Território Livre (ou Seis Meses Infiltrado no Ateliê Fidalga) Mario Gioia Uma quarta-feira corriqueira, no final de maio. Um toque de campainha em uma casa simples da rua Fidalga, na Vila Madalena, por volta das 20h, indica que os primeiros artistas já se preparam para o encontro da noite. Albano Afonso traz da cozinha o café e o chá. Sandra Cinto traz uma cesta com um bolo, copos de plástico, açúcar, adoçante, guardanapos. À medida que outros artistas vêm chegando, o bate-papo fica mais intenso. “Você conseguiu ir na exposição no fim de semana?”, pergunta um deles. O outro diz que não, mas que tentará fazer a visita no próximo dia de folga. Os nomes se sucedem em uma lousa branca, indicando a ordem pela qual os trabalhos serão objeto de discussão. Um artista exibe sua nova série de fotografias. Outro apresenta uma maquete de instalação. Comentários não cessam, que vão desde a escolha do material, a indicação de textos críticos, até a aproximação com nomes-chave da cena contemporânea de arte, no Brasil e no exterior. De repente, uma figura simpática irrompe na janela: “Oi, gente, tudo bem?”. É o carioca Paulo Reis, curador e crítico de arte baseado em Lisboa e que assina a curadoria da edição 2010 da Paralela. Ele é convidado para entrar e também participa das discussões. Por exemplo, com o jovem Flávio Cerqueira, 26 anos, que acaba de ganhar um prêmio em um salão de arte contemporânea em Goiás, indica que a retirada da base de uma escultura pode potencializar a leitura da obra, talvez colocada diretamente no chão. Ou disposta numa outra perspectiva, mais ao alto. A polifonia de opiniões contrastantes e também de reciprocidade é contínua, tanto por parte dos artistas como dos organizadores e convidados. Cerqueira não se convence e diz que quer apresentar a peça com base. É apenas uma das discussões em grupo, às vezes mais acaloradas, às vezes mais suaves. Todos que desejam expor sua posição sobre qualquer trabalho são ouvidos. Por cerca de intensas e ruidosas três horas e meia, a casa assobradada de um dos bairros de vida noturna mais agitada em São Paulo tem como pedra de toque a experimentação artística. A escultura de Cerqueira em discussão, O Invisível, um mês e meio depois, na mostra Ateliê Fidalga no Paço das Artes, foi apresentada no espaço expositivo da instituição paulistana. Sem base, diretamente no piso amadeirado, por iniciativa do artista. * 12 de julho de 2010, mesa-redonda de abertura da coletiva Ateliê Fidalga no Paço das Artes, com a presença de Afonso, Cinto e Marco Giannotti, artista plástico e professor da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo). Cinto explica para o numeroso público, já não mais acomodado apenas nas cadeiras disponíveis, os conceitos fundamentais do Ateliê Fidalga. “O Ateliê Fidalga não é uma escola, não ensina a fazer pintura, desenho, gravura, vídeo... é um grupo de estudos formado por artistas contemporâneos em que o mais importante é o debate”, conta ela, ressaltando a defesa da subjetividade de cada artista na construção de sua poética, frente à grande diversidade de perfis dos artistas, de gerações e abordagens variadas. * Montagem da coletiva Ateliê Fidalga no Paço das Artes, uma semana antes da abertura, início de julho. Bruno Mendonça, 23 anos, um dos mais jovens do grupo, termina de instalar o seu projeto, Ocupação Burocrática, mescla de instalação e performance. Trabalho bastante crítico do meio institucional, do engessamento de certas estruturas burocráticas, em especial as do campo da arte, fisicamente é discreto, se camufla, um dos seus trunfos é a pouca visibilidade. Traz ecos de Expediente: Primeira Proposta para o 31º Salão Oficial de Arte do Museu do Estado de Pernambuco (Projeto), de Paulo Bruscky, exibido pela primeira vez no Panorama da Arte Brasileira, em 2005, com curadoria de Felipe Chaimovich. “Uma fenda, um espaço entre o museu e a galeria, entre o galpão e o porão”, frisa o artista no texto deixado para o público [*a íntegra pode ser lida ao final do texto], em um papel sulfite cheio de marcações, repousando na superfície de uma mesa de escritório gasta, cinzenta. Faz conjunto com uma cadeira do mesmo naipe e com um antigo Discman, CD player que traz uma narração feita em tom publicitário- corporativo do texto referido. Ponto para o Paço das Artes, que deu todo apoio e autonomia para que uma obra crítica pudesse ser colocada no início da mostra. Bastante próximo e também disposto há pouco na montagem, um conjunto de duas mesas de luz sintetiza o projeto de Maura Bresil, também uma jovem artista. Mar Aberto: Ensaio de um Processo levou a cabo a sugestão de Cinto e Afonso em expor trabalhos que valorizassem o processo criativo e o tom de risco, duas características enfatizadas por Priscila Arantes, diretora técnica do Paço, ao formalizar o convite ao grupo. Bresil sempre investigou a relação entre o homem e a natureza, mas traçou voos mais ambiciosos na peça. As mesas vêm do ateliê da artista. Uma delas retrata o processo dela no local, com slides, negativos e contatos espalhados, marcações com lápis dermatográficos rodeando as preferidas, referências da história da arte (Oppenheim, Smithson), croquis, anotações, ampliações. Na outra mesa, há apenas uma única foto, em cópia de dimensões maiores _77 cm x 127 cm_, que é disposta tal qual um backlight. Faz parte da série Mar e Mar, na qual Bresil faz registros da praia que frequenta com regularidade, no litoral norte de São Paulo, e, com a cópia física em mãos, realiza experimentos, jogando com os elementos presentes na imagem bidimensional e os presentes no mundo real, físico. As conexões eleitas, de diversos elementos _a água do mar, a areia, galhos deixados à deriva, mãos, a silhueta das montanhas no horizonte, múltiplos vestígios_, parecem brincar com a representação e sempre questionam a natureza da imagem que estamos vendo. Afinal, onde começa a cópia fotográfica, onde fisicamente é a própria paisagem marinha, o que foi alterado, qual o tipo de manipulação (no laboratório, no computador ou in loco?). “O trabalho não é posto em um lugar, ele é esse lugar”1, a frase de Michael Heizer ressoa. Ou: “Não acho que do ponto de vista artístico sejamos mais livres no deserto do que dentro de uma sala”2, como declarara certa vez Smithson. Assim, um quase ao lado do outro, dois projetos artísticos tão diversos, mas que se alimentam das singularidades de cada um, terminam por evidenciar suas poéticas. Um tão ligado à ideia, outro tão telúrico. É apenas um dos diálogos, perceptíveis de pronto, logo depois de passarmos a porta da entrada do Paço. Inúmeras outras relações surgiriam, e algumas delas despontam, logo a seguir, no texto. * Ateliê Fidalga no Paço das Artes começou a ser gestada em dezembro de 2009, quando Arantes e Daniela Bousso, do MIS (Museu da Imagem e do Som de São Paulo), propuseram a “ocupação” do ateliê nas dependências do Paço. A