Anais do XX Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178
Anais do V Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420
22 e 23 de setembro de 2015
MÍSTICA E CRÍTICA SOCIAL NA OBRA “SÉRIE BÍBLICA” DE
PORTINARI
Arlindo José Vicente Junior
Dra. Ceci Maria Costa Baptista Mariani
Faculdade de Teologia
CCHSA
[email protected]
Grupo: Religião, Linguagem e Cultura / Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião
CCSHA
[email protected]
Resumo: O tema deste trabalho de Iniciação Científica se localiza no entrecruzamento do conceito de
mística de Velasco e na leitura místico-teológica da
obra “O massacre dos inocentes” (1943) do pintor
brasileiro Cândido Portinari (1903-1962), de sua Série Bíblica de painéis que retratam cenas do Antigo e
do Novo Testamento. O objetivo é estudar o fundamento místico expresso na obra de arte que evidencia o seu potencial crítico.
Uma obra com a temática de denúncia das injustiças
que causam o sofrimento humano e de crítica social
pode despertar no espectador, o sentimento de amor
e respeito, convidando-os ao compromisso ético contra as possíveis injustiças ali representadas. Diante
de uma tela de tema plúmbeo e gélido, transpõem-se
os limites do quadro, que não chama a atenção pela
beleza, mas que desperta o sentimento de repúdio,
causando a nossa inquietação diante de tal injustiça
possivelmente cometida [1].
Palavras-chave: mística, sofrimento, Portinari.
Área do Conhecimento: Ciências Humanas – Teologia – CNPq.
1. INTRODUÇÃO
Em nossos dias que são marcados por uma tensão
entre descrença e grande proliferação de novos movimentos religiosos, como afirma o teólogo espanhol
Juan Martín Velasco (1934 - ), tem emergido numerosas formas de busca espiritual que revelam traços
comuns com os que têm tornado presentes as tradições místicas. Isso faz com que os estudiosos tenham como principal problema pensar a variedade
de fenômenos denominados “fenômenos místicos”,
procurando discernir as formas religiosas e não religiosas de mística.
Faremos aqui, o entrecruzamento do conceito de
mística de Juan M. Velasco e a leitura místicoteológica da obra “O massacre dos inocentes”
(1943) do pintor brasileiro Cândido Portinari (1903-
1962), de sua Série Bíblica de painéis que retratam
cenas do Antigo e do Novo Testamento. O objetivo é
estudar o fundamento místico expresso na obra de
arte que evidencia o seu potencial crítico. A arte pode
assumir também o caráter de denunciar as injustiças
que causam o sofrimento humano e de crítica social.
Uma obra com esta temática pode despertar no espectador, o sentimento de amor e respeito ao próximo, convidando-os ao compromisso ético contra as
possíveis injustiças ali representadas. Diante de uma
tela de tema plúmbeo e gélido, seus observadores
são impelidos a perguntar qual seria o agente causador daquele sofrimento humano expresso na obra.
Transpõem-se os limites do quadro, que não chama
a atenção pela beleza, mas que desperta o sentimento de repúdio, causando a nossa inquietação diante
de tal injustiça possivelmente cometida.
“O massacre dos inocentes” oferece uma representação artística de uma mãe de braços abertos –
que clama por ajuda – com seu filho morto no colo,
ladeado de seres humanos feridos. Não há como não
se comover diante de tal representação. Não há como não ser despertado a um sentimento de indignação e compaixão diante da obra.
2. CÂNDIDO PORTINARI: CRÍTICA E MÍSTICA EM
SEU “O MASSACRE DOS INOCENTES”
Atentos os sentimentos que o quadro pode despertar em seu espectador, oferecemos aqui uma reflexão crítica para a obra de Cândido Portinari (19031962), “O massacre dos inocentes”. Um olhar a partir
da ótica da espiritualidade, da mística e da crítica
social que é peculiar ao estilo do pintor brasileiro, que
a tela pode nos revelar em sua composição. Salientamos que não é a nossa preocupação neste trabalho, aos detalhes técnicos e de feitio da obra, mas
aquilo que ela pode nos oferecer como reflexão a
partir de sua espiritualidade, mística e crítica social a
partir do momento em que o espectador a experimenta.
