JOSÉ ROBERTO SILVEIRA RENATO RUSSO E CAZUZA: A POÉTICA DA TRAVESSIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA Junho de 2007 JOSÉ ROBERTO SILVEIRA RENATO RUSSO E CAZUZA: A POÉTICA DA TRAVESSIA Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural Orientadora: Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA Junho de 2007 JOSÉ ROBERTO SILVEIRA RENATO RUSSO E CAZUZA: A POÉTICA DA TRAVESSIA Banca Examinadora: Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ Orientadora Prof. Dr. Raimundo Nonato Gurgel Soares – UFRJ Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino – UFSJ Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras Teoria Literária e Crítica da Cultura Junho de 2007 A minha mãe, Madalena, fonte de força e ternura. Ao Olívio M. Bandeira, o animal que logo sou. AGRADECIMENTOS À Profa. Suely Quintana, minha orientadora – pela dedicação, responsabilidade e carinho: companheira fundamental desta travessia. Ao professor Cláudio Leitão, por fazer parte da minha caminhada intelectual. A toda a minha família, exemplo de união e amizade, pelo apoio constante. À Ana da Consolação, amiga inestimável e companheira de outras travessias. À Paula Malta, pela amizade criativa. Ao Dirceu, pela afinidade eletiva. À Laïs, pela compreensão e carinho. À Elaine, pela amizade teórico-metodológica. Aos amigos Júlio, Nildo e Amanda, sempre por perto. Aos professores do Mestrado. Aos amigos da turma do mestrado e afins. À CAPES, pelo financiamento da pesquisa. RESUMO O trabalho propõe uma leitura da produção escrita das obras musicais de Renato Russo e Cazuza como memórias-presentes, registro autobiográfico e confessional. Busca-se o desvelamento do eu e de sua geração através do registro “autobiográfico” das letras de rock que encenam a experiência da travessia da década de 1980. A dissertação, estruturada em três capítulos, parte da localização do sujeito no contexto sócio-histórico da redemocratização do Brasil, o que permite apontar as características que permeiam as produções artísticas e compreender as peculiaridades do rock desse período. Em seguida, tem-se a discussão da relação entre música e poesia, que perpassa pelos novos suportes tecnológicos para a arte na contemporaneidade. Analisam-se, então, os modos de inscrição do sujeito na sociedade a partir de sua obra poética e documental. As obras poético-musicais de Cazuza e Renato Russo são lidas como escrita autobiográfica e confessional. Observa-se que culpa e perdão se revelam e são buscados na materialidade da mesma palavra poética. E, finalmente, procura-se ouvir quais vozes dialogam nesses textos e perseguir os rastros na escrita polifônica do rock, na qual se entrecruzam poéticas e culturas diversas. A pesquisa se fundamenta teórico- metodologicamente em Jacques Derrida, Mikhail Bakhtin, Octavio Paz, Eneida Maria de Souza e Michel Foucault. Os conceitos teóricos se diluem ao logo do texto, aproximando o conceito do poético, permitindo assim a leitura de Renato Russo e Cazuza como a poética da travessia. Palavras-chave: Renato Russo; Cazuza; poética da travessia; autobiografia. ABSTRACT This work aims at a reading of the lyrics in the songs of Renato Russo and Cazuza in the guise of present-memories, and as autobiographic and confessional registers. We endeavour to uncover the self of their generation through the autobiographic register of the rock lyrics which stage the experience of the crossing of the 1980s. This dissertation, divided into three chapters, starts by placing the individual in the social-historical context of the redemocratization in Brazil, something which will allow the realization of the characteristics which permeate the artistic productions and the understanding of the peculiarities of the rock music of the period. Then we present a discussion on the relation between music and poetry, going through the new technological devices contemporary art relies on. After that we analyze, through the study of their poetic and documental works, the ways in which the individual is inscribed in society. The poetic-musical works of Cazuza and Renato Russo are read as autobiographical, confessional texts. Guilt and forgiveness are revealed and searched for in the materiality of the poetic word itself. Finally, we try to hear the voices that interact in these texts and go on to pursuing the remains in the polyphonic lyrics of the rock music, in which different cultures and poetics are intertwined. The research is theoretically and methodologically based on Jacques Derrida, Mikhail Bakhtin, Octavio Paz, Eneida Maria de Souza and Michel Foucault. The theoretical concepts are scattered throughout the text, bringing the poetics close to the concepts, thus allowing for a reading of Renato Russo and Cazuza as the poetics of the crossing. Key-words: Renato Russo; Cazuza; poetics of the crossing; autobiography. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................. 8 1. O SUJEITO DA TRAVESSIA E DO DESCONCERTO ............................ 18 1.1. Do “iê-iê-iê” ao rock dos anos 80 .......................................................... 19 1.2. A escrita e o consumo da geração “desmemoriada” ............................ 35 2. A ESCRITA E A INSCRIÇÃO DO EU: A POÉTICA CONFESSIONAL DE RENATO RUSSO E CAZUZA ............................................................... 49 2.1. Novos suportes tecnológicos para o aedo............................................. 50 2.2. A inscrição do sujeito............................................................................. 60 2.3. A escrita autobiográfica do animal-poeta-fingidor ................................. 64 2.4. A escrita autobiográfica como confissão ............................................... 69 3. VOZES QUE COMPÕEM O ROCK DA TRAVESSIA.............................. 80 3.1. A escrita palimpsestuosa: polifonia, roubo e “outridade” ....................... 81 3.2. A “outra voz” de Renato Russo: amores de salvação ........................... 87 3.3. Os amores exagerados de Cazuza: amores de perdição ..................... 105 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 130 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 140 DISCOGRAFIA DO CORPUS...................................................................... 145 REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS............................................................. 145 BIBLIOGRAFIA GERAL .............................................................................. 146 INTRODUÇÃO A música ocupa Vem comigo/ no caminho eu te explico. Cazuza importante lugar na contemporaneidade. A multiplicidade e diversidade de gêneros e estilos musicais, entre outros fatores, como a fácil inserção no cotidiano, apontam essa expressão artística como uma das formas de entretenimento mais difundida atualmente. Permeada pelas questões de mercado e da reprodutibilidade técnica, a música comporta, na complexidade de seus suportes midiáticos (principalmente o verbal e o melódico), elementos que permitem audições distintas. Do local privilegiado que a música hoje ocupa na sociedade, parte-se para discussões das implicações e procedimentos composicionais e melódicos da canção. O que permite pensar a construção estética e literária, e também a cultura, o social, e o histórico. O destaque e importância da abrangência da canção nas relações sociais e culturais promovem o seu deslocamento para o campo acadêmico. Como objeto de pesquisa, diversas abordagens teórico-metodológicas tentam dar conta da riqueza e diversidade da nossa canção. Assim, a música tem sido objeto de interesse de eruditos, como os pioneiros Sílvio Romero e Mário de Andrade, e de historiadores, cientistas sociais, especialistas da comunicação, críticos literários e da cultura, que, atualmente, sob um olhar múltiplo e interdisciplinar se voltam com mais freqüência ao assunto. Na década de 1960, quando quase nada se produzia academicamente sobre música no Brasil, o literato e crítico Augusto de Campos publica O Balanço da Bossa (1968), conjunto de textos, na maior parte de sua autoria, que discute a música popular, principalmente, a bossa nova e o tropicalismo. A partir de então, com mais regularidade, a música é instituída como objeto de pesquisa acadêmica, ganhando atenção de estudiosos da literatura.1 Os procedimentos teórico-metodológicos atuais em estudos sobre música acompanham o ritmo da crítica literária e cultural, e lançam um olhar 1 Para um levantamento de dados mais abrangente da história do estudo da música no Brasil consultar o artigo “Pontos de escuta da música popular no Brasil”, de Elizabeth Travassos (2005). que extrapola o texto e ganha as dimensões dos vários pontos de leitura e escuta. Dessa forma, abordagens literárias e culturalistas têm ido além do simples debruçar sobre formas. A produção musical brasileira, composta pelos mais diversos gêneros e ritmos, fornece, no mesmo leque de variedades, elementos para análises, que se estendem sobre a forma e a composição, e para abordagens atentas ao cruzamento de materiais semióticos, à inovação tecnológica e à influência decisiva dos meios de (re)produção em massa. Affonso Romano de Sant’Anna (2004), preocupado com o paralelo entre a música popular e a poesia brasileira, empreende comparações entre formas populares da canção e a poesia modernista brasileira. Por sua vez, Beatriz Resende (2002), a intelectual que sai do gabinete da academia e vai à rua e sobe os morros das favelas, dá o tom e o ritmo da música de grupos postos à margem, mas que são capazes de fazer soar o grito de protesto, crítica e ironia de uma população que se sente injustiçada e desprotegida. Autores como Wander Melo Miranda, José Murilo de Carvalho, Eneida Maria de Souza, Luis Werneck Viana, entre outros críticos de literatura e cientistas sociais, propuseram decantar a república2 e, em meio ao processo de separação dos resíduos de ruínas, contradições, injustiças, mazelas e querelas do Brasil, põem em estudo o canto de celebração, exaltação e questionamento da nação. Silviano Santiago (2004), em “A democratização no Brasil – cultura versus arte”, nos lança algumas questões inquietantes que os cursos de pósgraduação no Brasil vêm repensando. Santiago discute o papel do intelectual, pensador da literatura de uma minoria letrada, que agora desperta para a cultura da maioria, e parte para uma compreensão da transformação social, econômica e cultural da sociedade, através do ruído harmônico da música popular-comercial presente no cotidiano da vida brasileira. O interesse pela cultura pop nasce na academia quando o professor de Letras se volta para a complexidade do fenômeno da música que nos envolve no dia-a-dia3. Santiago 2 Decantando a nação: inventário histórico e político da canção popular moderna (2004): coletânea de três volumes que resultam do seminário de mesmo nome que reuniu, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em setembro de 2001, filósofos, historiadores, sociólogos, cientistas políticos, psicanalistas, antropólogos e críticos literários de diversas instituições do Brasil. O olhar trans-inter-disciplinar sobre os “jeitos da nossa canção” talvez seja a marca maior deste trabalho (CAVALCANTI, B; STARLING, H. M. M.; EISENBERG, J. (orgs.), 2004). 3 De acordo com Santiago, o primeiro grito de escuta desse fenômeno foi dado pelo jovem intelectual com formação na Universidade de São Paulo, o professor de Letras e músico José concebe, então, a música como um lugar privilegiado para se pensar a cultura, a política, o social, o econômico e o histórico do país. O seu trabalho funciona como uma resenha sobre as portas abertas para o estudo da música comercial-popular no Brasil e entra na discussão a importância dos meios de comunicação de massa, como a televisão, o rádio e a indústria fonográfica elementos que não podem se ausentar, caso se pretenda a compreensão da abrangência e alcance da canção em nossas sociedades. O intelectual da Universidade, como ressalta Santiago, desperta, então, para a voz e poesia dos “letrados” da “MPB” e do “rock dos 80” ou dos que se manifestam pelo rap, hip hop, funk e tantos outros gêneros, os quais se tocam e se hibridizam. Da modinha ao rock, a música brasileira se caracteriza pela variedade de formas e estilos, uma de suas características mais importantes, que reflete a nossa diversidade cultural. A produção musical, ao lado da literatura, é capaz de fazer vir à tona questionamentos que permitem re-pensar questões imanentes ao ser humano e questões que perpassam a cultura e a sociedade. Daí, a sintonia que Lucia Lippi Oliveira denota: Olhando o elenco de canções ao longo da República, posso levantar a hipótese de que os autores da música popular brasileira são intelectuais que mantêm uma sintonia fina com seu tempo. Sintonia muito mais rápida e aguda do que a dos cientistas sociais. Os cancioneiros estão mais próximos às transformações em curso na sociedade brasileira. Mas com isto estarei apenas renovando a idéia formulada desde o romantismo do século XIX de que os poetas têm maior capacidade de ver antecipadamente4. E será justamente a “sintonia fina” dos compositores e intérpretes da música popular com o momento histórico que nos faz voltar a atenção para o palco brasileiro da década de 1980. O desconcerto e sensibilidades íntimas e o ritmo das transformações sociais, econômicas, políticas e culturais se fazem ouvir em ecos, distorções, crítica, ironia, esperança e subjetividade, no vasto repertório de canções que se espalham pelo Brasil afora, propiciado pelo aumento das vendas de discos, pela difusão radiofônica e pelo grito, antes sufocado pelos anos de repressão e censura. Miguel Wisnik com o artigo “O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez”, capítulo do livro Anos 70 – 1. Música Popular (SANTIAGO, 2004, p142). 4 OLIVEIRA, 2004, p.102. O foco desta dissertação, portanto, recai sobre as particularidades do rock na versão brasileira dos anos 80. Como objetivo principal o trabalho propõe uma leitura da produção escrita das obras musicais de Renato Russo e Cazuza como memórias-presentes e registro autobiográfico e confessional. Tomam-se Renato Russo e Cazuza como companheiros viventes da travessia da década de 80 que protagonizam na escrita poético-musical os percalços da caminhada. Dessa forma, o teor autobiográfico e confessional da escrita dois autores se estende para todos aqueles de sua geração. O corpus da pesquisa compreende as letras de música compostas por Renato Russo para a banda Legião Urbana, e as de Cazuza em carreira solo, a partir de 1985. As composições de Cazuza trazidas para a pesquisa ainda compreendem algumas interpretadas pelo grupo Barão Vermelho, do qual o compositor foi vocalista até 1984. A Legião Urbana marca oficialmente sua entrada no cenário nacional do rock em 1984, em Brasília, palco fértil para o rock brasileiro. A origem do grupo, formado por Renato Russo, letrista e vocalista, Dado Villa-Lobos, guitarrista, e Marcelo Bonfá, baterista, vem da banda punk Aborto Elétrico, criada por Renato Russo, no fim da década de 1970. A Legião Urbana se consolida no mercado ao longo das décadas de 1980 e 1990 e é considerada pela crítica e público como uma das melhores bandas de rock do Brasil. Assinadas e interpretadas por Renato Russo, as canções da Legião Urbana mesclam um lirismo altamente acentuado e a escrita autobiográfica de um eu capaz de responder pelo momento histórico que o acolhe. A banda lançou, no período de 1984 a 1997, os álbuns Legião Urbana (1984), Dois (1986), Que país é este (1987), As quatro estações (1989), V (1991), O descobrimento do Brasil (1993), A Tempestade (1996) e Uma outra estação (lançado depois da morte de Renato Russo, em 1997). O material escrito da obra musical permite o posicionamento crítico do autor, no diálogo da primeira pessoa do singular com os acontecimentos que norteiam a sua época. A canção se instala, assim, como memória cultural de um tempo, suplementando o processo de transição de uma década. As letras de Cazuza correspondem, nesse mesmo sentido, ao papel do intelectual que pensa com e por seu tempo. Cazuza estréia sua carreira solo com o lançamento de Exagerado, em 1985, depois de ter participado do grupo Barão Vermelho, formado no início de 1980, no Rio de Janeiro. Até julho de 1990, ano da morte de Cazuza, sucederam-se os seguintes álbuns: Só se for a dois (1987), Ideologia (1988), O tempo não pára (1988), Burguesia (1989) e o póstumo, Por aí (1991). Ao lado de Renato Russo, Cazuza é considerado um dos grandes letristas do rock brasileiro. Suas letras experimentam o tom exagerado, marca da escrita do eu que luta contra o tempo que não pára e deixa o registro, instintivo e confessional, capaz de extrapolar o traço biográfico e responder, como a literatura – que também é intempestiva – por sua geração. As letras das canções são tratadas aqui como poesia. O suporte teórico-metodológico não abarca a parte sonora e performática da produção musical. A relação entre letra de música e poesia é tratada na primeira parte do segundo capítulo, quando, então, tem-se uma maior compreensão do diálogo e das relações entre essas formas de expressão, que se aproximam ou se afastam conforme os seus suportes. O recorte das canções analisadas seguiu uma escolha temática que pôde estabelecer diálogo com o suporte teórico5. Dessa forma, as canções passam a dialogar com os principais conceitos teóricos da pesquisa: Jacques Derrida (2002, 2004), Mikhail Bakhtin (1981), Eneida Maria de Souza (2002) e Octavio Paz (1978). Ao longo dos capítulos, aproximam-se teoria e metáfora, conceito e poética. Dessa forma, a dissertação não apresenta um capítulo apenas teórico: teoria e objeto se diluem ao longo do texto. A diluição aponta uma contaminação de discursos, que reflete parte da prática daqueles que protagonizam qualquer travessia. A leitura assim sugerida – teórica e poética – procede do trabalho de “arqueólogo” de Michel Foucault (1987) que propõe a substituição das grandes sucessões lineares – a história dos longos períodos, das grandes bases imóveis e das grandes narrativas tradicionais – pelo jogo das interrupções e descontinuidades. Procedimento que permite operar nas rupturas especificas e fazer aparecer vários passados e outras formas de encadeamento e hierarquias históricas – e também de metodologias. Considerando-se esses fatores metodológicos, a dissertação se organiza em três capítulos. O primeiro capítulo parte de uma breve contextualização política, econômica e cultural da década de 1980 para o entendimento do rock desse 5 A data da produção das canções e a referência aos álbuns nos quais elas se agrupam, quando necessárias, são mencionadas no texto. período no Brasil. A contextualização permitiu localizar o sujeito e sua produção artística num momento em que o país se desvincula do autoritarismo e repressão da ditadura militar e aponta para as possibilidades do exercício da democracia. Com esse objetivo, busca-se informação histórica em Heloísa Buarque de Hollanda (1981), quando, em Impressões de viagem, ao tratar da produção artística das décadas de 60 e de 70, nos permite um confronto com o artista e sua produção no contexto da década seguinte. O artista dos anos 80 se afasta da atuação política e do engajamento cultural e se volta para a produção artística que protagoniza suas necessidades, anseios e desejos. Dessa forma, temos um rock’n roll que toma o sotaque brasileiro e passa a ser forma e veículo da expressão dessa geração. As letras, então, passam a comportar o alto teor de subjetividade, voltando-se para a urgência do presente, no qual convivem os sentimentos de impotência e esperança, de encanto e culpa. Herdeira do lema “faça você mesmo”, a espontaneidade, a necessidade de expressão, o subjetivismo, a força poética e musical da juventude oitentista e, principalmente, o baixo custo de produção são absorvidos pela indústria fonográfica. O rock alcança, a partir de meados dos anos 80, uma grande visibilidade, mediada pelo LP e pela divulgação radiofônica, e se torna artigo da indústria da cultura. Para entendimento desse rock, buscamos apoio em pensadores da cultura como Walter Benjamin (1993), Theodor Adorno (1985) e Silviano Santiago (2004). No que diz respeito à história geral do gênero musical, recolhemos dados em Roberto Muggiati (1973). Em Guilherme Bryan (2004) e em Ricardo Alexandre (2002), localizamos informações históricas e citações sobre a cultura e o rock dos anos 80 no Brasil. Silviano Santiago, ao se ater às questões, problemas e reflexões inspirados pela democratização no Brasil, aponta uma sociedade do espetáculo, dos produtos pasteurizados da indústria da cultura e da política de globalização, que se harmonizam com o vazio, com a necessidade de expressão e com o consumo do sujeito desse período. O rock configura-se, neste cenário, como arte e produto de venda, assumindo, assim, características de hibridez, quando comunga, num rompimento de barreiras, arranjos tradicionais e tecnológicos, subjetividade e valor comercial, rebeldia e consumo, e ainda o diálogo entre culturas, que o constitui como um gênero polifônico. Em Benjamin, ampliamos o entendimento da arte criada para ser reproduzida. O “valor de exposição”, que afasta qualquer resquício de aura, aproxima pela reprodução técnica a arte e o seu público consumidor. Por outro lado, buscando o pensamento de Adorno, observa-se que o rock assume características de arte pop, e não de gênero popular, entendido pelo teórico como aquela arte em que produtor e consumidor são os mesmos. Como arte pop, o rock responde por uma das características que define o pósmodernismo, de acordo com Frederic Jameson (1993). Passa-se para o segundo capítulo que discute, num primeiro momento, a relação antiga e íntima entre poesia e música, e como que esta última, na contemporaneidade, ocupa o lugar antes reservado à primeira. As exposições de Jacques Derrida, em Papel-máquina (2004), apontam os novos suportes tecnológicos que deslocam a poesia do seu formato tradicional de livro para incorporações eletrônicas e virtualizantes. Deslocamento que promove uma inversão na hierarquia e no prestígio da palavra escrita, ao mesmo tempo em que retoma a intimidade entre música e poesia. Renato Russo e Cazuza ao tomarem o uso desses suportes para veicular suas produções poéticas e melódicas se inscrevem no tempo e no espaço que os concebem e os recebem. Os conceitos de crítica biográfica e de relação entre autor e obra, de Eneida Maria de Souza (2002), permitem o entendimento dos modos de inscrição do sujeito na sociedade, a partir de sua obra poética e documental. Assim, a subjetividade da obra de Renato Russo e Cazuza não é vista sob o ângulo da relação naturalista e factual entre vida e obra, mas como encenação e representação da experiência dos seres viventes da travessia. Pode-se agora ler a escrita autobiográfica do animal-poeta-fingidor. O conceito operacional de Jacques Derrida (2002) sobre a escrita do animal autobiográfico é aplicado em nossos autores. Lemos, então, Cazuza e Renato Russo como animais propensos à autobiografia, quando cedem instintivamente ao registro da própria vida. Compreende-se, portanto, que o registro autobiográfico que se dá pelas letras das canções de rock pressupõe o caráter de encenação e representação do vivido – exercício de Renato Russo e Cazuza que entra em consonância com a declaração de Fernando Pessoa que aponta o poeta como fingidor. Ao escrever, em nós se revela o outro: despimo-nos, confessamo-nos. Assim, a partir de Derrida, que empreende uma escrita da genealogia da escrita da confissão em Papel-máquina (2004) e em O animal que logo sou (2002), lemos a obra de Renato Russo e Cazuza como o relato da confissão. Ao confessar, ambos expõem a culpa e anseiam por perdão. Culpa e perdão se revelam e são buscados na mesma palavra poética. O terceiro capítulo abarca o caráter polifônico do rock. O gênero na expressão brasileira dos anos 80 dialoga com tempos e culturas distantes, trazendo para a poética roqueira diversos ecos literários, musicais e históricos. Pelos conceitos de polifonia de Mikhail Bakhtin (1981), lemos Renato Russo e Cazuza e percebe-se o suplemento das espessuras finas do palimpsesto, no qual escritas se tocam, penetram-se, contaminam-se. Aproximam-se o caráter do roubo da escrita proposto por Derrida, em Papel Máquina, e o conceito de “outridade” de Octavio Paz (1982). Assim, questiona-se o lugar em que se deixam perceber as marcas daquilo que não se apaga completamente na espessura do palimpsesto. Quais os rastros, vestígios sobre vestígios, onde se pode detectar o clandestino, o roubo, a confissão do roubo de escrita, na escrita “que acusa e que se desculpa pelas citações e quase citações”6? A partir de Bakhtin, compreendemos o sujeito e suas inúmeras formas de expressão – práticas e artísticas – sempre comportando uma perspectiva de vozes distintas, que em confronto ou harmonia, tecem o discurso, a literatura e as artes. Há nesse processo de movimentação aquilo que renasce e se renova, aquilo que se conserva e o que se acrescenta. A escrita polifônica ecoa, na multiplicidade de vozes que tecem o texto do rock, rastros e vestígios de poéticas diversas, que na espessura do palimpsesto se revela culpada. O acontecimento textual e o diálogo entre escritas, como um ato de contrição, buscam a salvação, ao mesmo tempo em que a própria escrita, que tenta apagar a culpa, se fixa na profundidade do corte e do rastro e se lavra como a própria condenação. A poesia é apontada por Octavio Paz como uma revelação de nossa condição. Ao nos revelarmos, criamos. Criamos ao nos revelarmos, deixando vir à tona, pela poesia, que é uma “outra voz”, a “outra voz” que nos constitui. 6 DERRIDA, 2004, p.62. Aproximando Derrida, Bakhtin e Paz, lê-se Renato Russo e Cazuza nos rastros que compõem a escrita do animal autobiográfico, fragmentado, descentrado e desconcertado, que ousa a travessia. Sem a pretensão de uma visão totalizadora da obra de Renato Russo e Cazuza, empreende-se uma leitura das escritas desses autores como a poética da travessia. O caminho escolhido leva a uma escrita acadêmica que se situa entre as citações – poéticas e teóricas – e se revela contaminada pelo discurso do outro – poética e teoricamente. 1. O SUJEITO DA TRAVESSIA E DO DESCONCERTO 1.1. O Homem se traduz no ritmo, cifra de sua temporalidade. Octavio Paz Do “iê-iê-iê” ao rock dos anos 80 Tentando se vestir com as roupas festivas da redemocratização, a década de 1980, no Brasil, se inicia no ritmo da abertura democrática, depois de um governo militar autoritário que regeu com mãos de ferro o país, desde o golpe de 1964. Entre o colorido das novas vestes e os resquícios dos trapos do luto, o cenário nacional abriga uma configuração política que, dando continuidade ao processo de abertura “lenta, segura e gradual”, preconizada pelo governo Geisel, mobiliza, em 1984, uma multidão em torno do dilema “Muda Brasil”, entoando o grito pelas “Diretas Já”, emenda constitucional7 que garantiria, se aprovada pelo Congresso Nacional, eleições diretas para presidente da república. Entretanto, a mobilização, o grito e a luta não foram suficientes para a aprovação da emenda Constitucional Dante de Oliveira. No entanto, ainda no ritmo da vibração pela implantação de uma democracia no país, a candidatura e vitória de Tancredo Neves, pelo colégio eleitoral, pareciam dar continuidade ao tempo de esperança e luta do brasileiro. O encanto da população logo seria tomado pelo medo, quando impossibilitado de assumir o cargo, o então eleito presidente adoece profundamente e morre em 21 de abril de 1985, e, então, assume seu vice, José Sarney. O fracasso de planos econômicos promove o ritmo do desencanto do brasileiro. Em 1990, eleito diretamente pelo povo, Fernando Collor parece dar outro tropeço na democracia e na liberdade do brasileiro. A era Collor, obscura e desencantadora, dura até seu impeachment em 1991, quando outro vice-presidente, Itamar Franco, assume o governo. No release do disco dos Titãs de 1987, o escritor Paulo Leminski descarrega suas palavras sobre um vice-país: “(...) Os Titãs é o que restou do rock, suas letras são o que restou de um país falido, um vice-país, vice-governado, vice-feliz, vice-versa”8. O cenário cultural ensaia, entre tantos estilhaços e desencantos, a diversidade e a liberdade, já que o país tenta se equilibrar e caminhar em 7 A emenda das “Diretas Já” permitiria, se aprovada pelo Congresso Nacional, eleição presidencial direta já em 1984. A emenda que leva o nome do autor, o deputado federal matogrossense Dante de Oliveira, ganha um amplo apoio popular, de políticos da esquerda, de artistas e de intelectuais. O movimento com o nome de “Diretas Já” se espalha pelo Brasil em grandes comícios. No dia 16 de abril, pouco antes da votação da emenda pelo Congresso Nacional, uma multidão estimada em mais de 1,5 milhões de pessoas tomou o vale do Anhangabaú, em São Paulo. Foi uma das maiores manifestações políticas jamais vista no Brasil. A votação aconteceu, em Brasília, no dia 25 de abril. A proposta foi rejeitada por falta de 22 votos (foram 298 votos a favor, 65 desfavoráveis e 113 abstenções). 8 LEMINSKI apud DAPIEVE, 2004, p.101. direção à democracia plena, depois dos anos de chumbo do autoritarismo militar. A geração 80 não herda a atuação política das décadas anteriores (60 e 70). Sem o cunho político ideológico e a participação engajada, as produções dos jovens artistas são marcadas pelo alto teor de subjetividade, sem compromissos diretos de atuação e contestação política. A palavra poética tenta responder pelo eu e não aposta mais na eficácia revolucionária, como acreditava o artista dos anos 60. “Nos anos 80, a meninada começa a falar o que realmente interessa a ela de modo mais direto. De amores desgraçados, sem ter que falar politicamente de cerceamento, de vamos tomar o poder! Para fazer o que com ele?”9. As palavras de Ezequiel Neves, produtor musical, dão o tom da produção poética de várias bandas de rock que surgem no início da década e se fazem ouvir no país inteiro, por anos afora. Heloísa Buarque de Hollanda, em Impressões de Viagens (1981) – trabalho que examina como, a partir da década de 60, a literatura participa dos debates mobilizados pelas propostas revolucionárias da produção populista e do experimentalismo de vanguarda – observa como, no calor dos “incríveis anos 60”, a produção cultural é marcada pela “necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética”10. A arte popular revolucionária correspondeu, portanto, a uma demanda colocada pela efervescência político-cultural da época. Ainda que na prática, como analisa Hollanda, a poesia populista não desempenhava, apesar de seu propósito engajado, função revolucionária “enquanto palavra política e poética, conseguiu, no contexto, um alto nível de mobilização das camadas mais jovens de artistas e intelectuais a ponto de seus efeitos poderem ser sentidos até hoje”11. Na agitação mundial que norteia o ano de 1968, quando surge a massa atuante dos estudantes universitários, há a saída de cena da produção poética, quando há o deslocamento da poesia para o teatro, para o cinema e para a música. Tais manifestações ocupam o cenário cultural da época e chamam atenção tanto dos produtores como dos receptores da cultura. Em se tratando da mudança cultural para o campo da música popular, esta é vista como uma forma de captar e transmitir sentimentos e valores 9 NEVES apud BRYAN, 2005, p.34. HOLLANDA, 1981, p.17. 11 Ibid., p.28. 