exposição é uma das pontas do processo. De certa forma, tudo começa com o anúncio do convite aos 60 artistas e, pouco a pouco, foram sendo criados projetos. Um ponto central da coletiva é que, durante a última semana de julho, marcando aproximadamente a metade dos quase dois meses da mostra, os trabalhos poderiam ser alterados ou até substituídos, caso isso fosse coerente dentro do processo de cada artista. Outras obras também eram works in progress, mudavam em consonância com a duração da exposição. Também cada artista decidiria com liberdade se seu trabalho seria um site specific ou se não teria elos evidentes com a instituição, que completa 40 anos no ano de 2010. Mesas-redondas, ações educativas e visitas guiadas fizeram parte do projeto. Um blog foi colocado no ar: http://passodofidalga.wordpress.com. O tripé conceitual sempre enfatizado por Cinto e Afonso, percebido concretamente nos três trechos acima _o debate como a essência do grupo, o respeito às particularidades de cada artista e os diálogos possíveis em uma mostra coletiva, que é apenas um dos eixos de todo o processo_, foram sempre claros na conduta dos dois organizadores. A sua defesa rígida nem sempre resultou em momentos plácidos na convivência dos participantes. Trabalhos tiveram tamanhos reduzidos, projetos de obras foram adaptados e ganharam um status mais realista e condizente com o restante da mostra. Mas, ao final, Ateliê Fidalga no Paço das Artes foi vista de forma quase unânime como um grande avanço em relação a No Entorno de, coletiva do Fidalga na Funarte São Paulo, ocorrida em outubro e novembro de 2009. Cerca de 1.00o pessoas estiveram na abertura da exposição no Paço, incluindo críticos de arte, curadores, artistas, galeristas, diretores de instituições e colecionadores, entre outros. Ateliê Fidalga no Paço... também coroou o bom ano do grupo, anteriormente já contemplado no projeto SP Arte Specific, organizado pela maior feira de artes plásticas em âmbito nacional e que exibiu projetos feitos especialmente para o Pavilhão da Bienal, local do evento, assinados por 12 artistas da trupe. Ana Zveibil, Carla Chaim, Carlos Nunes, Deolinda Aguiar, Henrique de França, Jérôme Florent, Julia Kater, Laura Gorski, Lina Wurzmann, Pedro Cappeletti, Renata Cruz e Vivian Kass espalharam suas obras de 29 de abril a 2 de maio na construção modernista do parque Ibirapuera. Os próprios organizadores do Fidalga também tiveram diversos projetos importantes no país e no exterior. Afonso está na 29ª Bienal de São Paulo, estreia numa das principais bienais do mundo, e a sua individual Faço Nele a Volta ao Infinito, na Casa Triângulo, certamente foi uma das mais belas exposições de 2010 no circuito das galerias paulistanas. Já Cinto ganhou sua primeira individual em instituição sediada na cidade. Imitação da Água, no Instituto Tomie Ohtake, também teve ótima repercussão no meio artístico e na imprensa especializada. Uma parte importante do desenvolvimento da obra dos “fidalgos” se faz via mostras em espaços alternativos. A mais importante do ano foi a coletiva Aluga-Se, ocupação de 33 artistas em um antiga residência de dimensões confortáveis, no Alto de Pinheiros, bairro nobre da zona oeste de São Paulo, ocorrida de abril a junho. Ana Zveibil, Ana Nitzan, Bettina Vaz Guimarães, Daniel Caballero, Felippe Segall, Laura Gorski, Lina Wurzmann e Roberto Fabra participaram da exposição, alguns deles com resultados interessantes, que reverberaram em Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Outra coletiva que merece ser citada é Em Obras, que preencheu com desenhos de variadas cepas a passagem Consolação, ao lado do Cine Belas Artes, durante os meses de março e abril. Alice Freire, Flávio Cerqueira, Helen Faganello, Henrique de França, Jérôme Florent e Marcia de Moraes foram os artistas do grupo presentes na mostra. A destacar também convites anteriores, como o feito pelo galerista Eduardo Leme, no ano de 2009, para exibir obras de sete artistas _Ana Pinheiro, Carla Chaim, Carlos Nunes, Henrique de França, Malu Saddi, Marcia de Moraes e Reginaldo Pereira na coletiva Desenho Ocupado. Aproximações, elos, fricções “Um mundo frágil e fraturado cerca o artista. Organizar essa confusão de corrosões em padrões, gradações e subdivisões é um processo estético que mal foi tocado”3, defende Smithson em seu célebre texto Uma Sedimentação da Mente. Tratar de uma coletiva com 60 artistas, muitos deles com obras que mudam no transcorrer da exposição, é um desafio. Segue uma leitura possível, dentro das inúmeras possibilidades, permutações e veredas do pensamento. É um bom momento para comentar a minha participação em todo o processo. Afonso e Cinto me convidaram em fevereiro de 2010 para fazer o acompanhamento crítico do grupo, culminando na participação ativa em toda a discussão sobre Ateliê Fidalga no Paço... , da concepção de suas obras ao balanço final sobre a mostra. Meu percurso profissional de 2005 a 2009 teve como foco principal acompanhar a cena de arte contemporânea como repórter e redator da Ilustrada, o caderno cultural da Folha de S.Paulo. Preferi entrar mais ainda em tal cena deixando o jornal, que consumia muito do meu tempo e não dava abertura para a realização de curadorias nem de textos críticos pedidos por artistas próximos a mim. A opção revelou-se acertada, pois, desde então, tenho trabalhado em projetos de curadorias e textos críticos sem interrupção. Além de nos encontrarmos em iniciativas do Fidalga, conjuntamente ou de artistas do grupo isoladamente, tínhamos constantes discussões sobre arte, em especial a partir da curadoria que fiz para o Ateliê 397, conduzido à época por Marcelo Amorim, do grupo, e Silvia Jábali (hoje, Thais Rivitti e Amorim seguem com o importante espaço, também sediado na Vila Madalena), Obra Menor, em agosto de 2009. Albano participou da coletiva e desenvolveu uma videoinstalação que reverberou em sua individual, no ano seguinte, e, desde então, tenho o prazer de compartilhar da generosa amizade do casal. A escolha de Cinto e Afonso recaiu sobre o meu nome, segundo eles, porque queriam que um jovem curador e crítico pudesse acompanhar de modo bastante próximo o desenvolvimento dos 60 artistas. Salvo ocasiões excepcionais, comecei a frequentar todos os encontros do grupo, às segundas, quartas e quintas. Experiência difícil de mensurar, única e instigante em todas as etapas do processo. Ver de perto a evolução de variados projetos, vindos de artistas de linguagens, métodos e idades diversas, teve peso equivalente à de uma residência artística (com a vantagem de a totalidade do grupo ter sido receptiva a tal acompanhamento, que se desenhou como uma parceria). Hoje, não consigo me ver fora dos debates e do olhar detido sobre a maioria das produções do Fidalga. Pude também organizar discussões, como a feita sobre as fortes conexões entre fotografia e artes visuais, que teve a participação