Júlio Carrilho Arquitectura e Ambiente: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável. O caso da Ilha do Ibo Tese de Doutoramento Ilha do Ibo. Afloramento coralino, povoado por vegetação - foto do candidato. XVIII ciclo: Novembre 2002 - Ottobre 2005 Università degli Studi di Roma "La Sapienza" Tutor: Prof. Arch. Salvatore Dierna Coordinatore: Prof. Arch. Giorgio Peguiron Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável. O caso da Ilha do Ibo Tese de Doutoramento XVIII ciclo: Novembro 2002 - Outubro 2005 Università degli Studi di Roma "La Sapienza" Tutor: Prof. Arch. Salvatore Dierna Coordenador: Prof. Arch. Giorgio Peguiron Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Índice II - V ÍNDICE AGRADECIMENTOS VI PREMISSA 7 - Introdução ao contexto teórico. 7 - Enquadramento e relevância do tema para o país. 8 INTRODUÇÃO 11 - Motivações e justificação; 11 - Âmbito, objecto, objectivos gerais e específicos da pesquisa; 12 - Metodologia, instrumentos e processo de trabalho 14 I PARTE Contexto teórico 17 1 Desenvolvimento Sustentável 17 1.1 Um conceito multivalente para um fenómeno complexo e global. 18 1.2 Principais marcos históricos 22 1.3 Dimensões e princípios da sustentabilidade e do projecto sustentável. 27 2 Arquitectura, Território e Ambiente 36 2.1 A arquitectura e a consciência ecológica e dos fenómenos ambientais. 37 2.2 Novos enfoques da arquitectura. 40 2.3 Recursos locais, sol, vento e tratamento adequado dos dejectos como factores relevantes de sustentabilidade. 45 3 As pequenas ilhas, campo específico de intervenção e de pesquisa. 49 3.1 A solidariedade na organização e na partilha de preocupações e saberes. 50 3.2 Desafios do desenvolvimento sustentável nas pequenas ilhas. 53 3.3 Iniciativas de preservação ambiental e do edificado. Referências nacionais e internacionais de abordagens e instrumentos de gestão, em contexto insular. 57 II Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Índice II PARTE Enquadramento Regional caso de estudo 63 4 O Arquipélago das Quirimbas no contexto Leste Africano. 63 4.1 Caracterização e iconografia da localização do Arquipélago. 63 4.2 Elementos de cultura, ecologia e ambiente. 65 4.3 Contexto ecológico regional e nacional. 69 5 Limites e potencialidades de intervenção. 74 5.1 O contexto administrativo e legal. 74 5.2 Os actuais interesses de investimento. 78 5.3 O Plano Nacional das Quirimbas (PNQ). 81 5.4 O turismo como oportunidade e perigo. Implicações gerais na Província de Cabo Delgado. 86 6 O Ibo no contexto das Quirimbas. 90 6.1 6.2 Acesso, localização, caracterização física e população da ilha bo A centralidade da Ilha do Ibo no arquipélago das Quirimbas. 90 93 6.3 A ilha do Ibo como repositório de saber local. III PARTE O edificado: arquitectura e Identidade da vila do Ibo 100 7 A “vila de coral e telha”: lugar, desenho e carácter. 101 7.1 Referências cronológicas: factores de destruição e de decadência e impulsos de reconstrução e desenvolvimento; 101 7.2 Uma interpretação dos principais elementos estruturantes do desenho geral da “vila de coral e telha”. 102 7.3 Tecidos urbanos: elementos da iconografia da ilha. O assentamento formal e o informal e o estado geral de conservação. 107 8 A singularidade do edificado 113 8.1 Uma hipótese de caracterização tipológica: a matriz swahili e as contribuições exógenas. 114 8.2 Materiais, tecnologias, e elementos de construção. A varanda: elemento específico característico? 119 8.4 Um património a valorizar? A ilha do Ibo e a Ilha de Moçambique: conexões e desconexões. 127 III 97 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Índice 9 Sustentabilidade: critérios para um novo ciclo de desenvolvimento 131 9.1 O turismo como oportunidade de um novo ciclo de florescimento da a ilha. 131 9.2 Uma nova atitude perante o património cultural: a percepção dos habitantes e a necessidade de novas linhas de abordagem para a sustentabilidade das intervenções. 135 9.3 Contribuições para a preservação, requalificação, manutenção e restauro do edificado. 129 CONCLUSÕES I. Reabilitação, preservação e restauro do edificado na ilha do Ibo: para uma política de intervenção escalonada e faseada, baseada em princípios de sustentabilidade e aderência comunitária. 146 146 II. Para a abertura de novas linhas de pesquisa. 148 III. Para uma política de cooperação estimulante e duradoura. 149 ICONOGRAFIA A - Enquadramento territorial da ilha do Ibo, caracterização da estrutura do edificado, levantamento e imagens do ambiente urbano. 153 B - Arquitectura sem arquitecto: a zona formal. 167 C - Arquitectura sem arquitecto: a zona informal. 181 D - Elementos para uma proposta de intervenção. 195 Bibliografia IV 206 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Índice ANEXOS 215 ANEXO I Ibo. A casa e o tempo. (Acompanhado de carta do Ministro do Turismo da República de Moçambique). 216 ANEXO II Levantamento de dados e entrevistas a moradores da zona informal da Vila do Ibo. 220 ANEXO III Lei do Turismo, de Moçambique. 258 ANEXO IV Lei do Património Cultural, de Moçambique. 264 ANEXO V Lei e Plano de Maneio do Parque Nacional das Quirimbas (PNQ). 270 ANEXO VI A Toponímia das Ilhas Quirimba: uma questão a regularizar. 274 ANEXO VII Quadro cronológico dos principais factos históricos com impacto no edificado da vila do Ibo. 278 ANEXO VIII A experiência de gestão privada da ilha de Chumbe, na Tanzânia. 287 ANEXO IX Declaração de Berlim sobre Diversidade Biológica e Turismo Sustentável. 292 ANEXO X Estratégia de Acção das Maurícias para a Ulterior Implementação do Programa de Acção (de Barbados) para o Desenvolvimento Sustentável dos Pequenos Estados Insulares (Maurícias 2005). 299 ANEXO XI Carta de Lanzarote, para um Turismo Sustentável. 328 ANEXO XII Código Mundial de Ética do Turismo 335 ANEXO XIII Contribuição para normação da gestão e intervenção sobre o edificado: Proposta Preliminar de Regulamento do Plano de Desenvolvimento da Ilha do Ibo. 346 ANEXO XIV Elementos de clima das terras firmes do litoral, adjacentes às Ilhas Quirimbas, e da Iha do Ibo 364 V Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável. O caso da Ilha do Ibo. Agradecimentos. Agradecimentos Ao Professor José Forjaz, por me ter proporcionado a oportunidade de elevar os meus conhecimentos e me ter encaminhado com firmeza nos momentos de dúvida. Ao Professor Salvatore Dierna, pelos ensinamentos de grande valia e pela confiança que em mim instilou no processo de elaboração desta tese. Também o meu reconhecimento pela cordialidade com que sempre me atendeu. Ao Professor Sandro Bruschi, que me deu o prazer da sua convivência fecunda, e me proporcionou os elementos e o aconselhamento para consolidar o meu empenho e convicção quanto ao tema e ao processo de pesquisa em que me envolvi. À professora Maria Spina, pela sua preciosa ajuda e pelas abordagens criativas de que beneficiei sempre que solicitei o seu aconselhamento. Aos Doutores Arquitectos Cláudio Di Cursio e Francesco Di Nicola, que me deram o prazer da sua amizade, bem como o seu apoio, mesmo em momentos de grande pressão do seu trabalho. Ao Professor Carlos Lopes Bento, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, que me deu a oportunidade de aprender da sua longa experiência e conhecimentos de pesquisa, em relação ao caso de estudo de que me ocupo, e me facilitou a consulta aos arquivos da Sociedade de Geografia de Lisboa. Ao meu colega de trabalho Arquitecto Luís Lage, com quem pude partilhar preocupações e alegrias, tornando menos duro o quotidiano de exigências que o trabalho impunha. Aos meus alunos, alguns dos quais são hoje colegas de profissão e amigos, que me apoiaram na elaboração da informação, e cuja juventude e convivência me alentou: referência particular aos arquitectos Chivite Wate, Júlio Pereira, Roberto João, e o licenciando Adérito Wetela. A todos os que me proporcionaram preciosas informações para a pesquisa, seja em Pemba, seja no Ibo, permitindo-me enriquecer o acervo de informação com testemunhos vividos. À minha mulher, Fernanda Machungo e aos meus filhos André, Ntanzi e Taíla, a quem dedico este trabalho, o meu indizível obrigado, por tudo que me deram como encorajamento e que não pude ainda retribuir. Maputo, 30 de Novembro de 2005. IV Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Premissa PREMISSA O contexto teórico Embora as urgências ditadas pelos imperativos de crescimento económico nos países desenvolvidos e a pobreza cada vez mais acentuada nos países com baixos níveis de rendimento continuem, por vezes, a agir como factores desviantes no processo de consideração das problemáticas ambientais nas políticas de desenvolvimento, a verdade é que estas problemáticas começam a permear de uma forma sempre mais profunda o pensamento e as estratégias de elevação do bem-estar das comunidades, dos países e da humanidade em geral. Hoje já não é considerada completa, ou pelo menos séria, qualquer abordagem que omita o tratamento das temáticas ambientais em qualquer disciplina em que a actividade antrópica seja um dos seus traços principais. E não é só nos meios académicos, ou nas organizações e nos fora nacionais e internacionais que a necessidade e a consciência da preservação e conservação ambiental se coloca. Jornais, revistas, folhetos, inúmeros endereços da Internet dedicam artigos reflexões e chamadas de atenção para estas temáticas. Apesar desta elevação geral da consciência ambiental, que consiste em permear as estratégias de melhoria do bem-estar com as temáticas da eco-compatibilidade e da preservação ambiental, dos ecossistemas e da biodiversidade, ainda se verificam reticências, dúvidas e contradições no âmbito da acção política e no do desenvolvimento. Não são raros os conflitos de interesse que traduzem mesmo, ao nível político e empresarial, uma consciência apenas epidérmica, ou de conveniência, quanto às ameaças derivadas da degradação ambiental global, e que resulta nomeadamente do consumo excessivo, desregrado, desigual dos recursos naturais do planeta. Estas dissonâncias são extremamente perigosas para a correcta conservação do potencial de recursos mundiais, regionais e nacionais. Elas são, por vezes, justificadas apenas pela instrumentalização de interesses nacionais conjunturais e constituem factor de bloqueio ou de retardamento da consolidação da consciência sobre os limites do desenvolvimento. Exemplos desta situação de dissonância são, a nível internacional e pela negativa, as dificuldades de acordo para a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto ou, inversamente e pela positiva, a dedicação da Exposição Universal de 2005 ao tema da inovação tecnológica para a abordagem da solução dos problemas ecológicos do nosso planeta; e, ao nível de muitos dos países em vias de desenvolvimento, a afirmação, pelos governos, dos valores ambientais e da biodiversidade, 7 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Premissa ao mesmo tempo que se deseja, e até por vezes se argumenta falaciosamente, sobre a necessidade ou mesmo a inevitabilidade da presença de problemas ambientais ligados à industrialização como indicador do seu percurso na senda do desenvolvimento. Teoricamente está relativamente assumido entre os especialistas do ambiente que o impacto negativo da actividade antrópica sobre a Terra tem um carácter global e deve ser analisado através de abordagens científicas especialmente desenhadas para tal. De facto como nos diz Salvatore Dierna “A crise ambiental do planeta caracteriza a nossa época e só é reversível se ela for tratada pela raiz, através da activação de políticas e estratégias globais. Os principais problemas a enfrentar são os dos desequilíbrios sociais e da desigualdade de recursos entre os povos e, prioritariamente, entre povos do Norte e do Sul do mundo, mas vistos com referência a processos de desenvolvimento cumulativos e difusos a diversos níveis, bem como a partir de uma responsabilidade assumida globalmente. Fazem parte deste cenário os grandes acontecimentos atinentes ao desequilíbrio e degradação ambiental, dentre os quais se podem destacar a poluição geral do ar, da água e do solo, de que derivam, como consequência, o “buraco do ozono” ou as “chuvas ácidas”, os processos de desertificação em curso, a contracção das reservas hídricas e energéticas. Mas também faz parte deste quadro o desenvolvimento não sustentável do habitat humano o qual é, em grande, medida a causa daqueles acontecimentos.”1 Enquadramento e relevância do tema para o país Partindo da consideração da arquitectura como processo e objecto da interacção dos seres humanos dentro do e com o ambiente, num contexto cultural específico, tomamos a discussão do tema Arquitectura e ambiente como quadro de referência para a análise do edificado e para contribuir para a abertura de linhas de intervenção sustentável no âmbito arquitectónico e territorial no contexto socio-económico e cultural bivalente da ilha do Ibo. Nesta ilha localizada no Norte de Moçambique, coexistem uma população autóctone vivendo em situação de grande pobreza, e existe um património edificado formal rico, desocupado ou em degradação, cujo inegável valor arquitectónico e cultural deve ser analisado e demonstrado, como primeiro passo para se assumir a necessidade da sua preservação. A partir desta verificação e estudos poder-se-ão abrir linhas de abordagem propositivas que 1 Dierna, Salvatore, Intervenções ecologicamente sustentáveis de formação e transformação de habitat, documento sobre Requalificação da arquitectura moderna, elaborado no quadro do Segundo Curso de actualização sobre reabilitação do património arquitectónico, Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da UEM, Maputo, 2004, ponto 2. 8 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Premissa contribuam para uma melhor gestão, mais fundamentada e adequada, do edificado e do ambiente natural e cultural em que ele se insere. Cabe citar, neste âmbito, o Ministro do Turismo do Governo moçambicano que, a propósito da publicação com o título “Ibo. A casa e o tempo”2, explicita: “Do ponto de vista da área que dirijo é pertinente referir que o livro fornece matéria abundante que poderá ser utilizada no quadro da acção de divulgação turística, acrescentando elementos de mais-valia de um destino turístico que começa a ser importante, as Ilhas Quirimbas e, em particular, o Parque Nacional do mesmo nome. A ênfase dada ao edificado da ilha do Ibo, bem como aos valores culturais e paisagísticos em que se insere, confirma e reforça a necessidade, preconizada pelo Governo, da preservação desses valores e da sua requalificação, no quadro de uma estratégia de turismo sustentável, de modo a poderem ser desfrutados por aqueles que nos visitam. Queremos também realçar que os elementos de análise apresentados são um contributo relevante para a abertura de linhas de orientação, e inclusive de normação, tendentes a encorajar actuações mais adequadas, tanto dos investidores, como dos operadores turísticos e dos visitantes, tendo em conta a melhoria das condições de vida da população local, e a preservação e valorização dos recursos naturais da região.”3 O conceito de sustentabilidade é a principal linha de força da presente tese. A este respeito consideramos importante referir à partida que, embora este conceito esteja larga e profundamente implantado no seio da academia e comece a informar atitudes dos governos a nível nacional, a nível internacional e nas relações bi e multilaterais, “continua, na prática, a ser pouco claro para o cidadão comum como é que o seu bem-estar físico e económico pode ser garantido e elevado através da sua aplicação concreta. É preciso que a sustentabilidade do desenvolvimento se traduza, de uma maneira extensiva, em algo que possa ser visto, sentido, experimentado pelos cidadãos e pelas comunidades em geral”. O elemento significante nesta referência é o facto de ela partir de um investigador em formação, o que é reflexo de elevação da consciência4. Para além das considerações gerais aqui feitas é pertinente referir que não é alheio à tese, o objectivo induzido de contribuir também modestamente para alimentar, com elementos 2 Carrilho, Júlio, Ibo. A casa e o tempo, Edições FAPF, Maputo, 2005. Sumbana Júnior, Fernando, Ministro do Turismo de Moçambique, Nota nº 316/GM/MITUR/2005, de 29/09/2005, dirigida à Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico, Maputo. 4 Oliveira, Nuno Gaspar de, A caminho da praia sustentável, Revista Focus, pág. 94, 305/2005. 3 9 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Premissa teoricamente fundamentados, o corpo de identidade nacional e de cidadania em processo de construção no país5. E esta ideia é reforçada pelo aforismo prosaico mas verdadeiro de que se ama e se assume mais e melhor o que melhor se conhece. 5 “La forma architettonica, con i luoghi che delimita, può avere una parte importante, con l’intralciare o con il raforzare il nostro senso dell’identità. Meiss, Pierre Von, 1992. 10 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Introdução INTRODUÇÃO “... no fim conservaremos apenas aquilo que amamos, amaremos somente aquilo que compreendamos e compreenderemos só aquilo nos tenha sido ensinado” Baba Dioum6 Motivações e justificação Como aconteceu na generalidade dos países africanos, a independência de Moçambique revelou, particularmente até ao fim da década de oitenta do séc. passado, que a apropriação pelos seus novos utentes de ambientes e elementos edificados conotados com a ocupação colonial se caracterizou por um deficit de estudo, reflexão e comandos, tanto ao nível administrativo como ao nível teórico, que permitissem estabelecer o seu carácter como património colectivo e até com potencial identitário do novo país e, ao mesmo tempo, contribuíssem para uma gradual erradicação de atitudes predatórias e de indiferença relativamente ao edificado preexistente. Preocupações ligadas principalmente com a criação e consolidação dos novos Estados, a canalização das energias para o domínio do desenvolvimento económico, especialmente no sentido da elevação dos indicadores de melhoria das condições de vida sobretudo nos domínios da produção alimentar e da prestação dos serviços de educação e saúde, relegou para segundo plano a busca de modelos de intervenção que promovessem um enquadramento sustentável e, portanto, não conflituoso, entre a arquitectura e as realidades construídas de valor, as quais constituem de facto património comum, e o novo ambiente humano que a habita. É justo que se refira que houve e há casos que constituem excepção a esta constatação, nomeadamente toda a actuação governamental que culminou com a declaração, pela UNESCO, da Ilha de Moçambique como património cultural da humanidade, bem como as iniciativas de preservação ecológica e ambiental de contextos territoriais delicados, como por exemplo no que se refere à ilhas de Inhaca e ao arquipélago do Bazaruto, pressionados por sobre ocupação em consequência da guerra que decorreu até 1994 e pelas iniciativas não controladas de desenvolvimento turístico e que era necessário acautelar sob pena de depauperamento ambiental irreversível. 