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Com cores gélidas e transmitindo um clima
plúmbeo, oferece um convite à introspecção e à reflexão diante o sofrimento humano ali retratado. “O
massacre dos inocentes” é uma obra de grandes
dimensões (150x150 cm) e atualmente faz parte da
coleção do MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) concluída em 1943, fazendo parte
da Série Bíblica – uma série de obras feitas pelo artista plástico brasileiro com a temática bíblica do Antigo e do Novo Testamento – e acabam por revelar
em seus traços, a influência que ele teve do cubismo
de Pablo Picasso, da época que morou na Europa,
ao entrar em contato com o quadro Guernica.
“O massacre dos inocentes” faz referência à
passagem bíblica do Novo Testamento relatada no
Evangelho de Mateus 2, 16-18; único dos evangelhos
a narrar este episódio tão conhecido entre a Tradição
cristã e retratado inúmeras vezes em pinturas, esculturas, vitrais e mosaicos espalhados pelas Igrejas e
museus no mundo todo. O rei despótico Herodes (73
a.C. – 4 d.C.), de acordo com o relato bíblico, ficando
furioso ao ser enganado pelos magos, manda matar
todos os meninos de Belém e de todo o território ao
redor, de dois anos para baixo para que entre os
mortos esteja Jesus Cristo, que acabara de nascer.
Ainda de acordo com o relato mateano, o autor cita o
episódio como cumprimento da profecia presente no
livro do profeta Jeremias: “Ouviu-se um grito em
Ramá, choro e grande lamento: é Raquel que chora
seus filhos, e não quer ser consolada, porque eles
não existem mais” (Mt 2, 18).
3 A OBRA DE ARTE COMO DENÚNCIA DO
SOFRIMENTO HUMANO: UMA OBRA PARA
DESPERTAR A COMPAIXÃO HUMANA
Quando olhamos para a tela de grandes dimensões “O massacre dos inocentes”, encontramos a
predominância de tons cinzentos: cinza, preto e
branco, criando uma atmosfera triste e introspectiva.
Salta a nossos olhos uma mulher sentada no chão,
com uma criança morta ao colo e cercada por partes
de crianças mortas por todo lado da tela. Essa mulher pode ser Raquel, presente na profecia de Jeremias, que chora por seus filhos e que não quer ser
consolada porque eles não existem mais (cf. Mt
2,18). Essa mulher que recebe destaque na obra, é
semelhante a Pietá, um tema da arte cristã retratada
em pinturas, vitrais e esculturas que representa a
Virgem Maria com o Filho Jesus morto nos braços
logo após a crucificação, famosa na representação
na forma de escultura em mármore do século XV de
Michelângelo (1475-1564), presente na Basílica de
São Pedro, Roma. Em nossa opinião, existe a forma
de expressar o sofrimento humano diante de tamanha maldade que é a morte de crianças inocentes,
como nos diz o relado evangélico, como se fosse um
“gênero literário”.
Assim, Portinari utiliza-se deste tema da arte cristã para expressar aquilo que diz a narrativa evangélica e ao mesmo tempo revelando a dor, o sofrimento,
o clamor por justiça de seu povo como tentativa de
despertar a compaixão humana. Mas, há que se notar que o gesto da mulher que recebe destaque na
obra portinaresca, diferente de outras obras que retratam o mesmo episódio bíblico, parece clamar por
justiça ao ser retratada de braços abertos ao alto e
pela expressão de seus lábios revelando uma expressão de desespero. O artista brasileiro de Brodowski captou a dimensão do sofrimento humano
que não aponta somente para a contemplação inerte
de quem a vê, mas que, ao apontar para a crítica
social que há na tela, revela que ele “era um crítico
do Brasil, um acusador da injustiça social entre nós”
[2], ao mesmo tempo escondida e revelada, faz uma
convite à compaixão. A obra de arte, que no caso do
enfoque deste texto não deixa de ser uma narração,
pode-nos servir como denúncia, como grito de protesto para salvar a humanidade do esquecimento das
atrocidades cometidas pela humanidade à própria
humanidade. A narrativa destes fatos, transportados
numa tela, assume a missão de condicional para que
alimente o nosso senso de justiça e de solidariedade
diante do sofrimento humano, para evitar que tais
atrocidades voltem a acontecer no futuro.