de Sofia Borges e, como público, artistas que compartilham da minha amizade, como Manoel Veiga, Paulo Almeida e Leo Caobelli. Além disso, também fomentei a circulação de alguns textos que considerei referentes e que dialogavam com os trabalhos dos artistas do grupo. Feito essa digressão, voltemos à mostra. A arte brasileira contemporânea, atualmente em evidência no exterior, é forte lastro na produção dos 60 artistas participantes de Ateliê Fidalga no Paço... Ecos de Bruscky, Cildo Meireles, Antonio Dias, Leda Catunda, Rivane Neuenschwander, Iran do Espírito Santo e Brígida Baltar, entre diversos outros, e até referências internacionais, como a espanhola Alejandra Icaza, são sentidos em uma rápida mirada pelos corredores repletos de trabalhos. Havia muita cor – e nisso a mostra do grupo ganhou uma interessante conexão com dois dos artistas presentes na Temporada de Projetos, um dos mais tradicionais projetos do Paço. Ana Elisa Egreja e Pedro Varela, com suas obras vibrantes, livres e expansivas, puderam estabelecer elos poéticos com nomes do Fidalga, como Mariana Palma, Carlos Nunes e Marcia de Moraes, entre outros. “O homem contemporâneo está acostumado a mimetizar muitíssimos movimentos através de seus olhos, e a representação da cidade em movimento, do que está vivo, do que se move, é que me interessa captar”4, declara Icaza. Invasões orgânicas “A principal virtude das formas geométricas é que elas não são orgânicas, como todo o resto da arte é. Uma forma que não fosse nem geométrica nem orgânica seria uma grande descoberta”5, diz Donald Judd. Tal qual as jovens Lívia Moura e Maria Lynch, por exemplo, fizeram na coletiva Nova Arte Nova - com curadoria de Paulo Venancio Filho e que esteve em cartaz nos CCBB de Rio e São Paulo em 2008 e 2009 -, um dos corredores expositivos de Ateliê Fidalga no Paço... exibe variadas proposições de tom mais orgânico. Adélia Klinke espalha tecidos que se assemelham a uma cortina de palco, logo depois da entrada do espaço, um desdobramento de suas acrílicas. É ladeada por peças como um pórtico povoado por fotografias de orelhas-de-pau, de um vaso oriental, de papel de parede antigo e de uma outra imagem fotográfica tipo álbum de família, conjunto desenvolvido por Ana Nitzan _na semana de alteração da obra, O Que nos Resta ainda ganha algumas formas de ossos a saltar do plano, que conferem vazão tridimensional ao desenho que a artista fez no painel. Célia Macedo cria uma miríade de elementos a pender do teto, feitos de EVA (etil vinil acetato), também um desdobramento quase corpóreo de seus guaches e nanquins sobre papel. Madu Almeida traz duas obras no transcorrer da mostra, uma dela também nessa vertente, uma cartografia de formas irregulares, formada por um biombo oriental anteriormente descartado e que se transforma em um tipo de assemblage, colocada sobre um tecido. Regina Sarreta, ao final desse corredor, dá continuidade à sua série Preenchimento, desenhos feitos com caneta permanente e resultantes de diversas linhas. As linhas saem do plano, ganham o espaço e, mais timidamente que, por exemplo, a instalação La Bruja, de Cildo, expandem-se em um ritmo próprio. A destacar a quebra que Por Um Fio promove, já que as obras de Pedro Cappeletti e Luciana Kater são de cunho mais construtivo. Se o observador vira à esquerda da intervenção de Sarreta e se dirige ao café, quase esbarra na instalação de Graziela Pinto, “Vida”. Uma profusão de objetos, a maioria circulares, de pedras a globos “de balada”, de pérolas a ninhos. Uma das luzes do espaço expositivo dialoga harmonicamente com o extrovertido conjunto. A instalação também conversa com a série Oras Bolas, constituída de pinturas e colagens, de relações fortes com o espaço expositivo, observadas em coletivas como a realizada no Carpe Diem, em Lisboa, e no Marp (Museu de Arte de Ribeirão Preto). Mais sorrateira é a intervenção de Jérôme Florent. Ponto-Cruz (Inseto) consiste em pequenas peças de vinil adesivo, instaladas no piso quadriculado de madeira do Paço, em forma do tradicional ponto-cruz dos bordados. Simulam formas relacionadas a insetos, como os trabalhos anteriores Colmeia e Lâmpada. Funcionam quase como uma invasão silenciosa de pequenas vidas, operando nos interstícios de espaços mais constituídos. E Helen Faganello cria uma instalação, Sem Título com Guaimbé, que guarda alguns pontos de contato com Ponto-Cruz. A obra de Faganello é menos expansiva que Cachoeira, exposta em 2008 no Marp, mas também é ambiciosa em proporções _2,70 m x 3 m x 0,3 m. Usando uma lâmina de madeira de paumarfim, a mesma do piso do Paço, a artista dá continuidade à sua série de jogo de representações, utilizando a pintura, a fotografia e o desenho de elementos naturais, visto em obras como Interior com Espadas-de-São-Jorge e Vaso Amarelo. Também simulando o piso do Paço, em uma interessante fricção entre natureza e artifício, representação e real, Ana Sefair Mitre também cria uma fração bem parecida com o chão do espaço expositivo, mas tal parcela se eleva, revelando-se algo representado e que, por baixo, traz uma fina chapa de metal e, como uma projeção, mais abaixo, uma paisagem verde, referindo-se ao ausente (no entanto, não tão longínquo, já que o jardim da instituição é generoso e quase não atrai a visitação do público). As ambiguidades da peça também servem de desdobramento da pesquisa plástica de Mitre, que produziu também trabalhos tão interessantes quanto a obra sem título feita para o Paço, como Trama de Luz, Vértices, Para Onde Vão as Paralelas e Concordâncias. Perto do trabalho de Mitre, À Procura do Que Não Está Lá, de Ana Lucia Mariz, também não deixa de ser uma invasão orgânica. O conjunto de três fotografias e um vídeo, em stop motion (ou seja, a partir de imagens fotográficas), traz uma pequena narrativa, de tom enigmático, tendo uma criança como protagonista, que flerta com o espaço do Paço esvaziado. O tríptico retrata um tecido lançado para cima, em seu movimento pelo ar. O tom misterioso guarda similaridades com outros trabalhos de Mariz, como Paisagens Esquecidas, imagens fotográficas reapropriadas em caixas de luz e que também evidenciam uma memória difusa, apagada. No corredor atrás de Mariz, Daniel Caballero, junto de uma das colunas de sustentação do edifício, erige um misto de instalação e escultura, Mais Pesado Que o Céu, que atua como um desdobramento da sua participação bem-sucedida na coletiva Aluga-Se. Lá, em um imenso banheiro da casa, forrado por ladrilhos azuis-claro, Caballero criou um universo bastante próprio, mescla de grafite corporificado, earth art, arte povera do Terceiro Mundo, intitulado Não Pise na Grama. Anteriormente usado para a higiene pessoal, o banheiro foi completamente transmutado em um ambiente vivo, onde plantas e ervas daninhas cresceram, desenhos foram espalhados por paredes, objetos e piso (este agora preenchido por quilos e quilos de