6 Cunningham, William P., Cunningham, Mary Ann, Saigo, Barbara Woodworth, Fondamenti di Ecologia, edizzione italiana a cura di Alberto Basset e Loreto Rossi, McGraw-Hill, Milano, 2004, pág. 3. 11 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Introdução Âmbito, objecto e objectivos gerais e específicos da pesquisa Não é a história nem o domínio sócio – antropológico que nos compete analisar, não obstante eles serem importantes para uma mais completa compreensão do objecto de pesquisa em presença e parecer-me bem fundamentada a ideia de que, no futuro, a evolução da urbanística verá acentuar-se cada vez mais a sua vertente sócio-antropológica face à sua vertente arquitectónica7. O fulcro da pesquisa circunscreve-se ao domínio do edificado, aprofundando-se em particular a análise e as estratégias nos subdomínios da arquitectura e da urbanística do assentamento, colocados no contexto determinante e mais geral do sistema ecológico e ambiental que o sustenta. O caso de estudo é o ambiente e o edificado da Ilha do Ibo, localizada no arquipélago das Quirimbas, o qual se situa no Norte de Moçambique. Não são frequentes, no país, estudos que tenham tido como foco a arquitectura como artefacto específico resultante de um determinado contexto cultural nacional, quer considerado isoladamente, quer considerado como testemunho de um intercâmbio cultural entre povos que estiveram em contacto ao longo da história. No caso do Norte de Moçambique parecia ser evidente que a cultura swahili, que se expandiu até ali e muito mais para Sul, tivesse deixado marcas da sua presença no domínio da arquitectura. E no seu contacto com realidades locais, bem como com outras realidades culturais determinadas pelo colonialismo, tivesse também induzido ao uso de materiais, processos, técnicas e opções de desenho cuja explicação pode residir em contextos endógenos e exógenos à região. Considerámos interessante escrutinar também esta hipótese, em termos gerais e como elemento de referência para entendimento dos processos e das opções arquitectónicas em presença, tomando a ilha do Ibo como caso de estudo. No caso de estudo que abordaremos aplica-se o princípio de que o “património vernáculo construído é a expressão fundamental da identidade de uma comunidade, das suas relações com o território e, ao mesmo tempo, a expressão da diversidade cultural do mundo”8. É objectivo geral desta tese compulsar a problemática da sustentabilidade do desenvolvimento com ênfase para o contexto das pequenas ilhas, socorrendo-nos também 7 “Eis uma de entre tantas razões para pensar que o futuro... da evolução da urbanística será sempre mais sócioantropológica do que arquitectónica”, Dorfles, Gillo, 2003; 8 ICOMOS, Carta sobre o património construído vernáculo, Cidade do México, 17 a 23 de Outubro de 1999. 12 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Introdução de experiências e iniciativas de estados insulares, de modo a estabelecer o contexto e substrato teórico para uma análise e uma abordagem propositiva visando a sua aplicação ao objecto de estudo. No que respeita ao tema de aplicação, a pequena ilha do Ibo localizada no arquipélago das Quirimbas, pretende-se contribuir para consolidar a sua importância no contexto ecológico, ambiental e como património cultural de valor no Norte de Moçambique, como tem vindo a ser reiteradamente estabelecido na última década. Está no entanto por demonstrar e estabelecer a singularidade e especificidade do edificado do caso de estudo, no seu todo, como subproduto e resultado de intercâmbio secular de culturas regional, o qual, tendo cristalizado e irradiado saberes, não pode deixar de ser registado e analisado na perspectiva da sua valorização, preservação, requalificação e restauro em casos seleccionados. A consciência desta necessidade determina este propósito, pelo que um dos objectivos gerais da presente pesquisa é contribuir para tal. A escolha da Vila do Ibo como caso de estudo resulta de ela: • constituir uma realização multicultural com reconhecido valor histórico, nomeadamente no que respeita ao edificado, mas também caracterizada pela sua localização num contexto de grande relevância ecológica e ambiental; • constituir um aglomerado relativamente contido com menos factores de complexidade, nomeadamente devido ao seu relativo isolamento, o que permite uma elaboração mais controlada e um estudo que contribua para motivar ulteriores estudos de aglomerados humanos do País nas mesmas condições; • poder contribuir com critérios tecnológicos para a criação de guiões visando eventuais intervenções de manutenção e restauro em outras pequenas cidades históricas moçambicanas tais como Inhambane, Ilha de Moçambique e Pemba. Uma vez estabelecidos, numa primeira parte, os marcos teóricos gerais do tema e o referencial de experiências para o caso de estudo, far-se-á na segunda e terceira partes o enquadramento, a descrição e caracterização do caso de estudo, nomeadamente no que respeita • ao contexto geográfico, ecológico e ambiental que o caracteriza; • ao desenho geral do assentamento e dos diversos tipos arquitectónicos e a sua relação com a tradição arquitectónica da região Leste Africana; 13 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Introdução • aos elementos de construção mais significativos e os materiais e tecnologias utilizadas; • ao estado das edificações, comparando a situação hoje prevalecente com a dos finais da década de sessenta e dos anos setenta do séc. passado. • à demonstração do carácter singular do edificado enquanto “lugar-sítio”, procurando-se reconhecer os laços entre forma, lugar e história, de modo a percebermos os limites a considerar para que o espaço arquitectónico preserve o seu duplo papel: (i) o de testemunho da história por um lado, e (ii) o de ocasião para o futuro por outro9. - Com base na análise feita, far-se-á, nas conclusões, propostas de reflexão e de estratégia de acção tendo em conta a preservação e requalificação do património tangível, bem como tendo em conta o processo de transformações num quadro de sustentabilidade e ecocompatibilidade. Metodologia, instrumentos e processo de trabalho A definição do tema de trabalho foi um momento importante da tese e constou de: 1. Estabelecimento da hipótese de tema de tese baseado na inevitabilidade e necessidade de consideração do princípio da sustentabilidade do desenvolvimento como base de qualquer processo de salvaguarda e transformação da realidade construída nos países de baixo rendimento, os quais são caracterizados por um rápido processo de mudanças. Vantagem da selecção de um caso de estudo caracterizado por uma situação de confinamento em que essa salvaguarda e transformação, tratando-se de um património edificado de importância nacional, exige, por um lado medidas e atenção particular e, por outro lado uma abordagem mais restrita, menos ambiciosa e de definição territorial limitada e claramente mais identificável; 2. Recolha e consulta de documentação e elementos para confirmação do interesse e da plausibilidade da hipótese posta, quer no que respeita ao tema geral como também na definição do caso de estudo, nomeadamente em centros de documentação localizados em Maputo e Roma; 3. Fixação, por tentativas e rearranjos, do tema, através do seu estabelecimento articulado por assuntos pertinentes em índice a desenvolver. 9 Meiss, Pierre Von, 1992; 14 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Introdução 4. Elaboração de conclusões que consistem no estabelecimento de estratégias visando não só contribuir para a valorização do edificado e a melhoria da condições de vida da população, mas também abrir novas vias de pesquisa que aprofundem o conhecimento e apurem e ou corrijam, no futuro, as estratégias definidas. Como instrumentos de elaboração e estabelecimento de conclusões, baseamos o trabalho em: • Análise conceptual, com base na documentação disponível; • Análise iconográfica, com base nos levantamentos e na cartografia disponível na documentação consultada; • Observação directa com base no levantamento arquitectónico expedito; • Contextualização das opções arquitectónicas, com base em entrevistas, no quadro do múnus relativo ao caso de estudo, nomeadamente no que se refere à importância decisiva da sua inter-relação com o património intangível. • Experiências relevantes para referência quanto a opções programáticas de abordagem das modalidades de gestão e intervenção técnica tendo em conta similaridades de natureza e contexto em casos similares ao caso de estudo em questão. O processo de trabalho teve como marcos fundamentais as seguintes etapas e níveis de elaboração: 1º Estabelecimento de hipótese de trabalho, metodologia e meios para testá-la, validá-la ou não, fundamentá-la e abrir novos caminhos de trabalho; 2º Definição e listagem das fontes disponíveis em Maputo com consulta expedita prévia, complementada posteriormente com fontes a consultar em Roma e em Lisboa; 3º Busca e consulta de fontes para estabelecimento do referencial teórico que interessa ao tema; 4º Revisão e reanálise de toda a informação colhida e disponível sobre o tema de estudo, e que foi preparado sob a orientação do candidato, in situ e após as três visitas ao objecto de caso de estudo; 5º Organização e primeira elaboração dos materiais e constatações; 6º Complemento e aprofundamento da informação necessária para a continuação da pesquisa com informação obtida de fontes seleccionadas em Maputo, Roma e Lisboa, 15 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Introdução incluindo especialistas e personalidades cuja entrevista era necessária para informar a pesquisa; 7º Ajustamento final e desenvolvimento das hipóteses de análise colocadas previamente, confirmadas após observações e entrevistas, e início da redacção da tese. Não foi intenção desta pesquisa ter uma representação rigorosa do edificado. Pretendia-se sim obter elementos de representação gráfica suficientemente elucidativos da imagem do ambiente construído e de alguns dos seus componentes mais significativos, de tal maneira que nos permitisse definir o carácter e o fundo das opções projectuais. O levantamento expedito abrangeu cinquenta seis edifícios, tendo, cerca de vinte, sido levantados com mais rigor e mais completamente. De qualquer modo, para efeitos de restauro, reconstrução e reabilitação seria necessária uma campanha específica de levantamento, com programa e equipas especificamente definidas para tal. Grande parte deste trabalho foi organizado e publicado no livro “Ibo. A casa e o tempo”, de está presente um resumo em Anexo. 16 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte I PARTE – Contexto teórico 1. Desenvolvimento Sustentável Quanto mais nos catapultamos para o futuro mais o passado se avoluma10. E quanto mais passado se constrói, mais perigos podem acumular-se no futuro. Esta é uma verdade que o objectivo de um desenvolvimento duradouro tem de acautelar: diminuir os perigos para o futuro, garantindo-se para as gerações vindouras pelo menos as mesmas possibilidades de construção do seu desenvolvimento e bem-estar, principalmente no que respeita aos recursos e valores ambientais que a terra disponibiliza. À partida deve-se ter em consideração que, como diz David Barkin na sua contribuição para uma estratégia alternativa de desenvolvimento, em preparação da Cimeira da Terra “To address questions of sustainability, …, is to confront the fundamental dilemmas facing the development community today. Traditional approaches and models have not resolved the problems for the vast majority of the world's population, which lives in poorer conditions today than in recent human history. While the trickle-down approaches to economic progress enrich a few and stimulate growth in "modern" economies and sectors in traditional societies, they have not served to address most people's needs; furthermore, they contributed to depleting the world's store of natural wealth, to a deterioration in the quality of our natural environment, and to enriching the wealthy. The broadening gap between rich and poor within nations and on an international scale offers stark testimony of the social inadequacies of this unfortunate model of economic development”11. Não é somente a partir de 1987 que a reflexão no domínio da arquitectura se faz tendo em mente outros domínios do conhecimento e da actividade humana que com ela se relacionam, em particular com a ecologia e o ambiente. Mas é verdade que, devidos aos problemas que a humanidade enfrenta como fruidora da Terra, nunca antes as temáticas ecológicas e ambientais tiveram tanta pertinência. Planificar comunidades sustentáveis (expressão que continua em voga principalmente a partir dos anos 1990) requer uma nova atitude no quadro de um processo mais holístico e integrado de elaboração de decisões de planeamento e desenho. 10 Saramago, José, em entrevista ao canal de TV francesa TV5, Paris, Maio de 2003; 11 Barkin, David, Wealth, Poverty and Sustainable Development. Contributions to an Alternative Strategy http://db.uwaterloo.ca/~alopez-o/politics/susdevelop.html, 2002. 17 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte No contexto da transformação do território parece bastante apropriada a acepção de Trevisol de que o planeador físico ou o projectista “da sustentabilidade” acabam por ter de se comprometer com o papel de “novos exploradores” por um lado e, por outro com o de “gestor de projectos” respectivamente para conhecer o melhor possível um território que lhe é estranho no sentido de melhor actuar sobre ele e ser capaz de agir como um tecelão e regulador da rede de projectos locais, integrando-os num conjunto coerente e harmonioso. Quanto ao arquitecto no sentido restrito, reforça-se o seu objectivo de procura da correcta integração dos resultados que são objectivo da sua actividade com o de outras actividades, num processo marcadamente multidisciplinar e transdisciplinar em que a ênfase das opiniões de tecnologia, de produção e escolha de materiais de construção, de produção de energia eléctrica ou de destino funcional e reserva de áreas não pode ser feita em completa dissonância com as capacidades de gestão, com as opções económicas, com os elementos mais fortes da tradição e da cultura dos povos, com a sua preparação para acolher a mudança. A busca de sustentabilidade como valor a projectar-se no futuro de novas gerações não é apenas (e talvez nem é sobretudo) uma tarefa técnica. Ela exige a construção de uma consciência colectiva da sua necessidade, e em particular da sua utilidade, no preciso momento em que as comunidades se confrontam com os seus resultados. Se esta consciencialização não for criada e consolidada, porventura soluções tecnicamente correctas podem entrar em atrito com práticas locais consolidadas, gerando-se conflitos entre os destinatários locais e as intenções, mesmo que correctas, de planeadores, gestores e administradores dos programas tecnicamente sustentáveis. A negociação, a participação e a formação precoce nas escolas são elementos fundamentais neste contexto, são elementos vitais da sua dimensão local. Para além das várias escolas de abordagem da problemática do ambiente e do desenvolvimento e, em consequência, da temática da sustentabilidade, parece-nos impoortante atermo-nos nas suas mais significativas definições, que são a sua expressão mais sintética e imediata, na evolução temporal do conceito e nas diferentes dimensões que decorrem do seu carácter multivalente e global. 18 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte 1.1. Um conceito multivalente para um fenómeno complexo e global. O desenvolvimento humano não se esgota na necessidade, fundamental e imprescindível, de protecção e conservação ambiental. Mas também não deveria ser feita contra ou à custa dela. No que se refere ao desenvolvimento sustentável, o ponto 27 do Relatório da Comissão Mundial sobre o Ambiente e o Desenvolvimento de 1987, com o título de “O Nosso Futuro Comum”, também conhecido por Relatório Brundtland, estabelece: “…Está nas mãos da humanidade tornar o desenvolvimento sustentável, o que quer dizer procurar satisfazer as necessidades e aspirações de hoje sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazerem as suas próprias necessidades e aspirações. O conceito de desenvolvimento sustentável implica limites – não limites absolutos, mas limitações que o presente estado da tecnologia ou da organização social e a capacidade da biosfera de absorver os efeitos da actividade humana impõem aos recursos do ambiente –, mas tanto a tecnologia como a organização social, ambas podem ser orientadas e melhoradas para que possam abrir o caminho para uma nova era de crescimento económico. A Comissão acredita que a pobreza já não é inevitável. A pobreza não é uma doença em si. O desenvolvimento sustentável requer que as necessidades básicas de todos sejam satisfeitas e que a oportunidade de se cumprirem as expectativas de uma vida melhor seja estendida a todos. Um mundo em que a pobreza seja endémica será sempre susceptível de sofrer uma catástrofe, seja de tipo ecológico ou de qualquer outro tipo”12. Este importante Relatório recomendou acções urgentes em oito importantes domínios para assegurar o desenvolvimento sustentável, designadamente: (1) População e Recursos Humanos; (2) Indústria; (3) Segurança Alimentar; (4) Espécies e Ecossistemas; (5) O Desafio Urbano; (6) Gestão do Bem Comum; (7) Energia; (8) Conflito e Degradação Ambiental. Nesta linha conceptual e programática já tinham e têm estado a surgir variantes da definição básica estabelecida pelo Relatório Brundtland na busca de precisões ligadas a enfoques específicos ou a aprofundamentos sectoriais: 12 UN BRUNDTLAND REPORT, Our Common Future, The World Commission for the Environment and Development Alianza Publications, Madrid, 1988 (pag.28 e 29). 