O Decreto No. 3100, de 30 de junho de 1999, e a regulação da lei das OSCIP's e do termo de parceria Paulo Haus Martins Introdução Decretos, na hierarquia do direito, estão abaixo das leis. As leis são normas genéricas e, por isso, precisam ser disciplinadas, em seus aspectos práticos, por decretos. Na prática, é comum que os decretos sejam mais importantes para as pessoas atingidas ou beneficiadas do que as próprias leis que os originaram. O Decreto nº 3100/99, regulamenta e disciplina a Lei 9.790/99, a lei das organizações da sociedade civil de interesse público. Para que serve o Decreto no. 3100/99? A competência do Executivo para expedir o Decreto nº 3100/99 está explícita em seu preâmbulo: o artigo 84, IV da Constituição Federal, que diz: Art. 84 - Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. O Decreto nº 3100/99 disciplina as seguintes questões: a. obrigações, documentos e atos necessários da entidade que estiver pleiteando o b. c. d. e. título de oscip (artigos 1, 5, 11, 12, 18, 19, 21, 22 e 26); métodos e detalhes a serem observados pelo administrador público que vai conceder o título (artigos 2, 3, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 17, 23, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 31 e 32); interpretação de conceitos determinados na lei nº 9790/99 (artigos 6 e 7); estipulação de direitos das partes (artigo 16); Casos genéricos (artigos 4 e 20). Ler com atenção todos os artigos é uma obrigação de quem quer se candidatar ao título de oscip e a celebrar termos de parceria. As obrigações das oscips e as do poder público Os artigos que disciplinam as obrigações das oscips são claros e determinados, incluem uma série de normas que serão, várias vezes, difíceis de serem cumpridas. Mas, essa é a regra do jogo. Por outro lado, os artigos que disciplinam as obrigações do administrador público devem ser lidos, também, como garantias das oscips (ou candidatas a oscips). A regra de direito público chamada legalidade obriga ao administrador a cumprir rigorosa e exclusivamente o determinado por lei. Se algum dos atos necessários não foi cumprido ou não o for completamente da forma indicada, o ato poderá ser considerado inválido. Tal fato deve preocupar tanto aqueles que conseguirem o título quanto aqueles a quem for negado. A falha formal ou inexistência de algum ato obrigatório podem fazer com que o processo administrativo seja todo revisto. De nosso ponto de vista, é importante avaliar as novidades e os esclarecimentos conceituais trazidos pelo Decreto nº 3100/99. Novidades Mais de um termo de Parceria Como novidade, notamos que ficou clara e expressa a possibilidade de uma mesma entidade ter mais de um termo de parceria em vigor, ao mesmo tempo (art. 16). Isso é muito importante. O que justifica a concessão de um termo de parceria é um conceito genérico que não foi disciplinado pelo decreto: a capacidade operacional da entidade. Inegável que este novo dispositivo consolida um direito que pode trazer grandes benefícios às entidade e ao país. Por outro lado, deve preocupar os concorrentes a possibilidade de benefício indevido a uma entidade em prejuízo de outras, de concorrência desleal e tráfico de influência em favor de uma organização. É importante lembrar que o direito a ser atingido pela regra não pode entrar em conflito com outros princípios da administração pública, como probidade e impessoalidade. O Concurso de Projetos entre oscips Ainda no campo das novidades do Decreto nº 3100/99, destaca-se a previsão de realização de concursos entre oscips para a celebração de termos de parceria. Não havia clareza na lei quanto à forma de escolha das entidades parceiras. Os convênios, por sua vez, não dependiam de concurso entre projetos. Tal fato sempre colocou em questão a lisura da celebração dos convênios. O concurso de projetos tem como pressuposto a impessoalidade e a existência de metodologia de escolha com critérios públicos previamente definidos. O paradigma das regras desse concurso certamente será a lei de licitações, naquilo que a Lei nº 9790/99 e o Decreto nº 3100/99 não forem claros o suficiente. A curiosidade é que o artigo 23 do decreto não fala em obrigatoriedade de se fazer concurso, mas em possibilidade. Essa redação nos obriga a cogitar certas questões, principalmente: a) se a possibilidade se refere a fazer o concurso, ou ser possível celebrar o termo sem concurso; b) se o termo 'poderá' se refere ao final da frase, delimitando o termo de parceria à obtenção de bens e serviços para a realização de atividades, eventos, consultorias, cooperação técnica e assessoria. Confira o que diz o artigo 23 do Decreto nº 3100/99: Art. 23. A escolha da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, para a celebração do Termo de Parceria, poderá ser feita por meio de publicação de edital de concursos de projetos pelo órgão estatal parceiro para obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades, eventos, consultorias, cooperação técnica e assessoria. Parágrafo único. Instaurado o processo de seleção por concurso, é vedado ao Poder Público