10 necessários para uma evolução social e ainda como forma de manter vivas tradições de unidade e integrações nacionais. Porém, o mesmo problema diagnosticado, o que leva ao fracasso da poesia como manifestação da voz do povo, também acontece na música, quando há o distanciamento entre o intelectual, que tenta se passar como porta-voz do povo oprimido, e a grande massa, que não consegue ter em tais manifestações culturais o real registro de seus anseios e a resposta para eles. Dessa forma, a produção cultural engajada se restringe a um circuito fechado, consumida por um público de intelectuais e estudantes da classe média, sem atingir, portanto, as classes populares – fracassando em suas pretensões revolucionárias. O engajamento experimentalista das vanguardas da década de 60 também acreditava nos aspectos revolucionários da palavra poética e queria participar ativamente dos debates políticos. O intelectual também se colocava ao lado do proletariado e se achava no direito de por ele falar. E sem lugar para a intervenção da subjetividade do poeta, diante do horizonte técnico da sociedade industrial, dos novos padrões da comunicação não verbal, da linguagem publicitária, do out-door, do cartaz, o poema deve se livrar da alienação metafórica. Para ser projetado como um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas12. A citação ilustra um pouco a proposta do concretismo, que ao lado de dois outros movimentos de vanguardas – o poema-práxis e o poema-processo – unem-se em uma mesma inclinação revolucionária, ainda que perpassando caminhos diferentes para garantir sua eficácia. No entanto, conforme Hollanda, a crença extremada no poder e onipotência da palavra reverte-se no contrário e provoca a chamada “crise de vanguardas”, que pode desencadear cisões e revisões dos movimentos e de seus integrantes. Na virada da década de 60, o tropicalismo passa a desempenhar papel importante para a música brasileira e para toda a cultura do momento. Desconfiando dos projetos de tomada do poder e valorizando os meios de comunicação em massa, o movimento adota, na construção das letras da canção, uma base literária em que se percebe o fragmento, a alegoria, o 12 Ibid., p.61. moderno e a crítica ao comportamento. Preocupa-se com o momento e “começa a pensar a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento, rompendo o tom grave da falta de flexibilidade prática da política vigente”13. Obviamente, num contexto mais amplo, vários nomes e bandas tentam se firmar ou pelo menos produzir um “som” no país regido pelos militares. No Brasil, o rock registra, nas duas dezenas de anos de luta para firmar e sobreviver, contraditoriamente ao seu tom de rebeldia, bons antecedentes: uma letra ingênua-brega dos “banhos de lua” e dos “biquínis de bolinha amarelinha” de Celly Campello e os iê-iê-iê inspirados nos “yeah, yeah, yeah” de “She loves you”, dos Beatles, de 1963. Por essa época, o rock ainda é visto como um artigo importado e supérfluo. No entanto, é nesse mesmo período que, no Brasil, a contracultura, o desbunde, o underground, as drogas e mesmo o rock dão seus sinais, funcionando como uma recusa ao atual projeto político e econômico. Começa nesse tempo, um desinteresse pela política. Ainda estamos na década de 70, mas esse tom será o da década seguinte, quando de fato o rock recebe o sotaque brasileiro e carrega nas letras a subjetividade do autor sem a preocupação e a necessidade de um engajamento político. O rock se firma como estética do aqui e agora, já que é a expressão de uma geração sem perspectivas, ainda que livre da repreensão, mas que vê o passado repetir o futuro, sem grandes novidades: uma geração que aprendeu a viver com o que possui, sem ideologia, sem expectativas de tomada de poder, sem heróis, mortos por overdose, e com inimigos no poder14. O cenário político permite a liberdade de expressão do artista que, depois de reprimido por anos de censura, não se sente à vontade para colocar na pauta de suas produções a dor, o sofrimento, a repressão e o sufocamento da ditadura militar dos anos anteriores, que agora dá sinais claros de esgotamento. O artista opta, porque não é dele exigido, falar do seu mundo e do seu tempo e, dessa forma, configura-se uma poesia da momentaneidade, na qual transborda a subjetividade, sem, no entanto, desembocar na poesia ingênua da rima fácil. Órfão de um sistema político falho, o sujeito se desprende do engajamento político, porque dele nada herda, daí a re-criação apenas do “seu mundo” na poesia da música. E como música, essa poética se expande, parte de um 13 14 Ibid., p.61. Referência aos versos de Cazuza, em “O tempo não pára”. pequeno universo para um cenário nacional: ainda que Cazuza fale da zona sul do Rio de Janeiro, consegue se comunicar com todo o país ao protagonizar na voz do “poeta exagerado” toda escassez que marca o homem que atravessa na corda bamba a “década perdida”. Na irreverência e humor de João Penca e seus Miquinhos Amestrados, parte do elenco que protagoniza a cena cultural dos anos 80 desfila na música “Luau de arromba”15, paródia do ingênuo clássico da Jovem Guarda “Festa de Arromba”16. A letra comporta, na aparente ingenuidade da brincadeira, a capacidade de atualização da paródia e antecipa-nos uma importante característica do rock, que será sua capacidade de diálogo, compondo-se, muitas vezes, numa rede constante de comunicação com ritmos, autores, gêneros e suportes diversos, de tempos e culturas próximas e distantes. Percebe-se, assim, a mudança de comportamento de gerações que fizeram parte da cena musical brasileira. A festa que virou luau tem todos como convidados: a marca da diversidade se torna visível quando o país ensaia seus primeiros passos rumo à redemocratização. Como movimento musical, a Jovem Guarda surge em 1963, sendo a primeira versão brasileira do rock mundial, conhecida também como iê-iê-iê. Liderado pelo cantor e compositor Roberto Carlos, o movimento, com apoio dos meios de comunicação em massa, tem programas em redes de TV e dura até o surgimento do Tropicalismo, em 1968. Os cantores de destaque são Eduardo Araújo, Martinha, Rosemary, Ronnie Von, Antônio Marcos, Deny e Dino, Leno e Lílian, The Jordans, The Jet Blacks, Renato e seus Blues Caps, Golden Boys, Os Incríveis, entre outros convidados para aquela “festa de arromba”. Para o “luau” os convidados são outros. Como som de base híbrida, o rock se configura pela a mistura de gêneros e estilos que marca a década. Na letra, Selvagem Big Abreu consegue pincelar algumas características do período: a presença dos meios de comunicação de massa, o rádio, a televisão 15 JOÃO PENCA E SEUS MIQUINHOS AMESTRADOS. “Luau de arromba”. Selvagem Big Abreu, Leandro [compositores]. In: –. Okay, my gay. São Paulo: RCA Vitor. p1986. 1LP. Faixa 1. 16 CARLOS, E. “A festa de arromba”. E. Carlos, R. Carlos [compositores]. In: –. A pescaria com Erasmo Carlos. São Paulo: RGE, p.1965. 1LP. Faixa 3. e o disco, cada vez mais presentes com o advento da tecnologia, na sociedade globalizada do espetáculo: No Luau dos micos amestrados Todo mundo foi convidado Cobertura pelo rádio e televisão Transmitindo por satélite para o Japão Logo na entrada fui barrado Mas passei pros guarda uns trocado Falei que era amigo do Léo Jaime e do Blues Boy Que era guitarra solo de um grupo de rock’n roll17 Os versos das próximas estrofes elencam alguns dos artistas que fizeram o som daquela geração. Aparecem Cazuza e Renato Russo: dois personagens importantes para a construção da história da narrativa da travessia. A letra não aborda, todavia, o lado negro que antecede e prossegue à festa, como, por exemplo, a Aids, as drogas e a situação precária do país. Como observamos, não há espaço para o engajamento e a atuação política. A Aids, mal-do-século XX, envolta em polêmica, ignorância e preconceito, não caberia num luau de celebração da alegria e da espontaneidade de uma geração que foi aprendendo, a seu modo, a viver o seu próprio tempo: Mas vejam quem chegou de repente Cazuza com seu novo gatão O Fruti e o Camisa batiam uma bola Enquanto o Renato Russo tomava coca-cola18 Essa cultura, já bem distante de uma forma linear, configura-se cada vez mais plural, quando há o rompimento de barreiras delineadas e os modos de separar alta e baixa cultura se desfazem, incorporando manifestações folclóricas tradicionais e formas eruditas restritas e elitistas. O folclórico e o erudito se misturam recebendo um fator comum, quando a esse novo produto, o valor comercial é acrescentado. Em se tratando do gênero musical rock – híbrido por natureza – na versão brasileira dos anos 80, talvez seja mais fácil categorizá-lo ao dizer “que certas proposições musicais são mais rock do que 17 JOÃO PENCA E SEUS MIQUINHOS AMESTRADOS. “Luau de arromba”. Selvagem Big Abreu, Leandro [compositores]. In: –. Okay, my gay. São Paulo: RCA Vitor. P.1986. 1LP. Faixa 1. 18 Id., ibid. outras, isto é, preenchem um número maior de características básicas”19. Assim, o rock permite uma infinidade de nuances e insinuações que se introduzem nos espaços restritos das batidas melódicas. O gênero importado para o Brasil não se faz formatado dentro do compromisso de um movimento como foi a bossa nova e a tropicália. A experimentação da diversidade de estilos e a variedade de bandas que se proliferam na nova república fazem com que o rock seja mais uma atitude do que uma escola. Para Renato Russo, o que determina a qualidade do rock é a originalidade e a sinceridade do artista. Se sua expressão pessoal for inédita e criativa, se o artista consegue expressar o que todos os jovens sentem, mas não conseguem dizer, aí então teremos rock, que não é só um ritmo ou uma batida: é uma atitude20. Veremos, todavia, que muitas vezes a sinceridade do artista é uma confissão fingida, rastro do animal autobiográfico21, que compartilha a idéia do poeta fingidor de Fernando Pessoa. Convivem na letra da música citada e na prática da década estudada, a diversidade de nomes tais como Léo Jaime, Lobão, Paula Toler, Herbert Viana, Roger, Fernandinha Abreu, Eduardo Dusek, Cazuza, Renato Russo, as bandas Titãs, Camisa de Vênus e o próprio João Penca e seus Miquinhos que, entre uma conotação às vezes punk, às vezes mais emepebista ou irreverente, confirmam a característica da hibridez do rock que lhe confere uma riqueza de significados. Por outro lado, devido à diversidade de estilos musicais, culturais e políticos, não há a formação de uma identidade fixa. A pluralidade da cultura se torna envolvente e se agrupa mais pela atitude do que pela fixação de uma identidade. Assim, o rock atravessa a geração oitenta como sendo o som e a poética desse tempo e permite-nos uma leitura ampla, tal qual a amplitude do seu alcance e de sua diversidade. O rock nasce do grito do negro ao pisar a América. Roberto Muggiati (1973) escreve que o “primeiro grito negro cortou os céus americanos como uma espécie de sonar, talvez a única maneira de fazer o reconhecimento do ambiente novo e hostil que o cercava”22. Na medida em que o convívio com a 19 MUGGIATI, 1973, p.8. RUSSO apud BRYAN, 2006, p.288. 21 O termo se refere aos conceitos de Jacques Derrida (2002), que serão discutidos no próximo capítulo. 22 MUGGIATI, 1973, p.8. 20 cultura local acontecia, esse grito ia se alterando, assumindo novas formas e acrescentando outras. Ao adentrar a década de 1980, a juventude brasileira, recém-saída de um regime militar, entoa um berro, uma forma também de reconhecimento da sua própria terra que se promete livre e pronta para ser ocupada, seja pela forma de regê-la política e economicamente, seja pela expressão das formas artísticas. Os jovens brasileiros são herdeiros da atitude do movimento punk angloamericano “do-it-yourself”. Tal herança não vem simplesmente preencher a falta de habilidade técnica do saber cantar e tocar, também reflete a atitude de uma juventude filha da ditadura militar que deixa fortes marcas de abandono nos filhos da “grande pátria desimportante”23. O sotaque brasileiro do rock corresponde à necessidade de se fazer ouvir, na aparente simplicidade das letras e pela batida também simples de seus acordes, a voz de uma geração que foi aprendendo consigo mesma a lidar com o seu tempo, seus conflitos e dores, registrando, assim, um processo de crescimento e maturação. O amor (ou a busca e conseqüências dele), a ética, o sexo, o ritmo da cidade, as dores e frustrações são sentimentos experimentados e versificados entre fragmentos, citações e estilhaços do presente. A poética do rock se revela como o registro urgente do agora, com um olhar atento ao momento e ao espaço, tomando, por isso, uma forma literária que se aproxima do diário, ou seja, o registro consonante ao calor dos acontecimentos. Acentua-se, assim, o comentário sobre o presente e aponta para o futuro próximo, o que confere um caráter peculiar às composições poéticas dessa época. “Existe no ar uma urgência de renovação, uma aposta política no inusitado, uma certeza de que nada será como antes”24, assinala Júlio Barroso, na Veja, de 18 de fevereiro de 1981. Suas palavras entram em consonância com as de Clemente Nascimento, ao apontar um direcionamento de ruptura da estética e proposta da música brasileira no início da década de 80 com os movimentos poéticos e musicais das décadas anteriores, principalmente a MPB: 23 CAZUZA. “Brasil”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p.1988. 1CD. Faixa 6. 24 BARROSO apud BRYAN, 2006, p.49. Nossos astros da MPB estão cada vez mais velhos e cansados, e os novos astros que surgem apenas repetem tudo o que já foi feito, tornando a música popular uma música massificante e chata. (...) Nós, os punks, somos uma nova face da música popular brasileira, com nossa música não damos a ninguém uma idéia de falsa liberdade. Relatamos a verdade sem disfarces, não queremos enganar ninguém. Procuramos algo que a MPB já não tem mais e que ficou perdido nos antigos festivais da Record e que nunca mais poderá ser revivido por nenhuma produção da Rede Globo de Televisão. Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para dizer a verdade sem disfarces (e não tornar bela a imunda realidade): para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer25. Percebe-se, assim, que o engajamento cultural de luta contra o regime político não encontra espaço nas composições e nem nas atitudes dessa geração. A arte poética do rock reflete o desencanto da geração frente ao poder político. Perdeu-se a esperança no mito da força revolucionária da palavra, como acreditou o artista dos anos 60 e 70. Daí, então, pisar as flores de Geraldo Vandré – referência à canção antológica de luta contra o regime opressor de 60 – e transformar a Amélia em uma mulher qualquer, no sentido ambíguo do termo e na confusão acelerada do ritmo anônimo da cidade grande. Bem significativas são as palavras “dizer a verdade sem disfarces (e não tornar bela a imunda realidade)”, porque na voz dessa geração não se ouvirão metáforas e alegorias ao estilo de Chico Buarque – necessárias àquela época para burlar o sistema de censura. Da letra velada, esperteza de uma geração para denunciar as mazelas e abusos de um governo autoritário, partese para uma letra escrachada e bem humorada que ecoa entre as brechas do abrandamento da censura. Duas bandas ilustrativas nesse sentido são os Inimigos do Rei e Ultraje a Rigor. Quanto à última, a música-piada séria de Roger Moreira, “Inútil”, transforma-se no hino da campanha das “Diretas Já”. A primeira estrofe denuncia: A gente não sabemos escolher presidente A gente não sabemos tomar conta da gente 25 NASCIMENTO apud ALEXANDRE, 2002, p.60. A citação corresponde ao trecho final do texto “Manifesto punk: fora com o mofo da MPB! Fim da falsa liberdade”, publicado originalmente na edição de agosto de 1982 da Gallery Around. A gente não sabemos nem escovar os dente Tem gringo pensando que nóis é indigente26 Seguido do refrão de mesma construção sintática, que se une numa discordância verbal, em uníssono, a música entoa o reflexo da situação que o país vivia no momento. Daí poder se ouvir, entre o grito pelas “Diretas Já” da multidão que tomou ruas e praças em comícios, o refrão: “Inútil!/ A gente somos inútil!”27. Ainda que não haja lugar para o engajamento político, o rock não se configura como um amontoado de letras e de jovens preocupados com o próprio umbigo. Algumas bandas se propuseram a pensar o Brasil, a questionar o seu lugar e sua situação. No entanto, tal proposta se aproxima mais do questionamento rebelde do rock do que de uma atuação política. A exemplo, em 1987, quando, depois da não aprovação pelo Congresso Nacional da emenda das “Diretas Já”, depois da morte de Tancredo Neves, presidente civil eleito indiretamente como a “segunda” esperança do povo brasileiro, e com o fracasso do plano Cruzado do vice-Sarney, o Brasil em crise e com altíssimo índice de inflação ouve o disco que leva no título uma afirmação inquietante, que reflete todo questionamento do jovem, do rock e do brasileiro: que país é este. Não há mais inocência e vai-se longe o tempo onde “Que país é este” era um perigoso grito de rebeldia (1978): hoje resta a lembrança nostálgica de um tempo que dificilmente vai voltar.(...) Drummond estava vivo, John Lennon e Sid Viciuous também. Nosso país iria crescer e mudar para melhor e todos acreditaram.28 O título e as palavras são do encarte do terceiro álbum da Legião Urbana, que a princípio levaria o nome de Mais do mesmo. O disco reúne canções compostas entre os anos de 1978 e 1987 que, no entanto, apresentavam-se mais do que atualizadas. Composta nos tempos do Aborto Elétrico – conjunto punk do qual Renato Russo foi integrante –, “Que país é 26 ULTRAJE A RIGOR. “Inútil”. R. Moreira [compositor]. In. –. Nós Vamos invadir sua praia. Rio de janeiro: WEA, p.1985. 1LP. Faixa 6. 27 Id., ibid. 28 RUSSO apud BRYAN, 2005, p.377. este”29, canção que dá nome ao álbum, questiona um Brasil corrupto, atrasado, desrespeitoso à constituição. “Mas todos acreditam no futuro da nação”30 soa, ironicamente, um dos versos que aponta para a condição do Brasil como um país do futuro à espera do eterno amanhã. Passada uma década, a canção se mostrava tão atual quanto nos anos anteriores. As palavras do encarte de Que país é este refletem a diferença do artista do final da ditadura, quando o movimento punk dava suas caras e ainda havia um teor de questionamento da situação política e econômica. O que justifica o conteúdo do terceiro álbum da Legião Urbana que, lançado num momento complicado para o Brasil (1987), questiona a nação sem, no entanto, soar como possibilidade de mudança e transformação social. A palavra poética cantada, nesse momento, ainda que possa levar o grito de protesto, não encontra forças revolucionárias em seu eco: soa mais como nostalgia de tempos passados do que como o grito de uma juventude que luta por um país melhor. Se “Que país é este” questiona a nação, as palavras de Cazuza a respeito de “Ideologia”, canção composta em 1987, conseguem, junto com sua letra, refletir a geração 80, que nesse momento faz um balanço de seu próprio tempo: Essa música (...) fala da minha geração sem ideologia, compactada entre os anos 60 e dos dias de hoje. Fui criado em plena ditadura, quando não se podia dizer isso ou aquilo, em que tudo era proibido. Uma geração muito desunida. Nos anos 60, as pessoas se uniam pela ideologia: “Eu sou da esquerda. Você é de esquerda? Então a gente é amigo”. A minha geração se uniu pela droga: ele é careta, ele é doidão! Droga não é ideologia. A garotada teve a sorte de pegar a coisa pronta e aí poder decidir o que fazer pelo país. Embora, do jeito que o Brasil está, haja muita desesperança.31 Cazuza consegue, entre os piores momentos de crise provocados pela Aids, quando se tratava nos Estados Unidos, sintetizar em versos traços tristes e pesados que retratam sua geração. E a escrita, como veremos mais adiante, funcionaria como forma de manter-se vivo: amarras de sobrevivência do eu debilitado que luta “contra o tempo que não pára”: 29 LEGIAO URBANA. “Que país é este”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este – 1978/1987. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1987. 1LP. Faixa 1. 30 Id., ibid. 31 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.166. Meu partido É um coração partido E as ilusões estão todas perdidas Os meus sonhos foram todos vendidos Tão barato que eu nem acredito Ah, eu nem acredito Que aquele garoto que ia mudar o mundo (Mudar o mundo) Freqüenta agora as festas do Grand Monde Meus heróis morreram de overdose Meus inimigos estão no poder Ideologia Eu quero uma pra viver Ideologia Eu quero uma pra viver O meu prazer Agora é risco de vida Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll Eu vou pagar a conta do analista Pra nunca mais ter que saber quem eu sou Pois aquele garoto que ia mudar o mundo (Mudar o mundo) Agora assiste a tudo em cima do muro32 No mesmo sentido de questionar a coragem, a capacidade de mudar o mundo, como acreditavam há tempos, Renato Russo escreve/ canta: Até bem pouco tempo atrás Poderíamos mudar o mundo Quem roubou nossa coragem? Tudo é dor E toda dor vem do desejo de não sentirmos dor.33 Cazuza e Renato Russo, ao serem aproximados, tanto pelo tempo quanto pela temática, conseguem pelo suplemento responder, no registro ansioso do eu, por sua geração. Eles se suplementam no sentido que Jacques Derrida (2001) emprega o termo, ou seja, pelo jogo da diferença e do rastro que sugere um ato de acréscimo que não equivale à soma, mas que altera o cálculo. Permite o “cruzamento histórico e sistemático reunindo em feixes diferentes linhas de significação ou de forças, podendo sempre aliciar outras, 32 CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 1. 33 LEGIÃO URBANA. “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. R. Russo [compositor]. In: – . As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p.1985. 1CD. Faixa 5. constituindo uma rede cuja tessitura será impossível interromper ou nela traçar uma margem”34. Tais aspectos se situam na tessitura do texto e na performance da voz e do corpo. Ao tomarmos a definição de différance para aproximar Cazuza e Renato Russo, antecipamos a leitura da poética desses autores como a própria différance, ou seja, como “o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual elementos se remetem uns aos outros”35. Tendo o espaçamento como a produção, como define Derrida, a aproximação dos dois autores se faz por aquilo que os assemelha e os diferencia, atentando para o movimento da escrita que ensaia os anseios, frustrações, descompassos, amores, angústias, confissão e vivência. O sentimento de impotência parece dominar a cena no final do século. Não parece haver saída, não há como recuar e nem avançar. O que resta é a vivência entre os estilhaços da repressão e da liberdade que acompanham o processo de redemocratização do país. A primeira canção do álbum As quatro estações (1989), da Legião Urbana, registra o descompasso da juventude que procura o equilíbrio entre sonhos perdidos, cansaço, dor e desencanto: Parece cocaína, mas é só tristeza, talvez tua cidade Muitos temores nascem do cansaço e da solidão E o descompasso e o desperdício herdeiros são Agora da virtude que perdemos. Há tempos tive um sonho (...) Os sonhos vêm E os sonhos vão O resto é imperfeito (...) Há tempos são os jovens que adoecem Há tempos o encanto está ausente36 A letra termina com versos que remetem diretamente ao pensamento ético e de esperança de Renato Russo: Meu amor, disciplina é liberdade Compaixão é fortaleza Ter bondade é ter coragem 34 SANTIAGO, 1976, p.22. DERRIDA, 2001, p.33. 36 LEGIÃO URBANA. “Há tempos”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1989. 1cd. Faixa 1. 35 Ela disse: lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa.37 Entre os sentimentos de impotência e esperança, de encanto e decepção, equilibra-se o sujeito da travessia que procura refugiar-se no seu meio e encontra na expressão artística uma forma de se fazer ouvir. Há, nesse sentido, um processo de identificação entre público e autor (intérprete e/ ou compositor). Assim, a música se espalha e em seus vários pontos de escuta ecoa a voz da geração, que mesmo podendo falar em alto e bom tom, encontra no artista uma saída para o sufocamento. Russo e Cazuza se projetam, dessa maneira, quando ensaiam pela escrita autobiográfica o reflexo dos homens do seu tempo em suas letras. Entre os sentimentos contraditórios que o próprio tempo faz o sujeito experimentar, a canção muitas vezes encena a tentativa de equilíbrio do eu, que entre a névoa e a luz, procura a saída: Quando o sol bater na janela do teu quarto Lembra e vê que o caminho é um só. Por que esperar se podemos começar tudo de novo Agora mesmo38 Esperança e desencantamento se alternam e promovem a harmonia do homem desconcertado. Há uma necessidade de fazer a travessia, de se afastar das perturbações sem, no entanto, o sujeito negar o seu tempo. Antes, pelo contrário, o sujeito assume seu próprio tempo e não faz dele um elo perdido entre a ditadura militar e a busca pelo gozo pleno da democracia. A década de 80 é um tempo de caminhada e de vivência. Assim é possível dizer: Veja o sol dessa manhã tão cinza: A tempestade que chega é da cor dos teus Olhos castanhos Então me abraça forte E diz mais uma vez Que já estamos distantes de tudo: Temos nosso próprio tempo. (...) 37 Id., ibid. LEGIÃO URBANA. “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. R. Russo [compositor]. In: – . As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1989. 1CD. Faixa 5. 38 Nem foi tempo perdido; Somos tão jovens.39 A letra antecipa o balanço do retrato da geração 80 que, ao lado de “Ideologia”, mapeia a juventude, a cultura e o país. A escrita que se estende de um eu para um sentido coletivo abarca toda a juventude, e detecta o desconcerto do sujeito que tenta se equilibrar entre os estilhaços do passado e o presente em formação. “Tempo Perdido”, ao contrário do que o título sugere, tenta reafirmar que a década de 80 não seria perdida, afinal “temos nosso próprio tempo” e “somos tão jovens”. E qual seria o próprio tempo dessa geração? A letra de “Ideologia”, de Cazuza, em parte responde: uma juventude órfã do sistema político, sem ideologia que a una num mesmo propósito, como aconteceu na década de 60. Sem grandes pretensões e com as ilusões perdidas, os jovens e artistas já não pensam mais na possibilidade de mudar o mundo. “Meus inimigos estão no poder”: o país no momento era governado por um presidente que não fora eleito pelo povo, e dava sinais de grave precariedade, com inflação acima dos 900% ao ano. Tanto Renato Russo quanto Cazuza celebram a morte dos heróis mortos: de Janis Joplin a Carlos Drummond de Andrade. Resta, além do tom nostálgico que Russo detecta em Que país é este, o questionamento de um Brasil que Cazuza faria mostrar a cara: Não me convidaram pra essa festa pobre Que os homens armaram pra me convencer A pagar sem ver por toda essa droga Que já vem malhada antes de eu nascer (...) Brasil Mostra a tua cara Eu quero ver quem paga Pra gente ficar assim Brasil Qual é o teu negócio O nome do teu sócio Confia em mim (...) 39 LEGIÃO URBANA. “Tempo Perdido”. R. Russo [compositor]. In: – Dois. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1986. 1CD, Faixa 6. Grande pátria desimportante Em nenhum instante eu vou te trair, Não vou te trair40 Cazuza, ao falar da composição, explica que A letra de “Brasil” é como um cara pobre, normal, vê, sem paternalismo, este 1% da população que está se dando bem – e da qual eu faço parte. Sempre tive horror de política, mas tem coisas que você nem precisa saber, qualquer um vê. “Brasil” é uma música crítica, mas não tem nada a ver com uma fase política em minha obra. Eu simplesmente passeio o não passado (1987) do lado de dentro e, quando abri a janela, vi um país totalmente ridículo. O (José) Sarney, que era o não-diretas, virou o rei da democracia. O Brasil é triste trópico.41 O depoimento do autor reforça a leitura do rock dos anos 80 sem o compromisso com o engajamento político e ressalta a distância entre poesia e política nas letras da maioria das bandas de rock desse período. O teor social e político dessa música de rock, que é uma espécie de “Aquarela do Brasil” às avessas, se fixa mais pela necessidade de permanência do eu do que pela simples denúncia dos problemas da nação. Ao insistir que o Brasil “mostre sua cara”, o eu se instala com mais força e ganha a visibilidade de quem dá a cara a bater, ao fazer vir à tona aquilo que se sedimenta e envergonha a nação e registra, levando a assinatura de um único autor, o anseio e a denúncia coletivos. São formas de manter-se vivo através do registro material do sujeito: “Brasil” é uma das canções que compõem o álbum Ideologia, de 1988, época em que Cazuza lutava contra a Aids. São registros de dor e angústia de um eu fragilizado, que expande poeticamente sua fragilidade e faz da nação a metonímia do seu corpo. Dessa forma, deparamo-nos com uma geração que atravessa uma década em crise. O sujeito desconcertado insiste na travessia. O desconcerto se ouve na desarmonia do eu e do mundo, porém, há uma tentativa de se harmonizar. O primeiro passo é a aceitação do seu próprio tempo. Aceitam-se o aqui e o agora, e os registros artísticos e confessionais são entoados em uma nota de momentaneidade e urgência. 40 CAZUZA. “Brasil”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de janeiro: polygran, p1988. 1CD. Faixa 6. 41 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.179. 1.2. A escrita e o consumo da geração “desmemoriada” Silviano Santiago (2004), no artigo “A democratização no Brasil (19791981) – cultura versus artes”, faz um apanhado de como nos três anos finais da ditadura militar a produção e a crítica se voltam para uma tentativa de preencher o vazio deixado pelos mecanismos de repressão. Dessa forma, observa o crítico que Nesses três anos a que estaremos nos referindo, a luta das esquerdas contra a ditadura militar deixa de ser questão hegemônica no cenário cultural e artístico brasileiro, abrindo espaço para novos problemas e reflexões inspirados pela democratização no país (insisto: no país, e não do país). A transição deste século para seu fim se define pelo luto dos que saem, apoiados pelos companheiros de luta e pela lembrança dos fatos políticos recentes, e, ao mesmo tempo, pela audácia da nova geração que entra, arrombando a porta como impotentes e desmemoriados radicais da atualidade. Ao luto dos que saem opõe-se o vazio a ser povoado pelos atos e palavras dos que estão entrando.42 Sem a memória da história recente do país, a nova geração dos 80 se depara com o vazio que invade todos os sentimentos (do pessoal ao político) do brasileiro. Os “narradores castrados pelos mecanismos de repressão”43 encontram no clima de abrandamento da censura e da anistia política a disposição para o relato autobiográfico da experiência de guerrilha e do exílio, enquanto a juventude, filha da ditadura, começa a escrever a sua própria história. Com “passadas largas, precipitadas e prematuras”44 se fez a passagem do luto para a democratização, pelo menos na forma de expressão poética e no esvaziamento da história recente do país; pois, como se sabe a abertura fora “lenta, segura e gradual”. A discrepância entre os passos da democratização e a vontade de liberdade do cidadão redimensiona uma memória histórica recente para um vazio que começa a ser preenchido com os gestos que apontam para uma sociedade do espetáculo, dos produtos pasteurizados da indústria cultural e da política de globalização. No momento 42 SANTIAGO, 2004, p.135. Ibid., p.136. 44 Ibid., p.148. 43 em que essas portas estão sendo abertas, Renato Russo, concentrado na atitude de denúncia do movimento punk, anuncia: Quando nascemos fomos programados A receber o que vocês nos empurraram Com os enlatados dos USA, de 9 às 6. Desde pequenos nós comemos lixo Comercial e industrial.45 As passadas largas retomam também a necessidade de esvaziar a memória do luto do regime opressor e de iniciar uma nova formação cultural, na qual os versos seguintes de “Geração coca-cola” possam fazer sentindo: Mas agora chegou nossa vez Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. Somos os filhos da revolução Somos burgueses sem religião Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola.46 A interpretação desses versos pode ser lido nas palavras do ensaio de Santiago da seguinte forma: Ao redimensionarem o passado recente, também redimensionaram o gesto punitivo para a formação cultural do Brasil, estabelecendo estratégias de busca e afirmação de identidade para a maioria da população, que vinha sendo marginalizada desde a Colônia.47 Os desmemoriados da geração 80 voltam às ruas e articulam pressões populares que se recolhem em páginas fundamentais na escrita da história da nova república. O grito e a música popular se farão ouvir em coro na campanha pelas “Diretas Já” e na luta pela saída do poder do primeiro presidente eleito diretamente pelo povo, depois de mais de 20 anos de regime ditatorial. A leitura dessa nova produção se faz hoje com os mecanismos de tratamento teórico-metodológico que começaram a despontar quando se tinha ainda as páginas em branco pela frente. “Um certo mal-estar dos intelectuais 45 LEGIÃO URBANA. “Geração Coca-cola”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1984. 1CD. Faixa 6. 46 Id., Ibid. 47 SANTIAGO, 2004, p.149 em relação à sua prática acadêmica”48 provoca uma inversão no tratamento metodológico de textos tão díspares como uma entrevista e um poema, por exemplo. Apropria-se do poema através de uma leitura que ultrapassa a mera composição e se volta para a cultura, para o social, para o histórico e para o antropológico. A leitura que extrapola o lingüístico só é possível quando o país se desprende das amarras do autoritarismo, e outras abordagens críticas, então, fornecem subsídios para uma análise que permite “esvaziar o discurso poético da sua especificidade, liberá-lo do seu componente elevado e atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambigüidade que o diferenciava dos outros discursos”49, como assinala Santiago. A nova produção acadêmica tem agora o “interesse em estudar seu próprio universo”50. Por sua vez, o próprio universo do artista, como dito, tornase material para sua produção e esta compreende, principalmente, a subjetividade que encontra lugar para se manifestar e compor a narrativa e a poética do seu tempo. Deixam-se de lado questões de cunho político e de engajamento. O artista se engaja agora no seu próprio mundo e colhe de suas vivências o material de que necessita para os versos e também para a teia da narrativa. O sujeito da travessia dos anos 80 se insere na história ao contar sua própria História. Essa História individual, que pode ser escrita com inicial maiúscula, mesmo sendo construída com passadas largas e descompassadas, compromete-se com o subjetivo e desvela, pelas bordas do eu, o aprofundamento dos acontecimentos. Nesse trânsito, o sujeito busca o equilíbrio e, antes, no confronto de forças adversas, tenta o caminhar. Entre os escombros de um regime autoritário que se esgota e a mobilização para um estado democrático, encontra-se o sujeito que, como agente da história, experimenta a vivência que repercute no corpo e na escrita. Diante da produção estética do sujeito que responde por seu tempo de travessia, indagase sobre a “singular existência”51 que vem à tona e atinge as esferas do espaço público, constituindo-se como a atitude política do momento. A política é a cultura rebelde de cada dia cujo perfume privado exala no espaço público. Ela não é mais manifestação coesa e 48 HOLLANDA apud SANTIAGO, 2004, p. 137. Ibid., p.138. 50 Id., ibid. 51 FOUCAULT, 1987, p.5. 