“O massacre dos inocentes” nos revela um caráter de espiritualidade ao fazer olhar para as nossas
próprias ações, quando nos coloca em contato com a
experiência humana do sofrimento, reconhecendonos pequenos diante dos desafios que temos a enfrentar no dia a dia. Algo que é intrínseco à vida de
Cândido Portinari: “no fundo do seu ser é uma criatura humilde diante do mistério e das coisas maiores”
[3].
A tela desperta em nós os sentimentos profundos, principalmente o de compaixão para com a história daqueles que sofrem. Os pincéis, as tintas, os
painéis de proporções gigantescas foram a voz daqueles que não tinha voz e nem vez na sociedade.
Ao pintar a vida de seu povo simples e sofrido de sua
terra natal, de uma cidadezinha de interior chamada
Brodowski-SP, como fez na maioria de sua vasta
obra que se transforma em canal para uma crítica
social, captando-a com a sua experiência aquilo que
sentiu a respeito de sua gente e ao traduzir todo este
sentimento em arte, Portinari se mostrou um artista
cuja obra tem uma dimensão mística. Esta caracte-
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rística portinariana que destacamos vai ao encontro
do pensamento de Juan Martín Velasco quando afirma que existe uma atualidade mística que tem sede
de experiência espiritual diante de uma crise eminente das religiões tradicionais.
Cândido Portinari, um homem que deixou de
pensar em Deus, ou “um ateu saudosista dos tempos
de crença” [4], mas que revela experiências místicas
ao traduzir o sofrimento do seu povo, o seu dia a dia
de gente simples por meio da arte. É uma obra de
temática religiosa ao expressar algum sentimento
humano profundo. A mística permite-nos descobrir o
que há de mais humano em nós mesmos ao redescobrir as dimensões mais profundas do ser humano:
o amor desinteressado, a compaixão, a atenção, a
hospitalidade, o cuidado, a delicadeza, a paciência e
a abertura ao outro que está além de nós mesmos,
que conseguimos atingir por causa do despojamento
que temos de ter de nós mesmos. O mesmo caminho da mística como aproximação do mistério, Daquele que não cabe nos limites da nossa razão, que
é Inefável.
Antonio Callado, fez do “Retrato de Portinari” um
esboço biográfico encomendado pelo Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, revela em seu livrodiálogo com Portinari, que o pintor de Brodowski
simplesmente deixou de pensar em Deus quando
mudou-se para Paris e quando começara a conhecer
o universo, sem deixar de lado a importância da religião. Em seus diálogos com o autor de sua biografia
chega a afirmar que: “até hoje não gosto de ouvir
falar mal da religião (...) Acho que o sujeito que tem
uma religião é muito mais feliz” [5]. A arte então assume o papel da religião na tarefa de religar o homem ao Transcendente: “É como se ele achasse que
a arte era um meio de ligar o homem ao sobrenatural
e que quando o homem deixa de crer no sobrenatural não precisa mais da arte. Esta ficaria assim como
uma ponte sobre um rio que tivesse uma só margem”
[4].
Portinari traduziu com a sua arte moderna, a crítica social ao retratar sua gente humilde, expressando em suas telas aquilo que há de mais humano da
sua gente. “A arte moderna é também uma rebelião
das massas. Inauguraram os artistas modernos uma
nova ternura pela humanidade – fosse ela retirante,
flagelada, magra, desesperada, defeituosa” [6]. E ao
utilizar-se da arte moderna como expressão da “humanidade de um ser humano”, revelou com a sua
experiência o que existe de mais humano no próprio
homem retratado, e pode fazer uma relação com a
Transcendência. Ao retratar a vida sofrida de sua
gente, é um místico de olhos abertos à injustiça e ao
sofrimento atual e os místicos refletem as situações
históricas em que vivem. Para o pintor de Brodowski,
“seu país é uma preocupação constante. Não se
preocupa com a política e sim com os homens, não
com a ideologia e sim com o comportamento. A ineficiência o apavora tanto quanto a má pintura” [7].
Em nossa opinião, a obra portinaresca traduz
uma mística da compaixão pelas vítimas de seu povo, quando Portinari toma a decisão de retornar ao
Brasil lá em Paris e decide voltar pintar a vida de sua
gente simples, humilde, sofrida, as vidas marcadas
pelas mais variadas formas de injustiça: “daqui fiquei
vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodowski
como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada.
(...) Vou pintar aquela gente com aquela roupa e
aquela cor” [8].
