge não
culpado da separação.
DIREITO ALIMENTAR ENTRE CONCUBINOS.
IMPOSSIBILIDADE
JURÍDICA ATÉ O ADVENTO DA LEI 9.278/96
A possibilidade jurídica de se exigir de outrem os alimentos sempre foi
viável juridicamente desde que embasada num “título de direito.”195
193 Idem p. 40
194 Ibidem
195 CAHALI, Yussef S. ob. cit. p. 2
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
132
Quanto as causas jurídicas de prestar alimentos, já referimos que são: a
lei, a vontade e o delito.
Quando a causa decorre da lei são denominados alimentos legítimos.
Alimentos voluntários são aqueles que decorrem da vontade, pode-se dar
através de contrato que fixe renda vitalícia ou através de disposição de última
vontade.
Por derradeiro, como causa jurídica de obrigação, encontra-se o delito,
ou seja, obrigação resultante de ato ilícito (art. 1537, inc. II e 1539, todos do
Código Civil) – homicídio e redução da capacidade laborativa, respectivamente.
Por essa razão é que anteriormente ao advento da Lei 8.971 de 29 de
dezembro de 1994 a concubina era carecedora de ação para postular alimentos
do seu ex-concubino.
Nesse sentido cabe citar o posicionamento de Washington de Barros
Monteiro196 que afirmava: “A concubina, porém, não tem direito a alimentos; só
pode pleiteá-los para a prole legítima.”
E, ainda, com apoio em Nicola e Francesco Stolfi: “A obrigação alimentar
é de natureza legal, a cargo das pessoas expressamente designadas, de tal
forma que se deve ter sua indicação por taxativa e não enunciativa.”197
A jurisprudência brasileira, em grande parte, decidia pela inexistência da
obrigação legal de serem dados alimentos em favor da companheira isso porque
“a nova Carta Constitucional evitou a equiparação do concubinato ao casamento
pelo proeminência que deu a este último instituto. Assim, a obrigação alimentar
entre concubinos escapa ao âmbito da norma do art. 226, par. 3º, da CF. O
dispositivo cria função de assistência para o Estado, não para o companheiro e
vice-versa”.198
Igual posicionamento consta no Acórdão unânime da 1ª Câm. Cível
publicado na RJTJSP, 1361/60 – Ap. 126.200-1 – Rel. Des. Roque Komatsu.
196 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito de família. São Paulo. Saraiva, II vol. 1983. 21ª ed. p. 293
197 idem p. 292.
198 cf. Acórdão proferido na Ap. 144.783-1/7 da 4ª Câm. Civ. Rel. Des. Vianna Cotrim. RT674/107
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
133
Destacamos desse Acórdão o seguinte trecho:
“No Direito Brasileiro, a jurisprudência vem decidindo sistematicamente
pela inexistência da obrigação legal de alimentos em favor da
companheira. O fundamento da obrigação alimentar, existente entre os
cônjuges, não se estende aos participantes das uniões livres, more
uxorio. E se, mesmo após a separação, o ex-concubino continua
prestando durante certo período pensão mensal à antiga companheira,
nada o impede de cessar unilateralmente o pagamento, sem que aquela
possa
exigí-lo pelas vias judiciais, uma vez que a liberalidade,
caracterizada como obrigação natural, não pode ser transmudada em
obrigação civil.”
Embora fosse assim alguns autores pugnaram pelo direito da prestação
alimentícia entre concubinos na união estável.
O ilustre juiz gaúcho SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA em artigo publicado
na RT 657/julho/90 – concluiu com base em ensinamentos de Yussef S. Cahali
que “o dever de alimentos tem como fundamento uma obrigação de caridade e
solidariedade familiares. Está em sua base um dever ético de assistência e
socorro resultante do vínculo familiar. Se a Constituição passou a considerar o
concubinato como entidade familiar, como forma de família, não há porque este
dever de solidariedade não atue igualmente entre os concubinos [...] O direito a
alimentos diz com o direito fundamental e essencial de todos, que é o direito à
vida e à vida com dignidade.
Estamos aí diante de princípio universal não
apenas moral, mas jurídico.”
Defendendo tese no sentido de ser possível a postulação de alimentos
entre concubinos escreveu BASÍLIO DE OLIVEIRA199, antes da vigência da
Lei.8971/94 que “a obrigação alimentar entre concubinos, a exemplo da
legislação de outros países, derivada da obrigação natural deve ser regida pelas
mesmas normas que regulam o direito alimentar entre os cônjuges casados.”
199 OLIVEIRA, Basilio de. O concubinato e a Constituição atual. Rio de Janeiro. 3ª ed. 1989. p. 79
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
134
Expõe, ainda, que “atualmente é pacífica a reciprocidade de dever
alimentar entre homem e mulher em nosso direito, no casamento, que se
estende também aos cônjuges concussionários, nos termos defendidos ... E tal
decorre do princípio igualitário estatuindo que:
“Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.”(CF art. 226, par. 5º).
E tal preceito deve ser interpretado em confronto com a “regra de
isonomia inserta no art. 5º, inc. I, da Lei Maior, de que:
“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição.”
Compreendemos que a tese defendida, conquanto estruturada em fortes
argumentos não supera o fundamento da necessidade de um título de direito, ou
seja, através da proteção do Estado por intermédio do direito positivo que edita.
Com efeito, somente a lei podia fundamentar o direito aos alimentos entre
concubinos ou entre conviventes na união estável como entidade familiar.
A construção jurisprudencial se encarregou de pacificar o entendimento
que o patrimônio formado pelo esforço comum dos concubinos deve ser entre
eles partilhados uma vez provada a sociedade de fato.
Entendimento esse
cristalizado na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal.
Também predomina o entendimento dos tribunais quanto ao direito da
concubina por serviços prestados quando estranhos à relação concubinária .
(RT 410/155)
O Acórdão proferido no STJ – Resp. 183.718-SP 4ª Turma – relatado
pelo Min. Sávio de Figueiredo Teixeira – DJU de 18.12.1998 p. 367 retrata todas
as hipóteses em que a ex-companheira tem direito à indenização quer por
serviços prestados quer pela formação do patrimônio adquirido pelo esforço
comum.
Destaca-se o entendimento que consta no item III – Salvo casos
especiais, a exemplo da inexistência de patrimônio a partilhar, a concessão de
uma indenização por serviços domésticos prestados, prática de longa data
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
135
consagrada pela jurisprudência, não se afeiçoa à nova realidade constitucional,
que reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar” (art. 226, par. 3º da Constituição).
Extremados os conceitos que constam dos acórdãos temos que a partilha
dos bens adquiridos pelo esforço comum entre concubinos tinha e ainda tem
como fundamento o princípio do enriquecimento ilícito ou sem causa.
Nas
hipóteses especiais, como ausência de aquisição patrimonial, sedimentou-se o
entendimento da indenização pelos serviços prestados ao companheiro de vida
em comum durante certo período.
Esses posicionamentos tangenciavam a tese da existência de obrigação
decorrente do dever legal de prestar alimentos até o advento da Lei 9.278/96.
ALIMENTOS ENTRE CONVIVENTES – ASPECTOS DA LEI 9.278/96
Até a vigência da Constituição Federal de 1988 o direito da concubina se
limitava, então, à meação dos bens da sociedade de fato.
O entendimento jurisprudencial se consolidou ser devida a indenização
por serviços prestados.
Simples concubinato não conferia à mulher o direito de pleitear alimentos
do amásio sendo verdadeira a recíproca.
Conforme elucidou o Des. Dínio Garcia, RJTJSP 120/450200 “o
concubinato não tem a virtude de criar, entre as pessoas por ele ligadas,
nenhum dos deveres específicos da relação familiar. Não há, entre os estados
de família, um estado de concubinato” :
Daí a orientação jurisprudencial consolidada em vários Tribunais do País,
no sentido de que as pretensões resultantes da relação concubinária ou
sociedade de fato devem ser dirimidas pelo juízo comum (Vara Cível) e
200 CAHALI, Yussef Said. BH. Livraria Del Rey editora. 3ª ed. organizada por Sálvio de Figueiredo Teixeira p. 320.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
136
não pelos juizes das Varas de Família; assim, Tribunal de Justiça de São
Paulo, Distrito Federal, de Santa Catarina e do Paraná.
Ressalva-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, após
decisões em sentidos diversos, consolidou a Súmula 14 em Câmaras
Cíveis Reunidas”.201
Com a vigência da Lei 8.971/94 a companheira passou a ter direito aos
alimentos tornando-se uma obrigação civil (debitum mais obligatio).
Conforme Luiz Edson Fachin “a obrigação alimentar tem como
pressuposto a existência de um determinado vínculo. Nos alimentos de natureza
parental sugere a fixação a expressão jurídica do parentesco [...] outras espécies
de obrigação alimentar pressupõe o vínculo decorrente da vontade, do
testamento, do contrato, da lei ou da existência da união estável. Nesta última, a
lei também vincula, nesta união, os companheiros para o efeito de prestação de
alimentos”. 202
De fato, a obrigação alimentar entre conviventes, disciplinada a partir da
Lei 8.971/94 insere-se entre as causas jurídicas dos alimentos legítimos.
Expõe Cláudia Grieco T. Pessoa que “na relação concubinária, os
alimentos revestem-se das mesmas características gerais da obrigação
alimentar de direito privado, a saber: a condicionabilidade e variabilidade, a
reciprocidade, a intransmissibilidade, a irrenunciabilidade e a incompensabilidade, a incedibilidade, a impenhorabilidade, a irretroatividade, a irrepetibilidade,
a reciprocidade, a alterabilidade da prestação, a peridiocidade e a divisibilidade.
A obrigação alimentar caracteriza-se ainda pela natureza personalíssima, por
conferir ação de terceiro que tenha ministrado os alimentos, pelo caráter não
transacional, pela aplicação imediata da lei no tempo, por se tratar a pensão
alimentícia de dívida de valor, pela ausência da solidariedade e pela pluralidade
de credores ou concurso de obrigações alimentares”. 203
201 Idem
202 FACHIN, Luiz Edson. ob. cit. p. 282/283
203 PESSOA, Cláudia Grieco T. ob. cit. p. 74/75
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
137
Como se percebe, o direito aos alimentos entre os conviventes ou na
união estável inovou o sistema visto que antes somente os parentes ex vi legis
eram obrigados. Em face do dever de assistência os cônjuges podiam
reciprocamente exigir alimentos.
O ponto de partida para a interpretação da lei que instituiu alimentos
entre conviventes diz respeito à identificação das pessoas autorizadas à
postulação, sendo elas: mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou
viúva que tenham convivido há mais de cinco anos ou dele tenham prole. Igual
direito está assegurado ao homem.
As pessoas legitimadas à postulação dos alimentos são, portanto,
aquelas livres para contrair matrimônio. Mas não é só o requisito do
desimpedimento para contrair núpcias que as legitima à postulação dos
alimentos. Com efeito, o art. 1º da lei que instituiu os alimentos entre conviventes
inicia com a expressão “A companheira comprovada [...]” dando a entender que
será carecedor de ação aquela (e) que não tiver prova pré-constituída da união.
Luís Alberto Awrvalle, em trabalho sobre a regulamentação infra
constitucional dos alimentos na união estável, refere-se à Lei 8.971/94, com
ressalvas: “Tal lei, ao contrário, malgrado seu curto espaço de vigência, já
demonstrou indelével vocação para polêmica.”
Deveras, não basta existência da união extramatrimonial por si só para
justificar o pedido de alimentos. É mister a comprovação da união que haverá
de ser de tal modo consistente que o juiz não titubeie na concessão quer com
caráter de definitividade ou até mesmo provisoriamente. A exigida comprovação
deverá compreender o lapso temporal superior a cinco anos, exceto se houver
prole, hipótese em que a estabilidade da união poderá ser comprovada por
tempo menor que cinco anos.
Os pontos que, por certo, gerarão polêmica orbitarão sobre a
interpretação da expressão companheira comprovada, ou seja, se somente
aquelas pessoas com provas pré-constituídas é que poderão postular alimentos
para si ou se poderão provar a união através de testemunhas nos autos da ação
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
138
de alimentos oportunidade que estariam buscando a obtenção da declaração da
união estável e, por conseguinte, condição sine qua non para o deferimento dos
alimentos.
Na opinião de Luiz Edson Fachin tal comprovação pode ser requerida”204,
sendo esse também o nosso entendimento.
Ocorre que o art. 2º da Lei 5.478 de 25 de julho de 1968 dispõe:
“O credor, pessoalmente, ou por intermédio de advogado, dirigir-se-á ao
juiz competente, qualificando-se, e exporá suas necessidades, provando,
apenas, o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor, indicando
seu nome e sobrenome, residência ou local de trabalho, profissão e
naturalidade, quanto ganha aproximadamente ou os recursos de que
dispõe.”
Em nota a esse artigo no Código de Processo Civil e Legislação
Processual em vigor anota Theotônio Negrão que: “Do modo como está redigida
a lei, a prova deve ser feita initio litis o que justifica a conclusão de que o rito da
Lei 5.478/68 não é adequado para as ações em que a prova da obrigação
alimentar não foi feita liminarmente.”
O ajuizamento da ação de alimentos acompanhado da prova préconstituída da união estável implicaria na fixação dos alimentos provisórios, se
requeridos, e deles o postulante expressamente declare a necessidade.
A ausência da prova pré-constituída, no entanto, não poderá ensejar o
indeferimento liminar da inicial isso porque a designação da audiência de
conciliação é fase processual que não poderá ser suprimida em razão da
relevância de que se reveste esse ato. Primeiro porque é o momento oportuno
para a tentativa da conciliação em presença do juiz. Segundo porque é nessa
audiência, se frustrada a conciliação, que o réu deverá apresentar sua defesa
instaurando-se a fase probatória com possibilidades de se obter até mesmo a
confissão provocada acerca da união.
204 ob. cit. p. 79
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
139
Negados os fatos sobre a caracterização da união estável e não provada,
normalmente através de testemunhas, é claro que ao juiz não restaria outra
solução a não ser julgar improcedente
o pedido dos alimentos postulados.
Resulta com clareza, portanto, a necessidade da produção da prova
testemunhal.
Sucede que a postulação de alimentos na união estável difere da que
ocorre no casamento e na filiação. Nestes a prova da filiação como do
casamento são indispensáveis porquanto são pré-constituídas razão pela qual a
lei de alimentos os exige, sob pena de indeferimento, que acompanhe a inicial.
São, enfim, os títulos que provam o dever contra quem se pedem os alimentos
provisórios e definitivos e é com base neles que o juiz fixa os provisionais.
Situação diferente vivem, obviamente, as pessoas na união estável pois
nem sempre possuem prova alguma pré-constituída. Aliás, são raras as uniões
cujas provas documentais convencem o juiz da estabilidade. Tenha-se em conta
que o art. 1o da Lei 8.971/94 exige prova do lapso temporal superior a cinco ou
da existência de prole hipótese em que o prazo poderá ser menor do que um
quinqüênio conforme observa RODRIGO DA CUNHA PEREIRA205 opinião com
a qual concordamos plenamente.
Em razão dessas breves incursões acerca do tema concernentes à
ciência processual civil é que defendemos a desnecessidade da apresentação
da prova pré-constituída sobre as uniões estáveis.
A expressão companheira comprovada significa, portanto, companheira
de uma união estável possível de ser convertida em casamento.
O PROBLEMA DO QUANTUM DEBEATUR
Referimos que o direito a alimentos entre concubinos não existia em
nosso direito. Eram devidos em face da existência de vínculo de parentesco (jus
205 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. ob. cit. p. 113
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
140
sangüinis) e em face do dever de assistência mútua decorrente do vínculo
matrimonial. Outra hipótese é a que decorre do ato ilícito como também da
obrigação contratual.
Havia e ainda subsiste a possibilidade da concubina pleitear a meação
dos bens adquiridos pelo esforço comum cujo fundamento está na Súmula 380
do Supremo Tribunal Federal.
A partilha do patrimônio decorre da aquisição do esforço não importando
a qualidade do concubinato. Os alimentos têm outra natureza jurídica e são
limitados às pessoas designadas na lei.
Somente com a vigência da Lei 8.971 de 29 de dezembro de 1994 é que
os conviventes puderam reclamá-los judicialmente.
Questão que atormenta é a que diz respeito a fixação da quantia
necessária para a satisfação das necessidades do alimentando que pode
compreender dinheiro em espécie. “A palavra tem conotação muito mais ampla
do que na linguagem vulgar, em que significa o necessário para o sustento. Aqui
se trata não só do sustento, como também do vestuário, habitação, assistência
médica em caso de doença, enfim de todo o necessário para atender às
necessidades da vida e, em se tratando de criança, abrange o que for preciso
para sua instrução”.206
A natureza jurídica do instituto dos alimentos, portanto, tem caráter
assistencial.207
Assim como nos alimentos decorrentes do parentesco ou da sociedade
conjugal a fixação da quantia em favor de quem os postula tem igual interesse
entre os conviventes.
Bem observa Eduardo de Oliveira Leite que “o encargo previsto na lei não
equivale a uma participação nas riquezas e nos rendimentos do obrigado,
especialmente se a modificação da condição econômica surgiu após a
separação, sem que o alimentando tivesse contribuído para a nova realidade. A
206 RODRIGUES, Silvio. Ob. cit. p. 384
207 Idem. p. 385
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
141
sustentação desse argumento só pode induzir ao parasitismo, à ergofobia do
credor, quando os alimentos - já afirmara Clóvis Beviláqua – foram instituídos
para auxiliar quem dele necessita”. 208
O ponto de partida para a fixação dos alimentos para os conviventes,
obviamente, não poderá transbordar essa orientação. Assim, deve-se ter em
mira que os alimentos devem ser concedidos para acudir necessidades.
“Se a necessidade é a regra, o princípio e o fim dos alimentos, é
igualmente errôneo, como se inferiu em matéria jurisprudencial, que o
montante pode ser fixado até 33% dos ganhos efetivos do devedor
porque este “quantum”, sob hipótese alguma está a definir os recursos da
pessoa obrigada, mas, contrariamente ao que dispõe o texto legal, está
apenas considerando – e de forma unilateral – uma provável necessidade
do reclamante”. 209
Na fixação dos alimentos para os conviventes os juizes levarão em conta
tudo quanto já foi dito acerca dos alimentos para os cônjuges. Não que se esteja
propondo qualquer equiparação com o instituto do casamento mas, sim, que
sirvam tais elementos de subsídios para as decisões.
Não há, com efeito, parâmetros fixos e tampouco decisões que sirvam às
múltiplas situações que desaguarão sobretudo na justiça de primeiro grau.
Nesse mister os advogados têm a obrigação especial de peticionar de
acordo com a realidade mais próxima possível ao fim de afastar expectativas
sabidamente nascidas sob o signo da improcedência conforme observa Eduardo
de Oliveira Leite
210
quando refere “que quase sempre os pedidos de alimentos
são exagerados e não correspondem às reais necessidades do alimentando, o
que leva os juizes a deferir valores situados em patamares bastante inferiores
àqueles originariamente requeridos. Os advogados temendo a fixação de um
“quantum” aquém da expectativa dos clientes, lançam valores totalmente irreais
208 RT 771. Jan/2000 p. 39
209 Idem p. 39
210 Ibidem. p. 40
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
142
para, finalmente, atingir uma “aproximação” à realidade invocada no art. 400. Um
verdadeiro círculo vicioso (e injusto) se estabelece: os pedidos são irreais
(porque ausentes de um parâmetro real) e os deferimentos igualmente irreais
(porque estabelecidos com base em premissas falsas).
Deveras, os alimentos não têm caráter ressarcitório ou indenizatório
tampouco.
Os casos práticos conduzidos pelos advogados bem revelam que após a
ruptura de uma dada união estável aflora o desejo de revanche daí manusear-se
ação de alimentos para a satisfação pessoal. Deve-se, então, conter o ímpeto
para se adequar os fatos à realidade.
“Sob qualquer ângulo que examinemos a doutrina, a noção de
necessidade está sempre presente. Ou, como bem apreciou Yussef Said
Cahali, “embora sendo o crédito alimentar ligado à pessoa do
beneficiário, as regras que o governam são, como direitos inerentes à
personalidade, normas de ordem pública...”(Dos alimentos, p. 20-21). Os
alimentos têm um sentido assistencial e não indenizatório (...) o dever de
pensionar o outro (só se impõe) se esta necessitar da pensão”(Silvio
Rodrigues, O divórcio e a lei que o regulamenta, p. 153); ou, ainda, a
finalidade dos alimentos é assegurar o direito à vida.” (Arnoldo Wald,
Curso de direito civil brasileiro – Direito de família, 11, ed., 1998. P.
45)”.211
Assim, pedir muito a quem tem pouco se nos afigura providência
inconseqüente pois apenas gera expectativa sem resultado prático algum.
Na realidade, continua Eduardo de Oliveira Leite
212
, é dentro do binômio
necessidade x rendimentos que se resolve toda a questão do montante dos
alimentos, hoje, face ao princípio constitucional da igualdade de direitos e
obrigações entre marido e mulher (“Art. 226, par. 5º : Os direitos e deveres
referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela
211 Ob. cit. 41
212 Idem. ibidem
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
143
mulher”), referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem
e pela mulher”), tendente à colaboração mútua dos cônjuges para a mantença
da prole do casal, não podendo o dever de alimentar conduzir ao sacrifício de
apenas uma das partes [...] E quando se fala em necessidade estamos nos
referindo ao orçamento de uma família que, naturalmente, não é somente uma
balança entre recursos e despesas, mas, e sobretudo, é o reflexo de uma
maneira de viver, própria a cada sistema familiar, vinculada a sua história, a sua
flexibilidade e a sua rigidez.”
Na sempre respeitada opinião de Clóvis Beviláqua “o preceito encerra um
dos principais fundamentos da teoria dos alimento: “Os dois cânones
fundamentais da teoria dos alimentos são os que o Código exprime neste artigo
e no seguinte”.213 Refere-se o autor ao artigo 399 do Código Civil : “São devidos
os alimentos, quando o parente, que os pretende, não tem bens, nem pode
prover, pelo seu trabalho, a própria mantença, e o de quem se reclamam, pode
fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento”.
Em trecho transcrito por Cláudia Grieco T. Pessoa é clara a lição de
João Baptista Vilela no sentido de que “é de cabedal pertinência salientar que a
prova da condição de companheiro – ou seja, a prova da existência da união
estável – constitui mero requisito de admissibilidade da ação, devendo a ele ser
agregado, no exame de fundo – como, aliás, necessariamente ocorre em
qualquer demanda alimentícia – a prova da necessidade do alimentando e da
possibilidade material do alimentante, conforme a regra inserta no Código Civil
para os alimentos decorrentes do parentesco (art.400), mas que serve de
paradigma para as demais hipóteses do pleito alimentar”.214
Por certo a regra inserta no art. 400 do Código Civil será paradigma que
norteará as decisões judiciais.
Referindo à proporção, escreve Yussef S. Cahali “que tal como os
pressupostos da necessidade e da possibilidade a da proporção é maleável e
213 BEVILÁQUA, Clóvis. Apud PESSOA, Cláudia, Grieco Tabosa. Ob. cit. p. 105
214 PESSOA, Cláudia G. T. ob. cit. p. 106
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
144
circunstancial, esquivando-se o código, acertadamente, em restabelecer-lhe os
respectivos percentuais, pois a final se resolve em juízo de fato ou valorativo, o
julgado que fixa a pensão [...] Assim, na determinação do quantum , há de se ter
em conta as condições sociais da pessoa que tem direito aos alimentos, a sua
idade, saúde e outras circunstâncias particulares de tempo e de lugar, que
influem na própria medida; tratando-se de descendente, as aptitudes,
preparação e escolha de uma profissão; com relação à mulher repercute
também a posição social do marido, o padrão de vida da sociedade conjugal que
se desconstituiu [...] Em realidade, ele (o cônjuge) tem direito, não apenas à sua
mantença, ao que foi estritamente indispensável ao seu sustento – ao chamado
'mínimo vital'- mas à prestação que garanta o seu status social e jurídico de
cônjuge. Tem direito, numa palavra, a manter o mesmo padrão de vida que o
outro cônjuge”.215
Conclui o ilustre jurista que “mais acertado, porém, entender-se que “o
critério jurisprudencial fixando o débito por alimentos em 1/3 dos rendimentos do
alimentante não é de obediência dogmática, podendo variar de acordo com as
circunstâncias;” pois “não há regra para o arbitramento da pensão alimentícia,
tudo dependendo dos fatos objetivos que se apresentam ao exame do julgador”.
Conforme Eduardo de Oliveira Leite “é gritantemente iníqua a atribuição
de tal valor – calcado no raciocínio do 1/3 dos proventos do devedor – porque
fica desmentida pela realidade”.216
As observações feitas pelo ilustre jurista paranaense embora referentes
ao cônjuge servem para a fixação dos alimentos entre conviventes.
Refere que “a vida social ou lazer”, como é comum ser invocado o item
nas pensões alimentícias deve ser considerado igualmente com base no padrão
de vida da comunidade familiar das disponibilidades financeiras do devedor e do
casuísmo próprio a cada situação.
215 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. cit. p. 480.
216 LEITE, Eduardo de Oliveira. O quantum da pensão alimentícia. cit. p. 47.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
145
Assim, certamente, na determinação do que seja uma necessidade
mínima, ou melhor, do que faz parte das necessidades vitais de um ser humano,
deve-se levar em consideração, caso a caso, se o credor é uma pessoa ativa ou
inativa, se exerce ou não atividade profissional, se tem ou não centro de
interesse limitado (a uma cidade, ou determinada região) ou se, ao contrário, a
sua rede de relações sociais é extensa e envolve diversos seguimentos sociais e
profissionais”.217
Ressalta que a legislação alemã representa um modelo a ser estudado e
avaliado.
O direito à mantença dos alimentos, após o divórcio, se encontra
regulamentado nos §§ 1569 e 1586 do BGB (CC alemão) , ou seja, um conjunto
de 17 artigos regulamenta as diversas hipóteses de incidência e inocorrência da
obrigação alimentícia, mas sempre reafirmando os pressupostos fundamentais
da pensão alimentícia, a saber, o da efetiva necessidade do credor e a
impossibilidade de prover a sua subsistência através da capacidade de trabalho.
A idade, a formação, a saúde e as aptidões do credor são critérios de
apreciação que devem ser considerados na análise de cada caso levado ao
judiciário.
Assim, na Alemanha, como nos informa Holzhauer (“Le divorce et ses
conséquences”. Mariage et Famille em question – alemagne, p. 132-137), a
existência de uma pensão supõe que um dos cônjuges não tenha condições de
exercer uma atividade profissional quer por motivos decorrentes da educação de
uma criança ( § 1.570, quer por motivo de idade (§ 1571) quer por razões de
doença (§ 1572).
Paralelamente a estes casos, a legislação alemã prevê no § 1.573, I, a
hipótese da impossibilidade de exercer uma atividade pelo fato de o ex-cônjuge
(credor) não encontrar trabalho, o que lhe garantiria o direito de pretender uma
pensão alimentícia.
217 Idem. p. 47
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
146
O § 1.574 do BGB enumera como critérios de apreciação: a formação, as
aptidões, a idade e o estado de saúde. Da mesma forma, representa um papel
considerável “as condições de vida do casal” examinadas em função da duração
da união.
Mesmo a reinserção do cônjuge no mercado de trabalho é levada em
consideração pela lei alemã. Assim, uma formação, uma reciclagem ou mesmo
uma alteração de trabalho são levadas em consideração e devidamente
avaliadas no montante da pensão alimentícia “na medida em que elas são
indispensáveis ao exercício, por este cônjuge de uma atividade profissional
apropriada.” (cf. § 1.578, al. 2).
O objetivo da lei alemã é claro: a responsabilidade destas despesas deve
ser inserida no montante da pensão alimentícia de maneira a garantir uma
atividade profissional que assegure, posteriormente, a manutenção do cônjuge
separado, colocando fim aos débitos infinitos de alimentos, tão comuns no
Direito brasileiro e, sob todos os aspectos criticáveis, já que só tendem a
fomentar a ociosidade e um injustificável parasitismo.
O exemplo alemão vem imantado de significação porque não se
preocupa só com o atender das necessidades presentes, mas visualiza, em
manifesta tendência de acendrada justiça, a autonomia de ambos os cônjuges.
Credor e devedor, embora inicialmente, vinculado à obrigação alimentar,
tendem, a curto, ou médio prazo, a soluções definitivas, geradoras da
independência e autonomia fundamentais à dignidade humana. Igualmente
válidas, porque, liberando o devedor da obrigação de pagar e o credor da
obrigação de pedir, garante-lhes o retorno à normalidade da existência sem
permanecerem atrelados a créditos e débitos. 218
218 LEITE, Eduardo de Oliveira. . cit. p.48-49
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
147
De sorte que, guardadas as proporções econômico-sociais de cada país,
as lições transcritas servem como lineamentos, entre nós, para a fixação da
pensão entre conviventes sem necessidade alguma de se mexer na legislação
existente.