49 coletiva de afronta ideológico-partidárias, como no auge da repressão militar. Na medida em que me constituo no desejo pelo outro, passamos nós a compor, num dado período histórico, uma geração auto-referenciada e um universo autoreferenciável.52 As palavras de Santiago encontram ressonância na atitude do rock brasileiro que abre alas para o grande número de compositores e intérpretes que escrevem e cantam as questões do eu, exalando o “perfume privado no espaço público”53. E será pelos rastros do perfume e da escrita, na mistura do privado e do público, da rebeldia e do consumo, ao tomar a dor e alegria alheia como própria, que o compositor consegue, com a escrita e com a performance do cantor, inserir-se no social. O poder de comunicação do rock, desde seu surgimento, deu-se envolvido com a tecnologia, contatando cada vez mais novas técnicas de (re)produção, além de se harmonizar com o próprio processo global de comunicação acelerado das últimas décadas. Daí, a dinâmica de comunicação e rebeldia que aciona as engrenagens da indústria da cultura mundial. O rock sai das garagens e porões e entra agora pelas casas da classe média brasileira, pelo disco e pelas rádios FM. O público e o privado se instauram na audição e na repercussão da rebeldia das batidas simples desse gênero musical. O nascimento das rádios FM nas cidades brasileiras coincide com o florescimento do rock, reafirmando o caráter urbano e tecnológico destes. Através das estações de rádio e das grandes gravadoras, o som dos garotos rebeldes mostrará suas causas, confissões, culpas, transgressões e lirismo no ritmo das freqüências moduladas e das 45 rotações por minuto dos discos de vinil. Num período de crise econômica para um país com altíssimo índice de inflação, as gravadoras vêem no “som da garotada” um filão para as vendas. “Seria o rock o som da Nova República?”, pergunta o Jornal do Brasil, de 3 junho de 1985: Se depender da programação das rádios e das grandes gravadoras, a resposta é afirmativa. Num processo que vem se acelerando, a indústria fonográfica brasileira tem 52 53 SANTIAGO, 2004, p.138. Ibid., p. 135. aumentado seus investimentos na área e, de maldito, o rock brasileiro parece ter-se tornado a saída para uma das piores crises registradas no setor discográfico.54 O rock desponta no cenário mundial como música de consumo capaz de ser, por isso, um termômetro para as mudanças sociais e históricas. É capaz de um entrelaçamento da cultura mundial com culturas nacionais e regionais, respondendo pela demanda do sistema orgânico que a música no Brasil, nas últimas décadas, instaurou. Movimentado pela cultura jovem, o rock desperta o interesse de gravadoras internacionais instaladas no país que já contabilizam um crescimento significativo a partir da década de 70 e, com a implantação do Plano Cruzado, em 1986, ampliam significativamente as vendas. A música de consumo, urbana, produzida e consumida por jovens, numa sociedade que se desvincula, aos poucos, do autoritarismo, apresenta-se como a solução para a crise das gravadoras, ao mesmo tempo em que outros aparelhos midiáticos também abarcam o profícuo negócio que soma liberdade de expressão a um amplo mercado consumidor – a juventude. Dessa forma, o registro da década da travessia se materializa através do medium LP e ganha a visibilidade dos espetáculos de TV e a programação das rádios FM. A arte e do consumo brasileiros misturam-se no nebuloso cenário político e econômico do final do século. No entanto, as vozes que concentram o processo criativo do rock são as da classe média, no momento em que se tem a possibilidade e a necessidade de falar e de se fazer ouvir. Corre-se o risco, como nas décadas anteriores, da circulação restrita da produção cultural. Contudo, mais uma vez, o som e a poesia de uma geração concentram-se na voz de uma minoria letrada que não pensa mais a condição do proletariado, mas que, a partir do registro autobiográfico e ficcional do seu mundo, consegue, pelo poder comunicativo da música de consumo e de rebeldia, alcançar um público numeroso. O som dos filhos de classes favorecidas economicamente, de uma sociedade em crise e com grande desnível de renda, ecoa pelos canais de comunicação, tornandose um dos itens mais vendidos no mercado de bens culturais. Cerca de 30 milhões de consumidores são introjetados no mercado brasileiro e dispara, assim, um consumo desenfreado, que em pouco tempo levaria ao 54 JORNAL DO BRASIL apud BRYAN, 2006, p.269. desmoronamento do próprio plano econômico que tenta conter a inflação e a recessão. A banda Ratos de Porão faz a leitura cruzada de um “Plano Furado” no trocadilho que ecoa a frustração do país: Planejaram Febrilmente O Brasil ia mudar Congelaram a pátria amada botaram as coisas no lugar. Todo mundo, o mundo inteiro essa farsa engoliu o povo se fudeu e o Brasil faliu Deu tudo errado Plano Furado.55 Uma onda de desencanto cai novamente sobre a sociedade que podia ouvir em casa, nos seus aparelhos fonográficos recém-adquiridos, versos como estes que explicitam a fome do brasileiro em vários sentidos: A gente não quer só comida a gente quer comida, diversão e arte. a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. a gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé. a gente não quer só comida, a gente quer a vida como a vida quer.56 Nesse momento de desencanto, algumas bandas propõem repensar o Brasil em suas letras. Assim o fazem as bandas Inocentes, Ratos de Porão, Titãs, entre outras (de modo mais isolado, como a Capital Inicial e até mesmo a Legião Urbana). Mais uma vez, o grito soa mais como ruídos de rebeldia do que como qualquer possibilidade de mudança social articulada pela palavra poética: Pátria Amada, é pra você esta canção Desesperada, canção de desilusão Não há mais nada entre eu e você 55 RATOS DE PORÃO. “Plano Furado”. RxDxPx [compositor]. In: –. Cada dia mais sujo e agressivo. São Paulo: Cogumelo Records, p1987. 1CD. Faixa 2. 56 TITÃS. “Comida”. M. Fromer, S. Brito, A. Antunes [compositores]. In: –. Jesus não tem dentes no país dos banguelas. São Paulo: WEA, p1987. 1CD. Faixa 8. Eu fui traído e não fiz por merecer 57 Embora o artista e o povo sejam acometidos pelo desencanto, a letra e o som das bandas tentam funcionar como uma espécie de “chamamento”, um rufar de tambores que possa fazer com que a população atente para os problemas que assolam o país: Eu vou denunciar autoridades incompetentes Eu quero antes te dizer Ninguém sabe o que pode te acontecer Ameaça aos privilégios Você será detido e encostado na parede É a ordem no progresso Um jogo imoral Que não mede conseqüências.58 O canto de desilusão que enumera as precariedades do país, num momento de crise econômica, ganha um tom de participação engajada que remete às décadas de 60 e 70, quando o intelectual reivindica um lugar ao lado do povo59. Compositores e intérpretes ao acentuarem a denúncia e a mazela, “evangelicamente, ele[s] mitifica[m] o poder de conversão da palavra e seu movimento intencional passa ser o de comover e culpar: comover pela denúncia da miséria, culpar pelo investimento na suposta consciência crítica e revolucionária do intelectual60. Ao retomarmos as palavras de Heloísa Buarque de Hollanda, que dão conta do engajamento intelectual na efervescência político-cultural dos anos 60, provocamos um deslocamento do olhar para o momento dos anos 80 que vivencia uma situação diferente daquela década, mas que nos permite a remissão ao momento cultural anterior e ao pensamento crítico da autora, e nos faz repensar ambos os momentos. Ainda no rastro da escrita de Hollanda, cabe a compreensão de que essas bandas que tratam do Brasil a partir dos meados dos anos 80, propondo estar ao lado do povo, “compartilhando seus sofrimentos e acenando com a esperança de 57 INOCENTES. “Pátria Amada”. Clemente [compositor]. In: –. Adeus Carne. Rio de Janeiro: WEA, p1987. 1CD. Faixa 1. 58 CAPITAL INICIAL. “Autoridades”. F. Lemos et all [compositores]. In: –. Independência. Rio de Janeiro: Polydor, p1987. 1Cd. Faixa 2. 59 HOLLANDA, 1981, p.18. 60 Ibid., p.26. um futuro promissor”, optam, como diz Walter Benjamin citado por Hollanda, “por uma solidariedade ‘espiritual’ com o povo”61. Os planos econômicos que tentam domar a inflação e incentivar as vendas promovem a visibilidade dos grupos de rock. Dessa forma, a ponte entre o som da classe média e o restante de milhões de ouvintes brasileiros se faz pelo Plano Cruzado, cujo insucesso, no entanto, ameniza a euforia de compras e leva um amontoado de artistas ao esquecimento. Nem todos conseguem fazer a travessia. Apenas aqueles que já tinham alcançado um lugar no mercado e no gosto do ouvinte conseguem prosseguir no registro e na venda de suas músicas. Arthur Dapieve (2004), na relação entre Plano Cruzado e o BRock – expressão forjada pelo autor para dar conta da especificidade do rock brasileiro – assinala que: O tempo se encarregaria de: primeiro, tirar os produtos das prateleiras, consagrar a cobrança de ágio e reavivar a inflação, ou seja, fazer desmoronar o Plano Cruzado; e , segundo, separar o joio do trigo no BRock, redimensionando o fenômeno. Assim como muita gente confundiu muita quantidade com muita qualidade, muita gente confundiu pouca quantidade com pouca qualidade. Uns e outros se enganaram redondamente. As principais bandas do movimento não eram melhores ou piores em função de suas vendas. Além disso, elas vendiam bem antes e venderiam bem depois – apenas venderam estupidamente enquanto durou a euforia do Cruzado. De qualquer forma, o plano foi um pulo do gato na transformação do rock num gênero realmente popular no Brasil.62 No entanto, pensar o rock como um ritmo popular torna-se perigoso, tanto quanto é perigosa a definição de “popular”. Não se deve confundir a visibilidade e o sucesso momentâneo com o gosto “popular”, no sentido de ser aceito e recebido por uma grande gama da sociedade. Ao enquadrar o rock como popular, o terreno torna-se ainda mais arenoso se pensarmos que o “popular”, muitas vezes, é visto como aquilo que fora produzido e consumido pelo mesmo autor, ou seja, a própria massa. Theodor W. Adorno, em 1963, defende a substituição da expressão “cultura de massas” por “indústria cultural” com a intenção de desligar “a primeira expressão desde seu início do sentido cômodo dado por seus defensores: o de que se trata de algo como uma cultura 61 62 Ibid., p.23. DAPIEVE, 2004, p.201-202 que brota espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria, atualmente, a arte popular”63. Dentro da concepção do co-autor da Dialética do Esclarecimento, “a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social”64. O verdadeiro sentido de cultura de massas ou de arte popular seria, então, aquela em que o produtor e consumidor são os mesmos, e não aquilo que a indústria cultural promove: “a integração deliberada, pelo alto, de seus consumidores”65. Tal apreensão do que é arte popular dada por Adorno entra em harmonia com os versos que canta Jorge Aragão: “Arte popular do nosso chão.../ é o povo que produz o show e assina a direção” (grifos nossos).66 Por essa leitura, o rock se afasta da característica de popular e se define como integrante da cena artística pop. Pop na definição de um mercado altamente rotativo que engloba uma infinidade de bens simbólicos e forma seus ícones e modismos. A arte pop pode ser vista, por isso, como uma forma de arte alienante, efêmera e descartável, mas capaz, no entanto, de catalisar mudanças e responder pela força de comportamento, principalmente daqueles ligados à juventude e à cidade. O pop funciona como engrenagem fundamental para o acionamento da indústria da cultura, no modo como concebe Adorno, ao aspirar ao consumo em massa de produtos, determinando, assim, “do alto”, o próprio consumo67. Concentra, ainda, em termos nacionais e regionais, o apelo de uma era globalizada, no ritmo da novidade e do entretenimento. O pop ainda permite o ensaio da diversidade, da convivência mútua, nem por isso sem atritos, das mais diversas formas de vivência do presente. 63 Originalmente o "Résumé über Kulturindustrie" foi uma conferência radiofônica pronunciada por Adorno na Internationalen Rundfunkuniversität des Hessischen Rundfunk de Frankfurt, de 28 de Março a 4 de Abril de 1963, depois incluído no livro Ohne Leitbild. Parva Aesthetica. Frankfurt. Suhrkamp, 1967. Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado do original alemão e cotejada com a tradução italiana (Parva Aesthetica. Milano. Einaudi, 1979). As citações aqui são retiradas da mesma tradução, disponível em http://adorno.planetaclix.pt/tadorno17.htm, captado em 25/02/2007. 64 ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. 1985. p.114. 65 ADORNO, Theodor W. Resumo sobre a indústria cultural. http://adorno.planetaclix.pt/tadorno17. htm, captado em 25/02/2007. 66 JORGE ARAGÃO. “Coisa de Pele”. J. Aragão, A. Marques [compositores]. In: –. Coisa de Pele. Rio de Janeiro: RGE, p1986. 1CD. Faixa 1. 67 Para Adorno, a indústria cultural “só se interessa pelos homens como clientes e empregados”, reduzindo a humanidade à essas condições. Portadora de uma ideologia dominante exerce as funções de perpetuação das características do mundo capitalista moderno. (ADORNO, 1986, p.137). A arte pop responde por uma das características que define o “pósmodernismo”. De acordo com Frederic Jameson (1993), o controvertido termo “pós-modernismo” envolve uma infinidade de estilos e artes e engloba, desde a arquitetura do Hotel Bonaventure, por exemplo, até a poesia falada, os filmes e vídeos comerciais ou de ficção contemporâneos; e na música, o peso de John Cage, mas também a síntese posterior de estilos clássicos e “populares” encontrada em compositores como Philip Glass e Terry Riley, e também o punk e a nova onda do rock, com grupos como o Clash, os Talking Heads e o Gang of Hour”.68 Visto como parte da cena pop do pós-modernismo, o rock ganha o sotaque brasileiro e responde pela demanda exigida pela juventude no momento em que as portas começam a se abrir para o exercício da democracia. A demanda de uma poética e de uma melodia, que fale por essa juventude, encontra a oferta no seio da própria juventude herdeira do lema “faça você mesmo”. A espontaneidade, a necessidade da expressão, o subjetivismo, a força lírica e musical e, principalmente, o baixo custo de produção configuram-se como ingredientes fundamentais para o preparo de produtos altamente consumíveis pela juventude. Para as gravadoras que enfrentavam no início da década uma queda na venda de discos, a música barata das bandas de rock saídas das garagens, com uma estrutura simples e eficiente, mostrava-se como uma alternativa para a crise. A mediação da indústria fonográfica faz-se então pelo simples interesse de mercado, mas propicia a materialização do anseio e da busca de respostas da juventude. O registro da expressão “roqueira” se estende para outras formas artísticas que vão além da musical e ganha formatos diversos, apreendidos pela avidez da indústria da cultura pop. Historicamente, o rock sempre fez muito menos sentido como estilo de regras definidas do que como discurso da juventude urbana de uma época ou lugar. O rock brasileiro dos anos 80 era assim. Tanto poderia ser o rock de breque da Blitz ou o pop no capricho de Lulu Santos quanto o rock’n roll do Barão ou o punk dos Inocentes. Ou poderia ser um filme, como Menino do Rio. Um livro, como Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva, que publicado em 1982 e, em pouco mais de 68 JAMESON, 1993, p.25. um ano, esgotou sua tiragem 25 vezes. Ou uma nova leva de quadrinistas, como Angeli, Glauco e Laerte. O importante era que fosse novo, diferente e esteticamente ousado e falasse a linguagem das ruas69. Nesse período, a mídia e a indústria cultural descobrem essa fatia do mercado antes não tanto explorada e vê nela um altíssimo potencial de consumo. Para tanto, ocorre um processo de antecipação e prolongamento da juventude. Com um alto poder de inserção no cotidiano, a música passa a fazer parte da vida do jovem. Desde os anos 70, o consumo de música no Brasil passa a integrar o hábito dos consumidores, quando o LP deixa de ser um artigo caro e se torna mais acessível. O mercado fonográfico opera também com a diversificação dos produtos, como a fita cassete, discos compactos, singles, discos compilados, como estratégia de atrair camadas mais baixas da população. A partir de meados da década de 80 ocorre a profissionalização do rock brasileiro, ganhando o afinamento técnico. O aumento expressivo das vendas com o Cruzado, como vimos, leva as gravadoras a contratarem mais bandas, fazendo com que a cena pop brasileira alcance seus dias de fama e prosperidade, ainda que por tempo limitado. Temos uma década em que público e intérprete falam a mesma língua, têm a mesma idade e comungam dos mesmos ideais, anseios, frustrações e amores. Há, nesse intercâmbio, uma identificação imediata que, antes de inserir um componente a mais ao consumo do pop pela escrita das letras e performance musical, torna-se um registro de todo o sentimento da geração. Dessa forma, como iremos observar, o relato autobiográfico contido nas letras de Renato Russo e Cazuza se insere no social, tornando-se um dos componentes necessários aos poetas da música para assegurar que o desejo do registro aconteça. A poesia do rock experimenta o suporte tecnológico do LP, ganha a visibilidade e comercialização através dos ritos da civilização do espetáculo e da mídia, e entrecruza aspectos nacionais e locais, na base universal da batida rebelde roqueira, o que lhe confere as características de hibridez e urbanidade. Essas características se aplicam ao rock, dado o diálogo entre culturas, arranjos tradicionais e tecnológicos, rebeldia e consumo, subjetividade e coletividade desse gênero musical que, desde seu surgimento, 69 ALEXANDRE, 2002, p.117. une “uma síntese e um híbrido dos dois idiomas – música branca e música negra”70. Tais características, na sociedade brasileira dos anos 80, relacionamse às expressões artísticas que respondem por seu tempo em uma cultura altamente urbana. Caracterizar o rock como híbrido e como artigo do mundo pop contemporâneo, avidamente absorvido pela indústria fonográfica, aproxima-se do pensamento de Walter Benjamin, que em um ensaio da década de 40, assinalava que “a obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida”71. Sem qualquer resquício de aura, o rock brasileiro se configura na necessidade do “valor de exposição” que substituíra o “valor de culto” das obras de arte. Será justamente a técnica da reprodução que coloca o rock em sintonia com seu “público consumidor”, o que garante os lucros da indústria fonográfica e a visibilidade da arte. A reprodução técnica – assegurava Benjamin – “pode, principalmente, aproximar o indivíduo da obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. (...) O coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto”72. Visão esta bem mais otimista do que a de Adorno. A reprodutibilidade técnica e o valor de troca do rock não impedem, no entanto, o “efeito do choque”. Roberto Muggiati aponta o choque da experiência do rock na sociedade americana, comparando com a semelhante experiência provocada pelo cinema, assinalada por Benjamin. A aproximação do autor brasileiro aos conceitos do filósofo alemão são perfeitamente aplicáveis ao gênero nos anos 80, no Brasil: O som do rock se impõe ao ouvinte, não se deixa usar meramente como “música de fundo” e penetra à força na sensibilidade de cada um. Os conceitos de Walter Benjamin sobre o cinema se aplicam perfeitamente ao rock, como “forma de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa prometida ao homem de hoje”. Benjamin acha que a necessidade de se entregar aos efeitos de choque é uma adaptação do homem aos perigos que o ameaçam e que a experiência cinematográfica – podemos dizer também a do rock – corresponde a profundas modificações no aparelho perceptivo, ‘modificações que hoje, na escala da vida privada, experimentam toda pessoa nas ruas de uma grande cidade e, 70 MUGGIATI, 1973, p.37. BENJAMIN, 1993, p.171. 72 Ibid., p.168. 71 na escala da História, experimenta todo cidadão de qualquer Estado contemporâneo.73 A experiência do choque coloca o sujeito na superfície dos acontecimentos. O bombardeio das imagens do cinema se assemelha ao impacto do som ruidoso do rock, que não foi escutado simplesmente como o som de uma juventude, no sentido de se configurar apenas como uma trilha sonora que dá emoção à cena. O rock brasileiro dos 80 pode ser lido como o registro da sensibilidade jovem, em todos seus atributos de música de rebeldia, de consumo, de arte pop e lirismo – características que nos permitem a compreensão da representação pós-moderna. Fragmentado, descentrado, problemático e heterogêneo, o sujeito pósmoderno encontra, em períodos de transição, expoentes que reintensificam seu desconcerto diante do mundo. Dissonante e numa celebração móvel da identidade, ele busca na “nota” da escrita – confessional, instintivamente autobiográfica, apaixonante, culpada e transgressiva – sua “afinação” com o mundo. As escritas musicais de Renato Russo e Cazuza, na medida em que se tornam mais visivelmente autobiográficas, mais freqüentemente enunciadas na primeira pessoa - ganham em insistência ou em visibilidade, agitam-se, fervilham, mobilizam-se e motivam-se, movem-se e emocionam cada vez mais74. Promovem a “tensão do jogo com a história, tensão também do jogo com a presença”75 e a falta, ao qual “o movimento da significação acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir uma falta do lado do significado”76. As letras de música recortadas, que nos servem como citação e fios do texto, podem ser lidas como “a escritura de si do vivente, o rastro do vivente para si, o ser para si, a auto-afecção ou auto-infecção como memória ou arquivo do vivente”77 que busca a salvação, o estar-se vivo, a denúncia, o registro de seus amores e desconcerto. Contra o “tempo que não pára” e contra a morte, a escrita corre o risco de ser tão envenenadora e autoinfecciosa quanto ela é possibilidade de salvação. 73 MUGGIATI, 1973, p.68. DERRIDA, 2002, p.66. 75 DERRIDA, 1995, p.248. 76 Ibid., p.244. 77 DERRIDA, 2002, p.87. 74 Assim, pode-se pensar e analisar como as escritas de Renato Russo e Cazuza se ordenam como memórias-presentes, confissões e registro autobiográfico, que promovem o desvelamento de um período histórico através da voz, da canção, da poesia, do lirismo e da vivência de quem experimenta a travessia de uma década que não foi perdida. 2. A ESCRITA E A INSCRIÇÃO DO EU: A POÉTICA CONFESSIONAL DE RENATO RUSSO E CAZUZA Vamos revelarmo-nus. Adriana Calcanhoto 2.1. Novos suportes tecnológicos para o aedo Homero, nos versos iniciais da Odisséia, pede inspiração às musas para que sua empreitada poética e seu canto sejam bem executados. A relação entre música e poesia, até a Idade Média, se mostra bastante íntima. Essa intimidade faz com que um instrumento musical venha nomear uma das formas poéticas que mais se aproxima da música: a poesia lírica. Desde a Antigüidade greco-latina, a poesia se serviu da voz cantada, na entonação de versos, ritmo e métrica, para se fazer ouvir entre a multidão, nos espaços públicos ou na acomodação privada de lares e bibliotecas. O século XVI assiste à revolução provocada pela invenção da imprensa, quando, desde então, a forma escrita vem a prevalecer sobre a oralidade, acentuando certa distância entre música e poesia. No entanto, a relação de intimidade entre as duas formas de expressão faz com que a música empreste à poesia formas e características que perpetuam a antiga união. A poesia abriga muitas vezes formas como o madrigal, a balada, o rondó e a cantiga, além da métrica, da harmonia, do refrão, do andamento e da melodia estarem presentes em muitas entonações poéticas. O poeta, que chamava de canto o seu poema – como Homero, Vergílio e Camões – encontra o cantor que se vale da poesia para se fazer ouvir na contemporaneidade. O trovador que cantou versos a sua amada, na Idade Média, agora é o poeta que canta seus amores e dores no ritmo da cidade e da indústria da cultura. A poesia, espaço nobre para questões também de grande nobreza, como o amor e os outros sentimentos “puros” do ser humano, atravessa os séculos da idade moderna reivindicando e protegendo esse espaço, até que no início do século XX, o modernismo se abre para aquela poesia presente no disparatado. Os poetas abandonam o vocabulário argênteo ou ebúrneo do parnasianismo e os turíbulos, abstrações, aromas e inefabilidades do simbolismo, e passam a compor poemas sobre o dia-a-dia, incorporando a fala do povo nas criações poéticas. Manuel Bandeira, por exemplo, aprenderia com o pai a perceber a poesia tanto nos amores quanto nos chinelos e desentranharia a poesia de lugares inusitados, percebendo o lirismo em um beco ou no fazer de uma simples feijoada, como faria Renato Russo anos mais tarde. Passam a fazer parte dos poemas a cidade, a rua, vendeiros e lavadeiras, numa linguagem próxima do coloquial – cada vez mais brasileira. Assim, “a própria poesia moderna nos diz que devemos procurá-la onde os sisudos tratados de crítica literária nos disseram que ela não estava”78, ressalta Silviano Santiago. A geração de 45, por sua vez, em oposição ao modernismo de 22, adota formas mais clássicas para o poema, como o soneto, no entanto, propõe o neoromantismo e neo-simbolismo baseados na relação de intimidade entre música e poesia. A poesia, para aquela geração, é como um “canto”, quando a voz procura a expressão de emoções e de um intimismo lírico. Com a bossa nova e com Vinícius de Moraes, na década de 1950, inicia-se uma fase de identidades entre música e poesia, como aponta Afonso Romano de Sant’Anna (2004). A bossa nova se constitui de forma mais elaborada, tanto do ponto de vista musical quanto do literário. Por volta de 1968, a produção poética cede lugar 78 SANTIAGO, 2006. “Comparações”, In: http://www.tanto.com.br/silvianodois.htm. Captado em 26/02/2007. para o teatro, para o cinema e principalmente para a música sem, no entanto, abandonar essas expressões. Essa evasão [da literatura para outras linguagens] não nos leva, todavia, à conclusão de que a literatura estará se exercendo em outros canais. Não se trata de afirmar, por exemplo, que a poesia vai se fazer na música popular ou no cinema, mas sim de perceber como esse desvio a que nos referimos canaliza para outras linguagens um debate propriamente literário, muitas vezes transposto pela própria formação (literária) dos autores.79 É o que se percebe nas composições de Chico Buarque e do tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que exigem uma letra com status de literatura. “Os compositores irão lançar mão de artifícios poéticos na construção de suas letras, através do fragmento e da alegoria, da intertextualidade e da própria referência à tradição literária brasileira.”80 O lirismo cede lugar à dicção culta, alegórica e metafórica, um tanto necessária ao momento político que o país enfrentava. Com o processo de redemocratização no país, o abrandamento das leis de repressão e censura permite uma maior liberdade de expressão dos jovens artistas que começam a compor a poética da travessia. Sem a necessidade de uma linguagem velada e elaborada, os compositores do rock brasileiro dos anos 80 optam pela clareza e objetividade da linguagem, numa letra direta, em sintonia com o tempo presente. O que não significa um abandono aos procedimentos e influências literários. Tanto que Renato Russo, Cazuza, Humberto Gessinger, Arnaldo Antunes, Cadão Volpato, Sérgio Brito, entre outros, seriam chamados de poetas do rock brasileiro, com destaque para os dois primeiros. Toda essa evolução marca, no entanto, uma crescente transformação da música popular brasileira num fenômeno não apenas sonoro, mas um produto escrito. O que era apenas voz tanto na música quanto na poesia, se converte em grafia marcando o ponto máximo desses movimentos de equivalência e identidade. (...) Com isto se estende não apenas o conceito de música popular, mas o de literatura e, conseqüentemente, o de interpretação de texto.81 79 HOLLANDA, 1981, p.35. Ibid., p.37. 81 SANT’ANNA, 2004, p.13. 80 Com o desenvolvimento da sociedade capitalista e o advento da tecnologia e da reprodutibilidade técnica, a música, no século XX, atinge grandes esferas de abrangência e importância, constituindo-se, em tempos atuais, como umas das formas de arte mais difundida. Por diversas razões, a música vem ocupar um lugar antes reservado à poesia. Com a facilidade de difusão e inserção no cotidiano, garantido pela tecnologia e por seu alto grau de atualidade e efemeridade, ela se espalha e atravessa a cidade e se expande por muitos meios de escuta, atingindo espaços sociais diferenciados, o que implica experiências e apropriações culturais diversas. Luiz Claudio V. de Oliveira (1999) aponta a condensação e o simultaneísmo como as principais caractarerísticas da música que lhe garantem popularização, espaço e difusão. Ao transmitir, em um curto espaço de tempo, uma mensagem completa com alto grau de sofisticação e de conteúdo, e pelo poder de recepção paralela a outras atividades, a música se insere com facilidade no cotidiano e assume funções que vão do derramamento íntimo de lamentações amorosas até a função de captar, fixar e revelar modos e costumes de uma época, diagnosticando sensibilidades e transformações sociais e históricas82. Nesse sentido, a história recente do Brasil apresenta uma trilha sonora que acompanha os fatos importantes no cenário político-social. Aldir Blanc e João Bosco compuseram o samba, que na voz de Elis Regina se configura como o hino da anistia83. A ditadura militar teve na letra e voz de Chico Buarque algumas das mais elaboradas canções que registram o autoritarismo, o sufoco e a necessidade de liberdade numa pátria mãe “subtraída”, como se pode ouvir em “Cálice”, “Apesar de você” e “Vai passar”. Enquanto Geraldo Vandré ressaltou a importância da canção, capaz de unir e de ser arma: Nas escolas, nas ruas, campos, construções Somos todos soldados, armados ou não Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais braços dados ou não84 82 OLIVEIRA, 1999, p.44. REGINA, E. “O Bêbado e o equilibrista”. A. Blanc, J. Bosco [compositores]. In: –. Elis, essa mulher. São Paulo: WEA, p1979. 1CD. Faixa 2. 84 VANDRÉ, G. “Pra não dizer que não falei das flores”. G. Vandré6y [compositor]. In: –. Geraldo Vandré. São Paulo: RGE, p1994. 1CD. Faixa1. 83 Nesse ritmo, uma das maiores manifestações populares vistas pelo Brasil, o movimento das “Diretas Já”, tem como hino uma música irônica, que estampa na irreverência de seus versos a condição de um país que nos tem como “inútil”85. Enquanto que 1992 vivencia outro clima de agitação popular que exige o impeachment do presidente Collor. Os “cara pintadas” tomam as ruas, enquanto se ouve uma trilha sonora que remete aos “anos rebeldes”. A música, então, ocupa um dos lugares da poesia: o hino da abolição – um poema de Castro Alves – foi entoado pela voz de seu autor, nas ruas, acompanhado pelo povo, no século XIX. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, já dizia Camões86 ou “É você que ama o passado e que não vê/ Que o novo sempre vem”87, como canta Belchior. Concomitante a outras atvidades do dia-a-dia, a música passa a fazer parte da vida dos seus ouvintes: no lazer, no espaço doméstico, no trabalho, nas lojas, parques, na sexualidade e na intimidade, em shows, na televisão, pelo rádio, pela internet, em mp3 e celulares etc. “A música para ouvir”88 ganha, como canta Arnaldo Antunes, outros lugares, modos e re-apropriações, seja pelos meios de difusão, seja nos modos de escuta e recepção. Todo o alcance da música nas sociedades pós-modernas faz com que haja uma tensão entre o papel e a máquina, ou seja, uma tensão entre a materialidade de expressões artísticas, que ganham outros formatos na era fluida da cibernética. A relação papel e máquina questiona os novos suportes, a impressão, o papel social, e os sem-documentos no processo de globalização e exclusão. Essas indagações se estendem para o papel no mundo virtual e para o lugar do acontecimento, da escrita, do corpo, da memória, do arquivo e da materialidade na contemporaneidade. Jacques Derrida (2004), ao longo do livro Papel-máquina, busca as respostas que, como a maioria dos seus escritos, soam como provocações e novas inquirições. Nos últimos anos, assistimos ao modo como o desenvolvimento da tecnologia e as mídias diversas têm interferido na produção, na mediação, 85 ULTRAJE A RIGOR. “Inútil”. R. Moreira [compositor]. In: –. Nós Vamos invadir sua praia. Rio de janeiro: WEA, p.1985. 1LP. Faixa 6. 86 CAMÔES, http://www.astormentas.com/camoes.htm, captado em 04/04/2007. 87 REGINA, E. “Como nossos pais”. Belchior [compositor]. In: –. Falso Brilhante. São Paulo: Fhonogran, p1976. 1CD. Faixa 1. 88 ANTUNES, A. “Música para ouvir”. A. Antunes, E. Scandurra [compositores]. In: –. Um Som. São Paulo: BMG, p1998. 1 CD. Faixa 1. recepção e valoração das expressões artísticas. Da literatura à animação virtual, as manifestações artísticas se enveredam por caminhos ditados pela força do mercado e pelo poder de sedução de novos suportes tecnológicos. Essas relações estão diretamente ligadas à dinâmica da indústria da cultura, que atende ao ritmo do capitalismo tardio. Sem leituras pessimistas ou alongadas sobre os efeitos de tais interferências, é interessante lançar algumas questões sobre os suportes tecnológicos que determinadas artes, principalmente a poesia e a música, experimentam atualmente. O que provoca conseqüências desestabilizadoras nos modos de produção e recepção, e faz repensar maneiras novas de tratar antigas relações. Sempre houve no Ocidente a supremacia da escrita, como forma de eficácia de comunicação e permanência da obra. Relacionado diretamente à sustentação de status e hierarquias ditadas pelos letrados, o que está escrito sempre exerceu mais poder. Isso leva ao mesmo status e hierarquia daquele que tem o privilégio de acesso à escrita. O popular quase nunca se encerra em páginas de livros e, quando isso acontece, paga o preço do silenciamento das letras ou a deformação e/ou redução do seu conteúdo estético e social (muitas vezes um em favor do outro)89. Por muitos séculos, o livro em sua forma de códice (caderno de páginas superpostas e encadernadas de modo que se pode abri-lo sobre a mesa, segurá-lo entre as mãos e atê-lo ao peito) reinou em absoluto como forma de armazenamento e transmissão de informações, saberes e culturas. Relacionados a esse formato (e também aos outros que virão) se questiona os seguintes pontos enumerado por Derrida: “a escrita, o modo de inscrição, de produção e de reprodução, a obra e a operação, o suporte, a economia do mercado ou da estocagem, o direito, a política, etc”90. O formato tradicional do livro, com suas folhas impressas, superpostas, mostra-se como um lugar sagrado, uma moradia, um túmulo. “A dobradura é, em face da folha impressa em grandes dimensões um índice, quase religioso: que não marca tanto quanto sua compreensão, em espessura, ofertando o minúsculo túmulo, decerto da alma”91. A citação extraída de Derrida (2004) releva a sacralização a qual submetemos o livro, no que se refere ao seu 89 Cf. MATOS, Claudia Neiva de. Popular. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p.307-341. 90 DERRIDA, 2004, p.20. 91 Ibid., p.27 tempo, espaço, ritmo, modo de manipulação, modos de legitimação e ainda à “sociabilidade quase sacerdotal de seus produtores, intérpretes, decisores, em todas as suas instâncias de seleção e de legitimação”92. Todo o ritual de ressacralização do livro faz com que a mesma geração que o consagrou sofra ao vê-lo “perder terreno para outros suportes”93. Vivenciamos a era do livro por vir. Do códice à incorporação eletrônica e virtualizante, o texto surge para o leitor como um espetáculo, sem demora, no ritmo do teclado e de conexões wireless, na tela frente aos olhos do espectador/ ouvinte. A literatura agora divide o espaço dos afazeres casuais e banais, sem a formalidade da acomodação dos terrenos sagrados das bibliotecas. Viva, a literatura ganha a dinâmica do espetáculo, para garantir-lhe o interesse e a sobrevivência no mundo das imagens. A escrita, a reprodução e distribuição do livro – lenta e restrita – procuram a adaptação no mundo pós-moderno – acelerado, fluido, líquido, visual. Dessa forma, a poesia esculpida “longe do estéril turbilhão da rua”, “No aconchego/ Do claustro, na paciência e no sossego”94 e que muitas vezes exigia um leitor de igual disciplina, temporalidade e especialidade, ganha hoje a leitura que entra pelos fones de ouvidos e faz com que o leitor penetre em alarde “no reino das palavras”95. A poesia retoma agora, na pós-modernidade, a sua antiga e íntima relação com a música. O suporte para escrita, na verdade a sua dificuldade e escassez, que manteve, entre outros motivos, poesia e música unidas até a invenção da imprensa, promove agora uma inversão na hierarquia e no prestígio da palavra escrita. A poesia de livro convive com a poesia da música96, e esta ocupa cada vez mais espaço na sociedade, na história e no cotidiano dos leitores/ ouvintes/ consumidores de bens simbólicos. 92 Ibid., p.28. Ibid., p.27. 94 BILAC, disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bilac.html#poeta, captado em 05/04/07. 95 ANDRADE, Carlos Drummond, 1983, p.160. 96 Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Caetano Veloso, Cazuza, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Noel Rosa, Aldir Blanc, Adriana Calcanhotto, Ana Cristina César, Antonio Cícero, Armando Freitas Filho, Ferreira Gullar, Francisco Alvim, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Murilo Mendes, Oswald de Andrade e Waly Salomão: estão reunidas pela primeira vez poesia de livro e poesia da música em um mesmo volume. Um verso de Cazuza dá nome à antologia Veneno Antimonotonia, organizada por Eucanaã Ferraz. (Veneno Antimonotonia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007). 93 Os poetas da música que, entre arranjos e composições, tecem e interpretam hinos da história e poemas de amor, procuram o lugar para o acontecimento no arquivo do LP, que cedeu lugar ao CD e agora vive a era da materialidade virtual de HDs e ipods, que permitem o trânsito entre a memória cibernética e a recepção particular dos fones de ouvido. A antiga controvérsia entre letra de música e poesia, que marca leituras quase apenas de ordem estrutural, se desfaz com leituras culturais que atentam para o lugar, abrangência e recepção conquistados pela canção e pela letra da canção nas sociedades contemporâneas. Composições dos vários gêneros musicais que (en)cantam o Brasil ganham coletâneas que agrupam no formato livro toda a riqueza poética da letra. Antes, porém, de se poder folhear as canções no códice, a poesia da música atinge, em seus vários pontos de escuta, leitores/ ouvintes diferenciados, o que implica, logicamente, em apropriações e decodificações diversas. Os sentidos enigmáticos e polissêmicos do signos musicais favorecem os mais diversos tipos de escuta ou interpretações – verbalizadas ou não – de um público ou de intelectuais envolvidos pelos valores culturais e mentais, altamente matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade. A partir dessas concepções, a execução de uma mesma peça musical pode provocar múltiplas escutas (conflitantes ou não) nos decodificadores de sua mensagem [...] de acordo com uma perspectiva sincrônica ou diacrônica do tempo histórico.97 Dessa forma, a poesia da música atinge seus leitores cotidianos, que consomem, por entrenimento e prazer, a música que é, entre proposições pragmáticas, uma música que vai além de uma música para ouvir e ganha funções diversas: Música para ouvir no trabalho Música para jogar baralho Música para arrastar corrente Música para subir serpente Música para girar bambolê Música para querer morrer Música para escutar no campo Música para baixar o santo Música para compor o ambiente Música para escovar o dente Música para fazer chover Música para ninar nenê 97 CONTIER, 1991, p.152. Música para tocar novela Música de passarela Música para vestir veludo Música pra surdo-mudo Música para estar distante Música para estourar falante Música para tocar no estádio Música para escutar rádio Música para ouvir no dentista Música para dançar na pista Música para cantar no chuveiro Música para ganhar dinheiro Música pra fazer sexo Música para fazer sucesso Música pra funeral Música para pular carnaval Música para esquecer de si Música pra boi dormir Música para tocar na parada Música pra dar risada98 Os leitores/ ouvintes seguem procedimentos semelhantes aos dos leitores de outros códigos, como o leitor de um texto escrito, por exemplo. Conforme o tipo de leitor, dá-se a construção e decodificação da leitura, “verbalizada ou não”. Como todo código ou obra, a leitura pode se dar de forma especializada ou acadêmica, seguindo procedimentos epistemológicos próprios. Daí, a leitura mais ampla e profunda de uma peça musical por aqueles de formação nesta áera, que podem atentar para questões de arranjo, melodia, andamento, tempo, notas, entre outros vocábulos técnicos desses profissionais. Do mesmo modo, a universidade, através das faculdades de Letras, História, Sociologia, Psicologia, Antropologia, tem se voltado para o produto escrito e sonoro da canção, fornecendo subsídios para uma leitura, na maioria das vezes, interdicisplinar –tamanha a complexidade e riqueza de formas e conteúdos das gravações musicais. Diante das várias concepções e possibilidades de leitura de uma peça musical, entre a sacralização do livro e os suportes flutuantes que materializam as novas produções, uma indagação de Derrida gera discussão e nos ajuda no direcionamento e tratamento da “obra” de Renato Russo e Cazuza. Derrida pergunta respondendo sobre o que seria a “obra” de um autor: 98 ANTUNES, A. “Música para ouvir”. A. Antunes, E. Scandurra [compositores]. In: –. Um Som. São Paulo: BMG, p1998. 1 CD. Faixa 1. “Obra” é outra coisa ainda, que talvez nos leve daqui a pouco às paragens de um grave problema, o das relações vindouras entre a forma livro, o modelo do livro, por um lado, e uma obra em geral, um opus, a unidade ou corpus de uma obra delimitada por um começo e um fim, uma totalidade.99 No que tange à música contemporânea, mediada pelo LP, depois CD e agora seus formatos digitais e virtuais, a obra dos músicos parece residir na materialidade técnica de cada um desses suportes, que permitem o agrupamento e a reprodução. Os “álbuns” compreendem certa seleção de canções que, geralmente, num feixe temático, ajuntam-se sob determinado título. Editados e comercializados, os álbuns são postos à venda de maneira parecida com a que ocorre com o mercado editorial de livros. A demanda desse mercado segue as regras do consumo, que tanto pode ser o mercado consumidor pop, quanto um mercado mais restrito, na divulgação, circulação e recepção de determinados títulos. A música, como a literatura, encontra seu mercado de best-sellers e de raridades. Entre a produção que atende no ritmo dos fast-food, da efemeridade, e do mero lucro e as produções altamente cultas e especializadas, uma gama de produções se encontra entre os extremos, respondendo pela característica de hibridez, no que se relaciona à permeabilidade de culturas, estilo, linguagem, “popular”, “culto” e comercial. Considerando o álbum (para facilitar, limitemo-nos ao suporte CD, ainda o mais comum no mercado) como um livro, as proposições de Derrida referemse, portanto, dentro dessa nossa leitura, a ambas as formas de expressão poética e literária: O livro que recolhe o espírito recolhe, portanto, um poder extremo de explosão, um desassossego sem limites, que o livro não pode conter (grifo meu: o livro contém pó que ele não pode conter, sendo de uma só vez maior e menor do que é, como toda biblioteca, em suma), dele excluindo todo conteúdo, todo sentido limitado, definido e completo. Movimento de diáspora que nunca deve ser reprimido, mas preservado e acolhido como tal no espaço que a partir dele se projeta, e a que esse movimento apenas responde, resposta a um vazio indefinidamente multiplicado, no qual a dispersão ganha forma e aparência de unidade. Tal livro, sempre em movimento, sempre no limite do disperso, será também sempre reunido em todas as direções, pela dispersão mesma e de acordo com a divisão que lhe é essencial, a qual ele não 99 DERRIDA, 2004, p.20. faz desaparecer, mas aparecer ao mantê-la, para nela se realizar.100 Assim, o livro e o CD encerram a tentativa de reunião da dispersão, nos seus vários formatos de máquina, dada ao consumo de arte e cultura. O álbum reúne, por sua vez, composições agrupadas sob o mesmo título, “no qual a dispersão ganha forma e aparência de unidade” e o arquivo da expressão artística musical muitas vezes acompanha um encarte ou livreto com as letras da música. O papel de impressão e a máquina de suporte digital (quando executado) são a materialidade da dupla articulação da canção: escrita e melodia, grafia e voz, poesia e música. Acrescenta-se ao duplo material de mídia da canção, um terceiro item, que se presta, em conjunto ou isolado, à leitura simples ou acadêmica: a performance do intérprete. Várias abordagens teórico-metodológicas tentam dar conta da complexidade da canção brasileira. Para este trabalho, as letras das canções são tratadas como poesia, sem se ater teoricamente à parte sonora e performática da produção musical. Entretanto, não se deixa de entender que o tecido dessa poética foi produzido considerando o canto e a interpretação. Para a dissertação, porém, remetemos essa poética para a escrita autobiográfica, lendo o animal que se despe, exalando o perfume particular no espaço público. Ampliam-se, assim, as categorias de texto ao pensar a música como poesia. Renato Russo e Cazuza, ao escreverem a poética da travessia da década de 80, se inscrevem nesse tempo através da poesia, da autobiografia, do ícone pop, da performance e dos depoimentos. Ou seja, na leitura da contaminação dos discursos, o sujeito promove a representação do vivido, desvelando assim o eu e o nós, a obra e a cultura de seu tempo. 2.2. A inscrição do sujeito A leitura da letra-de-música como poesia, como assinala Afonso Romano de Sant’anna (2004), amplia os conceitos de literatura, de música e de texto. Abordagens teóricas como os estudos culturais e a crítica biográfica 100 DERRIDA, 2004, p29. possibilitam o entendimento da abertura e da abrangência textual que, a partir do final da década de 70, têm propiciado um novo olhar sobre o texto (nas suas várias dimensões e linguagens) que ultrapassa seus limites como literatura ou arte e alcança territórios históricos, culturais, econômicos e sociais. O texto, então, penetra nos territórios criados e habitados pelo homem, elucidando as mais complexas relações humanas, que se manifestam pela linguagem. A produção documental – a correspondência, a crítica ensaística, os depoimentos, as entrevistas, as reportagens jornalísticas – ao lado da produção ficcional, compõem a obra do autor. Os sujeitos, autores de ficção e poética, ao escreverem suas obras, se inscrevem no tempo e no espaço onde as produzem e onde elas são recepcionadas. A inscrição do sujeito se escreve de acordo com seu alcance na sociedade, fato que se dá pelos vários media, tanto de divulgação da obra ficcional quanto da figura do autor. Atravessada pelos aparelhos midiáticos ou por sua própria pose, a figura do autor é transformada, com a ajuda de seu público, em um personagem. A figura do escritor substitui a do autor, a partir do momento que ele assume uma identidade mitológica, fantasmática e midiática. Esta personagem, construída tanto pelo escritor quanto pelos leitores, desempenha vários papéis de acordo com as imagens, as poses e as representações coletivas que cada época propõe aos seus intérpretes da literatura. Cada escritor, portanto, constrói sua biografia com base na rede imaginária tecida em favor de um lugar a ser ocupado na posteridade: ou o do ausente ou do morto, pois também a morte cultiva seus teatros, como o palhaço e o dandy.101 Assim podemos compreender como as figuras de Renato Russo e Cazuza se sobrepõem as de simples autores e intérpretes das canções. Ambos se tornam personagens – construídos por eles mesmos e pelos leitoresouvintes. Tecem, dessa forma, a presente biografia a ser projetada para a posteridade. O caráter de poeta-fingidor encena uma autobiografia em que fios se confundem com os da vida empírica e os da ficção, engendrados de tal maneira que o tecido se uniformiza re-apresentando um sujeito-personagem que não mais se confunde com o homem comum e passa a ser visto na máscara do herói, do mito ou do messias. 101 SOUZA, 2002, p.116. Há, nesse processo, uma ficcionalização do eu, que não responde mais pelo dono do registro de identidade civil, mas responde, sim, pelo registro da representação do vivido. Representação que se faz com a própria obra ficcional ou poética, entrecruzando com a pose do autor – nos depoimentos, entrevistas, fotos, aparições em público, shows, ensaios. Dessa maneira, o autor atua no palco da sociedade que o concebe e o recebe, de forma que sua encenação discursiva (que se dá pela escrita e pelo corpo) “ultrapasse os limites do texto e alcança o território biográfico, histórico e cultural”102. O autor responde, assim, na figura do intelectual, pela representação do seu tempo e de seu espaço, nas metáforas, alegorias e metonímias da experiência como ser vivente. Entre os rituais de consagração e canonização do autor, encontra-se a própria mídia que se encarrega, de acordo com seus propósitos, de criar seus heróis e mitos, promovendo a ascensão e também a queda deles. O próprio público leitor/ ouvinte é também elemento imprescindível em tais rituais. Muitas vezes, a platéia, no processo de identificação, projeta em seus ídolos tudo aquilo que anseia, de forma que eles passam a encenar um script delineado por seu público. As produções musicais da década de 80 experimentam a aproximação entre seus pares: autores/ intérpretes e público têm a mesma faixa etária e comungam dos mesmos anseios, frustrações e sentimentos. Ao falar a mesma língua, o palco se nivela à platéia, havendo assim uma mistura de vozes, sendo que a voz do cantor, por soar mais alta e eloqüente, capta e transmite a voz da platéia. Nesse processo de identificação e na necessidade de criar seus modelos, Renato Russo e Cazuza seriam vistos como representantes de sua geração: Desde que a gente começou, as pessoas observam que os fãs têm uma postura reverencial, que eu teria uma postura messiânica nos shows. As pessoas falam muito isso. Eu não me vejo como um messias ou um guru – longe disso –, mas falo de coisas que as pessoas também estão sentindo. (...) E então, é como se a gente fosse um termômetro do que acontece. E por termos a sorte de nos expressar através dos meios de comunicação em massa – falando do dia-a-dia, do meio em que você vive, o meio urbano, a sociedade atual –, isso vai bater muito nas pessoas.103 102 103 Id., Ibid. RUSSO apud ASSAD (org.), 2002, p.117. A capacidade de Renato Russo falar pela juventude e escrever as relações amorosas são apontadas no mesmo parâmetro em que Chico Buarque consegue, na voz feminina, dizer do universo da mulher. Nesse processo que consagra Russo como menestrel de toda uma geração e como messias, o autor de “Pais e filhos” tenta se despir da máscara de salvador que lhe foi colocada: “Sou jovem de vinte poucos anos, não sei nada da vida. E as pessoas bebem minhas palavras como água. Escrevo justamente porque não sei”.104 Renato Russo estava, na verdade, interessado em fazer rock’n roll simplesmente. Mas é justamente ao fazerem rock’n roll, ao protagonizarem grandes temas existenciais da literatura e da humanidade, como o amor, a morte, a solidão, e temas controvertidos como as drogas e sexualidade, em suas letras, que Russo e Cazuza “guardam sua natureza ficcional e se espraiam na página aberta do espaço textual e nos interstícios criados pelo jogo ambivalente da arte e do referente biográfico”105. A subjetividade do autor se coloca no texto poético como sendo encenação, atuação e representação tanto intelectual quanto lírica. Como veremos, Renato Russo e Cazuza são dois poetas fingidores, tal como o fora Fernando Pessoa. A representação do vivido, então, se dá pela obra poética e ficcional, pelo recolhimento dos pequenos acontecimentos cotidianos capazes de elucidar os fatos históricos, compondo assim “o quadro das pequenas narrativas, igualmente responsáveis pela construção do sentido subliminar da história”106. É colocar o sujeito na borda da história e operar nas “rupturas específicas”; uma espécie de história nova, que a partir das pequenas significações, fatos e atitudes “aparentemente inexpressivas” do dia-a-dia, que se ajuntam ao montante da obra do autor, e re-conta a história, afastando-se dos grandes blocos históricos que entoam a nota dos vencedores. Michel Foucault (1987), em A arqueologia do saber, nos chama atenção para a substituição das sucessões lineares – história dos longos períodos, das grandes bases imóveis e das grandes narrativas – pelo jogo das interrupções e descontinuidades. Nesse ponto, podemos situar o sujeito da travessia dos anos 104 RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.98. SOUZA, 2002, p.119. 106 Ibid., p.115. 105 1980 que promove, dessa forma, “um corte que só a ele pertence”. Daí, o aparecimento de “vários passados” que, recortados e encadeados sob novas categorias e redes de determinações107, coloca o sujeito, conforme aponta Derrida (2002), na “borda presumida da dita ruptura, a borda de uma subjetividade antropocêntrica que, autobiograficamente, se conta ou se deixa contar uma história, a história de sua vida”108 – que vem a ser a História. A inscrição do sujeito, que se dá também pela escrita, transformando a experiência em um acontecimento textual, se caracteriza pela necessidade da materialidade, capaz de reter, inscrever e arquivar. Derrida aponta a “irredutível acontecimentalidade do acontecimento” que, ao ser arquivada, retida, textualizada, “produz um novo acontecimento afetando assim o acontecimento suposto primário, que ela presumidamente retém, traça, consigna, arquiva”109. O acontecimento no arquivo de sua textualidade, ao afetar o centro e a “origem” de sua acontecimentalidade, rompe as grandes bases imóveis e as grandes narrativas da história, e, de forma descontínua, entre oscilações, deslocamento e rupturas, a produção estética do sujeito é capaz de “descrever os afastamentos e as dispersões, e desintegrar a forma tranqüilizadora do idêntico”110. A “singular existência” do homem-animal autobiográfico vem à tona e funciona, ao mesmo tempo, como indagação e resposta para o trabalho de arqueólogo de Foucault: “como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?”111. Buscar na superfície da palavra escrita para música, ou seja, na inscrição do acontecimento textual, a profundidade e singularidade que determina as condições de caminhada do sujeito é avançar na resposta. 2.3. A escrita autobiográfica do animal-poeta-fingidor Talvez a invenção poética seja capaz de dar conta daquilo que, sem fingimento ou invenção, a vida por si só, na sua rigidez, faz passar despercebido ou indigno de nota. O poeta-fingidor muitas vezes encena uma 107 FOUCAULT, 1987, p.5. DERRIDA, 2002, p.60. 109 Ibid., p.80. 110 FOUCAULT, 1987, p.14. 111 Ibid., p.31. 108 poética do eu, cedendo, sem força qualquer de oposição, aos instintos do animal autobiográfico. Dir-se-ia: “É um animal autobiográfico”. (...) Neste sentido, o animal autobiográfico seria essa espécie de homem ou de mulher que escolhe ou que não pode impedir de ceder, por caráter, à confidência autobiográfica. Aquele ou aquela que trabalha de bom grado com a autobiografia. E na história da literatura ou da filosofia, para sugerir de maneira sumária, há ‘animais autobiográficos’, mais autobiográficos que os outros, os animais de autobiografia.112 Os animais mais autobiográficos que outros, na lista de Derrida, são os escritores e filósofos, tais como Rousseau, Proust e Gide, Virginia Woolf, Gertrude Stein, Celan, Bataille. Acrescentam-se os poetas da música, Renato Russo e Cazuza. Esses dois autores, que se projetam pela escritura e pela voz, constituem-se como animais autobiográficos capazes de responder pela travessia de uma geração inteira. A citação acima fornece parte dos subsídios para a compreensão do que se trata tal animal adjetivado como autobiográfico. A expressão remete diretamente ao instinto de registro da própria vida. Logicamente, a afirmação implicaria uma longa discussão do tema, teorizado por pensadores contemporâneos e de outros tempos. Em “A escrita de si”, Foucault (1992) refere-se à individualização propriamente dita da memória. Não cabe aqui, portanto, uma discussão a respeito das memórias escritas anteriores à modernidade, que é o momento em que o sujeito se debruça sobre si mesmo, sem a necessidade de um registro ligado ao clã ou ao coletivo. No entanto, a memória escrita diretamente ligada à autobiografia remete primeiramente às sociedades sem escrita, desde a Antigüidade, passando pelos escritos aristocráticos como hypomnemata113 e pela correspondência114, que seriam as primeiras formas de escrita de si, ligadas aos pensamentos, à reflexão sobre as ações diárias, com o intuito de se evitar o mau 112 DERRIDA, 2002, p.90. Os hypomnemata, de acordo com Foucault, são livros ou carnês individuais com citações, fragmentos de obras, exemplos, ações testemunhadas, argumentações, resumos e reflexões sobre coisas lidas, ouvidas e pensadas, servindo assim como um guia de conduta, bastante cultivado no meio culto da época. FOUCAULT, 1992, p.135. 114 Quanto à correspondência, Foucault ressalta o exercício pessoal do missivista, já que “escrever é, pois ‘mostra-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”. A carta é um olhar de si ao destinatário, ao mesmo tempo um olhar que se volta para si mesmo. FOUCAULT, 1992, p.150. 113 comportamento. Ao escrever, ações e pensamentos se tornam conhecidos, passíveis, por isso, de serem combatidos se são pecaminosos ou possíveis de levar à tentação. Desde então, compreende-se uma escrita de confissão, em que se percebe a vergonha, a culpa, a tentativa de livrar do “coração o que quer que seja de perverso”115. Exercício que levou ao limite Santo Agostinho e Rousseau. A correspondência e os hypomnemata compreendem, portanto, a escrita de si e da vivência do eu. Emprestam às múltiplas variações do gênero autobiográfico o seu alto teor confessional – que Derrida desenvolverá em profundidade em muitos dos seus escritos sobre o assunto. Antes de pensar a questão da escrita autobiográfica como confissão, Fernando Pessoa, ao evidenciar, na própria poesia, o caráter fingidor de toda escrita, antecipa-nos o modo de ler e compreender o teor de autobiograficidade de Renato Russo e Cazuza em suas letras de música. Ambos também, em muitos momentos, alguns mais metalingüísticos e outros mais tênues, deixam transparecer o ato de invenção da escrita, tanto no que se refere às próprias ferramentas técnicas quanto àquilo que gira em torno e no interior do eu que escreve: “Mas então porque eu finjo que acredito no que invento?/ Nada disso aconteceu assim - não foi desse jeito”.116 Anteriormente, discutimos que tanto o eu da obra poética como o eu da obra documental dos autores supõem uma encenação, a re-presentação do vivido. Assim, a invenção poética é capaz de captar com mais profundidade aquilo que reside também na profundidade, consciente ou inconsciente, do sujeito, dando-nos, portanto, na superfície material da escrita, aquilo que somente se pode perceber nela. Adentramos, assim, na diffèrance de Derrida, em que “como se pode notar, esse ‘a’ se escreve ou se lê, mas não se pode ouvi-lo”117: “São só palavras: teço ensaio e cena/ Cada ato enceno a diferença”.118 Assim, a letra de música opera na diferença escrita daquilo que vem à tona junto com ela. Renato Russo, ao dizer “escrevo justamente por que não 115 FOUCAULT, 1992, p.130. LEGIÃO URBANA. “Acrilic on canvas”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro: EMI, p1986. 1CD. Faixa 3. 117 DERRIDA, 2002, p.14. 118 LEGIÃO URBANA. “Os barcos”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: EMI, p1993. 1CD. Faixa 7. 116 sei”119, tem na superfície da letra, pelo reflexo de uma consciência que se materializa na linguagem, aquilo que quer apreender, reconhecer e arquivar: “Só por dizer é que finjo que sei”120. É um eu diante do outro. Vemo-nos na escrita autobiográfica não como uma imagem no espelho, mas vemos o outro que somos na imagem refratária da escrita. A poética do eu permite que um outro, a quem também o eu se dirige quando escreve, seja um eu - outro no trânsito entre aquilo que reside no interior do sujeito e aquilo que se manifesta na escrita. Desse modo, o eu e a escrita sempre se modificam e movimentam-se, o que leva ao reconhecimento de si próprio e ainda ao autoconhecimento. Mas um autoconhecimento que é do outro: Um outro agora vive na minha vida Sei o que ele sonha, pensa e sente Não é coincidência a minha indiferença Sou uma cópia do que faço O que temos é o que nos resta E estamos querendo demais.121 O auto da autobiografia responde pela assinatura do eu: o eu das letras de música cantado por uma multidão não deve ser confundido com a assinatura do autor dito real, mesmo ele sendo o protagonizador daquilo que o distingue como autor. Há o ato parricida da escrita: mata-se o pai para que ela continue, de forma independente, a existir, a falar na ausência/ presença, quando seu significante se esvazia e ganha possibilidades ilimitadas na atualização do leitor/ ouvinte. Foucault (1992) aponta que a regularidade da escrita está sempre pronta a ser experimentada em seus limites, havendo assim possibilidades de transgressão e inversão: “a escrita desdobra-se como um jogo que vai infalivelmente para além das suas regras, desse modo as extravasando”122. O jogo, na abertura e no movimento de um espaço, em que o sujeito da escrita tende sempre a desaparecer, possibilita a existência do outro, 119 RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.98. LEGIÃO URBANA. “La nuova gioventu”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: EMI, p1993. 1CD. Faixa 13. 121 LEGIÃO URBANA. “A montanha mágica”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD. Faixa 3. 122 FOUCAULT, 1992, p.35. 120 que (não) preenche as lacunas de uma obra, e, assim, pode-se dizer sempre inacabada. Em “Quase sem querer”, Renato Russo, como sintetiza o título, aponta o caráter de imprevisibilidade da escrita, sua possibilidade do impossível e sua necessidade de audácia: Quantas chances desperdicei Quando o que eu mais queria Era provar pra todo o mundo Que eu não precisava Provar nada pra ninguém. Me fiz em mil pedaços Pra você juntar E queria sempre achar Explicação pro que eu sentia. Como um anjo caído Fiz questão de esquecer Que mentir pra si mesmo É sempre a pior mentira.123 E o tom “exagerado” e as invenções poéticas e do amor, tão presentes na obra e na voz de Cazuza, o garoto da zona sul do Rio de Janeiro, que protagonizou a escassez (também do amor) de sua geração, nos faz aproximar da idéia de que a poesia, assim como o amor, seja uma invenção “pra se distrair”. Mas ao contrário do amor inventado que, “quando acaba, a gente pensa que nunca existiu”124, a poesia fica como registro escrito do eu, do seu tempo, e dos percalços da travessia. Daí, as possibilidades do retorno constante, de movimentação e de leituras que tornam sempre e novamente a escrita como algo presente, ainda como uma espécie de pós-scriptum: a afirmar o suplemento. Um verdadeiro “veneno antimonotonia”125. Os versos de “Exagerado” nos colocam diante da sedução causada pelo fingimento, tanto do amor quanto da poesia: Exagerado Jogado aos teus pés Eu sou mesmo exagerado 123 LEGIÃO URBANA. “Quase sem querer”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro: EMI, p1986. 1CD. Faixa 2. 124 CAZUZA. “O nosso amor a gente inventa”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Som Livre, p1987. 1CD. Faixa 3. 125 CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 8. Adoro um amor inventado.126 Assim, os conhecidos versos de Fernando Pessoa, ele mesmo (será?), que um dia declarou com toda sinceridade: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.127 são capazes de sintetizar o fingimento autobiográfico do animal que logo somos, dramatizado na escrita de Renato Russo e Cazuza. A metalinguagem da sinceridade do fingimento que revela o fazer poético legitima a poesia não como mentira, mas como expressão artística, que se desliga da relação natural factual entre vida e obra e é capaz de “transformar o tédio em melodia”128. 2.4. A escrita autobiográfica como confissão Ao escrever, o outro em nós se revela. Vê-se o outro de si mesmo na escrita. Desvela-se o eu, despe-se, porque na nudez das palavras o outro que agora em mim vive, pensa, sente e se revela pelo instinto do animal, dado à autobiografia intelectual e poética. E desde que o homem sentiu vergonha da própria nudez, ainda lá no Paraíso, ao desobedecer às ordens de Deus, nascia o pecado, o erro, a falta e a morte. Entre o bem e o mal, o homem agora poderia escolher e precisaria esconder o sexo exposto, porque soubera estarse nu diante do outro, de Deus e, antes, de si mesmo. Sabemos que o ato de se vestir é hábito apenas do homem, o único animal consciente da sua nudez e da vergonha que ela causa, desde a expulsão do Éden. “O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. Só seria homem ao tornar-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não 126 CAZUZA. “Exagerado”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 1. 127 PESSOA, http://www.releituras.com/fpessoa_psicografia.asp, captado em 04/04/2007. 128 CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 8. está mais nu”129. O vestiário, portanto, corresponde à técnica de encobrir a nudez. A nudez é apenas o “sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou inconsciente) de existir na nudez”130. Por isso, o animal está alheio ao que implica saber-se nu, saber de si. E ao saber de si em que isso implica? Quem sou eu, então? Quem é este que eu sou? – indaga Derrida e o animal que nos olha nu. Saber de si mesmo tem sido desde o mundo antigo empreitada difícil à qual os homens têm se entregado filosófica, espiritual, psicológica, cultural e pessoalmente. “Conheça a ti mesmo”, prevenia o oráculo de Delfos. E Santo Agostinho, ao assinar as Confissões, não apenas enumera suas faltas e pecados para um Deus que tudo sabe e tudo vê. Mostra que ao confessar – exercício que o santo-pecador fez por escrito –, damo-nos a conhecer a nós mesmos, revelando-nos nus pela nudez das palavras que, paradoxalmente, despe-nos e nos encobre da falta cometida diante de Deus e do outro. O outro, antes de tudo, que é si mesmo. Desse modo, antecipa Santo Atanásio: “escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar mutuamente, melhor nos defenderemos dos pensamentos impuros por vergonha de os termos conhecido”131. A escrita abriga o desejo da confissão, da revelação e do perdão. Dessa forma, a escrita autobiográfica implica o ato da confissão, no sentido de arquivo da experiência do vivente, e no sentido eclesiástico, como assinam, na tradição ocidental cristã, Santo Agostinho e Rousseau. Para haver a confissão é preciso, antes, a experiência do acontecimento e afirma Derrida que “não há acontecimento sem experiência (e isso é o que, no fundo, “experiência” quer dizer), sem experiência, consciente ou inconsciente, humana ou não, do que acontece ao vivente.”132 No sentido da confissão da “acontecimentalidade” ou da “acontecimentalidade” da confissão, Renato Russo e Cazuza assinam os nomes dos viventes que experimentam a travessia, sendo capazes, ao dizer eu - homem, eu - animal da escrita, de remeter, antes de responder, ao arquivamento da experiência de toda a sua geração. Suas escritas podem ser lidas como memórias coletivas, aproximando da função do relato da memória 129 DERRIDA, 2002, p.18. Ibid., p.17. 131 ATANÁSIO apud FOUCAULT, 1992, p.130. 132 DERRIDA, 2004, p.36. 