MEMÓRIA DO CONTESTADO EM LOCAIS DE PEREGRINAÇÃO DO
PROFETA JOÃO MARIA DE JESUS NA REGIÃO NORTE DO PARANÁMARILÂNDIA DO SUL.
Bruno Augusto Florentino ( Especialização. UEL)
Orientadora: Profº. Drª. Cláudia Prado Fortuna (História - UEL)
RESUMO
O projeto pretende pesquisar a memória do Contestado, buscando os fatos
históricos que foram ao longo das décadas, esquecidos ou ignorados tanto pela
historiografia regional como pelo ensino de história. Na cidade de Marilândia do
Sul, no norte do Paraná, é possível encontrar traços de uma religiosidade
popular na permanência da memória do “monge” João Maria de Jesus, ícone
da maior guerra civil camponesa nos limites dos territórios dos estados de
Paraná e Santa Catarina. Para tanto, pretendemos visitar um lugar considerado
sagrado por muitos moradores de Marilândia do Sul, buscando através de
diferentes documentos e de entrevistas com antigos moradores, as crenças e o
imaginário que ainda persistem sobre esse acontecimento histórico e sobre o
seu profeta. Pretendemos também pesquisar como a Guerra do Contestado,
presente na memória popular e ausente da historiografia e do seu ensino, tem
sido trabalhada em alguns livros didáticos atuais.
Palavras chave: Guerra do Contestado, Lugares de Memória, Ensino de
História.
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Este trabalho encontra-se no início de sua realização. Estamos
procedendo a um aprofundamento da revisão bibliográfica acerca das
perspectivas teóricas relacionadas à memória e à história oral como suporte
para a recolha de depoimentos relativos à figura do Monge João Maria, ícone
da maior guerra civil camponesa nos limites dos territórios dos estados de
Paraná e Santa Catarina. Estamos também verificando os numerosos registros
de grutas, minas d’agua e capelas dedicadas ao Monge João Maria de Jesus
nos municípios de Marilândia do Sul, Faxinal, Ventania, Farol, Campo Mourão,
Ivaiporã, São Jerônimo da Serra e Telêmaco Borba que já foram levantados
por meio de pesquisa em andamento, no DGEO-CCE-UEL.
A passagem do monge João Maria foi registrada nos estados do
sul do Brasil no início da segunda metade do século XIX, principalmente
durante os acontecimentos do conflito que teve duração entre os anos de 1912
a 1916. Em suas andanças, João Maria deixou marcas entre os moradores da
região, que eram formados, na sua grande maioria, de caboclos que estavam
às margens da sociedade de então. E essas marcas permanecem ainda hoje
na memória dos moradores destas regiões, como nos mostra Peixoto (1995),
[...] O velho aparecido não se sabe de onde,
que se fazia adorar por aquela gente pobre de
quem recebeu o título místico de monge e que
lhe criou a lenda que envolve o nome de João
Maria, talvez nem o mesmo o próprio; esse
velho esquisito que não aceitava hospedagem
em casa de ninguém, preferindo repousar no
mato à beira das estradas, que dava remédio
aos doentes dos sertões, recebendo como
paga apenas o prato de comida que lhe
ofereciam os inúmeros clientes, desapareceu
um dia, não se sabe como, pela mesma forma
de sua apresentação; e é admirável que ainda
hoje os seus fervorosos crentes esperam vê-lo
ressuscitar [...] ( p. 55).
A passagem dos Profetas ou Monges, registrada na região
desde meados do século XIX, se estende, em registros e marcos simbólicos,
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até a primeira década do século XX. A presença de João Maria de Jesus na
região da Guerra do Contestado, caracterizou-o como peregrino ou mesmo um
santo. No meio de uma população pobre, João Maria inicia a sua pregação
religiosa tomando para si as funções de padre, já que havia poucos na região.
Fazia ali missas, batizados, casamentos, além de praticar medicina popular,
com o uso de ervas e benzimentos. Podemos dizer, como indica Thomé
(1992), que as características em comum destes homens considerados como
santos eram as suas praticas religiosas junto aos sertanejos, às pregações,
aos batismos, às curas e também à maneira como se apresentavam ao povo,
submissos e desapegados das coisas materiais.
A figura do monge passa a ser ainda mais venerada após a sua
morte no primeiro conflito sertanejo que se deu nos campos do Irani. Pode-se
dizer que é a partir da morte de João Maria que sua personalidade mística
começa a ser perpetuada. Foi este monge, este personagem mítico que
perambulou pelos sertões das terras contestadas, considerado santo, profeta,
um novo Cristo que foi capaz de converter crentes em seu nome e propalar
ideias de revoluções contra as ações dos coronéis, dos estrangeiros e dos
estados de Paraná e Santa Catarina.
João Maria toma essa personificação de enviado, mensageiro,
ao arregimentar essas populações contra a opressão que sofriam devido aos
interesses dos coronéis, das madeireiras e, por fim, da companhia da estrada
de ferro que, considerada como “dragão de ferro”, retirava dos caboclos
qualquer esperança de conseguirem se estabelecer em suas terras.