Deve ser levado em consideração, todavia, que o convivente deverá ter
direito não apenas aos alimentos necessários para a sua subsistência (mínimo
vital) mas à prestação que proporcione status social sem, contudo, lhe incentivar
a ociosidade.
Se na Alemanha a dação de alimentos pressupõe que um dos cônjuges
não tenha condições de exercer atividade profissional quer por motivos
decorrentes da educação infantil (§ 1.570) quer por motivo de idade (§ 1.571),
quer por motivos de doença (§ 1.572) com muito mais razão esses critérios
podem ser fixados em relação ao conviventes. Nos anima defender a tese de
que os alimentos entre conviventes devem ser concedidos temporariamente.
É certo que o art. 1O da Lei 8.971/94 expressa que os alimentos devem
ser concedidos enquanto o alimentário não constituir nova união mas, conforme
leciona Yussef S. Cahali: “A decisão ou estipulação de alimentos traz ínsita a
cláusula rebus sic stantibus. O respectivo quantum tem como pressuposto a
permanência
das
condições
de
possibilidade
e
necessidade
que
o
219
determinam".
Também se proclama que a sentença de alimentos não se sujeita ao
trânsito em julgado material; o efeito preclusivo máximo opera apenas
formalmente, de modo a deixar sempre aberta a eventualidade de modificação
do preceito.
PAULO MAIA CARNEIRO
220
referindo ao artigo 401 do Código Civil
brasileiro expressa que esse dispositivo está a demonstrar que o legislador,
“sensível à realidade das mutações econômicas, para preservar a natureza da
prestação alimentar, chegou àquela solução lógica de revisão. Jamais poderia
219 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. Cit. p. 567
220 CARNEIRO, Paulo Maia. Apud CAHALI, Yussef S. Dos alimentos p. 568
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
148
ele ter olvidado que, sendo a obrigação alimentar, fundamentalmente, a de
prestação de alimentos e não de, apenas, da quantia certa, sua alterabilidade
repousa em questão de fato; essa circunstância também não importaria em
afrontar os pressupostos que determinariam a fixação.
É que as necessidades, quantitativamente, continuariam sendo as
mesmas. Mas quantitativamente, a pensão alimentar viria a tornar-se
incompatível com a mudança superveniente na fortuna de quem os recebe.
Trata-se pois de reajustamento à realidade, acomodando à cláusula rebus sic
stantibus, e não de modificação ao sentido da obrigação.
EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, ao tratar do quantum da pensão
alimentícia lembra que “o montante da pensão alimentícia quase sempre não
corresponde à realidade das necessidades invocadas em juízo, ou a
inadimplência alimentar acompanha o período pós-decisão, ou as revisões
maliciosas são invocadas como mero revanchismo de situações pessoais não
resolvidas”.221
Aponta que duas são as causas determinantes do quadro apontado: 1) “A
de caráter legal deve muito à indefinição do tão invocado art. 400 (“Os alimentos
devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos
da pessoa obrigada”). “que como é sabido nada define nem indica qualquer
parâmetro de fixação do “quantum” alimentícia, critica o autor. 2) A outra é de
ordem cultural, pois “estabelece-se no Brasil, a lamentável prática de ter de se
exigir sempre “a mais” do que realmente necessita o credor, porque o Judiciário
sempre fixa “a menos”.
A prática é altamente perniciosa porque, além de falsear com a verdade,
cria a estranha sensação de que o pedido não corresponde à realidade.
A indefinição do art. 400 do CC, afirma Yussef Said Cahali, é proposital e
“tal como os pressupostos da necessidade e da possibilidade, a regra da
proporção é maleável e circunstancial, esquivando-se o código, acertadamente,
221 LEITE, Eduardo de Oliveira. ob. cit. p. 39
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
149
em restabelecer-lhe os respectivos percentuais, pois a final se resolve em “juízo
de fato ou valorativo, o julgado que fixa a pensão”.222
Quanto aos fatores que devem ser considerados para a estimativa da
pensão, embora o CC (tal como no direito italiano) não tenha definido
expressamente em que consiste precisamente a obrigação legal de alimentos, é
certo que, pela natureza da mesma, esta tem por objeto “la prestazioni di tutto
quanto à necessario ai bisogni della vita, si in instato di salute che malattia. Vi si
comprendono quindi pricipalmente il vitto, il vestito, l’abitazione, i medicinali e le
spese di cura in caso d’intermità”.223
A Lei 8.971/94 expressamente refere à prova da necessidade estando
implícita a possibilidade de quem deve prestar alimentos.
JOÃO BATISTA VILLELA, citado por Cláudia Grieco T. Pessoa, sustenta
que os elementos concernentes à necessidade do alimentando e possibilidade
do alimentante são condições de fundo da prestação de alimentos, e acrescenta
que a inexistência dessa prova retiraria ao juiz o poder-dever de decretar de
prontos os alimentos provisórios. Diz ele: “É de cabedal pertinência salientar
que a prova da existência da união estável – constitui mero requisito de
admissibilidade da ação, devendo a ele ser agregado, no exame de fundo –
como, aliás, necessariamente ocorre em qualquer demanda alimentícia – a
prova da necessidade do alimentando e da possibilidade material do
alimentante, conforme a regra inserta no Código Civil para os alimentos
decorrentes do parentesco (art. 400), mas que serve de paradigma para as
demais hipóteses do pleito alimentar”.224
É de se concluir, portanto, que os alimentos entre conviventes além de
obedecer a fórmula do art. 400 do Código Civil Brasileiro – necessidade x
possibilidade – necessitam da prova inequívoca da existência da união estável.
222 CAHALI, Yussef S. Dos alimentos. p. 480
223 Idem. p. 484
224 ob. cit. p. 106
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
150
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo IX.
Rio de Janeiro: Borsoi, 1976.
CAHALI, Yussef S. Dos alimentos. São Paulo : RT, 1998.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito de Família,
21ª ed. São Paulo : Saraiva, 1983.
OLIVEIRA, Basilio de. O concubinato e a Constituição atual, 3ª ed. Rio de
Janeiro [...].
FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos de Direito de Família. Rio de Janeiro :
Renovar, 2000.
RODRIGUES, Silvio. Direito de Família. São Paulo : Saraiva, 1985.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
151
O DANO MORAL E A JUSTIÇA DO TRABALHO – ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
ALCÍDIO SOARES JÚNIOR
Advogado no Paraná. Professor Assistente na Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
RESUMO: O texto cuida do dano moral no Direito do Trabalho como um tema de
recente construção legal, doutrinária e jurisprudencial, que recebeu impulso inicial com a
vigência da Constituição Federal (artigo 5º, V e X). O autor aborda pontos polêmicos
como o conceito de dano moral e suas hipóteses no Direito do Trabalho, os critérios que
devem nortear a fixação da reparação, sustentando a competência da Justiça Trabalhista
para processar e julgar dissídios envolvendo ofensas a direitos de personalidade do
empregado, causadoras de danos morais.
ABSTRACT: The text is concerned with the pain and suffering in the Labor Law as a
theme of recent legal, doctrinal and jurisprudencial construction, which received initial
impulse with the validity of the Federal Constitution (article 5, V and X). The author
approaches controversial questions as the concept of pain and suffering and its
hypotheses in the Labor Law, the criteria that should guide the redress settlement,
supporting the jurisdiction power of Labor Courts to sue and judge labor disputes
involving offenses to the rights of the employee’s personality, which cause pain and
suffering.
UMA VISÃO ATUAL
O tema dos direitos da personalidade constitui na modernidade um dos
mais relevantes e interessantes, na medida em que prima essencialmente pelo
que o homem tem de mais sagrado, como a dignidade, a honra, a integridade
psíquica, a imagem, o nome, a privacidade, entre outros.
Os valores ora mencionados são considerados, a rigor, como
inestimáveis, uma vez que levam em consideração aspectos intrínsecos de cada
pessoa e, portanto, um determinado grau de subjetivismo que é inerente a cada
ser humano, de modo que cada um vê e sente de forma toda peculiar.
O dano moral resultante de ato ilícito que venha ferir a honra, as crenças
políticas e religiosas, o bom nome, a liberdade e que origine sofrimento psíquico,
deverá ser reparado.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
152
A importância do dano moral tem crescido significativamente e tende a
aumentar ainda mais, na medida em que se desenvolva maior consciência sobre
a questão em si.
O homem, na proporção em que evolui e passa a ter uma compreensão
maior e melhor sobre cada um dos valores ora tratados, também dando aos
mesmos maior significado e importância.
Pode-se constatar também uma crescente preocupação por parte dos
juristas, doutrinadores e estudiosos do assunto ao se considerar a grande
atenção voltada para todas essas questões.
Nesse contexto destaque-se a relevância dos direitos da personalidade,
bem como, dos demais direitos e que quando feridos ou lesados, com mais forte
razão devem ser igualmente reparados.
Observe-se, no entanto, que durante muito tempo a indenização por
danos morais, mesmo no Direito Comum foi alvo de intensa e considerável
polêmica, insistindo até alguns juristas ao extremo de negar a tese da
reparabilidade do dano moral.
Por certo, as razões são várias. Entendem alguns doutrinadores que
é imoral a compensação da dor com o pagamento em dinheiro, além do que
um aumento patrimonial constituiria um enriquecimento sem causa.
Com relação ao direito do trabalho, nem se aludia a tal questão, uma vez
que não se considerava como sendo a indenização por dano moral matéria
trabalhista.
Na atualidade, a partir da evolução de determinadas interpretações
mais conservadoras, a questão resta pacificada, por assim dizer, não só
no plano jurisprudencial, mas especialmente no plano doutrinário.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
153
O AMBIENTE DO DIREITO DO TRABALHO
Com o advento da Constituição Federal de 1988, boa parte das
dúvidas
foram
dirimidas, o
que
se constata a partir de alguns de seus
dispositivos.
Artigo 5º :
Inciso V: “ é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo,
além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.
Inciso X: “ são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”.
Também o
artigo 114, da
Constituição
Federal no
seu
texto
menciona que é da competência da Justiça do Trabalho conciliar e julgar
os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores,
[...] e , na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de
trabalho.
Tem-se então que a partir de uma adequada e racional interpretação dos
dispositivos constitucionais, pode-se concluir necessariamente como sendo da
Justiça do Trabalho a competência para julgar as questões envolvendo o dano
moral oriundo da relação de emprego. 225
Não se olvide sobre fato indiscutível de que o dano moral sempre ocorreu
não só em ambiente de Direito Civil mas também em ambiente de Direito do
Trabalho.
Por ambiente de direito do trabalho deve-se entender também o dano
moral que decorre de um contrato de trabalho.
Para Orlando Teixeira da COSTA se o pedido decorrer ou tiver como
origem um contrato de trabalho a competência para julgar o caso será da Justiça
do Trabalho.226
225 FLORINDO, Valdir. A Justiça do Trabalho e o dano moral decorrente da relação de emprego, p. 319.
226 COSTA, Orlando Teixeira da. Da ação trabalhista sobre dano moral, p. 487.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
154
No entanto, no que diz respeito ao Direito do Trabalho foi a partir da
Constituição Federal de 1988, como já mencionado, é que o tema ganhou uma
maior relevância.
As relações de trabalho envolvendo empregado e empregador têm se
tornado cada vez mais complexas e esta complexização tem favorecido um
crescimento considerável de ocorrências ensejadoras do dano moral.
Observe-se que o dano moral no âmbito trabalhista tanto pode ocorrer
em relação ao empregador como ao empregado, podendo também ocorrer
antes, durante ou quando da terminação do contrato ou ainda até mesmo depois
de sua extinção.
CONCEITUAÇÃO DE DANO MORAL
Citem-se
alguns
conceitos
sobre
dano
moral
visando
melhor
circunscrever não só o seu objeto mas também seus possíveis limites.
É encontradiço na doutrina especializada como sendo dano moral a lesão
a atributos valorativos ou virtudes como a reputação, a honra da pessoa como
ser social e integrado à sociedade.
Dano moral é o que sofre alguém em seus sentimentos, em sua honra,
na sua consideração social ou laboral, em decorrência de ato danoso, ou ainda,
aquele que incide sobre bens de ordem não material.
Geralmente considera-se dano moral a tristeza, a mágoa, o sofrimento e
a dor física e emocional, que se desdobram em conseqüências danosas.
De modo que, a lesão danosa à moral é o que se sofre como
repercussão de uma ofensa injusta, originada por um ato ilícito.
Por outro lado, quando houver prejuízo que repercuta no patrimônio
material do lesado, acarretado pelo mesmo ato ilícito, têm-se dano material e
não moral.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
155
DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
Como já mencionado anteriormente, o tema do dano moral em ambiente
das relações de trabalho, vinha obtendo pouca atenção por parte da doutrina
brasileira, situação também semelhante vinha ocorrendo com a jurisprudência
que evoluía timidamente.
Não obstante, pode-se constatar que a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) já trazia dispositivos 227 prevendo, de certa forma, a possibilidade
de reparação do dano moral, mas que, por razões não explicadas
adequadamente, não foram utilizados na sua plenitude.
A caracterização da prevalência depende do contexto em que foi
praticado o ato ou do fato gerador da obrigação desta decorrente.
O dano moral em ambiente de direito do trabalho concerne basicamente
a sua origem, ou seja, as delimitações são estabelecidas tendo em vista um
contrato de trabalho.
A questão do dano moral em ambiente do direito do trabalho, em linhas
gerais, deve ser concebido nos mesmos moldes em que é concebido no direito
comum, ou seja, contemplando o princípio básico e inarredável de que todo
dano, também o moral, deve ser reparado.
Ademais, o artigo 8º da CLT, no seu parágrafo único, prevê que o direito
comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for
incompatível com os princípios contidos na Consolidação.
HIPÓTESES DE DANO MORAL NO DIREITO DO TRABALHO
Possivelmente são múltiplas e amplas as abordagens contempladoras do
dano moral em ambiente das relações de trabalho, no entanto, a doutrina vem
apresentando relação contendo situações fáticas ensejadoras de indenização.
227 Artigo 482, alíneas “j” e “k” e artigo 483, alínea “e”.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
156
Evidentemente tal relação é meramente exemplificativa, podendo por
certo, o dano moral ocorrer nas mais variadas situações.
Por exemplo, enseja a reparação por dano moral, o fato do empregado
proferir acusações infundadas contra o empregador, provocando menoscabo e
depreciação ao seu bom nome.
No caso de empregador que acessa informações inverídicas e
desabonadoras de seu ex-empregado a um possível novo empregador, também
poderá caracterizar indenização por danos morais.
Citem-se ainda outras hipóteses que podem ocorrer em ambiente do
direito do trabalho :
a) A acusação infundada na esfera criminal de ato de improbidade tanto
por parte do empregador como do empregado;
b) Comunicar o empregador, em órgão da imprensa, possível abandono
de emprego, não obstante ter o empregador ciência do endereço do
empregado;
c) Importunação sexual para fins libidinosos mediante perseguições ou
face à propostas de promoção.
Constata-se então que as possibilidades são inúmeras e será mesmo
através da caracterização da situação fatual que se determinará o cabimento ou
não da indenização.
Nem poderia ser de outra forma. O fato é que a indenização sempre
pressupõe um dano efetivo.
Tanto que, para Cláudio Armando Couce de MENEZES, um simples
melindre de um espírito mais delicado não importará necessariamente em uma
indenização por dano moral.228
228 MENEZES, Cláudio Armando Couce de. A responsabilidade civil no direito material e processual do trabalho, p. 15.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
157
AS DIFICULDADES PARA FIXAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO
A Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso X, assegura o direito a
indenização pelo dano material ou moral.
No entanto, a questão da indenização guarda enorme complexidade de
deslinde, veja-se a dificuldade de indenizar em dinheiro algo que é
economicamente inapreciável ou ainda considerado por alguns juristas como
imoral se vinculado a valores patrimoniais?
A fixação da indenização por dano moral é difícil e complexa.
Independente disto, a Constituição determina que haja uma indenização,
a exemplo de como acontece no direito comparado, quando do oferecimento ao
lesado de uma compensação econômica ou um pretium doloris.
São pelos menos dois os sistemas apresentados pela doutrina: o sistema
tarifário e o sistema aberto.229
Pelo sistema tarifário há uma pré determinação do valor da indenização.
O juízo apenas o aplica em cada caso concreto, limitando-se ao valor
estabelecido para cada situação. É o sistema utilizado nos Estados Unidos da
América do Norte.
De acordo com o sistema aberto atribui-se ao juiz a competência para
fixar o quantum, subjetivamente, que deverá corresponder à satisfação da lesão.
Este é o sistema adotado no Brasil.
Para fixar o valor deve o julgador restringir-se a alguns parâmetros
procedimentais, levando em consideração a extensão espiritual do dano, a
imagem do lesado e a do que causou a lesão, entre outros aspectos.
Também deve considerar a intenção do autor do ato danoso, como meio
de ponderar o mais objetivamente possível direitos ligados a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas.
229 COSTA, Orlando Teixeira da. Da ação trabalhista sobre dano moral, p. 488.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
158
Ressalte-se que a situação econômica de quem deve indenizar é um
aspecto
muito
importante
e
que deve
ser levado
em consideração,
principalmente diante da hipótese de ser o empregador quem deve indenizar.
Por outro lado é oportuno lembrar que nem todo empregado é
hipossuficiente, sendo que alguns executivos possuem um nível de renda e de
patrimônio bastante altos.
Entretanto, no que concerne aos critérios para fixar o valor da
indenização, efetivamente não há respostas precisas e inabaláveis.
CONCLUSÃO
A reparação do dano moral em ambiente do Direito do Trabalho além de
ser um tema emergente, por assim dizer, também o é de grande relevância.
A indenização por dano moral trabalhista é amplamente assegurada por
preceito constitucional, cabendo à Justiça do Trabalho a função de exercer
jurisdição, nos termos do artigo 114 da Constituição Federal de 1988.
Nas ações indenizatórias de perdas e danos, tendo em vista que a
controvérsia – objeto do ressarcimento pelo dano sofrido, é oriunda da relação
jurídica de direito material de natureza trabalhista a competência é da Justiça do
Trabalho.
Dessa forma podem ficar as partes no Direito do Trabalho, ou seja, o
trabalhador e o empregador, principalmente aquele, com mais este instrumento
que poderá ser utilizado, tendo em vista uma eventual reparação de dano moral.
Por ser um tema relativamente novo, as múltiplas e variadas situações
fáticas que podem ocorrer diariamente em ambiente de trabalho, por tudo isso
considera-se como sendo um tema em aberto, ou seja, as suas possibilidades
ainda não estão consolidadas.
Caberá precipuamente aos operadores do Direito do Trabalho, uma visão
mais firme, mais audaciosa e acima de tudo mais crítica na abordagem destas e
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
159
de outras questões relativas à indenização por dano moral na Justiça do
Trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Orlando Teixeira da. Da ação trabalhista sobre dano moral. In:
Revista Genesis, Curitiba, p 485-488, 1996.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 7ª ed. São Paulo:
Saraiva. 1990.
FLORINDO, Valdir. A Justiça do Trabalho e o dano moral decorrente da
relação de emprego. In: Revista Genesis, Curitiba, p. 319-323, 1995.
GIUSTINA Beatriz Della. A reparação do dano moral decorrente da relação
de emprego. Revista LTr, São Paulo, p. 1334-1336, 1995.
MENEZES, Cláudio Armando Couce de. A responsabilidade civil no direito
material e processual do trabalho. In: Revista de Direito do Trabalho, São
Paulo, p. 10-19, 1996.
NASCIMENTO,
Amauri
Mascaro.
Direito
do
Trabalho
na
Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991.
RUSSOMANO,
Mozart
Victor.
Curso
de
Direito
do
Trabalho.
VIANNA
Segadas.
Curitiba: Juruá Editora: 1995.
SUSSEKIND,
Arnaldo;
MARANHÃO,
Délio;
Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo, 11ª ed. São
Paulo: Ltr, 1991.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
160
DA RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO E DO
SERVIÇO E A RESPONSABILIDADE PELO VÍCIO DO
PRODUTO E DO SERVIÇO NO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
JOÃO FLÁVIO MADALOZO
Advogado no Paraná. Especialista em Direito Contemporâneo pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa. Mestrando em "Direitos Difusos e Coletivos" pela
Universidade Metropolitana de Santos-SP.
RESUMO: O artigo cuida da responsabilidade civil no Direito do Consumidor, iniciando
por uma leitura histórica da defesa do consumidor no Brasil, passando pela promulgação
da Constituição Federal e culminando com a edição do Código de Defesa do
Consumidor. O autor analisa tanto a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço
quanto a responsabilidade pelo vício do produto ou serviço, detalhando diversos
aspectos de relevância para a compreensão da matéria.
ABSTRACT: The article focuses on the civil liability in the Consumer Law, starting by a
historical reading of the defense of the consumer in Brazil, passing by the Federal
Constitution enactment and culminating with the publication of the Code of the Consumer
Defense. The author analyzes both the responsibility for the fact of the product or service
and the responsibility for the vice of the product or service, detailing different aspects of
relevance for the understanding of the subject.
BREVE HISTÓRICO DA DEFESA DO CONSUMIDOR NO BRASIL
A história da defesa do consumidor no Brasil está intimamente
relacionada com os aspectos econômicos, sociais e políticos do país.
Muito antes da criação de um instrumento legal que disciplinasse as
regras de consumo, houveram alguns movimentos populares relacionados ao
alto custo de vida, mas as décadas de 70 e 80 foram marcantes na evolução
histórica da defesa do consumidor.
Consumidores privados de eficazes instrumentos legais, desconhecendo
legislações pertinentes a assuntos diversos que os lesavam não dispunham de
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
161
muitas alternativas para sua autodefesa. Assim, na década de 70 apareceram as
primeiras entidades relacionadas especificamente a defesa do consumidor.
Apenas em 13 de maio de 1975, foi criada a primeira entidade civil
consumerista, a Associação de Proteção ao Consumidor, fundada em Porto
Alegre/RS e vinculada à maçonaria, visando atender a necessidade de apoio e
orientação à população.
Também em 1975 criou-se a ANDEC - Associação Nacional de Defesa
do Consumidor, a qual mantinha sede no Rio de Janeiro e Brasília.
A imprensa contribuiu fielmente para a divulgação de matérias sobre a
defesa do consumidor. Diversos jornais da época procuravam manter colunas de
canal aberto de comunicação para que a população apresentasse suas queixas.
Em 1976, criou-se o Sistema Estadual de Defesa do Consumidor do
Estado de São Paulo, cujos objetivos eram de coordenar e integrar as atividades
públicas de proteção e defesa do consumidor; zelar pelo cumprimento das leis;
apresentar
sugestões
ou
propostas
de
entidades
representativas
da
comunidade, informar e conscientizar os consumidores; realizar pesquisas de
preços; etc. Essa estrutura logo foi batizada de PROCON, tornando-se um órgão
de referência em todo o País.
Em novembro de 1979, criou-se a ADOC - Associação de Defesa do
Consumidor, em Curitiba/PR.
O movimento de formação de entidades de defesa do consumidor foi se
consolidando. Em 1979, existiam entidades em Florianópolis, Rio de Janeiro,
Brasília, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Londrina, Curitiba, Cuiabá e 14
entidades em São Paulo.
Devido a esse crescimento, possibilitou-se a realização do Primeiro
Encontro Nacional de Entidades de Defesa do Consumidor, o qual teve como
sede nossa Capital.
Apesar do crescimento das entidades de defesa do consumidor por todo
o país, o grande número de leis e normas não eram objetivas para lutar contra
os artifícios de marketing e técnicas agressivas de vendas, onde fabricantes e
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
162
fornecedores impunham suas regras. As normas existentes não eram
respeitadas, não eram fiscalizadas pelos órgãos competentes e eram de difícil
acesso aos consumidores por exigirem testes laboratoriais.
Na
década
de
80,
começou
a
visualizar-se
o
caminho
do
amadurecimento nas relações de consumo.
Em 24 de julho de 1985, foi criado o CNDC - Conselho Nacional de
Defesa do Consumidor, por iniciativa do Ministro Extraordinário para a
Desburocratização, Paulo Lustosa.
O Conselho tinha por finalidade assessorar o Presidente José Sarney na
formulação e condução da política nacional de defesa do consumidor, sendo
composto por Ministros de Estado, dirigentes de entidades públicas de defesa do
consumidor, dirigentes de entidades do setor privado de defesa do consumidor,
membros do Ministério Público, entre outros.
Após a extinção do Ministério da Desburocratização, em 1986, o órgão
passou a fazer parte do Ministério da Justiça.
Logo criou-se um confronto com outros Ministérios, tendo como principal
o Ministério da Agricultura, com
relação a uma portaria que autorizava
a
liberação de hormônios para engorda de gado. Após grandes discussões, o
Ministro da Agricultura revogou a portaria, obtendo assim, o CNDC uma grande
vitória.
Com a promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988,
os consumidores brasileiros tiveram seus direitos contemplados. Viu-se assim,
consolidado o movimento da defesa do consumidor no País.
O texto constitucional, em seus artigos 5º, inciso XXXII, artigo 170, inciso
V e artigo 48 das Disposições Transitórias, estabeleceu que o Estado
promoveria a defesa do consumidor e seria elaborado um código de defesa do
consumidor.
Começou então, a grande batalha para aprovação do anteprojeto do
Código de Defesa do Consumidor, onde muitos de seus dispositivos foram
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
163
debatidos e combatidos pelo empresariado nacional, chegando a abalar a
situação de tranqüilidade existentes entre os fornecedores.
Realizou-se então, o 1º Congresso Internacional de Direito do
Consumidor, em maio de 1989, na cidade de São Paulo. O referido Congresso
teve como tema principal a análise do projeto do nosso Código, contando com a
presença de estudiosos de diversos países como: Estados Unidos, Holanda,
Bélgica, Portugal, Espanha, entre outros.
O Código foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 26 de junho, pelo
Senado Federal em 09 de agosto e, assinado pelo Presidente Collor em 11 de
setembro de 1990, sob a Lei nº 8.078, publicado em 12 de setembro de 1990,
passando a vigorar em 11 de março de 1991. O Código reconheceu e detalhou
os direitos básicos do consumidor, criou normas específicas para a
responsabilidade civil dos fornecedores pelo fato do produto e do serviço,
inverteu o ônus da prova, dispôs sobre a publicidade, estabeleceu mecanismos
para controle e condições gerais dos contratos e dispôs sobre
a condição
repressiva administrativa e penal.
A Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor passaram a
representar uma poderosa força para a sociedade civil, dando-lhe oportunidade
do desempenho de um papel mais ativo nas relações de consumo, com uma
atuação mais firme do consumidor e de suas associações, sejam elas de ordem
pública ou privada.
Como vimos, o Código de Defesa do Consumidor surgiu diante da
premência da proteção do pólo mais fraco na relação de consumo, qual seja, o
consumidor. Até bem pouco, elemento estranho ao cenário jurídico, integrando
tão somente a seara delimitada da economia, emerge agora com força total,
motivando o mundo jurídico onde, em várias nações, bandeiras se levantam em
busca de sua tutela.
Esse diploma legal aparece em nosso ordenamento jurídico, sob a
influência dos países europeus e por parâmetros americanos, firmando-se entre
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
164
nós como verdadeiro microssistema , criando caminhos na procura de solução
dos problemas vivenciados pela nossa sociedade contemporânea.
Nesse microssistema surgido sob tais influências, temos regulada duas
espécies de responsabilidade civil: a responsabilidade pelo fato do produto ou do
serviço e a responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço
RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO E DO SERVIÇO
Fato do produto ou fato do serviço significa dano causado pelo produto
ou pelo serviço.
O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 12, cuida da
responsabilidade civil pelo fato do produto e, em seu artigo 14, pelo fato do
serviço.
FATO DO PRODUTO
Com relação a responsabilidade pelo fato do produto, os responsáveis
pelo dever de indenizar os danos causados ao consumidor, por produtos
portadores de defeitos são o fabricante, o construtor, o produtor e o importador.
Existe distinção entre o fabricante, construtor, produtor e importador:
- Fabricante
É aquele que, direta ou indiretamente, encontra-se no processo de
lançamento e desenvolvimento de produtos no mercado, seja o fabricante de
peças, o montador ou aquele que fabrica seu próprio produto;
- Construtor
É aquele que lança no mercado produtos imobiliários;
- Produtor
É aquele que coloca no mercado produtos não industrializados, como
produtos animais e vegetais;
- Importador
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
165
É aquele que traz para o nosso país produtos fabricados ou produzidos
em outro país.
O Código encarrega-se de conceituar o produto defeituoso, onde nos diz
que “o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele
legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias
relevantes...”. Os defeitos dos produtos a que se refere o artigo 12 também
encontram-se subdivididos em defeito de criação, defeito de produção e defeito
de informação.