130 anterior à Idade Moderna, quando o nós se sobrepunha ao eu. No entanto, a assinatura do nome da escrita visivelmente forjada na primeira pessoa do singular sugere a intimidade da confissão, numa sociedade oposta àquela que valorizava o coletivo em detrimento do particular. Entretanto, será justamente pela assinatura do nome nos relatos autobiográficos confessionais desses dois autores que se dará a junção do desejo imanente presente na escrita: a de ser arquivo do acontecimento e arquivo da confissão. Logo, na primeira canção do primeiro álbum da Legião Urbana, Renato Russo assinala: Será que vamos ter Que responder Pelos erros a mais Eu e você?133 Fica, portanto, declarada a ansiedade que antecede à confissão dos erros próprios e do outro. O conteúdo autobiográfico presente nas letras referese também ao outro, o outro de si mesmo e o outro que o olha nu, e o faz consciente de sua nudez e daquele mesmo que o expia. A seguir, porque o animal segue e é seguido, abre-se (e não fecha, apenas se movimenta) as obras de Russo e Cazuza, para as quais se voltam a pergunta, em apressar-se em cobrir: a palavra cobre ou descobre, me põe nu ou é uma vestimenta? “Não sei mais responder, nem mesmo responder pela questão que me anima ou me interroga sobre quem sigo ou atrás de quem eu sigo, e sigo assim correndo”, diria Derrida134. A perseguição de saber quem eu sou e ao mesmo tempo de querer não mais saber – o despir-se e o vestir-se pela palavra escrita – caracteriza-se na encenação de toda escrita autobiográfica, ao passo que se busca conhecer a si mesmo, para que a materialidade, a posteriori, se caracterize como documento, podendo assim responder, com sinceridade e verdade, pela assinatura e pela travessia: “Não tenho nenhum pudor em documentar meus momentos de dor e angústia. Não entro nessa de ter que dizer que está tudo bem. Porque senão a música não vira documento, história, registro de vida”135. A consciência de Cazuza do registro documental através da obra poética não o impediria de, na expressão 133 LEGIÃO URBANA. “Será”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI, p1984. 1 CD. Faixa 1. 134 DERRIDA, 2002, p.27. 135 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.163. poética, onde o eu através da confissão depara-se frente a frente com o animal que o olha (ele mesmo), escrever: O meu prazer Agora é risco de vida Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll Eu vou pagar a conta do analista Pra nunca mais ter que saber quem eu sou136 Ao se constituir como linguagem, o sujeito se constitui e se conhece, sem nem sempre se reconhecer. Tanto Cazuza como Renato Russo se mostram conscientes do feitio poético que comporta o confessional e o documental. E ao longo da escrita vão se revelando com mais força, fazendo vir à tona os paradoxos da escrita e do sujeito: conturbações presentes na superfície da letra que desvela o momento histórico de mesma característica que (des)norteia o sujeito. Deparamo-nos, no início, com um eu que busca o relato do acontecimento para que na materialidade da experiência possa vir a acontecer a confissão. Sem a apreensão do acontecimento, o eu se interroga num ato que antecede a confissão e a culpa, antecipando, no entanto, a necessidade de perdão e de salvação. O eu de “Soldados”, do primeiro álbum da Legião Urbana (1984), num processo de descoberta e interrogações, busca conhecer quem é o eu ao saber quem é o outro. Um processo que permite o inverso: saber quem eu sou me dá a conhecer o outro. Daí, o valor documental que a obra pode conter, dando-nos o poder de desvelamento do eu e do nós – um tanto mutável, tal como a própria poética. Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto Tenho medo e eu sei porque: Estamos esperando. Quem é o inimigo? Quem é você? (...) Não sei armar o que eu senti Não sei dizer que vi você ali. Quem vai saber o que você sentiu? Quem vai saber o que você pensou? 136 CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 1. Quem vai dizer agora o que eu não fiz? Como explicar pra você o que eu quis.137 Portanto, o acontecimento e a experiência em Renato Russo e Cazuza estão diretamente ligados à escrita confessional – o eu na travessia faz o acontecimento existir no momento em que o relato, o registro e o arquivamento da experiência se fazem. A movimentação das leituras infinitas que preenchem a ausência/ presença da assinatura do autor e o significante esvaziado produzem um novo acontecimento, uma nova experiência, arquivável, inventiva ainda. O acontecimento significante que se tenta organizar se reúne diante do caos, promovendo a tensão com aquilo que fica disperso: novamente acontece a tensão da obra e da escrita, que reúnem e dispersam, unificam e dividem – Deus e o Diabo nas palavras. “Fadado à virtualidade do ‘cedo ou tarde’, o arquivo produz o acontecimento, tanto quanto registra ou consigna”138, aponta, portanto, Derrida. O processo de descoberta e autoconhecimento do sujeito das canções da Legião Urbana acompanham o refinamento poético de Renato Russo. No disco Dois (1986), a letra de “Daniel na cova dos leões”, por exemplo, revela um eu que se (des)cobre pelas metáforas. O título de referência bíblica pode remeter e antecipar o julgamento daquele que veio a conhecer a tentação e a cair em pecado. Condenado, o eu faz da escrita metafórica uma forma de cobrir a nudez que se dá pelas próprias palavras. O eu, na “sinceridade” de poeta, confessa: Faço nosso o meu segredo mais sincero E desafio o instinto dissonante. A insegurança não me ataca quando erro E o teu momento passa a ser o meu instante. E o teu medo de ter medo de ter medo Não faz da minha força confusão: Teu corpo é meu espelho e em ti navego E eu sei que tua correnteza não tem direção.139 O eu se depara com o outro e com a imprevisibilidade da escrita que, como o outro (e si mesmo) sem direção, segue em frente. Mais adiante, no 137 LEGIÃO URBANA. “Soldados”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI, p1984. 1 CD. Faixa 9. 138 DERRIDA, 2004, p.66. 139 LEGIÃO URBANA. “Daniel na cova dos leões”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro: EMI, p1986. 1 CD. Faixa 1. mesmo álbum, temos a confissão do erro no ritmo de maturação do eu e da maturação lírica que Renato Russo persegue tal como se persegue a um animal: Nada mais vai me ferir. É que eu já me acostumei Com a estrada errada que eu segui E com a minha própria lei.140 O amadurecimento leva o sujeito a tomar consciência da confissão que ganha na materialidade da palavra escrita a visibilidade do erro e da falta. “Eu sei” protagoniza a busca da sinceridade fingida do poeta que encena a atitude do sujeito e, ao mesmo tempo, nestes versos, ilustra a busca da ética nas relações humanas tão presentes em Renato Russo. Para Derrida (2002), ainda ninguém foi capaz de negar ao animal o “poder de traçar ou de retraçar um caminho em si. Que se lhe tenha recusado o poder de transformar esses traços em linguagem verbal...”141: Sexo verbal não faz meu estilo Palavras são erros, e os erros são seus Não quero lembrar que eu erro também Um dia pretendo tentar descobrir Porque é mais forte quem sabe mentir Não quero lembrar que eu minto também. Eu sei142 A afirmação “eu sei” remete à autenticidade do sujeito que se dá pela experiência do ser vivente. Dessa forma, os dizeres de Derrida também são válidos para toda a poética autobiográfica: Que todo enunciado teórico, cognitivo, toda verdade por revelar, assume uma forma testemunhal, a de um “eu penso” ou “eu digo” ou “eu creio”, “eu tenho o sentimento interior que” etc, “eu guardo uma relação para comigo a que você nunca em acesso imediato e em razão da qual você deve acreditar em minha palavra”.143 140 LEGIÃO URBANA. “Andrea Doria”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro: EMI, p1986. 1 CD. Faixa 10. 141 DERRIDA, 2004, p.91. 142 LEGIÃO URBANA. “Eu sei”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este - 1978/1987. Rio de Janeiro: EMI, p1984. 1 CD. Faixa 6. 143 DERRIDA, 2004, p.78. Por aí, o fingimento do poeta não se torna uma mentira e assume forma documental que ultrapassa a subjetividade do momento da escrita e sobrevive à assinatura do autor. No ritmo do amadurecimento do eu – lírico, que cada vez mais se dá ao trabalho da poética confessional, revelando-se nu nas letras das canções, tem-se o cuidado com a ética, que como dissemos, norteia a obra de Renato Russo. Em um dos versos de “Natália”, canção do álbum A Tempestade (1996), temos a materialização do cuidado sincero que entra em consonância com a busca do amor como salvação para as faltas e erros: “Não confunda ética com éter”144. A advertência ganha na próxima canção de A Tempestade um tratado poético e ético para as relações humanas, em que se tem a confissão, a necessidade do perdão e da salvação. O amor, colocado como algo acima daquilo que nos faz pequenos nos gestos faltosos, aproximase do perdão e exige a sinceridade tanto daquele que o apreende, quanto daquele que canta os amores – o poeta-fingidor: Nada é fácil, nada é certo Não façamos do amor algo desonesto Quero ser prudente e sempre ser correto Quero ser constante e sempre tentar ser sincero (...) E o que eu era eu não sou mais E não tenho nada p’rá lembrar145 Os dois últimos versos citados nos permitem visualizar o trabalho da memória no tecido poético autobiográfico. Entre esquecer e lembrar, tem-se o material para a construção da autobiografia. Os versos ainda revelam o quanto a escrita pode incomodar ao permitir que o eu me olhe nu, sendo visto pelo animal em mim que sabe da minha condição de nudez. Daí, muitas vezes negar aquilo que somos sem a vestimenta que encobre, sem a máscara que protege. Como confissão sincera e poesia fingida, o poeta pode se valer do jogo que essas afirmações permitem e dizer: “Não é desejo, nem é saudade/ 144 LEGIÃO URBANA. “Natália”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro: EMI, p1996. 1 CD. Faixa 1. 145 LEGIÃO URBANA. “L’Aventura”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro: EMI, p1996. 1 CD. Faixa 2. Sinceramente nem é verdade.146 Assim, muitas vezes a confissão se torna fingida e a poesia, por sua vez, sincera. Nesse ritmo lúdico da poesia que mistura lembrança e esquecimento, sinceridade e fingimento, culpa e perdão, o eu tenta se constituir e encontra na canção uma forma de salvação, de resistência, de perdão. O amor, em “Soul Parsifal”, aparece como aquilo que permite a unidade. Busca-se a integridade, a afirmação e o autoconhecimento que se dão pela escrita. O relato da culpa encontra agora a salvação na materialidade da poesia que descobre e encobre; pois toda confissão carrega a culpa e o perdão. Ao confessar me tenho perdoado, cubro-me de novo: Eu tenho um jardim e uma canção Vivo feliz, tenho amor Eu tenho um desejo e um coração Tenho coragem e sei quem eu sou (...) Com a saudade teci uma prece E preparei erva-cidreira no café da manhã Ninguém vai me dizer o que sentir E eu vou cantar uma canção p'rá mim147 Ao se cobrir de “novo”, o eu se protege nas vestimentas e se faz novo no sentindo de renascer, remete ao desejo da ressurreição presente em Santo Agostinho. Esse desejo é o maior mobilizador da confissão, que já pressupõe o perdão e fomenta com mais ânsia a salvação. A escrita que comporta o desejo de confissão comporta também a esperança de amortização da falta com o credor-Deus, aprisona-se e liberta-se em seguida. Morte e vida se entrelaçam: morre-se para ressurgir-se. Um processo que encontra o acalanto na doutrina cristã: a necessidade do sofrimento como forma de purificação e de salvação. Algo próximo ao que Cazuza cantou de forma irônica em “Um trem para as estrelas”: Estranho o teu Cristo, Rio Que olha tão longe, além Com os braços sempre abertos Mas sem proteger ninguém 146 Id., ibid. LEGIÃO URBANA. “Soul parsifal”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro: EMI, p1996. 1 CD. Faixa 8. 147 Eu vou forrar as paredes Do meu quarto de miséria Com manchetes de jornal Pra ver que não é nada sério Eu vou dar o meu desprezo Pra você que me ensinou Que a tristeza é uma maneira Da gente se salvar depois.148 Cazuza cantaria, em um pedido de perdão e piedade coletivos, a sua própria necessidade de salvação. “Blues da Piedade”, que reflete o amadurecimento lírico do autor, é um exemplo de confissão que remete diretamente à necessidade de perdão e salvação que pressupõe toda confissão através da escrita. A letra deixa transparecer, na sua metalinguagem a necessidade de piedade para o nós e para o eu que se escondem no outro. Nos versos de métrica semelhante às preces da liturgia cristã, que estende para toda a comunidade o desejo de perdão íntimo, encena-se a busca do perdão para as falhas do eu, dramatizado numa voz no plural que encobre a vergonha e a culpa de uma voz no singular: Agora eu vou cantar pros miseráveis Que vagam pelo mundo derrotados Pra essas sementes mal plantadas Que já nascem com cara de abortadas Pras pessoas de alma bem pequena Remoendo pequenos problemas Querendo sempre aquilo que não têm (...) Vamos pedir piedade Senhor, piedade Pra essa gente careta e covarde Vamos pedir piedade Senhor, piedade Lhes dê grandeza e um pouco de coragem149 Em Cazuza as confissões tomam o tom “exagerado”, marca do autor. No entanto, percebe-se menos em suas letras a metalinguagem que explica o caráter de poeta-fingidor e de confessor sincero de suas culpas, algo que em 148 CAZUZA. “Um trem para as estrelas”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 6. 149 CAZUZA. “Blues da piedade”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 9. Renato Russo, como vimos, segue todo o percurso do eu ao longo de sua obra. No entanto, em ambos os autores, a confissão acontece, na maioria das vezes, sem o querer, sem a busca consciente das falhas. Sem a vontade declarada da confissão, há o desvelamento da história do eu e do nós. Por isso, muitas vezes, quando, na superfície da letra, o homem se depara com o animal que o olha nu – porque agora se encontra descoberto pelas palavras –, ele nega saber de si, promove um percurso contrário ao da materialização da linguagem. Ficam, portanto, os rastros do animal nos rastros da escrita que não permite a composição totalizadora desse homem que escreve, até porque é impossível o todo. Como é impossível toda lembrança sem esquecimento, tal qual Funes150, que não mais tem nada a lembrar, por não ter mais o que esquecer. Pode-se pensar na possibilidade de apagar os rastros, mas, sobre as marcas das pegadas e traços, o animal se inscreve com mais força, o que acaba por revelá-lo novamente. Os rastros deixam traços palimpsestuosos: a escrita que remete a outra escrita, o eu que remete ao eu - outro em si. O movimento desestabiliza o todo e o centro e impede a totalização do ser, a totalização da memória, e a totalização da escrita da experiência do acontecimento. O acontecimento se torna textual, rastro, que o animal fareja, retoma, arquiva, consigna, encontra. “É como se, há pouco, eu estivesse dito ou fosse dizer o interdito, alguma coisa que não se deveria dizer. Como se por um sintoma eu confessasse o inconfessável e, como se diz, eu estivesse querido morder minha língua.”151 Assim, não devemos também esquecer que as obras de Renato Russo e Cazuza, ao serem lidas como autobiografia, pressupõem a exposição da nudez que extrapola o próprio olhar do animal em nós e ganha o olhar do outro. Uma nudez que acontece, antes de tudo, no espaço privado e depois ganha a visibilidade pública: Quando me vi tendo de viver comigo apenas E com o mundo 150 151 BORGES, 1979, p.477-484. DERRIDA, 2002, p.17. Você me veio como um sonho bom E me assustei152 Nas palavras de Derrida, podemos ler a questão da exposição da nudez do homem autobiográfico que canta sua experiência de ser vivente: Os animais me olham. Com ou sem rosto, justamente. Eles se multiplicam, eles me saltam cada vez mais selvagemente aos olhos à medida que meus textos parecem se tornar, como quiserem fazer-me crer, cada vez mais ‘autobiográfico’.153 Todavia, este “cada vez mais autobiográfico” pressupõe a encenação de quem se despe. Dessa forma, o limite do eu - homem e do nós - homem nas obras de Renato Russo e Cazuza se torna tênue ao propor o rompimento e fusão do eu e do nós. A nudez do eu reflete a nudez de sua geração. Onde, então, residiria tanta culpa para a confissão? Em que momento da travessia, o acontecimento leva à confissão e à necessidade do perdão? Em que circunstâncias, a obra de relato íntimo da dor e da angústia, que Cazuza não teme em relatar, carrega a tensão vida-e-morte? Qual o sentimento de culpa que reside no interior daqueles que se libertam das amarras do autoritarismo e da repressão e procuram o domínio do próprio corpo e da linguagem ao mesmo tempo em que se deparam com mal do século XX, a Aids? A poética da travessia seria uma forma de vencer a morte e libertar a obra do tempo fixo, lutando contra o tempo que não pára, lançando, assim, todo o crédito de seu entendimento para o futuro – como já pressupunha Nietzsche, ao se mostrar conhecedor da desproporção entre a grandeza de sua tarefa e a pequenez de seus contemporâneos. Assim, somos ainda devedores de uma compreensão maior das obras de Renato Russo e Cazuza, que bem poderiam receber o subtítulo retirado da autobiografia do filósofo alemão – “como cheguei a ser o que sou”.154 152 LEGIÃO URBANA. “O teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1 CD. Faixa 5. 153 DERRIDA, 2002, p.67. 154 NIETZSCHE, Frederico. Ecce homo: como cheguei a ser o que sou, 1959. 3. Vozes que compõem o rock da travessia Do feio, o poeta desperta um novo encanto. Charles Baudelaire 3.1. A escrita palimpsestuosa: polifonia, roubo e “outridade” Mikail Bakhtin, ao analisar os Problemas da poética de Dostoiévski, no capítulo “Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras de Dostoiévski”, estabelece, a partir de uma cosmovisão da evolução da prosa literária européia, a concepção do romance polifônico. A obra de Dostoiévski deixaria perceber a variedade de vozes distintas que se entrecruzam no texto, estruturado de tal forma que faz ecoar pontos de vista diferentes. Os romances do autor, de acordo com análise de Bakhtin, estariam impregnados de elementos dos mais distintos gêneros que, depois de passarem por tensa evolução ao longo da história da literatura, se fariam presentes em seus textos romanescos. Do diálogo socrático, passando pela menipéia e seus desdobramentos na Idade Média, o autor russo, no século XIX, comporia seus romances com agudas síncrises dialógicas, crises, reviravoltas, catástrofes, escândalos, combinações de contrastes e oxímoros, solilóquios, confissões – num emaranhado de vozes que ecoam ao longo da tessitura do texto. Ao renovar cada um desses gêneros, a criatividade de Dostoiévski residiria na multiplicidade de pontos de vista que constitui a “realidade”, sendo que cada voz distinta ou em consonância se apresenta em igual grau de convencimento. Posicionados em um dado contexto sócio-histórico, os personagens ou indivíduos na relação dialógica da linguagem constroem o sentido, que emerge do embate discursivo, num confronto incessante de interação. A multiplicidade de vozes, presentes no romance polifônico, se faz presente também no sujeito que, constituído como um ser vivente na história e na sociedade, suporta no seu discurso a presença de inúmeras outras vozes. Assim, na voz do outro se faz presente o outro e si mesmo. Um jogo constante de interação entre enunciadores e enunciatários, entre discursos, entre textos, entre formas de expressões artísticas, e entre momentos diversos da história do homem. Bakhtin (1995) concebe a linguagem como dialógica por natureza, sendo necessária a instauração do eu e do outro no processo comunicacional. A partir das análises da obra literária de Dostoiévski, o autor explica que a polifonia instaura a constituição de sujeitos que sempre carregam a perspectiva e a presença de um outro, da voz do outro, da voz histórica e do presente. Vozes essas que se mesclam à voz criativa do eu e instaura a enunciação, que sempre e novamente, retoma, em cada espaço e tempo de realização, a voz do outro. Bakhtin, ao constatar a evolução da literatura, evidencia que o “gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo”155. Assim, podemos conceber o sujeito e suas inúmeras formas de expressão – práticas e artísticas – sempre comportando uma perspectiva de vozes distintas que, em confronto ou harmonia, tecem o discurso, a literatura e as artes. Há nesse processo de movimento aquilo que renasce e se renova, aquilo que se conserva e o que se acrescenta: o suplemento. Os caminhos abertos por Bakhtin, ao propor a relação dialógica da linguagem e o conceito de polifonia, incentivam vários estudos e desdobramentos de seu pensamento. Teóricos e perspectivas tentam dar conta dos fenômenos que recaem e derivam do processo interacional da linguagem – quando acreditam que, na linguagem prática cotidiana, no texto científico e no literário, está presente de forma explicita ou escamoteada a voz do outro. Porém, sem se ater a grandes questões teóricas que separam ou agrupam conceitos de polifonia e dialogismo, interessa aqui traçar o rastro dos rastros da escrita palimpsestuosa e incestuosa do rock brasileiro dos anos 80, representado nas obras de Renato Russo e Cazuza. Obras escritas que comportam a voz do eu e do outro. Aproximando os conceitos de Bakhtin (1981) ao pensamento de Derrida (2002, 2004), pretende-se rastrear os rastros do animal autobiográfico que, de rastros em rastros, vestígios e pegadas, roubos e confissões, deixa revelar na sua voz a voz do outro e ainda na voz do outro a sua voz. Assim, questiona-se onde se deixam perceber as marcas daquilo que não se apaga completamente na espessura do palimpsesto. Quais os rastros, vestígios sobre vestígios, onde se pode detectar o clandestino, o roubo, a confissão do roubo de escrita, na escrita “que acusa e que se desculpa pelas citações e quase citações”156? Derrida (2004), em Papel Máquina, no capítulo “Matéria e memória”, apropria-se de Santo Agostinho, Rousseau e Paul de Man e se expande numa escrita palimpsestuosa acerca da escrita confessional, que por sua vez, remete a uma memória, uma história e um arquivo da confissão. Santo Agostinho e Rousseau são autores de Confissões. Inauguradas por um roubo, as histórias autobiográficas desses autores no acontecimento textual se fazem novamente 155 156 BAKHTIN, 1981, p.91. DERRIDA, 2004, p.62. roubo ao remeterem uma a outra, numa espécie de respeito à genealogia de uma escrita de culpa e perdão. As Confissões de Agostinho foram escritas antes da instituição do procedimento católico da confissão; as de Rousseau, protestante convertido, depois dessa instituição e, ademais, depois da abjuração por Jean-Jacques de seu calvinismo como se tratasse para ele de se situar na grande história genealógica das confissões intituladas Confissões. Árvore genealógica de uma linhagem mais ou menos literária que começaria pelo roubo, toda vez numa árvore portadora, no sentido literal ou figurado, de algum fruto proibido. Uma árvore com folhas ou árvores sem folhas, que produziu tantas folhas de papel, de papel para escrever ou de papel para máquina. Rousseau teria gravado seu nome na economia arquival de um palimpsesto por meio de quase citações tomadas na espessura palimpsestuosa de uma memória quase literária: uma linhagem clandestina ou criptada.157 Na folha de papel as marcas da escrita daqueles que confessam o roubo remetem ao roubo da escrita, ao “roubo na linguagem, o roubo de uma palavra, a apropriação abusiva da significação de uma palavra”158. Assim, “a inscrição da obra, o acontecimento de texto em seu corpo gráfico, longe de exonerar, eis, ao contrário, uma operação do opus que sobrecarrega, gera e capitaliza um tipo de juro (não ouso dizer de mais-valia) de culpa”159. Portanto, toda escrita é roubo, é confissão e perdão. E ao ser assim, movimenta, remete, retoma, e gera no acréscimo do palimpsesto o montante da culpa. Apropriando-se do texto do outro, citando para desculpar, citamos Paul de Man, na linhagem de citação e (des)culpa de Derrida, ao longo do seu texto: As desculpas geram a própria culpa que elas apagam [...] embora sempre por excesso, ou falta. No final de Devaneios.... há muito mais culpa do que se tinha no início quando Rousseau se aplica [grifo “aplicar-se”, se dá, se dedica] para com o que ele chama, em outra metáfora corporal, de “le plaisir d’écrire”, isso o deixa mais culpado do que nunca (p.1038) [...]. Culpa suplementar significa desculpa suplementar [...] [grifo meu] nenhuma desculpa jamais pode ter a esperança de contrabalançar tamanha proliferação da culpa. Por outro lado, qualquer culpa incluindo o prazer culpado de escrever o Quarto devaneio pode sempre ser rejeitada como produto gratuito de uma gramática textual, ou de uma ficção radical: nunca haverá culpa o suficiente que se 157 Ibid., p.47. Ibid., p.95. 159 Ibid., p.67. 158 iguale ao poder infinito que a maquina do texto tem de desculpar.160 A citação da culpa e da desculpa acima carrega omissões e marcas de quem cita, capitalizando mais culpa e, por sua vez, mais desculpa: a “culpa suplementar significa desculpa suplementar”. Dessa forma, quase que numa remissão ao labirinto da linguagem, quando toda escrita ao remeter a outra corre o risco de se perder e se auto-envenenar, ao mesmo tempo, que exonera e alivia o peso da dívida. Tenta-se (a)pagar o que não se (a)paga e se inscreve e se fixa com mais força e profundidade no palimpsesto. Ecoa, dessa forma, no texto, a multiplicidade de vozes e marcas, rastros e vestígios do animal outro. A escrita polifônica de Bakhtin se sobrecarrega da culpa de Agostinho, Rousseau, Paul de Man e Derrida: são escritas do roubo, escritas para a salvação. São múltiplos os roubos e múltiplas as formas de desculpas, que se capitalizam na escrita. A tentativa de reconstituição do discurso próprio e do outro, que só se dá por rastros, busca descobrir “a palavra muda” que murmura nas entrelinhas e faz ecoar o “miúdo e invisível” do texto. Ato que permite elucidar aquilo que se acrescenta nas camadas do palimpsesto, sobrepondo-se às espessuras finas, contaminando-se, tocando-se, incorporando-se, penetrando-se. O corpo da escrita, a escrita corpórea - que em si comporta a confissão, a acusação e o perdão - suporta no prazer da mesma escrita um gozo ambíguo de inocência e acusação, de revelação da inocência e busca pelo perdão. A escrita palimpsestuosa é também incestuosa, já que escritas irmãs se contaminam ao toque da nudez das palavras, na intimidade do palimpsesto, “no coração do júbilo terrível e severo da inscrição”161: Teu corpo alimenta meu espírito Teu espírito alegra minha mente Tua mente descansa meu corpo Teu corpo aceita o meu como a um irmão162 160 161 DE MAN apud DERRIDA, 2004, p.67. DERRIDA, 2004, p.69. LEGIÃO URBANA. “Uma outra estação”. R. Russo [compositor]. In: –. Uma outra estação. Rio de Janeiro: EM, p1997. 1CD. Faixa 2. 162 Renato Russo e Cazuza, ao responderem também pelo corpo que se torna metáfora de si próprio e daquilo que arrisca na escrita que busca a salvação, correm, na mesma medida, o risco do envenenamento. Corpos e escritas se contaminam ao se sobreporem uns aos outros, na sensibilidade do toque, no diálogo íntimo que confessa “segredos de liquidificador”163. Para Derrida, a autobiografia é a escritura de si do vivente enquanto perseguição do rastro do animal, – é auto-afecção ou auto-infecção ao passo que, ao escrever, o eu se contamina com o outro, o outro de si mesmo, e o outro de fora: autoinfeccionam discursos, palavras, linguagens, confissões. “Nada corre o risco de ser tão envenenador quanto uma autobiografia, envenenador para si, de antemão, auto-infeccioso para o presumido signatário assim auto-afetado”.164 E o risco de infecção se alarga na medida em que sabemos que, corpo-a-corpo, as escritas se entregam umas a outras, sem qualquer proteção, mas seguindo o instinto de diálogo, quando o animal autobiográfico sacia o instinto de escrever-se e de inscrever-se. Os diálogos presentes na música refletem os diálogos entre épocas históricas e culturas distintas que, de maneiras diversas, deixam marcas no sujeito, na sociedade e, conseqüentemente, na obra artística, em que a différance se manifesta, dando-nos um entendimento do passado e, principalmente, da contemporaneidade. Não só o sujeito se comunica com ele mesmo e com o outro, na escrita e na arte, recuperando, pelas pegadas, aquilo que ele veio a ser; a névoa que paira sobre o século XIX pode ainda embaçar a noite das décadas finais do século XX. A década de 1980 consegue refletir, ainda que de forma opaca, os resquícios de séculos anteriores e os destroços de anos mais recentes – presentes nas composições de Cazuza e Renato Russo. A escrita polifônica ecoa, na multiplicidade de vozes que tecem a partitura textual do rock, rastros e vestígios de poéticas diversas, que na espessura do palimpsesto confessam a culpa. O acontecimento textual e o diálogo entre escritas, como um ato de contrição, buscam a salvação, ao mesmo tempo em que a própria escrita tenta apagar a culpa e a fixa na 163 CAZUZA. “Codinome beija flor”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 6. 164 DERRIDA, 2004, p.87. profundidade do corte e do rastro, que se lavra como a própria condenação. Culpa e confissão, salvação e condenação, remédio e veneno: a escrita pharmakon ou fazer poético é “jorro de tempo, é afirmação simultânea da morte e vida”. Aqui nos contaminamos com o tom e ritmo de Octavio Paz (1982) que, em O arco e a Lira, mais precisamente em “A revelação poética”, traça as margens – que se cruzam e se confundem –entre poesia e religião. O poema como participação retoma instantes da criação, instaura um tempo mítico. “A recitação poética é uma festa: uma comunhão”. E assim o é na poesia que se constitui ritmo, música: ritmo compartilhado, comunhão novamente. A voz do outro – de Paz, no diálogo com Bakhtin e Derrida – ajuda-nos a entender a “outridade” como constituição do homem em diálogo constante com o eu e com o outro. Sempre um outro a dialogar consigo mesmo, a revelar-se: “A poesia é revelação de nossa condição e, por isso mesmo, criação do homem pela imagem. A revelação é criação. A linguagem poética revela a condição paradoxal do homem, sua ‘outridade’, e assim o leva a realizar aquilo que ele é”165. Nesse sentido, temos a poesia de Renato Russo e a de Cazuza que afirmam a falta. A poesia se constitui como a necessidade da presença, da revelação e da redenção, criando-se em diálogo. “O homem é um nó de forças interpessoais. A voz do poeta é sempre social e comum...”166, ressalta Paz na mesma harmonia que ressalta Bakhtin ao conceber a linguagem como sendo, por sua natureza, dialógica: a palavra é e não é nossa, traz sempre a perspectiva da voz de um outro, de um outro que ainda é o próprio eu. O ato de escrever poemas se oferece a nossos olhos como um nó de forças contrárias, na qual nossa voz e a outra voz se enlaçam e se confundem. As fronteiras se extinguem: nosso discorrer se transforma insensivelmente em algo que não podemos dominar totalmente; e nosso eu cede lugar a um pronome inominado, que não é inteiramente um tu ou um ele.167 165 PAZ, 1982, p.189. Ibid., p.200. 167 Ibid., p.194 166 As palavras do ensaio de Paz, que toca a poesia e rompe os limites textuais entre crítica e poética, aproximam-se das palavras desta poesia de Mario de Sá Carneiro, que ganha a voz e melodia de Adriana Calcanhoto: Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o outro.168 O trânsito de vozes, na relação dialógica da linguagem, em todas as suas esferas, e principalmente na poética, é forma de revelação, de autoconhecimento. É antes confissão da falta e busca de redenção. Aquele que busca a salvação que vem do outro, deixa que os estilhaços da culpa atinjam o outro. Se poesia é comunhão, o eu e o outro se comunicam: culpa e redenção se entrelaçam, fixando-se, revelando o homem e o ser. A polifonia em Renato Russo e Cazuza aponta direções que se entrecruzam. Uma delas pode nos orientar na compreensão do fazer literário dos dois compositores que tentam fazer jus ao título de poetas do rock brasileiro. Ao dialogar com fontes nobres e poetas consagrados, ambos revelam uma filiação de tradição e ruptura, que na história da literatura aponta amizades literárias e afinidades eletivas entre poetas. Outro direcionamento permite-nos ler na escrita palimpsestuosa a tentativa de recuperar rastros que compõem a escrita do animal autobiográfico fragmentado, descentrado e desconcertado. Os caminhos se cruzam, instaurando a poética como salvação, como possibilidade: possibilidade da “outra voz” ser a minha voz e minha voz ser a “outra voz”. 3.2. A “outra voz” de Renato Russo: amores de salvação Renato Russo, em toda sua obra, deixa revelar o caráter polifônico de sua poesia nos vários momentos de intertextualidade, quando se percebe o diálogo claro com suas fontes de inspiração, sejam elas religiosas, literárias ou musicais. Ou quando, ao recolher do dia-a-dia, o material para suas letras, 168 ADRIANA CALCANHOTO. “O outro”. Mário de Sá Carneiro [compositor]. In: –. Público. Rio de Janeiro: BMG, p2000. 1CD. Faixa 7. deixa-se entrever entre os rastros do eu e da vivência diária aquilo que se revela na metalinguagem de suas canções, quando, muitas vezes, ouvimos versos auto-explicativos que elucidam a necessidade da canção como salvação, forma de estar vivo e de se fazer autoconhecer: “Quero ouvir uma canção de amor/ que fale da minha situação”169. Os versos de “Natália”, do álbum A tempestade, anunciam a escrita como vida e salvação: A escuridão ainda é pior que essa luz cinza Mas estamos vivos ainda E quem sabe um dia eu escrevo uma canção p’ra você170 Renato Russo, em versos, deixa transparecer a concepção bakhtiniana da linguagem, dialógica por natureza, quando nossas palavras são, sempre e inevitavelmente, as palavras dos outros. O roqueiro brasileiro cantara em “Quase sem quer”: “Sei que às vezes uso palavras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas”171. Seus versos seriam, desde o primeiro disco, um constante diálogo com fontes diversas, seja por citações, metáforas, referências e releituras da música, da literatura e da cultura de outros tempos, atualizadas no entrecruzamento de discursos e na enunciação, dando todo sentido cantado em versos que vão tecendo sua obra. O diálogo constante recupera discursos de outros tempos e culturas, atualizados de forma legitimada na escrita nova e pela voz do cantor. A música, por sua vez, é capaz se ser diálogo, por sua própria natureza na interação entre material poético, melodia e performance. Diálogo que intensifica diálogos outros, presentes em muitas das nossas canções. É como se fosse eco para a polifonia, que já é repercussão de outros discursos. Assim, a música nos leva a refletir sobre a problematização da experiência plural dos seus vários pontos de escuta, provocando ecos polifônicos, quando atinge diferentes locais e meios sociais. Como um discurso verbal e oral, a canção se comporta como fenômeno de 169 LEGIÃO URBANA. “O mundo anda tão complicado”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 8. 