terra). No Paço das Artes, Caballero continua a abordar a impermanência, a instabilidade, principal característica de sua obra, e criou uma estrutura baseada no precário – caixas de papelão, madeira de andaimes, pedaços de móveis descartados, entre outros materiais - , uma espécie de utopia construtiva fracassada. A estrutura descoordenada almeja ultrapassar o teto, mas não consegue e tem um conflito com a arquitetura de tom modernista algo datada do espaço, com muito concreto, vidro e encanamentos à mostra. Para quem usava a própria casa como centro de suas obras e, depois, criou intervenções como Boas Maneiras: Geófagos Educados Não Acreditam em Linhas Imaginárias, na Casa do Olhar, em Santo André, Caballero lida agora mais habilmente com as limitações dos espaços expositivos, mas sem deixar para trás o vigor, a ironia e a extroversão. Na biblioteca do Paço, Renata Cruz também faz obra próxima à intervenção de sua autoria na SP Arte, quando espalhou, perto de uma porta de serviços gerais, um amálgama de imagens extirpadas de livros da Taschen. O universo impresso continua a alimentar o trabalho no Paço e tem forte conexão com a própria história da instituição. Catálogos de exposições foram cedidos a Cruz, que os utiliza na trama de imagens que cola nas paredes do espaço, mescladas a registros de um livro de pessoas tatuadas e outros de um livro sobre a relação dos cachorros com os donos. De acordo com o andamento da mostra, mais imagens são acrescentadas, dando mais mobilidade ao projeto. Novamente o embate entre o natural e o urbano serve como um dos eixos das obras de Lina Wurzmann e Vivian Kass. As duas artistas expuseram juntas no site specific da SP Arte e estão lado a lado na entrada do espaço expositivo de Ateliê Fidalga no Paço.... Em Pedras Moles, Wurzmann continua a sua pesquisa plástica sobre as texturas minerais vertidas para objetos tridimensionais. Em Aluga-Se, ela utilizou uma das colunas da edícula da residência; na feira de arte, fez par com pedras de um protojardim no Pavilhão da Bienal; no Paço, ela cria objetos na mesma linha. Já Kass, dona de um traço apurado em seus desenhos e que também utiliza materiais low fi, tem em Jardim Híbrido uma tridimensionalização de seus trabalhos sobre papel. Unindo terrários, onde são incorporados pequenos brinquedos e outros objetos diminutos, e uma escultura com a forma de um corpo feminino de onde sai uma planta, Kass se aproxima da poética escultórica de Maria Martins e Kiki Smith, cria elos formais com a fase paubrasil de Tarsila do Amaral, mas reinventa tal legado, com a apropriação de materiais abundantes em lojas do tipo R$ 1,99. Margarida Holler, uma exímia gravadora, transfere para o chão do Paço sua obra gráfica, feita agora em relevo seco e utilizando lâminas de madeira e feltro. Este último obviamente alude à escultura de Joseph Beuys, que afirma: “Para mim tornou-se uma condição necessária que o aparecimento de uma escultura seja precedido por uma forma interior no pensamento e que, somente então, esta forma venha a se materializar”6. As formas dispostas no chão amadeirado do centro cultural guardam similaridades com tomografias feitas pela artista. Corpo, ideia, arquitetura _os elementos conjugados contribuem para um trabalho de grande poética. O problema da representação “Para cada trabalho de arte que se torna algo físico há diversas variações que não se tornam”7, diz Sol LeWitt. Um círculo de pedras, um pedalinho, uma reunião de garrafas, algumas copas de árvores. Todas essas são imagens exibidas nos paineis do Paço das Artes, mas que, por intenção dos artistas que a utilizam, questionam a própria representação. Esse é um ponto central na arte contemporânea, que alguns dos artistas do Fidalga tratam com mais ênfase em seus trabalhos _apesar de quase todos, ao menos lateralmente, lidarem com a questão. Uma das propostas mais interessantes, nesse sentido, é a de Alice Ricci. A jovem artista utiliza um espaço usado intensamente apenas durante as aberturas, o bar/café, para espalhar suas réplicas cinzentas de mercadorias de supermercado. Arrumadas em prateleiras feitas por ela, ao fundo do entra-e-sai de garçons e bandejas na lotada noite de abertura, os objetos de Vendo Impressões eram um corpo estranhíssimo, já que as embalagens originalmente coloridas e atraentes tinham sido transformadas em uma massa sem-vida. O mundo sem arestas do consumo naufraga, o discurso publicitário é completamente esvaziado. Já Christina Meirelles se apropria do entorno do Paço das Artes e, diferentemente da sua bela série Paisagens Sintéticas, não se importa com a horizontalidade da paisagem e a desconstroi, espalhando de maneira fragmentada os retângulos fotográficos, retratando a geometria irregular de galhos, troncos, folhas e copas do verde abundante da Cidade Universitária. A paisagem, mas desta vez a histórica, em cruzamento com a circulação maximizada da atual vida em rede, é tema do questionamento da representação proposta por Felipe Cama em seu tríptico. Na série After Post, feita em fotografia e impressão lenticular, o artista prossegue em sua apropriação de imagens referenciais da história da arte _neste caso, paisagens de Frans Post (1612-1680) realizadas em Natal, Olinda e Recife; em outros casos anteriores, pinturas de Matisse e Modigliani, por exemplo_ e registros disponíveis em álbuns virtuais, como o Flickr e o Panoramio. A curiosidade por ambientes distantes e desconhecidos presente na recepção europeia das pinturas de Post, séculos atrás, tem equivalente na variadíssima compilação de registros fotográficos digitais colocados na web em sites como os citados. O corpo tem papel central nas obras de Renato Leal e Felippe Segall. Leal cria um interessante jogo entre plano e espaço em Aquilo Que te Sustenta É o Que Fica, no qual o desenho de reduzidos círculos, por uma acumulação quase obsessiva, forma figuras _no caso, um esqueleto_ e, concomitantemente, um de seus extratos ganha volume e vira uma escultura _um coração. O esqueleto é visto numa tela que não tem sua superfície completamente preenchida pelas formas circulares. Um vazio, à esquerda, ajuda a compor um conjunto mais dramático e de espelhamento. A violência é central no conjunto de 18 fotografias apresentadas por Segall. É um corpo simbólico e metaforizado este retratado em Breve História. Ferramentas de todo o tipo, como sargentos, martelos, pés-de-cabra e ganchos, violentam essa superfície alva. À primeira vista, tudo sugere que seja humano o corpo, mas, ao deter o olhar, percebe-se que as agressões são investidas contra um material plástico. Segall utiliza o poliuretano de travesseiros para exibir a resistência dessa matéria, que tenta incansavelmente voltar ao estado original. O artista, acostumado a se debruçar sobre suas memórias, tem em Breve História um passo avante na sua trajetória, com uma obra de inúmeras leituras, assim como a obra