- Defeito de Criação
É oriundo do projeto ou da fórmula;
- Defeito de Produção
Oriundo
da
fabricação,
construção,
montagem,
manipulação
e
acondicionamento;
- Defeito de Informação
Oriundo da publicidade, apresentação, informação insuficiente ou
inadequada. Aqui não se trata de um defeito da coisa em si, mas da errônea
informação sobre o uso adequado do produto.
O parágrafo primeiro do artigo 12 diz respeito ao grau de segurança que
deve apresentar todo o produto e, considera principalmente a sua apresentação,
o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam e a época em que foi
colocado em circulação.
I - Apresentação
O produtor deve levar a conhecimento do consumidor os elementos
característicos junto ao produto, seja com relação à suas qualidades, seja com
relação aos riscos que apresente;
II - Uso Razoável e Segurança Legitimamente Esperada
Aqui se considera relevante não apenas o uso correto e específico do
produto, mas também, o uso previsível e os riscos possíveis desde que integrem
de forma razoável e expectativa do consumidor. Como exemplo os legisladores
citam o caso da caneta e do lápis, aos quais deve ser considerada a
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
166
possibilidade do consumidor levá-los à boca, ainda que este não seja seu uso
correto. Assim sendo, estes objetos não podem ser revestidos ou elaborados
com pintura ou material tóxico;
III - Época da Circulação
Trata-se do risco de desenvolvimento. É aquele que não pode ser
cientificamente conhecido ao momento de lançamento do produto no mercado,
vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto. Isto
devido ao conhecimento científico disponível a época de sua introdução no
mercado.
Na Responsabilidade pelo Fato do Produto, o Código estabelece que um
produto novo e de melhor qualidade não transforma outros produtos já
anteriormente colocados no mercado em defeituosos: “O produto não é
considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado
no mercado”. (art.12, § 2º).
No parágrafo 3º, do artigo 12, o Código prevê a exclusão da
responsabilidade pelo fato do produto, quando o fabricante, o construtor, o
produtor ou o importador provar que: “I - não colocou o produto no mercado; II que, embora colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa
exclusiva do consumidor ou de terceiro”.
Aqui a legislação não afasta a hipótese do ônus da prova, cabendo este
ao responsável legal pelo produto colocado no mercado.
RESPONSABILIDADE DO COMERCIANTE
O Código de Defesa do Consumidor coloca o comerciante como
responsável quando: “1)houver dificuldades na identificação do fabricante,
produtor, construtor ou importador; 2)o produto for fornecido sem identificação;
3)quando o comerciante não conservar adequadamente os produtos perecíveis.”
(art.13).
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
167
Trata o artigo como responsável o comerciante, independente de sua
culpa, pelos danos causados por defeitos em produto, que este venha a
revender sem sua identificação clara ou mesmo no caso de não haver como
identificar o seu responsável legal.
Também dispõe sobre a falta de cuidados, pelo comerciante, ao
acondicionar produtos perecíveis (alimentos, etc.), deixando ao mesmo a
responsabilidade independentemente de culpa.
Já o artigo 13, parágrafo único, diz respeito à possibilidade do
comerciante não ser exclusivamente responsável pelo dano causado ao
consumidor, dispondo que para aquele que indenizar a vítima pelo prejuízo
causado, cabe o direito de regresso contra os demais responsáveis.
Portanto, aquele que paga pode exigir dos demais responsáveis o valor
que pagou além do que realmente devia.
FATO DO SERVIÇO
Disposto no artigo 14 do CDC, o fato do serviço refere-se ao dano
ocasionado ao consumidor em função de defeito na prestação de serviço. O
sistema adotado é o mesmo quanto ao fato do produto, com algumas
particularidades.
Responsabilizam-se,
independentemente
de
culpa,
todos
os
fornecedores de serviços, pelos danos ocasionados aos consumidores em
função de defeito na prestação de serviço ou por informações incompletas no
que diz respeito a segurança na sua execução.
Aqui, o serviço defeituoso, é aquele que não fornece a segurança que o
consumidor pode esperar. Leva o artigo, considerações relevantes:
I - modo de seu fornecimento;
Envolve-se aqui toda a publicidade realizada sobre o serviço promovido,
bem como suas informações técnicas;
II - resultado e riscos que razoavelmente se espera do serviço;
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
168
O resultado esperado é aquele que é indicado na mensagem publicitária
promovida pelo fornecedor do serviço;
III - época do fornecimento.
É o caso de que, se
na época em que foi promovido o serviço, os
padrões de segurança utilizados para o mesmo, dispunham de técnica mais
apurada e o serviço foi prestado em padrões de técnica inferior. Responde
assim, seu fornecedor.
Já no caso do parágrafo segundo do presente artigo, o serviço não é
considerado defeituoso, se na época de sua elaboração, o fornecedor dispôs da
melhor técnica a ser utilizada.
O parágrafo terceiro, do artigo 14, exime o fornecedor de serviços da
responsabilidade, devendo ser observado os critérios elencados, ou seja: “I que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do
consumidor ou de terceiro.”
A princípio, cabe ao fornecedor provar as hipóteses. Somente haverá
culpa de outrem quando não houver qualquer forma de defeito no serviço
prestado.
O Código prevê também a responsabilidade dos profissionais liberais,
encontrando-se disposto no parágrafo 4º, do artigo 14.
Tal responsabilidade somente será apurada mediante a verificação da
culpa destes profissionais, não se excluindo a inversão do ônus da prova.
O artigo 17 do CDC, dispõe sobre a extensão dos consumidores, por
considerar que seu conceito poderia vir a ser insuficiente para abranger todas as
relações de consumo. Esta extensão beneficia o consumidor tanto para o fato do
produto quanto para o fato do serviço. Beneficia então, as pessoas, sejam físicas
ou jurídicas que mesmo sem serem participantes da relação de consumo
venham a ser atingidas em sua saúde ou segurança devido a defeito do produto.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
169
DA RESPONSABILIDADE POR VÍCIO DO PRODUTO E DO SERVIÇO
Os produtos de consumo são classificados pelo artigo 18 do Código em
produtos duráveis e produtos não duráveis.
- Produtos duráveis: são aqueles que duram no tempo, apesar de seu
uso regular;
Exemplo: eletrodomésticos, automóveis, imóveis, roupas, etc.
- Produtos não duráveis: são aqueles que vão sendo eliminados devido ao
seu uso regular;
Exemplo: alimentos, medicamentos, produtos descartáveis.
Determina o artigo a responsabilidade solidária no fornecimento de
produtos, duráveis ou não, pelos vícios de qualidade e quantidade que os tornem
impróprios ou inadequados para o consumo ou que lhes diminuam o valor e,
também pela disparidade que vierem a apresentar através das indicações
constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária.
- Vícios de qualidade: são aqueles que fazem com que o produto não
funcione adequadamente ou funcione mal. Exemplo: a televisão sem som;
- Vícios de quantidade: são aqueles que não estejam de acordo com as
medidas ou pesagem. Exemplo: pacote de arroz de 5 kg, mas que só tem 4kg.
Os vícios também podem ser aparentes ou ocultos:
- Vícios aparentes: são aqueles de fácil constatação, ou seja, que pelo
uso do produto faz com que o consumidor logo o perceba. Exemplo: a geladeira
que não gela.
- Vícios ocultos: são aqueles que não podem ser vistos ou detectados
facilmente e que somente aparecem muito tempo após o uso do produto. É o
vício que o consumidor não tem acesso. Exemplo: um microcomputador que
após certo tempo normal de uso, vai apresentar o vício quando o consumidor
instala nele um kit multimídia.
O Código dispõe sobre prazo para que os vícios sejam sanados pelo
fornecedor. Este prazo é de 30 (trinta) dias, não podendo ser ultrapassado.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
170
Porém se o fornecedor ultrapassar este tempo, pode o consumidor, à sua livre
escolha exigir qualquer das alternativas previstas pela lei (art. 18, § 1º, I, II, III):
I - exigir a substituição do produto por outro da mesma espécie, em
perfeita condições de uso;
II - restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem
prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - abatimento proporcional do preço.
Consumidor e fornecedor podem estipular o aumento ou redução do
prazo de trinta dias. Este prazo estipulado pelas partes não pode ser inferior a
sete e nem superior a cento e oitenta dias e, no caso de contratos de adesão, o
prazo deverá constar em separado com anuência expressa dada pelo
consumidor.
Caso o vício apresentado pelo produto venha comprometer sua qualidade
ou característica, diminua-lhe o valor ou em se tratando de produto essencial, o
consumidor pode utilizar-se de suas opções
(substituição, restituição e
abatimento) de imediato.
Assim, se o consumidor optar pela substituição do produto e, esta não
sendo possível, poderá haver a substituição por outro de espécie, marca ou
modelo diverso daquele adquirido anteriormente, mediante a complementação
ou restituição da diferença.
O parágrafo 6º, do artigo 18, menciona os produtos impróprios para o
consumo.
Em primeiro, encontram-se os produtos cujos prazos de validade estejam
vencidos. Assim, mesmo que o produto aparentemente apresente características
de boa qualidade, apesar de estar vencido por um dia apenas, este deve ser
considerado viciado.
O inciso II, trata dos produtos que foram modificados em sua qualidade
ou quantidade seja por estarem deteriorados, alterados, adulterados, avariados,
falsificados, corrompidos, fraudados, sejam produtos nocivos à vida ou à saúde,
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
171
perigosos,
ou
ainda
que
estejam
em
desacordo
com
suas
normas
regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação.
Já o inciso III, dispõe sobre qualquer produto que se revele inadequado ao
fim a que se destina.
O artigo 19 do Código, prevê a solidariedade dos fornecedores frente aos
produtos que apresentarem vícios de quantidade dando ao consumidor as
opções de abatimento proporcional do preço, a complementação do peso ou
medida, a substituição do produto e a restituição imediata da quantia paga,
devendo esta ser atualizada monetariamente, sem prejuízo de eventuais perdas
e danos.
Da mesma forma, o artigo 20 dispõe sobre a responsabilidade do
fornecedor de serviços, pelos vícios de qualidade que estes venham a
apresentar, tornando o serviço impróprio ao consumo ou diminuindo seu valor.
Traz também, opções para a escolha do consumidor: I - reexecução dos serviços
sem custo adicional, somente quando cabível; a restituição imediata da quantia
paga, atualizada monetariamente, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
abatimento proporcional do preço.
Caso a opção seja pela reexecução dos serviços, o fornecedor poderá
confiar a mesma a terceiros, por sua conta e risco.
Também na reparação de qualquer produto, está o fornecedor de
serviços obrigado a utilizar componentes de reposição originais adequados e
novos ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante. Contudo, se
o consumidor autorizar para que a reparação do serviço seja realizada com peça
usada ou retificada, o fornecedor não arcará com a responsabilidade, pois agiu
conforme determinação do próprio consumidor.
O Código prevê a obrigação dos órgãos públicos em fornecer serviços
adequados, eficientes, seguros e, em se tratando dos essenciais, estes deverão
ser
contínuos,
seja
por
si
ou
por
suas empresas,
concessionárias,
permissionárias, ou qualquer outra forma de empreendimento. Criou-se assim,
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
172
para o consumidor, o direito à continuidade do serviço prestado pela
Administração Pública.
Ao consumidor também é facultado exigir em juízo que as pessoas
jurídicas cumpram e reparem os danos causados pelo descumprimento das suas
obrigações.
Pelo Código de Defesa do Consumidor, os fornecedores respondem pelos
vícios de qualidade por inadequação de seus produtos ou serviços, não cabendo
a alegação do desconhecimento dos mesmos.
A garantia legal de adequação pelo produto ou serviço não necessita ser
dada expressamente pelo fornecedor, assim, todos os produtos ou serviços
recebem uma garantia legal que independe da manifestação de vontade do
fornecedor.
Torna-se também nula qualquer cláusula contratual que disponha sobre a
não obrigação de indenizar por parte do fornecedor e, no caso de haver mais de
um responsável por dano causado ao consumidor, estes responderão
solidariamente com a obrigação de reparar o dano ao consumidor prejudicado.
Essa responsabilidade solidária também alcança a todos aqueles que, de
alguma forma, contribuíram para o dano causado por componente ou peça
incorporada ao produto ou serviço.
ANÁLISE COMPARATIVA
Nos dizeres do professor Rizzato Nunes “o vício é uma característica
inerente, intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é um vício acrescido
de um problema extra, alguma coisa extrínseca, que causa dano maior que
simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada,
a perda do valor pago”. Assim, quando a anomalia resulta apenas em deficiência
no funcionamento do produto ou serviço, mas não coloca em risco a saúde ou
segurança do consumidor não se fala em defeito, mas em vício. Portanto, fato do
produto ou serviço está ligado a defeito, que, por sua vez, está ligado a dano.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
173
Na responsabilidade pelo fato do produto e do serviço o defeito
ultrapassa, em muito, o limite valorativo do produto ou serviço, causando danos
à saúde ou segurança do consumidor. Já na responsabilidade pelo vício do
produto e do serviço o vício não ultrapassa tal limite versando , sobre a
quantidade ou qualidade do mesmo.
Na responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, o Código adotou a
responsabilidade objetiva mitigada,
cabendo ao
consumidor mostrar a
verossimilhança do dano, o prejuízo e o nexo de causalidade entre eles. Ao
fornecedor cabe desconstituir o risco e o nexo causal. Já na responsabilidade
pelo vício do produto ou serviço, o CDC adotou a responsabilidade subjetiva com
presunção de culpa, porém, o consumidor poderá ser beneficiado com a
inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII), caso em que o fornecedor terá o mesmo
ônus previsto na responsabilidade objetiva, ou seja, desconstituir o nexo causal
entre o risco e o prejuízo.
Na responsabilidade pelo fato, o comerciante responde subsidiariamente,
pois os obrigados principais são o fabricante, o produtor, o construtor e o
importador. Assim, só será responsabilizado quando aqueles não puderem ser
identificados, quando o produto fornecido não for devidamente identificado, ou
ainda, quando não conservar os produtos perecíveis adequadamente (art. 13,
CDC). Na responsabilidade pelo vício , por sua vez, o comerciante responde
solidariamente, juntamente com todos os envolvidos na cadeia produtiva e
distributiva (art. 18, CDC),
Como semelhanças temos que a reparação do dano é integral tanto para
a hipótese de acidente de consumo (responsabilidade pelo fato), quanto para os
vícios de adequação. Assim, poderá o consumidor reparar todos os danos,
sejam pessoais (morais) ou materiais (patrimoniais).
Além disso, apesar do capítulo referente ao vício do produto ou serviço
não especificar nenhuma excludente de responsabilidade, pode-se dizer que
aquelas previstas para o fato do produto ou serviço, tais como a inexistência do
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
174
defeito e a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, também são aplicáveis
ao primeiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO,
Mirian
Regina
.Direito
do
Consumidor
Face
à
Nova
Legislação,1ªed., São Paulo, Editora de Direito, 1997.
DELUCCA, Newton. Direito do Consumidor, v. 10, São Paulo, Editora Revista
dos Tribunais, 1995.
ZANON, José Antonio. Direitos do Consumidor e a Responsabilidade dos
Fornecedores,1ª ed., São Paulo, Editora Copola, 1996.
Direito do Consumidor, v. 13, Instituto Brasileiro de Política e Direito do
Consumidor, janeiro/março – 1995.
Direito do Consumidor, v.14, Instituto Brasileiro de Política e Direito do
Consumidor, abril/junho – 1995.
Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, São Paulo, Ed. Saraiva.
MENEZES, João Carlos. Código do Consumidor, 1ª ed., Editora Bookseller,
1996
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
175
ASPECTOS DA HERMENÊUTICA CONTRATUAL NO
DIREITO DO CONSUMIDOR
MARIA CLAYDE ALVES PACE
Advogada no Paraná. Especialista em
Direito Contemporâneo pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná.
RESUMO: O artigo aborda a interpretação contratual na sistemática do Direito do
Consumidor, analisando especialmente o artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor.
A autora salienta os princípios básicos de proteção jurídica do consumidor, destacando a
necessidade de ter o consumidor conhecimento prévio do conteúdo dos contratos que
venha a celebrar. Ao apontar as dificuldades sobre o tema, salienta a autora que o
objetivo maior do Direito do Consumidor é a proteção da parte mais fraca na relação de
consumo, o consumidor, considerado pela lei como hipossuficiente frente ao fornecedor
de bens ou serviços.
ABSTRACT: The article approaches the contractual interpretation in the systematic of the
Right of the Consumer, analyzing especially article 46 of the Code of Defense of
Consumers. The author points out the basic principles of the consumer legal protection,
highlighting the consumer necessity to have previous knowledge of the content of the
contracts that he comes to celebrate. By exposing the difficulties in the subject, the author
emphasizes that the greatest objective of the Right of the Consumer is the protection of
the weakest part in the relation of consumption, the consumer, considered by the law as
hipossuficient in relation to the goods or service supplier.
INTRODUÇÃO
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) inaugurou uma nova fase no
direito contratual brasileiro, prevendo normas que beneficiam aqueles que, em
tese, são hipossuficientes (consumidores) em relação às empresas que
oferecem seus produtos e serviços no mercado de consumo (fornecedores).
O presente estudo tem por finalidade discorrer sobre o artigo 46 do CDC,
enfatizando seu conteúdo e hermenêutica, e assinalando a importância da
norma para a proteção contratual dos consumidores.
Ao ser abordado o tema, constata-se que o legislador brasileiro seguiu a
orientação de outros países, que desde o início do século, preocuparam-se com
as relações de consumo e traçaram linhas gerais fora da codificação
estratificada, legislando sobre a matéria com o pensamento voltado para a
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
176
proteção dos direitos coletivos em desvantagem dos direitos privados, até então
"intocáveis".
No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988 os direitos do
consumidor foram previstos (artigo 5º, inciso XXXII) no próprio texto maior e
disciplinados, de maneira coerente e minuciosa pela Lei 8.078/90, conhecido
como CDC.
BREVE LEITURA DO ARTIGO 46 DO CDC
Inserido no capítulo que trata da "proteção contratual", o artigo 46 do
CDC prevê que "os contratos que regulam as relações de consumo não
obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar
conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem
redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance".
A regra, então, é a de que, nas relações de consumo a oferta obriga
sempre o fornecedor, mas não o consumidor.
Ressalta-se ainda que, considerando a norma que prevê a inversão do
ônus da prova (artigo 6º, VIII, CDC), caso o consumidor invocá-la em sede
jurisdicional, caberá ao fornecedor provar, de maneira inconteste, que foi dada
ao consumidor (previamente) a oportunidade e o tempo necessário para tomar
conhecimento de todas as cláusulas do contrato.
Não basta, porém, disponibilizar tempo suficiente para a leitura do
conteúdo de todo o contrato, fazendo-se mister que as cláusulas sejam redigidas
de maneira clara, em linguagem simples, no vernáculo [...] Enfim, impõe-se que
o contrato seja inteligível para qualquer pessoa de intelecto mediano.
Fácil é perceber tratar-se de prova difícil para o fornecedor, motivo pelo
qual convém que esse coloque seus produtos ou serviços no mercado de
consumo de maneira bastante clara, podendo lançar mão, por exemplo, de
mecanismos de propaganda, como anúncios em jornais, revistas, televisão.
Impõe-se também que tais anúncios sejam de tal modo esclarecedores que
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
177
abordem a quantidade, qualidade, tempo de garantia e todas as demais
informações necessárias à correta identificação dos produtos, proporcionando
um perfeito entendimento por parte da população em geral.
Aliás, o objetivo primordial da propaganda é convencer o consumidor que
o produto ou serviço oferecido é vantajoso, motivo pelo qual se pretende que o
consumidor dirija-se ao estabelecimento e, uma vez lá estando, de posse de
anúncio (por exemplo), possa exigir o exato cumprimento do que foi ofertado.
Destarte, o fornecedor obriga-se a cumprir exatamente aquilo que foi
anunciado, consoante esclarece Nelson Nery Júnior :
"É comum que grandes lojas de departamentos, por publicidade em
jornais, por exemplo, ofereçam produtos em quantidade insuficiente para
atender a demanda, fazendo anúncios desproporcionais em relação a
seu estoque de dez televisores de determinada marca, anunciadas em
página dupla inteira de jornal de grande circulação, edição de domingo.
Evidentemente, o objetivo dessa publicidade foi o de chamar a atenção
do consumidor para a existência de ofertas excepcionais naquela loja,
para que ele se convença de que é um bom negócio ir à loja para realizar
a compra. Esta a verdadeira finalidade do anúncio : fazer com que o
consumidor vá à loja." 230
O artigo 46 do CDC enfrenta a sistemática do Código Civil brasileiro
(artigos 1.079 a 1.091), pois a legislação tradicional consagra a força
incondicional dos contratos, somente admitindo argüição de nulidade (absoluta
ou relativa) em face de vício na manifestação volitiva.
Partindo-se do princípio basilar de que todos os contratos são celebrados
em face do princípio da boa-fé, salienta-se que, em face do direito do
consumidor, caberá ao fornecedor provar que o consumidor não teve prévia
conhecimento do contrato ou não leu o instrumento contratual.
230 NERY JÚNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro
: Forense, 1995, p. 294.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
178
Porém, como pode-se produzir tal prova? Como demonstrar que o
consumidor não leu ou não entendeu quaisquer das cláusulas do contrato?
Somente em face da inteligibilidade das cláusulas por pessoa mediana da
sociedade é que poderá o fornecedor eximir-se da resolução do contrato, ou ao
menos de uma ou mais cláusulas. Salienta-se ainda a imposição de o contrato
não atentar contra a ordem pública ou a liberdade de contratar, não podendo
conter, ainda, cláusulas abusivas que, por natureza, são nulas de pleno direito.
Assim, toda cautela deverá ter o fornecedor, pois o artigo 46 protege
sobremaneira o consumidor, dando-lhe a oportunidade de tomar conhecimento
amplo do contrato e oferecendo-lhe condições para que entenda claramente o
conteúdo contratual previamente à efetivação do negócio jurídico.
A regra, entretanto, poderá gerar questionamentos, como este :
O consumidor que se sentir prejudicado, contando sempre com a boa-fé
dos contratantes, alegará sempre que não entendeu todas as cláusulas do
contrato, pois somente a partir do momento em que estiver insatisfeito com a
contratação é que se socorrerá da tutela jurisdicional e pedirá a aplicação dos
preceitos do CDC, como resolver tal celeuma?
Ainda, uma mínima parcela da sociedade alfabetizada, mesmo que o
contrato esteja em linguagem simples, sempre alegará que não a entendeu?
Num país onde até a formação de Ensino Médio não é suficiente para os
esclarecimentos
mínimos
de
regras
básicas
comerciais,
jurídicas,
administrativas, dentre outras tantas, dir-se-á que somente a população com
formação universitária ficará excluída da proteção, pois em tese, teria
discernimento para entender as regras?
Em verdade, quiçá a melhor hermenêutica do artigo 46 indique que sua
aplicação deva ser deixada ao "prudente arbítrio do juiz" que decidir o caso em
concreto envolvendo sua invocação. O magistrado deverá aquilatar se o
consumidor tem ou não intelectualidade suficiente para o entendimento e
conhecimento pleno das cláusulas contratuais, e ainda se lhe foi dada a
oportunidade e o tempo necessário para conhecer todo o conteúdo do contrato.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
179
Mas, e o consumidor com nível universitário, jamais poderia invocar a
proteção em comento, dado que, em tese, teria todas as aptidões para
compreender o sentido e o alcance da norma?
Em verdade, sabe-se que uma grande parcela da coletividade com
formação universitária não tem conhecimento dessas regras basilares de
proteção ao consumidor, especialmente em face da complexidade das regras de
consumo, notadamente quando a aquisição de produtos ou serviços se dá a
crédito, envolvendo instituições financeiras com contratos, muitas vezes, quase
ininteligíveis.
Assim, deixar-se ao "prudente arbítrio do juiz" a aplicação do artigo 46 do
CDC pode gerar uma certa "insegurança jurídica", vez que se subordina a juízo
subjetivo do magistrado, especialmente diante das características pessoais do
consumidor. Cria-se, então, uma "zona cinzenta" acerca da correta interpretação
do que seja "dar oportunidade de tomar conhecimento prévio" das normas; ou
ser o contrato "redigido de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e
alcance".
A lição de Carlos Eduardo Manfredini Hapner é esclarecedora :
"Ao que nos parece, essa questão da segurança jurídica deve ser
enfocada sob outro prisma. O artigo 5º da CF/88, particularmente seu
caput, ao aludir à 'inviolabilidade do direito ... à segurança, deve ser
interpretado em consonância com outros princípios constitucionais, que
lhe delimitam o conteúdo e o significado, e lhe conferem a correta
dimensão. Na realidade, este conceito, tal como referido na lei e
empregado pela doutrina, é vago, e, como tal deve ser preenchido não
apenas à luz da situação concreta, mas ao lume de outros princípios
prestigiados pelo ordenamento jurídico, dentre de dada época. Quer
dizer, com isto, que o conceito de segurança jurídica, ou seu sentido e
seu alcance são alteráveis de época para época. Assim como o princípio
do due process of law, por exemplo, insculpido na Constituição norteamericana há mais de duzentos anos, nem sempre teve a mesma
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
180
amplitude que hoje se lhe dá. Para nós, dentro da Constituição de 1988,
que alçou inclusive a defesa do consumidor a princípio geral da atividade
econômica (artigo 170, V), fazendo-o constar também do artigo 5º, XXXII,
não se pode deixar de compreender a verdadeira abrangência do
conceito de segurança jurídica, ignorando ou desconsiderando estes
outros dados. Com efeito, como se pode cogitar de que o consumidor
que, efetivamente, não tomou conhecimento dos termos do contrato que
firmou, possa se obrigar em razão desse mesmo contrato, sob pena de,
em não o fazendo, ter-se como afrontado o princípio da segurança
jurídica? Demais disso, há que se ter presente que as situações
contempladas por este artigo,
lamentavelmente, são bem mais
corriqueiras do que se possa supor à primeira vista. Como pretender que
o direito recubra com o manto da segurança jurídica situações que se
originaram de um desequilíbrio justamente em detrimento do consumidor,
a quem a Constituição protege, pelo menos em dois artigos ? " 231
Vê-se, então, que o fornecedor deverá dar conhecimento efetivo, o que
significa dar o maior número possível de informações sobre aquele contrato,
especialmente nos contratos de adesão, pois do contrário o vínculo não
produzirá os efeitos pretendidos pelo fornecedor, não obstante existir a cláusula
e ser prevista no instrumento contratual.
SÍNTESE CONCLUSIVA
A lição do eminente Nelson Nery Júnior é bastante pertinente ao tema ora
debatido, quando afirma que "a avaliação da efetiva compreensão da cláusula
pelo consumidor depende do caso concreto" .232
Assim, em apertada síntese, pode-se dizer que deve o magistrado,
sempre que for invocada a norma em comento, avaliar o grau de escolaridade, o
231 HAPNER, Carlos Eduardo Manfredini. Comentários ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro : Forense, 1992, p.155.
232 NERY JÚNIOR, Nelson. Obra citada, p. 326.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
181
nível intelectivo e de compreensão do consumidor em face do conteúdo do
contrato.
Confia-se que os esforços doutrinários e a posição jurisprudencial firmem
a correta hermenêutica sobre o tema, e apreendam de maneira ampla e correta
o pensamento do legislador que visou beneficiar o consumidor na interpretação
da validade do contrato.
Impõe-se, de qualquer maneira, a aplicação da norma em consonância
com o espírito para o qual foi criada: a proteção do mais fraco na relação de
consumo, a tutela dos direitos do consumidor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HAPNER,
Carlos
Eduardo
Manfredini.
Comentários
ao
Código
do
Consumidor. Rio de Janeiro : Forense, 1992.
NERY JÚNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
Comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro : Forense, 1995.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
182
ANÁLISE DO CONCEITO DE CRIME
FERNANDO ELEUTÉRIO
Professor do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei. Coordenador do Curso de Direito
da Faculdade Mater Dei. Professor de Direito Penal da Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG). Chefe do Departamento de Direito da UEPG (1993/1994/1995/1996).
Chefe Adjunto do Departamento de Direito Processual da UEPG (2000/2001).
Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e Assistência Judiciária Gratuita da UEPG
(2000/2002). Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Paraná
(Coordenadoria Ponta Grossa (PR) - 1992). Mestre em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná. Advogado.
RESUMO: O artigo analisa o conceito de crime, ressaltando tratar-se de um dos mais
controvertidos temas da doutrina penal. Após abordar as diversas definições de crime
(formal, material e analítica), o autor passa a elencar os elementos do crime, em
especial: a ação ou omissão, a tipicidade, a antijuridicidade, a culpabilidade e a
imputabilidade. Conclui o autor estar o conceito de crime em constante evolução.