170 LEGIÃO URBANA. “Natália”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro: EMI, p1996. 1CD, faixa 1. 171 LEGIÃO URBANA. “Quase sem querer”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro. EMI, p1986. 1 CD. Faixa 2. comunicação cultural e passa a ser compreendida dentro de uma situação social e envolve formas de interação, participação, trocas, vivências e experiências entre interlocutores e intérpretes. Ela consegue, dessa maneira, ser farol, caleidoscópio, termômetro de nossas sociabilidades e transformações históricas. Entende-se aqui a polifonia nas letras de Renato Russo como tentativa de recuperar ou revelar a “outra voz” nos rastros de sua escrita poéticomusical. A escrita se desdobra palimpsestuosa direcionando para uma relação de afinidade e influências literárias que apontam um diálogo de tradição e ruptura entre poetas de todos os tempos. Seguindo a leitura das escritas de Russo e Cazuza como confissão, a polifonia pode ser também entendida como recuperação de fragmentos e rastros do animal autobiográfico que visa à salvação na própria escrita que denuncia a culpa. Assim, Russo o faz de maneira metalingüística, onde se pode perceber nos vestígios que permitem um rastreamento de uma escrita que tece um discurso amoroso variado, numa mistura de culpa e salvação pela escrita que celebra o amor: amor de salvação. Os fragmentos dos rastros do dia-a-dia tentam se livrar da “poeira que fica se escondendo pelos cantos”172 e permitem uma leitura de uma poética do cotidiano e do disparatado que, por sua vez, também celebra o amor: amor de salvação. Nesses “cantos”, por onde passa o animal, sedimentam os resíduos e resquícios dos dias e do eu. Na superfície acomodam-se e revelam-se poeiras: os rastros do animal. Acumulam-se na superfície, ao longo dos dias, poeiras e palavras, que se sobrepõem, acumulam-se. Sobre os “cantos” o trabalho de arqueólogo procura o desvelamento daquilo que se esconde nas várias camadas de escombros, ruínas, e resquícios de tantas escritas. O disco V, de 1991, com a epígrafe de Brian Jones “Such psychic weaklings has Western civilization made of so many of us” e “Bem vindo aos anos setenta!”, esta assinada pelo próprio grupo, dá-nos a dimensão da polifonia do rock de Renato Russo, tanto no que se refere ao diálogo entre obras – poéticas e musicais – e no que se refere ao diálogo do poeta com seu próprio tempo, e com o outro de si mesmo. O disco inicia-se com uma cantiga de amor do português Nuno Fernandes Torneol, do século XIII, e termina com 172 LEGIÃO URBANA. “Teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro. EMI, p1991. 1 CD. Faixa 5. a instrumental “Come share my life”, do folclore americano. O conteúdo do álbum ilustra a capacidade de comunicação de Renato Russo com culturas diversas, de épocas e localidades diferentes, e se inscreve no diálogo com seu próprio tempo e com os seus vários outros eus. O disco V abarca com lirismo a bruma da era Collor, ao mesmo tempo em que compreende aspectos da intimidade do autor. No entanto, as composições não se limitam à situação sócio-econômica do Brasil no início dos anos 1990, nem se reservam às dores pessoais de Renato. Elas se alargam no tempo e se mostram atualizadas em qualquer momento histórico: adquirem o caráter de universalidade e atemporalidade. Trabalho meticuloso, conscientemente articulado por seu autor: Eu me preocupo em fazer um texto que daqui a duzentos anos, se a pessoa pegar, não vai precisar de nota de rodapé. O que implica que “Há tempos”, por exemplo, “Disseste que se tua voz tivesse força igual/ À imensa dor que sentes/ Teu grito acordaria/ não só a tua casa/ mas a vizinhança inteira”, pode ser ouvida numa vizinhança hi-tech em Nagóia, Osaka, ou pode ser Vila Rica. Isso foi uma coisa com que sempre me preocupei, uma coisa que aprendi com Drummond e Pessoa, não querendo, me comparar, é claro.173 Dessa forma, ao ouvirmos os versos de “Metal contra as nuvens”, canção divida em quatro partes, temos, se nos ativermos ao Brasil de 1990, uma perfeita nota da afinação do poeta com seu tempo: Quase acreditei na sua promessa E o que vejo é fome e destruição Perdi a minha sela e a minha espada Perdi o meu castelo e minha princesa. Quase acreditei, quase acreditei. E, por honra, se existir verdade Existem os tolos e existe o ladrão E há quem se alimente do que é roubo. Vou guardar o meu tesouro Caso você esteja mentindo.174 173 RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.127. LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 2. 174 No entanto, a leitura nos dias de hoje dá-nos a entender, do mesmo modo, o atual estado do país175. A arte da poesia aprendida com Drummond e Pessoa se faz notar na articulação de vozes que ecoam na tessitura dos fios do tecido poético-musical, quando a presença-ausência do eu protagoniza a subjetividade do poeta. “Metal contra as nuvens”, na extensão de seus tantos versos, é o registro do eu e do nós, do tempo e do espaço, do privado e do público, do local e do universal. A letra permite o diálogo do eu com seu tempo e ainda deixa transparecer na bruma os conflitos e aflições que se estendem para os conflitos e aflições do outro do seu tempo, do tempo passado e do tempo que virá. A terceira parte da canção sintetiza num lirismo agressivo de um cavaleiro andante e romântico176 (“Viajamos sete léguas/ por entre abismo e florestas”177) o desconcerto e a busca de afinação do sujeito que vivencia a obscuridade da Aids e enfrenta os conflitos internos do corpo e do espírito: É a verdade o que assombra O descaso o que condena, A estupidez o que destrói. Eu vejo tudo o que se foi E o que não existe mais. Tenho os sentidos já dormentes, O corpo quer, a alma entende. Esta é a terra-de-ninguém Sei que devo resistir – Eu quero a espada em minhas mãos. Sou metal - raio, relâmpago e trovão. Sou metal, eu sou o ouro em seu brasão. Sou metal: me sabe o sopro do dragão. Não me entrego sem lutar – Tenho ainda coração. Não aprendi a me render: Que caia o inimigo então.178 Embora Renato Russo tivesse optado por não trazer a público a sua doença, suas letras detectam a presença viral que aos poucos corrompe o 175 Como a letra de “Que país é este”, “Metal contra nuvens” não se torna absoleta. Nem o Brasil deixa de ser um museu de grandes novidades, quando o futuro repete o passado. 176 Renato Russo após sair do Aborto Elétrico se auto intitulou “Trovador Solitário” e fazia shows em bares de Brasília. 177 LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 2. 178 Id., ibid. corpo. Como acontecimento que leva à culpa, sexo, drogas, Aids e rock’n roll embalam as canções que ora celebram Eros ora Thanatos. O sujeito reside entre os destroços do regime autoritário e procura se encontrar, quando tudo parece perdido. O acontecimento alimenta a culpa, que assim é expressa na canção que subtende logo em seguida a salvação, pela escrita e no amor: O que há de errado comigo? Não consigo encontrar abrigo Meu país é campo inimigo E você finge que vê, mas não vê (...) Dai-me de beber, que tenho uma sede sem fim. Olhe nos meus olhos, sou o homem-tocha Me tira essa vergonha Me liberta dessa culpa Me arranca esse ódio Me livra desse medo. Olhe nos meus olhos, sou o homem-tocha E esta é uma canção de amor, Esta é uma canção de amor.179 No sentido da busca da salvação pela escrita e pelo amor, os versos finais de “Perfeição” – letra que celebra as mazela da nação, estendendo metonimicamente as mazelas do Brasil para o “eu que cantou essa canção”180 – aposta num futuro regido por Eros: Venha, meu coração está com pressa Quando a esperança está dispersa Só a verdade me liberta Chega de maldade e ilusão. Venha, o amor tem sempre a porta aberta E vem chegando a primavera Nosso futuro recomeça: Venha, que o que vem é perfeição.181 A necessidade de renascimento se protagoniza, então, no álbum O descobrimento do Brasil, que também é título de uma das canções, sem qualquer referência direta à nação, ressalta, na serenidade e simplicidade da 179 LEGIÃO URBANA. “A fonte”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 2. 180 LEGIÃO URBANA. “Perfeição”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 4. 181 Id., ibid. letra, a vontade de descobrimento de um novo eu, que agora se estende metonimicamente para a necessidade de descoberta de um novo Brasil. Voltando à “Metal contra as nuvens”, a última parte da canção – como em outras letras de Renato Russo, que abarcam as dificuldades, os abismos, as florestas, o caos, as misérias, a sombra e o martírio – se abre para o estado de esperança e luz, que dissipa a bruma, ao se encerrar com versos otimistas que avançam para o futuro: – Tudo passa, tudo passará. E nossa história não estará pelo avesso Assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar. (...) O mundo começa agora – Apenas começamos.182 A partir daqui, podemos situar os fragmentos de um discurso amoroso – que se estende para as diversas formas de amar – e se revela como forma de salvação. Forma de lançar luz e esperança sobre os momentos negros, “quando querem transformar/ dignidade em doença/ quando querem transformar/ inteligência em traição/ quando querem transformar esperança em maldição”183. No álbum anterior a V, As quatro estações, de 1989, a Legião Urbana abandona o tom de revolta e contestação, característico do rock, e procura o equilíbrio entre letras e melodias que celebram o amor. Marcadas por fortes referências religiosas e confissões íntimas, as músicas atingem o universal ora partindo do pessoal, ora de discursos que dialogam com fontes conhecidas. Em “Monte castelo”, por exemplo, o autor se apropria de dois textos clássicos da literatura universal e reelabora, quase que palavra por palavra, o seu discurso sobre o amor. Um feito inédito no rock brasileiro, não pela temática da música, mas pelo deslocamento temporal e cruzamento de fontes clássicas e distantes, que cedem seus fios para um novo texto que surge e ganha o diálogo com a música e faz repercutir em vários pontos de escuta, a celebração 182 LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 2. 183 LEGIÃO URBANA. “1965 (Duas tribos)”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 6. do amor em sua contradição, imperfeição e salvação. A letra se inicia com versos em referência direta à epístola de São Paulo aos coríntios. Russo reelabora de forma poética e musical a citação bíblica, numa seqüência enumerativa, que afirma e nega as características do amor. A composição segue com o primeiro quarteto de versos de Camões retirados de um dos seus sonetos mais conhecidos, intercalados pela repetição da primeira estrofe da música, que segue com a transcrição fiel do segundo quarteto e do primeiro terceto do soneto, que ganha um quarto verso, na reelaboração do último verso do poema do escritor português. A letra termina com a introdução de um novo verso e a repetição de versos já cantados, finalizando do mesmo modo como se iniciou: Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. É só o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece. O amor é o fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer. (...) É um não querer mais que bem querer É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade É servir a quem vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor. Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem. Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face. É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.184 “Monte castelo”, numa junção de poesia e religião, remete-nos a Octavio Paz, quando diz que poesia e religião se confundem ao longo da história. Ambas apresentam origens e formas de expressão em comum, às vezes indistinguíveis: poemas, mitos, orações, exorcismos, hinos representações teatrais, ritos. Poesia e religião, conforme Paz, são formas de expressão e experiências de nossa “outridade” constitutiva. Assim, “Monte Castelo” pode ser lida, na sua forma polifônica de construção, como criação, portanto, como revelação. Sendo o inverso também verdadeiro: quando “a revelação é criação. A linguagem poética revela a condição paradoxal do homem, sua ‘outridade’, e assim o leva a realizar aquilo que ele é”185. A religião conduz para a interpretação e sistematização, e ganha, na interferência da instituição religiosa, formas de controle e adestramento. Mas a poesia se abre como possibilidade, possibilidade de revelação, abertura para o outro. “Monte Castelo” ecoa o que dissera Paz: o “poeta diviniza como místico e ama como o enamorado”. Prossegue o crítico ressaltando que “nenhuma dessas experiências é pura; em todas elas aparecem os mesmos elementos, sem que se possa dizer que um é anterior aos outros”186. A harmonia da fonte bíblica com a literária transforma o “amor fraterno” do discurso de São Paulo para os coríntios em um contraponto positivo para os paradoxos do amor carnal celebrado em versos por Camões. As afirmações e negações que caracterizam o amor que vem do Novo Testamento favorece o amor-fogo, o amor-dor, o amor-descontentamento, o amor-prisão, o amorsolidão, o amor-servidão. Os paradoxos do amor humano – por isso falho, por isso paradoxal – ganham a serenidade do amor fraterno – por isso sereno – que prega o apóstolo de Cristo. Do amor fraterno para o amor carnal, para o amor entre homens e mulheres, na sua variação e todas as formas (in)válidas, Renato Russo, em “Pais e filhos”, anuncia a urgência do amor: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Em “Meninos e meninas”, confessa, então, seu amor amplo, que tange a confissão religiosa, que se 184 LEGIÃO URBANA. “Monte castelo”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 8. 185 PAZ, 1982, p.189. 186 Ibid., p.172. fundamenta num amor carnal e divino, precedido de um estado de confusão e nebulosidade, que se torna, à medida que se escreve e confessa, mais sereno: Quero me encontrar mas não sei onde estou Vem comigo procurar algum lugar mais calmo Longe dessa confusão E dessa gente que não se respeita Tenho quase certeza que eu Não sou daqui. Acho que gosto de São Paulo Gosto de São João Gosto de São Francisco E São Sebastião E eu gosto de meninos e meninas. Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente187 A metalinguagem presente em “Meninos e meninas” vai além da explicitação das ferramentas da escrita e revela o estado do eu. Aqui a escrita, mais uma vez, no seu corpo, na sua materialidade, torna-se metáfora do estado do eu - lírico que, entregue à confissão, desloca-se para as formas da escrita seus sentimentos de culpa. A revelação é criação. O eu se constitui ao confessar, ao preceder seu amor carnal, anunciando seu amor divino pelos santos, amortece a culpa e prescinde a salvação. Então implora: Me deixa ver como viver é bom Não é a vida como está, e sim as coisas como são Você não quis tentar me ajudar Então, a culpa é de quem? A culpa é de quem?188 A “imperfeição do passado” e o “português errado” com o qual se escreve a declaração do amor – divino e carnal – revelam as imperfeições e o erro: a materialidade da culpa. A confissão aqui se torna coragem. Despido, o eu poético se entrega, em corpo e voz, ao julgamento. Autobiográfica, a letra revela um Renato Russo que se esconde atrás de metáforas e que revela-se ao mesmo tempo por elas. A escrita autobiográfica, como aponta Derrida, corre 187 LEGIÃO URBANA. “Meninos e meninas”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 9. 188 Id., ibid. o risco do auto-envenenamento, mas ela é inevitável, porque alguns animais são mais autobiográficos que outros, são mais instintivos. Se em “Meninos e meninas” a confissão se faz entremeada por santos, metáforas e metalinguagem, em “Leila”, do álbum A Tempestade, o eu se confessa de forma sutil, revelando-se na narrativa simples de um dia qualquer na vida de um casal, rodeado de trabalho, filhos, pequenos consertos e baratas voadoras: Mas você sabe o que é ter pavor de baratas voadoras E você diz daquele seu jeito: – Ai, eu preciso de um homem E eu digo: – Ah, Leila! Eu também E a gente ri189 Assim, atos triviais do cotidiano doméstico, como o simples fato de fazer uma feijoada ou emprestar um par de meias, é capaz de conferir plenitude poética e nos arrancar do nosso lugar comum, quando “o mundo anda tão complicado”, e queremos ouvir uma canção de amor que fale da nossa situação190. Percebemos que “... a palavra que o poeta inventa – esta que, num instante que são todos os instantes, tinha se evaporado ou tinha se convertido em objeto impenetrável – é a de todos os dias”191. Na dinâmica do mundo fluido, o amor aparece como reestruturador da ordem, como conciliador do eu com o outro, como forma de sintonia para o desconcerto do homem da pósmodernidade que procura se equilibrar entre dias e noites. O amor compõe a narrativa poética do Livro dos dias, recolhido de fontes nobres como o amor de São Paulo e a literatura de Camões, e da simplicidade trivial do dia-a-dia, do disparatado e do comum, que se iguala em nobreza com as fontes religiosas e literárias, dando-nos, assim, uma visão do Amor, que se passa a escrever com letra maiúscula em Renato Russo. Novamente a voz religiosa se faz presente, de forma clara, em “Se fiquei esperando meu amor passar”, quando a liturgia se contamina da escrita corpórea (ou vice-versa). Nessa letra, o amor se revela como culpa e salvação. 189 LEGIÃO URBANA. “Leila”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 11 190 LEGIÃO URBANA. “O mundo anda tão complicado”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro. EMI, p1991. 1 CD. Faixa 8. 191 PAZ, 1982, p.216. Como salvação, o amor sobressai sobre a culpa e se faz liberdade, fortaleza e sentido. Mas a vivência de um amor assim, ainda que seja o mais desejado, faz-se novamente culpa, quando a pobreza do pecador perante Deus leva ao ato de contrição: "Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo Tende piedade de nós Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo Tende piedade de nós Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo Dai-nos a paz.”192 As aspas marcam o deslocamento do discurso religioso para o poético. Mas já é sabido por Paz que muitas vezes as expressões religiosas e poéticas são indistinguíveis e, como nenhuma delas é pura, comportam a pluralidade de vozes que constituem o homem na sua “outridade”. Não há, porém, a necessidade de aspas ou qualquer outra marca gráfica para demarcar a voz do outro em nós. Estas nos constituem poeticamente e nos vários momentos da fala prática do dia-a-dia, fazendo repercutir em nosso discurso outras vozes. A intertextualidade pressupõe a presença do texto-fonte, estabelecendo o intertexto, que pode ser partilhado pelos produtores e/ ou receptores. Assim sendo, o sujeito discursivo é plural, dada a diversidade de vozes que ecoam em suas manifestações, sejam elas na fala prática do cotidiano ou na elaboração artística. Paz diria que Para [o poeta] ser ele mesmo deve ser outro. E a mesma coisa acontece com sua linguagem: é sua porque é dos outros. Para torná-la realmente sua recorre à imagem, ao adjetivo, ao ritmo, isto é, a tudo aquilo que a faz diferente. Assim, suas palavras são e não são suas.193 Assim a composição “Monte Castelo” é toda ela a inscrição do discurso do outro, que se organiza apenas pelo pequeno re-toque e re-arranjo de Renato Russo para o discurso bíblico e a fonte literária do século XVI. Mas que é capaz de instaurar a diferença. Não há sinais de aspas, itálico ou qualquer outra marca gráfica que anuncia a presença do outro no texto, até porque o 192 LEGIÃO URBANA. “Se fiquei esperando meu amor passar”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 12. 193 PAZ, 1982, p.217. texto que se faz novo é todo ele o discurso do outro. Faz-se novo por ser outro, se faz outro por ser novo. Não são mais São Paulo e Camões que assinam os versos. O autor é Renato Russo e cabe a ele, que aposta no compartilhamento do conhecimento da fonte de sua escrita pela comunidade de leitor-ouvinte, referir-se ao texto fonte. No encarte do álbum fica o registro do crédito da música: “‘Monte Castelo’ é como está creditado e deve ter alguma coisa do Tão-Te King (O Livro caminho perfeito) de Lao Tse (Da China Antiga) em algum lugar. Não vá pensar que nós fizemos tudo isso sem ajuda. Alguns erros são de propósito outros não”194. Da boca de Burton, a defesa de Russo: “Montei laboriosamente este escrito com base em diversos autores, mas sine injuria. Não enganei nenhum autor, e atribui, a cada um, o que lhe era devido”195. Os registros do encarte, além de catalogar as fontes do intertexto, explicitam a proposta de “fazer um disco que fosse um disco amigo, um alento, que tentasse trazer paz de espírito”196. Nesse ritmo que deixa de lado os ruídos estrondosos de guitarras, a música de abertura do álbum, “Há tempos”, tem o segundo verso retirado “de um achado numa igreja em 1600 e alguma coisa na Europa e veio por carta (oi Luzia!). O legal é que quando minha prima voltou do encontro jovem lá estava a mesma frase, no mesmo texto, desta vez atribuído a um autor hindu desconhecido, na apostila (...)”197. A fala de Russo, longe do discurso elaborado de suas canções, revela como textos ganham, a cada reinscrição em lugares e épocas diferentes, autorias e sentidos outros. Sem acusação de plágio, “o que teus antepassados deixaram-te de herança, se queres possuí-lo, ganha-o”198. Além de “Há tempos”, outra canção do mesmo disco, “Quando o sol bater na janela de seu quarto”, apresenta a referência e a inscrição de origem do discurso do outro: “toda parte sobre dor e desejo” é retirada da Doutrina de Buda de Dendo Kyokai”199. A diversidade de fontes, como revelam os registros do encarte, ainda com recorrência ao tema religioso e ao amor, mostra na elaboração, na citação na assimilação ou simplesmente no mascaramento, como o fazer poético do 194 Encarte de LEGIÃO URBANA: As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. BURTON apud SCHNEIDER, 1990, p.98. 196 RUSSO apud ASSAD (org.), 2000, p.209. 197 Encarte de LEGIÃO URBANA. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. 198 FREUD (citando Goethe - Fausto, primeira parte) apud SCHNEIDER, 1990, p.91. 199 Encarte de LEGIÃO URBANA. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. 195 compositor dialoga com textos e culturas, doutrinas e religiões diferentes. Assim o “homem é pluralidade e diálogo, concordando e juntando-se consigo mesmo, mas também dividindo-se sem cessar. Nossa voz são muitas vozes. Nossas vozes são uma só voz”200, completa Paz. A temática do amor envolve toda a obra de Renato Russo. Desde a primeira canção, “Será”, até a última, “O livro dos dias”, o autor recolheu fragmentos que compõem um discurso amoroso. Fragmentos que revelam o flagelo do amor, ao mesmo tempo em que o celebram como o sentimento maior, a salvação para todas as misérias humanas, culpas, falhas e omissões: “sem amor eu nada seria”201. O autor persegue os seus rastros. Declara em “Sereníssima”: “Sou um animal sentimental/ Me apego facilmente ao que desperta meu desejo”202. Renato Russo foi, então, um animal autobiográfico que se deixou levar pelo instinto de escrever e se inscrever, perseguindo os rastros, que o ajudam a compor um manual de desencontros e destroços amorosos. Ao mesmo tempo em que os escritos sobre o amor atingem o inatingível, o possível do impossível, na simplicidade e na idealização de um amor como salvação para o corpo e para o espírito. A memória e a invenção poética são vozes também presentes que compõem o discurso amoroso em Renato Russo. Em “Vamos fazer um filme”, a trilha sonora é um musical dos anos trinta – metáfora que é “a única maneira ainda/ de imaginar a minha vida”. O amor, na sua simplicidade, deixa perguntas: E no meio de uma depressão Te ver e ter beleza e fantasia. E hoje em dia, como é que se diz: "Eu te amo."?203 Para aquele que um dia escreveu que “afinal, amar ao próximo é tão démodé”204, restou-lhe o trabalho de recordação, de recolher entre as 200 PAZ, 1982, p.202. LEGIÃO URBANA. “Monte castelo”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 7. 202 LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro. EMI, p1991. 1 CD. Faixa 6. 203 LEGIÃO URBANA. “Vamos fazer um filme”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 8. 204 LEGIÃO URBANA. “Baader-Meinhof Blues”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro. EMI, p1985. 1 CD. Faixa 8. 201 memórias o amor (não) vivido. Assim, em Russo, o amor é mais um tecido memorialístico do que vivência plena, que levaria à recordação: A paixão já passou em minha vida Foi até bom, mas ao final deu tudo errado E agora carrego em mim Uma dor triste, um coração cicatrizado E olha que tentei o meu caminho Mas tudo agora é coisa do passado.205 Os estilhaços atingem aquele que recorda, e a recordação é também uma forma de tentar um novo caminho. Em uma das canções de adeus e recordação, “Vento no Litoral”, o sujeito atualiza a memória no tempo presente. Tempo e memória se relacionam e presentificam na escrita, que se configura então como aquilo que resta, ou ainda, como o mais recorrente, como o todo que se tem do que nunca foi completo: Agora está tão longe Vê, a linha do horizonte me distrai: Dos nossos planos é que tenho mais saudade, Quando olhávamos juntos na mesma direção. (...) Agimos certo sem querer Foi só o tempo que errou Vai ser difícil sem você Porque você está comigo o tempo todo.206 Muitas vezes a polifonia dos homens afeitos ao instinto da escrita é a tentativa de um reajuste, de equilibrar-se entre a dissonância e o desconcerto. Daí a evasão, quando a vacuidade da vida ou estado de incompreensão no tempo e no espaço presentes os fazem buscar em outros tempos e espaços a vivência daquilo que a vida não os permitiu. O mesmo desejo de Manuel Bandeira de “ir embora para Pasárgada” se nota em Renato Russo, quando canta em “Mauricio”: Já não sei dizer se ainda sei sentir O meu coração já não me pertence Já não quer mais me obedecer 205 LEGIÃO URBANA. “Longe do meu lado”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 4. 206 LEGIÃO URBANA. “Vento no litoral”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro. EMI, p1991. 1 CD. Faixa 7. Parece agora estar tão cansado quanto eu. Até pensei que era mais por não saber Que ainda sou capaz de acreditar. Me sinto tão só E dizem que a solidão até que me cai bem. Às vezes faço planos Às vezes quero ir Para algum país distante e Voltar a ser feliz.207 Ou em “Meninos e meninas”: Quero me encontrar, mas não sei onde estou Vem comigo procurar algum lugar mais calmo Longe dessa confusão E dessa gente que não se respeita Tenho quase certeza que eu Não sou daqui.208 A Pasárgada de Bandeira ou o país distante de Russo são muitas vezes a própria escrita, lugar em que o sujeito se realiza e dá a conhecer e viver seus mais íntimos sentimentos. Porque muitas vezes a escrita é uma invenção ou o simples desejo de ter vivido aquilo que se narra. Ninguém mais duvida da existência de Pasárgada, tão bem inventada por Bandeira. O amor em Renato Russo também se mostra como gratidão. A escrita é uma forma de gratidão, como se pode perceber nos últimos escritos de Renato Russo. Escritos esses que anunciam a morte e confirmam a escrita como uma forma de estar-se vivo. Morre-se na escrita e vive-se nela para sempre. “A Via Láctea”, canção que se tornou “hino” de despedida de Renato Russo exaustivamente executado pelas rádios FM do Brasil, encontra seus ecos na poesia de despedida de Álvares de Azevedo: Quando em meu peito rebentar-se a fibra Que o espírito enlaça á dor vivente, Não derramem por mim nenhuma lágrima Em pálpebra demente.209 207 LEGIÃO URBANA. “Maurício”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 8. 208 LEGIÃO URBANA. “Meninos e meninas”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 9. 209 AZEVEDO, “Lembrança de morrer”, em http://intervox.nce.ufrj.br/~clodo/manuel_antonio_alvares_de_azeved.htm, captado em 05/04/07. Dois poetas que experimentaram a escrita como a própria vivência, dois poetas que, na bruma, entre cigarros e papéis, registraram na exaltação do eu a revelação do nós. Os primeiros versos de “Lembrança de morrer” entram em consonância com os últimos de “A via láctea”: Quando tudo está perdido Eu me sinto tão sozinho Quando tudo está perdido Não quero mais ser quem eu sou Mas não me diga isso Não me dê atenção E obrigado por pensar em mim.210 E assim a obra de Renato Russo é “O livro dos dias”, como conclui a última canção, do último disco, do último lado de Renato: Não esconda tristeza de mim Todos se afastam quando o mundo está errado Quando o que temos é um catálogo de erros Quando precisamos de carinho, Força e cuidado Este é o livro das flores Este é o livro do destino Este é o livro de nossos dias Este é o dia de nossos amores211 A polifonia do rock também alcança o diálogo da batida rebelde com outros estilos musicais. Ouve-se na introdução de “Teatro dos Vampiros” ecos da obra instrumental barroca do Alemão Johann Pachelbel, Canon212, do século XVII. E “Douce dama jolie”, do francês Guillaume de Machaut213, do século XIV, na música instrumental “Ordem dos templários”. Além das já citadas “Come share my life”, do folclore americano, e “Love Song”, cantiga 210 LEGIÃO URBANA. “A via Láctea”. R. Russo [compositor]. In: -. A tempestade. Rio de Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 5. 211 LEGIÃO URBANA. “O livro dos dias”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 14. 212 O Canon escrito pelo compositor e organista alemão Johann Pachelbel atravessou fronteiras e ressuscitou em pleno século 20, mais precisamente a partir do início da década de 70. http://musicaclassica.folha.com.br/cds/14/biografia-3.html. 213 Este compositor é aquele que na Idade Média ocupa o lugar de destaque no que toca a inventividade, gênio, espírito inovador e versatilidade: ele marca o nascer de uma era na História da Música, influênciando todo uma nova corrente musical, a "Ars Nova", que representa um romper abissal com os cânones da música religiosa da Idade Média, nomeadamente pela introdução de várias linhas de canto simultâneas, ou seja, o nascer da chamada "polifonia", e pelo experimentar de um novo jogo de acordes até então interditos pelas regras da música religiosa. http://musicantiga.com.sapo.pt/MusicantigaGuillaume_de_Machaut.htm. portuguesa do século XIII. O disco remete ainda aos anos de 1970 no que se refere “aos seus principais ganchos sonoros: passagens acústicas de rock progressivo, rompantes de hard rock”214. E ainda, quando cita, em epígrafe, Brian Jones, marca uma relação do estado de desolação e desconcerto que atravessa os anos de 1960, o momento histórico no Brasil e no mundo em 1990, e o próprio álbum, que busca serenidade, “enquanto o caos segue em frente/ Com toda calma do mundo”215. A leitura da polifonia do rock com outros gêneros musicais aqui toma como exemplo o álbum V publicado em dezembro de 1991. O álbum inaugura a década de 1990, que se inicia sem grandes novidades. Pelo contrário, os versos “eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades”216, de Cazuza, nos serviriam como epígrafe (mais como epitáfio!) para marcar a era Collor: porque “voltamos a viver como a dez anos atrás/ e a cada hora que passa envelhecemos dez semanas”217. “Tuas idéias não correspondem aos fatos”218 – outro verso de Cazuza - define o rápido e nebuloso governo do primeiro presidente eleito diretamente pelo povo na nova república. O recorte temporal da pesquisa ora apresentado não se restringe ao material fonográfico produzido apenas na década de 1980. Isso acontece porque a idéia de uma década de travessia e desconcerto teria como final a morte de Cazuza em 7 de julho de 1990. Entretanto, por se pensar na aproximação de Cazuza e Renato Russo, companheiros de travessia, essa década se estende também, no caso da Legião Urbana, aos discos que serão produzidos até 1996, quando o último da travessia chega ao fim. Renato Russo morre em 11 de outubro de 1996. Os discos que seguem depois de 1990 podem ser lidos como o diálogo do autor com a década de 1980. Os escritos de Renato Russo encontram assim uma polifonia com o próprio tempo de experiência do ser vivente. A 214 DAPIEVE, 2004, p.126. LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 6. 216 CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 6. 217 LEGIÃO URBANA. “O teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 5. 218 CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza [compósito]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 6. 215 escrita dos álbuns V (1991), O descobrimento do Brasil (1993), A Tempestade (1996), e do póstumo, Uma outra estação (1997), é ainda o relato do sujeito da travessia, que ao dialogar com passados distantes ou próximos, dialoga com sua contemporaneidade, que agora, dado o pouco de distanciamento da vivência, permite melhor saber quem eu sou. E depois do começo O que vier vai começar a ser o fim. E depois do começo O que vier vai começar a ser.219 3.3. Os amores exagerados de Cazuza: amores de perdição Vimos que a tentativa de compor um discurso amoroso revela-se, em Renato Russo, como confissão e redenção pela própria escrita – que confessa e absolve. O discurso amoroso composto por várias vozes é entoado como ato de contrição e cantado como hino de celebração: amores de salvação. Um amor comedido que deixa prevalecer o espírito sobre o corpo sem, no entanto, apagar as marcas do conflito: “o corpo quer, a alma entende”220 já é um estado de pura elevação do eu. Russo canta as várias formas de amor, deixando ainda prevalecer os resquícios do romantismo que recai sobre o trovador solitário. Cazuza, o outro ser vivente da travessia, operando de forma suplementar, compõe-se em letras nas quais se encontram vozes harmônicas e dissonantes que embalam a lírica moderna. “Pouco importa o que esta gente vá falar mal”221, escancarava Cazuza na sua primeira poesia gravada pelo grupo Barão Vermelho, do qual foi integrante até 1984: Vem viver comigo, vem me experimentar Me experimenta Soltem as coisas lindas que te ardem, me traz 219 LEGIÃO URBANA. “Depois do começo”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este. Rio de Janeiro. EMI, p1987. 