em processo apresentada na coletiva Aluga-Se, quando criou um ambiente em mudança, em um mezanino inutilizado havia anos e de difícil espacialidade. Também artista presente no Aluga-Se, Bettina Vaz Guimarães desdobra obra que tem na pesquisa de cores de cada ambiente um dado fundamental para a concepção de seu trabalho. Por meio de um sistema de cores do tipo Pantone, ela “coleta” quais estavam no espaço e utilizou-as como suporte, em páginas A4, de uma das vistas do edifício, tendo como foco uma coluna. Assim, Guimarães prescinde de alguma imagem cotidiana e doméstica, fonte de parte de suas pinturas e desenhos. A arquitetura e a expografia são chaves na leitura da obra de Luciana Kater, Sutil Forma nº 1. Uma das obras da coletiva que mais se aproveita do espaço e que problematiza a própria representação artística, consiste em um “corpo” geométrico, de forma regular e gradação de cores planejada, colocado entre dois paineis expositivos, em um canto. O que poderia ser apenas uma herança da forte influência construtiva na arte brasileira ganha um dado mais flexível, já que o “corpo” frágil, feito de finas tiras de papel, tem uma leve vibração para baixo, quanto mais avançara o período da exposição. Nada caiu, mas essa leve oscilação gera mais ritmo e vida ao trabalho, dotado de um equilíbrio frágil e, por isso, muito atraente. O “corpo” metafórico de Kater dialoga com o corpo representado de O Invisível , de Flávio Cerqueira. Afora o superado problema da base, tema do início deste texto, a colocação da figura humana ridicularizada, de costas, com um saco de papel a cobrir seu rosto, é uma das peças mais tristes (e potentes) da exposição. Sóbria é a pintura de Mariana Palma. Elegante, poderia chamar a atenção em qualquer local da mostra que fosse colocada. Trabalho escolhido pela artista para enfatizar sua produção de pinturas dentro das discussões do grupo, e não apenas suas aquarelas – também dotadas de uma apurada técnica -, mais comuns nessas exposições coletivas, traz o patchwork pictórico de Palma, que rima Van Eyck e Alhambra, Ingres e São Luís do Maranhão, Grote Markt (em Antuérpia) e Mercado Modelo (em Salvador). Ao seu lado direito, repousa Alvorada, de Reginaldo Pereira. O artista também se apropria de materiais populares, mas estes à venda não em mercados populares, mas saldões de material escolar. Uma dessas grandes lojas – que, anos atrás, patrocinou o massivo Corinthians, dado bastante evidente do público ao qual se dirige – virou uma grande fonte de materiais para a obra de Pereira. Lousas, pranchetas, réguas, mapas, todos esses elementos prosaicos e abundantes em carteiras de estabelecimentos escolares Brasil afora tornam-se suportes para a discussão visual do artista. Como decorrência de peça apresentada na galeria Leme, em 2009, Pereira cria uma paisagem cromática, tendo o cinza e variações como norte, cores aplicadas em 28 pranchetas. Uma composição sobre o engessamento do horizonte urbano, uma crítica à cultura burocrática, Alvorada atesta a grande consistência da obra do artista que teve formação em Campinas. Outra obra de consistência evidente é a de Carlos Nunes, que utiliza o exterior do quadrilátero educativo logo após a entrada da sala de exposição para criar sua intervenção. Do Início ao Fim em Ordem de Recomeço se liga à principal temática do artista, o esgotamento (ou a finitude), verificada pela utilização dos materiais à exaustão. Com poética próxima a do britânicopaquistanês Ceal Floyer, Nunes desenhou na parede do espaço 12 retângulos verticais, com pastel seco, cada um com uma cor original, usando o giz até terminá-lo. Depois de acabar uma caixa com 12 gizes, ele usa outra caixa e faz novas intervenções em cima das iniciais. A sobreposição quase obsessiva de desenhos deixa seus rastros coloridos pelo piso marfim do Paço, sempre em mudança (é uma obra em processo), e tinge de memória plástica o espaço institucional. Do Início ao Fim... é um bom complemento de Triunfo das Cores, do Amor e da Música sobre os Maldosos Azuis, individual que Nunes ganhou no Centro Brasileiro Britânico, em São Paulo, como um dos vencedores do Cultura Inglesa Festival, em maio e junho de 2010. A finitude também está presente no trabalho do uruguaio radicado em São Paulo Fernando Velázquez, Sinopsis. Cinzas decorrentes do processo de queima de um incenso preenchem um dos “andares” do aparelho desenvolvido pelo artista. Logo abaixo, uma pequena tela projeta vídeo de formas difusas de fumaça. E, mais abaixo, um bonsai repousa placidamente na base dessa pequena construção. Velázquez discute a representação, a permanência, a instabilidade e a limitação, ainda propiciando ao público um tom de enigma nas figuras que são vistas por detrás do aparelho e que ativam leves mudanças na obra. Velázquez é um dos nomes de ponta de arte e tecnologia no Brasil, ganhou o 8º Prêmio Sérgio Motta de Arte e Tecnologia, em 2009, e participou da 7ª Bienal do Mercosul, no mesmo ano. Renata Ursaia também discute a representação, mas com humor, característica forte da sua obra, que a aproxima de alguns artistas cariocas, como Marcos Chaves e Raul Mourão. No vídeo Caraminguá, localizado em um espaço bem pouco usado para expor trabalhos no Paço _um painel que se interpõe a janelas, sempre fechadas, ladeando o bar/café_, Ursaia foca sua câmera para um pedaço de papel que parece flutuar em um espaço amplo, mas, aos poucos, vemos que é apenas uma nota de R$ 5 rolando na areia da praia. Caraminguá faz um bom conjunto com a individual que Ursaia teve dentro do Programa de Exposições 2010 do CCSP (Centro Cultural São Paulo), um dos mais tradicionais projetos de fomento a jovens artistas na cidade. Em duas peças, Ding Musa também lida com o que é físico e real e o que é percebido a priori. Na instalação Meu Rio, ele impõe um cano num dos paineis expositivos, quase a espelhar a peça de PVC que efetivamente faz parte das instalações hidráulicas do Paço. Uma bacia com água “recolhe” o fluxo transbordante do líquido, que é expelido na imagem veiculada por uma pequena tela. O jogo de representações também é abordado em Tangente, em que um espelho replica para um espaço virtual um círculo de pequenas pedras brancas, colhidas no jardim da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP, próxima ao Paço, instituição frequentada por Musa nos anos em que cursou geografia. A apropriação de uma imagem central na história da arte _as garrafas de Morandi que repousavam em seu ateliê_ é base do conjunto Natureza-Morta em Esmalte, Après Morandi, de Maria Luisa Editore. O trabalho consiste em dezenas de pequenas pinturas, feitas com esmalte, aquele usado para colorir unhas, que tornam pintura o que anteriormente estava veiculado pela internet _Editore usou imagens disponíveis na rede. Como suporte, folhas de acetato, bastante familiares para quem já fez maquetes. A artista, que realiza muitos óleos sobre