ABSTRACT: The article analyzes the crime concept, being this one of the most
controvert subjects of the criminal doctrine. After approaching the diverse definitions of
crime (formal, material and analytical), the author starts to list the elements of crime, in
special: the action or default, the vagueness doctrine, the anti-legality, the culpability and
the imputability. He concludes the concept of crime to be in constant evolution.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A cada dia que passa, a humanidade descobre novas necessidades e
alcança novos objetivos. Estas transformações ocorrem em todas as áreas do
conhecimento humano, e entre elas, na ciência jurídica.
O Direito é dinâmico. Acompanha a evolução da sociedade, adaptandose aos seus clamores.
Dentro dos ramos do Direito, encontramos no Direito Penal o exemplo fiel
e legítimo de adaptação social. De forma brilhante o Prof. Magalhães Noronha233
233 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, Vol.1. Editora Saraiva, 1985. p. 20.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
183
presenteou o Direito Penal brasileiro com uma frase memorável que merece ser
relembrada: “A história do direito penal é a história da humanidade. Ele surge
com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual
sombra sinistra, nunca dele se afastou.”
Realmente, ele atravessa os séculos tal qual um camaleão, alterando
suas cores (seus comportamentos), não para se aproveitar de seus
semelhantes, como ocorre no “stelius nato”, mas para estudar seus anseios,
suas revoltas, seus atos violentos, a criminalidade. Bem como, encontrar formas
de prevenir e combater a criminalidade através da aplicação justa de um
penalidade.
Mas, o que vem a ser o “crime”?
Além de um fenômeno social, o crime é na realidade, um episódio na vida
de um indivíduo. Não podendo portanto, ser dele destacado e isolado, nem
mesmo ser estudado em laboratório ou reproduzido. Não se apresenta no
mundo do dia-a-dia como apenas um conceito, único, imutável, estático no
tempo e no espaço, ou seja, “cada crime tem a sua história, a sua
individualidade; não há dois que possam ser reputados perfeitamente iguais.”234
Evidentemente, cada conduta criminosa faz nascer para as vítimas resultados
que jamais serão esquecidos, pois delimitou-se no espaço a marca de uma
agressão, seja ela de que tipo for (moral, patrimonial, física, etc.).
O próprio conceito de “crime” evoluiu no passar dos séculos. Como muito
bem lembra o Prof. Heleno Fragoso235: “a elaboração do conceito de crime
compete à doutrina”. O próprio Código Penal vigente, com suas alterações
oriundas da Lei nº 7.209/84 que reformulou toda a Parte Geral do Código de
1940, não define o que é “crime”, embora algumas de nossas legislações penais
antigas o faziam. O Código Criminal do Império de 1830 determinava em seu
artigo 2º, parágrafo 1º: “Julgar-se-á crime ou delito toda ação ou omissão
contrária às leis penais.” E, o Código Penal Republicano de 1890 assim se
234 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. Editora Saraiva, 1991. p.79.
235 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal - A nova Parte Geral. Editora Forense, 1985. p. 146/147.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
184
manifestava em seu artigo 7º: “Crime é a violação imputável e culposa da lei
penal.”
O “crime” passou a ser definido diferentemente pelas dezenas de escolas
penais. E, dentro destas definições, haviam ainda subdivisões, levando-se em
conta o foco de observação do jurista. Surgem então os conceitos formal,
material e analítico do crime como expressões mais significativas, dentre outras
de menor expressão. O conceito formal corresponde a definição nominal, ou
seja, relação de um termo a aquilo que o designa.
O conceito material
corresponde a definição real, que procura estabelecer o conteúdo do fato
punível. O conceito analítico indica as características ou elementos constitutivos
do crime, portanto, de grande importância técnica.
ANÁLISE DO CONCEITO DE CRIME
Um homem, em determinado dia, encontrou um rapaz baleado e sem
vida, com ferimento em região letal, esticado no meio da rua. Um leigo
certamente afirmaria tratar-se de um homicídio. Para os juristas, entretanto, essa
conclusão seria, naquele momento, impossível. É lógico que existiria uma idéia,
um indício da existência de um homicídio, mas pode-se ponderar que a morte
violenta dada àquele homem, poderia, por exemplo, estar justificada, e,
evidentemente, não haveria crime (legítima defesa ou outra excludente de
ilicitude). Para que exista crime, há necessidade de se percorrer um caminho,
passando por todas as características que o delito deve apresentar, para, só
depois, chegarmos a uma conclusão: realmente trata-se de um homicídio.
A conceituação jurídica do crime é ponto culminante e, ao mesmo tempo,
um dos mais controversos e desconcertantes da moderna doutrina penal, este já
era o pensamento do mestre Nelson Hungria236, afirmando ainda que “o crime é,
antes de tudo, um fato, entendendo-se por tal não só a expressão da vontade
236 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume I, Tomo II, 5ª ed., Forense. p. 10
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
185
mediante ação (voluntário movimento corpóreo) ou omissão (voluntária
abstenção de movimento corpóreo), como também o resultado (effectus
sceleris), isto é, a conseqüente lesão ou periclitação de um bem ou interesse
jurídico penalmente tutelado.”
Inicialmente, na doutrina penal brasileira, adotou-se um conceito formal
do delito, no qual o crime seria toda a conduta humana que infringisse a lei
penal. Neste conceito, verificava-se o fato do indivíduo transgredir a lei penal
apenas, sem que qualquer outro fator fosse analisado.
Posteriormente adotou-se uma definição material de crime, cuja
paternidade foi atribuída a Ihering. Passou-se a definí-lo como sendo o fato
oriundo de uma conduta humana que lesa ou põe em perigo um bem jurídico
protegido pela lei.
Por derradeiro, chegamos ao conceito dogmático ou jurídico de crime,
apelidado por muitos de “analítico”.
Sua origem remonta ao ano de 1906,
oriunda da doutrina alemã de Beling, através de sua obra “Die Lehre vom
Verbrechen” (“A Teoria do Crime”), que culminou em 1930 com sua segunda
obra “Die Lehre vom Tatbestand” (“A Teoria do Tipo”).
O crime, portanto, passou a ser definido como toda a ação ou omissão,
típica, antijurídica e culpável.
Este conceito decompõe a figura do crime em elementos constitutivos
que seriam individualmente analisados. Entretanto, resta afirmar, que o crime é
um ato uno e indivisível, como bem adverte o Prof. Luiz Alberto Machado237:
“Não significa que os elementos encontrados na sua definição analítica ocorram
seqüencialmente, de forma cronologicamente ordenada; em verdade acontecem
todos no mesmo momento histórico, no mesmo instante, tal como o instante da
junção de duas partículas de hidrogênio com uma de oxigênio produz a molécula
da água.” Assim sendo, o fato dos elementos constitutivos do crime serem
analisados individualmente, não descaracterizam o ato criminoso que criou,
237 MACHADO, Luiz Alberto. Direito Criminal (Parte Geral). Revista dos Tribunais, 1987. p. 79.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
186
alterou ou produziu efeitos no mundo jurídico (fato-crime), mas, unicamente,
facilitam a tarefa de averigüar a conduta humana criminosa para uma justa
aplicação da reprimenda.
Vejamos então, os seus elementos:
a) Ação ou omissão: Significa que o crime sempre é praticado através de
uma conduta positiva (ação), comissiva ou, através de uma conduta negativa
(omissão). É o não fazer, a inércia.
Tanto é criminoso o fato do marginal
esfaquear uma pessoa até matá-la (ação), como o fato de uma mãe, por
preguiça ou comodidade, não retirar de cima da mesa de sua casa (omissão) o
veneno para matar baratas, que foi posteriormente ingerido pelo seu filho de três
anos, provocando-lhe a morte, enquanto aquela, assistia sua novela preferida.
Dentro destas condutas positivas (ação) e negativas (omissão)
pertencentes a estrutura do crime, não vamos olvidar os crimes comissivos por
omissão, ou seja, aqueles que são praticados através de uma conduta negativa
(omissão), mas que produz um resultado positivo (um fato visado e desejado
pelo agente). É o clássico exemplo da mãe, que desejando matar seu próprio
filho, de tenra idade, deixa de amamentá-lo, com a finalidade de matá-lo de
fome.
b)Típica: Significa que a ação ou omissão praticada pelo sujeito, deve ser
tipificada, isto é, descrita em lei como delito. A conduta praticada deve se ajustar
a descrição do crime criado pelo legislador e previsto em lei, pois pode a conduta
não ser crime, e, não sendo crime, denomina-se: conduta atípica (não punida,
tendo em vista que não existe um dispositivo penal que a incrimine).
Mas, cumpre lembrar, que uma conduta atípica como crime pode ser
tipificada como contravenção penal. Não se pode confundir, de modo algum,
crime com contravenção penal. Este, como definia o mestre Hungria, é um
“crime anão”, é menos grave que o delito(ou crime) e possui legislação própria
(Decreto-lei nº 3.688/41), com tipificação e características próprias.
c)Antijurídica: Significa que a conduta positiva ou negativa, além de
típica, deve ser antijurídica, contrária ao direito. É a oposição ou contrariedade
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
187
entre o fato e o direito. Será antijurídica a conduta que não encontrar uma causa
que venha a justificá-la. Nas palavras do Prof. Damásio de Jesus238 : “A conduta
descrita em norma penal incriminadora será ilícita ou antijurídica quando não for
expressamente declarada lícita. Assim, o conceito de ilicitude de um fato típico é
encontrado por exclusão: é antijurídico quando não declarado lícito por causas
de exclusão da antijuridicidade (CP, art. 23, ou normas permissivas encontradas
em sua parte especial ou em leis especiais)”.
Desta forma, uma pessoa pode ser morta e se constatar, a título de
exemplificação, que:
1º) Ela foi morta injustificadamente. Portanto, foi vítima de um homicídio
(art. 121 CP).
2º) Ela foi morta justificadamente, porque estava de posse de uma pistola
carregada e prestes a matar seu desafeto, quando foi morto por este, que agiu
em legítima defesa (art. 23, II do CP)239, uma excludente de ilicitude
(antijuridicidade).
3º) Ela foi morta justificadamente, porque mesmo não estando armado,
ele havia ameaçado de morte seu desafeto, que, por erro plenamente justificado
pelas circunstâncias, supôs que na realidade estivesse armado, vindo a matá-lo.
Tendo, desta forma, agido em legítima defesa putativa (uma excludente de
culpabilidade, art.20, parágrafo 1º).240
Em vista de tais esclarecimentos, devo discordar do Prof. William
Wanderley Jorge, ao afirmar em sua obra “Curso de Direito Penal”241, que o
crime é um fato jurídico voluntário que se divide em ato lícito e ato ilícito
(praticado de acordo com o direito o ato é lícito; contrariamente ao direito será
ilícito).
238 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 1º volume - Parte Geral. Saraiva, 1991. p. 137
.
239 CÓDIGO PENAL. Art. 23: “Não há crime quando o agente pratica o fato: .......II) em legítima defesa”.
240 CÓDIGO PENAL. Art. 20, parágrafo 1º: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe
situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima.”
241 JORGE, William Wanderley. Curso de Direito Penal (Parte Geral). Forense, 1986, p. 189 “O crime ou delito (palavras sinônimas
no Brasil) é um fato jurídico, isto é, um acontecimento relevante para o direito, que provoca o nascimento, a modificação ou a extinção
de uma relação jurídica. Mas, é um fato voluntário que se divide em: ato lícito e
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
188
Ora, o crime não pode ser um ato lícito!
Quando a agressão física contra uma pessoa é praticada, poderemos ter
a morte ou a ofensa à integridade física deste indivíduo, ocorrendo então um
crime de homicídio (art.121 CP) ou um crime de lesão corporal (art.129 CP).
Mas, se a agressão foi praticada, estando o agente acobertado por uma das
excludentes de ilicitude previstas pelo artigo 23 do Código Penal (estado de
necessidade; legítima defesa; estrito cumprimento do dever legal ou exercício
regular de direito) deixa de existir crime. O referido dispositivo legal é bem claro:
“Não há crime quando o agente pratica o fato: I) em estado de necessidade;
......”; assim sendo, houve uma agressão que resultou em morte ou lesão
corporal em uma pessoa, porém, não houve crime.
Além do mais, o crime não pode ser considerado como um “fato jurídico”,
o crime nada mais é do que um ato (criminoso) que provoca um fato jurídico que
vem a alterar, criar ou extinguir direitos. O fato, ou situação existente após a
prática do crime, é a conseqüência do ato criminoso. Ex.: O ato de agredir
violentamente alguém, resulta no fato dela possuir hematomas, que caracterizam
o crime de lesão corporal. Assim, o crime é a ação, que resultou naquele
hematoma produzido (um fato).
d) Culpável: a culpabilidade é o elemento subjetivo do autor do crime. É
aquilo que se passa na mente daquela pessoa que praticou um delito.
Ele poderia ter desejado um resultado criminoso qualquer (agiu com dolo
direto); ele poderia ter assumido o risco de produzir um resultado criminoso (agiu
com dolo indireto eventual); ou, ele não desejava aquele resultado criminoso,
mas deu causa a ele por imprudência, negligência ou imperícia (agiu com culpa).
A culpabilidade portanto, é a culpa em sentido amplo, que abrange o dolo
(artigo 18, inciso I; CP)242; e a culpa em sentido estrito (artigo 18, inciso II;
CP).243
ato ilícito. Praticado de acordo com o direito o ato é lícito; contrariamente ao direito será ilícito.”
242 CÓDIGO PENAL. Art. 18: “Diz-se o crime: I) doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzí-lo.”
243 CÓDIGO PENAL. Art. 18: “Diz-se o crime: II) culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou
imperícia.”
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
189
Por outro lado, ela resulta ainda da união de três elementos:
imputabilidade, consciência efetiva da antijuridicidade e exigibilidade de conduta
conforme ao Direito, ou seja, deve o autor do delito ser imputável;
ter
conhecimento ou possibilidade de conhecimento da antijuridicidade de sua
conduta; e ter condições de, no momento da prática daquele ato criminoso, ter
agido de modo diverso do qual agiu.
Em vista disso, é oportuno lembrar de que existem excludentes de
culpabilidade previstas pelo Código Penal que determinam que o agente não
deve ser punido, mesmo sendo a sua conduta, típica e antijurídica.
Nesse caso, o legislador empregou expressões como: “é isento de pena”
(artigos 26, caput; e 28, parágrafo 1º do CP); ou de forma indireta: “Só é punível
o autor da coação ou da ordem”, dando a entender que o autor do fato não é
punível (art. 22 do CP). Entre estas excludentes de culpabilidade, encontramos
como destaque, a menoridade (art. 27 CP).244
Esses seriam então, os elementos integrantes do conceito jurídico,
dogmático ou analítico de crime, defendidos pela doutrina prevalente.
Existem, entretanto, autores que não aceitam esta definição. Enquanto
alguns pretendem retirar um dos seus elementos, outros desejam acrescentar
novos elementos. Sobre este assunto, o Prof. Luiz Alberto Machado245 esclarece
que “o conceito analítico do crime vem sofrendo profundo reexame do mundo
jurídico-criminal. A mais ou menos pacífica e tradicional composição tripartida
(tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade) tem trazido inquietações, seja pela
estrutura interna desses elementos, com a transposição de fatores de um para
outro, seja pela atual tentativa de retorno a uma concepção bipartida.”
244 CÓDIGO PENAL. Art. 27: “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas
na legislação especial.”
245 MACHADO, Luiz Alberto. Direito Criminal (Parte Geral). Revista dos Tribunais, 1987. p. 79.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
190
O maior expoente da teoria finalista da ação em nosso meio, Prof.
Damásio de Jesus, sustenta que a culpabilidade não é elemento ou requisito do
crime. Ela somente funciona como pressuposto da pena, e que o juízo de
reprovabilidade não incidiria sobre o fato, mas sim sobre o sujeito.
Não se
tratando de fato culpável, mas de sujeito culpável. Culpabilidade seria um juízo
de reprovação que recairia sobre o sujeito que praticou o delito e, desta forma, a
culpabilidade seria uma condição de imposição de pena.
Alguns autores, influenciados pela doutrina italiana de Battaglini,
defendem a inclusão da “punibilidade ” no conceito do crime.
Não comungo com tal idéia. A pena a ser aplicada ao autor do crime,
uma vez condenado, é uma conseqüência do crime, e não parte integrante do
crime.
Nas palavras do Prof. Magalhães Noronha,246 “a pena não integra o
delito, por ser este seu pressuposto.Tê-la como constitutiva do crime é
considerar como elemento da causa o efeito”.[...] “A pena vem a ser, então, um
efeito do delito. É sua conseqüência ou resultado”.
E, realmente, este é o
entendimento da doutrina dominante.
3) CONCLUSÃO
Face a todas as considerações acima, podemos concluir, que o conceito
de crime ainda está em evolução (e sempre estará).
Acredito que o atual conceito adotado pela doutrina prevalente não
perdurará por muito tempo. Logo, o crime como “ação ou omissão, típica,
antijurídica e culpável”, passará por algumas modificações e “reformas”, aliás,
como tudo em nossas vidas.
246 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, Vol.1. Editora Saraiva, 1985. p. 102/103.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
191
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito penal e criação judicial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1989.
ARAGÃO, Nancy. Você conhece direito penal ? Rio de Janeiro: Editora Rio,
1974.
CASTELO BRANCO, Vitorino Prata. Aulas de direito penal. Rio de Janeiro:
Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1986.
CONDE, Francisco Muños.
Teoria geral do delito.
Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1988.
COSTA, Álvaro Mayrink da Costa. Casos em matéria criminal. 2. ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1994.
COSTA Jr., Paulo José da. Comentários ao código penal. Parte geral. São
Paulo: Saraiva, 1986.
DELMANTO, Celso. Código penal anotado. São Paulo: Saraiva, 1982.
ELEUTÉRIO, Fernando. Concurso de pessoas na nova lei penal de 1984.
Paraná Judiciário vol.29. Curitiba: Juruá, 1989.
ENCICLOPÉDIA SARAIVA DO DIREITO. v. 21, São Paulo: Saraiva, 1977.
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de direito penal. A nova parte geral. 8.
ed., Rio de Janeiro: Forense, 1985.
FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial.
3. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
______________. Temas de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1986.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. v.1, Tomo I, 3. ed., São Paulo:
Max Limonad - Editor de Livros de Direito, 1966.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. v.1, Tomo II, 5. ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1978.
JESUS, Damásio Evangelista de. Curso sobre a reforma penal. São Paulo:
Saraiva, 1985.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
192
______________________.
Direito penal.
1. v., Parte geral, São Paulo:
Saraiva, 1986.
JORGE, William Wanderley. Curso de direito penal. v.1, Parte geral, 6. ed.,
Rio de Janeiro: Forense, 1986.
LEAL, João José. Curso de direito penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
Editor & Editora da FURB, 1991.
LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica.
2. ed., Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1987.
LUNA, Everardo da Cunha Luna. Capítulos de direito penal. Parte geral. São
Paulo: Saraiva, 1985.
MACHADO, Luiz Alberto. Direito criminal.
Parte Geral. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1987.
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. v.2, São Paulo: Saraiva,
1965.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. v.1, Parte geral. 3. ed.,
São Paulo: Atlas. S.A., 1987.
NASCIMENTO, Walter Vieira do. A embriaguez e outras questões penais. 3.
ed., Rio de Janeiro: Forense, 1992.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio.
Leis especiais (aspectos penais). São Paulo:
Livraria Universitária de Direito Ltda., 1988.
PIERANGELLI, José Henrique. Escritos jurídicos penais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1992.
RODRIGUES, Maria Stella Vilela Souto Lopes.. ABC do direito penal. 9. ed.,
São Paulo: Revista dos Tribunais Ltda., 1986.
SALLES Jr., Romeu de Almeida. Do crime. São Paulo: Brasilivros Editora e
Distribuidora Ltda., 1980.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria do crime. São Paulo: Acadêmica, 1993.
SHINTATI, Tomaz M., O novo sistema penal. São Paulo: Jalovi, 1984.
SILVEIRA, Euclides Custódio da. Crimes contra a pessoa. Direito Penal. 2.
ed., São Paulo: Revista dos Tribunais Ltda., 1959.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
193
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 3. ed., São
Paulo: Saraiva, 1987.
TUBENCHLAK, James. Teoria do crime.
2. ed., Rio de Janeiro: Forense,
1980.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
194
TENTATIVA DE DELITO – TIPO PRÓPRIO – PENA
FRANCISCO CARLOS JORGE
Magistrado no Paraná. Professor Universitário em Ponta Grossa-PR. Doutorando em
"Derecho Público", pela Universidade de Extremadura, Espanha (convênio com o Centro
Universitário do Norte Paulista – UNORP, São José do Rio Preto, São Paulo).
RESUMO: O artigo analisa o tema "tentativa do delito", assinalando sua importância para
o Direito Penal. O autor aborda a definição legal do tipo no Direito Brasileiro e no Direito
Espanhol, sustentando que o "delito tentado" constitui-se em tipo autônomo, ensejando
redução da pena em relação ao "delito consumado". Salienta o autor, aspectos especiais
no tratamento da matéria, como a "inidoneidade de meios" para a consumação do crime
(artigo 17 do Código Penal Brasileiro e artigo 16.1 do Código Penal Espanhol), e a
"tentativa frustrada", finalizando por convocar os tribunais brasileiros à reflexão sobre a
polêmica existente em torno da temática.
ABSTRACT: This article analyzes the "attempt of criminal offense" subject, determining
its importance for the Criminal law. The author approaches the legal definition of the kind
in the Brazilian and Spanish Laws, supporting that the "attempted wrong" consists in a
stand alone type, trying reduction of the punishment in relation to the "consummated
wrong". The author stresses special aspects in the handling of the issue, as the
"inappropriateness of means" for the consummation of the crime (article 17 of the
Brazilian Criminal Code and article 16,1 of the Spanish Criminal Code), and the "
frustrated attempt ", coming to an end calling the Brazilian courts for reflection on the
existing controversy around the theme.
BREVE INTRODUÇÃO
Universalmente
preocupam-se
os
juristas
em
questionar
em
que
circunstâncias os atos preparatórios para a prática de um delito, embora não
constituindo o delito propriamente dito, devem ou não ser punidos, em face da
repercussão de fatos dessa natureza no meio social. A tentativa de delito é
valorada em todo sistema jurídico, variando apenas o entendimento quanto aos
elementos que a caracteriza. Debate-se a doutrina jurídica universal a trazer os
fundamentos da tentativa, até mesmo para fornecer subsídios ao legislador e ao
aplicador do direito, quanto a pena que deverá ser imposta uma vez verificada a
conduta tentada do agente.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
195
Saber se a tentativa constitui tipo autônomo, ou se é parte de outra figura
delitiva, do tipo frustrado, ou incompleto, é motivo de preocupação doutrinária,
emprestando-se maior importância à teoria geral do tipo, para a configuração
jurídica da tentativa, posto que da conclusão, neste aspecto, quanto a se
constituir em tipo autônomo, ou parte de outro tipo, incompleto, por que o
resultado não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do agente, importa
para a axiologia jurídica, quando da imposição da pena ao agente.
Na doutrina o tema suscita palpitantes discussões, não havendo consenso
na jurisprudência, em que pese a predominância de certos entendimentos,
decorrentes da interpretação que se faz do texto legal. Seguem-se, ainda,
acaloradas discussões quanto a imposição da pena, que muitas vezes na
tentativa é imposta pela singela redução da pena concreta que seria imposta ao
crime consumado, quando, em verdade, deveria partir-se da limitação em
abstrato. Outras vezes aplica-se a sanção própria do crime consumado, mesmo
quando não se verifica a presença de todos os seus elementos objetivos.
Sobre esses pontos pretende-se tecer breves considerações, demonstrando
a posição doutrinária e a adotada pelos tribunais brasileiros, segundo as
prescrições legais.
DEFINIÇÃO LEGAL DO TIPO
O Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal), com
a reforma da Lei 7.209, de 11 de julho de 1984, estabelece na parte geral o
elemento especial (objetivo) que caracteriza a tentativa:
Artigo 14. Diz-se o crime:
I
- consumado, … ;
II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por
circunstâncias alheias à vontade do agente.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
196
Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com
a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois
terços. (Redação dada ao artigo pela Lei nº 7.209, de 11/07/1984)
Art. 17. Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio
ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o
crime. (Redação dada ao artigo pela Lei nº 7.209, de 11/07/1984) - (sem
destaques no original).
O legislador espanhol de 1995, afastando a discussão até então
existente, quanto a “interrupción involuntária o uma ejecución inconpleta sin êxito
involuntario”, estabeleceu os elementos que configuram a tentativa de forma
objetiva, preocupando-se
que “en la fase externa del delito, los actos de
ejecución se inician com vocación de êxito, que, de alcanzarse, da lugar a la
ejecución, em tanto la no produción del resultado puede produzirse, de una
parte, por uma interrupción involuntária o a uma ejecución completa sin êxito
involuntário “ 247 na fase externa do delito.
Art. 16.
1.“Hay tentativa cuando el sujeto da principio a la ejecución del delito
directamente por hechos exteriores, practicando todos o parte de los
actos que objetivamente deberían producir el resultado, y sin embargo
éste no se produce por causas independientes de la voluntad del autor”.
2. Quedará exento de responsabilidad penal por el delito intentado quien
evite voluntariamente la consumación del delito, bien desistiendo de la
ejecución ya inicial, bien impidiendo la producción del resultado, sin
perjuicio de la responsabilidad en que pudiera haber incurrido por los
actos ejecutados, si éstos fueren ya constitutivos de otro delito o falta.
247 MÉNGUEZ, José Moyna, et all. Código Penal Comentários y jurisprudencia. Editorial Colex, 1999, pág. 50.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
197
Com essas disposições simplificadas, porém claras e exatas do que se
caracteriza como tentativa, deixa o legislador brasileiro, assim como o espanhol,
a cargo dos tribunais e da doutrina jurídica que “la llenen de contenido y
resuelvan los problemas emergentes de la practica, sin que el legislador se
inmiscuya (como no lo hace con otras categorías también genuinas de la teoría
del delito, p. ej. el error), conforme la teoría del delito que se revele como la que
propicia soluciones más justas y armónicas con sus propias premisas, dentro
siempre, de los amplios limites que si establece la ley”.248
Como bem afirma o preclaro Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro
249
do
Superior Tribunal de Justiça, hoje, por força do princípio da reserva legal, ganha
relevo a exaustiva definição do comportamento delituoso, buscando-se preservar
a garantia de a pessoa conhecer, antes, e com precisão, a proibição, através de
lei (sentido formal), como a “concrettezza” de que falam os italianos. Dessa
forma vedam-se, então, os chamados "tipos abertos", ou seja, sem a descrição
mencionada.
Em conseqüência, a configuração jurídica da tentativa deve ser clara e
objetivamente prescrita pelo legislador. Notadamente, neste particular, se
constitui tipo autônomo, ou é parte de outro tipo, incompleto, por que o resultado
não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do agente, indaga o articulista
citado no parágrafo anterior, oferecendo ele mesmo a resposta:
A doutrina mostra-se dividida. Pouco importa serem "causalistas", ou
"finalistas".
A indagação leva a esta pergunta: a tentativa é crime autônomo, crime
perfeito, ou, ao contrário, crime imperfeito, no sentido de não haver se
completado o tipo que o agente desejara realizar?
248 CONTRERAS, Joaquín Cuello. El estado de la discusión doctrinal em torno al fundamento de la tentativa.
249 Pena - Tentativa - Teoria geral do tipo - Configuração jurídica. (Publicada na RJ nº 239 - SET/97, pág. 26 (In Júris Síntese
Millennium).
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
198
A Parte Especial do CP descreve somente crimes consumados. Mera
questão de técnica legislativa. Evita, ao lado de cada tipo compatível com o
instituto, acrescentar também a modalidade tentada. O texto a definiu na parte
geral. Como o Código constitui unidade jurídica, as normas da parte geral
aplicam-se à parte especial. Daí, serem denominadas normas de extensão.
Alcançaram, pois, todos os tipos delituosos.
O tipo encerra os elementos da conduta, integrantes da tipicidade, da
ilicitude, da culpabilidade, não obstante algumas divergências. O dissídio maior
se dá quanto à punibilidade, no sentido de definí-la como integrante do tipo. E
mais. Se a culpabilidade é pressuposto da pena. Entendo, como, entre nós, há
anos, sustentava BASILEU GARCIA, que a pena integra o tipo, dado não haver
crime sem sanção. Com efeito, a pena é conseqüência lógica (não se confunde
com a conseqüência material) da conduta que contrasta o preceito.
Há
tipos
que
se
aproximam;
semelhantes,
mas
não
idênticos.
Ilustrativamente, o homicídio e a lesão corporal. Só se realiza o primeiro
passando-se pelo segundo (princípio da absorção). O tipo da tentativa projeta-se
com a conjugação de dois tipos. Assim, art. 121 c/c art. 14 do CP.
Na tentativa de homicídio, têm-se:
a)
tipo objetivo – matar alguém
b)
tipo subjetivo – dolo
c)
elemento especial – não ocorrer a morte por circunstâncias alheias à
vontade do agente.