19 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte • J.R. Hichs13, em 1946, numa abordagem economicista premonitória e que tem implícita a definição moderna de Sustentabilidade, afirma que um rendimento acrescido deve ser prosseguido de tal modo que não se reduza a capacidade do ambiente continuar a prover o mesmo nível de rendimento no futuro; • Para a ONU (WCU,UNEP,WWFN), em 1992, entende-se por Desenvolvimento Sustentável um melhoramento da qualidade de vida, sem que se exceda a capacidade de carga dos ecossistemas de base; • Para o ICLEI, em 1994, Desenvolvimento Sustentável é aquele que oferece serviços ambientais, sociais e económicos de base a todos os membros da comunidade, sem ameaçar a operacionalidade dos sistemas natural, edificado e social de que depende o fornecimento de tais serviços. • Para Jekwu Ikeme, (1999), Desenvolvimento Sustentável no continente africano significa a realização dos potenciais rendimentos sem que isso implique custos na perda da base ecológica para o desenvolvimento e o aumento da desigualdade e empobrecimento da população14. • Para o NSESD australiano, em que se sublinha a vertente ecológica, Desenvolvimento Ecologicamente Sustentável significa o uso, conservação e elevação dos recursos da comunidade, de modo a que os processos ecológicos, nos quais a vida assenta, sejam mantidos, e a qualidade de vida possa ser melhorada na sua globalidade, hoje e no futuro. Como se pode verificar varia a ênfase das definições consoante a perspectiva de que se parte, nomeadamente a do bem-estar geral, a económica, a sociocultural, a ecológicoambiental, com implicações nos mais variados domínios do conhecimento, das ciências naturais, às ciências jurídicas, às ciências da administração e à política. Uma definição que diz respeito ao ser humano em geral, independentemente da sua condição e do seu local de vida, e que envolva todos os aspectos da sua actividade, seria suposto não ser fácil de fazer e tornar inteligível aos diferentes níveis da comunicação. 13 Em Sustainable Development: Economic growth and innovation, http://www.stats.govt.nz/domino/external/web/nzstories.nsf/htmldocs/Sustainable+Development:+Economic+gro wth+and+innovation, (22 de Junho 2004). 14 Ikeme, Jekwu, Sustainable Development, Globalisation and Africa: Plugging the holes, em Africa Economic Analysis, Environmental Change Unit, University of Oxford, United Kingdom, 1999 http://www.afbis.com/analysis/Jekwu.html 20 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte Como qualquer definição bem elaborada ela vai ao âmago da natureza do problema que visa, é curta, a mais completa possível e, neste caso, atinge o seu objectivo de inclusividade. Este é o mérito da definição de sustentabilidade do Relatório Brundtland. Ela é eficaz no nível de entendimento básico e conseguiu mobilizar em relativamente pouco tempo o público em geral, ao mesmo tempo que suscitou a sua discussão nos domínios mais diversos da especulação científica e da elaboração técnica afins. Por ser simples e transversal à actividade humana permite a discussão aos diferentes níveis, com a possibilidade de lógicas sectoriais aparentemente distintas entre tudo o que ela envolve e trata, devido à sua natureza holística. É neste contexto que a temática da sustentabilidade se afirma na Arquitectura como vertente teórica (e menos de aplicação) especializada, sendo objecto de manuais, publicações, cursos universitários, e especializações. Neles se fazem as abordagens teóricas, tecnológicas, de uso do território e de metodologias de desenho urbano, visando a projectação dos espaços e a conformação do ambiente. Pretende-se garantir a durabilidade dos processos e a minimização dos impactos negativos, e tendo o presente e o futuro como contextos de igual importância, de modo a que o objectivo de conforto do homens e mulheres de hoje não prejudiquem as possibilidades de conforto das mulheres e homens de amanhã. Se considerarmos que as preocupações expressas com os impactos negativos da actividade humana não responsável nem controlada sobre o ambiente remontam ao séc. XIII da Inglaterra do Rei Eduardo I, devido aos efeitos prejudiciais da queima do carvão na Londres da época, podemos dizer que tem raízes muito antigas a expressão institucional contra as acções que, prejudicando o ambiente, punham em perigo a saúde dos cidadãos. Mas só no último quartel do séc. XX, esta atitude ganhos contornos planetários desembocando no movimento contemporâneo geral tendente à reconciliação da actividade humana com o potencial de recursos proporcionados pela natureza. A rapidez deste processo dá-nos uma medida da urgência que está implícita na necessidade de se tomar a sustentabilidade como base dos modelos e das políticas de desenvolvimento e consumo, tanto ao nível local com ao nível global. O estabelecimento dos comandos mais adequados nas diversas áreas do saber, inclusive na arquitectura e no planeamento do território, que obrigam à consideração dos processos de desenvolvimento na óptica da sustentabilidade e da conservação dos recursos faz-se com o 21 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte nível de conhecimento, percepções e nível de organização nacional e internacional de cada momento. Sendo assim, é importante referir os perigos da transformação das preocupações ambientalistas numa atitude militante intransigente ou num modismo. A obsessão, neste como noutros domínios, pode tornar-nos mais vulneráveis às pulsões do dogmatismo cego em relação ao tema da sustentabilidade e da eco-compatibilidade; vulneráveis à avidez das pulsões do comércio e do negócio que contribuem para confundir as opções dos decisores com propostas conflituantes e impondo técnicas que este ou aquele defende como sendo as melhores numa pura estratégia de maketing para obtenção de lucros. Uma abordagem mais rigorosa mas também mais honesta, de bom senso e mesmo de solidariedade, é fundamental para que a consciência dos problemas da degradação do ambiente não se transformem num elemento de retardamento da busca de melhoria de condições e de qualidade de vida dos e pelos mais pobres (e não só) com o pretexto de adopção de procedimentos e normas fora da sua capacidade de aplicação e até de compreensão. Qualquer espírito aberto tem consciência dos limites do conhecimento numa determinada época e de que este se adquire e se depura de época para época histórica, num processo activo, que é simultaneamente de exigência de actuação científica e tecnicamente mais correcta, mas também de visão crítica quanto ao alcance, por vezes redutor, do que se impõe como uma necessidade universal. 1.2. Principais marcos históricos Nenhuma geração antes da presente teve mais e melhor informação acerca de todos os aspectos importantes da problemática do desenvolvimento sustentável. Durante os últimos cerca de trinta anos conferências e relatórios fundamentais foram realizados, permitindo compilar um conjunto integrado de informações que aprofundaram substancialmente a compreensão conceptual da sustentabilidade e evidenciaram a 15 urgência de uma reorientação global de atitudes do ponto de vista ecológico, ambiental e da durabilidade do desenvolvimento: • Em 1942, Raymond Linderman utiliza pela primeira vez o conceito de ecosistema, conceito este que é posteriormente desenvolvido e divulgado por Eugene Odum; • Em 1953, Eugene Odum lança o seu livro Fundamentals of Ecology o qual seria, durante muitos anos, o único manual sobre os princípios básicos da ecologia; 15 http://www.ecotopia.org/ehof.odum/, pág. 1, 25-08-2005. 22 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte • Em 1962, Rachel Carson, na sua publicação Silent Spring, introduz uma nova energia no crescente movimento de defesa do ambiente na América do norte. Ela põe em causa a capacidade ambiental de absorção infinita dos poluentes produzidos pelo homem, contribuindo decisivamente para a importância da protecção e preservação ambientais; • No início dos anos 1970, a crise energética induz nos países desenvolvidos à emergência da consciencialização para o facto de as suas cidades estarem deficientemente preparadas para um forte crescimento populacional e melhoria significativa dos respectivos níveis de bem estar, num cenário futuro de diminuição da produção e abastecimento de combustíveis fósseis; • Em 1968 a publicação Population Bomb de Paul Erlich e, em 1972, Limits of Growth do Clube de Roma, chamam a atenção para as problemáticas globais do desenvolvimento; • Em 1972, Barbara Ward, que em 1970 já analisara em escritos seus os problemas do crescimento económico, exprime a necessidade de “…definir-se com clareza o que deve ser feito para manter a terra como um lugar apropriado para a vida humana não apenas hoje mas também para as futuras gerações”, dando provavelmente origem ao conceito contemporâneo de desenvolvimento sustentável; • Em 1972, a Conferência das Nações Unidas de Estocolmo sobre o Desenvolvimento Humano define a necessidade de mudança de abordagem das questões ambientais face aos dilemas de desenvolvimento; • Em 1980, o Global 2000 Report, solicitado pelo Presidente Carter em 1977, que constitui o primeiro relatório nacional a tratar globalmente o tema do futuro ambiental do mundo (entre outros temas), estabelece que “…Apesar do maior volume de produção material, os povos do mundo estarão ( em 2000 ), em muitos aspectos, mais pobres do que estão agora"; • Em 1980, é estabelecida a estratégia Mundial para a conservação da natureza; • Em 1983 é criada a Comissão Mundial das Nações para o Ambiente e Desenvolvimento; 23 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte • Em 1987, é publicado o relatório da Comissão Mundial das Nações Unidas para o Ambiente e Desenvolvimento, mais conhecido por Brundtland Report, que define o conceito e os princípios de desenvolvimento sustentável; Fig. 1 - A definição de Desenvolvimento Sustentável reconhece que toda a vida depende dos recursos naturais. O falhanço em proteger o ambiente físico ameaça o futuro do mesmo modo que que compromete o presente. Os proponentes do conceito de desenvolvimento sustentável argumentam que os problemas na economia, no ambiente, e na sociedade estão interrelacionados e são globais no contexto. Isto é claramente demonstrado na represntação de hierárquia, que ilustra como as esferas sócio-económicas devem sempre ser consideradas dentro da maior esfera ambiental de influência. Esta 16 conceptualização sugere como as actividades económicas e culturais estão integradas dentro dos processos naturais . • Em 1992, a Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro e também conhecida pela Cimeira da Terra, na qual 150 Chefes de Estado acordaram e estabeleceram um plano de acção global visando o desenvolvimento sustentável a que se chamou de Agenda 21 (para além da Declaração geral e convenções sobre a diversidade biológica, as mudanças climáticas), que constitui uma importante grelha programática de referência para os esforços da humanidade, em todas as áreas de actividade conexas com a problemática da sustentabilidade, visando uma mudança e adequação global de 16 Flint, R. Warren e Danner, Mona J.E., The Nexus of Sustainability & Social Equity: Virginia’s Eastern Shore (USA) as a Local Example of Global Issues, International Journal of Economic Developmen, pág. 5 e 6. 24 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte atitudes tanto no que respeita aos valores e estilos de vida, à tecnologia, aos produtos, ao consumo e à gestão dos dejectos, como no que concerne ao quadro político, à participação das comunidades e outros actores do desenvolvimento e à articulação da dimensão global por um lado e da dimensão local por outro; • Em 1994, a Conferência Global das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável em Estados de Pequenas Ilhas em vias de Desenvolvimento, adopta a declaração de Barbados, em que se definem os princípios e um programa de acção para o desenvolvimento sustentável nesse tipo de estados; • Em 1997, o Protocolo de Kyoto sobre a mudança climática, que preconiza medidas específicas nomeadamente para a redução da emissão dos gases conexos com a intensificação do efeito de estufa e que, para além de discrepâncias de pontos de vista manifestadas, deu origem a esforços adicionais na busca de soluções para a materialização do acordado, nomeadamente à actual discussão e experiências de criação de um mercado de quotas de emissão de CO2, principalmente na Europa; • Em 1997, realiza-se a “Cimeira da Terra +5”, uma Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas faz a revisão e a avaliação da implementação da Agenda 21; • Em 2000, A assembleia geral das Nações Unidas, na sua resolução 55/2, adopta a Declaração do Millenium, em que estabelece como valores fundamentais do presente Século a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a tolerância, o respeito pela natureza e a responsabilidade partilhada, e que no capítulo III relativo ao “Desenvolvimento e erradicação da pobreza” e no capítulo IV relativo à “Protecção do respectivamente, ambiente comum”, reconhece as necessidades especiais dos Estados em desenvolvimento constituídos por pequenas ilhas 25 e reafirma os princípios do Fig. 2 Modelo de desenvolvimento sustentável que salvaguarda o ecossistema, as necessidades humanas e o crescimento económico. (adaptado de Raymond Grizzle e Chritopher Barret, in Fondamenti di Ecologia, fonte citada) Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte desenvolvimento sustentável; • Em 2002, a Cimeira Mundial do Desenvolvimento Sustentável relizada em Johannesburg, abreviadamente conhecida por Cimeira de Johannesburg, que culmina todo este processo, reafirma a temática do desenvolvimento sustentável como elemento central da agenda internacional e pretende dar um novo ímpeto à acção global de erradicação da pobreza e de protecção do ambiente. Estes acontecimentos, que definem a focalização do interesse geral para a temática da sustentabilidade, repercutem-se em todos os continentes, nos quais a mesma temática é tratada nas suas condições específicas. Não obstante todo este esforço mundial, ingente mesmo, da comunidade internacional e dos países, dos académicos, de entidades e organizações privadas, da comunicação social, não parece ainda que o objectivo de sustentabilidade da actividade humana esteja assegurada. Não estão ainda decifrados todos os vínculos que existem entre o ambiente e a pobreza, a injustiça, a opressão. São ainda necessários avanços científicos, tecnológicos e de modelos de aplicação dos princípios da sustentabilidade, para que as inúmeras metas que a humanidade se tem colocado se possam alcançar. Acontecimentos dramáticos de detecção retardada como o de Minamata no Japão17 e o de Love Canal nos Estados Unidos18; e de efeitos com detecção imediata como o de Three Mile Island19 nos EUA, o de Bophal20 na Índia, o de Chernobyl21, na União Soviética; e a revelação da depleção da camada de ozono, acabaram por funcionar como avisos, pela negativa, para o despertar da consciência da insustentabilidade, do ponto de vista ambiental, dos modelos de crescimento adoptados. Apesar do desenvolvimento atingido no estudo e monitoração dos fenómenos ligados ao impacto da actividade antrópica sobre a lógica dos processos naturais é mais uma vez um acontecimento catastrófico que volta a chamar a atenção à necessidade de uma actuação 17 Resíduos tóxicos químicos são produzidos a partir de 1932 e lançados na baía de Minamata, mas apenas entre 1956 e 1959 serão comprovados os seus efeitos devastadores sobre a população e sobre a cadeia alimentar animal. 18 A contaminação química de solos num novo assentamento da cidade de Niagara Falls no Estado de Nova York, devido à deposição de resíduos químicos venenosos entre 1947 e 1952, será apenas detectada e comprovado o seu impacto devastador sobre a saúde da população entre 1976 e 1980. 19 1979 − acidente nuclear, no Estado da Pensilvânia. 20 1984 – acidente numa fábrica de produtos químicos, com contaminação do ar, em Bophal. 21 1986 – acidente nuclear, na Bielorrússia. 26 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte política e científico-técnica, fundamentada e atempada como exigência para evitar que se rompa o equilíbrio natural dos sistemas de suporte da vida. Refira-se neste âmbito o caso do impacto devastador e mortífero do tufão Katrina sobre a cidade Nova Orleães, em Setembro de 2005. Certamente que, mais uma vez e com base num triste acontecimento, se potenciará a inevitabilidade do respeito e do tratamento concertado, a nível mundial, dos fenómenos ambientais e da problemática da sustentabilidade ambiental dos assentamentos humanos. É como se, pelo menos no domínio do Ambiente, apenas funcionasse a pedagogia da catástrofe, isto é: a tomada de medidas de preservação e conservação ecológica e ambiental acelera-se à medida da ocorrência de tragédias de grande impacto negativo sobre ambiente, com prejuízos importantes na população. Hoje parece no entanto ser lição assente de que se deve evitar que o imprevisto estimule e conduza os propósitos de melhoria de bem-estar nos países e comunidades. A necessidade de um posicionamento preventivo, defendida pelos teóricos, parece começar a permear a atitude, a pesquisa, modelos de trabalho e análise, acções de educação e consciencialização públicas, garantindo-se que a articulação das diferentes dimensões dos problemas que se enfrentam proporcione soluções mais completas e duráveis, ao mesmo tempo que se aprofunda, nas diferentes especialidades, a compreensão dos fenómenos e os processos de agir sobre eles, ao serviço do bem-estar de hoje e de amanhã. E para que os valores da coerência e da continuidade caracterizem esta abordagem holística, elevando-as as estratégias de inversão da degradação ecológica do planeta a um nível mais alto do que a da mera actuação preventiva causal, é preciso que essas estratégias se fundem na consciência cada vez mais nítida de que o “verdadeiro desastre ecológico tem a sua origem e causa primeira na perda da identidade social e histórica das populações humanas; é sobre esta realidade que se tem de operar”22. 