tela tendo a arquitetura como base, em uma confluência algo caótica de planos e linhas, envereda por um caminho de experimentação que é sempre elogiável. Solange Sandoval escolhe o caminho tridimensional, que tateava em produções anteriores, e utiliza o cartão-postal de brinde, comum em vários estabelecimentos comerciais de São Paulo, como fundamento do seu trabalho. Dez metros de papel, dobrado em forma de sanfona, são reunidos em uma espécie de álbum, que repousa sobre uma mesa de madeira, encontrada em um antiquário. O que seria a publicidade dos cartões agora ganha interferência da pintura de Sandoval, em um processo de acumulação que invade o espaço, já que o álbum tem algumas de suas páginas derramadas sobre o chão. Essa estrutura imensa, mas contida em um volume (o álbum), cria elos com peças anteriores de Sandoval, como a instalação Torres de Papel, também um obsessivo conjunto de traços em nanquim sobre papel, que criava uma figura similar a uma torre algo desconexa, sustentada em equilíbrio precário. Tal impermanência também é patente no tríptico apresentado por Julia Kater. E As Palavras se Tornam-Se Cada Vez Mais Desnecessárias (da série Silêncio) é um boa extensão de Um Dia Antes da Noite, recorte e colagem de fotografia sobre vinil, site specific criado pela artista para a SP Arte, em 2010, um dos mais destacados do projeto. Nas duas obras, é possível pensar em uma fotografia em sincronia com o surrealismo, mas isso é uma leitura insuficiente. Kater traça elos com a psicanálise, em especial a discorrida por Lacan em seus seminários, com a incomunicabilidade e o existencial do cinema de Bergman, Tarkovski e Antonioni. O choque entre natureza e artifício, ruído e silêncio, emocional e racional, é abordado pela artista em registros aparentemente simples, de turistas (talvez de fim de semana) em um pedalinho, sendo soterrados por um azul profundo. Vendo mais atentamente, insinuam-se silhuetas de montanhas dentro dessa cor. “Nunca haveis inquirido/ Por que, mundo trás de mundo/ Pelo céu profundo/ Vão passando sem ruído?/ Eles, os que transpiram/ As coisas absolutas/ Por suas azuis rotas/ Sempre calados giram/ Só o homem, pequeno,/ Cujo humano latido/ Na terra, é um sonho/ Só o homem faz ruído!”8, escreve no poema Silêncio a suíço-argentina Alfonsina Storni (1892-1938). Jogos de memória “Se o deslocamento do sem-arte para a arte é tão fácil e tentador em fotografia, isso se deve [...]: primeiramente à fotograficidade, que liga a experiência do impossível e a de todos os possíveis, o trágico e a utopia, , o finito e o infinito; [...] à própria natureza de uma foto que permite e faz apelo à projeção inconsciente e consciente do sujeito que a olha: ela abre para o imaginário, evoca o que está escondido, pede uma resposta ou então uma questão, é desencadeadora de devaneios, de sonhos e de fantasmas, solicita a criação de quem a vê, é poética e não demonstrativa, é oferenda de formas, é interrogação sobre si mesma e sobre os fenômenos. É por isso que a fotografia anônima poderá ser deslocada das lixeiras da história para as paredes do museu”9 (Estética da Fotografia – Perda e Permanência, François Soulages) Cartografias de caminhos pessoais, eventos políticos registrados em imagens-símbolo, figuras lendárias cujos relatos continuam a ser transmitidos, brincadeiras com as lembranças. A memória é forte fio condutor de diversos trabalhos de Ateliê Fidalga no Paço das Artes, às vezes de forma mais evidente, às vezes em leituras feitas mais à margem. Uma das obras mais instigantes nesse sentido é Inventário de Pequeno Exstante, de Antonio Melloneto. Reunião de objetos e luz com uma espacialidade estranha, que remete aos muros acinzentados dos não-lugares urbanos, às gavetas marmorizadas de cemitérios, a uma série de pequenas celas com grades que encurralam animais, a distintas casas de cachorros domésticos. Pois são as imagens de cães, todos já mortos e cujas fotografias são colocadas em um esquema de backlight, na parte mais baixa da estrutura, que contribuem mais para a incômoda obra. Algumas dessas celas exibem, para quem se aproxima, receitas médico-veterinárias, embalagens de remédios, brinquedos encontrados em pet shops, laços de elegância duvidosa. Inventário... traz claras conexões com a obra anterior e muito singular de Melloneto, como as séries Espectros da Ausência – Retratos, Caminhos da Morada e Da Condição Humana. Ao mesmo tempo, lança pontos de contato com a poderosa obra do francês Christian Boltanski, em especial de trabalhos como Álbum Fotográfico da Família D., de 1971. Sobre tal painel, Paul Wombell discorre: “O uso de fotografias familiares anônimas faz com que a obra opere como um espelho onde os espectadores podem se ver refletidos”10. O vídeo Derrelição, de Marcelo Amorim, lida com uma chave parecida. Apropriando-se de detalhes de registros familiares, da publicidade (em geral, antigos) e de takes de filmes, com um andar lento, o vídeo se aproxima da opacidade e da diluição de narrativas apresentadas por Amorim em, por exemplo, sua primeira individual em galeria, Iniciação, na Oscar Cruz, que esteve em cartaz entre maio e agosto de 2010 no espaço paulistano. O mix de imagens de repertórios diversos resulta em algo híbrido e que termina por produzir novas imagens, em um processo contínuo (e não cômodo). Era Uma Vez..., conjunto de 11 objetos de autoria de Lulli, aparentemente sugere algo doce e calmo. Assim como Plano Piloto B – Desejos de Desenhos/ Desenhos de Desejos, instalação apresentada no CCSP em 2007, é apenas uma impressão transitória. Assim como as pequenas estruturas anteriormente criadas pela artista tinham aspirações reprimidas (uma vida não facultada às coisas, ao inanimado), o conjunto de pequenas caixas com fotografias de cadeiras liliputianas faz transparecer um tom de solidão quase aterrador. Lembranças dos “anos de chumbo” também são apresentadas por Henrique de França na série de desenhos Susto. Tendo como gancho os 40 anos do Paço das Artes _fundado em 1970, ano crítico dentro do regime militar brasileiro (1964-1984)_, o artista cria imagens de apelo direto, dispostas no painel expositivo tais quais cartazes, nos quais a mensagem tem de ser vista e apreendida rapidamente. Nos desenhos apurados de França, ele mescla uma imagem-ícone de Terra em Transe, de Glauber Rocha, representante máximo do Cinema Novo nacional _a lembrar, um dos produtos audiovisuais que mais criticamente aborda a política no Brasil_, cliques de manifestantes protestando contra a ditadura e vitimados pela violência policial e instantâneos da violência entre quatro paredes, com crianças já manejando armas de fogo. Luiz Telles novamente tem a narrativa como mola-mestra de seus trabalhos no vídeo Memória Contada de como João Batista Se Tornou o Curupira, que tem no folclore o fundamento de suas histórias. Narrado pelo próprio João Batista, exibe a transformação dele na figura lendária do Curupira, de madeixas avermelhadas e pés para trás. A confecção de um livro de artista que está intrincadamente ligado à narração confere uma dubiedade interessante e uma veiculação mais surpreendente. É como se o universo estudado por Câmara Cascudo e outros abrisse uma porta direta para um museu do século 21. Duas espécies de jogo norteiam as obras de Sandra Lopes e Jana, que têm exibição uma ao lado da outra. Lopes reproduziu em pintura as peças de um jogo da memória dos anos 70/80, com estilo próximo ao dos mass media e da publicidade. Por tais características, Memory Game se relaciona com pinturas anteriores de Lopes, como as que retratam numerosos códigos de barra, em uma paisagem de consumo inquietante. Jana, por sua vez, propôs a série de fotografias Jogo da Memória como “um desencontro do real”, frisa. Para alguns amigos e conhecidos, ela fez as perguntas “Como você se vê 40 anos atrás?” e “Como você se imagina daqui a 40 anos?”