1 CD. Faixa 4. 220 LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro. EMI, p1991. 1 CD. Faixa 2. 221 BARÃO VERMELHO. “Posando de star”. Cazuza [compositor]. In: –. Barão vermelho. Rio de Janeiro: Som Livre, p1982. 1CD. Faixa 1. Você sem texto sem cinema Não faz do sexo um problema Eu armo uma cena, é, eu armo uma cena! Quebro garrafa Morro de chorar Mas ainda te faço dar!222 A primeira canção, do primeiro disco de Cazuza, que soa como um convite “pras pessoas de alma bem pequena”223, dá o tom, o ritmo, e a letra do que seria sua obra poético-musical. As letras amadurecem liricamente, acompanhando a experiência do ser vivente, que exageradamente cantou as dores do amor e fez da poesia uma forma de manter-se vivo. Talvez Cazuza tenha levado muito a sério aqueles versos de Renato Russo que diziam “afinal, ninguém sai vivo daqui”224. “Estou levando a vida na arte e acho que não tem nada melhor nem mais bonito do que contar a minha vida”225: protagonizando a própria vida na poesia, Cazuza que declarava que “mentiras sinceras me interessam” soube muito bem vestir a máscara do garoto louco, bêbado, drogado, livre, amante e desconcertado da zona sul do Rio de Janeiro que, aos poucos, despiu a geração 80 do Brasil inteiro. Por enquanto cantamos Somos belos, bêbados cometas (...) Prevendo o futuro Que não chega.226 Talvez o futuro nunca tenha chegado mesmo para a década de 80. Enquanto isso, a vida louca e breve fornece o suficiente para o registro ansioso contra o tempo que não pára. Entre garrafas, drogas, lirismos, sexo e rock’ n roll, cantar “todo amor que houver nessa vida” exigia antes de tudo liberdade. Assim, em 1985, o primeiro disco solo de Cazuza é publicado, levando no título e nos versos a marca autobiográfica do autor: Exagerado. O rock de Cazuza, cantado a partir de suas poesias, ainda no grupo Barão Vermelho, já permitia o 222 Id., ibid. CAZUZA. “Blues da piedade”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 9. 224 Título também da biografia de Jim Morrison escrita por Jerry Hopkins: Daqui ninguém sai vivo. 225 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.78. 226 BARÃO VERMELHO. “Nós”. Cazuza [compositor]. In: –. Maior abandonado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1984. 1CD. Faixa 9. 223 diálogo com autores e gêneros um tanto aversivos para a batida forte do rock. Cazuza soma sexo, drogas, rock’n roll e a dor-de-cotovelo do samba-canção, o refinamento da bossa nova e o lirismo de Cartola. Ingredientes que ganhavam o teor explosivo e alucinante do prazer de viver perigosamente. E assim, o cantor da classe média optou pela carreira solo, quando entendeu que para por o Pé na estrada227 e ousar vôos mais altos não seria possível em grupo. A partir de Exagerado, Cazuza tornou o rock brasileiro o mais polifônico possível. Somou ao estilo rebelde do gênero, as dores dos amores desencontrados, a insatisfação da juventude e a transgressão sexual, reformulando conceitos de comportamento numa sociedade que se desvincula aos poucos das ordens militares. A fúria, a poesia, a transgressão e o amor, na agilidade de mãos que escrevem na conturbação de um mundo cada vez mais rápido, ecoam as atitudes semelhantes dos poetas beat dos anos 50, que revolucionam a escrita, o comportamento e a sociedade conservadora dos Estados Unidos. Quando a Brasiliense começou a lançar as obras de Kerouac, Ginsberg, Borroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia algo ligado a eles e não sabia. Penso que os anos 50 têm muito a ver com os anos 80. Era uma época de repressão que se soltou lá pela década de 60 como agora.228 Entre os destroços do regime autoritário e o presente incerto que tenta ser construído no dia-a-dia, o sujeito do final do século XX, que atravessa a década de 80 rumo à democracia e à liberdade, que acena para o eterno amanhã do novo milênio, encobre-se na bruma que paira e embaça as vestes coloridas da juventude. A antítese que se instala no confronto do sujeito com ele mesmo, dramatizando a alegria de viver versus o desencanto e o tédio, busca muitas vezes a catarse na arte e na poesia, aproximando-se do oxímoro da complexidade humana: “consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade,/ Tudo está perdido mas existem possibilidades”229, pois “a vida é bela e cruel, 227 Título em português do livro On the road, de Jack Kerouac, uma das fontes de influência de Cazuza. 228 CAZUZA, Folha de São Paulo, 14/março/1986, disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=31&id_type=2&page=1 229 LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: -. V. Rio de Janeiro. EMI, p1991. 1CD. Faixa 6. despida/ tão desprevenida e exata/que um dia acaba”230. O mal-estar-perantea-morte e a náusea, tão bem incorporados na estética do espírito decadente de Baudelaire, parecem prolongar-se na “... extensão dos longos dias mancos/ quando o tédio, esse fruto da incuriosidade,/ sob os pesados flocos da neve dos anos, /atinge as proporções da imortalidade”231. Como no século XIX, é sobre o artista que recai o desencanto, a névoa, o spleen, que permitem na poesia transformada do cotidiano, um diagnóstico mais preciso do mal du siècle. Digam o que disserem O mal do século é a solidão Cada um de nós imerso em sua própria arrogância Esperando por um pouco de afeição.232 A sociedade dos anos 80 que acolhe a juventude filha da ditadura militar abre-se para um processo que ultrapassa a abertura democrática e se amplia para outros sentidos, experiências e sensações. Porque agora o poeta, que celebra todo dia sua vida e seus amigos233, na urgência do momento, experimenta o excesso do vazio e do desencanto do fim do século. Recaem sobre o corpo e sobre a arte as metáforas do exagero que acaba por refletir a escassez e a busca do sentido para existência. “Já estou cheio de me sentir vazio”234, denunciava Russo, enquanto Cazuza proclamava: “ideologia eu quero uma pra viver”235. Na busca e na possibilidade da liberdade, o sujeito experimenta as sensações alucinantes das drogas ilícitas, o prazer do sexo igual, ao som da batida rebelde e romântica do rock. “O rock’n’roll é como uma trepada, muito ligado ao sexo e à droga”236, esbravejava Cazuza. Assim os 230 CAZUZA. “Ritual”. Cazuza. [compositor]. In: -. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 2. 231 BAUDELAIRE apud CEIA. Carlos, E-Dicionário de termos literários, disponível em http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/S/spleen.htm, captado em 001/04/2007. 232 LEGIÃO URBANA. “Esperando por mim”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 12. 233 LEGIÃO URBANA. “A fonte”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 2. 234 LEGIÃO URBANA. “Baader-Meinhof Blues”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro. EMI, p1984. 1CD. Faixa 8. 235 CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 1. 236 CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em companheiros da travessia vivenciam ao extremo a velha tríade do “sexo, drogas, e rock roll”. A essa combinação explosiva, que desde os anos 60, provoca delírio, prazer, alegria, dor, fascinação, tristeza e morte, acrescenta-se a Aids que, a partir dos anos 80, vem cortar o “barato” da “juventude transviada”. A névoa recai de forma fatal sobre aqueles que deixam repercutir no corpo a liberdade, o excesso e os estilhaços da travessia. O tom mórbido e frio da Noite na taverna ecoa na letra de “Será”, pela qual Renato Russo parece profetizar o desencanto e a névoa dos anos que viriam, assombrados, entre outros fantasmas, pela Aids: Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que tudo isso é em vão? Será que vamos conseguir vencer? Nos perderemos entre monstros Da nossa própria criação Serão noites inteiras Talvez por medo da escuridão Ficaremos acordados Imaginando alguma solução237 Na contramão da liberdade da redemocratização, o sujeito sofre um processo de adestramento: “Eu sou um cara/ cansado de correr/ na direção contrária/ sem pódio de chegada ou beijo de namorada”238. Além da culpa, o animal se sente acuado, devido à Aids e à condição sócio-histórica do país: “cortaram meus braços/ cortaram minhas mãos/ cortaram minhas pernas/ num dia de verão”239. “O animot múltiplo sofreria ainda por ter sempre o dono sobre suas costas. Ele estaria farto de ser assim domesticado, amansado, adestrado, dócil, disciplinado, domado”240. A citação de Derrida, em Cazuza, se estrutura poeticamente desta forma, em “Cobaia de Deus”: http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1, capturado em 04/04/2007. 237 LEGIÃO URBANA. “Será”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro. EMI, p1985. 1 CD. Faixa 1. 238 CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza. [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 6. 239 LEGIÃO URBANA. “1965 (Duas tribos)”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 6. 240 DERRIDA, 2002, p.74. Se você quer saber como eu me sinto Vá a um laboratório ou labirinto. Seja atropelado por esse trem da morte Vá ver as cobaias de Deus Andando na rua pedindo perdão Vá a uma igreja qualquer Pois lá se desfazem em sermão Me sinto uma cobaia, um rato enorme Nas mãos de Deus mulher De um Deus de saia Cagando e andando, Vou ver o ET Ouvir um cantor de blues Em outra encarnação Nós, as cobaias de Deus Nós somos cobaias de Deus Nós somos as cobaias de Deus Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco Desse hospital maquiavélico Meu pai e minha mãe, eu estou com medo Porque eles vão deixar a sorte me levar Você vai me ajudar, traga a garrafa Estou desmilingüido, cara de boi lavado Traga uma corda, irmão (Irmão, acorda!) Nós, as cobaias, vivemos muito sós Por isso, Deus tem pena, e nos põe na cadeia E nos faz cantar, dentro de uma cadeia E nos põem numa clínica, e nos faz voar Nós, as cobaias de Deus Nós somos cobaias de Deus241 Da expulsão do paraíso – a vergonha do sexo exposto, a culpa, a morte – aos caprichos de Deus – o animal a serviço do criador, caçado, expulso, preso fantoche, brinquedo, teste. Os fortes indícios da cultura cristã que ensina “que a tristeza é uma maneira/ Da gente se salvar depois”242 se faz presente como atenuante da culpa: “Eu luto contra um sentimento de culpa cristão que tenho. Estudei num colégio de padres quase dez anos. Então, a minha vida em 241 CAZUZA. “Cobaias de Deus”. Cazuza. [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de Janeiro: Polygran, p1989. 2CD. Faixa 10. 242 CAZUZA. “Um trem para as estrelas”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 7. si é uma luta para vencer isso”243, confessa Cazuza. Em consonância, “Clarisse”, a letra mais autobiográfica de Renato Russo, que na pele de uma menina de 14 anos se sente “cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado”244, permite-nos visualizar o Ecce Animot de Derrida, aquele que Nem uma espécie, nem um gênero, nem um indivíduo, é uma irredutível multiplicidade vivente de mortais, e mais que um duplo clone ou uma mot-valise [palavra entrecruzada], uma espécie de híbrido monstruoso, uma quimera esperando ser morta por seu Belerofonte.245 A falta de conhecimento sobre o vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida e suas conseqüências provoca na sociedade mundial da década de 80 reações de angústia e preconceito, ao mesclar medos e tabus sobre epidemias, castigos, homossexualidade e morte. Susan Sontag (2003), em La enfermedadd y sus metáforas, dá-nos uma visão do uso de metáforas relacionadas às doenças como a sífilis, a tuberculose, o câncer e a Aids, que entre mitos e fantasias tange a vida, a morte e a expressão artística. Relacionam-se, dessa forma, numa mesma necessidade de permanência e continuidade – dada a nossa mortalidade – a escrita, as metáforas e o erotismo. “O que está sempre em questão é a substituição do isolamento do ser, da sua descontinuidade por um sentimento de continuidade profunda”246 – aponta Georges Bataille, ao conceber o erotismo como “a aprovação da vida até na morte”. Formas de vida e morte, imbricadas, relacionadas, que instauram um estado de possível imortalidade – ou pelo menos descoberta de mortalidade e da fragilidade da vida. Uma experiência interior que encontra no corpo (e na escrita) o mediador para contar aquilo que experimenta e percebe. O corpo, de acordo com Sontag, sempre foi metáfora para a sociedade, para a família, para a política e também para as enfermidades. A metáfora militar para a Aids, como uma invasora do corpo e da sociedade, emplaca uma descrição e arsenal de guerra, que revela a fragilidade e vulnerabilidade 243 CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas Isto É, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1, capturado em 04/04/2007. 244 LEGIÃO URBANA. “Clarisse”. R. Russo [compositor]. In: –. Uma outra estação. Rio de Janeiro. EMI, p1997. 1 CD. Faixa 5. 245 DERRIDA, 2002, p.77-78. 246 BATAILLE, 1980, p.17. humana e do corpo social. A luta, a guerra, a defesa e o combate à doença se aliam a outros vocábulos bélicos e planejam campanhas para a derrota do “inimigo”. As metáforas militares não só para doenças, mas também para combate à pobreza, às drogas, por exemplo – aponta a crítica americana –, se justificam nas sociedades capitalistas: puede que el abuso de la metáfora militar sea inevitable en la sociedadd capitalista, uma sociedad que restringe cada vez más el propósito y la credibilidad de las llamada a la ética y en la que quien cada no somente suas propias acciones al cálculo del interrés y provecho próprio es um necio.247 Sem adentrar em estudos sobre a Aids no seu período de descoberta e as relações com questões polêmicas com a sexualidade, a religião e até mesmo a comunidade científica, cabe aqui apenas uma analogia com as metáforas da sífilis, câncer e tuberculose. As metáforas para essas enfermidades do século XIX provocam na sociedade do fim do século XX reações, fantasias, mitificação, e preconceitos semelhantes aos que acontecem com a Aids, representada, desde o inicio de 1981 como peste, câncer gay e ira divina – castigo para o exercício do sexo e para comportamento tortuoso. Interessa observar como a escrita poética da pós-modernidade vivencia e experimenta os resquícios da lírica romântica “tida muitas vezes, como a linguagem de ânimo, da alma pessoal”248. Mas compreendendo que “com Baudelaire começa a despersonalização da lírica moderna, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos”249. Portanto, sem qualquer leitura ou entendimento da relação naturalista e fatalista entre obra e vida, a poesia é capaz, pela voz do poeta fingidor, de dramatizar os sentimentos do eu e da sua geração, captando e antecipando a compreensão do seu tempo histórico. O mal-estar contemporâneo se estende metafórica e metonimicamente para a literatura e esta encena a angústia, o desconcerto, os 247 SONTAG, 2003, p.46. FRIEDRICH, 1978, p.17. 249 Ibid., p.36. 248 medos, as fantasias, a esperança e todos os sentimentos do homem pósmoderno250. Sontag (1984), no artigo “El artista como sufridor ejemplar” elucida a relação literatura e sofrimento: El escritor es el sufridor ejemplar, no sólo porque haya alcanzado el nivel de sufrimiento más profundo, sino porque ha encontrado una manera profesional de sublimar (en el sentido literal de sublimar, no en el freudiano) su sufrimiento. Como hombre, sufre; como escritor, transforma su sufrimiento en arte. El escritor es el hombre que descubre el uso del sufrimiento en la economia del arte, como los santos descubrieron la utilidad y la necesidad de sufrir en la economía de la salvación.251 A poesia, na sua capacidade de catalisar e registrar os sentimentos e sensações daqueles que a protagonizam e daqueles que a recebem, com a amplitude da letra de música, nos dá o diagnóstico do eu e do mundo: “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente”252. Fica, portanto, a pergunta da poesia de Ferreira Gullar cantada por Nara Leão e Fagner em “Traduzir-se”: Uma parte de mim é só vertigem Outra parte linguagem Traduzir uma parte na outra parte Que é uma questão de vida e morte Será arte?253 “Feedback song for a dyng friend”, escrita em inglês por Renato Russo, em 1985 e cantada no disco As quarto estações, é uma “canção retorno para um amigo à morte”254. Seus versos são cantados no momento em que o Brasil assiste à morte anunciada de Cazuza, vencido pela Aids, em 7 de julho de 1990: 250 A Aids na literatura brasileira desponta em Caio Fernando Abreu: nela se percebe a literatura do limite e da angústia, que expõe o risco de morte e a fragilidade da vida. 251 SONTAG, 1984, p58. 252 LEGIÃO URBANA. “Índios”. R. Russo [compositor]. In : –. Dois. Rio de Janeiro. EMI, p1986. 1 CD. Faixa 12. 253 NARA LEÃO. “Traduzir-se”. F. Gullar [compositor]. In: –. Romance Popular. Rio de Janeiro: Polygran, p1981. 1CD. Faixa 8. 254 O encarte de As quarto estações contem a tradução de Millôr Fernandes para “Feedback song for a dyng friend”: “Alisa a testa suada do rapaz/Toca o talo nu ali escondido/ Protegido nesse ninho farpado sombrio da semente/ Então seus olhos castanhos ficam vivos/ Antes afago pensava ele era domínio / Essas aí não são suas mãos são as minhas / E seguras, minhas mãos buscam se impor / Todo conhecimento do jorro viril do meu senhor /O gosto perfumado que retém minha língua /É engano instalado e não desfeito (...)” Soothe the young man's sweating forehead Touch the naked stem held hidden there Safe in such dark hayseed wired nest Then his light brown eyes are quick Once touch is what he thought was grip Tis not his hands those there but mine And safe,my hands do seek to gain All knowledge of my master's manly rain The scented taste that stills my tongue Is wrong that is set but not undone255 Sontag aponta a necessidade de alguma enfermidade para identificar com o mal, que culpe suas vítimas256, e Cazuza que já havia declarado “que meu prazer agora é risco de vida”, transforma sua doença e martírio em declaração política e poesia: Escrevo numa tarde cinzenta e fria Trabalho pra espantar a solidão e meus pensamentos Hoje assumi em público minha doença Estou mais leve, mais livre Mas ainda tenho muitos medos Medo de voar, de amar Medo de morrer, de ser feliz Medo de fazer análise e perder inspiração Ganho dinheiro cantando minhas desgraças Comprar uma fazenda, fazer filhos Talvez seja uma maneira de ficar pra sempre na terra Porque discos arranham e quebram Amor257 Assim a polifonia no rock de Cazuza permite o encontro de vozes que cantam um amor de perdição. Um amor de perdição que ressalta a necessidade da salvação na mesma esfera da materialidade da palavra em Renato Russo. Em Cazuza, o amor se dá mais com o corpo do que com o espírito nos seus primeiros escritos - assim sua escrita se torna corpo do seu desejo e desejo do seu corpo, e repercute vozes que assim permitem uma 255 LEGIÃO URBANA. “Feedback song for a dying friend”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 3. 256 SONTAG, 2003, p.48. 257 CAZUZA. “Carta dani”. Cazuza [compositor]. In: –. Cazuza - o tempo na pára (trilha sonora do filme). Rio de Janeiro: Som Livre, p2004. 1CD. Faixa 9. Em 1985, Cazuza declarou: “Espero que no futuro, não esqueçam do poeta que sou”. E esclarece a materialidade da letra como a única garantia de permanência e continuidade: “Só a música vai ficar. É só isso que o público vai levar do Cazuza" (Amiga, 04/dezembro/1985, disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=24&id_type=2&page=1). escrita corpórea. O corpo se torna metáfora em Cazuza e abrange o amor, as paixões, o erotismo e as enfermidades. Com a Aids não há romantização – apesar de ter sido relacionada, a princípio, com a vida boêmia, com a noite, com o uso desregrado do corpo e do prazer. Esta romanización de la demência característica de la neurosífilis fue la precursora de esa fantasia mucho más persitene, típica del siglo XX, según la cual lãs enfermedades mentales son fuente de creatividad artística u originalidad espiritual. Pero com el sida – auque la demecia estambién ente este caso um síntoma tardio – no há surgido ningun a mitologia compensatória, ni parece que vaya surgir.258 A Aids ligada à morte rápida e impiedosa com marcas no corpo não assinala momentos de intensidade criativa. Em Cazuza e Renato, não é o estado da doença que desencadeia uma crise de produção intensa. Numa quase vertigem de escrita asmática, a poética dos últimos álbuns é forma de manter-se vivo, de continuidade, de salvação. Em “A inocência do prazer”, Cazuza expõe a necessidade de perdão e salvação. Como se não houvesse mais necessidade do castigo: “Tudo é possível no amor/ Só não volta a infância perdida/Só não nos livramos de morrer à toa”259. Busca-se um tempo novo que instaura uma inocência do prazer, sem a culpa, sem a condenação mas “la inocencia, por la inexorable lógica subyacente em todo término que expressa un relacion, sugiere culpa”260. Já passou, fomos perdoados Por todos os deuses do amor Acabou, podemos ser claros Como era antes, seja lá como for Alguém tentou desesperadamente Sentir algo decente Sou feliz, pois já fui julgada261 258 SONTAG, 2003, p.52. CAZUZA, “A via crucis do corpo”, In: ECHEVERRIA, 2001, p.339. Letra escrita por Cazuza a partir de um conto de Clarice Lispector, para a trilha sonora do filme homônimo de José Antônio Garcia. 260 SONTAG, 2003, p.47. 261 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.261. Música gravada originalmente por Dulce Quental, em 19987. Foi regravada por Cazuza em 1989 para o disco Burguesia, mas excluída da seleção final do álbum. 259 Cazuza não hesitaria em compor versos sobre a obscuridade da vida. Mas sempre regado por rimas de amores, o poeta filho da classe média, dosava poesia beatink com dor-de-cotovelo dos samba canção, dando-nos assim a característica de um rock polifônico, que não deixara de rezar em sua cartilha de rebeldia, mas afinava-se com os tempos brasileiros e com os sentimentos da juventude do fim do século breve. Vivendo assim a atualidade “na moda da nova Idade Média”262, o futuro que parece repetir o passado nos permite o encontro de vozes distantes e recentes que ecoam em nós, muitas vezes através da “mídia da novidade média”. A juventude se vê recolhida nos cacos e amores impossíveis, nos goles e em mais uma dose, que Cazuza brinda e bebe em nome de todos, com total irreverência e pouca prudência: “Mais uma dose?/ É claro que eu estou a fim/ (...)Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma/ Cem gramas, sem dramas”263. Em “Só as mães são felizes”, do seu primeiro disco solo, o autor celebra o “lado escuro da vida”, e canta suas influências malditas, de Luiz Melodia a Jack Kerouac: Você nunca varou A Duvivier às 5 Nem levou um susto Saindo do Val Improviso Era quase meio-dia No lado escuro da vida Nunca viu Lou Reed "Walking on the wild side" Nem Melodia transvirado Rezando pelo Estácio Nunca viu Allen Ginsberg Pagando michê na Alaska Nem Rimbaud pelas tantas Negociando escravas brancas264 A letra retoma a questão de vida e arte entrelaçadas, tal como o poeta beat Jack Kerouac faz no ritmo e intimidade de seus relatos. Ao homenagear 262 CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza. [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 2. 263 BARÃO VERMELHO. “Por que a gente é assim?”. Cazuza. [compositor]. In: –. Maior abandonado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1984. 1CD. Faixa 7. 264 CAZUZA. “Só as mães são felizes”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 9. “todas pessoas diferentes e poetas”, Cazuza se coloca no meio deles, ressignificando seus diálogos com propostas poéticas de outras épocas, dando um novo sentido para experiência dos “malditos” da travessia dos oitenta e de outras travessias. O próprio autor explica o processo de criação da letra: Essa música foi feita de um verso de Jack Kerouac (tirado do livro Scattered Poems), um frase de um poema dele me deixou muito intrigado. A frase é muito radical: só as mães são felizes! Dita desse modo parece que ninguém mais é. Eu usei a frase como brincadeira, porque na verdade a música é uma homenagem a todos os poetas malditos. Eu quis fazer homenagem a este tipo de poeta, de cantor, de loucos que têm pela vida. Gente que barbariza, que são santos e demônios ao mesmo tempo... (...) o Kerouac está presente apenas nessa frase. Eu coloquei no final de brincadeira, para dar razão ao título.265 A letra foi vetada pela censura, por causa dos versos finais “pós-Nelson Rodrigues”, como caracterizava o próprio autor: Você nunca sonhou Ser currada por animais Nem transou com cadáveres? Nunca traiu teu melhor amigo Nem quis comer a tua mãe? Só as mães são felizes...266 Embora a bruma recaia sobre Cazuza e mesmo celebrando os poetas e loucos, malditos e incompreendidos, ele tenta dissipá-la, ainda que não saiba viver sem ela: “a vida sem bruma/ não é vida humana”267. Sua poesia é também colorida, embora noturna; ainda é uma comemoração do agora, na urgência de um brinde, no sentimento de quem quer tudo “no próximo hotel”. De quem quer “transformar o tédio em melodia”. Como Renato Russo, que paira sob névoa que recai sobre os poetas malditos, Cazuza também capta os sentimentos daqueles. Nilo Roméro, parceiro na melodia da canção “Completamente Blue”, consegue sintetizar os estados de ânimo do poeta quando diz: “Esta música carrega o sentimento de 265 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.130. CAZUZA. “Só as mães são felizes”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 9. 267 CAZUZA. “Bruma”. Cazuza [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de Janeiro: Polygran, p1985. 2CD. Faixa 19. 266 angustia blasé de algumas pessoas diante do estilo de vida do final do século XX, em que você pode fazer o que quiser, mas a satisfação interior é cada vez mais difícil de ser conseguida”268: Como é triste a tua beleza Que é beleza em mim também Vem do teu sol que é noturno Não machuca e nem faz bem269 Temos assim o sentimento do homem pós-moderno, na vertigem do mundo capitalista do consumismo – fragmentação e dilaceramento – que impõem uma busca constante de auto-realização e satisfação que esbarra nas proibições, perseguições, limitações, regras, castigos e doenças de uma sociedade da mídia e do espetáculo, que corrobora o sentimento de vazio e solidão. Nesse sentido, o amor se torna amor de salvação, como em Renato Russo. Este emprega o recurso da polifonia que constrói um discurso do amor que reinstaura a ordem do mundo fluido e dinâmico, e vem como redenção. Cazuza opta pela invenção do amor, que denota a necessidade desse sentimento como salvação. Para aquele que acreditava “que o amor na prática é sempre ao contrário”270, herdeiro da atitude do “faça você mesmo”, o poeta não hesitou em cantar “o nosso amor a gente inventa”. A música, a poesia e os amores se constituem como uma invenção da geração oitentista, e neles ecoam o lirismo, a obscuridade e os sentimentos de outras épocas e funcionam como antídoto, ou melhor, como “algum veneno antimonotonia”: Eu quero a sorte de um amor tranqüilo Com sabor de fruta mordida Nós na batida, no embalo da rede Matando a sede na saliva Ser teu pão, ser tua comida Todo amor que houver nessa vida E algum trocado pra dar garantia E ser artista no nosso convívio Pelo inferno e céu de todo dia 268 ROMÉRO apud ECHEVERRIA, 2001, p.150. CAZUZA. “Completamente blue”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 6. 270 CAZUZA. “Ritual”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 2. 269 Pra poesia que a gente não vive Transformar o tédio em melodia Ser teu pão, ser tua comida Todo amor que houver nessa vida (...) E algum remédio que me dê alegria271 O amor se constitui na diversidade de vozes, dissonantes e harmônicas, encerrando características de ambigüidade. Do corpo ao espírito, a poética de celebração de amores exagerados e formas de vida e continuidade atravessam a obra de Cazuza. Com um teor de erotismo e transcendência, os versos de Cazuza carregam a perspectiva da voz do outro. E revelam o outro a si mesmo. Depois que sai do Barão vermelho aflorou o meu lado Dolores Duran, Maysa, Nelson Rodrigues.”272 Não estou sendo pretensioso, não, mas vários estudiosos da música popular já me disseram que eu trouxe essa coisa da dor-de-cotovelo de volta. É claro que isso aconteceu com a moldura mais epidérmica do rock. Todo brasileiro, todo latinoamericano, é pego um pouquinho pelo pé nisso de mexer na ferida do amor. E sempre gosta de temas relacionados a uma paixão que não deu certo. Esse é o lado diferente e talvez polêmico do meu trabalho.273 A declaração do autor dá o tom do disco Só se for a dois, que a começar pelo título abarca uma temática “não rock’ n’ roll” e sugere uma carga de lirismo romântico. Cazuza, em “Medieval II”, assume seu lado romântico sentimental: “Eu acredito no meu lado/ Português, sentimental/ Eu acredito em paixão e moinhos lindos” – quando dialoga com a MPB de Chico Buarque, que em “Fado tropical” cantara: “sabe, no fundo eu sou um sentimental/ Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo (além da sífilis, é claro)”274. Portanto, Cazuza compõe e canta nesse ritmo o tom do amor a dois num disco que, alheio ao político e ao social e sobrecarregado de 271 CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza. [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 4. 272 CAZUZA apud ECHEVERRIA , 2001, p.139. 273 CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1, capturado em 04/04/2007. 274 CHICO BUARQUE. “Fado Tropical”. C. Buarque, R. Guerra [compositores]. In: –. Calabar, o elogio da traição ou Chico canta. Rio de Janeiro: Fhonogran, p1973. 1CD. Faixa 7. subjetividade, enaltece um amor conquistador – característica ainda do bom e velho rock’n roll. Assim, as vozes que compõem letra e música de Cazuza são várias e convivem nas batidas do rock, do blues, do rythm & blues e das baladas românticas – nas quais ecoam os sentimentos da juventude de sua geração, que ganham visibilidade através do rock. Ainda como integrante do Barão Vermelho, Cazuza, em Maior Abandonado, registra uma poesia cuja temática é a vida e as dores de amor, que ecoam as vozes de Nelson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues e Ataulfo Alves. Consciente de sua influência e polifonia, Cazuza anunciava: “Um dia ainda chamo o Nelson Gonçalves para cantar uma música com o Barão. Se isso chocar algum roqueiro, é sinal de que ele precisa se libertar desse trauma”275. Dessa forma, inaugura um rock-mpb, feito um “um pierrot retrocesso/ meio bossa nova e 'rock'n roll”276 que compõe o “clipe sem nexo” do seu show. Um show híbrido, marcado pela diversidade e influência de gêneros musicais e formas de compor letra: “A mis-en-scêne, tem muita coisa que a gente imita dos outros. Pego um pouquinho ali do Caetano, um pouquinho do Ney, um pouquinho do Mick Jagger, os ídolos da gente"277. Muitas vezes a música de Cazuza é mais MPB do que rock, é mais bossa e “fossa” que rebeldia roqueira: formas novas de escrever e cantar num país marcado pela diversidade. Carrega assim, em suas composições, perspectiva da voz do outro, que explora e explicita os sentimentos do eu: Será que eu sou medieval? Baby, eu me acho um cara tão atual Na moda da nova Idade Média Na mídia da novidade média.278 A MPB – categoria musical surgida nos anos 60 comporta um gênero impuro, que abarca elementos nacionais e populares no seu modo de 275 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.77. CAZUZA. “Faz parte do meu show”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 12. Para Cazuza, “essa música não é um new bossa nova como andam dizendo. É bossa velha mesmo” (CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.190). 277 CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1, capturado em 04/04/2007. 278 CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 2. 276 composição e em sua melodia, elementos estes que podem “desafinar” em polêmicas e controvérsias, dada a indefinição e variação do significado de tais termos que tangem o político e uma ordem classificatória hierarquizante. Sem estender para uma discussão a respeito de gêneros musicais e suas conotações populares ou não, cabe aqui apenas ressaltar o contato que a cena roqueira oitentista experimenta com a MPB, seja quando propõe a ruptura, no inicio dos anos 80, ou quando no final da década, tenta uma reaproximação. Renato Russo declara a necessidade de “um corte proposital em relação a MPB” como “valorização dos anos 80”279: Realmente não precisamos entrar nessa de masturbação intelectual, vocabulário hermético e citações de autores desconhecidos para provar qualquer coisa sobre nosso país. Isto é insegurança de uma geração mais velha, frustrada, porque não teve permissão para abrir a boca. Não precisamos disto. Por que não falar o que você sente, sem gramática correta, sem preocupações políticas?280. A aproximação de compositores do rock com a MPB como é o caso da Legião Urbana e de Cazuza coloca o rock como um gênero de experimentação, dotado da característica de hibridez. A fala de Renato Russo não é paradoxal à sua atitude e ao seu trabalho de compositor de um rock lírico, altamente marcado por influências literárias e preocupações estéticas – como são as composições da MPB. O depoimento do roqueiro ilustra a geração 80 e sua necessidade de falar do aqui e agora, valorizando os sentimentos do eu. Para isso, Russo e Cazuza se aproximam da própria MPB, que de acusada passa a ser modelo281. Renato Russo constata que “a legião hoje virou MPB”282. Não nega assim as características básicas do rock, apenas as confirma na sua impureza ou hibridez. Ao longo dos anos, a estética simples do rock, que no início dos 80 se compunha na limitação dos recursos musicais e em letras simples, incorpora, num processo de amadurecimento e profissionalização, outros instrumentos, arranjos sofisticados, tecnologia de gravação e reprodução. E as letras amadurecem literariamente. Dessa forma, 279 RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p. RUSSO apud BRYAN, 2004, p.138. 