Processo de Paz ou Processo de Rendição? Marília Carolina Barbosa de Souza A Colômbia é um país que guarda muitos mistérios. De forma que qualquer análise feita sobre determinado fato político pode ser demasiado superficial. Posto isso, sabe-se que o país, desde sua formação histórica colonial, desenvolveu-se através de regiões que se conectavam muito pouco entre si, quando havia conexões. Basta, portanto, acompanhar os argumentos do prof. Oliveiros Ferreira sobre a importância dos famigerados “contatos” para se consolidar uma sociedade verdadeira, com níveis razoáveis de interações econômicas, políticas e socioculturais. A história contemporânea do país, desde meados da década de 50, foi marcada pela presença do grupo guerrilheiro das FARC, como sendo um dos inúmeros grupos que buscaram naquele momento uma transformação radical da sociedade, inicialmente marcado pela luta de acesso a terras. Ocorre que as FARC são apenas um dos grupos que disputavam por terras, além de grupos indígenas, por exemplo, e, vale ressaltar que nunca houve uma política ampla de redistribuição do acesso a terras, como uma reforma agrária, por exemplo. O país não teve, tal como tivemos no Brasil, ainda na primeira metade do século XX, um processo de modernização e industrialização, nos moldes do protagonizado por Getúlio Vargas, em que se rompe, ou tentou-se romper, com velhas oligarquias cafeeiras e protagonizar um avanço no país. Dessa forma, as negociações recentes em torno da paz, lideradas pelo presidente Juan Manuel Santos, reeleito este ano em torno dessa temática, devem ser acompanhadas com muito cuidado. O processo foi, desde seu início, liderado pelo governo, com uma disposição inédita em negociar com as FARC, e o contexto político para tal negociação foi, sem dúvida, possibilitado pela diminuição do contingente armado das FARC que era, no início dos anos 2000, de aproximadamente 150 mil homens e se reduziu para aproximadamente 9 mil combatentes, após as políticas implantadas pelo ex-presidente Álvaro Uribe, de quem Manuel Santos foi Ministro da Defesa. Tal processo conta com os seguintes eixos principais: I) Reconhecimento de Responsabilidade; II) Reparação e satisfação de Direitos; III) Esclarecimento da Verdade; IV) Garantia de Não-Repetição, V) Princípio da Reconciliação e, por fim, VI) Reconhecimento das vítimas do conflito. Para Humberto de la Calle, um dos negociadores do governo: “tais marcos jurídicos são inéditos, não só na Colômbia, como no mundo. Em primeiro lugar, chama a atenção um processo de paz que prime pelo ineditismo não reconhecer, por exemplo, o problema dos refugiados e “desplazados” internos e internacionais, ou mesmo o “espalhamento” ou “spead effect” das FARC e dos problemas que lhes são satélites, como o narcotráfico, aos países vizinhos, principalmente para o Equador e Venezuela, com que a Colômbia tem relações diplomáticas complicadas. Em segundo lugar, é importante que dos cinco aspectos fundamentais do processo de paz, sejam eles: I) Desenvolvimento Agrário; II) Participação Política; III) Desmobilização; IV) Drogas Ilícitas e, por fim, V) Reconhecimento e Reparação das vítimas; já tenham sido considerados como “resolvidos” os pontos I e II. Entretanto, o ponto I), que se refere à distribuição e ampliação do acesso à terra, não parece ser tão rápido e fácil de se resolver, já que no próprio documento oficial do processo de negociação, seria necessário, para efetivar este ponto: 1) Verificar e acabar com as terras improdutivas, criar zonas de reserva e frentes agrícolas; 2) Implantar programas de desenvolvimento com enfoque territorial; 3) Criar infraestrutura; 4) Desenvolver políticas sociais (saúde, educação, esportes, habitação, entre outros); 5) Sistemas de Crédito e apoio à produção competitiva e, finalmente 6) Políticas de Segurança alimentar. Factualmente, dos cinco pontos, o primeiro mostra-se como sendo a raiz dos conflitos colombianos e é, no mínimo curioso, que tal ponto tenha sido o primeiro a ser resolvido. As perguntas que restam são inúmeras, tais como: já foram implantadas medidas nesse sentido? Tais medidas se mostraram eficazes? Foram feitos estudos das regiões onde a situação é mais crítica? Líderes locais estão participando da aplicação dessas medidas? Há apoio e legitimidade local? Retomando o processo de paz, o presidente Santos reconheceu em 27/07/2013, na ocasião da Corte Constitucional para o Direito Internacional Humanitário, a responsabilidade do Estado pelos crimes cometidos durante 50 anos de conflito armado, seja por omissão e em casos por ação direta, e afirmou ainda que o Estado deveria reconhecer tais atos, para que seus representantes possam participar do processo de paz. Na mesma ocasião, o presidente Santos convocou os membros das FARC, do ELN e os paramilitares para reconhecerem seus atos, facilitando e agilizando assim, o processo de paz. O ponto de negociação atual está no processo de reconhecimento e reparação das vítimas, em que vítimas do governo, das FARC, dos paramilitares e de outros grupos armados foram convocadas para irem a Havana para depor, narrar e expor situações de agressão, tortura, perda de parentes em decorrência do conflito. Da mesma forma, o governo entende que haveria outras vítimas do conflito (tais como membros do próprio governo, membros das FARC, comerciantes, jovens deslocados, entre outros), mas deixa claro que “não se trata de sacrificar a justiça em nome da paz, mas de buscar a paz com o máximo de justiça. Diante desse cenário, e por se tratar da Colômbia, a “celeridade” no processo de paz não deveria ser uma variável tão presente e importante como está sendo nesse processo de negociação, já que as raízes dos conflitos podem estar sendo apenas “cortadas”, e, uma vez aparadas as arestas, o grupo guerrilheiro se renderá, sem que o Estado efetive mudanças sociais profundas, a começar pelo acesso à terra e pelas disparidades regionais. Portanto, sob esta nebulosa disposição do Estado em acelerar o processo de paz a todo custo, torna-se bastante significativa a afirmação do líder das FARC nas negociações, Juan Marquez” (Luciano Arango) de que as vítimas do conflito não são só as do confronto armado e dos erros da guerra. As políticas econômicas e sociais são as piores, pois causaram a maioria das mortes na Colômbia. Por fim, vale destacar que o conflito armado colombiano vitimou aproximadamente 5,5 milhões de pessoas e hoje a Colômbia tem o maior número de deslocados internos do mundo, somando aproximadamente 4,3 milhões de pessoas, ficando ao lado de países como o Sudão e o Iraque. 1 Reflexões da autora sobre a viagem feita à Colômbia e Venezuela no mês de julho de 2014, realizada com o grupo interinstitucional IEEI-UNESP, UNIFESP e UFRR.