. O resultado é um sample fotográfico, no qual a artista mixa uma imagem da web de cada resposta, diferente da que a entrevistada imaginara e distinta também da que a própria Jana especulara. Andréia Reis, com sua série Gavetas, também vasculha suas lembranças para compor a série de fotografias que apresentou no Paço. Com variadas combinações, a gaveta, tomada pelo ângulo de cima, descortina mundos de outrora. Disquetes, álbuns de papel, fitas VHS e até DVDs remontam a algo não mais atuante. Se os armários de Reis são matéria-prima para a série dela, Adriana Conti Melo e Cecilia Walton têm na concretude do Paço das Artes um ponto de partida para suas respectivas obras. As pinturas “de bastidores” de Conti Melo capturam momentos prosaicos não registrados. Intimidade Coletiva faz uma incursão ao setor indicado em geral com o aviso “permitido apenas para os funcionários”. A tela com as figuras de uma vassoura, uma pá e uma cadeira cuja presença é incerta espelha a própria coluna de sustentação da construção que também é retratada no quadro. Além de tecnicamente ser chamativa, o trabalho ainda revela esse mundo à margem. Já Walton realiza Acesso Restrito, impressão dos caixilhos das janelas do Paço sobre papel. Com uma sutileza admirável, Walton acertou na forma de exibição, que dá ao observador uma dúvida sobre a origem daquelas formas regulares, que lembram uma retícula de Mondrian ou uma composição na linha construtivo-minimalista. Malu Saddi e Alice Freire criam vídeos intimamente ligados ao feminino. Duas exímias desenhistas _Freire faz mais trabalhos em preto e branco_, recorrem ao vídeo para formular questões particulares. Saddi faz uma performance com uma grande concha, de onde extrai um som que ecoa organicamente pelo espaço expositivo. Já Freire desenvolve Acesso, vídeo onde desenha sobre o próprio tórax, espalhando vigorosamente com uma caneta, portas e portas. O que estará do outro lado? Quase como uma projeção no espaço real, Freire desenha um poço, acompanhado de pedras que formam, durante o período da exposição, a abertura de um buraco virtual. Os caminhos labirínticos formados pelo som (no vídeo de Saddi) e pelo que não vemos, pelo ausente no desenho (no vídeo de Freire), se apoiam na experimentação. Fernanda Assumpção, criadora de uma das obras mais interessantes nas recentes edições da Anual da Faap – O Passado Já Não É Mais o Mesmo -, elaborou para a coletiva 63 Google Maps do Ateliê Fidalga até o Paço das Artes, que traz o universo pessoal da artista para o espaço institucional. Arquiteta de formação, Assumpção cria, por meio de frames do Google Maps, percursos que faz comumente _da sua casa ao Paço, do Paço ao Ateliê. As fotografias da tela do computador ganham comentários escritos à caneta, com indicações mais pessoais de lugares relevantes (o que se aproxima do que a artista já fez em Colisões). Paisagens mentais “A mente e a terra encontram-se em um processo constante de erosão: rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, ideias se decompõem em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos de razão”11 (Uma Sedimentação da Mente, Smithson) Carla Chaim, 26 anos, ganhadora do Prêmio Energias na Arte 2009, destinado a novos (diria novíssimos) artistas, tem dúvidas sobre como dispor Tua Gota de Bile, Tua Careta de Gozo ou de Dor no Escuro São Indiferentes ou Exercício para Construção e Fixação do Infinito no Espaço do Paço. O enquadramento das quatro partes de um desenho, semelhantes a uma paisagem de espaço sideral e com ecos de The Tripper, de Antonio Dias, não fica boa sobre cavaletes, tal qual a mesa de um ateliê. Eis que, depois de idas e vindas e inúmeras discussões, Exercício para Construção... é colocado diretamente no chão (depois, elevado poucos centímetros) e, por acaso, bem abaixo de uma das claraboias do Paço _espaço que já rendeu boas obras na história da instituição, como a feita por Aline Van Langendonck. Bingo. Mais um registro para fortalecer o caráter processual e de risco da mostra. Desde o começo de 2010, Chaim desenvolve a série unindo a ação de soprar bolhas de sabão mescladas a tinta. O papel que recebe o material das ações às vezes sofre interferências _como no caso, em que a artista fez espécie de diagramas a unir as estruturas circulares_ e, nesta obra, é preto, o que ajuda numa composição de tom mais “estelar”. Chaim ainda realiza obras em papel branco, de escritório _plantas técnicas descartadas pelo seu pai_ e com grafite esfumaçado. Em todos os trabalhos, o senso de experimentação é forte e, em âmbito visual, gera resultados diversos e interessantes. Durante o período de mudança das peças, Chaim incorpora Monitoramento para Idealização do Universo, que consiste em uma TV usada, colocada do lado dos desenhos, que capta em tempo real imagens do céu. Assim, a artista discute a sociedade vigiada e ainda tem a intenção de capturar o inapreensível. Roberto Fabra, outro egresso da coletiva Aluga-Se, também opta por um projeto de risco, Dias. Escolhe o jardim para inscrever na grama a frase “Os dias passam todos”. Se há uma eventual perda de visibilidade, o artista consegue avançar em caminhos diversos na sua poética, que já teve série de “grafites eletrônicos” e agora vai em direção de uma obra efêmera. As letras gravadas na grama se relacionam com o universo literário ao qual sempre se alimentou. Também arriscada a investida de Pedro Cappeletti, mais um trabalho da série Partidas. Seu desenho vem do rasgar do esparadrapo negro, construindo formas regulares, mas que, de perto, exibem resquícios da ação vigorosa. Se, na SP Arte, Cappeletti teve um guarda-corpo imenso, mas de pouca altura, no Paço o trabalho ganha verticalidade e uma maior explosão. Laura Gorski, pertinho dele, também não opta pela segurança _o que seria uma pintura mural, como fez em Aluga-Se e na SP Arte_ e produz módulos de nove desenhos com até cinco camadas de sobreposição, Série