Com pregações contra a República e afeição pela ordem
monarquista, seus discursos religiosos incorporam um discurso político. A
situação de vida precária dos caboclos, o abandono pelo Estado e a opressão
social em que viviam, agravava o descontentamento dessas populações e
ajudaram no fortalecimento da imagem santa do Monge.
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Como afirma Diehl (2002), o processo de voltar às memórias do
passado não deve ter somente como objetivo obter informação sobre o que foi
o acontecimento e como este ocorreu. Voltar ao passado significa reconstruir
esse passado, pois se existe memória é porque ela ainda age de forma
consciente sobre os indivíduos. Então, memória é dar significados ao passado
a partir das experiências do presente. O campo da memória pode trazer essas
memórias num acirramento do que pode ser preservado, do que é
historicizado, daquilo que realmente é característica de um grupo social, de um
país, de uma gente.
O movimento messiânico de João Maria toma proporções
significativas na sua luta pela terra e pelo pão em um movimento que, de
acordo com Galeano (1998), pode ser considerado como a maior guerra civil
brasileira, deixando como marca a morte de milhares de camponeses que
travaram esse embate por quatro longos anos.
Os camponeses de Santa Catarina e do Paraná formavam o
bravo “Exército Encantado de São João Maria”, unindo, sob a cruz verde da
bandeira branca da libertação, quase 10 mil pessoas armadas — homens,
velhos, crianças e mulheres, entre os quais se divisavam: criadores, peões e
lavradores, apegados às terras em que viviam; centenas de ex-trabalhadores
da estrada de ferro São Paulo - Rio Grande do Sul, abandonados à própria
sorte após a construção; comerciantes de vilas e de estradas; agregados e
capatazes; pessoas carentes de alfabetização, assistência e promoção social;
antigos combatentes farroupilhas e maragatos; ex-combatentes dos batalhões
de Voluntários da Pátria e da Guarda Nacional; e ainda criminosos, expresidiários e foragidos da justiça (Thomé, 1989).
A figura do monge que apregoava as boas novas foi se
cristalizando na memória de seus crentes, sendo perpetuada pelas gerações
que procederam da guerra. Seus milagres e feitos, suas rezas ainda proferidas,
são marcas dessas memórias. Pretendemos na busca dessas memórias,
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desenvolver a pesquisa na cidade de Marilândia do Sul, um pequeno município
da região Norte central paranaense, com pouco mais de 8.000 moradores,
especificamente na zona rural do Barro Preto. Essas memórias localizáveis
através das experiências religiosas dos moradores de Marilândia do Sul
matizam a construção do processo histórico fragmentado pelo tempo e
ocultado pela historiografia.
Uma igrejinha em alvenaria com apenas 12
metros quadrados, fincada no meio de uma
mata nativa no bairro rural Barro Preto, em
Marilândia do Sul, tem chamado a atenção dos
moradores locais, de outras pessoas da cidade
e até de outros estados. Trata-se da conhecida
Capela do Profeta João Maria de Jesus
(COSTA, 2011, p. 7).
Pollak (1992) nos diz que “locais muito longínquos, fora do
espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para
a memória do grupo, e, por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela,
seja por pertencimento a esse grupo” (p. 3). Essa relação de “espaço-tempo”
reproduz no sujeito experiências que possibilitam rememorar o passado
trazendo uma compreensão histórica do que se vive. Portanto, essa
rememoração é capaz de dar significados consistentes para a preservação
daquilo que foi apagado pela memória oficial.
As capelinhas do monge espalhadas por várias regiões do sul
do Brasil são formas de trazer de forma singela, tímida, mas plausível, a
representação da religiosidade cotidiana de muitas pessoas que, na busca de
respostas para suas dificuldades, tornam-se participantes dessas memórias.
Uma religiosidade popular que muitas vezes se contrapõe com a ortodoxia
católica nem sempre sendo aceita por todos, mas que faz parte dessa relação
entre a memória hegemônica e a do excluído.
Também para Diehl (2002), memória “significa, experiências
consistentes, ancoradas no tempo passado facilmente localizável (...) fazendo
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parte de perspectivas de futuro, de utopias, de consciências do passado e
sofrimento” (p.116). Essa memória individual ou coletiva propicia uma
subjetivação de experiências que as tornam parte do cotidiano dos indivíduos.
Portanto, podemos dizer que os espaços localizados através desta significação
para os devotos do monge, se tornam propriedade não mais de um passado
histórico, mas de uma recomposição deste no presente. Para o autor,
[...] a memória não perde sua complexidade e
continua sendo uma constelação que
contempla as estruturas de mudanças
temporais nos seus aspectos qualitativos. Isso
significa que ela também é caracterizada pela
relação presente-passado-presente. (p. 117).