1.3. Dimensões e princípios da sustentabilidade e do projecto sustentável O tratamento da sustentabilidade envolve diversas valências ou subdomínios, que são geralmente definidas como as suas diferentes ‘dimensões’. Para o tratamento integrado da temática do desenvolvimento sustentável, no do caso de estudo em questão, temos como relevante considerar as suas seguintes dimensões sem as quais as análises e o diagnóstico visando propostas de intervenção duráveis podem não ser eficazes. São elas: 22 Racheli, Gin, Isole e Insularità futura, Paolo Sorba Editore, Sassari, 1996, pág. 14. 27 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte • A dimensão económica, articulada com as temáticas da administração e gestão públicas e os princípios da equidade e ética; • A dimensão sociocultural que envolve a temática das tradições locais e a da participação dos diferentes agentes; • A dimensão ecológico-ambiental que determina em larga medida os modelos (e condicionamentos) de uso dos recursos naturais, de planificação territorial e de projecto/desenho/intervenções sobre o edificado. Um modelo que integre de uma maneira mais expressa e completa os domínios do desenvolvimento sustentável tem de considerar os subprocessos e dimensões que cada um deles pressupõe e integrá-los de uma maneira coerente23. Fig.4 23 Fabbri, Pompeo, a cura di, Paesaggio, pianificazione, sostenibilità, Alinea Editrice, Firenze, 2003, pág. 21. 28 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte Mas a abordagem e as ênfases das dimensões do desenvolvimento sustentável não são uniformes, mesmo no quadro do mesmo sistema de organizações das Nações Unidas. Para a UNESCO um futuro sustentável requer um equilíbrio dinâmico entre quatro dimensões e quatro princípios, nomeadamente: a dimensão ecológica, a dimensão social, a dimensão económica e a dimensão política. Estas dimensões têm como elementos correlacionados o princípio da ‘Paz e Equidade’, o princípio da ‘Conservação’, o princípio do ‘Desenvolvimento Apropriado’ e o princípio da ‘Democracia’24. Para a Unido a ênfase vai para três dimensões do desenvolvimento sustentável, nomeadamente a ‘Dimensão ambiental’, a ‘Dimensão económica’ e a ‘Dimensão Social’25. Mas para R. Warren Flint e Mona J.E. Danner a importância da equidade social faz com que ela seja mesmo considerada como um dos três pressupostos básicos de qualquer modelo de desenvolvimento sustentável, a par da viabilidade económica e da integridade ecológica.26 “A equidade deriva do conceito de justiça social. Representa a convicção de que há algumas coisas que todos devem ter, que há necessidades básicas que devem ser satisfeitas, que os sacrifícios e recompensas não devem divergir demasiado numa comunidade, e que a política deve ser direccionada com imparcialidade, equilíbrio e justiça para tais fins”27. O consumo é uma das áreas onde mais se manifesta a necessidade de consideração deste princípio da equidade. A este propósito é elucidativo o relatório “State of the World 2004”, em cujo artigo de abertura Gianfranco Bologna refere: “ o peso dos países ricos sobre os recursos da terra e sobre as condições da parte pobre da humanidade é já insustentável, quer seja do ponto de vista ambiental, quer seja do ponto de vista social e ético. Não podemos deixar de reflectir muito seriamente sobre alguns dados deste State 2004, relativos às comparações entre as despesas destinadas aos consumos supérfluos exigidos por pouco mais de um sexto da humanidade. Diante de uma despesa estimada em 19 mil milhões de dólares anuais como investimento adicional necessário para se alcançar o objectivo da eliminação da fome e da malnutrição no mundo, ou dos 12 mil milhões de dólares para assegurar a saúde reprodutiva a todas as mulheres ou, ainda, dos 10 mil milhões para se 24 http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=4029&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html, 2002. http://www.unido.org/doc/3563. 26 Flint, R. Warren e Danner, Mona J.E., op. cit., pág. 3(2), 2001. 27 Beder, Sharon, Costing the Earth: Equity, Sustainable Development and Environmental Economics, New Zealand Journal of Environmental Law , 4, 2000, pp. 227-243. Tradução para português de Álvaro Carmo Vaz, em http://www.uow.edu.au/arts/sts/sbeder/esd/equity.html 25 29 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte garantir água limpa a todos os habitantes do planeta (...), contrapõem-se dramaticamente os 18 mil milhões de dólares gastos anualmente pelos consumidores ricos em produtos de beleza. De igual modo se contrapõem os 17 mil milhões de dólares gastos nos Estados Unidos e na Europa para manter animais domésticos, os 15 mil milhões para comprar perfumes, os 14 mil milhões de dólares gastos para realização de cruzeiros e os 11 mil milhões destinados à compra de gelados... O mundo científico já recolheu uma quantidade extraordinária de dados que demonstram não só quão extraordinariamente pesado é o impacto, sobre o planeta, dos modelos de produção e de consumo das nossas sociedades, mas também que o caminho pelo qual enveredámos deve ser modificado o mais rapidamente possível e de modo decidido”28. Do ponto de vista epistemológico, a sustentabilidade do desenvolvimento não se reduz apenas a um enunciado de acções e a uma praxis mais ou menos baseada naquilo que podemos afirmar como boas praticas, quase sempre tomadas de exemplos que raramente são generalizáveis. Embora seja possível tornar mais durável a intervenção sectorial, devese ter em conta que o desenvolvimento sustentável realiza-se globalmente através da interacção empenhada e convergente de múltiplos elementos, entre os quais se destacam o capital humano, a produção, a cultura e a liberdade de pensamento29. No contexto específico do projecto são pertinentes as observações de José Forjaz ao discutir os pressupostos da adopção de uma atitude pró-activa visando uma abordagem mais sustentável e moralmente mais equilibrada da actividade de regulamentação e do exercício profissional. “Os limites do conforto e os limites económicos no uso dos recursos podem ser medidos regularmente. Foram-no, de facto, nas sociedades mais desenvolvidas, mas foramno sistematicamente regulamentados pela definição dos seus níveis mínimos aceitáveis”... Mas o que parece cada vez mais urgente e necessário é a coragem de os regulamentar, e limitar, pelos seus níveis máximos aceitáveis, ou pelo que se poderia chamar como ‘’os limites morais’’ de uso de recursos que, quando excedidos, beneficiam, exclusivamente, a finíssima camada dos membros mais privilegiados da sociedade.”30 28 Bologna, Gianfranco, Obiettivo: ridurre il nostro consumo, in State of the World 2004. Consumi. Rapporto annuale del Worldwacth Institute, Edizione italiana a cura di Gianfranco Bologna, Edizioni Ambiente, Milano, 2004, pág.12. 29 Mazula, Brazão, Ética, Educação e Criação de Riqueza (uma reflexão epistemológica), Imprensa Universitária, Maputo, 2005, pág.124. 30 Forjaz, José, Arquitectura, Ambiente e Sobrevivência, Edições FAPF, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 2005, pág. 31/32. 30 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte Numa óptica de aplicação pratica e considerando que um projecto humano e sustentável (que, por definição, tem de extravasar o âmbito do puramente mecânico e tecnológico) “inclui a noção de continuidade cultural, ou a sua criação, a necessidade de uma identidade no contexto urbano, e o desenvolvimento de um sentido de cidadania com a criação do sentido do lugar.” É assim que este mesmo autor preconiza que, para a maioria dos países da África Austral, sustentabilidade implicaria, (i) ao nível do planeamento urbano: “− Integrar a maior parte das funções urbanas trazendo a necessária vitalidade ao tecido urbano, a todas as horas do dia e da noite, assegurando a segurança sustentável e minimizando as necessidades de transporte, − Estimular as actividades produtivas complementares tais como a agricultura urbana e o artesanato, − Assegurar a criação e a manutenção de cinturas verdes para actividades produtivas e como áreas de reserva de espaço para futura expansão e controle ambiental permanente, − Criar uma cultura de ruas e acessos pedonais, e manter os estacionamentos periféricos ao núcleo central da actividade urbana, − Regulamentar as rotas de transportes públicos, as suas paragens a reciclagem e a mão de obra, contribuindo para a fertilização da terra agrícola e dos parques criando mini-indústriais; − Criar uma rede densa de pontos de distribuição de água potável, − Criar e popularizar o uso de fogões solares para minimizar os problemas económicos, sociais e ambientais que a maior parte da população sofre, em consequência da falta de combustível a preços acessíveis, − Promover e apoiar o uso de colectores solares para a produção de água quente, minimizando o consumo de energia eléctrica e ajudando a equilibrar o orçamento familiar, − Planear e estabelecer programas de plantio de árvores, ao longo das estradas e caminhos, para sombra, oxigénio e purificação do ar, redução do ruído e estímulo ao orgulho cívico, para um ambiente mais agradável e estético, − Estabelecer, e controlar a manutenção, de imediato ou para uso futuro, de áreas para localização de equipamentos sociais tais como escolas, hospitais, recintos desportivos, edifícios religiosos, cemitérios, etc., 31 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte − Autorizar e promover a construção de edifícios multifuncionais para actividades compatíveis como o comércio, a administração ou escritórios, artesanato, e pequenas indústrias não poluentes e habitação, − Restringir a altura dos edifícios para facilitar a acessibilidade vertical, evitando o superlotação, os problemas de transporte, as dificuldades de manutenção, os custos operacionais, e a importação de equipamentos dispendiosos, − Planear para a obtenção das melhores condições ambientais locais tendo em conta considerações sobre os ventos dominantes, o curso do sol, a intensidade de chuvas e a sua frequência, a humanidade, o ruído de indústrias adjacentes e sistemas de transporte, etc., − Dar nomes aos acessos e às ruas, e enumerar os edifícios e unidades residenciais, facilitando a distribuição de serviços e percursos e contribuindo para o desenvolvimento do sentido de cidadania entre os residentes, − Criar sistemas de escoamento de águas pluviais e, se possível, da sua retenção, evitando problemas de erosão e para apoiar o tratamento paisagístico, − Criar as condições propícias ao estabelecimento de pontos de referência visuais, no imediato, ou no futuro, naturais ou construídos que caracterizam e identifiquem cada bairro como único e como força de coesão, para fortalecer os laços entre os residentes na sua identificação como grupo, − Organizar as actividades expontâneas, comerciais e outras iniciativas, e integrá-las num programa abrangente de criação de emprego e promoção social, − Listar os monumentos históricos e promover a criação e a construção de testemunhos físicos do respeito pela memória social tangível, − Promover o uso de energias alternativas e de fontes ‘’limpas’’, − Promover e incentivar todos os meios de poupança de energia no sector público assim como no privado”, e, ao nível de projecto arquitectónico e da projectação dos edifícios implicaria: “− A correcta orientação e a protecção das aberturas expostas à radiação directa do sol, − A provisão de ventilação cruzada, por convecção, ou por outras formas e meios passivos, − A protecção dos acessos contra as chuvas e o sol directo, 32 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte − Um modo fácil e eficaz de canalizar as águas das chuvas das coberturas, terraços e varandas e o seu controle ao nível do solo, − Usar padrões quantitativos que valorizem a economia da superfície construída, − Integrar os edifícios com os seus espaços exteriores, que devem ser concebidos e desenhados para maximizar o controle ambiental pelo paisagismo e outros meios passivos, − Projectar os edifícios isolados como parte integral de um ambiente urbano contínuo e não como objectos isolados que não contribuem para uma ordem e uma escala mais vasta, − Incorporar na concepção e no projecto de todos os edifícios todos os sistemas de poupança, tratamento e reciclagem de energia, águas, efluentes e lixo, − Refinar o desenho da estrutura e dos acabamentos dos edifícios para alcançar a máxima perfomance com um mínimo de materiais de alto custo energético, − Considerar os acidentes do terreno, as árvores, os cursos de água, a paisagem e as vistas como determinantes primários para o projecto dos edifícios e de outras estruturas a construir, − Respeitar a escala e os ritmos formais dos edifícios e estruturais existentes na inserção de um novo edifício no contexto urbano existente”.31 A principal inferência conclusiva no tratamento integrado deste tema é, como já referido, que qualquer acção com o objectivo da sustentabilidade exige sempre uma abordagem complexa e integrada considerando as especifidades do terreno em que se desenvolve essa acção e tendo sempre em conta que dificilmente haverá acções locais que se realizem sem impacto no ambiente próximo, ou mesmo que não tenham uma quota-parte de impacto ao nível global. O terreno que, neste contexto, nos interessa abordar é o das pequenas ilhas. A UNESCO, através da CSI, estabeleceu como princípios de boa prática para os projectos de desenvolvimento das regiões costeiras e pequenas ilhas, os seguintes32: • Benefício de longo prazo: os benefícios da actividade/projecto deverão ser duráveis e contribuir para a melhoria ambiental; 31 Forjaz, José, op. cit., pág. 69, 70 e 71. UNESCO, CSI, Environnement et développement dans les régions côtières et les petites îles, Caracteristiques des practiques eclairees - http://www.unesco.org/csi/wise/wip2f4.htm 32 33 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte • Desenvolvimento das capacidades e reforço institucional: a actividade traz uma melhoria da capacidade de gestão e da educação das partes envolvidas assim como um conhecimento e uma contribuição para a protecção do ambiente local costeiro/marinho; • Sustentabilidade: a actividade adere ao princípio da durabilidade, duração durante a qual os resultados se manterão e o desenvolvimento continuará mesmo depois do projecto/programa terminar; • Transferibilidade: aspectos da actividade que podem aplicar-se a outros lugares, no interior e/ou no exterior do país; • Construção de consensos: a actividade deve ser benéfica à maioria de grupos empreendedores envolvidos, mantendo-se o espírito de que certos grupos menos privilegiados possam ter necessidade de ser tratados como casos especiais; • Processo de participação: a participação, com transparência, de todas as partes, bem como a participação de indivíduos, é intrínseca ao processo; • Processo efectivo e eficiente de comunicação: um processo de comunicação multi-direccional fazendo intervir o diálogo, a consulta e a discussão é necessário para a sensibilização; • Respeito pela cultura: o processo valoriza os contextos locais tradicionais e culturais verificando, no entanto, a sua validade do ponto de vista ambiental; • Género e/ou assuntos sensíveis: o processo considera os numerosos aspectos ligados à ‘sexo-especificidade’ e/ou a outras questões delicadas; • Reforço de identidades locais: a actividade confere um sentido de pertença e independência a diferentes níveis; • Política nacional legal: a actividade é coerente com as actuais políticas governamentais em matéria de ambiente, de economia, de direito e de sociedade; • Dimensão regional: a actividade deverá reflectir as perspectivas: económica, social e ambiental, regionais. Um dos aspectos importantes da sustentabilidade do desenvolvimento é que ele não se processe à margem do cultura e conhecimento locais. Conhecimento local e indígena é um conceito que se refere a um corpo complexo e cumulativo de conhecimentos, saber-fazer, práticas e representações que são mantidos e 34 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte desenvolvidos pelos povos com uma longa história de interacções com o ambiente. Estes sistemas cognitivos fazem parte de um sistema que inclui também a língua, o apego ao lugar, a espiritualidade e a concepção do mundo. Incluem-se nesta definição expressões como: conhecimento tradicional local; conhecimento indígena; conhecimento local; conhecimento das populações locais ou dos camponeses; etnobiologia, etnobotânica, etnozoologia; ciência popular; ciência indígena33. O saber local e indígena tem sido objecto de estudos, reflexão e recomendações, por diversas agências das Nações Unidas, particularmente depois da reunião do Rio de 1992. No Seminário informal de delegados e funcionários da UNESCO, de 8 de Novembro de 1999, sobre Sistemas de Conhecimento Indígena e Local no Desenvolvimento Sustentável34, concluiu-se: • Que o saber local caracteriza-se por (1) estar ligado a um lugar específico, cultura, ou sociedade; (2) ter uma natureza dinâmica; (3) pertencer a grupos que vivem em estreito contacto com os sistemas naturais; (4) contrastar com o conhecimento ‘moderno’ ou conhecimento ‘formal científico do Ocidente’; • Que é necessário proteger e desenvolver o conhecimento gerado e perpetuado pelas comunidades locais através da consciencialização, da construção de entendimentos sobre direitos internacionais de autoria, e de adequados processos de validação; • Que o conhecimento indígena pode contribuir para