281 Cazuza, em 1987, divide o prêmio de Melhor letrista da MPB com Chico Buarque. 282 RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.196. 280 Renato e Cazuza se distanciam do amadorismo e se tornam porta voz de sua geração, fixando-se como mainstream do rock brasileiro de todos os tempos. E os diálogos do rock com a MPB e com outros gêneros musicais, como o samba e a bossa nova, reafirmam a década de 80 como a década da travessia. Cazuza e Renato Russo caminham, prosseguem na movimentação cultural, confirmando também o Brasil como uma nação mista, impura, em todos os sentidos, desde a colonização. Cazuza declara-se como poeta da travessia: Não sou um poeta aleatório e, depois, como um bom filho da Tropicália, não consigo admitir a barreira que as pessoas traçam o que é e que deixa de ser MPB. Sou letrista de rock por acaso. Se houvesse pintado um grupo de samba, em vez de Barão Vermelho, eu estaria compondo sambas de qualquer forma, sou muito latino, muito passional, e minha poesia reflete isso. Posso tentar caminhar no estilo Joy Division, mas quando vou ver o resultado está muito Cartola.283 As influências do poeta se diluem ao longo de sua obra. As vozes do outro se fazem ouvir no miúdo do texto e murmuram em seus diálogos, curtos ou longos, com a música e com a literatura. Minhas influências literárias são completamente loucas. Nunca tive método de ler isso ou aquilo. Lia tudo de uma vez misturando Kerouac com Nelson Rodrigues, William Blake com Augusto dos Anjos, Ginsberg com Cassandra Rios, Rimbaud com Fernando Pessoa. Adorava seguir Carlos Drummond de Andrade em seus passeios por Copacabana. Me sentia importante acompanhando os passos daquele Poeta Maior pelas ruas à tarde. Mas meu livro de cabeceira foi sempre "A descoberta do mundo", de Clarice Lispector. Adoro acordar e abri-lo em qualquer página. Para mim, sempre funciona mais que o I Ching. As minhas letras têm muito desses ‘bruxos’ todos.284 Em “Azul e Amarelo”, Cartola assina a autoria da música ao “emprestar” os versos “Não vou não quero”, de sua música “Autonomia”. Lobão, que também assina a canção, explica o roubo anunciado de Cazuza: “Na verdade ‘não vou e não quero’ é um verso de música do Cartola, e Cazuza falou assim: 283 284 CAZUZA, 2001, p.257. CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1, capturado em 04/04/2007. ‘Essa frase é do Cartola, então eu quero ter o Cartola na nossa parceria, você quer? ’ Eu disse: ‘Claro’”285. Roubo, parceria, apropriação – diálogos que se intensificam, quando a partir do romance Água Viva, Cazuza transforma a prosa de Clarice Lispector em rock do Barão Vermelho: "Gosto de coisas densas, como a literatura de Clarice Lispector. Por falar nela, acabei de compor ‘Que o Deus venha’, uma música inspirada em meu livro de cabeceira, Água Viva"286. Ou em “Balada do Esplanada”287, quando a poesia de Oswald de Andrade se transforma em letra e música de Cazuza. A apropriação do texto alheio rouba-lhe sentido e ritmo e impregna-o de uma assinatura que desloca seu significado “original”. Ao fazer com que Cartola, Lispector ou Andrade assine a co-autoria da letra, faz com que eles se tornem cúmplices do roubo e dilua a culpa daquele que se apropria do alheio. E o sentido, o significado, a confissão e a culpa passam a ser compartilhados. Renato Russo, por sua vez, em “Monte Castelo”, por exemplo, não traz a assinatura de São Paulo ou Camões. Todavia, o diálogo e o roubo de Cazuza e Russo resulta num rock polifônico, que comporta a perspectiva da voz do outro, seja pela citação, pela referência, ou pela apropriação. As palavras de Paz ajudam a compreender o roubo do eu do outro, quando nos apropriamos do discurso alheio e nos revelamos naquilo que tomamos como nosso: Nosso nome sustém também um estranho de quem nada sabemos exceto que ele é nós. O homem é temporalidade e mudança, e a “outridade” constitui sua própria maneira de ser. O homem se realiza ou se completa quando se torna outro. Ao se tornar outro se recupera, reconquista seu ser original, anterior à queda ou ao despencar no mundo anterior à cisão em eu e “outro”.288 Dessa forma, lemos/ ouvimos “Que o Deus venha” como sendo confissão de um eu “inquieto, áspero, e desperançado” – um eu - Cazuza, um eu - Clarice, que se expõe e se torna um eu - outro quando o leitor/ ouvinte, se apropria daquele eu anônimo e substituível, dos quais falam Paz e Derrida. 285 LOBÃO apud ECHEVERRIA, 2001, p.232. CAZUZA, Compilação feita IstoÉ, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1, capturado em 04/04/2007. 287 CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois.. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 11. 288 PAZ, 1982, p.219. 286 Cazuza também toma por inteiro a letra do outro e a faz sua, na voz e na doação do corpo. O roqueiro gravou o samba “O mundo é o moinho”, de Cartola, “Esse cara”, de Caetano Veloso, e “Vida louca vida”, de Lobão, e outras canções que não são de sua autoria. E como assinala Chiara, ao apontar as “Afinidades Eletivas” entre Caio Fernando Abreu, Cazuza, Renato Russo e Álvares de Azevedo: “A palavra-chave é entrega. E essa confusão entre vida e arte. Essa vida de artista... mesmo quando não falam por si próprios, difícil não saber quando não falam de si.”289 A nudez de Cazuza não se fez somente pela escrita da letra. Pelo canto e performance despiu-se por completo. Para os nossos poetas em questão, vida e obra se confundem, obviamente com todas as considerações apontadas no capítulo dois. Portanto, as palavras dos outros são também técnicas de despir e máquinas de fazer confessar. “Vida louca vida” talvez seja difícil de ser lida, ouvida e compreendida se desvinculada do corpo, da vivência e da voz de Cazuza: Vida louca vida Vida breve Já que eu não posso te levar Quero que você me leve Vida louca vida Vida imensa Ninguém vai nos perdoar Nosso crime não compensa290 Como Renato Russo que assina o diálogo por ele promovido entre São Paulo e Camões – resignificando o entendimento e entrecruzamento do amor carnal e divino –, Cazuza se doa para o texto alheio e não se intimida com a contaminação entre escrita e voz. Penetra, em alarde e festa, no reino das palavras e as possui. Se dermos ao empreendimento de compreensão da vida e da obra de Cazuza, os versos de Cartola soam bem, ainda que tristes e pessimistas, para dar conta, daquele, que como Álvares de Azevedo, foi poeta, viveu e amou a vida: Ainda é cedo amor Mal começastes a conhecer a vida 289 CHIARA, 2001, p.10. CAZUZA. “Vida louca vida”. Lobão, B. Vilhena. [compositores]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 1. 290 Já anuncias a hora da partida Sem saber mesmo o rumo que iras tomar291 Os diálogos de Cazuza também se fazem na doação da letra para o corpo. O compositor “distribuiu” várias letras para outros intérpretes da música brasileira, principalmente quando, numa maneira de manter-se vivo e lutar contra a doença e a morte, compunha em ritmo alucinado. Sua letra encontra assim o diálogo com vários outros ritmos musicais, ampliando seu alcance e o consagrando como poeta292: “o sonho do poeta se concretizou, e sua herança está registrada na história da música popular brasileira através de várias frentes”293. Ainda que as composições de Cazuza estejam bastante ligadas ao seu tempo e espaço de vivência, sendo, portanto, mais datadas e localizadas que as de Renato Russo, o exagero do garoto que nasceu “no Rio de Janeiro/ fruto do amor verdadeiro/ de uma cristã e um cristão”294 ganha a perenidade e atemporalidade, ao protagonizar em versos sentimentos comuns a toda a sua geração, que ecoa de tempos em tempos, para outras épocas. Eu não saio do bar, tomo oito vodcas, milhares de não sei o que, vou pra casa e escrevo o que vi. O Tom Jobim uma vez disse que, quando a gente canta o quintal da gente, está sendo internacional, porque aquele quintalzinho só a gente tem.295 291 CAZUZA. ”O mundo é um moinho”. Cartola [compositor]. In: –. Preciso dizer que te amo toda a paixão do poeta. Rio de Janeiro: Universal. p2001. 1CD. Faixa 14. 292 O Capítulo11 do livro Preciso dizer que te amo, que reúne todas as letras do poeta, apresenta as composições de Cazuza interpretadas por vários artistas como Marina Lima, Cássia Eller, Adriana Calcanhoto, Ney Matogrosso, Leila Pinheiro, entre outros. 293 ECHEVERRIA, 2001, p259. 294 CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.8. 295 Declaração que vai na contramão da matéria polêmica e sensacionalista da Veja, de 26 de abril de 1989, em cuja capa vinha a foto de um Cazuza magérrimo e frágil e anunciava: “Cazuza – uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. Concluindo a matéria, a revista arriscava: “Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose, em 1937, Noel Rosa tinha 26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada a menos que 213 músicas, dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade” ( VEJA apud ALEXANDRE, 2001, p.345). Cazuza tivera mais 160 músicas gravadas e deixou mais de seis dezenas inéditas. “E de qualquer quintal faço cidade”296, reforça-lhe a defesa Renato Russo. Assim Cazuza ganha a amplitude no tempo e no espaço: "Antes eu me sentia cronista da minha tribo, muito reduzida, por ser a tribo dos boêmios (...). Agora, minha temática se tornou mais abrangente. Não que não me considere mais cronista da minha tribo, mas é que minha tribo aumentou"297. Garante-se, assim, décadas depois de sua morte, como grande poeta do rock brasileiro. Talvez por teimosia (característica exacerbada do cantor) seus versos vão continuar a embalar histórias de amor, amores desfeitos e insistir para que o Brasil mostre sua cara. Contra o tempo que não pára, Cazuza recolheu em seus rastros os seus cacos, seus amores vividos e inventados, e num diálogo com passado e com o presente, deu o tom da expressão de angústia, liberdade, dor, prazer e desencanto da geração em travessia. Como Noel Rosa, Jim Morrison, Janis Joplin, Fred Mercury e Renato Russo, “os bons morrem jovens”298: Os ignorantes são mais felizes Eles não sabem quando vão morrer Eu não Eu sei que eu tenho um encontro marcado As pessoas esquecem o que precisam fazer Eu não posso me dar esse luxo Faço tudo caber nos meus próximos poucos dias Todas as idéias que eu teria as pessoas que eu conheceria O que eu fosse ainda fosse cantar Estou grávido mais não posso esperar O tempo não pára e a gente ainda passa correndo E eu fiquei aqui, tentando agarrar o que eu puder Ando fraco Tem um mundo ao redor que agente não percebe Tô ficando magro e pequeno nas minhas roupas Sinto que estou reunindo minhas coisinhas Me concentrando Se pudesse, guardava tudo numa garrafa, e bebia de uma vez Penso no que vai ficar de mim Eu... só sei insistir...299 296 LEGIÃO URBANA. “Os barcos”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 7. 297 CAZUZA, O Estado de S.Paulo, abril/1988, disponível em http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=33&id_type=2&page=1. 298 LEGIÃO URBANA. “Love in the afternoon”. R. Russo [compositor]. In: O descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 12. 299 CAZUZA. “Ombra mai fu”. Cazuza [compositor]. IN: –. Cazuza - o tempo na pára (trilha sonora do filme). Rio de Janeiro: Som Livre, p2004. 1CD. Faixa 11. E tomando (ou roubando, ou dialogando com) Oswald de Andrade, a epígrafe do último álbum da Legião Urbana, A tempestade - “O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus” – permite-nos uma leitura de Cazuza e Renato Russo como “crônicas de uma morte anunciada”. Este caráter emocional com que se misturam vida, paixão e imaginação pertence à nova sensibilidade com que os românticos perceberam as mudanças de sua época e ao modo como as sensibilidades românticas contemporâneas percebem nossa época. Sensibilidades polarizadas – almas partidas; anjos demônios, Ariel/ Caliban – esses artistas cultuam as experiências limite, em que perdem suas almas, privilegiam a ferocidade das paixões, e gostam das noites gastas nas tavernas ou das aventuras pela noite.300 Herdeiros dos estigmas do romantismo, nossos poetas da pósmodernidade abrigam ainda conceitos da modernidade introduzidos por Baudelaire: dissonante, o poeta “faz do negativo algo fascinador”301. Hugo Friedrich, ao analisar a Estrutura da lírica Moderna, observa que “Baudelaire perscruta um mistério no lixo das metrópoles: sua lírica mostra-o como brilho fosforescente”302. Assim o faz Cazuza: Pra que sonhar A vida é tão desconhecida e mágica Que dorme às vezes do teu lado Calada Calada Pra que buscar o paraíso Se até o poeta fecha o livro Sente o perfume de uma flor no lixo E fuxica Fuxica303 Para Baudelaire, “o maravilhoso privilégio da arte é que o espantoso, expresso com arte, torna-se beleza, e que a dor ritmizada, articulada, preenche 300 CHIARA, 2001, p.12. FRIEDRICH, 1978, p.43. 302 Id. Ibid. 303 CAZUZA. “Ritual”. Cazuza. [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 2. 301 o espírito com alegria tranqüila”304. Assim, Cazuza e Renato Russo, como Baudelaire, souberam poetizar a dor, o sujo, o malvado, o sórdido, o viral, o pus: “Do feio, o poeta desperta um novo encanto”305. Ou como escreveu Caio Fernando Abreu: “E se tudo isso que você acha nojento fosse exatamente o que chamam amor?”306 304 BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, Hugo, 1978, p.40-41. Ibid., p44. 306 ABREU, Caio Fernando apud CHIARA, 2001, p.14 305 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mas estamos vivos ainda E quem sabe um dia eu escrevo uma canção p’rá você. Renato Russo A pesquisa de dissertação aqui empreendida voltou-se para a leitura da produções escritas da obras musicais de Renato Russo e Cazuza, buscando uma leitura das letras de música ordenadas como memórias-presentes e escrita autobiográfica e confessional. Para tanto, o primeiro capítulo prestou-se a uma leitura contextualizada das questões sócio-culturais que permeiam as produções artísticas daqueles que se aventuram na caminhada da travessia. O rock na sua versão brasileira dos anos 80 apresenta-se e configura-se como a escrita e o som da juventude herdeira da necessidade do “faça você mesmo”. Daí, apreendemos o rock, considerando suas características fundamentais e o contexto econômico e político do Brasil, como o gênero que melhor poderia formatar e veicular as necessidades da juventude, já que, a princípio, não exigiria aprofundamento técnico. De base híbrida, o rock brasileiro permite a convivência de gêneros e estilos e não se formata dentro de uma escola e, por isso, configura-se como obra poético-musical da travessia. Não há intuito de permanência, nem de seguidores. O primeiro capítulo, ao lado do terceiro, dá-nos a dimensão da hibridez do rock. Por ser híbrido e permitir a confluência de vários ritmos e estilos, torna-se polifônico. A polifonia, então, reflete uma necessidade da geração da travessia. Não se constituindo como escola, o rock oitentista exige o diálogo com o presente e com o passado e vislumbra o futuro, já que objetiva a transição. A confluência e a diversidade de vozes atestam o sujeito como portador de perspectivas e resquícios que se manifestam na materialidade de sua expressão artística. Formas, portanto, do ser vivente fragmentado que, apenas pelos rastros e vestígios, pode tentar representar quem ele é. Sem poder se compor na totalidade, o sujeito apenas percorre seus rastros e fareja os vestígios do perfume particular que lança no espaço público, tornando-se, assim, metonímia da sociedade que o concebe, e concebendo a sociedade como metáfora para seu corpo. O todo e a parte, o eu e o nós comungam particularidades e peculiaridades que fazem ressoar o eco de vozes que (de)compõem tal sujeito. No contexto econômico e político, no qual se encontram os autores da travessia, a característica de uma escrita e de um ritmo musical polifônico agrega as múltiplas forças, aliadas e inimigas, que movimentam e desencantam os viventes desse tempo e espaço. Fragmentam-se e reaproximam-se os vestígios do sujeito. O som da caminhada é o rock. Este dialoga com outros ritmos, culturas e tempos distintos. São seres viventes da experiência, da experimentação. Por isso, rupturas e reaproximações que repercutem a polifonia e o processo de maturação da geração 80. Inserido nas esferas da indústria cultural, o rock de garagem do início da década, para permanecer como artigo de venda e registro da expressão artística, necessita de uma consolidação literária no que se refere às letras e de um afinamento técnico no que diz respeito à sofisticação sonora. Daí então a reaproximação com a MPB, que concentra a qualidade lírica e melódica. O outro ponto a que se chega, refere-se às escritas de Cazuza e Renato Russo como registro da culpa e busca da redenção. Nesse sentido, os textos teóricos de Jacques Derrida, O animal que logo sou e Papel máquina, subsidiam a leitura e se aproximam do texto-objeto, ora um e outro comportando-se como citação. Na superfície da escrita, encontram-se as marcas do roubo e da culpa. Ao constatar o roubo e a culpa, a própria escrita se torna roubo e tão culpada quanto aquele que rouba e confessa. Todavia, o processo de confissão comporta a redenção e a salvação. O erro e a falta levam à culpa que, por sua vez, desencadeia os sentimentos de desconcerto naquele que insiste na travessia. O sujeito do desconcerto é aquele do concerto, é aquele que busca, na materialidade da escrita e da melodia, a salvação. É aquele que procura a nota de afinação e harmonia, ainda que o faça de forma dissonante. É o poeta da pós-modernidade. Se errado, faltoso, empreende na busca do conserto, na busca daquilo que o ajuste, o afine com seu tempo e espaço, e principalmente daquilo que o coloque em sintonia com o corpo e o espírito, com interior e com a sociedade, com o particular e o público. Portanto, a geração oitenta foi a geração da afinação, por isso ruídos, por isso atropelos, experimentações, desconcertos – travessia. A travessia aponta uma terceira margem. Algo que se localiza entre as margens. Algo que instaura metáforas que compõem a narrativa de uma década chamada de perdida, mas que, no entanto, se entendida como a década do trânsito, da caminhada, revela sua importância para o Brasil e para aquele que a protagoniza. Elo entre o passado penoso e vergonhoso da ditadura militar e a promessa do futuro grandioso. Porém, não une passado e futuro, e se desfaz, sem se perder, entre aquilo que é melhor esquecer e o que apenas acena ao longe, na ilusão do eterno esperar. A geração desmemoriada foi, no entanto, capaz de escrever sua própria história. As produções poéticas musicais das várias bandas de rock compõem a narrativa da geração que produz e consome a arte pop, e vive a dinâmica e fluidez do mundo pósmoderno. De desmemoriada, a juventude na sua expressão artística se torna a memória da geração e da nação, mesmo sendo feita em passadas largas e descompassadas – porque assim são o eu e geração dessa travessia. A escrita, portanto, antes de seu desvelamento aprofundado, na superfície, toma a forma de quem a protagoniza. Nem elo, nem perdida, a geração oitenta, entre as margens, localiza o sujeito em desarmonia. Os estilhaços e entulhos do autoritarismo convivem com as roupas festivas da redemocratização. Entre encantos e desencantos, sem diretas e com reinados de vice-governos, o país tenta se equilibrar em meio a tropeços, corrupção, fraude e inflação. Na névoa da economia e da política, o sujeito livre das amarras e ordens, tenta viver a liberdade. Liberdade de expressão, do corpo, do sexo. Na contramão, os obstáculos, impedimentos, adestramentos, a Aids, os conflitos internos, a culpa. Terceira margem, porque a década de 80 se situa entre o que foi e o que seria. Não comporta a nota dos vencidos dos longos blocos da história, nem se formata como escola ou movimento. Constrói-se entre rastros e ressalta a diversidade, a individualidade que, todavia, é capaz de encenar os anseios da coletividade. Daí, a biografia e a subjetividade que vêm a preencher as lacunas das grandes ideologias coletivas. É a terceira opção, aquela que não participa dos movimentos de engajamento cultural e também não é aquela que calada se deixa levar e ser persuadida. Sem a crença do poder revolucionário na palavra poética, encena, na rebeldia característica do rock, a insatisfação da nação. Chega-se também a outros governos e ritmos: o sertanejo embala a era Collor. O tom rebelde e a batida forte do rock é ruído para o governo da corrupção e do confisco. Por isso, os amores e dores-de-cotovelo das duplas sertanejas, que a partir da década de 1990 proliferam no Brasil, são mais aprazíveis, menos contestatórios, mais sedutores. E cada época, cada governo, cada geração compõe e canta sua trilha musical. Mas nota-se, principalmente a partir de 1990, a diversidade de gêneros e ritmos que cantam a nação e o sujeito. Entre a subjetividade e a contestação coletiva, aquela diversidade que ensaia seus primeiros passos na década de 80 ganha, na última década do século, um profícuo espaço e mercado. Torna-se, hoje, difícil mapear o estilo, o gênero, a banda ou artista como o representante de um tempo ou de uma geração. O sujeito da travessia termina sua jornada e desembarca no multiculturalismo. A mídia e a indústria da cultura, de tempos em tempos, elegem seus ícones, seus produtos mais lucrativos e celebram, assim, a arte e o apelo comercial, tornando cada vez mais híbrida nossas manifestações culturais. O rock, após a travessia, não sai de cena. Após a euforia e queda das vendas provocadas pelo Plano Cruzado, as bandas que resistem às tempestades e intempéries da viagem se consolidam diante do mercado e dos seus ouvintes/ consumidores. A Legião Urbana continua produzindo até 1996, quando a banda se desfaz com a morte de Renato Russo. E daqueles que iniciaram a caminhada, no inicio de 1980, em plena produção nos dias de hoje se encontram, por exemplo, Capital Inicial, Titãs, Engenheiros do Havaí, entre outros. O rock brasileiro toma o aspecto cada vez mais pop e deságua no chamado pop-rock, gênero que guarda certas características em comum com rock 80 e consolida o aspecto de arte pop, ou seja, aponta o entretenimento e o consumo como principais objetivos, diluindo-se no lucro e na efemeridade do mercado altamente rotativo. Necessita-se, porém, de um levantamento e análise das letras dos grupos que entram e saem de cena e junto com outros ritmos e gêneros compõem a trilha sonora da diversidade cultural brasileira atual. Ressalta-se a diversidade de gêneros e subgêneros que surgem a cada dia. Fato que assinala a expansão da indústria fonográfica, ao mesmo tempo em que denota a necessidade de algo novo que responda aos anseios da nova geração que convive com a aceleração, com a tecnologia e com a fugacidade. Fatores da pós-modernidade que fragmentam, desconcertam e diluem o sujeito. Daí a citação, a apropriação, o recorte, a mistura, o pastiche, a bricolagem e a criação de subcategorias, que marcam os novos gêneros musicais que, a começar pelo formato em si, já responde por aqueles que os criam e os consomem. A arte e a cultura tornam visíveis certas engrenagens do capitalismo. Os novos suportes para música impossibilitam a idéia de se formar uma discoteca, quando o LP ordenava os gêneros musicais e o consumo de música. Com a Internet e os suportes virtuais, a música na versão eletrônica toma outras roupagens e requer atenção e ferramentas que possam elucidar as trocas culturais urbanas da contemporaneidade. O outro ponto a que leva a travessia mostra a escrita contra a morte e contra o tempo que não pára. Marcel Proust e Manuel Bandeira, por exemplo, foram dois viventes que transformaram a própria vida ou a morte iminente em arte, em literatura. Renato Russo e Cazuza colocam em tensão a brevidade da vida e a intensidade da poesia, criando uma escrita que não é a tentativa de busca do tempo perdido, nem a espera da morte que poderia encontrar a casa pronta a qualquer momento. A escrita desses dois autores ratifica o incômodo da mortalidade e o desejo de continuidade. Renato Russo e Cazuza fazem da escrita a própria vida ou da vida a própria escrita. Empregam assim na vivência o lúdico que reside na poesia. A brevidade versus a intensidade resulta no exagero. A poesia de Renato e Cazuza é o exagero, é o derramamento excessivo de lirismo quando se descobre aquilo que falta. A escassez acompanha a travessia. A escassez e o exagero são faces de uma mesma escrita. Sem os opostos se negarem, eles revelam a complexidade e as contradições do sujeito. Por se tratar de sujeitos da travessia, da experimentação, muitas vezes, as contradições se intensificam e deságuam em oxímoros: convivem no mesmo sujeito escassez e exagero, travessia e agoricidade, culpa e salvação, obra e vida. O oxímoro repercute na polifonia. Ao se aventurar pela travessia, mais do que a busca de um ponto de chegada, o importante é a caminhada. A geração 80 é a geração da travessia, mas é a geração do presente, da valorização do aqui e do agora. É a geração da caminhada, mas que faz de cada passo uma chegada, pois é incerto o futuro. A geração 80 é movimento e consegue parar a beleza com a escrita. Ou pela escrita revelar a beleza do sujo. O poeta é dissonante. Não se teria uma poética, se não transformasse o feio, o sujo, o nojento, a dor, o sofrimento em lirismo. Era mais do que preciso transformar o tédio em melodia, era preciso inventar amores, era preciso inventar canções. Era preciso manter-se vivo e a vida foi mantida pela escrita e pelo canto. “Porque o meu canto é a minha solidão/ É a minha salvação/ Porque o meu canto é o que me mantém vivo”307, finaliza a ultima estrofe, da última música, do último lado, do último disco de Cazuza – como cantou Renato Russo no dia da morte do seu companheiro de travessia. A urgência do presente daquela geração se confronta com a urgência do passado dos viventes do novo milênio. Vivenciamos hoje o boom da memória. O que faz com que voltemos no tempo, faz com que relembremos, muitas vezes com nostalgia, o percurso da caminhada. O percurso e os percalços que nos trouxeram até aqui e fizeram de nós aquilo que somos. A necessidade de retorno ao passado, principalmente a revisão do passado do breve século XX, por ter sido breve e intenso, instaura a busca do tempo perdido. Em se tratando da década de 80, a busca da década perdida. Quando o futuro não repete o passado, o presente retoma o passado para entender o próprio presente. Retrospectivas e nostalgias podem também reiterar o vazio, a superficialidade do novo. A tecnologia, a dinâmica e fluidez da pós-modernidade causam fissuras no presente. E a memória e a recuperação do arquivo se prontificam como uma vivência do passado e do presente. A sociedade que vislumbra o novo necessita do velho. O que virá depende do que foi, e assim o passado, apenas aquele que conseguimos reconstituir e articular com o presente, se transforma em memória. Na era dos sistemas high-tech de informação, corre-se o risco da memória – com a de Funes - não nos dizer nada. Os relançamentos, coletâneas, filmes sobre o Holocausto, almanaques da década de 60, 70, 80, entre festas com hits e decorações retrô, constituem-se também como memórias efêmeras para o consumo, postas à venda pela indústria da cultura. A memória concorre, portanto, como necessidade de recuperação do tempo perdido, de articulação para entendimento da contemporaneidade e também como produto da indústria cultural. Ao revisar o passado, nos constituímos, como Renato Russo e Cazuza, como seres dotados da necessidade do diálogo. Repercute em nós, a diversidade de vozes, do presente e do passado, do eu e do outro. 307 CAZUZA. “Quando eu estiver cantando”. Cazuza [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de Janeiro: Polygram, p1989. 2CD. Faixa 20. Espera-se que em uma escrita de travessia, os passos do presente e os rastros da caminhada possam apontar o sujeito e os companheiros da jornada. Fica, portanto, uma escrita diário de bordo, na qual se encontra os relatos das intempéries, as alegrias da descoberta, o alívio e o sufoco dos dias de sol e noites tempestuosas. Originalmente, o último álbum lançado pela Legião Urbana com Renato Russo ainda vivo, se intitula A tempestade com o subtítulo O livro dos dias. Pensando na possibilidade de uma inversão do título e subtítulo desse álbum, vislumbra-se o quanto fora tempestuosa a travessia daqueles dias, ou como aqueles dias ainda que tempestuosos não impediram a caminhada, nem a escrita. Cazuza e Renato Russo, os companheiros de viagem, em seus registros confessionais – poéticos e documentais – se apresentam como aquilo que substitui as grandes sucessões lineares da história pelo jogo da escrita subjetiva que comporta o jogo das interrupções e descontinuidades. Posicionados na borda da história, nossos poetas da música rompem com as grandes bases imóveis e as grandes narrativas tradicionais: narram a história do processo de redemocratização do Brasil, encenando na escrita poéticomusical a vivência do eu desconcertado. Reconstruindo o discurso do outro, procurou-se a palavra muda que murmura nas entrelinhas do texto e da história oficial. Procurou-se revelar o miúdo do texto, o miúdo do eu, o miúdo do outro, o miúdo de uma geração. As singularidades e as condições de existência da década de 80 podem ser lidas nas obras de Russo e Cazuza. Como arquivo da vivência de uma geração, o deslocamento da letra da canção para o discurso acadêmico, ainda que possa contaminar a escrita científica, permite elucidar os acontecimentos que pontuam o sujeito e seu tempo histórico. A escrita autobiográfica revela-se culpada e transgressiva, apaixonante e sedutora. E qualquer escrita sobre uma escrita assim comporta os mesmos vestígios de quem confessa. Escrever sobre a escrita da culpa e da confissão exige uma escrita culpada, que confessa por si própria, à medida que se contamina da escrita do outro, sobre a qual se escreve. Perpetua-se a genealogia da escrita das confissões iniciada por Santo Agostinho e seguida por Rousseau. Escrever sobre a escrita do roubo já é roubo. E, paradoxalmente, cita-se para desculpar, culpando-se mais ainda, confessando. A escrita sobre a escrita da culpa é palimpsestuosa. Muito não se comporta na espessura do palimpsesto, daí uma escrita edipiana que se revela pelos pés inchados do texto, nas inúmeras citações de pé-de-página. Mais culpada ainda se torna essa escrita sempre à sombra do erro e da culpa daquilo que não se pode evitar. Quem escreve sobre a autobiografia corre os mesmos riscos daquele que se entrega ao instinto do animal autobiográfico. Corre o risco do autoenvenenamento, da auto-infecção. Mas é o risco que busca a salvação, o risco da letra em palimpsesto, o risco do perigo, o risco do corte, da dor. Portanto, a autobiografia e qualquer escrita sobre ela é (re)corte, ruptura, deslocamento. Não permite, por isso, uma unidade totalizadora. Como não é possível a totalização de qualquer empreendimento sobre a escrita. Ambas as escritas não comportam o fechamento, apenas as movimentações do jogo que as compõem, permitindo infinitas leituras. Pode-se assim dizer que Renato Russo e Cazuza metaforizam em suas obras poético-musicais os conceitos de différance e suplemento de Jacques Derrida. Eles se anunciam na primeira pessoa e tecem a tensão do eu com a história. O eu que oscila entre a presença e a falta, entre a diferença e os rastros que se confundem. Eles se suplementam na caminhada. Suas obras ao serem lidas como constitutivas da travessia, movimentam-se, agitam-se. Cedem uma a outra na adição flutuante do movimento. São assim memóriaspresentes que se fazem suplemento e diferença. A fragmentação e desconcerto dos sujeitos da travessia, que se constituem pela escrita, permitem aproximações, quando a citação poética (des)culpa conceitos teóricos. Estes, por sua vez, esbarram-se, tocam-se, contaminam-se com os dizeres que exigem metáforas e outras figuras de linguagem, que ausentes do escrito teórico, tentam apreender a complexidade das relações humanas. Relações que, na superfície da escritura, fazem vir à tona o que reside na profundidade do homem. Somente na escrita se revela a différance. Esperam-se ainda outras respostas para aqueles versos que suscitaram questionamentos desde a primeira música, do primeiro lado, do primeiro disco da Legião Urbana: “Será que vamos conseguir vencer?”. Como se esperam ainda outras leituras desses poetas. A epígrafe, “Ouça este disco da primeira à última faixa. Esta é a história de nossas vidas”, do álbum Uma outra estação, lançado após a morte de Renato Russo, resume a escrita da memória e da autobiografia em palimpsesto. Da legião que se aventurou pela travessia restaram anjos e demônios, fãs, histórias e o arquivo fonográfico que permitem, nesta estação e nas próximas, o rastreamento do animal que logo foram, que logo somos, que logo seremos – como diz o subtítulo de Jacques Derrida: A seguir. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DISCOGRAFIA DO CORPUS REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS BIBLIOGRAFIA GERAL REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. a indústria cultural: o esclarecimento como mitificação das massas. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Saga, 1969. ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ADORNO, Theodor W. Resumo sobre indústria cultural. http://adorno.planetaclix.pt/tadorno17.htm, captado em 25/02/2007. 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