Há, pois, fusão de duas normas. Evidente a autonomia jurídica. A tentativa
não se confunde com a consumação. Tecnicamente, figuras distintas, não se
identificam (sentido lógico).
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
199
Têm-se, pois, "crime tentado" e não "tentativa de crime". É, portanto, tipo
perfeito. Em se colocando em confronto o tipo de crime consumado e o tipo da
tentativa, observa-se identidade quanto à ilicitude; distinguem-se quanto à
tipicidade (o resultado não é o mesmo), quanto à culpabilidade (censura-se mais
intensamente quem produz evento mais grave) e quanto à punibilidade (a
sanção do crime consumado é mais severa).
BETTIOL ("Diritto Penale", Cedam, Padova, 1976, 9ª ed., p. 533) observa
que a tentativa se considera crime imperfeito só e enquanto relacionado com a
consumação. Todavia, quando à estrutura, apresenta todos os elementos
indispensáveis à configuração de um delito. A distinção, acentua, é quanto à
objetividade jurídica: constitui perigo de lesão e não lesão efetiva ao bem
jurídico.
Assim, a tentativa é um tipo; a consumação, outro tipo. Impõe-se pensar
normativamente e não com o fato bruto!
Dessa conclusão decorrem conseqüências. Registro uma. A pena deve ser
menor. A sanção é pensada também quanto ao impacto da conduta no bem
jurídico.
O magistrado, de modo geral, quando vai aplicar a pena relativa à tentativa,
raciocina como se estivesse diante do crime consumado, limitando-se,
simplesmente, à final, a fazer a redução de um a dois terços. Como se o tipo de
tentativa não tivesse a sua cominação. Dir-se-ia: a pena cominada à tentativa de
homicídio é de reclusão de 06 a 20 anos, com a mencionada redução de um a
dois terços. Quem assim pensa confere à tentativa a natureza de causa especial
de diminuição de pena. Não corresponde à realidade normativa. Em se levando
em conta a referida pena, reduzindo-se o máximo (no grau mínimo), ter-se-ão 02
anos; a mesma operação, considerada agora a redução mínima (no grau
máximo), será de 13,4 anos.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
200
Verifica-se, pois, que a tentativa de delito, em verdade como tipo próprio
(inciso II, do art. 14), tem também penas próprias, que não se confundem com as
do delito propriamente dito (inciso I, do art,. 14), e por isso mesmo não se deve
simplesmente aplicar a pena do crime consumado com a redução preconizada
no parágrafo único do art. 14. Deve-se, sim, ser aplicada a pena própria para a
tentativa, que em abstrato é prevista pela redução determinada nesse dispositivo
em relação a estipulação para o crime consumado para, então, serem
encontrados os seus limites mínimos e máximos, e somente a partir daí, partir-se
para a individualização da pena para o caso concreto, como previsto no art. 59,
do Código Penal.
Inobstante isso, veja-se, na ementa a seguir, o posicionamento da 7ª
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
250
, que bem
reflete a maneira como a questão vem sendo tratada por nossas Cortes de
Justiça.
A redução própria da tentativa só incide após obtido o apenamento do
correspondente crime consumado, constituindo-se na última operação a ser
efetuada, só superada pelos índices próprios dos concursos de crimes. Há
inversão na ordem das operações, se o cálculo da tentativa preceder o da
elevação de majorante reconhecida no roubo. Índice de majoração no roubo.
Aplicado o acréscimo de metade, foi adotado o maior índice previsto,
inviabilizando-se seja mais elevado o aumento. Índice de diminuição pela
tentativa. Tratando-se de roubo consumado, pela inversão da posse sobre a
coisa, mas inexistindo inconformidade ministerial nesse ponto, só resta aplicarse a menor redução possível, ou seja, um terço, porque percorrido integralmente
o iter criminis. Suspensão condicional da pena. Tornando-se definitivo o
apenamento reclusivo em quatro anos, inviável e a concessão do benefício do
250 TJRS – ACr 698304557 – RS – 7ª C.Crim. – Rel. Des. Luis Carlos Avila de Carvalho Leite – J. 03.12.1998) in CD-Rom Júris Síntese
Millennium, ementa nº 27037501.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
201
sursis. Apelo ministerial parcialmente provido, para elevar-se a pena reclusiva e
para cassar-se o benefício do sursis.
Com a devida vênia, constata-se que realmente nossos tribunais não têm
dado ao tema, o tratamento previsto pelo legislador, como bem anotou o Ministro
Cernicchiaro.
INIDONEIDADE DOS MEIOS
O legislador de 1984 adotou em relação ao art. 17, do CPB (Código Penal
Brasileiro), — a exemplo do legislador espanhol, no inciso 2, do art. 16 —, como
bem afirmou o Desembargador Rosa de Farias, do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal (sem o destaque entre os travessões), o entendimento de que o que é
efetivamente relevante para a análise finalista do crime (ainda que tentado) é
que o meio utilizado seja ou não eficaz para o seu cometimento. Se o meio for
relativamente eficaz há crime, enquanto que, sendo absolutamente ineficaz, não
há crime a ser punido. Vê-se, assim que o legislador brasileiro, tanto quanto o
espanhol, não se importou com a intenção do agente, no sentido de saber-se se
teve ou não o desejo, ou a vontade de praticar o crime, ou ao menos de tentar a
prática do crime. Importa, sim, a objetividade dos atos praticados, ou seja, a
conduta objetivamente exteriorizada pelo agente.
Não se caracteriza, porém, a tentativa, ao menos não será punida, porque
assim quis o legislador, quando os meios empregados pelo agente mostram-se
ineficazes ou impróprios para a consumação do crime, segundo a norma contida
no art. 17, do Código Penal brasileiro, ou mesmo segundo o art. 16.1, do
espanhol, que exige a prática de “… los actos que objetivamente deberían
producir el resultado”. Se os atos praticados não são idôneos a produzir o
resultado danoso almejado (como verbi gratia o homicídio, ou a efetiva subtração
da res furtiva), não se pode então afirmar que estes atos — objetivamente —
“deberían producir el resultado”. Nessa hipótese, não há crime, nem tentado e
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
202
muito menos consumado, dada a ineficácia absoluta do meio ou por absoluta
impropriedade do objeto.
Nesse sentido é que posiciona-se a jurisprudência brasileira, a exemplo
da decisão lançada pela 1ª Turma Criminal, do E. Tribunal de Justiça do Distrito
Federal, no Recurso em Sentido Estrito — RSE nº 19990610004235, conduzida
pelo voto do Relator, retro citado, como se vê da ementa do v. acórdão 251:
– O legislador de 1984 adotou em relação ao art. 17, do CPB a teoria que
consagra a tese de não levar-se em consideração da intenção do agente,
se teve ou não o desejo e a intenção de cometer o crime de homicídio, e
sim o entendimento de que o que é efetivamente relevante para a análise
finalista do crime é que o meio utilizado seja ou não ineficaz para o seu
cometimento, pois se o mesmo for relativamente eficaz há crime, ao
passo que se o meio é absolutamente ineficaz não há crime a ser punido.
No estudo do tema encontramos na doutrina inúmeras teorias a
estabelecer conceitos e punibilidade para o denominado caso de tentativa
impossível, da mais radical de Feuerbach, denominada de objetiva, que
afirma que punir-se uma tentativa objetivamente inalcançável eqüivaleria
à punição da nuda cogitatio; passando-se à mais branda de Von Buri,
reconhecida pela doutrina como subjetiva, que pune toda e qualquer
espécie de tentativa, para chegar-se à de meio termo de Mittermeyer que
formula de modo absolutamente racional a distinção de casos de
impossibilidade absoluta ou relativa quer em relação aos meios utilizados
quer quanto ao próprio objeto do crime, e que se acha adotada pelo art.
17, do CPB. A boa doutrina vem consagrando o entendimento de
Mittermeyer de que a inidoneidade é considerada absoluta quando os
meios utilizados pelo agente são claramente impotentes para a produção
do resultado pretendido, constituindo-se assim em um obstáculo natural e
251 Juris Síntese Millennium, ementa n. 32064927; Jurisprudência da CF, art. 5º, XXXVIII, c, d; Jurisprudência do Código Penal, art. 17
e 147.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
203
eficaz à atuação da vontade, na preciosa lição de Manzini, ou quando
ação desenvolvida visa atingir um resultado que jamais será alcançado
por absoluta impropriedade do objeto, e somente nestes casos não se
pune a tentativa, pois em nenhuma hipótese o resultado pretendido será
alcançado, de modo que tal inidoneidade do meio ou do objeto tornará
impossível a configuração da tentativa do crime, daí o resultado da ação
se considerar absolutamente impossível de ser considerado tentado,
resultando por conseguinte a aplicação da regra disposta no art. 17, do
CPB. Ao contrário de tal configuração doutrinária formulada, a
denominada impossibilidade relativa quanto aos meios somente se
configurará quando os meios utilizados pelo agente, embora em tese
sejam considerados idôneos e aptos para a configuração do resultado
pretendido, não se prestam para que o mesmo seja alcançado, face ao
emprego incorreto do meio utilizado ou por conta de circunstância
intrínseca alheia ou fortuita, resultando o que Manzini denomina de
insuficiência de meios, o que possibilitará a ocorrência da tentativa. Não
pode a corte de justiça subtrair e substituir o julgamento popular,
definindo desde logo que o fato versa sobre caso de tentativa impossível
ou que representa caso de emprego de meio relativamente inidôneo para
que fosse alcançado o resultado desejado, isso decorrente tão somente
do mau funcionamento da arma utilizada pelo agente, devendo assim a
questão necessariamente ser levada à consideração do conselho de
sentença, já que dos autos constam elementos suficientes à pronúncia do
acusado. A acusação afirma por sua vez que não existindo o crime
tentado, nos moldes do disposto no art. 17, do CPB, deve a ação
desenvolvida ser considerada como configurativa do crime de ameaça,
previsto no art. 147, do CPB, todavia, tal desclassificação é impossível de
ser alcançada nesta via, eis que qualquer modificação operada por esta
corte de justiça em relação ao tema acarretará em invasão da
competência do Tribunal do Júri, ex vi do disposto no art. 5°, XXXVIII, c,
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
204
d, da Constituição Federal. Recursos conhecidos e improvidos. (TJDF –
RSE 19990610004235 – 1ª T.Crim. – Rel. Des. P. A. Rosa de Farias –
DJU 05.04.2000 – p. 38).
Dessa posição, adotada pela Corte de Justiça do Distrito Federal,
embora, por ausência de competência, porque não poderia subtrair da
apreciação do Tribunal do Júri, não tenha decidido a questão de fundo, resta
evidenciado que somente em caso de absoluta inidoneidade dos meios,
empregados pelo agente, ou de absoluta impropriedade do objeto, é que se
pode entender não ser punível a tentativa, nos moldes da norma contida no art.
17, do Código Penal brasileiro. Norma essa também existente no art. 16.1, do
Código espanhol de 1995, que exige a prática de todos, ou de parte, dos atos
que objetivamente deveriam produzir o resultado danoso.
TENTATIVA FRUSTRADA — PENA DO CRIME CONSUMADO
O Supremo Tribunal Federal tem firme orientação firmada anteriormente
a promulgação da Constituição Federal de 1988, retratada na Súmula de sua
jurisprudência, no sentido de que, quando o agente tinha a intenção de praticar
determinado delito e realiza todos os atos objetivos necessários para o fim
colimado, ainda que não logre êxito na obtenção do resultado final previsto,
pratica o crime na modalidade consumada e não meramente tentada, a exemplo
do que ocorre no roubo qualificado pela morte da vítima, ou latrocínio, quando o
homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da
vítima, consoante o enunciado da Súmula nº 610/STF :
“Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não
realize o agente, a subtração de bens da vítima”.
No ano de 1995, o Juízo de Direito da Vara Única da Comarca de
Prudentópolis, Estado do Paraná (Brasil), recebeu denúncia do Ministério
Público contra quatro pessoas que, deliberadamente em conjunto, interceptaram
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
205
um automóvel proveniente do Paraguai, que trafegava pela BR-277 — rodovia
que corta o município —, disparando tiros com arma de fogo contra o veículo,
atingindo uma pessoa que ocupava o banco traseiro do automotor, produzindolhe lesões, quando então o condutor do veículo acelerou tentando fugir dos
delinqüentes que, nessas circunstâncias evadiram-se do local com o veículo que
utilizavam, sem lograr êxito no intento de assaltar as vítimas. Com esse
comportamento, segundo a denúncia, os acusados teriam praticado figura típica
do crime de roubo impróprio (art. 157, § 1º, do Código Penal), na forma tentada
(art. 14, II, do mesmo Código).
Durante a instrução do feito restou comprovada a conduta imputada aos
acusados, em especial o fato de não terem logrado êxito no intento de subtrair
coisa alheia móvel para si, ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência
a pessoa (caput), ou pelo emprego de violência contra pessoa ou grave ameaça,
a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou
para terceiro (§ 1º), porque o condutor do automotor interceptado imprimiu-lhe
maior velocidade após os tiros que feriram a babá dos filhos que se encontrava
no banco traseiro, conseguindo fazer com que os meliantes desistissem do
intento inicial.
Em tais circunstâncias, sustenta a mais abalizada doutrina, haver dois
entendimentos diferentes. Pelo primeiro, que é o predominante, se entende ser
inadmissível a tentativa, porque ou o agente usa violência ou grave ameaça
após a subtração (e o crime estará consumado), ou não a usa e, então, o crime
não será roubo impróprio, mas furto consumado ou tentado. Já pelo segundo
entendimento, pode haver tentativa de roubo impróprio, quando, depois de
conseguir subtrair a coisa, o agente é preso ao tentar usar violência ou grave
ameaça para assegurar a posse do objeto ou sua impunidade. Para ambas as
correntes, se a subtração é apenas tentada e há violência ou ameaça na fuga,
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
206
como na espécie citada, o crime será de furto (art. 155) em concurso com crime
(art. 70) contra a pessoa (art. 129) e não tentativa de roubo. 252
Não há divergência na doutrina e na jurisprudência, quanto a se tratar da
figura delituosa, na modalidade consumada, na espécie de roubo, se o agente
teve, ainda que por breve tempo, a posse da coisa subtraída. Importa é que o
dominus já não pode exercer seu direito sobre a res, porque ela, ou parte dela,
desaparece definitivamente na fuga do agente, não sendo o crime meramente
tentado.253 Essa leitura é pacífica até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal,
que já afirmou.254
Ao julgar o HC 69753, que versava hipótese análoga à presente, em que
também não houvera sequer perseguição, esta primeira turma, sendo relator o
eminente Ministro Sepúlveda Pertence, assim decidiu: “Roubo. Consumação. A
Jurisprudência do STF, desde o RE 102.390, 17.09.1987, Moreira Alves,
dispensa, para a consumação do roubo, o critério de saída da coisa da chamada
'esfera de vigilância da vítima' e se contenta com a verificação de que, cessada a
clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da 'res furtiva', ainda
que retomada, em seguida, pela perseguição imediata; com mais razão, está
consumado o crime se, como assentado no caso, não houve perseguição,
resultando a prisão dos agentes, pouco depois da subtração da coisa, a
circunstância acidental de o veículo, em que se retiravam do local do fato, ter
apresentado defeito técnico”.
No entanto, no caso citado (da comarca de Prudentópolis), em que pese
o posicionamento doutrinário referido (Delmanto), o juiz do feito, entendeu,
porém, ser necessário adequar-se a classificação do tipo imputado ao fato
252 DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 3ª ed. Atualizada e ampliada por Roberto Delmanto. Rio de Janeiro: Renovar, 1991,
pág. 157.
253 KRAMER, Vânia Maria da Silva, in Sentença nos autos de ação penal nº 209/2000, da 1ª Vara Criminal, de Ponta Grossa, Paraná.
254 STF, HC 74.376/RJ – 1ª T. – Rel. Min. Moreira Alves – DJU 07.03.1997) in: CD-Rom Síntese Millennium, ementa nº 5010733
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
207
descrito na inicial e comprovado durante a instrução, porque, embora tenha a
denúncia imputado a prática de tentativa de roubo impróprio, tratava-se na
espécie de crime consumado, dada a consumação da violência imposta ao
menos a uma das vítimas (a que foi atingida pelo projétil disparado), em que
pese nada houvesse sido subtraído das vítimas, aplicando-se aí o mesmo
raciocínio contido na Súmula 610/STF. 255
É certo que a Súmula invocada não trata de roubo impróprio, mas de
latrocínio (art. 157, § 3º). No entendimento sumulado, considera-se que o agente
praticou atos próprios do latrocínio, posto que a morte da vítima só foi produzida
com o intuito de subtrair coisa móvel alheia, e foi decorrente do excesso de
violência empregada, encontrando-se nitidamente demonstrado (e comprovado)
o nexo causal entre as condutas integrativas do tipo almejado pelo agente (roubo
impróprio), tal como no entendimento da Súmula referida.
Se esse entendimento é aceito para um delito considerado mais grave,
como o latrocínio, onde a ausência de subtração da res furtiva não impede a
caracterização do tipo, dada a consumação da violência extrema empregada,
que leva a morte da vítima, também deve ser aceito para caracterização de
roubo impróprio de forma consumada e não meramente tentada, quando o
agente pratica atos próprios dessa figura penal, produzindo graves lesões na
vítima, em que pese não tenha logrado êxito na subtração de bens. Aliás, nesse
mesmo sentido vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça, desde o Recurso
Extraordinário nº 102.490, como asseverado no Recurso Especial nº 93593/PR
256
(onde também se menciona o Resp 58.205-9/SP) in verbis:
1. Segundo precedentes da suprema corte e deste tribunal, para a
consumação do crime de roubo é irrelevante a posse tranqüila da coisa,
255 Sentença nos autos de ação penal nº 17/95, prolatada em 03 de novembro de 1995, na Comarca de Prudentópolis, Estado do
Paraná.
256 STJ – REsp 93593 – PR – 6ª T. – Rel. Min. Anselmo Santiago – DJU 04.05.1998 – p. 214) in CD-Rom, Júris Síntese Millennium,
ementa nº 16038045.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
208
ou seu lapso de tempo, ou ter ela saído da esfera de vigilância da vítima,
bastando, tão-somente, a cessação da violência ou grave ameaça,
circunstância indicada pela fuga do assaltante.
2. Recurso conhecido e provido.
É verdade que no aresto citado, a vítima chegou a ser despojada da posse
de um par de tênis quando deixava um estabelecimento comercial, mas obtendo
emprestado um revólver e um veículo saiu imediatamente ao encalço do ladrão
obtendo a imediata restituição da coisa, além de conseguir prender o agente. No
entanto, a tendência de entendimento é no sentido de que não importaria a
efetiva apreensão ou detenção da coisa pelo meliante para restar configurado o
crime. Para a caracterização, modalidade consumada, bastava a cessação da
violência ou da grave ameaça empregada contra a vítima.
No caso antes narrado, tal como nas circunstâncias da Súmula 610/STF, ou
mesmo segundo o entendimento do STJ, houve absoluta eficácia do meio e
propriedade do objeto utilizado para o fim de lesar o bem jurídico protegido,
havendo lesão física da vítima com flagrante intuito pelo agente, de subtrair seu
patrimônio. Mutatis mutandis, são duas circunstâncias idênticas onde não se
justifica que em uma se considere o delito como consumado e em outra apenas
como tentado, também não se tratando, por fim, da antijuridicidade contida no
art. 17, do Código Penal. A lesão da vítima só foi produzida pelo meliante, no
exclusivo intuito de apoderar-se de pertences que todos os ocpantes do veículo
traziam consigo. A lesão decorrente do excesso de violência empregada,
encontrando-se nitidamente presente nexo causal entre as condutas integrativas
do tipo almejado pelo agente (roubo impróprio), como já dito. Conseqüentemente
não poderia ser outra a conclusão do intérprete.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
209
CONCLUSÃO
Enfim, não há como negar, a tentativa constitui tipo autônomo de crime,
claramente previsto pelo legislador na parte geral do Código Penal, com as
respectivas penas que lhe são próprias, previstas, como mero referencial,
juntamente com as diversas modalidades de crime estabelecidos na parte
especial. A pena da tentativa não pode ser considerada, in abstrato como a do
crime consumado, aplicada in concreto, para somente então proceder-se a
redução, mínima ou máxima, prevista pelo legislador no parágrafo único do art.
14. A pena da tentativa deve ser considerada in abstrato, pela redução também
in abstrato, das penas para os respectivos crimes consumados, para somente a
partir daí ser aplicada individualizadamente, in concreto, como o exige o art. 59,
do Código Penal, segundo demonstrado, em que pese julgadores de relevo
venham adotando critério diverso, que, ao que se observa é fruto de mera
acomodação porque despedidos de maior fundamentação que justifique tal
exegese.
Desse breve estudo, também se constata que o entendimento contido na
Súmula 610/STJ, não só pode, como deve ser adotado (e felizmente já vem
sendo), para outras modalidades do crime de roubo, além do latrocínio, punindose com maior severidade e sem maiores devaneios, em casos de graves lesões
que experimentadas por vítimas de assaltantes que não logram êxito em levar a
termo seu intento, seja por reação das próprias vítimas, seja pelas circunstâncias
do local onde os atos delituosos são praticados, mormente em se considerando
que o legislador pátrio pune com maior severidade os crimes contra o patrimônio
do que os crimes contra a pessoa, como se constata da pena fixada para a
hipótese do § 1º, do art. 157, e do § 2º, do art. 129, sendo que nesta exige-se,
ainda, a presença de graves seqüelas.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
210
Vale aqui observar que ao intérprete não é dado, a propósito de interpretar
a lei, fazer distinções que o legislador não fez ao acolher certas normas de
comportamento. Urge, portanto, que situações como essas sejam melhor refletidas
pelos tribunais do país, e até mesmo universalmente, contribuindo-se, assim, para
uma melhor resposta do Judiciário aos graves problemas sócio/criminais
enfrentados no dia a dia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERNICCHIARO, Luiz Luiz Vicente. Pena - Tentativa - Teoria geral do tipo Configuração jurídica. Revista Jurídica vol. nº 239-SET/97, (In Júris Síntese
Millennium).
CONTRERAS, Joaquín Cuello. El estado de la discusión doctrinal em torno al
fundamento de la tentativa. Caderno: Unorp – Centro Universitario do Norte
Paulista; São José do Rio Preto. São Paulo.
DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 3ª ed. Atualizada e ampliada por
Roberto Delmanto. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.
MÉNGUEZ, José Moyna, et all. Código Penal Comentários y jurisprudencia.
Editorial Colex, 1999, Madrid.
CD-Rom Júris Síntese Millennium, Legislação, Doutrina e Jurisprudência
INTERNET: http//: www.stj.gov.br
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
211
UMA VISÃO CRIMINOLÓGICA DO ADOLESCENTE
INFRATOR257
RUDI RIGO BÜRKLE
Promotor de Justiça da Família, Infância e Juventude de Pato Branco - PR. Professor de
Criminologia na Faculdade Mater Dei. Mestrando pela FUNDINOPI.
RESUMO: O artigo retrata as reflexões do autor acerca dos dez anos de vigência do
Estatuto da Criança e do Adolescente, lamentando o desconhecimento e não aplicação
da lei que foi criada justamente para garantir direitos fundamentais às crianças e
adolescentes. O autor discute as idéias de modificação do Estatuto, refutando
especialmente a tese de redução da idade de imputabilidade penal (dezoito anos). O
texto alerta para os fatores criminógenos que influenciam na prática de atos infracionais,
ligados às condições sociais e econômicas que moldam a vida (educação) das crianças
e adolescentes. Aborda questões específicas como o uso e tráfico de drogas,
salientando a necessidade de o Estado e a sociedade intervirem positivamente para o
exato cumprimento do Estatuto.
ABSTRACT: This article portrays the author’s reflections upon the ten years of ruling
concerning the Statute of Children and Adolescents, lamenting on the unfamiliarity and
non-application of the law that was created exactly to guarantee basic rights to the
children and adolescents. The author discusses about the ideas for altering the Statute,
refuting especially the thesis of age reduction regarding criminal imputability (eighteen
years old). The text alerts for the criminal factors that influence the practice of infractions
linked to the social and economic conditions that shape the children and adolescents’ life
(education). It approaches specific issues as the use and traffic of drugs, pointing out the
necessity for the State and society to intervene positively for the accurate fulfillment of the
Statute.
257 O título original do presente trabalho é “Guerreiro Menino” e fora desenvolvido com base em palestra proferida no "Seminário 10
anos do ECA, direitos... e os deveres?", realizado nos dias 06 e 07 de novembro de 2000, na cidade de Pato Branco — PR.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
212
O ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE E UMA NECESSÁRIA
DISCUSSÃO
No momento em que se está completando 10 (dez) anos de Estatuto da
Criança e Adolescente — ECA, se constatam algumas situações ainda
inusitadas, quais sejam: o desconhecimento e a não aplicação da lei que foi
criada com o intuito de garantir um mínimo de dignidade às crianças e
adolescentes e para o que se teve de estabelecer como prioridade absoluta e
integral o atendimento de suas necessidades de educação, saúde, lazer, família,
cultura (artigo 227, caput, da Constituição Federal e artigo 40, parágrafo único,
do Estatuto da Criança e Adolescente — ECA); não se conseguiu implantar as
políticas básicas de atendimento às crianças, adolescentes e suas famílias; não
se reconheceu a necessidade de uma intervenção positiva na realidade social
para mudança do presente contexto, cada vez mais decadente e individualista;
e, principalmente, os que são responsáveis por garantir os direitos básicos das
crianças e adolescentes, na grande maioria, não sabem o que fazer, o quanto
fazer, o porque fazer, para quem fazer, e os demais, não responsáveis, não
sabem porque, mas criticam e afirmam que a lei (ECA) apenas estabeleceu
direitos às crianças e aos adolescentes, afirmando ser ela a responsável pelo
aumento da evasão escolar, pelo uso de drogas, pela prostituição, pela
criminalidade.
E é com a preocupação de que tal situação se dissemine em nosso meio
social, passando a ser tomada como verdade e, decorrente disso, com
perspectiva de alteração de uma lei que sequer teve “oportunidade de
demonstrar para o que veio e já visualizando a possibilidade da referida
alteração, principalmente no que se refere à responsabilidade penal, com
redução da idade de inimputabilidade penal, hoje estabelecida em 18 anos
(artigo 27 do Código Penal), que se faz necessário traçar algumas linhas de
esclarecimento e alerta sobre o tema e incentivar a conjugação de esforços para
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
213
manutenção da norma e sua exata aplicação e implementação”.
Destaca-se que essa necessidade foi constatada justamente quando
realizou-se a coleta de assinaturas, em manifestação contrária à redução da
idade de inimputabilidade penal, e se deparou com um quadro que, depois de
melhor analisado, demonstrou-se típico: os alunos do Curso de Direito, que já
haviam tido oportunidade de ter uma orientação sobre Criminologia
258
e haviam
desenvolvido um trabalho de campo, no qual realizaram entrevistas com
adolescentes autores de atos infracionais, seus pais e responsáveis, visitaram
seus lares e os estabelecimentos responsáveis pelo acompanhamento das
medidas sócio-educativas, assinaram, num percentual de 90% (noventa), o
referido
documento,
achando
absurda
a
pretensão
de
redução
da
inimputabilidade penal. Os alunos do primeiro período do curso, no entanto, que
apenas conhecem a realidade pela informação da mídia, a realidade de seus
lares, de suas famílias e de seus arredores, ou mesmo, reconhecem a lei e a
pena como solução para tudo, rechaçaram a participação no movimento,
afirmando que lugar de bandido é realmente na cadeia, ficando a adesão em não
mais do que 5% (cinco).
O que se tentará trazer no presente texto, portanto, é nada mais do que
aquela realidade com a qual se depararam os alunos ao realizarem o trabalho
com adolescentes autores de atos infracionais e que lhes possibilitou
compreender que nem tudo que reluz é realmente ouro e que a ação que parece
ser livre e consciente, uma opção do adolescente, pode, verdadeiramente, não
estar compreendida nesse contexto e deve ser tomada sob uma ótica social e
legal diferenciada.
Para tanto se fará a análise de alguns fatores que influenciam a
formação do cidadão, de sua “personalidade”, fatores esses basicamente
258 Criminologia é a ciência que estuda o delito, o delinqüência, a vítima e o controle social, verificando a natureza da personalidade e
os fatores criminógenos (endógenos e exógenos) do homem criminoso; as geratrizes da criminalidade; o grau de nocividade social, a
insegurança e a intranqüilidade que ela é capaz de causar à sociedade e a seus membros; os meios capazes de prevenir a incidência e
reincidência no crime através de uma política de erradicação do marginalismo, da profilaxia criminal e da recuperação do delinqüente
para a sociedade.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
214
exógenos, externos, deixando-se de lado os fatores endógenos, biológicos ou
psicológicos, eis que de menor relevância e possibilidade de eliminação, senão
através das ciências humanas; pode-se, assim, citar como fatores exógenos: 1
— fatores sócio-familiares: a direta influência da família sobre os seus membros,
com assimilação de suas características e ensinamentos; 2 — fatores
ambientais: influência das pessoas e das condições sob as quais se vive; 3 —
fatores sócio-ético-pedagógicos: influência de todo o processo de aculturamento
social do cidadão, desde a informação da escola até a informação da mídia que
por si é colhida e assimilada; 4 — fatores econômicos: influência direta da
situação econômica sob a qual está sujeita o indivíduo e, decorrente dessa, a
maior ou menor dificuldade de acesso às condições adequadas de vida, saúde,
educação, lazer, etc.