melhorar o estabelecimento de estratégias mais adequadas de desenvolvimento, de diversas formas, nomeadamente através da identificação de mecanismos de custos mais eficientes e sustentáveis para o alívio à pobreza e que sejam localmente geríreis e localmente significantes; através de uma melhor compreensão da complexidade do desenvolvimento sustentável nas suas vertentes de diversidade ecológica e social; e através da sua contribuição para identificar caminhos inovadores de melhoria das condições das comunidades locais e seu ambiente; • Que, apesar destas constatações, o conhecimento indígena continua a ser largamente negligenciado na planificação do desenvolvimento, desempenhando apenas um papel marginal na gestão da biodiversidade e da sociedade em geral; 33 34 http://portal.unesco.org/sc_nat/ev.php?URL_ID=2034&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201. http://www.unesco.org/most/ik8nov.htm. 35 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte • Que o conhecimento indígena está a ser perdido sob o impacto da modernização e do actual processo de globalização. Estes princípios foram sendo retomados em diversos fora especializados segundo ópticas específicas, mas consonantes. Mas é na Cimeira de 2002 sobre o Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo, também conhecida como Cimeira da Terra, que se reafirma universalmente a validade do respeito do saber local estabelecendo-se, logo no parágrafo 25 da sua Declaração Política, o carácter vital da participação dos povos indígenas no desenvolvimento sustentável. E o Plano de implementação, então adoptado, reitera a importância do conhecimento local e indígena ou tradicional, num largo espectro de preocupações, como por exemplo na erradicação da pobreza, na mitigação de desastres naturais, na mudança climática, na agricultura, na biodiversidade, na sua articulação com a ciência e tecnologia. Dentre estas referências destaca-se, em termos gerais, a que define a necessidade de se promover a efectiva participação das comunidades locais e indígenas nos processos de decisão e elaboração de políticas, e tendo em conta o uso dos seu saber tradicional [44, l]. Especificamente no tocante à realidade africana preconiza-se o respeito pelas tradições locais e o uso do conhecimento indígena na gestão dos recursos naturais e no ecoturismo. Ainda em 2002, em projecto transversal envolvendo todos os seus cinco programas num esforço conjugado visando o conhecimento local e indígena, a UNESCO reconhece a necessidade da revitalização da transmissão deste saber através do estreitamento dos laços entre os idosos e a juventude e pela avaliação das oportunidades e limitações do quadro educacional existente. É evidente que a materialização de todo este esforço da comunidade internacional e especialistas na defesa e valorização dos saberes locais deve ser preparado através da sua uma análise e ponderação cuidadosas, de modo a que não se legitimem ou não se encorajem práticas contrárias aos valores geralmente aceites como sendo de interesse para a elevação contínua do bem-estar das comunidades ou que possam vir a ser um legado lesivo do desenvolvimento das futuras gerações. Mas também a experiência mostra, inclusivamente no caso de Moçambique, que a confrontação intempestiva com valores da tradição levou a que os aparentes avanços momentâneos para a modernidade, em contexto revolucionário conjuntural que acabou por ser interrompido, tiveram como um dos resultados a reversão muito mais forte dos valores e práticas ancestrais que ficaram aparentemente 36 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte adormecidos. Não sendo escopo desta análise discutir o mérito ou demérito deste facto, parece ficar claro que o universo diversificado do saber local tem uma força que é preciso saber integrar como força de desenvolvimento. Isto torna-se ainda mais importante quando se lida com situações de grande isolamento, como é o caso das pequenas ilhas. 2. Arquitectura Território e Ambiente “As patologias ecológicas dos modos de vida contemporâneos manifestam-se de maneira evidente nos processos de formação e transformação do habitat humano, e constituem a causa primária dos desequilíbrios e da degradação ambiental a nível macro/médio/micro. A resolução destes problemas exige um forte empenho e uma particular responsabilidade dos técnicos, públicos ou privados, chamados a guiar, desenvolver e controlar esses processos. Falamos do arquitecto, do engenheiro, dos técnicos sectoriais intermédios, mas também dos especialistas portadores de saber e de competências operativas nos domínios sócioeconómicos e das ciências humanas e naturais. Cada vez mais, estes técnicos são chamados a participar na estruturação e desenvolvimento de estratégias de base e acções de projecto mais complexas”35. Como a sua própria etimologia sugere, na sua abordagem mais comum e redutora, a palavra arquitectura pressupõe à partida, uma intervenção humana sobre o domínio do natural, no sentido de apôr ou acrescentar nele elementos cada vez mais elaborados e controlados de modo a satisfazer a crescente exigência de conforto humano. A construção de um tecto que seja mais seguro e proporcione maior bem-estar físico, que seja útil e que, para além disto, preencha requisitos menos mensuráveis como os de carácter estético, psicológico e social foi, e ainda é, um objectivo perseguido desde os primórdios da história da civilização. Mas arquitectura no seu sentido inicial é mais do que isso. Do ponto de vista etimológico o termo arquitectura parece resultar da união de duas palavras gregas: arch e tecton. A primeira exprime, na língua originária, o significado de empreendimento, fundamento ou guia, enquanto a segunda apresenta vários significados entre os quais a actividade de inventar, criar, plasmar, construir. A união das duas palavras significaria então a racionalização e a regulamentação da actividade criativa de construir qualquer coisa. E qualquer arquitecto ocidental que se preze não pode deixar de ter como referência estes princípios tão bem sintetizados e desenvolvidos por Vitruvius há dois milénios. Mas o que estava em causa até 35 Dierna, Salvatore, op. cit., ponto 4. 37 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte há relativamente pouco tempo era o espaço em si, que se fabricava para se viver melhor, ou seja, o mecanismo ou edificação que era preciso erigir, que valia por si só e, quando muito, se relacionava com outros edifícios que, ao se agregarem de determinada forma e sob certas condições, deram origem às cidades. A relação e busca de bem-estar individual ou de grupo, cuja escala se ampliou até à dimensão do país ou do agrupamento de países, passou a considerar a importância da atmosfera e da litosfera, do ar, da água, do solo, da fauna e da flora, de início conceptualmente estranhos ao acto de projectar (tendo-se na mira, em última análise, o interior edificado), apenas quando o frenesim de aposições artificiais sobre a natureza e a transformação desta levou ao estabelecimento de um efeito de boomerang, passando os elementos da natureza a actuar, nalguns casos, como elementos de desconforto e de preocupação, quer pelo seu consumo excessivo que os tornou escassos, quer pelo inquinamento que os tornou perigosos em certas circunstâncias. Até recentemente a noção de ambiente, era aplicada no seu sentido restrito. Em arquitectura ainda se utilizava (e nalguns casos ainda se utiliza) a expressão “controle ambiental” para designar o conjunto de processos que permitem modelar a qualidade da prestação dos espaços de acordo com as suas finalidades específicas. Trata-se de modelar elementos como a luz, a temperatura, a velocidade do ar, o som, a humidade relativa… Era ‘ambiente dentro’, era arquitectura como continente de um específico ‘ambiente’. E não arquitectura e edificação como elemento de ambiente. 2.1. A arquitectura e a consciência ecológica e dos fenómenos ambientais. O impacto negativo da actividade humana, cujo agravamento se acelerara a partir da revolução industrial, começa a construir corpo teórico operativo e sistemático de diagnóstico e terapias, e a exigir uma prática nova e específica no planeamento do território e na arquitectura. Impulsionados pelos avanços da ecologia atingidos a partir dos meados do séc. XX, é nos anos 90 que as elaborações científicas e filosóficas, aprofundando os problemas da acção antrópica, atingem uma relevância e uma pertinência global. Assim se afirma a urgência da necessidade de intervenção, a urgência do salto filosófico e tecnológico de mudança de objectivos, que acabam por direccionar a ênfase do planeamento do território e da projectação arquitectónica para a protecção da natureza, para a conservação dos ecossistemas, para a preservação dos processos vitais, para a eco-compatibilidade e ecoeficiência. O Ambiente estabelece-se entretanto como corpo autónomo de conhecimento, definindo-se como “ (1) as circunstâncias ou as condições que condicionam um organismo 38 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte ou um grupo de organismos, (2) o conjunto das condições sociais ou culturais que influenciam um indivíduo ou uma comunidade. E na medida em que os homens habitam tanto no mundo natural, como no construído ou tecnológico, social e cultural, cada coisa constitui uma parte importante do nosso ambiente”36. Timidamente a arquitectura, com a qual nos munimos de capacidade de criar espaços e artificializar o território a ponto de as suas realizações contraporem artifício e natureza, confundindo-os até como em cidades totalmente artificiais como Nova Iorque37, começa a ter como uma das principais finalidades agir sobre o território de modo a parecer que “não” se agiu sobre ele ou, quando muito, se serviu dele para o melhorar, requalificando-o. O verbo latino “ambire” que é a alma inicial do moderno termo ambiente ganha o seu verdadeiro significado obrigando a que se estabeleça a necessária relação de complementaridade mais sustentada entre o ambiente construído e o ambiente natural que o contém e que se quer que seja mutuamente enriquecedora. Olhar para o que circunda o edificado, definir os impactos deste sobre o ambiente natural pré existente e sobre o equilíbrio dos ecossistemas, estabelecer as opções mais compatíveis, tornou-se hoje um domínio científico e técnico que as escolas, as leis e a administração pública, as organizações cívicas e as comunidades, as empresas e os indivíduos, os países e o concerto das nações trouxeram para a sua esfera de preocupações. A dimensão global desta exigência é fruto da consciência, cimentada e mediatizada, em 1987, pelo Relatório da Comissão Mundial para o Ambiente e Desenvolvimento dirigida pela Sra. Brundtland, de que a terra é finita, devendo-se agir para que não se ponha definitivamente em risco a sua capacidade de continuar a acolher a humanidade no futuro, com a mesma margem de manobra para o seu bem-estar; e a dimensão local resulta da consciência, sublinhada na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 no Rio de Janeiro, de que o equilíbrio global do ambiente e a durabilidade do desenvolvimento é indissociável do equilíbrio das partes que neles interagem. Mas a arquitectura e o planeamento do território são apenas um dos múltiplos e entrelaçados domínios que integram a problemática ambiental. Muitos problemas e dilemas ambientais terão de ser explorados e muitos caminhos terão de ser abertos para superá-los. E para que as abordagens tenham êxito deverão guiar-se por 36 37 Cunningham, William P., Cunningham, Mary Ann, SAIGO, Barbara Woodworth, op. cit., pág. 21. Gillo Dorfles, 1992. 39 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte uma visão holística. Entre os problemas mais gerais encontram-se a dicotomia entre o Norte e o Sul; a situação de disparidade de desenvolvimento no mundo; a desigualdade do bemestar em que 86% do consumo privado se deve apenas a 20% da população dos países mais ricos38; a diminuição da biodiversidade; a origem, a dimensão e o assumir de responsabilidades, bem como o lançamento de estratégias de combate e mitigação dos efeitos ligados à emissão de gases nocivos para a atmosfera; a desflorestação e a desertificação; o empobrecimento dos solos; o esgotamento previsível de muitos dos recursos naturais; a emissão e o tratamento dos dejectos inquinantes; o desafio do consumo energético e do desenvolvimento de fontes alternativas de produção de energia; as políticas unicamente viradas para o crescimento económico… Só uma acção concertada e global permitirá enfrentar a degradação ambiental ultrapassando-se definitivamente a situação definida em 1972 pelo Clube de Roma, em que, mesmo “[...] com a nossas imensas possibilidades científicas e tecnológicas para melhorar a condição humana [...]" permanecemos ainda "[...] ricos em conhecimentos mas pobres em sabedoria"39. Nos tempos que correm, para além dos novos conhecimentos no âmbito da teoria adquiridos através da investigação e da consciencialização crescente criada pela interacção entre as Academias, as organizações internacionais em que sobressaem as do sistema das Nações Unidas, organizações de direito privado, investigadores e personalidades agindo muitas vezes a título pessoal, fundações e outros -, grandes avanços têm sido feitos no estudo e estabelecimento de processos e tecnologias para diminuir e prevenir os impactos negativos da actividade humana sobre o ambiente e sobre os ecossistemas. Em muitos domínios do conhecimento passou-se já para a esfera da aplicação do saber. O empirismo vai cedendo lugar à busca de soluções testadas e fundamentadas cientificamente. E o pragmatismo calculado impõe-se porque o tempo urge. É este o sentido da abordagem preventiva - “precautionary approach” – defendida no Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento: “ Onde existam ameaças de danos sérios ou 38 Ching, Lim Li, Sustainability for Whom?, em Science in Society,No 15 Summer 2002, Edited by The Institute of Science in Society, London - http://www.i-sis.org.uk/isisnews/SIS15web.php. 39 Novartis Foundation for Sustainable Development (NFSD), 2003, Sustainable Development: A Common Challenge for North and South, Site URL: www.novartisfoundation.com http://www.novartisfoundation.com/en/articles/development/sustainable_development_a_common_challenge.ht m#30 40 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte irreversíveis, a falta de completa certeza científica não deverá ser usada como razão para o adiamento de medidas viáveis – “cost-effective measures” – para prevenir a degradação ambiental. Novos enfoques começam a caracterizar a arquitectura. Este despertar sectorial das responsabilidades da arquitectura no concerto das disciplinas com grande impacto sobre o ambiente não é certamente alheio ao facto de a arquitectura estar intimamente ligada a uma esfera da actividade humana − a construção − na qual se verificam os maiores índices, quer no que respeita ao inquinamento da atmosfera, quer no que respeita às lesões por ela provocadas no território, com efeitos muito nocivos não só no imediato como a longo prazo. Paradoxalmente talvez seja a sua própria vocação primária de transformadora da paisagem, a par com essa íntima relação culpabilizante (cada vez mais consciencializada) com a indústria dos materiais de construção, o que por um lado provoca, no seu âmbito, a resistência à mudança na actividade profissional (muitas vezes como efeito de tambor das exigências dos clientes) e, simetricamente por outro lado, o surgimento de atitudes militantes de crítica apocalíptica quanto aos impactos da prática que não considera todas as dimensões conhecidas de sustentabilidade do projecto de arquitectura e planeamento territorial, mesmo quando elas não sejam suficientemente provadas experimentalmente. Daqui eventualmente resultam nos projectistas, respectivamente, a indiferença na reconversão da atitude passiva ou conservadora em relação à mudança do enfoque tradicional da actividade de projectação, e o surgimento frenético de novas receitas e correntes para enfrentar os desafios actuais da sua acção sobre o território e a paisagem. 2.2. Novos enfoques na arquitectura. A arquitectura não pode estar alheia ao actual complexo de ameaças globais com impacto directo e indirecto nas realidades e preocupações locais. Como outros domínios do conhecimento e com eles, ela é chamada a contribuir, no seu âmbito, com a abertura de novas opções e propostas de trabalho promovendo uma interacção criativa com o ambiente, a qual, não sendo espartilhante, permita a minimização e eliminação gradual dos danos ambientais de que também ela própria é e foi vítima particularmente durante as mais de duas centenas de anos precedentes. Na realidade, e como nos diz Salvatore Dierna, o objectivo de fazer uma Arquitectura e uma Cidade eco-sustentáveis obriga a que se proceda a uma revisão radical dos princípios que informam o processo comum e consolidado de planificação e projectação. É preciso rever os princípios éticos, os métodos científicos e instrumentação técnica já consolidada, as 41 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte metodologias adoptadas na planificação territorial, na urbanística e na programação e realização das intervenções na área da construção para modificar a concepção do plano e do projecto. Tal mudança radical deverá inserir-se na lógica contemporânea do “pensar global agindo-se localmente”, lógica esta que é própria do pensamento ecológico, na busca de uma relação equilibrada e adequada entre a cultura de habitar e a disponibilidade e economia de recursos, uma relação virtuosa que evite regressões vernaculares e ênfases modernistas40. Na sua interacção com o ambiente a obra arquitectónica não se ilumina apenas com os rasgos das vedetas da profissão. É sobretudo na multidisciplinaridade e na interdependência dos domínios de intervenção que a eficácia e a eficiência se obtêm. Isto não nega a criatividade e a genialidade, mas a abordagem aos desafios ambientais postos à arquitectura já não se satisfaz apenas com as luzes da ribalta dos modismos formais. Necessita-se de perseverança, de inovação na busca de integração com outras ciências, de maior ênfase na valorização dos impactos, nem sempre imediatos, da obra sobre o bem-estar colectivo. A adjectivação ‘bioclimática’, ‘natural’, ‘ecológica’, ‘sustentável’, ‘eco-sustentável’, ‘biológica’, ‘low-tech’ e ‘high-tech’, com as quais hoje frequentemente se qualifica a arquitectura, cada vez mais se insinua no dia-a-dia das nossas vidas e o moldam. E neste contexto a arquitectura envolve-se a dois níveis de acção principais: o das novas construções e o da requalificação do património existente41. É verdade que os projectos de intervenção sobre o território quer tenham como objectivo elementos a edificar ou o ordenamento territorial, são sempre documentos ou intenções propositivas. São manifestações de vontade que cristalizam ideias, reduzindo-se assim toda a teoria e a argumentação que as suportam a formas, a imagens, a prefigurações do ambiente e da paisagem. Resulta isto da própria sina redutora do acto de transformar o projecto em coisa construída ou em território reorganizado. Mas a vida que lhes dará conteúdo é informada por mais elementos, muitos dos quais não é possível prever porque, entre outros aspectos, as circunstâncias que os definem podem, em cada momento do seu uso, não se verificar ou verificar-se de modo diverso. Não serve isto para se justificar qualquer atitude paralisante, inconsciente ou menos informada dos projectistas. Serve apenas para colocar a ideia de que, antes de tudo, estes devem ser técnicos competentes e 40 41 Dierna, Salvatore, Obra citada, ponto 1. Montruccoli, Simona, Approccio all'architettura naturale - http://www.larici.it/ - [email protected], 2004. 