Desde o início da Guerra, os fanáticos, como eram concebidos
os camponeses, são vistos como arruaceiros, perturbadores da ordem,
bandidos. E ainda hoje, essa história é contada nas escolas de maneira
superficial e incompleta. O que temos é a memória do Contestado, do ponto de
vista popular, sendo banida da história:
Se é possível o confronto em memória
individual e a memória dos outros, isso mostra
que a memória e a identidade são valores
disputados em conflitos sociais e intergrupais,
e particularmente em conflitos que opõem
grupos políticos diversos. (POLLAK, 1993, p. 5)
As capelas que permanecem cultuando no tempo, a memória do
monge João Maria, em algumas cidades do norte do Paraná, reavivam essa
questão da retomada da memória do marginalizado. A capela em Marilândia do
Sul, nosso local mais específico de estudo, além de um lugar de memória e
religiosidade, é também um patrimônio histórico da cultura de um povo.
Dentro da capela, que há muito tempo está
abandonada e empoeirada, estão o retrato do
profeta João Maria de Jesus, diversas imagens
de santos e muitos objetos deixados por
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pessoas que teriam sido curadas diretamente
pelo peregrino ou conseguido algum milagre
através dele. Entre esses objetos estão
muletas, chinelos, sandálias, roupas, terços,
bíblias, bandeiras de Santos Reis e outros.
Alguns rojões já queimados demonstram que
alguém teria soltado fogos em comemoração a
alguma graça recebida. Sete bancos de
madeira ali instalados testemunham que a
capela já foi local de muitos encontros de fiéis
para orações (COSTA, 2011, p. 7)
Concordamos com Montenegro (1992) no sentido de que a
cultura popular tem uma lógica de práticas, de representações e de formas de
consciência que se apresentam muitas vezes como o avesso daquilo que é
imposto cotidianamente. E é exatamente neste processo que podemos dizer
que a relação com a cultura oficial é recriada, renegada ou reproduzida.
Portanto, pretendemos conhecer pela voz dos moradores de
Marilândia do Sul, no estado do Paraná, as crenças e o imaginário que ainda
persistem sobre o acontecimento histórico da Guerra do Contestado e sobre o
profeta João Maria de Jesus. Acreditamos que estas memórias venham
reavivar a necessidade de tirar a poeira que encobriu momentos importantes
da história regional e possibilitar a análise das narrativas sobre estes
acontecimentos, tanto na historiografia, como nos livros didáticos do ensino
fundamental e médio. Para Nilson César Fraga a história da Guerra do
Contestado,
[...] é de fundamental importância para a
formação acadêmica-estudantil da atual
geração e da futura, pois se torna necessário o
conhecimento geográfico e histórico para
entender
o
processo
de
formação
socioespacial paranaense e catarinense[...]
(FRAGA, 2005, p. 231)
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Nesta perspectiva, é que se pretende buscar por estas
memórias que foram alheadas da historiografia através de um processo de
apagamento dessas páginas que marcam a história dos estados envolvidos
neste conflito. O Contestado, ainda hoje, carrega suas marcas. Desde o início
do século XX, temos as conseqüências de uma modernização desenfreada em
que prevalecem questões políticas e econômicas, deixando de lado os
aspectos sociais do povo. E são nessas memórias do povo simples, que
transparecem todas as mazelas sociais historicamente vividas. Neste sentido,
podemos afirmar que a Guerra do Contestado é mais complexa e significativa
do que simplesmente relatam alguns livros historiográficos e didáticos da
história do Brasil.
Para Antônio Montenegro (1994), enquanto uma parcela da
sociedade hierarquiza o que é memória, o que deve ser preservado, o que
deve ser visto como identidade cultural a partir de uma posição hegemônica,
em contraponto, as massas incorporam formas de serem reconhecidas em seu
âmbito social, político e econômico, buscando mostrar que são capazes de
produzir sua própria cultura e de propalar a mesma como sua identidade, não
ficando assim às margens da sociedade elitizada.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Edison. Mistério na mata. Jornal Tribuna do Norte (Cidades). Norte
do Paraná, ano XXI, n. 6.124, 10 e 11 de julho de 2011, p. 7.
DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica. Memória, identidade e
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FRAGA. Nilson César. Contestado: A grande Guerra Civil Brasileira. In
______.Paraná Espaço e Memória. Diversos olhares histórico-geográficos.
Curitiba: Editora Bagozzi, 2005.
______. Mudanças e permanências na rede viária do Contestado: uma
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Doutoramento em Meio Ambiente e Desenvolvimento)- Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2006.
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina.Rio de Janeiro:
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MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória. São Paulo:
Contexto, 1992.
PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado I - Raízes da Rebeldia.
Curitiba: Fundação Cultural, 1995.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. Rio
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•
______________. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
THOMÉ, Nilson. As Duras Frentes de Luta desta Terra Contestada.
Florianópolis: Diário Catarinense, Suplemento, 1989.
WACHOWICZ, Ruy. História do Paraná. 1. ed. Curitiba: Imprensa Oficial do
Paraná, 2001.
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