celebrar Termo de Parceria para o mesmo objeto, fora do concurso iniciado. Para interpretar corretamente o artigo, temos de considerar dois dos princípios mais importantes de direito público: o da legalidade e o da impessoalidade. O princípio da impessoalidade obriga o administrador público a tomar medidas sem beneficiar a quem quer que seja, visando unicamente o interesse público e concedendo condições de igualdade à toda sociedade. Já o princípio da legalidade obriga o poder público a somente atuar quando e da forma que a lei determinar. Esse último princípio tem sentido contrário aos princípios de direito privado, onde todos podem fazer tudo o que a lei não proíbe. No direito público, por causa do princípio da legalidade, o poder não pode fazer nada que a lei não diga que deve fazer, expressamente. Assim, minha tendência pessoal é de interpretar o artigo 23 não como uma possibilidade de não se fazer concurso, mas de uma obrigatoriedade de se fazer concurso. A possibilidade estaria se referindo às limitações de celebração do Termo de Parceria, regulando suas circunstâncias para que somente seja possível celebrá-lo com oscips e para a obtenção de bens e serviços, realização de atividades, eventos, consultorias, cooperação técnica e assessoria. A delimitação dos conceitos Os conceitos da Lei nº 9790/99 são jurídicos e, portanto, a não ser que a lei os discipline claramente, vão ser interpretados pelos métodos tradicionais. Por vezes, tais métodos são insuficientes e podem criar grandes polêmicas de resultados contraditórios. Assim, tem grande importância a interpretação que o decreto dá aos conceitos da lei nº 9790/99. Vamos ponto por ponto. O que é Assistência Social para a Lei nº 9790/99? O artigo 6° é o primeiro que disciplina conceitos e os limita. Faz-se referência a dois conceitos: o da assistência social e o da gratuidade na prestação dos serviços de atendimento à saúde e de educação. Diz o artigo 6°: Art. 6º Para fins do art. 3o da Lei nº 9790/99, entende-se: I - como Assistência Social, o desenvolvimento das atividades previstas no art. 3o da Lei Orgânica da Assistência Social; O artigo 3° da Lei 8742/93 é inspirada na definição dada pela Constituição Federal. O que é prestação gratuita em saúde e educação? Ainda no artigo 6° do Decreto nº 3100/99 está determinado que: II - por promoção gratuita da saúde e educação, a prestação destes serviços realizada pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público mediante financiamento com seus próprios recursos. § 1o Não são considerados recursos próprios aqueles gerados pela cobrança de serviços de qualquer pessoa física ou jurídica, ou obtidos em virtude de repasse ou arrecadação compulsória. § 2o O condicionamento da prestação de serviço ao recebimento de doação, contrapartida ou equivalente não pode ser considerado como promoção gratuita do serviço. Esta alínea e seus parágrafos tentam estabelecer limites à fraude. Quem redigiu o Decreto considerou que era necessário estabelecer precisamente o que seria considerado 'promoção gratuita', vinculando-a à doação de recursos financeiros, humanos e técnicos, sem contrapartida, sem pagamento em troca. Em resumo: não adianta fingir que o pagamento aos serviços foi doação. Tudo que for obrigatório ou derivado de contrato deve ser muito bem monitorado nesse campo. A Obtenção de Vantagens Pessoais Já o artigo 7° estabelece: Art. 7o Entende-se como benefícios ou vantagens pessoais, nos termos do inciso II do art. 4o da lei nº 9790/99, os obtidos: I - pelos dirigentes da entidade e seus cônjuges, companheiros e parentes colaterais ou afins até o terceiro grau;II - pelas pessoas jurídicas das quais os mencionados acima sejam controladores ou detenham mais de dez por cento das participações societárias. Este artigo toca em tema muito delicado: a remuneração disfarçada. Para evitar que o dirigente obtenha vantagens pessoais com o poder que dispõe, foi necessário abstrair a figura única do dirigente e projetar as formas fraudulentas de obter vantagem indevida. Afinal, estamos falando de entidades sem fins lucrativos cujo tema central é a atividade desinteressada. As formas de burlar o conceito cogitadas pelo decreto são duas: o nepotismo e a arquitetura societária. Nepote, em latim, é sobrinho. O termo nepotismo começou a ser utilizado há muito tempo atrás, referindo-se aos jovens favorecidos pelo Papa da Igreja Católica. Hoje o termo se consolidou e entrou no vocabulário comum. Nepotismo, hoje em dia, é todo favoritismo concedido aos parentes dos governantes, ou seus 'afilhados'. O novo decreto, deixando de analisar o nepotismo em si, coibiu sua incidência indicando os personagens que poderiam servir de instrumento para o favorecimento. Por sua vez, a alínea II do artigo 7° fala de outra fraude, agora societária (ou institucional). Todos já ouvimos falar de ONG's que existem para possibilitar negócios fraudulentos, das fundações que encobrem grandes fortunas. Pois bem, aqueles que fizeram a lei também, e tentaram evitar que isso ocorra. Neste caso busca-se, principalmente, a fraude de remunerar