42 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte preocupados com o devir colectivo, sem o que a sua simultânea qualidade de artistas, de produtores de beleza e conforto psicológico, não irá muito para além da habilidade de criação de ícones cujos princípios de sustentação serão dificilmente objectiváveis. Afirmando-se esta dimensão estética do acto de projectar, torna-se, no entanto, necessário informá-lo de critérios mais objectivos de utilidade colectiva, no sentido de se conferir maior sustentabilidade ao objecto que dele resultará. Os pressupostos comuns de uma dimensão projectual no território, no quadro de um processo de transformação ecológica remetem-nos, segundo Raffaelle Paloscia, a quatro momentos essenciais: 1. O equilíbrio ambiental, que se traduz numa particular atenção e sensibilidade posta na observação cuidada do ambiente natural, da sua complexidade biológica e do seu equilíbrio evolutivo; 2. A entidade do lugar, o que significa a consideração do modo de habitar, de construir, de produzir, do estilo de vida, da cultura de trabalho, dos “saberes ambientais”, que são depositários de metodologias e técnicas de intervenção no território; 3. Dimensão local da acção, que se expresse na produção de riqueza e qualidade de vida referidos coerentemente a cada cultura, a cada tipo diferente de relação entre comunidade e ambiente, valorizando-se os recursos locais, sejam eles humanos, físicos e ambientais; 4. A participação, através da qual se estabelece uma motivação constante da comunidade nas diferentes fases do projecto, configurando-o como projecto socialmente produzido, no qual os técnicos garantem a aplicação de conhecimentos profissionais específicos conducentes a intervenções eficazes e ecologicamente apropriadas e evitando a tentação de uso de modelos preconcebidos42. Note-se que a afirmação destes momentos não significa o encerramento do processo projectual numa dimensão exclusivamente local. A dimensão externa é sempre necessária, não devendo no entanto ser enfatizado o carácter exógeno a ponto de apagar referências e desvalorizar as aquisições locais ao longo do tempo e que, de algum modo, constituam elementos identitários significativos das gentes e dos lugares. A este propósito é pertinente 42 Paloscia, Raffaelle, L’approccio territorialista alla progettazione ecologica, em Palloscia, Raffaele e AnceschI, Daniela (a cura di), Territorio, ambiente e progetto nei paesi in via di sviluppo, Franco Angeli, Milano, 1996, pág. 27-28. 43 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte referir que o papel do projecto ecologicamente consciente não é menos completo e orgânico na sua profundidade e na qualidade das suas operações, mesmo se considerados no contexto do papel e dos procedimentos tradicionalmente implícitos à acção de projectar43. Do ponto de vista metodológico Pizziolo nota que se está a caminho da passagem do projecto ecológico à ecologia do projecto através de estágios e ciclos de trabalho, assumindo a função de ‘prefiguração’ e permitindo que realize melhor o seu papel de simulação com capacidade de interacção com a comunidade. Este modelo enfatizaria o carácter iterativo do processo de elaboração projectual. É a legitimação da crítica e da aceitação de cada ciclo do projecto que permite a passagem para o ciclo seguinte, até à sua finalização como proposta definitiva44. Nos países em vias de desenvolvimento, em particular, é necessária uma dimensão projectual nova, mais atenta aos processos num circuito projectual não linear, que contemple uma abordagem geral que não lhes seja específica, e uma fase de procedimentos e actuação diferenciada contemplando as suas particularidades. A prática tradicional que funda o projecto de construção numa lógica mono funcional e de separação em relação às políticas infra-estruturais e de rede não é adequada45. O projecto sustentável implica, por exemplo, que a conservação de energia não se confina apenas a projectos individuais, mas deve ser orientada através de um plano de gestão de recursos, cuidadosamente coordenado tanto no nível municipal como no nível regional46. O mesmo se exige em relação à necessidade de adequação tecnológica para a solução sustentável das funções de controlo micro ambiental de varáveis físicas como a temperatura, a humidade, a circulação do ar. Ademais em territórios confinados como no das pequenas ilhas, é fundamental que se adoptem soluções integradas e sinergéticamente articuladas em relação ao abastecimento e evacuação de águas, bem como à colecta e tratamento de dejectos domésticos e lixos. 43 Pizziolo, Giorgio, Il progetto e la sua dimensione ecológica: insegnamenti da un’esperienza in Algeria, em Palloscia, Raffaele e Anceschi, Daniela (a cura di), op. cit., pág. 52. 44 Pizziolo, Giorgio, Il progetto ecollogico nei paesi in via di sviluppo, em Trevisol, Erich Roberto (a cura di), L’Ambiente visto dal territorio. La pianificazione ambientale autosostenibile per i Paesi in via di sviluppo, L’armattan Italia, Torino, 1995, pág. 182-183. 45 Trevisol, Erich Roberto, Un schema logico per la pianificazione ambientale nei PVS, em Trevisol, Erich Roberto (a cura di), op. cit. pág. 13. 46 Clark, Kenneth N., Sustainable community planning, em Desert Architecture III: Building a Sustainable Future, Arilands Newsletter, No. 36, Fall/Winter, 1994 http://ag.arizona.edu/OALS/ALN/aln36/Clark.html. 44 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte Em termos mais gerais e com referência ao contexto regional consideramos de grande relevância registar o desafio lançado por Salvatore Dierna aos projectistas da África Austral ao propor um conjunto de dez pontos que, sendo informados pelas temáticas e questões importantes da actualidade e pela experiência e contribuições teóricas de profissionais amplamente reconhecidos, podem contribuir para construção de uma atitude de projectação arquitectónica e ambiental mais adequada ao presente e menos lesiva no futuro e que, eventualmente, poderiam configurar atitudes e princípios a plasmar, naquilo que poderia ser uma Carta para a Arquitectura da África Austral. São eles: 1. Emprego consciente dos recursos naturais segundo os princípios de responsabilidade e de competência científica e técnica. 2. Consideração do Arquitecto como intérprete do contexto e dos valores do património cultural e ambiental, “medium” entre passado e futuro. 3. Participação como meio para se reconhecer no espaço: o “construtor anónimo” e o processo produzido pela arquitectura e pelas cidades na busca da identidade. 4. Desenvolvimento consciente e inseminação dos conhecimentos científicos e tecnológicos para formular e activar propósitos de bom governo e de bem-estar social. 5. Flexibilidade da abordagem projectual, nos modos de actuação e de uso de modo a garantir a satisfação das exigências da arquitectura. 6. Equilíbrio entre espaços abertos e construídos, entre exigências comunitárias e individuais, princípios éticos para o desenvolvimento de paisagem natural e antrópica. 7. Arquitectura como exigência basilar de bem-estar físico e emotivo do Homem na organização físico-espacial do seu habitat. 8. Restauração, saneamento e valorização das Arquitecturas e do ambiente da “cidade formal” e dos processos de consolidação e reconversão da “cidade informal” . 9. Análise e avaliação dos equilíbrios/desequilíbrios ecológico-ambientais do contexto em função de um desenvolvimento sócio-económico correcto. 10. Modelos de vida local como incubadoras do sentido de comunidade, e também como métodos e prática sustentável para a produção de rendimento. 47 47 Dierna, Salvatore, A Questão Ambiental: princípios e praticas para uma Arquitectura e uma Cidade sustentável no Sul o mundo, in FORJAZ, José, Arquitectura, Ambiente e Sobrevivência, Edições FAPF, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 2005, pág. 17. 45 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte Com o objectivo da transformação eco-compatível da paisagem, este decálogo de princípios chama a atenção para uma actuação consciente, competente, participada e flexível que, resolvendo correctamente as exigências de conforto físico e psicológico (emotivo e estético) considera, de uma forma tão completa quanto possível, o modo de habitar e a sua representação física no território. 2.3. Recursos locais, sol, vento e tratamento adequado dos dejectos como factores relevantes de sustentabilidade. Num contexto de carência acentuada de meios financeiros, tecnológicos e de gestão, a par de desafios e perigos dos impactos da acção humana em ambientes e sistemas ecológicos delicados, parece óbvia a consideração das potencialidades locais ao mesmo tempo que se potencia a utilização de conhecimentos e técnicas avançadas que minimizem esses impactos. Tal atitude afigura-se mais premente sobretudo quando se está em presença de uma viragem ou reorientação da base económica de um determinado local ou região, como acontece com o caso de estudo deste trabalho. É aqui que se põe a necessidade de maximização criteriosa dos recursos disponíveis utilizados de uma forma ‘limpa’ e sem danos no presente e no futuro das comunidades e do território. O objectivo reiteradamente afirmado nos nossos tempos é o de se Projectar com respeito pelo ambiente e ecossistemas com base numa concepção de edificações salubres para os seus utentes e que cumpram o princípio da minimização dos impactos negativos sobre o ambiente e os ecossistemas. Mas os materiais e as técnicas usadas no séc. XX estiveram quase sempre em contradição com este princípio. Qualquer que seja a aproximação projectual num contexto de eco-compatibilidade, a adopção de metodologias adequadas de avaliação prévia dos riscos é um factor fundamental para o alcance dos objectivos. Reveste-se de uma grande importância para tal o recurso a modelos de trabalho, as check lists e matrizes apropriadas que permitam conhecer as causas, a frequência e tipos de acções e que permitam a definição de comportamentos de risco a corrigir e mitigar. Uma contribuição valiosa sobre este tema pode também ser encontrada, entre outras, em Erich R. Trevisol48. Através desta abordagem metodológica podem-se identificar os factores causais antrópicos e estabelecer, bem como definir, as 48 Trevisol, Erich R., Riqualificazione di insediamenti spontanei a Cartagena das Indias, Colombia, em Palloscia, Raffaele e Anceschi, Daniela (a cura di), Territorio, ambiente e progetto nei paesi in via di sviluppo, Franco Angeli, Milano, 1996, pág. 158-160. 46 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte opções tecnológicas para solucionar problemas de base nos quais assenta o objectivo primordial de sustentabilidade dos projectos. É neste quadro e tendo em atenção o caso de estudo, que se estabeleceu a imprescindibilidade de tratar prioritariamente a problemática da utilização dos recursos locais, das viabilidades energéticas e da questão do saneamento, particularmente importantes em regiões que, por serem isoladas e funcionarem como sistemas relativamente fechados, exigem abordagens específicas que contribuam para garantir um mais elevado grau de sustentabilidade ao objectivo de elevação do bem-estar das comunidades envolvidas e uma maior abertura de opções de desenvolvimento no presente e no futuro. Do ponto de vista prático, o alcance de standards adequados de sustentabilidade do desenho obter-se-ia através da prossecução dos seguintes objectivos gerais: • Utilizar principalmente recursos (incluindo os materiais de construção) disponíveis em grande quantidade na região ou no local de construção, de preferência que não exijam refinação, não sejam prejudiciais à saúde, e que não resultem em processos de emissões prejudiciais para a atmosfera e que necessitem de um limitado processo de transformação, reduzindo-se assim os desperdícios de energia; • Garantir a flexibilidade de uso dos edifícios na perspectiva de possíveis alterações; • Buscar um sistema eficiente de poupança de energia tendo em conta o clima local e o uso de inovações tecnológicas na produção de energia e na utilização de processos naturais de elevação dos níveis de conforto físico; • Garantir a durabilidade adequada da construção; • Utilizar materiais que possam ser reciclados e reutilizados uma vez demolido o edifício; • Buscar a integração e estímulo estético na proposta de desenho da(s) estrutura(s) do edificado, no quadro da prossecução do objectivo geral de conforto físico e psicológico49; É evidente que este sintético ‘para-modelo’ de actuação não totaliza a estratégia adequada de projecto em qualquer situação. No caso de estudo que nos ocupará, outros elementos estruturantes do bem-estar comum deverão estar entre as prioridades de tratamento através do diagnóstico, análise e definição de soluções eco-compatíveis viavelmente estabelecidas. É o caso da produção de água potável e da definição de opções sustentadas de saneamento. 47 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte Afloramos, no ponto anterior, os conflitos entre a indústria de materiais de construção e o ambiente. De facto a produção de materiais de construção tem impacto directo no ambiente natural e nos ecossistemas do planeta. Esta actividade provoca a perda substancial dos solos e da terra arável, a destruição das florestas e das terras silvestres, a poluição do ar através de emissões de poeiras, fibras, partículas, gases tóxicos, nitrogénio e sulfuretos49. Neste âmbito, e em termos sumários, a produção de materiais de construção provoca a poluição global da atmosfera de duas maneiras: através do uso e emissão de clorofluorcarbonetos nos edifícios construídos, levando à depleção das camadas de ozono, e através da emissão de dióxido de carbono e de outros gases com efeito de estufa. Para além destes impactos negativos a produção de materiais de construção é um grande consumidor de minerais e de fontes de energia não renovável. O mais preocupante é que esta problemática não é exclusiva dos países desenvolvidos, nem se confina ao sector moderno de produção. Ela afecta também os países de menores rendimentos, bem como a produção tradicional/artesanal quando a sua pressão e escala introduz irreversíveis alterações na conservação dos recursos. A reversão deste processo destruidor Incluiria: a) A apropriada selecção e substituição de materiais de construção; b) Uma planificação mais cuidadosa do uso do solo, tanto no que respeita à localização de novos empreendimentos como na extracção de matérias primas; c) A reciclagem e reutilização dos resíduos tanto da própria indústria de construção como de outras indústrias e da agricultura; d) A adopção de novas tecnologias de eficiência energética, baixo nível de poluição, e conservação dos materiais; e) A adopção opções e formas de construção que reduzam o consumo interno de energia. A experiência e normas que já existem nestes domínios indicam que esta mudança geral para praticas mais consentâneas com os objectivos ambientais carece menos de conhecimentos do que de apropriadas políticas de direcção ou de regulamentação 49 No Habitat Debate, vol. 5 No. 2, e citando Dimson, B., Baris Der-Petrossian refere que “só a indústria de construção consome cerca de 40% da energia mundial, cerca de 25% da madeira das florestas e 16% da água doce do planeta” − http://www.unhabitat.org/HD/hdv5n2/intro.htm. 48 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte governamental apropriada. Os interesses comerciais são outro importante factor de resistência contra o uso de boas práticas de construção e de produção de materiais.50 Mas as percepções de modernidade, conforto e desenvolvimento geradas pelo impacto das cidades modernas, em particular sobre as elites dos países em desenvolvimento, nomeadamente em Moçambique, podem também ser um factor de menosprezo e desqualificação de experiências de uso contido, calculado e em escala adequada de técnicas e materiais (com menor consumo de energia na produção e uso) alternativos ao aparelho de ar condicionado, ao cimento, ao ferro, ao PVC, nesses mesmos países, bem como a abertura de caminhos de projectação e de pesquisa que viabilizem a utilização de novas opções, materiais e técnicas apropriadas, mesmo que isso possa à primeira vista parecer um salto desnecessário no desconhecido. A investigação como fonte de projecção de melhor futuro ainda não está munida da convicção, exigência, recursos de conhecimento e financeiros para se abrirem outros caminhos de construir menos danosos ao ambiente e, pior do que isso, ainda não está alimentada da consciência e da pressão para a busca de saltos mais ousados de imaginação. Para além da fundamental falta de meios de todo o tipo, a solução de necessidades básicas de alimentação está ainda no centro das políticas e dos programas, diminuindo a ênfase do carácter decisivo da experimentação extensiva apoiada nas problemáticas da sustentabilidade do projecto e da construção como elemento importante de um desenvolvimento durável. De uma maneira geral o uso e preservação dos recursos disponíveis exige a adopção de tecnologias sustentáveis, as quais têm sido alvo de estudos e experimentação, não apenas a nível público como também a nível privado. Neste âmbito três importantes domínios se têm perfilado como prioritários para promover a melhoria sustentada das condições de vida, particularmente em países ou áreas de fraco desenvolvimento. Trata-se: 1. Da produção renovável de energia térmica, calorífera e de iluminação com recurso a técnicas de decomposição anaeróbia, de combustão de biomassa, de aproveitamento da energia eólica; 2. Da utilização de tecnologias sustentáveis de aprovisionamento de água, de modo a garantir-se a adopção de sistemas seguros e duráveis de colecta, armazenamento e 50 United Nations Centre for Human Settlements (Habitat), Report of the workshop on the network of african countries on local building materials and technologies. 