Se a experiência é o fundamento da mística, Portinari
experimentou pessoalmente a vida de sua gente,
com os seus dramas e dificuldades e, por isso, pôde
revelar uma crítica através de sua arte quando retratou em suas telas a vida sofrida de seu povo.
4. CONCLUSÃO
O fenomenólogo da religião Juan Martín Velasco nos faz pensar sobre a mística de nossos dias
com suas novas formas de expressão do religioso
originada pela sede de experiência espiritual em
meio à crise das religiões existentes. Como um protesto silencioso contra a pobreza espiritual das Igrejas e das religiões estabelecidas que acabam por
oferecer ao povo apenas suas doutrinas, normas,
ritos, ocupando o lugar de Deus em vez de remeter a
Ele. Há um padecimento por parte do povo de experiências de Deus e com Deus. Há um grito que clama: mais mística menos religião ou ao menos, para
que haja mais religião com a mística, para que possibilite o acesso ao Mistério, que permita facilmente o
acesso a Deus.
Ao observarmos as obras do pintor brasileiro
Cândido Portinari, munidos acerca dos detalhes biográficos de sua vida, que captou e expressou a vida
de seu povo simples e sofrido por meio da arte, percebemos que existem alguns pontos de intersecção
entre a mística, a espiritualidade, a denúncia do sofrimento humano e arte portinariana. O fazer artístico
de Portinari, principalmente a partir da tela aqui analisada “O massacre dos inocentes”, funciona como
uma janela para olharmos para a mística que há dentro de nós mesmos, para o “Mistério Santo que habita entre nós”. Há um redescobrir pela obra de arte,
dos sentimentos humanos que nos habitam. Também uma oportunidade para nos despertar aos sentimentos que nos pertencem e nos faz humanos,
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principalmente, o sentimento de compaixão que não
pode deixar-nos indiferentes diante do sofrimento e
que, portanto, nos impele à ação.
Junto com o processo hodierno de desdivinização da sociedade ocorre também o processo de desumanização do ser humano. Tendo sido criado à
imagem e semelhança de Deus, o homem carece
em sua espiritualidade do acesso a Deus e pode encontrar na mística, o caminho de volta ao Transcendente, de sua relação com o Tu Eterno. Sentindo
saudades da época de crença, o homem pode encontrar artistas, como é o caso de Cândido Portinari,
que nos permitam fazer o caminho de volta, seja pelo
relato de uma experiência mística, seja pela simples
observação de uma tela, cujo título poderia nos causar ojeriza, mas que nos coloca em contato com
aquilo que já existia em nós mesmos.
AGRADECIMENTOS
À Pontifícia Universidade Católica de Campinas, como a entidade financiadora desta Pesquisa de Iniciação Científica (na modalidade FAPIC/Reitoria) junto à
PROPESQ. Ao Grupo de Pesquisa “Religião, Linguagem e Cultura”. Um agradecimento especial,
dirijo à Dra. Ceci Maria Costa Baptista Mariani pela
confiança e oportunidade de integrar a sua Pesquisa
junto à PUC Campinas, permitindo com que fizéssemos esse caminho de estudo com a sua orientação,
atenção, dedicação e paciência.
REFERÊNCIAS
[1] Pesquisa financiada pelo Programa de Iniciação Científica da PUC-Campinas (FAPIC/Reitoria)
[2] CALLADO, Antonio. Retrato de Portinari. 3 ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 80
[3] CALLADO, 2003, p. 169
[4] CALLADO, 2003, p. 25
[5] CALLADO, 2003, p. 122
[6] CALLADO, 2003, p. 92
[7] CALLADO, 2003, p. 162
[8] CALLADO, 2003, p. 189
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 7ª edição. São Paulo: Paulus,
2011
MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS
CHATEAUBRIAND. O massacre dos inocentes (Série Bíblica). Cândido Portinari. Disponível em
<http://masp.art.br/masp2010/acervo_detalheobra.php
?id=434>. Acesso em: 22 jun. 2015.
PROJETO PORTINARI. O massacre dos inocentes (Série
Bíblica). Disponível em <
http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/2743/detalh
es>. Acesso em: 20 jun. 2015.
VELASCO, Juan Martín. A mística e o mistério hoje. In:
Revista On-Line do Instituto Humanitas Unisinos. n.
385. Ano XI., 19 dez. 2011. Disponível em <
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=co
m_content&view=article&id=4279&secao=385>.
Acesso em: 14 mai. 2015.
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