o dirigente utilizando-se de outra identidade, mesmo que jurídica. Também nesse caso pretende-se coibir a burla à licitação sem favorecimentos que deve nortear a aplicação de verbas públicas. Conclusão A preocupação de impedir que as oscips burlem regras básicas de administração de recursos públicos é bastante louvável. Contudo, acredito pessoalmente que os termos utilizados no artigo 7° foram um pouco excessivos e podem excluir ONG's importantes pela aplicação rigorosa de conceitos que tem origem bastante genérica. Intuir nepotismo em estruturas por vezes tão precárias, pode ser um exagero. Mas, devemos admitir, é um problema de difícil solução. Como diferenciar o favorecimento indevido que caracteriza o nepotismo daquelas situações honestas e retas onde pessoas da mesma família trabalham em conjunto numa organização? Considerando que nosso país tem distinções dramáticas entre as classes sociais e que a boa formação técnica pode ser muito limitada, como não colocar em risco grandes projetos em lugares onde a única mão-de-obra qualificada está locada, por exemplo, em uma mesma família? Acredito, pessoalmente, que somente o tempo poderá definir se o conceito de vantagem pessoal inaugurado pela lei e pelo decreto é excessivo. Por enquanto, neste particular, prefiro entender que o decreto comportouse como uma professora rigorosa, que exige mais dos filhos do que dos outros alunos. Tudo bem, mas é inevitável a comparação: esta senhora de boa fé e formação reta, pela letra fria do decreto, não poderia se utilizar dos frutos do rigor que impôs aos filhos, ou jamais conseguiria o título da lei nº 9790/99 Diferença do conceito de não lucratividade anterior Antes da Lei 9.790/99 a legislação brasileira, embora não definisse o que venha a ser "finalidade não lucrativa" para o mundo do Direito, definia a finalidade não lucrativa para efeitos de certas leis, especialmente tributárias. É uma constante encontrarmos em textos legais dispersos que a finalidade não lucrativa, para efeitos próprios de benefícios daquela lei específica, depende da não distribuição de lucros e não remuneração de sócios. Assim, na prática, acaba se proibindo a remuneração dos dirigentes e criando uma cortina de trejeitos e jeitinhos, onde o sócio da organização deve deixar de ser sócio para receber a justa remuneração por seus serviços. Foi nesse ponto que a Lei 9.790/99 inovou, ao reconhecer pela primeira vez em uma lei que a finalidade não lucrativa não depende da não remuneração, contudo o fez somente para os efeitos daquela lei. Logo, quem por ora resolver remunerar os dirigentes não terá direito à isenção de Imposto de Renda, por exemplo, embora possa concorrer ao título de OSCIP. É o primeiro passo de uma longa caminhada. 4ª vantagem: O controle social Uma das grandes características das entidades de que estamos falando, as ONG's, é que, em geral, o seu compromisso público é tão profundo que não temem de sorte alguma prestar contas, pelo contrário, temem não prestá-las. Como vimos antes, prestar contas em convênios é um ato difícil e não necessariamente de resultados compreensíveis para o setor privado. Uma grande vantagem da Lei 9.790/99 é que tornou oficialmente possível uma contínua prestação de contas por métodos que se baseiam mais na eficiência/eficácia do que na formalidade. O acesso público irrestrito às contas das organizações é uma grande vitória delas, por contraditório que possa parecer, porque desvenda a todos o compromisso do setor com a transparência e com o interesse público. A lei 9709/99 disciplina formas de prestação de contas bastante revolucionárias, instituindo a publicidade e, ainda, submete o título ao questionamento público. Por lei, qualquer cidadão pode requerer judicial ou administrativamente a cassação do título de OSCIP. Identifico esse dispositivo como uma enorme vitória do setor. Diferença entre o novo modelo e os anteriores Quanto à questão da prestação de contas com controle social, o convênio e as formas anteriores de relacionamento entre o setor público e o privado estão muito aquém do que foi instituído pela Lei 9.790/99, são profundamente privatistas e privilegiam a capacidade discricionária da entidade em manter sigilo de suas operações, ou seja, não prestar contas ao público. Conclusão: a água e o vinho Como disse anteriormente a primeira e grande vitória da Lei 9.790/99 é o reconhecimento de uma identidade nova. Todas as outras são, do meu ponto de vista, conseqüência deste ato de reconhecimento. Ao distinguir-se das outras pessoas de direito privado, as OSCIPs estão inaugurando um capítulo novo na história brasileira e seguindo uma tendência mundial. Considero pessoalmente que, embora os benefícios fiscais e tributários ainda não tenham chegado, nesta longa caminhada demos o passo fundamental, o primeiro. É preciso agora que o poder público, a sociedade e as organizações do terceiro setor resolvam comprar a briga. Todas as outras vitórias dependem do nosso compromisso com as causas que nos motivam e nos distinguem. Também em: http://www.rits.org.br/legislacao/download/lg_set99.zip