6-8 September1993, Habitat, Nairobi, 1994: capítulo IV. Conflicts between the building-materials industry and the environment, págs.88 a 90. 49 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte disponibilização de água para diversos fins, com origem quer nas chuvas, quer nas reservas subterrâneas, quer ainda no recurso à dessalinização da água do mar; 3. Da recolha, deposição/eliminação, tratamento/reutilização e gestão dos lixos e dejectos. 3. As pequenas ilhas, campo específico de intervenção e de pesquisa. “Nenhuma terra foi cantada com tão alta veia poética, de mistério e de fantástico quanto as ilhas, e os cantos levados em cada tempo e para cada ponto do globo terrestre, para cada estirpe humana, narrando-se tais maravilhas e experiências tão universalmente, que se induziu a hipótese de que a insularidade fosse quase uma categoria da consciência humana, uma etapa obrigatória para certos momentos fundamentais da consciência... I limiti dell’insularitá furono condizione di sviluppi stellari del divenire dell’uomo”51. As pequenas ilhas consistem em relações de retro alimentação, ciclos e processos onde a relação de causa e efeito tem uma importância especial na gestão das intervenções, e os seus subsistemas ambientais, que estão sempre em interacção recíproca, podem ter usos múltiplos. Deste facto, mas não só, resulta a importância das considerações de sustentabilidade para se evitarem conflitos entre os vários utilizadores e garantir-se a protecção ambiental a longo prazo. A manutenção e o desenvolvimento das infra-estruturas físicas e sociais implicam inevitavelmente o uso dos recursos existentes. Este uso produz sempre um impacto sobre o ambiente, o qual é determinado pelo tipo de comportamento e acções humanas. A imprevisibilidade é um traço importante que caracteriza as transformações ambientais nas pequenas ilhas, nomeadamente devido ao elevado grau de mobilidade dos organismos biológicos. À medida que a densidade da actividade económica costeira aumenta, maior é a necessidade de uma gestão sustentável com vista à adequação da acção humana às exigências de um maneio correcto dos processos naturais52. A história humana recente contém exemplos de ilhas inteiras que se tornaram inabitáveis por destruição ambiental devida a causas externas. ... O desenvolvimento insustentável ameaça não apenas a vida dos ilhéus mas também as próprias ilhas e a cultura de que elas são o suporte. A mudança climática, a variabilidade climática e a elevação do nível do mar são 51 Racheli, Gin, op. cit. pág. 11. Planning for sustainable tourism development http://www.csiwisepractices.org/?read=100 52 50 / Karelia - Finland and Russia, 1999 - Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte questões de grave preocupação. Similarmente, os recursos biológicos dos quais dependem as ilhas são ameaçados pela exploração em larga escala dos recursos vivos terrestres e marinhos. Devido à pequena dimensão, ao isolamento e fragilidade dos ecossistemas insulares, a sua reconhecida diversidade biológica é a mais ameaçada do mundo. Isto requer que, na senda do desenvolvimento, se preste especial atenção à protecção do ambiente e bem-estar da população. Mas também é necessária uma gestão integrada dos recursos53. 3.1. A solidariedade na organização e partilha de preocupações e saberes. Muitas são as organizações e iniciativas que estão interligadas e se referem às pequenas ilhas. Elas manifestam-se tanto ao nível nacional como ao nível regional e internacional, possuindo um carácter institucional público ou mesmo privado. Em todos os Oceanos e continentes, Estados insulares e grupos de ilhas têm-se organizado numa corrente de solidariedade sem precedentes. Criam-se e multiplicam-se novos tipos de parceria (institucionais, económicos, legais, culturais, de pesquisa, de troca de experiências e saberes, de busca de identidades comuns e laços históricos, …) entre os Estados Insulares, entre as ilhas e as instituições administrativas centrais, regionais e locais dos países a que pertencem, entre ilhas de países diferentes, entre organizações intra-insulares. Utilizando os benefícios das novas formas de contacto e discussão organizam-se conferências, seminários, colóquios ou simples reuniões para reflexão conjunta; e com o auxílio das tecnologias de comunicação amplia-se este movimento, sendo hoje possível terse acesso ao mais diverso tipo de informações, nomeadamente através de diversos endereços da internet, entre os quais podemos referir: Como Parceiro (Partner) internacional: - www. Insula.org; e como endereços relevantes: - http://www.globalislands.net/; - http://www.islandpress.com/ ; - http://teleinsula.trainet.it/teleinsula/c03/c03_01_01.htm ; 53 Ponto 5 e 6 Anexo II - Preâmbulo do Programa de Acção para o Desenvolvimento Sustentável, que faz parte integrante do Relatório da Conferência Global de Barbados Sobre o Desenvolvimento Sustentável dos pequenos Estados Insulares em Vias de desenvolvimento. 51 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte - http://www.islandstudies.org/ ; - http://www.world-tourism.org/ ; - www.eurisles.com ; - http://www.unepie.org/pc/tourism/home.htm ; - Alliance of Small Island States ; - Baltic Seven Islands Cooperation Network ; - East - West Center ; - European Islands System of Links and Exchanges ; - Indian Ocean Commission ; - Institute of Island Studies at the University of Prince Edward Island ; - International Scientific Council for Island Development ; - International Small Islands Studies Association ; - Island Resources Foundation ; - Islands and Small States Institute at the University of Malta ; - Microstate Network ; - Ministere de l'Outre-mer ; - Research Institute for Subtropics ; - Secretariat of the Pacific Community ; - Small Island Developing States Network ; - The Island Gateway at the United Nations University ; - The Islands and Small States Institute ; - The World of Islands ; - UK Overseas Territories Conservation Forum ; - United Nations Environment Programme - Islands ; - UN Programme for SIDS e SIDSnet (Small Island Development States Netwok) ; - UNEP Islands ; - UNESCO Coastal Regions and Small Islands Unit . 52 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte É assim que se eleva cada vez mais a voz das pequenas ilhas, guiadas por problemas, anseios e necessidades, com vista a enfrentarem os desafios comuns que se lhes colocam, fruto dos elementos igualmente comuns que as caracterizam, nomeadamente: • Isolamento e afastamento; • Recursos naturais e humanos limitados; • Dificuldades em termos de competitividade e de desenvolvimento económico; • Ambiente frágil. Confrontados com problemas comuns difíceis de solucionar isoladamente os Pequenos Estados Insulares motivaram iniciativas de abordagem e concertação a nível regional e universal, tendo levado a Organização das Nações Unidas a agendar nos seus programas de trabalho o objectivo do seu desenvolvimento, face aos constrangimentos diversos e específicos que eles enfrentam. “A Conferência Global sobre o desenvolvimento Sustentável dos Pequenos Estados insulares em Vias de Desenvolvimento, realizada em Barbados em 1994, foi a primeira conferência global visando o desenvolvimento sustentável deste tipo de Estados e a implementação da Agenda 21”54, decorrente da Reunião do Rio. A cooperação inter-insular, traduzida pela veiculação coordenada da informação em rede, pela adopção de estratégias comuns de acção e pela promoção conjunta de projectos do desenvolvimento sustentável é, em si própria, um instrumento fulcral de valorização de saberes específicos e de boas práticas a aplicar. Neste âmbito tem sido fecundo o apoio das organizações internacionais da esfera das Nações Unidas, bem como o de outras organizações continentais e regionais55. Expande-se e aprofunda-se deste modo o acervo metodológico e normativo necessário ao direccionamento dos políticas e práticas de gestão nacionais, regionais e internacionais no sentido da consolidação de uma visão de desenvolvimento assente na sustentabilidade. O pressuposto da concertação metodológica e normativa tem-se manifestado particularmente presente nos domínios da preservação ambiental e da biodiversidade; do desenvolvimento sustentável; do turismo; da preservação da identidade cultural; da luta contra as catástrofes naturais; da busca de formas de produção sustentada. Daqui têm resultado abordagens conceptuais, orientadoras e 54 Ponto 2 do Anexo II - Preâmbulo do Programa de Acção para o Desenvolvimento Sustentável, que faz parte integrante do Relatório da Conferência Global Sobre o Desenvolvimento Sustentável dos pequenos Estados Insulares em Vias de desenvolvimento. 55 Meeting the Challenges, publicado pelo Departamento de Informação Pública das Nações Unidas, DPI/2060 July 1999 - 5M, http://www.un.org/esa/sustdev/sids/siga99ia.htm. 53 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte normativas que constituem referências importantes aplicáveis à planificação, aprovação, implementação e monitoramento de programas de intervenção em contexto insular. Citam-se por exemplo: o Programa de Acção de Barbados para o Desenvolvimento Sustentável dos Pequenos Estados Insulares, de 1994; a Carta de Lanzarote para o Turismo Sustentável, de 1995; a Declaração de Berlim sobre a Diversidade Biológica e o Turismo Sustentável, de 1997; O Código Mundial de Ética do Turismo, de 1999; o Relatório Final sobre o Desenvolvimento Sustentável do Ecoturismo nos Pequenos Estados Insulares e Outras Pequenas Ilhas, de 2001; e a Declaração e a Estratégia das Maurícias para a Implementação Ulterior do programa de Acção de Barbados para o Desenvolvimento Sustentável dos Pequenos Estados Insulares, em 2005. Dir-se-ia que, contrariando o próprio carácter de isolamento que as define, as pequenas ilhas têm estado a realizar um percurso de colaboração e partilha cada vez mais profundo, global e potencialmente profícuo. Este facto é um indicador fundamental no sentido de melhor se encararem os desafios que se lhes colocam visando o objectivo de conservação dos recursos e sustentabilidade do desenvolvimento, porque a vontade ou o desejo livremente expresso de tornar sustentável o processo de melhoria de bem-estar e crescimento económico é um ponto de partida imprescindível para se enveredar na senda de alcance desse objectivo. 3.2. Desafios do desenvolvimento sustentável nas pequenas ilhas. Em 1995, o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) - um grupo de 2500 cientistas de renome coordenados pelas Nações Unidas - concluiu que terá havido entre 0.3 e 0.6˚ de elevação da temperatura média da Terra desde o fim do século XIX. Também encontrou consideráveis evidências de que as actividades humanas, tais como a queima do petróleo, poderão ter contribuído para estas mudanças. Uma tendência generalizada de aquecimento poderá levar à subida do nível do mar - uma vez que a água expande quando aquecida e com a liquefacção das regiões polares – com possíveis consequências desastrosas para as pequenas ilhas. Havendo ainda incerteza dos cientistas sobre quanto o nível do mar irá subir – as projecções do IPCC variam entre 15 e 95 cm antes mesmo do ano 2100, com uma estimativa optimista um máximo de 50 cm – o problema constitui uma preocupação aguda para as pequenas ilhas, as quais são particularmente vulneráveis. São já do conhecimento geral relatos de erosão costeira extensiva em muitas ilhas. No Oceano Índico, países como as Maldivas já expressaram o receio de que 80% dos seus atóis, sejam 54 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte completamente submersos; e nas Seychelles, estima-se que a elevação de 1 metro do nível do mar pode fazer desaparecer 70% da sua massa terrestre56. A fragilidade e a vulnerabilidade são pois dois elementos que caracterizam os recursos naturais das pequenas ilhas. Mesmo mudanças minúsculas podem provocar danos irreversíveis com consequências nomeadamente na perda ou extinção de espécies raras. De facto, parece estar assente que “a natureza fixa, mediante um princípio infalível, os limites de capacidade de um território, espécie por espécie, vegetal ou animal: o princípio da cadeia trófica faz com que a quantidade de indivíduos de uma mesma espécie presentes numa área e os equilíbrios predado/predador sejam rigidamente determinados pela disponibilidade de alimentos, cuja carência leva à emigração ou à extinção da espécie excedentária”57. Este pressuposto de equilíbrio não se limita apenas ao âmbito biológico, ecológico, fisiográfico, territorial. A consideração da vulnerabilidade deve também estender-se ao domínio dos valores intangíveis plasmados na cultura e praticas locais – marcados certamente pelas limitações da distância e do seu confinamento – e que, porventura, também são muito sensíveis à acção externa agressiva e descontextuada sobre a existência da comunidade insular. A alteração do stock de recursos naturais pode engendrar o enfraquecimento e eliminação das pulsões positivas de interacção equilibrada com o ambiente adquiridas pelo homem num processo histórico longo e, por vezes, penoso. Desta forma alteram-se igualmente os limites de capacidade de carga do território. Em resumo, os limites da insularidade não se esgotam na geografia, a qual pode condicionar, por vezes de forma decisiva, a fauna, a flora, os ecossistemas. A insularidade também encontra expressão numa certa psicologia de confinamento que, num processo de alimentação e retro alimentação engendra padrões de cultura marcados pela especificidade, pela unidade, pela identidade profundas de um ethos particular. Há pouco espaço de manobra quanto à flexibilidade, adaptação e sua capacidade de regeneração face a acções de perturbação e destruição do habitat. As condições naturais de escassez próprias das pequenas ilhas tornam-nas propensas à sobre exploração, com consequências na degradação ou destruição completa dos recursos58. Há pouco “espaço 56 Rising Temperatures, Rising Seas, Publicado pelo Departamento de Informação Pública, DPI/2060 - July 1999 5M, em http://www.un.org/esa/sustdev/sids/siga99ia.htm. 57 Racheli, Gin, op. cit. pág. 24. 58 McEachern and Towle, 1974, Impacts of developmental activities on small islands, The Challenge of sustainable management for small islands iii - http://www.insula.org/islands/island2.htm. 55 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte para erros59”. A pequenez insular é, na essência, uma limitação espacial da capacidade de aumento da produção baseada na iniciativa empreendedora da população e na disponibilidade de recursos. Por isso as exigências de desenvolvimento do número reduzido de habitantes são raramente satisfeitas, sendo este outro dos factores que engendra a pobreza nestes locais. Fig. 4 Fig. 5 Fig. 3. Esquema das inter relações da sustentabilidade de um ecossistema insular60 Fig. 4. Análise de gestão sustentável das pequenas ilhas61 Num contexto tão delicado de intervenção como o das pequenas ilhas, o desenvolvimento económico e a melhoria do bem-estar da população exige o estabelecimento de uma multidisciplinar e integrada estratégia de análise dos constrangimentos e factores de sustentabilidade. Esta análise permitirá definir o quadro insular de sustentabilidade onde se articulam as características e processos das pequenas ilhas e respectivos subsistemas ecológicos e, a partir desta base matriz de conhecimento definirem-se as limitações, possibilidades em presença e os tipos e modelo de intervenção. Segundo Gin Racheli, Numa pequena ilha podem ser distinguidos três classes de valores a serem tutelados: Os valores naturais e ambientais, os valores de coexistência humana e os valores culturais. Através destes valores é possível clarificar os limites de capacidade de carga do seu território. 