A AÇÃO INDIVIDUAL E O DETERMINISMO SOCIAL DO CRIME
Deixa-se de fazer uma análise meramente conceitual dos fatores
criminógenos e da influência dos mesmos na conduta humana e se fará uma
construção exemplificativa desses fatores para se demonstrar a importância e,
mesmo, um elevado grau de determinismo na conduta do cidadão e mais
especificamente do adolescente, buscando facilidade de compreensão e
assimilação do tema.
Assim já se pode informar que o contexto, normalmente encontrado na
família dos adolescentes autores de atos infracionais, é de absoluta miséria e
disfunção (renda per capita inferior a R$ 20,00; residência de pequenas
proporções, de chão batido, peça única, sem divisórias, água, luz ou esgoto;
condições de higiene precárias; parca alimentação; ineficiente atendimento
médico-hospitalar; família numerosa; filhos com idades próximas, de diversos
pais, diversas mães, com pais, mães ou ambos em local ignorado, sendo criados
por avôs, irmãos, tios, amigos; membros alcoólicos, viciados em droga,
entregues à prostituição, delinqüentes), e é a partir daí que temos de passar a
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
215
analisar seu desenvolvimento, pois é inserido nesse contexto que o cidadão
adquire em torno de 80% (oitenta) de toda sua bagagem constituidora da
“personalidade”.
Começam, portanto, com o nascimento as dificuldades desse cidadão,
pois fruto de um relacionamento desarmonioso e, normalmente, não desejado, o
que, num primeiro momento, já faz com que seja colocado em segundo plano,
como um atrapalho de vida, razão pela qual não recebe a adequada
alimentação, a tão difundida amamentação materna, os mínimos cuidados
higiênicos ou médicos, e, apesar de indefeso, é constantemente agredido oral e
fisicamente pelos demais membros da família, principalmente quando chora e os
deixa impacientes.
Mas ele vence, consegue crescer nesse contexto, inicia seus primeiros
passos, e é nesse momento, novamente, que necessita da ajuda de sua família,
estabelecendo seus limites, dando o primeiro “tapinha” em sua mão para lhe
mostrar que nem tudo pode ser seu, que há coisas que não pode ter, não pode
tocar, não pode danificar, que pertencem a outras pessoas, o que não acontece,
ou se realiza de forma desastrosa, através de intensas surras.
Não aprendeu os seus limites, e aqui cabe uma afirmação, “somos
delinqüentes natos”, uma vez que nascemos sem qualquer dos limites sociais. O
que conhecemos como certo ou errado, legal ou ilegal, justo ou injusto, moral ou
imoral, foram valores adquiridos em nosso desenvolvimento, foram informações
obtidas de nossos pais, familiares, amigos, escola, meios de comunicação,
enfim, da sociedade em que vivemos, e tanto é verdade que os limites do
cidadão variam conforme a sociedade em que viveu e de sociedade para
sociedade.
E esse cidadão que não aprendeu seus limites, passa a conviver com
filhos de outras famílias disfuncionais, os quais também não receberam a devida
orientação, por aquela série de fatores que já foram alinhavados e pelo fato dos
pais não terem tempo para os mesmos, pois saem de casa durante a
madrugada, retornam tarde e cansados, sem qualquer disposição de conversar
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
216
com seus filhos, ficam eles, então, pelas ruas, “aprendendo com a vida” e
sujeitos a adoção, "adoção por traficantes", o que normalmente ocorre.
Têm-se uma saída. Chega a idade escolar e é a grande oportunidade
que esse cidadão tem de apreender “coisas boas”, “coisas certas”, de alguém
influenciá-lo positivamente, acontece, no entanto, que ele vai à escola faminto,
sujo, não tem material, em casa ninguém lhe faz qualquer cobrança para
estudar, assim, seus colegas não querem contato consigo, suas notas não
satisfazem a necessidade do ensino, as brincadeiras e as ruas lhe parecem mais
atraentes, os professores não têm mais paciência consigo, apenas xingam e
zombam, incentivando que não fique na escola – afinal atrapalha os demais
colegas e a escola é local para quem tem interesse de aprender, como se esse
interesse não devesse ser despertado.
Outra saída não lhe resta, a rua é seu lugar e é ali que deve conquistar
seu espaço, dividí-lo com seu grupo e tentar recuperar sua auto-estima,
principalmente tentando se destacar no grupo escolhido.
A CRIMINALIDADE: UMA VIA DE MÃO-ÚNICA
O uso de drogas passa a ser constante, afinal assim fica eufórico, sua
vida toma cores, seus sonhos parecem possíveis, encontra o amparo e a paz
que desejava. Mas há um porém, isso tudo tem um custo, já que a droga tem
que ser comprada ele consegue, então, comercializá-la ou passa a praticar
outros delitos (atos infracionais).
Inicia-se aí o seu ciclo, o seu ciclo da delinqüência, que passa a ser
definitivo quando marcado pela intervenção das instituições, quando apreendido
pela primeira vez, pois é assinalado com o estigma de criminoso, passa a ser
perseguido pelas autoridades policiais e o preconceito social não lhe permite
qualquer acesso as outras pessoas, que quando o vêem, observam-no com
receio, desconfiança e medo, afinal de contas é um “bandido”, não importando
se o seu maior crime foi subtrair uma peça de roupa ou alguns trocados. O valor
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
217
pouco importa, o que importa mesmo é a sua situação de miséria, pois se assim
não fosse, qual é o tratamento que mereceriam os autores de crimes do
colarinho branco, principalmente agentes públicos e empresários sonegadores
que lesam com maior gravidade a coletividade (“aliás, em nosso país sonegação
parece não existir”)?
E qual a chance que tem ele de sair dessa situação? De mudar de vida?
Talvez pelo adequado atendimento que o poder público tem dado às famílias
dessas crianças, pelas adequadas medidas que se têm aplicado e feito cumprir
nas Varas da Infância e Juventude, ou talvez porque a sociedade mereça, afinal
deu a esse cidadão tudo aquilo que a lei lhe garantia: família, lar, saúde,
educação, lazer.
Ora, não sabe esse cidadão que, para interromper o seu ciclo de
delinqüência, basta que tenha vontade? Afinal de contas ingressou nele porque
quis, tinha, como considera a lei penal, livre arbítrio, ninguém o obrigou a fazer
essa opção de vida, ao invés de estudar, de trabalhar; assim, interrompa sua
jornada antes que atinja a maioridade penal e a sociedade consiga colocá-lo
atrás das grades para não incomodar mais e para não manchar os belos
cenários sociais com sua presença.
Afinal, ele também só faz o que faz porque a lei não o pune, não prevê
qualquer sanção aos adolescentes autores de atos infracionais, só os protege, é
a completa irresponsabilidade por seus atos, conforme alguns divulgam de boca
cheia, sedentos pela vingança estatal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desconhecem os "críticos” que todas as espécies de penas previstas
aos imputáveis pelo direito penal são previstas como medidas sócio-educativas
pelo Estatuto da Criança e Adolescente, com uma só diferença, devem ser
tratadas e aplicadas como medidas sócio-educativas que são. Não devem ser
aplicadadas para pura vingança estatal, retribuição, mas para socialização e
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
218
educação
desse
cidadão
que
está
em
processo
de
formação,
de
desenvolvimento, e por isso precisa que as coisas lhes sejam ditas, mostradas,
que lhe seja dada a oportunidade de aprender aquilo que “a vida” não pôde
ensinar.
Aliás, tem que se confirmar textualmente que é falaciosa a afirmação de
que se estabeleceu a absoluta impunidade dos adolescentes, razão pela qual
estaria havendo aumento do número de delitos praticados por eles, primeiro
porque, como visto, a origem desse aumento não está aqui, ficou para trás,
muitos anos antes, logo após o nascimento desse adolescente, e não será essa
lei punitiva que mudará isso; segundo, porque o aumento vem ocorrendo em
todas as faixas etárias da população, principalmente, com as mulheres que
também vivem um momento social diferenciado, decorrente da conquista de
respeito social e igualdade com os homens; e, terceiro, porque o aumento é
absolutamente presente em todas as sociedades, inclusive naquelas que
aplicam penas capitais, o que demonstra que não é o direito penal, através do
crime e da pena que mudará a realidade social.
Para finalizar, quer-se lembrar a letra de uma música de Gonzaguinha, a qual,
aliás, inspirou o título original do presente trabalho, “Um homem também chora,
Guerreiro Menino”, e que bem identifica a realidade desses adolescentes autores
de atos infracionais, verdadeiros guerreiros meninos:
Um homem também chora menina morena, também deseja colo, palavras
amenas.
Precisa de carinho, precisa de ternura, precisa de um abraço da própria candura.
Guerreiros são pessoas, são fortes, são frágeis, guerreiros são meninos por
dentro do peito.
Precisam de um descanso, precisam de um remanso, precisam de um sonho
que os torne perfeitos.
É triste ver meu homem guerreiro, menino, com a barra de seu tempo, por sobre
os ombros, eu vejo que ele sangra, eu vejo que ele berra a dor que traz no peito.
pois anda e ama.
Um homem se humilha se castram seus sonhos, seu sonho é sua vida e vida é
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
219
trabalho, sem o seu trabalho um homem não tem honra, sem sua honra se
morre, se mata [...]
Experimentemos deixar chorar esses guerreiros meninos, homens fortes,
mas também tão frágeis, demo-lhes colo, carinho, mas também o seu remanso,
seu lar; tentemos prestigiá-los com palavras amenas, que incentivem seus
sonhos; com um abraço vamos conduzí-los pelo tempo, mostrando que a ferida
que sangra é marca do amor que ainda trazem no peito e que, por ainda tê-lo,
podem conquistar seus sonhos e que seus sonhos somente dependem de seu
trabalho, com o qual resgatarão sua honra, honra que dará novo sentido as suas
vidas e não os fará matar nem morrer.
Experimentemos deixar e fazer aplicar a lei que assegurou aos nossos
guerreiros meninos com plenitude e primazia as suas garantias fundamentais;
experimentemos conhecer os nossos guerreiros meninos e suas realidades; ao
invés de criticar e acusar, experimentemos olhar o nosso passado e o nosso
presente, o que fomos, o que somos, mas, principalmente, o que fazemos, o que
queremos para os nossos filhos. Será que essas garantias, que tanto se criticam,
não poderão dar ao nosso guerreiro menino a vida digna que as nossas
condições pessoais não permitam fazê-lo? Será que amanhã meu filho não será
esse guerreiro menino e aí será tarde para tentarmos fazer voltar atrás a lei?
Pois talvez mais 10 anos sejam necessários para que alguém ouça os nossos
brados de socorro, brados que só agora, 10 anos depois, você está ouvindo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARATA, Alessandro. Criminologia crítica e Crítica do Direito Penal, Tradução
por Juarez Cimo dos Santos, Rio de Janeiro: Revan, 1997.
_____________. Criminologia crítica e política penal alternativa. Tradução por J.
Sérgio Fragoso. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, n.23, pp. 721,jul./dez. 1978.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução por Torrieri Guimarães.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
220
São Paulo: Hemus, 1983.
COSTA, Álvaro Mayrink da. Raízes da sociedade criminógena. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 1997.
CURY, GARRIDO & MARCURA, Estatuto da Criança e Adolescente Anotado, 2ª
ed. São Paulo: RT, 2000.
CURY, MUNIR; SILVA, Antônio Fernando do Amaral; MENDEZ, Emilio Garcia
(organizadores); Estatuto da criança e do Adolescente Comentado. 3ª ed. São
Paulo: Ed. Malheiros, 2000.
ESCOBAR, Raul Tomas. Elementos de Criminologia. Buenos Aires: Editorial
Universidad, 1997.
FREITAS, Marcos Cézar (organizador), História Social da Infância no Brasil, São
Paulo: Cortez editora, 1997.
LOMBROSO, Cesare. O homem criminoso. Tradução por Maria Carlota
Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1983.
MOLINA,
Antônio Garcia Pablos de.
Criminologia: introdução
a
seus
fundamentos teóricos. 2ª ed. São Paulo: RT, 1997.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
221
A RESPONSABILIDADE PENAL DOS MENORES NA
ESPANHA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
José Sebastião Fagundes Cunha
Juiz de Direito no Paraná, Professor Universitário (Coordenador Pedagógico da
Faculdade de Direito dos Campos Gerais – CESCAGE), Mestre em Direito pela
PUC-SP e Doutorando pela UFPR.
RESUMO: O artigo trata do tema "imputabilidade penal" no direito espanhol, analisando
a "Lei Orgânica de Responsabilidade Penal do Menor", que dispõe sobre as hipóteses de
atos infracionais causados por menores e o modos de reação do Estado e da própria
sociedade, de forma sancionadora e educativa, visando tutelar os interesses do menor,
sem olvidar dos interesses da vítima. O autor menciona a possibilidade de o menor
causador do ato infracional reparar o dano causado e conciliar-se com a vítima,
buscando o acordo. Descreve ainda as diversas medidas previstas em lei em casos de
atos infracionais, como: a admoestação, a prestação de serviços à comunidade, o
internamento (regimes aberto, semi-aberto e fechado), a liberdade vigiada, as tarefas
sócio-educativas e o tratamento ambulatorial, dentre outras.
ABSTRACT: The article deals with the "criminal imputability" subject in the Spanish law,
analyzing the "Organic Law of Criminal Responsibility of the Minor", that holds the
hypotheses on infractions caused by minors and the forms of the State and society itself
reactions, of sanctioning and educative forms, aiming at tutoring the minor’s interests,
without neglecting the victim’s interests. The author mentions the possibility of the minor
causing the infraction to repair the damage and to conciliate with the victim, searching for
an agreement. He still describes the diverse procedures due to the law in cases of
infractions, as: the admonition, the rendering of services to the community, the internment
(open, half-open and closed systems), the parole, the social-educative tasks and the
ambulatorialtreatment, amongst others.
No 1º Congresso Internacional de Justiça – Uma Justiça para o III Milênio,
realizado nos dias 8 a 10 de dezembro de 1997, em Fortaleza, pela Associação
Cearense de Magistrados, tivemos o privilégio de propor a discussão da
alteração de alguns pontos do Estatuto da Criança e do Adolescente, em
especial os relacionados ao jovem com idade de 18 a 21 anos, assim como a
aplicação de medidas concernentes a terapias relacionadas com questões
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
222
patológicas envolvendo o quadro psíquico e a mantença da idade limite de 18
(dezoito) anos para a responsabilidade criminal entre outras.
De fato, caberia aqui desenvolver idênticos fundamentos aos lá
sustentados, ou ainda, trazer extensas citações de estudos de caráter
multidisciplinar que fundamentam o nosso entendimento; contudo, nossas
reflexões em voz alta foram naquela oportunidade ouvidas por Magistrados de
diversos países que ali se encontravam presentes, dentre os quais da Espanha
e, por uma feliz coincidência, exatamente as questões e sugestões por nós
dadas a conhecer, estão conforme a lei recentemente aprovada na Espanha.
Assim, este trabalho é feito com base na recente legislação espanhola,
com o fito de utilizá-la como referência e fundamento. Redigimos com cuidado
de utilizar as expressões e conceitos do Direito daquele país, razão pela qual, o
generoso leitor, se mais afoito, poderá entender equivocada a forma ou o
conteúdo; não se trata disto, mas da utilização dos conceitos como são além do
mar.
No momento em que aqui ocorrem os debates a respeito de eventuais
alterações, cingindo-se a discussão eminentemente a respeito da idade a partir
da qual possa recair a responsabilidade penal, tanto no Congresso Nacional,
como na sociedade civil, entendemos importante abordar outras questões de tal
quilate, que podem desbordar em soluções até então não enfrentadas, ainda que
à guisa de discussão.
A promulgação da recente Lei Orgânica reguladora da responsabilidade
penal dos menores, na Espanha, era uma necessidade imposta pelo
estabelecido na Lei Orgânica 4/1992, de 5 de junho, sobre reforma da Lei
reguladora da competência e do procedimento dos Juizados de Menores, na
moção aprovada pelo Congresso dos Deputados em 10 de maio de 94 e no
artigo 19 da vigente Lei Orgânica 10/1995, de 23 de novembro, do Código Penal.
A Lei Orgânica 4/1992, promulgada como conseqüência da sentença do
Tribunal
Constitucional
36/1991,
de
14
de
fevereiro,
que
declarou
inconstitucional o artigo 15 da Lei de Tribunais Tutelares de Menores, texto
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
223
refundido de 11 de junho de 48, estabelece um marco flexível para que os
juizados de Menores possam determinar as medidas aplicáveis a estes enquanto
infratores penais, sobre a base de valorar especialmente o interesse do menor,
entendendo por menores, para tais efeitos, as pessoas compreendidas entre os
doze e os dezesseis anos. Simultaneamente, encomenda ao Ministério Fiscal a
iniciativa processual e lhe concede amplas faculdades para acordar o término do
processo com a intenção de evitar, dentro do possível, os efeitos aflitivos que o
mesmo poderia chegar a produzir. Assim mesmo, configura a equipe técnica
como instrumento imprescindível para alcançar o objetivo que perseguem as
medidas e termina estabelecendo um procedimento de natureza sancionadoraeducativa, ao que outorga todas as garantias derivadas de ordenamento
constitucional, em sintonia com o estabelecido na aludida sentença do tribunal
Constitucional e o disposto no artigo 40 da Convenção dos Direitos da Criança,
de 20 de novembro de 1989.
Dado que a expressada Lei Orgânica reconhecia a si mesma –
expressamente – o caráter de uma reforma urgente, a qual adianta parte de uma
renovada legislação sobre reforma de menores, que será objeto de medidas
legislativas posteriores, é evidente a oportunidade da presente Lei Orgânica, que
constituiu essa necessária reforma legislativa, partindo dos princípios básicos
que já guiaram a redação daquela (especialmente, o princípio do superior
interesse do menor), das garantias do ordenamento constitucional e das normas
de Direito Internacional, com particular atenção à citada Convenção dos Direitos
da Criança. Espera-se responder deste modo às expectativas criadas na
sociedade espanhola, por razões, em parte conjunturais e em parte
permanentes, sobre este tema concreto.
Os princípios expostos na moção aprovada unanimemente pelo
Congresso dos Deputados no dia 10 de maio de 1994, sobre medidas para
melhorar o marco jurídico vigente de proteção do menor, referem-se
essencialmente ao estabelecimento da maioridade penal aos dezoito anos
e a promulgação de uma lei penal de menor e juvenil que contemple a
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
224
exigência de responsabilidade para os jovens infratores que não tenham
alcançado a maioridade penal, fundamentada em princípios orientados para a
reeducação dos menores de idade infratores, com base nas circunstâncias
pessoais, familiares e sociais, conforme assinala a própria exposição de motivos
da lei em comento.
Na Espanha, o artigo 19 do vigente Código Penal, aprovado pela Lei
Orgânica 10/1995, de 23 de novembro, fixa efetivamente a maioridade penal nos
dezoito anos e exige a regulamentação expressa da responsabilidade penal dos
menores de dita idade em uma Lei independente. Também para responder a
esta exigência se aprovou a Lei Orgânica de Responsabilidade Penal do Menor,
se bem que o disposto neste ponto no Código Penal deva ser complementado
em um duplo sentido. Em primeiro lugar assenta-se firmemente o princípio de
que a responsabilidade penal dos menores apresenta, frente à dos adultos, um
caráter primordial de intervenção educativa que transcende a todos os aspectos
de sua regulamentação jurídica e que determina consideráveis diferenças entre
o sentido e o procedimento das sanções em um e outro setor, sem prejuízo das
garantias comuns a todo justiciável. Em segundo termo, a idade limite de dezoito
anos estabelecida pelo Código Penal para referir-se à responsabilidade penal
dos menores precisa de outro limite mínimo a partir do qual comece a
possibilidade de exigir essa responsabilidade e que se concretizou, na Espanha,
nos catorze anos, com base na convicção de que as infrações cometidas pelas
crianças menores desta idade em geral irrelevantes e que, nos escassos casos
supostos em que aquelas possam produzir alarme social, são suficientes para
dar-lhes uma resposta igualmente adequada aos âmbitos familiar e assistencial
civil, sem necessidade de intervenção do aparato judicial sancionador do Estado.
Prossegue a Exposição de Motivos da Lei afirmando que, assim mesmo,
foram criados critérios orientadores da redação da Lei Orgânica, como não
poderia ser de outra maneira, os conteúdos na doutrina do Tribunal
Constitucional, singularmente nos fundamentos jurídicos das sentenças 36/1991,
de 14 de fevereiro e 60/1995, de 17 de março, sobre as garantias e o respeito
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
225
aos direitos fundamentais que necessariamente tenham de imperar no
procedimento seguido perante os Juizados de Menores, sem prejuízo das
modulações que, a respeito do procedimento ordinário, permitem ter em conta a
natureza e finalidade daquele tipo de processo, encaminhado na adoção de
algumas medidas que, como já se tem dito, fundamentalmente não podem ser
repressivas, senão preventiva-especiais, orientadas para a efetiva reinserção e o
superior interesse do menor, valorados com critérios que tenha de buscar-se
primordialmente no âmbito das ciências não jurídicas.
Como conseqüência dos princípios, critérios e orientações a que se
acaba de fazer referência, pode se dizer que a redação da Lei Orgânica foi
conscientemente guiada pelos seguintes princípios gerais: natureza formalmente
penal, porém materialmente sancionadora-educativa do procedimento e das
medidas aplicáveis aos infratores menores de idade; reconhecimento expresso
de todas as garantias que se derivam do respeito aos direitos constitucionais e
das especiais exigências do interesse do menor; diferenciação de diversos
trâmites a efeitos processuais e sancionadores na categoria de infratores
menores de idade; flexibilidade na adoção e execução das medidas
aconselhadas pelas circunstâncias do caso concreto; competência das entidades
autônomas relacionadas com a reforma; e proteção de menores para a
execução das medidas impostas na sentença e controle judicial desta execução.
A Lei Orgânica de Responsabilidade Penal do Menor tem, certamente, a
natureza de disposição sancionadora, pois desenvolve a exigência de uma
verdadeira responsabilidade jurídica dos menores infratores, enquanto referida
especificamente no cometimento de fatos tipificados como delitos ou faltas pelo
Código Penal e as demais leis especiais. Ao pretender ser a reação jurídica
dirigida ao menor infrator uma intervenção de natureza educativa, enquanto
desde logo de especial intensidade, rechaçando expressamente outras
finalidades essenciais do Direito Penal de adultos, como a proporcionalidade
entre o fato e sanção ou a intimidação dos destinatários da norma, se pretende
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
226
impedir tudo aquilo que poderia ter um efeito contraproducente para o menor,
como o exercício da ação pela vítima ou por outros particulares.
Justifica que é o Direito Penal de Menores que tem de primar, como
elemento determinante do procedimento e das medidas que se adotem, o
superior interesse do menor. Interesse que há de ser valorado com critérios
técnicos e não formalistas por equipes de profissionais especializados no âmbito
das ciências não jurídicas, sem prejuízo desde logo de adequar a aplicação das
medidas a princípios garantistas gerais tão indiscutíveis como o princípio
acusatório, o princípio de defesa ou o princípio de presunção de inocência.
Contudo, a lei tampouco pode esquecer o interesse próprio do
prejudicado ou vítima de fato cometido pelo menor, estabelecendo um
procedimento singular, rápido e pouco formalista para o ressarcimento, em seu
caso, de danos e prejuízos, dotando de amplas faculdades ao Juiz de Menores
para a incorporação aos autos de documentos e testemunhos relevantes à
causa principal. Neste âmbito de atenção aos interesses e necessidades das
vítimas, a Lei introduziu o princípio em certo modo revolucionário – na Espanha
– da responsabilidade solidária com o menor responsável pelos fatos de seus
pais, tutores, acogedores ou guardadores, se bem permitindo a moderação
judicial da mesma e recordando expressamente a aplicabilidade em seu caso da
Lei 30/1992, de 26 de novembro, de Regime Jurídico das Administrações
Públicas e do Procedimento Administrativo Comum, assim como da Lei 35/1995,
de 11 de dezembro, de ajudas e assistência às vítimas de delitos violentos e
contra a liberdade sexual.
A Lei regula, para procedimentos por delito graves cometidos por maiores
de dezesseis anos, um regime de intervenção do prejudicado em ordem a
salvaguardar o interesse da vítima no esclarecimento dos fatos e seu
ajuizamento por ordem jurisdicional competente, sem contaminar o procedimento
propriamente educativo e sancionador do menor. Esta Lei arbitra um amplo
direito de participação às vítimas, oferecendo-lhes a oportunidade de intervir nas
atuações processuais propondo e praticando prova, formulando conclusões e
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
227
interpondo recursos. Ademais, esta participação se estabelece de um modo
limitado já que a respeito dos menores não cabe reconhecer aos particulares o
direito de constituir-se propriamente em parte acusadora com plenitude de
direitos e cargas processuais.
Não existe aqui nem a ação particular dos prejudicados pelo fato criminal,
nem a ação popular dos cidadãos, porque nestes casos o interesse prioritário
para a sociedade e para o Estado coincide com o interesse do menor.
Conforme as orientações declaradas pelo Tribunal Constitucional,
anteriormente aludidas, instaura-se um sistema de garantias adequado na
pretensão processual, assegurando que a imposição da sanção se efetuará
buscando vencer a presunção de inocência, porém sem obstaculizar os critérios
educativos e de valoração do interesse do menor que preside neste processo,
fazendo ao mesmo tempo um uso flexível do princípio de intervenção mínima, no
sentido de dotar de relevância as possibilidades de não abertura do
procedimento ou renúncia ao mesmo, ao ressarcimento antecipado ou
conciliação entre o infrator e a vítima, e aos pressupostos de suspensão
condicional da medida imposta ou de substituição da mesma durante sua
execução.
A competência corresponde a um Juiz ordinário, que, com categoria
de Magistrado e preferentemente especialista, garante a tutela judicial efetiva
dos direitos em conflito.
A posição do Ministério Fiscal é relevante, em sua dupla condição de
instituição que constitucionalmente tem recomendada a função de promover a
ação da Justiça e a defesa da legalidade, assim como dos direitos dos menores,
velando pelo interesse destes. O advogado do menor tem participação em todas
e cada uma das fases do processo, conhecendo em todo momento o conteúdo
do expediente, podendo propor provas e intervindo em todos os atos que se
referem à valoração do interesse do menor e à execução da medida, da qual
pode requerer a modificação. A adoção de medidas cautelares segue o modelo
de requerimento da parte, em audiência contraditória, na qual deve valorar-se
especialmente, uma vez mais, o superior interesse do menor.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
228
Na defesa da unidade de doutrina, o sistema de recursos ordinário se
confia às Audiências Provinciais, que haverão de criar-se, as quais, com a
inclusão de Magistrados especialistas, asseguram e reforçam a efetividade da
tutela judicial em relação com as finalidades a que se propõe a Lei. No mesmo
sentido, procede destacar a instauração do recurso de cassação para unificação
de doutrina, reservado aos casos de maior gravidade, no paralelismo com o
processo penal de adultos, reforçando a garantia de unidade de doutrina em um
âmbito de direito sancionador de menores através da jurisprudência do Tribunal
Supremo.
Consoante os princípios assinalados, se estabelece, inequivocamente, o
limite de catorze anos de idade para exigir este tipo de responsabilidade
sancionadora aos menores de idade penal e se diferenciam, no âmbito de
aplicação da Lei e da graduação das conseqüências pelos fatos cometidos, dos
trâmites, de catorze a dezesseis e de dezesseis a dezoito anos, por apresentar
um e outro grupo diferentes características que requerem, desde um ponto de
vista científico e jurídico, um tratamento diferenciado, constituindo uma
agravação específica no trâmite dos maiores de dezesseis anos o cometimento
de delitos que se caracterizam pela violência, intimidação ou perigo para as
pessoas.
A aplicação da Lei aos maiores de dezoito anos e menores de vinte e um,
prevista no artigo 69 do código Penal vigente, poderá ser acordada pelo Juiz
atendendo às circunstâncias pessoais e ao grau de maturidade do autor, à
natureza e à gravidade dos fatos. Aqui está o que de melhor se pode interpretar
em termos de inovação e revolução no sistema penal, a possibilidade de
aplicação da legislação menorista ao jovem entre dezoito e vinte e um anos de
idade, atendidos tais critérios. Estas pessoas recebem, aos efeitos desta Lei, a
denominação genérica de jovens.