Palmeira Azul. O planejamento de uma pintura mural caiu por terra, e Gorski resolve agregar o circunstancial e o descontrolado na composição. Já no espaço expositivo, prefere incorporar vazios do branco do painel expositivo, o que acaba deixando mais aberta e incompleta, no bom sentido, a obra. Também próximos, o corrimento das pinturas de Jofer, que na Faap era conhecido por seus vídeos, parece experimentar uma sensação liberadora, algo similar ao conjunto de cinco fotografias produzido por Bruna Coelho na sua primeira participação em coletivas de artes visuais. Deolinda Aguiar também segue forte em sua pesquisa plástica relacionando os campos das artes plásticas e da arquitetura, criando Corredor Administrativo. Lâminas de MDF simulam tal corredor, que está bem em frente ao painel onde a obra foi colocada, em um comentário irônico sobre a burocracia institucional, sem deixar de ser um trabalho que cruza as linguagens da fotografia, do objeto e da escultura. E, se as paisagens subjetivas são responsáveis por belas obras em Ateliê Fidalga no Paço das Artes, Marcia de Moraes lança dados processuais-biográficos _seus dois desenhos incluem um sem título, logo quando chegou ao Fidalga, ainda tímido, e outro mais desenvolto, de 2010_ em sua participação. The Blue Background Turns into Water and Air, título tirado de conto de Virginia Woolf, o mais recente desenho, evidencia a habilidade da artista em criar composições de forte trabalho cromático e invejável independência na construção de formas. Para além das três dimensões “Sou a favor da arte dos ursinhos de pelúcia e pistolas e coelhos decapitados, guarda-chuvas explodidos, camas violadas, cadeiras com as pernas quebradas, árvores em chamas, tocos de bombinhas, ossos de galinha, ossos de pombo e caixas com gente dormindo dentro.”12 (Claes Oldenburg, Sou a Favor de uma Arte...) Verbo, de Felippe Moraes, quase foi literalmente pelos ares quando o forte ar-condicionado da noite de abertura de Ateliê Fidalga no Paço das Artes “ativou” a obra. De caráter espiritual _e longe de ser apenas religioso_, a instalação composta por páginas em branco que recebem a palavra Deus, retirada numerosas vezes de uma Bíblia disposta em frente a ela, é quase um mantra que tem nexos com a serialização da arte contemporânea. Do seu lado, Ana Zveibil tem outra obra delicada, Perspectivas do Vazio, na qual a artista, por meio de fotografias de ambientes impessoais, pela repetição, discute o anonimato da vida contemporânea de modo incisivo. O conjunto ganha mais força ainda quando sabe-se que um dos registros foi feito em um antigo campo de concentração. Exposição diversa, a coletiva, por outro lado, guarda outros pontos de distensão, em especial por trabalhos que lidam com o tridimensional, mas de forma expandida e não-usual. Um Limite Frágil, de Gabriel Centurion, escultura feita de fita adesiva, dialoga com o universo pop e fantástico exibido pelo artista anteriormente, derivado da televisão, do grafite e dos quadrinhos _como na fotografia Ditostyletransportation, na qual o artista conjuga David Lynch e arte de rua. Laura Mazzela quebra a linearidade das suas pinturas que têm forte inspiração na luz e oferece ao público uma aparelhagem, uma “lanterna mágica” de sua autoria, simples: um tipo de luneta, em um conjunto de três peças, no qual são reveladas imagens caleidoscópicas (mas que não tem a ver com pedras caleidoscópicas, e sim com cromos de pinturas realizadas pela artista). E Anne Cartault D’Olive, sempre irônica, cria a escultura Protótipo para um Centro Cultural Mole, uma espécie de museu pautado pela maciez e pela volatilidade material. É como se D’Olive flexibilizasse a fórceps as estruturas rígidas do sistema de arte, operação parecida com a qual a artista comentara em obras como Boias, feitas para o 61º Salão de Abril, em Fortaleza, em 2010, e na sua individual no Ateliê 397, em abril de 2009. A artista, tal qual os outros 59 amigos de Fidalga, não deixa de provocar e de experimentar, vivazmente, a liberdade partilhada pela trupe. “[Schiller] afirma que o homem só é homem ao jogar, e que somente no jogar é livre. E, como tal, um verdadeiro homem! A arte entendida, portanto, em sentido lúdico: esta é a expressão mais radical de liberdade humana.”13 (Joseph Beuys, A Revolução Somos Nós) * Paço das Artes Bem-vindos ao Paço das Artes, um local de difusão, fomento e produção cultural. No ano de 2010, o Paço das Artes comemora seus 40 anos de existência e revela sua importância enquanto instituição ao longo dessas quatro décadas. Construído em um terreno de formação geográfica indefinida e ocupando uma arquitetura vigorosa e formal, de concreto, ferro, madeira e vidro, o Paço das Artes se desdobra como um cubo de ensaio que abriga exposições, mostras, hiatos e subjetividades. Entre rompantes de ocupação e desocupação, apresenta-se como uma fenda, um espaço entre o museu e a galeria, entre o galpão e o porão. O Paço das Artes possui um grande espaço físico para promover a pesquisa e a exposição do que historicamente intitula-se arte contemporânea. Operando entre a existência e a inexistência, entre parênteses, entre vazios, promovendo a experimentação, o hibridismo, a interdisciplinaridade e o vasto campo das linguagens e suportes contemporâneos. Atemporal, multimídia, plácido e inabalável, o Paço das Artes chega aos seus 40 anos dando os seus passos rumos à construção de uma cultura contemporânea das artes, malograda ou não, nova ou não. 1. FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de Artistas – Anos 60/70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 275 2. FERREIRA, idem, p. 279 3. FERREIRA, ibidem, p. 183 4. ICAZA e outros, ALEJANDRA. Retratos e Pompas de Jabón. Salamanca, Fundación Municipal Salamanca, 2006, p. 33 5. FERREIRA, idem, p. 226 6. DERDYK, Edith. Linha do Horizonte – Por uma Poética do Ato Criador. São Paulo, Escuta, 2001, p. 67 7. FERREIRA, ibidem, p. 226 8. STORNI, Alfonsina. Antología Poética. Buenos Aires, Losada, 2004, p. 101 9. SOULAGES, François. Estética da Fotografia – Perda e Permanência. São Paulo, Senac SP, 2010, p. 180 10. MAH, Sergio (org.). Años 70 – Fotografía y Vida Cotidiana. Madri, La Fabrica, 2009, p. 23 11. FERREIRA, idem, p. 182 12. FERREIRA, ibidem, p. 71 13. FERREIRA, idem, p. 305 Agradecimentos neste primeiro texto institucional a Albano Afonso, Sandra Cinto, os 60 artistas do Ateliê Fidalga, Paulo Reis, Ana Pinheiro, Camila Molina, Fernanda Lopes, Alexandre Roesler, Daniel Roesler, Eduardo Leme, Izabel Pinheiro, Ricardo Ohtake, Marcy Junqueira, Rodrigo Ohtake, Hena Lee, Bruno Yutaka Saito, Gabriela Longman, Lucas Neves, Danielle Nastari, Denise Gadelha, Sofia Borges, Naiah Mendonça, Leo Caobelli, Manoel Veiga, Paulo Almeida, Aline Van Langendonck, Priscila Arantes, Daniela Bousso, Agnaldo Farias, Têra Queiroz, Thais Rivitti, Victoria Gioia, Rina Gioia e Mario Gioia (19322008)