Regulam-se, expressamente, como situações que requerem uma
resposta específica, os pressupostos de que o menor apresente sintomas de
alienação mental ou a concorrência de outras circunstâncias modificativas de
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
229
sua responsabilidade, devendo promover o Ministério Fiscal, tanto a adoção das
medidas mais adequadas ao interesse do menor que se encontra em tais
situações, como a constituição dos organismos tutelares previstos pelas leis.
Aqui outra grande revolução. Retomamos tais temas, no afã de despertar a
discussão para essas questões, uma vez que se aqui ainda não se encontrou o
eco necessário, é possível que seja um caminho certo, eis que na Espanha é o
que se descortina.
Na Lei espanhola também se estabelece que as ações e omissões
imprudentes não podem ser sancionadas com medidas de internamento em
regime fechado.
Com acerto às orientações expostas, a Lei estabelece um amplo catálogo
de medidas aplicáveis, desde a referida perspectiva sancionadora-educativa, na
qual deve-se primar novamente o interesse do menor na flexível adoção judicial
da medida mais idônea, dadas as características do caso concreto e da evolução
pessoal do sancionado durante a execução da medida. A concreta finalidade que
as ciências da conduta exigem que se persiga com cada uma das medidas
relacionadas se detalha com caráter orientador no apartado III da exposição de
motivos.
A execução das medidas judicialmente impostas corresponde às
entidades públicas de proteção e reforma de menores das Comunidades
Autônomas, sob o inescusável controle do Juiz de Menores. Mantém-se o critério
de que o interesse do menor tem que ser atendido por especialistas nas áreas
de educação e da formação, pertencentes a esferas de maior proximidade que o
Estado. O Juiz de menores, a instância das partes e ouvidas as equipes técnicas
do próprio Juizado e da entidade pública da correspondente Comunidade
Autônoma dispõem de amplas faculdades para suspender ou substituir por
outras as medidas impostas, naturalmente sem nenhuma das garantias
processuais que constituem outros dos objetivos primordiais da nova regulação,
ou permitir a participação dos pais do menor na aplicação e conseqüências
daquelas.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
230
Um interesse particular reveste no contexto da Lei os temas da reparação
do dano causado e a conciliação do delinqüente com a vítima como situações
que, em áreas do princípio de intervenção mínima e com o concurso mediador
da equipe técnica, podem dar lugar a iniciar o sobrestamento do expediente, ou
à finalização do cumprimento da medida imposta, em um claro predomínio, uma
vez mais, dos critérios educativos e ressocializadores sobre os de uma defesa
social essencialmente baseada na prevenção geral e que poderia resultar
contraproducente para o futuro.
A reparação do dano causado e a conciliação com a vítima apresentam
um comum denominador de que o ofensor e o prejudicado pela infração
cheguem a um acordo, cujo cumprimento por parte do menor termina com o
conflito jurídico iniciado por sua causa. A conciliação tem por objeto que a vítima
receba uma satisfação psicológica a cargo do menor infrator, o qual há de
arrepender-se do dano causado e estar disposto a desculpar-se. A medida se
aplicará quando o menor efetivamente se arrependa e se desculpe, e a pessoa
ofendida o aceite e outorgue o seu perdão. Na reparação o acordo não se
alcança unicamente mediante a via da satisfação psicológica, senão que requer
algo mais: o menor executa o compromisso contraído com a vítima ou
prejudicado de reparar o dano causado, mediante trabalhos em benefício da
comunidade, mediante ações, adaptadas às necessidades do sujeito, cujo
beneficiário seja a própria vítima ou prejudicado.
Na medida de admoestação, o Juiz, em um ato único que tem lugar na
sede judicial, manifesta ao menor de modo concreto e claro as razões que fazem
socialmente intoleráveis os fatos cometidos, lhe expõe as conseqüências que
para ele e para a vítima tenham havido ou podiam haver tido tais fatos e lhe
formula recomendações para o futuro.
A medida de prestações em benefício da comunidade, que, bem como
artigo 25.2 da Constituição espanhola, não poderá impor-se sem consentimento
do menor, consiste em realizar uma atividade, durante um número de sessões
previamente fixado, bem seja em benefício da coletividade em seu conjunto, ou
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
231
de pessoas que se encontrem em uma situação de precariedade por qualquer
motivo. Preferentemente, buscar-se-á relacionar a natureza da atividade em que
consista esta com a dos bens jurídicos afetados pelos fatos cometidos pelo
menor.
O característico desta medida é que o menor há de compreender,
durante sua realização, que a coletividade ou determinadas pessoas tenham
sofrido de modo injustificado conseqüências negativas derivadas de sua
conduta. Pretende-se que o sujeito compreenda que atuou de modo incorreto,
que merece a reprovação formal da sociedade e que a prestação dos trabalhos
que se lhe exigem é um ato de reparação justo.
As medidas de internamento respondem a uma maior periculosidade,
manifestada
na
natureza
peculiarmente
grave
dos
fatos
cometidos,
caracterizados nos casos mais destacados pela violência, a intimidação ou o
perigo para as pessoas. O objetivo prioritário da medida é dispor de um
ambiente que proveja das condições educativas adequadas para que o menor
possa reorientar aquelas disposições ou deficiências que tenham caracterizado
seu comportamento antissocial, quando para ele seja necessário, ao menos de
maneira temporal, assegurar a instância do infrator em um regime fisicamente
restritivo de sua liberdade. A maior ou menor intensidade de tal restrição de lugar
aos diversos tipos de internamento, aos que se vá a aludir a continuação. O
internamento, em todo caso, há de proporcionar um clima de seguridade pessoal
para todos os implicados, profissionais e menores infratores, o que faz
imprescindível que as condições de instância sejam as corretas para o normal
desenvolvimento psicológico dos menores.
O internamento em regime fechado pretende a aquisição por parte do
menor dos suficientes recursos de competência social para permitir um
comportamento responsável na comunidade, mediante uma gestão de controle
em um ambiente restritivo e progressivamente autônomo.
O internamento em regime semi-aberto implica a existência de umprojeto
educativo no qual, desde o princípio, os objetivos substanciais se realizam em
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
232
contato com pessoas e instituições da comunidade, tendo o menor sua
residência no centro, sujeito ao programa e regime interno do mesmo.
O internamento em regime aberto implica que o menor levará a cabo
todas as atividades do projeto educativo nos serviços normalizados do entorno,
residindo no centro como domicílio habitual.
O internamento terapêutico se prevê para aqueles casos nos quais os
menores, por razão de sua adição ao álcool ou a outras drogas, assim como por
disfunções significativas em seu psiquismo, precisam de um contexto
estruturado no qual poderá realizar uma programação terapêutica, não se dando,
de uma parte, as condições idôneas ao menor ou em seu entorno para o
tratamento ambulatorial, nem de outra parte, as condições de risco que exigiriam
a aplicação aquele de um internamento em regime fechado.
Na assistência a um centro de dia, o menor é derivado a um centro
plenamente integrado na comunidade, onde se realizam atividades educativas
de apoio a sua competência social.
Esta medida serve ao propósito de proporcionar ao menor um ambiente
estruturado durante boa parte do dia, no qual se levam a cabo atividades sócioeducativas que podem compensar as carências do ambiente familiar daquele. O
característico do centro de dia é que nesse lugar é onde toma corpo o essencial
do projeto sócio-educativo do menor, se bem este pode assistir também a outros
lugares para fazer uso de outros recursos de lazer ou culturais. O submetido a
esta medida pode, portanto, continuar residindo em seu lugar, ou no de sua
família, ou no estabelecimento de acolhida.
Na medida de liberdade vigiada, o menor infrator está submetido durante
o tempo estabelecido na sentença, a uma vigilância e supervisão a cargo de
pessoal especializado, com o fim de que adquira as habilidades, capacidades e
atitudes necessárias para um correto desenvolvimento pessoal e social. Durante
o tempo que dure a liberdade vigiada, o menor também deverá cumprir as
obrigações e proibições que, de acordo com esta Lei, o Juiz pode impor-lhe.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
233
A realização de tarefas sócio-educativas consiste em que o menor leve a
cabo atividades específicas de conteúdo educativo que facilitem sua reinserção
social. Pode ser uma medida de caráter autônomo ou formar parte de outra mais
complexa. Empregada de modo autônomo pretende satisfazer necessidades
concretas do menor percebidas como limitadoras de seu desenvolvimento
integral. Pode submeter a assistência e participação do menor a um programa já
existente na comunidade, ou bem a um criado pelos profissionais encarregados
de executar a medida. Como exemplos de tarefas sócio-educativas, podem-se
mencionar as seguintes: assistir a uma oficina ocupacional, a uma aula de
educação compensatória ou a um recurso de preparação para o emprego;
participar em atividades estruturadas de animação sociocultural, assistir a
oficinas de aprendizagem para a competência social etc..
O tratamento ambulatorial é uma medida destinada aos menores que
dispõem das condições adequadas em sua vida para beneficiar-se de um
programa terapêutico que lhes ajude a superar processos aditivos ou
disfuncionais significativos de seu psiquismo. Está previsto, para os menores
que apresentam uma dependência ao álcool ou às drogas e que em seu melhor
interesse possam ser tratados da mesma forma na comunidade, que em sua
realização podem combinar-se diferentes tipos de assistência médica e
psicológica. Resulta muito apropriado para casos de desequilíbrio psicológico ou
perturbações do psiquismo que podem ser atendidos sem necessidade de
internamento. A diferença mais clara com a tarefa sócio-educativa é que esta
pretende lograr uma capacitação, um logro de aprendizagem, empregando uma
metodologia, não tanto clínica, senão de orientação psicoeducativa. O
tratamento ambulatorial também pode entender-se como uma tarefa sócioeducativa muito específica para um problema bem definido.
A permanência de fim de semana é a expressão que define a medida
pela qual um menor se vê obrigado a permanecer em seu lugar desde a tarde ou
noite de sábado até a noite de domingo, a exceção do tempo em que realize as
tarefas sócio-educativas assinaladas pelo Juiz. Na prática, combina elementos
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
234
do arresto de fim de semana e da medida de tarefas sócio-educativas ou
prestações em benefício da comunidade. É adequada para menores que
cometem atos de vandalismo ou agressões leves no fim de semana.
A convivência com uma pessoa, família ou grupo educativo é uma
medida que intenta proporcionar ao menor um ambiente de socialização positivo,
mediante sua convivência, durante um período determinado pelo Juiz, com uma
pessoa, com uma família distinta à sua ou com um grupo educativo que se
ofereça a cumprir a função da família no que respeita ao desenvolvimento de
pautas sócio-afetivas pró- sociais no menor.
A privação da permissão de conduzir ciclomotores ou veículos a motor ou
do direito a obtê-las ou de licenças administrativas para caça ou para o uso de
qualquer tipo de armas é uma medida acessória que se poderá impor naqueles
casos nos quais o fato cometido tenha relação com a atividade que realiza o
menor e que esta necessite autorização administrativa.
Por último, procede por manifesto que os princípios científicos e os
critérios educativos a que hão de responder cada uma das medidas, aqui
sucintamente expostos, se haverão de regular mais extensamente na legislação
complementar, em desenvolvimento da Lei de Responsabilidade Penal dos
Menores.
Cabe ressaltar, entre tantas outras reflexões que devem surgir a partir do
que adotado pela Lei, a primeira delas: a mantença da idade limite em dezoito
anos, com idade mínima em catorze anos de idade, enquanto existam medidas
aplicáveis àqueles entre dezoito e vinte e um anos de idade, o que necessita
urgente revisão no sistema pátrio vigente.
A segunda, de idêntico quilate e inovadora, qual seja, as medidas
aplicáveis ao menor e ao juvenil que padeça de distúrbios psicológicos.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
235
PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: IMPOSTO SOBRE A
RENDA E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO
LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT
Advogado Tributarista. Conferencista. Doutor em Direito pela Universidade de São
Paulo.
RESUMO: O artigo trata das alternativas para a determinação do montante das
obrigações relativas ao Imposto sobre a Renda e à Contribuição Social sobre o Lucro,
esclarecendo as diferenças de tratamento para o contribuinte "pessoa jurídica" (forma
societária) ou "pessoa física" (atividade econômica individual). O autor analisa as
diversas modalidades de aferição da "base de cálculo" dos tributos em questão, em
especial o "lucro real", "lucro presumido" e "lucro arbitrado", esclarecendo ainda sobre a
periodicidade para a apuração da base de cálculo, bem assim sobre os regimes de
imputação das receitas. Esclarece a importância do planejamento tributário,
especialmente quanto às deduções permitidas por lei, assinalando que a forma
societária mais vantajosa, sob o ângulo do planejamento tributário, é a sociedade
anônima.
ABSTRACT: This article deals with the alternatives for the determination of the sum
concerning the obligations referring to the Income tax and Social Contribution on the
Profit, establishing the attendance differences between the “corporate body” (societarian
system) and "natural person " (individual economic activity) taxpayers. The author
analyzes the diverse gauging modalities of the "basis of calculation" regarding the taxes
in question, specially the "real profit", "assumed profit" and "arbitrated profit", and still
clarifies on the verification regularity for the basis of calculation, as well as on the income
imputation systems. He elucidates the importance of tributary planning, especially
concerning the deductions permitted by law, and also appoints that the more
advantageous societary form, under the tributary planning view, is the joint stock
company.
1 - Inúmeras alternativas existem para se determinar o montante das
obrigações relativas ao Imposto sobre a Renda e à Contribuição Social sobre o
Lucro.
Essas variantes, colocadas para decisão do contribuinte, têm por origem
dois aspectos básicos, a saber:
a) a FORMA JURÍDICA escolhida para o exercício das atividades
econômicas,
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
236
b) os REGIMES DE TRIBUTAÇÃO decorrentes da opção formal
realizada.
2 - A FORMA JURÍDICA escolhida para o exercício das atividades
econômicas decorre de um elemento fático inicial, qual seja: a atividade será
explorada INDIVIDUALMENTE ou SOCIETARIAMENTE?
O desenvolvimento de atividades econômicas sob a forma societária
implica, obrigatoriamente, na submissão ao regime de tributação das pessoas
jurídicas.
Já a atividade econômica individual enseja tributação segundo o regime
de pessoa jurídica, em alguns casos, ou segundo o regime de pessoa física, em
outros casos.
Nesse aspecto, a opção não é do contribuinte! Ao contrário, a lei tributária
estipula o regime aplicável para cada tipo de empreendimento.
Assim, exemplificativamente, ao exercício individual de profissões
liberais, de serviços não-comerciais e de intermediação civil ou comercial impõese o regime de tributação das pessoas físicas.
A exploração de atividades rurais será submetida ao regime de pessoa
física quando realizada individualmente e, também, nas formas associativas do
condomínio e da parceria.
De outro lado, mesmo que desenvolvido por pessoas naturais, incidirá
tributação como pessoa jurídica nas hipóteses seguintes:
a) atividades exercidas por firmas individuais, que são consideradas
comerciantes;
b) exploração por pessoa natural, de atividade econômica civil ou
comercial, que não esteja inserida no regime de pessoa física e,
c) incorporação de prédios em condomínio, loteamento de terrenos
urbanos e desmembramento de terrenos rurais em mais de dez lotes, quinhões
ou frações ideais.
3 - Cabe, neste momento, se colocar a seguinte indagação: Qual a
melhor opção? O regime de pessoa física ou o de pessoa jurídica?
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
237
O regime de pessoa física gera incidência de Imposto sobre a Renda,
exclusivamente, pois não incide, nessa hipótese, a Contribuição Social sobre o
Lucro. Ademais, os rendimentos são tributados quando efetivamente recebidos
(regime de caixa).
Há, porém, dois fatores significativos a considerar no regime de
tributação das pessoas físicas:
a) A heterogeneidade de incidências, ora na fonte (como antecipação rendimentos de atividade liberais; ou definitiva - décimo-terceiro salário,
aplicações financeiras de renda fixa), ora em separado (ganhos de capital, renda
variável), ora, ainda, segundo tabela progressiva anual.
b) A possível onerosidade da tabela progressiva, comparativamente à
base de cálculo e às alíquotas
do regime de pessoa jurídica, em caso de
inexistirem deduções significativas (dependentes, educação, despesas médicas,
contribuições e incentivos).
Tais fatores, combinados entre si, deverão ser necessariamente
analisados e considerados, para quantificar a base tributável do Imposto sobre a
Renda.
Ante esse quadro, não é possível, aprioristicamente, eleger um ou outro
regime de tributação. A análise combinada das diferentes espécies de
rendimentos auferidos e das deduções possíveis, à luz de sua grandeza
numérica, serão elementos decisivos para o planejador tributário. Acertar a
opção menos onerosa será possível caso realizada análise profunda do universo
econômico em que opera o agente empreendedor.
4 - O regime de tributação das pessoas jurídicas alcança:
a) as pessoas jurídicas de direito privado domiciliadas no país;
b) os estabelecimentos, no país, de pessoas jurídicas com sede no
exterior;
c) as sociedades em conta de participação e,
d) as empresas individuais, definidas em lei.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
238
O regime de pessoa jurídica gera incidência de Imposto sobre a Renda e
de Contribuição Social sobre o Lucro, cumulativamente.
A base de cálculo desses tributos será escolhida pelo contribuinte, dentre
as opções seguintes:
a) Lucro Real, obtido com apoio em registros contábeis formal e
substancialmente corretos.
b) Lucro Presumido, obtido mediante percentuais fixados em lei e
aplicados sobre a receita bruta do contribuinte, somado às demais receitas e
ganhos auferidos.
c) Lucro Arbitrado, obtido mediante os mesmos critérios de fixação de
lucro presumido, com acréscimo de 20% (vinte por cento) nos percentuais
aplicados sobre a receita bruta, exclusivamente no caso do Imposto sobre a
Renda.
Duas importantes questões hão de ser consideradas no planejamento
tributário destinado a buscar a melhor alternativa de base de cálculo, quais
sejam:
a) A margem de lucro contábil do contribuinte, isto é, o percentual de
rentabilidade existente no preço cobrado nas vendas de suas mercadorias e
serviços, em relação aos custos, despesas e encargos apropriados na
escrituração e,
b) A existência de receitas financeiras, outros rendimentos operacionais e
resultados não-operacionais.
A análise integrada desses componentes do resultado contábilempresarial permitirá escolha acertada da menor base de cálculo dos tributos
em análise.
Importa, neste momento, destacar os seguintes pontos:
a) nem todas as pessoas jurídicas podem optar pelo Lucro Presumido;
b) todas as pessoas jurídicas podem optar pelo Lucro Real,
c) todas as pessoas jurídicas podem optar pelo Lucro Arbitrado.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
239
Obviamente, não caberá adotar base de cálculo arbitrada se permitida a
adoção da base de cálculo presumida: aquela é mais onerosa do que esta em
20%, no caso do Imposto sobre a Renda. Nesse caso, a opção é entre base real
e base presumida.
Sendo assim, as alternativas logicamente possíveis para o contribuinte
serão:
a) Lucro Real ou Presumido (se permitida adoção deste);
b) Lucro Real ou Arbitrado (se não permitida a adoção do Lucro
Presumido).
5 - Medidas a margem de lucro contábil e a composição dos resultados
escriturais, devem ser considerados três outros aspectos:
a) a possibilidade de mudança da base de cálculo durante o anocalendário;
b) a periodicidade da apuração da base de cálculo;
c) o regime de imputação dos rendimentos na base de cálculo.
6 - O único sistema imutável de apuração da base de cálculo do Imposto
sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro é a forma do lucro
presumido.
A opção pelo lucro presumido deve ser feita por ocasião do pagamento
da primeira ou única quota dos tributos em questão, que ocorre no mês de abril.
Essa alternativa de base de cálculo é definitiva, não cabendo mudança dentro do
mesmo ano-calendário, para o lucro real.
Já o lucro arbitrado e o lucro real podem coexistir dentro de um mesmo
ano-calendário, não havendo impossibilidade legal de variabilidade entre esses
dois critérios de fixação de base de cálculo.
7 - Quanto à periodicidade, a apuração da base de cálculo será:
a) Trimestral: obrigatoriamente, nos casos de opção por lucro presumido
e por lucro arbitrado, com pagamentos devidos no trimestre civil seguinte;
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
240
b)
Anual: facultativamente, nos casos de opção por lucro real, com
pagamentos devidos ao longo do ano-calendário e ajuste no início do ano
seguinte;
c)
Outros períodos de tempo: nos casos excepcionais de extinção,
incorporação, fusão e cisão; e nos casos de variação entre regime de lucro
arbitrado e lucro real, durante o mesmo ano-calendário.
8 - Em terceiro lugar, o regime de imputação das receitas na base de
cálculo do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro poderá
ser realizado mediante as alternativas seguintes:
a) Regime de competência total obrigatório: na opção pelo lucro real,
exceto atividades imobiliárias e ganhos de capital a longo prazo.
b) Regime de competência total facultativo: na opção pelo lucro
presumido.
c) Regime de competência parcial obrigatório: na opção pelo lucro
arbitrado, no que concerne a todas as receitas, exceto rendimentos de
operações de renda fixa e variável e receitas de atividades imobiliárias.
d) Regime de caixa total facultativo: na opção pelo lucro presumido.
e) Regime de caixa parcial facultativo: na opção pelo lucro arbitrado, em
rendimentos de operações de renda fixa e variável e receitas de atividades
imobiliárias; na opção pelo lucro real, nas atividades imobiliárias e nos ganhos
de capital a longo prazo.
9 - Impõe-se considerar, no planejamento tributário, as deduções
permitidas no regime de pessoas jurídicas.
No lucro presumido e no lucro arbitrado, desprezam-se despesas, custos
e perdas, visto serem relevantes apenas as receitas, rendimentos e ganhos,
excetuada, apenas, a possibilidade de dedução de perdas nas aplicações de
renda fixa e variável, se houver ganhos superiores da mesma espécie.
Já no lucro real, são dedutíveis os custos, as despesas, os encargos e
prejuízos inerentes e necessários às operações do contribuinte.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
241
Merecem
destaque, neste tópico, a dedução dos encargos de
depreciação acelerada (conforme turnos de trabalho) e a dedução de juros sobre
o capital próprio.
A depreciação de bens utilizados na atividade econômica gera dedução
do resultado tributável sem desembolso financeiro, cabendo ao planejador
tributário definir:
a) a taxa de depreciação, à vista do prazo de vida útil do bem, consoante
fixado pela Secretaria da Receita Federal ou, em caso de dúvida, mediante
laudo de entidade oficial de pesquisa científica ou tecnológica e,
b) os coeficientes de depreciação acelerada (1, 2 ou 3), conforme os
turnos de oito horas de trabalho.
Também a dedução de juros sobre capital próprio merece reflexão
demorada, porquanto:
a) é tributável na fonte, à alíquota de 15%, sendo o tributo recolhido na
semana seguinte a do crédito ou pagamento e,
b) é dedutível, para fins de Contribuição Social sobre o Lucro e de
Imposto sobre a Renda, cujas alíquotas cumulativas podem alcançar 34%.
Em decorrência das regras de compensação de um terço da Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS, pagas após fevereiro de
1999 até dezembro de 1999, com valor devido a título de Contribuição Social
sobre o Lucro, dois itens devem ser ponderados:
a) A parcela de COFINS deduzida do valor devido a título de Contribuição
Social sobre o Lucro é indedutível para fins de cálculo do Imposto sobre a Renda
com base no lucro real, à alíquota de até 25%.
b) A dedução de juros sobre o capital próprio (tributáveis a 15%) ensejará
redução do valor da Contribuição Social sobre o Lucro, à alíquota de 12%, e do
Imposto sobre a Renda (até 25%) e poderá manter a dedutibilidade de parte ou
da totalidade do terço compensável referente à COFINS posterior a fevereiro de
1999, evitando-se despesa indedutível, sujeita a Imposto sobre a Renda de até
25%.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
242
10 - Por fim, cabe apontar que, em processos de reorganização empresarial, a forma societária mais vantajosa, sob o ângulo do planejamento
tributário, é a sociedade anônima.
Isto porque existe isenção específica para o ágio pago na emissão de
ações integralizadas em companhias, não se estendendo essa isenção para as
demais formas societárias (limitadas, em nome coletivo, etc.).
A forma jurídica da atividade desenvolvida societariamente, desse modo,
poderá ser relevante no planejamento tributário.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
243
REQUISITOS PARA A ADMISSIBILIDADE DO PROCESSO:
BREVE ESTUDO
FERNANDO VOIGT
Advogado no Paraná. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.
RESUMO: O artigo cuida dos requisitos para a admissibilidade do processo,
nomeadamente os pressupostos processuais e condições da ação. Assinala o autor a
importância dos pressupostos de existência (demanda, jurisdição, citação e capacidade
postulatória) e pressupostos de validade do processo (petição inicial apta, competência e
imparcialidade do juízo e imparcialidade do juiz e capacidade de agir), dissertando ainda
sobre os pressupostos processuais negativos (litispendência, coisa julgada e
perempção). Discorre o autor sobre as condições da ação (interesse de agir, legitimidade
para a causa e possibilidade jurídica do pedido), concluindo que o direito de ação tem
natureza formal, dado que seus requisitos estão definidos em lei, delineados pela
doutrina processual.
ABSTRACT: This article is concerned with the requirements for the admissibility of the
process, nominatedly the procedural presuppositions and the conditions of the action.
The author stresses on the importance of the existence presuppositions (demand,
jurisdiction, service of process and petitioner capacity) and validity presuppositions of the
process (competent declaration, competent and impartial court and impartial judge and
capacity for acting), and still discusses on the negative procedural presuppositions
(pendency, res judicata and dismissal). The author analyzes the conditions of an action
(interest to sue, standing to sue and theory of law), and concludes that the right of action
has a formal nature, provided that its requirements are defined in law, delineated by the
procedural doctrine.
INTRODUÇÃO
O Código de Processo Civil Brasileiro enumera alguns requisitos
essenciais para a admissibilidade do processo, os quais devem ser seguidos à
risca, sob pena de nulidade.
Este estudo pretende dar uma visão mais clara desses institutos
processuais, com o objetivo de tornar mais fácil a compreensão e seu uso,
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
244
apesar de já ter sido exaustivamente explicado pelos grandes juristas de nosso
país.
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
De acordo com Humberto Theodoro Júnior, “a prestação jurisdicional
para ser posta à disposição da parte, além das condições da ação, subordina-se
ao estabelecimento válido da relação processual, que só será efetivo quando se
observarem
certos
requisitos
formais
e
materiais,
que
recebem,
259
doutrinariamente, a denominação de pressupostos processuais”.
Logo, os pressupostos processuais nada mais são do que certos
requisitos fundamentais a serem seguidos no desenvolvimento do processo.
Sua função primordial é a de tornar todo o processo válido, sem vícios,
pois se não forem seguidos o tornam inexistente.
Neste sentido é a lição de Humberto Theodoro Júnior, que diz:
“Inobservados, porém, os pressupostos, ou as condições da ação, a missão da
atividade jurisdicional estará frustrada, pois ocorrerá a extinção prematura do
processo, sem julgamento ou composição do litígio (art. 267)”.260
Os pressupostos processuais, segundo a lição de Arruda Alvim
classificam-se em pressupostos de existência e pressupostos de validade.
PRESSUPOSTOS DE EXISTÊNCIA
São os pressupostos necessários para que
a relação
jurídica
efetivamente exista. São eles: demanda, jurisdição, citação e capacidade
postulatória.
259 In Curso de direito processual civil, 18ª ed., V. I, Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 58.
260 Op. cit., p. 58.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
245
Demanda:
A atividade contenciosa exige, para ser exercida pelo Estado, a
provocação do interessado, que deverá sempre ser na forma escrita,
movimentando o aparelho judiciário, onde, através da petição inicial, o autor
deduzirá a sua afirmação de direito para que este possa ser apreciado pelo Juiz
da causa. Isto nós denominamos de demanda.
Porém, com a introdução da Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, foi permitido uma flexibilização quando do
momento da formulação da pretensão do autor, podendo ser feita oralmente à
Secretaria do Juizado, que deve reduzir a escrito, na forma que mais convier.
Salientamos que pode-se instaurar um processo através de uma
demanda inválida, através de uma petição inicial inepta, que não seguiu todos os
requisitos constantes do art. 282 do C.P.C.261
Demanda é, no sentido processual, a pretensão, o pedido deduzido pelo
autor através da petição inicial, podendo ser de forma escrita, ou oralmente (no
caso dos Juizados Especiais), quando será reduzida a escrita pela Secretaria.
Jurisdição:
O conceito de jurisdição nos é dado por Liebman, afirmando que “as
pessoas que exercem a jurisdição chamam-se juízes e formam, no seu conjunto,
a Magistratura; sua atividade desenvolve-se em direção dupla, através da
cognição (giudizio) e da execução forçada”.262
Arruda Alvim completa esta definição dizendo que “a parte deve formular
o seu pedido a alguém investido de jurisdição, vale dizer, a um órgão
jurisdicional (juízo de direito ou tribunal), pois, mesmo se incompetente (inclusive
absolutamente incompetente), processo haverá”.263
261 Deve-se dizer aqui que os requisitos do art. 282 do C.P.C. só aplicam-se quando da formulação do pedido por advogado, sendo
dispensados quando feitos oralmente no Juizado Especial, pois neste caso aplicar-se-á o disposto no art. 14 da Lei 9.099/95.
262 In Manual de direito processual civil, 2ª ed., V. I, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 3.
263 In Manual de direito processual civil, 5ª ed., V. 1, São Paulo: RT, 1996, p. 438.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
246
Neste sentido chegamos a conclusão de que jurisdição é a própria
manifestação do poder judiciário em um processo, seja ele competente ou não
para conhecer da matéria que lhe foi apresentada para análise.
Citação:
Neste tópico ocorrem as maiores discussões acerca dos pressupostos
processuais de existência, em virtude de parte da doutrina nacional aceitar a
existência do processo sem a citação, já a partir do despacho inicial do Juiz, e
outra (maioria) que entende que só existe processo com a citação válida, através
de suas diversas formas.
Há de se dizer que a segunda assertiva do parágrafo anterior nos parece
mais correta, pois a citação é necessária para se formar a relação processual
triangular (sujeito ativo, sujeito passivo e Estado) e tornar o processo válido,
como diz o art. 214 do C.P.C.264
Nesse sentido é a afimação de Liebman, citado por Nelson Nery Júnior,
que diz que “muito embora com o despacho da petição inicial já exista relação
angular entre autor e juiz, para que seja instaurada de forma completa, a relação
jurídica processual é necessária a realização da citação. Portanto, a citação é
pressuposto de existência da relação processual, assim considerada em sua
totalidade (autor, réu, juiz). Sem a citação não existe processo. Em suma,
pressuposto de existência da relação processual: citação”.265
A citação, de acordo com o art. 221 do Código de Processo Civil, dividese em três modalidades: pelo correio, por oficial de justiça e por edital.
A citação pelo correio, nos dias de hoje, é usada na maioria dos casos,
devendo ser feita sempre por carta registrada. Tal afirmação, porém, é nova,
pois na ocasião da reforma do Código, passou-se a adotar a citação pelo correio
como sendo a regra, e não mais a exceção.
264 Art. 214 – Para a validade do processo, é indispensável a citação inicial do réu.
265 In Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 3ª ed., São Paulo: RT, 1997, p. 499,
nota 2.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
247
No envelope deverá constar, sempre, a petição inicial e o despacho do
Juiz, como manda o art. 223 do C.P.C.266, sob pena de nulidade da citação.
Existem, porém, alguns casos em que não é permitida a citação pela via
postal. Estes casos estão enumerados taxativamente no art. 222 do Código de
Processo Civil, que são: nas ações de estado, quando for ré pessoa incapaz,
quando for ré pessoa de direito público, nos processos de execução, quando o
réu não residir em local não atendido pela entrega domiciliar de correspondência
e quando o autor a requerer de outra forma.
Quando ocorrer qualquer um dos casos acima, a citação se fará por
oficial de justiça, bem como nos casos em que a citação pelo correio não tenha
sido bem sucedida.
Na citação por oficial, o mandato deverá sempre conter o nome das
partes, com seus respectivos endereços267, bem como conter a sua finalidade,
com todas as especificações da petição inicial, além da advertência do art.
285.268
Ainda deverá conter a cominação (se houver), o dia, hora e lugar do
comparecimento, a cópia do despacho do Juiz, o prazo para a sua defesa e ser
o mandato assinado pelo escrivão, com a declaração que o subscreve por ordem
do Juiz.
Caso a falta de algum destes itens cause dificuldade ou impossibilidade
de defesa para o réu, haverá nulidade da citação, podendo ser o processo
declarado inexistente.
O réu será considerado citado após a juntada do mandado de citação,
com a nota de ciente do réu, ou por certidão do oficial de que o réu recusou-se a
apor sua nota de ciente no mandato.
266 Art. 223 – Deferida a citação pelo correio, o escrivão ou chefe da secretaria remeterá ao citando cópias da petição inicial e do
despacho do juiz, expressamente consignada em seu inteiro teor a advertência a que se refere o art. 285, segunda parte, comunicando,
ainda, o prazo para a resposta e o juízo e cartório, com o respectivo endereço.
267 Cabe lembrar que a qualificação, tanto do autor, quanto do réu, deve ser feita da forma mais completa possível.
268 Esta advertência consiste em não sendo respondida a ação serão presumidos verdadeiros os fatos alegados pelo autor na petição
inicial.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
248
O último modo de citação existente em nosso direito é a citação por
edital, sendo o modo menos usado, em virtude de ser permitido apenas quando
os anteriores falhem.
Diz o art. 231 do C.P.C., que a citação por edital só poderá ser usada
quando o réu for desconhecido ou incerto, quando o lugar em que ele se
encontrar for ignorado, inacessível ou incerto, e em outro casos previstos em leis
especiais. Ainda o art. 231, no seu § 2º, abre a possibilidade da citação por edital
via veículo de rádio, em sendo o lugar inacessível e havendo emissora de
radiodifusão na comarca.
Portanto, cai por terra a afirmação de que o processo já existe a partir da
sua distribuição, pois como se demonstrou, a citação é exigida pela lei
processual, podendo ser o processo considerado nulo na sua falta.
Capacidade Postulatória:
A capacidade postulatória não deve ser confundida com a capacidade
das partes em se intentar uma ação. Isto será discutido mais tarde, nos
pressupostos processuais de validade do processo.
Aqui, verificar-se-á se o autor estará devidamente representado por um
advogado logo na petição inicial, e no caso do réu também será verificado,
porém na época da contestação.
O nosso ordenamento jurídico não mais prevê a possibilidade de uma
pessoa ir a juízo sem a presença de um advogado, a não ser nas causas
pertinentes ao Juizado Especial Cível269, que não ultrapassem o valor
equivalente a 20 salários mínimos, de acordo com o art. 9º da Lei 9.099/95.
Porém, muita discussão ainda vem à tona com este artigo de Lei, pois
sendo o advogado considerado essencial para a administração da justiça, levase a crer que tal dispositivo de lei seja inconstitucional.
Mas estes casos devem ser vistos pela ótica das partes, em que muitas
vezes não possuem condições financeiras para bancar uma representação
269 Não se pretende aqui elaborar um estudo sobre a parte penal dos Juizados Especiais, em virtude de ser este estudo específico do
Direito Processual Civil.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
249
profissional, o que nos levaria à assistência judiciária gratuita, fornecida pelo
estado. Assistência esta que simplesmente não funciona na maioria das
localidades do nosso país, o que me leva a crer seja correta a posição do
legislador em abrir uma exceção com relação a este tópico.
Portanto, capacidade postulatória, segundo Arruda Alvim, nada mais é do
que “a exigência de a parte postular em juízo através de advogado, salvo as
exceções legais”.270
PRESSUPOSTOS DE VALIDADE
São os requisitos necessários para que a relação jurídica torne-se válida,
ou como diz a Lei, de “desenvolvimento válido e regular do processo”. São eles:
Petição Inicial Apta:
A petição inicial, como peça inaugural do processo, sendo a mais
importante para o autor, pois nela se fixa os limites da lide, causando preclusão
a tudo que deixou de ser alegado.
Também deve constar dela um silogismo, contendo uma premissa
menor, que são os fatos; uma premissa maior que é o direito e a conclusão, que
é o pedido com suas especificações.
Por ser tão importante, o legislador resolveu incluir no C.P.C. os
requisitos essenciais para a sua formulação, que são:
a) o juiz ou tribunal, a que é dirigida: aqui deve o autor valer-se das
regras de competência para indicar a qual juízo ou tribunal que
deverá julgar a ação. Mas, caso seja remetida para juiz incompetente
absoluto, este deverá mandar os autos ao juiz competente; no caso
de incompetência relativa, não poderá o juiz manifestar-se, devendo
aguardar a manifestação do réu;
270 In Ob. cit., p. 439.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
250
b) o nome, prenome, estado civil, profissão, domicílio e residência do
autor e do réu: a qualificação tornou-se necessária para que se possa
obrigar pessoas certas, porém, quando não for possível fornecer a
qualificação completa, é suficiente a individualização de cada uma
das partes;
c) o fato e os fundamentos jurídicos do pedido: o autor deverá indicar a
causa de pedir próxima (fundamentos de fato) e a causa de pedir
remota (fundamentos de direito), explicando o porquê do pedido
formulado;
d) o pedido, com suas especificações: é o bem da vida pretendido pelo
autor. O pedido divide-se em imediato (sentença) e mediato (bem da
vida);
e) o valor da causa: mesmo não tendo valor econômico imediato, é
necessário colocar o valor da causa, nos termos do art. 259 do
C.P.C., para que se possa fixar as custas processuais e honorários
advocatícios;
f) as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos
alegados: o autor deverá elencar todos os meios que usará para a
produção de provas. Neste tópico há divergência doutrinária sobre a
validade do mero protesto por provas.271 Considero que o pedido
genérico de provas seja válido, não acarretando nulidade alguma,
pois além de ser uma praxe constante em nossos juízos e tribunais,
devemos tomar como verdadeiro a afirmação que a espécie faz parte
do gênero, ou seja, a prova testemunhal é uma espécie do gênero
prova. Portanto o pedido genérico deve ser considerado como se o
autor fosse produzir todo e qualquer tipo de prova possível dentro do
processo.
271 Entende-se por mero protesto por provas uma oração do tipo protestando provar o alegado por todos os meios em direito admitidos.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
251
g) o requerimento para a citação do réu: necessária para que o réu tome
conhecimento de que contra si é movida uma ação (ver tópico sobre
citação acima).
Vale frisar que a falta de qualquer um dos requisitos acima enumerados
acarretará na inépcia da petição inicial, sendo extinto o processo sem julgamento
do mérito.
Competência do Juízo e Imparcialidade do Juiz:
Celso Agrícola Barbi, citando Chiovenda diz que “a competência interna é
fixada segundo três critérios: o objetivo, o funcional e o territorial. O objetivo é
extraído em razão da natureza da causa – competência em razão da matéria, ou
de seu valor, ou da qualidade das pessoas; o funcional é extraído da natureza
especial e das exigências especiais das funções que o juiz é chamado a exercer
num processo; e o territorial relaciona-se com a circunstância territorial
designada à atividade de cada órgão jurisdicional”.272
A competência em razão da matéria ou pelo valor é regida pelas normas
de organização judiciária de cada estado da Federação, com as ressalvas
contidas no C.P.C., que dirão se a competência do juiz se dará pela natureza da
ação ajuizada, ou por seu valor. Tomando a competência por valor como
exemplo, temos que, regra geral, todas as ações em que o valor da causa for
inferior a 40 salários mínimos são de competência dos Juizados Especiais
Cíveis. Já, quanto à natureza da ação, temos os processos de alimentos,
falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, que possuem juízos
específicos para serem processados e julgados.
No caso da competência funcional esta se verifica em dois casos: quando
a causa pertence a juiz de uma determinada comarca (como exemplo temos que
a falência deve ser processada na sede do estabelecimento principal); e quando
diversas funções necessárias em um mesmo processo, ou coordenadas à
272 In Comentários ao código de processo civil, V. I, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 301-2.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
252
atuação da mesma vontade de lei, são atribuídas a juízos diferentes (por
exemplo, a atuação do tribunal em grau de recurso).
Finalmente, na competência territorial as causas são atribuídas pela
coincidência de algum elemento coincidir com a circunscrição territorial em que o
juiz tem a competência. Pode ser o domicílio do réu (regra geral), do autor, a
localização do bem, o local onde a obrigação deve ser cumprida, ou onde
ocorreu o ato ilícito que fundamenta a ação, por exemplo.
Com relação a imparcialidade do juiz, diz Arruda Alvim que “enquanto o
autor e o réu de uma demanda são partes interessadas, o juiz deve ser
imparcial, isto é, não pode pender nem para um lado, nem para o outro”.273
Caso a parte tenha alguma suspeita da parcialidade do juiz, deve usar a
sua faculdade de usar dos institutos das exceções de suspeição ou
impedimento, protegendo, assim, o seu direito a um julgamento justo e imparcial.
Os casos de impedimento de um juiz são enumerados no art. 134 do
C.P.C., sendo eles os que seguem:
a) quando for parte: não se pode admitir que uma pessoa reclamando
um direito seja ela mesma que irá decidir se irá conceder ou não o
pedido;
b) em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito,
funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento
como testemunha: aqui impede-se o juiz de que tenha alguma
vantagem pessoal no final do processo, quando do proferimento da
sentença, visto que, por exemplo, pode arbitrar um valor absurdo
para pagamento de honorários do perito, em que ele mesmo atuou.
Vale lembrar que mandatário, neste caso, significa procurador
apenas, e não advogado;
c) que conheceu de primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido
sentença ou decisão: neste caso o reexame do processo ficaria
273 In Manual de direito processual civil, V. I, 5ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 444.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
253
comprometido, pois é muito difícil uma pessoa ter seu juízo de
convencimento mudado pelas mesmas partes. Aqui incluem-se os
recursos e a ação rescisória;
d) quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu
cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha
reta; ou na linha colateral até o segundo grau: neste item evitou-se a
possibilidade do juiz beneficiar seus parentes quando da sua tomada
de decisão, mantendo a sua parcialidade;
e) quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das
partes, em linha reta ou, na linha colateral até o terceiro grau: o juiz
não pode julgar seus parentes, em virtude de que deve-se manter
sempre parcial, o que não ocorrerá no caso de uma sentença
prolatada por ele quando uma das partes tiver o grau de parentesco
defeso por lei;
f) quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica,
parte da causa: neste caso será ele beneficiado diretamente quando
da prolação da sentença.
Já quanto à suspeição, os casos em que ela pode ser argüida estão
enumerados no art. 135 do C.P.C. São eles:
a) amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer uma das partes: a
amizade que deve ser considerada aqui, é aquela de cunho íntimo,
onde a troca de favores entre o juiz e a parte seja freqüente, assim
como a convivência. No caso da inimizade capital, esta deve ser
extrema, resultante de rixas familiares, políticas ou, ainda, resultante
de prejuízos econômicos;
b) alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou
de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau:
neste caso o favorecimento à parte que seja, além de seu parente,
sua devedora ficará flagrante, em vista de o magistrado se valer de
uma sentença favorável para receber o seu crédito. Já se o juiz for
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
254
devedor da parte, este pode efetuar uma transação envolvendo uma
sentença mais favorável à parte, em troca da quitação de seu débito;
c) herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de uma das partes:
como herdeiro, o juiz poderá beneficiar seus parentes, pois nossa
legislação prevê que uma pessoa é herdeira até o quarto grau de
parentesco, ou ainda, no caso de sucessão testamentária, a
presunção de amizade que existe entre estas pessoas, pois o vulto
da herança a ser recebida pode depender de seu julgamento. Quanto
a doação, fica claro que o juiz torna-se suspeito de julgar uma lide
quando, por liberalidade da parte, receber presentes e favores,
caracterizando, inclusive, uma amizade íntima entre o magistrado e a
parte. Sendo o juiz empregador da parte, leva a crer que a relação
entre estes dois entes é de muito contato, acarretando uma certa
afeição entre eles;
d)
receber dádivas, antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar
alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios
para atender as despesas do litígio: ao receber favores de uma das
partes, estará o magistrado pendendo para um dos lados da lide, pois
poderá estar trocando o favor pela sentença favorável a esta parte.
Do mesmo modo ocorre se o juiz aconselhar a parte sobre a causa,
visto que estará guiando a parte para uma sentença a seu favor.
Subministrando meios ao litígio, estará o juiz interessado no desfecho
da causa, tanto por causa de relações afetivas (ou de parentesco)
quanto por vantagens que poderá auferir com o resultado da
demanda;
e) interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes:
caracterizará o interesse do magistrado quando, por exemplo, o
proprietário prometer alugar um imóvel (a ser reavido por uma ação
de despejo) para o próprio juiz.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
255
Capacidade:
A parte deve ter a legitimação formal para agir, para que se produzam os
efeitos do processo.
Porém, não se deve confundir a legitimação formal com a capacidade de
agir, pois embora sejam conceitos parecidos, diferem por ser a capacidade de
agir imanente à parte, enquanto que a legitimação pertence à pessoa que está
no exercício e gozo de seus direitos.
Caso não sejam seguidos os pressupostos acima enumerados, o
processo será inexistente desde o ajuizamento da petição inicial, visto tratar-se
de uma relação jurídica que nunca se formou, devido a falta de requisitos
essenciais para sua existência ou validade, pois “os pressupostos põem a ação
em contato com o direito processual”
274
, como ensina Humberto Theodoro
Júnior.
Não podemos esquecer da grande discussão doutrinária acerca da
formação do processo. Alguns autores dizem que o processo é formado já na
distribuição. Outros defendem a posição de que o processo só se forma depois
da citação do réu.
A meu ver, não procede a afirmação dos autores que dizem que o
processo forma-se logo quando da sua distribuição. O processo, como
explanado acima, necessita de certos requisitos para existir, portanto é
inexistente antes da citação do réu, por ser a citação um pressuposto processual
de existência do processo, sem a qual não ocorre a relação trilateral apregoada
por Arruda Alvim, que diz: “Não podemos dizer que já há processo íntegro, como
relação trilateral, e, no sentido prático e real, se não houver citação da parte
contrária”.275 A extinção do processo antes da citação só poderá ser feita sem o
julgamento de mérito da causa, o que por si só já torna o processo frustrado, e
pelo motivo de ser a petição inicial indeferida pelo Juiz (outro pressuposto
processual), como diz o art. 267 do C.P.C.
274 In Curso de direito processual civil, Vol. I, 18ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 58.
275 In Manual de direito processual civil, Vol. I, 5ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 438.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
256
Um grande problema, acerca da citação do réu, está contido no art. 10 do
nosso Código de Processo Civil; problema este, de ordem processual, o qual dá
margem para grandes discussões doutrinárias sobre seu conteúdo. Muitos
autores sustentam que trata-se de litisconsórcio necessário, enquanto outros
dizem tratar-se de integração de capacidade.
Porém, se analisarmos o referido artigo, veremos que trata-se de
integração de capacidade, porque apenas o cônjuge que é parte atuará no
processo, sendo necessário apenas o consentimento (por escrito através de
instrumento público ou particular, ou meramente pela outorga de procuração,
entre outros) do outro cônjuge.
Desta forma é a lição de Arruda Alvim, que diz “que não foi criada
qualquer regra que generalize o litisconsórcio (litisconsórcio necessário,
portanto) entre os cônjuges. Pelo contrário, o sentido do dispositivo é inverso:
versa sobre dispensabilidade da participação do cônjuge do autor ou do réu em
todas as ações possessórias, excetuados os casos de composse ou de atos
praticados por ambos”.276
No caso do pólo ativo, se um cônjuge agiu sem o consentimento do
outro, o processo será nulo por ser o cônjuge litigante parte ilegítima, faltando,
deste modo, um pressuposto processual, assim como no pólo ativo, pois haverá
falta de um outro pressuposto processual, que é a citação. Porém, pelo teor do
art. 11 do C.P.C., o Juiz pode requerer que qualquer das partes supram o
consentimento, ficando, assim, descartada a possibilidade da decretação da
nulidade do processo.
Mas há uma exceção ao caso. Se tratar-se de composse, não mais seria
integração de capacidade, e sim, litisconsórcio necessário, tanto ativo quanto
passivo, pois ambos os cônjuges seriam titulares diferentes de um mesmo
direito. É isto que nos diz o art. 488 do Código Civil: “se duas ou mais pessoas
possuirem coisa indivisa, ou estiverem no gozo do mesmo direito, poderá cada
276 In Manual de direito processual civil, Vol. 2, 5ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 52.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
257
uma exercer sobre o objeto atos possessórios, contanto que não excluam os dos
outros compossuidores”.
Existem, também, pressupostos processuais negativos, os quais nos
dizem se há a possibilidade, ou não, do processo existir. Estes pressupostos
impedem que o processo tenha o seu desenvolvimento normal devido às
circunstâncias que veremos a seguir.
Os pressupostos processuais negativos, são:
Litispendência:
Ocorre quando um segundo processo é idêntico a um primeiro já
ajuizado, sendo este primeiro processo um pressuposto processual negativo
para o segundo, visto tratar-se de matéria que já está sendo analisada pelo
Poder Judiciário.
A igualdade de ações se dá quando se tem as mesmas partes, mesma
causa de pedir (próxima e remota) e o mesmo pedido (mediato e imediato).
Ocorrendo esta circunstância deve ser o segundo processo arquivado,
sem julgamento do mérito, assim que for constatada a litispendência, tendo-se
como meio de verificação, de qual processo prosseguirá, a data da primeira
citação do réu.
Coisa Julgada:
A coisa julgada é um instituto muito parecido com a litispendência, com a
diferença que a reprodução da ação se dá com uma sentença já transitada em
julgado, ou seja, uma sentença de mérito da qual não caiba mais recurso algum.
Sua finalidade é a de diminuir o número de processo para os Juízes, para
que não se julgue diversas vezes a mesma ação em varas ou tribunais
diferentes, tornando assim mais eficaz a prestação jurisdicional.
Além disso, a coisa julgada forma-se para ambas as partes, podendo ser
alegada por qualquer uma delas como matéria de defesa.
Perempção:
Perempção ocorre na “hipótese de o autor abandonar a causa por mais
de 30 dias, entendendo-se por abandono seu comportamento omissivo, quando
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
258
lhe competia promover algum ato ou diligência no processo ou com relevância
para o curso do procedimento (art. 267, III). Se por três vezes o autor der causa
à extinção do processo por este motivo, diz-se ter ocorrido perempção”.277
Ocorrendo a perempção o autor não poderá intentar nova ação, visto ter
extinguido seu direito. Poderá, todavia, alegar este direito em sua defesa.
Caso venha o autor ingressar com uma quarta ação, esta deverá ser
extinta sem o julgamento do mérito da questão, por não existir mais a
possibilidade de se discutir este direito em juízo.
CONDIÇÕES DA AÇÃO
Primeiramente, devemos conhecer algo sobre a categoria processual da
admissibilidade, que falam das matérias necessárias à existência do processo.
Suas espécies, são a matéria de processo e a matéria de ação. A primeira, será
o objeto a ser discutido no curso do processo, onde será verificado se este é
possível, enquanto a segunda trata das condições necessárias para que se
consiga o resultado procurado por ambas as partes, quando se extinguirá a
ação.
A categoria processual da admissibilidade tem como função verificar se o
processo formou-se validamente. Seu intuito é a de verificar se estão presentes
todas as matérias a serem julgadas, como nos ensina Ernane Fidélis dos Santos
“existem, assim, três ordens de matéria que o Juiz, necessariamente, enfrenta,
quando julga no processo: matéria de processo, matéria de ação e matéria de
mérito. As duas primeiras, conjuntamente, podemos chamar de condições de
admissibilidade do julgamento da lide”.
Arruda Alvim classifica os requisitos de admissibilidade como uma
categoria mais ampla, que engloba tanto os pressupostos processuais quanto as
condições da ação.
277 CALMON DE PASSOS, José Joaquim, Comentários ao código de processo civil, 8ª ed., V. III, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 263.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
259
Já as condições da ação, no meu modo de pensar, são requisitos
doutrinários e/ou legais necessários para que se chegue a uma sentença de
mérito. Diferencia-se das condições de admissibilidade pelo fato de tratar, como
dito acima da matéria de mérito do processo, enquanto as condições de
admissibilidade tratam da matéria de ação e da matéria de processo, como
explicado anteriormente.
Segundo o C.P.C., no seu art. 295, as condições da ação são o interesse
de agir, a legitimação para a causa e a possibilidade jurídica do pedido, sendo
que estas condições correspondem a um numerus clausus, pois não
encontramos em outros artigos condições diversas para que a ação vingue.
Uma das grandes dúvidas do direito processual, é a definição do
interesse de agir. Dúvida esta que tentaremos esclarecer, em breves palavras,
nas próximas linhas.
Segundo Arruda Alvim, “Interesse processual ou de agir é diverso do
interesse substancial ou material, pois é aquele que leva alguém a procurar uma
solução judicial, sob pena de, não o fazendo, ver-se na contingência de não
poder ver satisfeita sua pretensão (o direito que é afirmado)”.278
Assim sendo, o interesse de agir nada mais é do que a pretensão de
alguém de ver satisfeito um direito que diz ter contra outra pessoa.
Já em relação a legitimação para a causa, é a condição necessária para
se verificar se a pessoa é realmente o titular do direito a ser discutido. É,
portanto, a legitimacio ad causam, pregada por nosso direito material, “do direito
de ação ao autor, possível titular ativo de uma dada relação ou situação jurídica,
bem como a sujeição do réu aos efeitos jurídico-processuais e materiais da
sentença” 279, como nos ensina Arruda Alvim.
Uma grande dúvida que existe entre estes operadores é a possibilidade,
como alguns autores afirmam, da discussão sobre um objeto impossível.
278 In Manual de direito processual civil, 5ª ed., V. 2, São Paulo: RT, 1996.
279 In Manual de direito processual civil, 5ª ed., V. 2, São Paulo: RT, 1996.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
260
Porém, acho esta assertiva totalmente desprovida de qualquer
fundamento, pois não se pode pedir a tutela jurisdicional do Estado para uma
coisa que não existe tanto no ordenamento jurídico quanto no mundo fático.
Neste caso, tornaria a petição inicial inepta desde o seu feitio, pois não
se tem como avançar a discussão no processo com um objeto sem previsão
legal de existência. Arruda Alvim entende por possibilidade jurídica do pedido
que “ninguém pode intentar uma ação, sem que peça providência que esteja, em
tese, prevista, ou que a ela óbice não haja, no ordenamento jurídico material”.280
Outra grande dúvida entre os operadores do direito consiste em saber se
o cabimento da ação é de natureza formal ou material.
A meu ver, o cabimento da ação resulta do direito processual, pois todos
os requisitos que são elencados como pressupostos e condições, estão na lei
processual, e não na lei material. O que se irá discutir não será o direito material,
mas o cabimento ou não da ação que resulta do direito processual.
Portanto, como todos os requisitos aqui definidos encontram-se nas leis e
na doutrina processual, não existe margem para dúvida de que o cabimento da
ação é de natureza formal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVIM, Thereza. O direito processual de estar em juízo, São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1996.
ALVIM, Thereza. Questões prévias e os limites objetivos da coisa julgada, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977.
ARRUDA ALVIM, José Manoel. Direito processual civil – 1, São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1995.
ARRUDA ALVIM, José Manoel. Tratado de direito processual civil, 2ª ed., V. 1,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
280 In Manual de direito processual civil, 5ª ed., V. 2, São Paulo: RT, 1996.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
261
ARRUDA ALVIM, José Manoel. Tratado de direito processual civil, 2ª ed., V. 2,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996.
ARRUDA ALVIM, José Manoel. Manual de direito processual civil. 5ª ed., rev.,
ampl. e atual. V. 1, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996.
ARRUDA ALVIM, José Manoel. Manual de direito processual civil. 5ª ed., rev.,
ampl. e atual. V. 2, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996.
BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao código de processo civil, 10ª ed., V. I,
Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998.
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao código de processo civil,
8ª ed., V. III, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998.
CHIOVENDA, Giuseppe. Saggi di diritto processuale civile, Volume Secondo,
Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1993.
FAZZALARI, Elio. Instituzioni di diritto processuale civile, 7ª ed., Roma: CEDAM,
1994.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos
sobre a coisa julgada, Notas de Ada Pellegrini Grinover, 3ª ed., Rio de
Janeiro: Editora Forense, 1984.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil, Tradução e notas de
Cândido Rangel Dinamarco, 2ª ed., V. I, Rio de Janeiro: Editora Forense,
1985.
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários ao código de processo civil,
Atualização legislativa de Sérgio Bermudes, 3ª ed., Tomo II, Rio de Janeiro:
Editora Forense, 1996.
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários ao código de processo civil,
Atualização legislativa de Sérgio Bermudes, 3ª ed., Tomo III, Rio de Janeiro:
Editora Forense, 1996.
PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Comentários ao código de processo civil,
Atualização legislativa de Sérgio Bermudes, 3ª ed., Tomo IV, Rio de Janeiro:
Editora Forense, 1996.
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
262
ROCCO, Ugo. Tratato di diritto processuale civile, 2ª ed., V. I, Torino: UTET,
1966.
SANTOS, Enane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 3ª ed., atual. e
reform. V. 1, São Paulo: Editora Saraiva, 1994.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 17ª ed.,
atual. v. 1, São Paulo: Editora Saraiva, 1994.
SILVA, Ovídio A. Batista da; GOMES, Fábio Luiz. Teoria geral do processo civil,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 18ª ed., rev.
e atual. v. I, Editora Forense, 1996.
v
Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1
263
Download

REVISTA JURIDICA MATER DEI - volume 01