59 Sing, 1992, idem Insula.org., Integrated island sustainability - http://www.insula.org/islands/islands4.htm. 61 Insula. Org., Impacts of developmental activities on small islands - http://www.insula.org/islands/island2.htm. 60 56 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte Sendo o turismo uma das actividades de desenvolvimento em expansão nas pequenas ilhas e, ao mesmo tempo, uma actividade com elevados riscos ambientais, apenas um processo de planificação e construção que se articule e ou no qual se preservem os valores da cultura e do património insular, pode tornar positiva a participação da indústria turística no desenvolvimento das pequenas ilhas. Isto significa que, quando se trate de 62 empreendimentos turísticos, são objectivos relevantes os seguintes : • Integrar a infra-estrutura turística e torná-la compatível com a envolvente imediata; • Preservar a paisagem; • Estabelecer harmonia com a estética local e os padrões culturais locais. As acções a empreender deverão visar; • Redução de impactos indesejados na paisagem; • Minimização, na medida do possível, da área de infra-estruturas e de edificações, • Requalificação das zonas já ocupadas e das zonas degradadas que circundam o núcleo turístico; • Introduzir critérios racionais e eficientes apropriados ao contexto das pequenas ilhas. A este respeito, o Relatório da Reunião Internacional promovida pelas Nações Unidas em Janeiro de 2005 nas Maurícias para a Revisão da Implementação do Programa de Acção de Barbados enfatiza, no ponto 26, a interacção com os mares e oceanos como elemento definidor da história, cultura e economia dos Pequenos Estados Insulares são definidos; e no ponto 82 reconhece especificamente a relevância da identidade cultural dos povos destes territórios como importante factor de catalisação do seu desenvolvimento sustentável, estabelecendo igualmente a necessidade da tomada de medidas para proteger o seu património natural, bem como o património cultural tangível e intangível. Em Moçambique, são escassos estudos que tenham tido como foco a arquitectura como artefacto específico resultante de um determinado contexto cultural nacional, quer considerado isoladamente, quer considerado como testemunho de um intercâmbio cultural entre povos que estiveram em contacto ao longo da história. No caso do Norte de Moçambique parecia ser evidente que a cultura swahili, que se expandiu até ali e muito mais para Sul, tivesse deixado marcas da sua presença no domínio da arquitectura. E no seu 62 Insula.org., Landscape conservation and building integration - http://www.insula.org/tourism/pagina_n5.htm. 57 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte contacto com realidades locais, bem como com outras realidades culturais determinadas pelo colonialismo, tivesse também induzido ao uso de materiais, processos, técnicas e opções de desenho cuja explicação pode residir em contextos endógenos e exógenos à região. Considerámos interessante escrutinar também esta hipótese, em termos gerais e como elemento de referência para entendimento dos processos e das opções arquitectónicas em presença, tomando a ilha do Ibo como caso de estudo. No caso de estudo que abordaremos aplica-se o princípio de que o “património vernáculo construído é a expressão fundamental da identidade de uma comunidade, das suas relações com o território e, ao mesmo tempo, a expressão da diversidade cultural do mundo”63. Considerando a imprevisibilidade e a vulnerabilidade que caracterizam a situação insular, a observação e o estudo de casos de sucesso (e não só), similares àqueles em que se tenha de actuar, podem significar uma contribuição com grande potencial sugestivo e de aprendizagem. 3.3. Iniciativas de preservação ambiental e do edificado. Referências nacionais e internacionais de abordagens e instrumentos de gestão, em contexto insular. Nos arquipélagos e ilhas dos países ribeirinhos ou insulares da costa Oriental da África têm sido levadas a cabo iniciativas legais e experiências de protecção e conservação de importantes sistemas ecológicos, edificados e ambientais. Estas actividades, nem sempre são realizadas com a continuidade que seria de desejar por razões financeiras, técnicolegais, por insuficiência geral de recursos dos respectivos países que os levam a eleger como prioridades outro tipo de acções, ficando secundarizadas as actividades de conservação e protecção ambiental. No entanto estas constituem já um importante elemento de estudo não só como indicadores da mudança de atitudes perante sistemas e conjuntos naturais e edificados com fundamental importância ecológica, cultural e económica, mas também porque são uma fonte de grande relevância para informar experiências similares que se pretendam implantar, particularmente na região. Tomando o tipo de intervenção realizada consideramos útil referenciarmo-nos às experiências levadas a cabo nos seguintes territórios, elegendo os seguintes critérios de selecção: 63 Carta sobre o património construído vernáculo, ICOMOS, Cidade do México, 17 a 23 de Outubro de 1999. 58 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte a) Relevância dos conjuntos edificados, cujas opções de desenho, de tecnologias e a aplicação de saberes locais os caracterizam como realizações culturais singulares a preservar da descaracterização e destruição; b) Relevância da presença de empreendimentos ou pressões de desenvolvimento turístico em ambiente de grande delicadeza e cujos impactos colocam problemas específicos determinando actos de normação e controle apropriados; c) Relevância da problemática ecológica e ambiental, com experiências inovadoras específicas, nomeadamente de tipo normativo e de gestão. A nível internacional, − pelo critérios considerados em a) e b), reputamos útil tomar-se como referência a experiência de preservação do conjunto edificado swahili da ilha de Lamu, no Quénia; − pelo critério considerado em c), reputamos útil tomar como referência a experiência da ilha de Chumbe, na Tanzânia. A nível nacional e utilizando a mesma opção de escolha: − Pelo critério considerado em a), reputamos útil tomar-se como referência a experiência e esforços de preservação do conjunto edificado da Ilha de Moçambique, no Norte do país. O exemplo da ilha de Moçambique é ainda mais elucidativo porque revela a importância do impacto positivo da acção de Associações locais dedicadas à defesa dos interesses da ilha, à sua colocação no fulcro das atenções nacionais e internacionais, à busca de investimentos e apoios nacionais e internacionais (financeiros e técnicos) para acções de recuperação64, à consciencialização e mobilização da população local para participar no seu processo de desenvolvimento e gestão. − Pelo critério considerado em b), reputamos útil tomar como referência a experiência da ilha de Bazaruto, no centro/Sul do país. Neste caso é importante considerar a relevância da contribuição de especialistas pioneiros (é o caso de Paul Dutton) que, tendo estudado a fundo e de uma forma continuada os problemas de impacto ecológico nomeadamente da decorrentes da previsível 64 A Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique foi um instrumento crucial em acções relativamente recentes que se saldaram em intervenções importantes de reabilitação, nomeadamente de parte do sistema de saneamento na ilha e da ponte de acesso. 59 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte pressão turística e da intervenção da população na ilha, levou a que se considerasse a tempo a necessidade de acção legislativa do Governo no sentido da sua declaração como área de protecção a salvaguardar, o que conduziu a estudos e a propostas de acção que se saldaram na emanação, pelas autoridades, de instrumentos específicos de controle e maneio local do ambiente e na limitação do investimento turístico para níveis aceitáveis de sustentabilidade ambiental. − Pelo critério considerado em c), reputamos útil tomar como referência a experiência da ilha de Inhaca, no Sul do país. Este caso é elucidativo da importância da localização na ilha de uma instituição universitária de investigação (o Instituto de Biologia Marinha, da Universidade Eduardo Mondlane de Maputo) como elemento catalisador da atenção de especialistas e estudantes, permitindo que a comunidade científica revele os problemas que se vão revelando e alertando as autoridades para as transformações de impacto negativo para o equilíbrio ecológico e biodiversidade da ilha, nomeadamente os decorrentes do povoamento descontrolado, da implantação desordenada e insustentável de unidades hoteleiras não adequadamente planificadas (de origem sul-africana) e mesmo do crescimento desordenado de espécies animais exóticas lesivas à fauna local (como o corvo indiano de peito branco). Qualquer dos casos referidos apresentam abordagens interessantes e que deveriam ser consideradas quando se está perante situações em que a maior parte dos critérios que se citam estão profundamente articulados como no caso da ilha do Ibo, localizada no arquipélago das Quirimbas, no norte de Moçambique. Reúnem-se neste arquipélago e na ilha que constitui o caso de estudo, os seguintes critérios acima considerados: • a importância do conjunto edificado de matriz swahili, realização cultural de carácter singular já reconhecida pelo Governo moçambicano; • a importância do complexo ecológico e ambiental no qual se insere a ilha, reclamando medidas específicas de regulamentação com vista à sua protecção, conservação, e cujo impacto não se restringe ao seu estrito limite territorial; • a dimensão actual das pressões de entidades privadas no sentido da realização de empreendimentos turísticos na região, tornando relevante acautelar do ponto de vista normativo e de planificação prospectiva os impactos negativos dessa actividade, 60 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte maximizando-se as vantagens a curto e longo prazo, tanto do ponto de vista de conservação, ecológica, ambiental e paisagística, como do ponto de vista cultural. A exigência de lançamento de modelo sustentável de preservação e fruição dos recursos naturais, combinando diversos tipos de instrumentos de intervenção, pode encontrar referência, por um lado, no modelo de planificação pró-activa visando a preservação do núcleo histórico da cidade insular de Lamu, no Quénia e, por outro lado, no modelo controlado e participado de gestão privada da Ilha de Chumbe, na Tanzânia. Qualquer destas referências não devem no entanto deixar de considerar a relevância da dimensão ética do desenvolvimento, como pressupõe José Forjaz na sua contribuição para a elaboração de um Plano Geral de Desenvolvimento da Ilha do Ibo, em que subjaz a toda a acção de planificação a necessidade de impacto imediato na melhoria das condições de vida da população local, em situação insustentável de penúria e subsistência65; bem como a contribuição, por vezes fundamental, da acção de associações de cidadãos interessados no desenvolvimento local, como é o caso da Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique, na ilha do mesmo nome; e a participação de instituições de educação e investigação implantadas no local, como acontece respectivamente na ilha de Inhaca, em Moçambique. Lamu No que respeita à preservação de um ambiente edificado singular com valor internacionalmente reconhecido pode-se tomar como referência de análise o exemplo de prática planificação de tipo clássico da cidade de Lamu., com intervenção directa das instituições do Estado. Com o núcleo antigo já está listado como Património Mundial, Lamu é uma cidade insular e porto do Quénia e o “mais antigo e mais bem preservado assentamento swahili da Costa Oriental africana, que ainda mantém as suas funções tradicionais. É construída maioritariamente com pedra coralina e madeira de mangal. A cidade caracteriza-se pela simplicidade das suas formas estruturais enriquecidas por elementos tais como os pátios 65 Forjaz, José e Carrilho, Júlio, IBO, Maputo, Setembro de 2004, capítulo II, 1 - Introdução, 1º parágrafo, pág, 10. Neste documento elaborado para o consórcio espanhol “Visão 2000 S. L.”, preconiza-se um plano geral de desenvolvimento em vez de uma intervenção meramente do tipo “canónico” e materializado num plano de estrutura ou de ordenamento para a Ilha do Ibo, ou mesmo num plano director e de reabilitação para a zona urbanizada da ilha. Esta concepção foi adoptada como elemento de base no documento elaborado para o Governo da Província de Cabo Delgado, pela “Visão 2000 S. L.”, e com a seguinte referência: “Plano para o Desenvolvimento da Ilha do Ibo”, pág. 4, Outubro, 2004 61 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. I Parte interiores, varandas e portas de madeira elaboradamente esculpidas”66. Esta descrição sintética da cidade velha de Lamu, feita Centro do Património Mundial da UNESCO, não deixa indiferente, alguém que conheça a vila do Ibo, pelo modo como ela se lhe pode aplicar tão directamente, feitas as devidas reservas quanto à escala e importância histórica respectiva. A única dissonância encontra-se no elemento “pátio interior”, que praticamente não existe no Ibo, em favor do característico “quintal” posterior aparentemente típico na cultura residencial de matriz swahili do Norte de Moçambique. Esta similaridade de características justifica, por si só, que valha a pena ter em conta a experiência de preservação levada a cabo em Lamu, no quadro do escrutínio de exemplos elucidativos e adequados para a definição de estratégias de preservação de outros ambientes edificados historicamente valiosos no contexto da costa Oriental da África. Para tal tomamos como referência o estudo feito por T. Luke Young. Chumbe Chumbe é uma pequena ilha de aproximadamente 22 hectares, localizada aproximadamente a oito milhas do sudeste de Zanzibar. Na sua costa ocidental a ilha é limitada por um recife classificado como sendo de beleza e diversidade excepcionais. Estas águas proporcionam habitat para mais de 370 espécies de peixes e 200 espécies primitivas de coral. A própria ilha está coberta por uma ainda não perturbada floresta, um pequeno ecossistema que está desaparecendo rapidamente em outras partes de Zanzibar e da Tanzânia. A ilha também providencia habitat para aproximadamente 20 espécies de pássaros. Esta ilha é um exemplo notável (no dizer de alguns) de participação do sector privado na gestão sustentável de uma área de protecção marinha, designadamente com base no ecoturismo, contribuindo para a actividade de salvaguarda e protecção de recifes de coral e outros recursos e assegurando o seu financiamento. A ilha e as águas que a banham compreendem uma área administrada pela Chumbe Island Coral Park Ltd. (CHICOP), uma empresa privada especificamente estabelecida para criar e gerir o recife de coral Chumbe, a primeira área marítima protegida (AMP) na Tanzânia. Chumbe é provavelmente uma das primeiras, senão a primeira área de tão grande delicadeza ecológica submetida a uma gestão totalmente privada. Este caso específico de gestão da ilha providencia lições importantes no que diz respeito aos aspectos económicos inerentes à administração de áreas protegidas deste tipo. 66 UNESCO, Lamu Old Town, http://whc.unesco.org/en/list/1055, 23-062005. 62 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte II PARTE: Enquadramento do caso de estudo “Historical notices of the Querimba Islands are singularly few and far between. This is a pity since, as Basil Davidson observes in his Black Mother. Africa: The years of trial, p.168 (London, 1961): “Research on the Querimbas would surely throw new light on the broad-ranging scope of the Indian Ocean trade”. This island group was evidently fairly prosperous when Vasco da Gama first arrived on the coast, and though the Portuguese sacked some of them in 1522, the islands seem to have recovered part of their prosperity.”68 4. O Arquipélago das Quirimbas no contexto Leste Africano. 4.1. Caracterização e iconografia da localização do Arquipélago. Um arquipélago com as ilhas dispostas em linha, como as pedras de colar irregular, desenvolve-se paralelamente e junto ao litoral Norte de Moçambique, entre a baía de Pemba e a baía de Tungue junto ao rio Rovuma, numa extensão de cerca de 400 Km. Vários pontos de vista existem quanto à formação das ilhas. O mais divulgado é que elas remontam ao quaternário inferior. Segundo Patrício Pina, e numa decisão muito sugestiva, “as ilhas Quirimbas resultam da manifestação mais recente da geologia viva.” São as ilhas ou arquipélago das Quirimbas69. Em mapas de África antigos fig de mapas de África antigos estas ilhas aparecem representadas, por vezes sem designação e, outras vezes, com a designação de “Capitum islands”70. As notícias históricas sobre elas são relativamente escassas e muito espaçadas no tempo71, não obstante o seu estudo pudesse ser eventualmente importante para a compreensão de aspectos relevantes do contacto de culturas no Oceano Índico, designadamente quanto às relações comerciais de longo curso. As referências quanto ao seu número variam muito e provavelmente devido a diferenças de critérios de contagem. A Direcção de Geografia e Cadastro de Moçambique tem cartografadas e designadas um 68 Boxer, C. R., The Querimba Islands in 1744, na revista STUDIA, n°11 (Janeiro-1963), Lisboa, p.343; Estas ilhas são apresentadas em escritos e cartas com outras designações, nomeadamente “Querimbas”, “de Quirimba”, “de Querimba”, “Queriba”, “Quiriba”, “Carimba”, “Cerimba”, “Corimba”, “Aswatada” (neste último casoconforme A. Gomes e Sousa, , op. Cit. 1960. pág. 128), ou ainda como Ilhas de Maluane nos tempos mais remotos da ocupação portuguesa como nos diz Malin Newitt, na sua História de Moçambique, Publicações Europa-América, Lda, Mem-Martins, 1997, pág. 176, onde refere que: “Os panos aí fabricados eram conhecidos enquanto «panos de Maluane», tudo indica que derivando este nome do assentamento continental onde haviam começado a ser produzidos, e, durante os primeiros vinte anos da sua estada nestas paragens, os Portugueses conheceram o arquipélago em causa enquanto «ilhas Maluane» ”. 70 por exemplo no mapa “Africa in tabula Geographica delineatio, opera A. F. Zÿrneri [Amsterdam], [1720?] (c) The British Lybrary”, American Museum of Natural History, 2202; 71 Boxer, C. R., The Querimba Islands in 1744, Studia, revista trimestral, n° 11, Janeiro, Lisboa, 1963, pág. 343 a 352. 69 63 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte número total de 32 ilhas72. Este é o número de ilhas mais frequentemente referido como sendo o total de ilhas que compõem as Quirimbas. Mas se atendermos aos ilhéus, este número pode subir a “quatro dezenas de pequenas ilhas e ilhéus”, como refere Carlos Bento. A designação “Ilhas de Querimba” terá aparecido pela primeira vez em carta elaborada sob a responsabilidade de Gaspar Ferreira Reimão, durante a sua permanência na Ilha do Ibo em 1609 [Bento 1993: 36]. Mas ainda hoje verifica-se uma certa confusão com a designação das ilhas que compõem o arquipélago e que seria importante clarificar e instituir para que não se apelide com nomes diferentes a mesma ilha. Em anexo apresenta-se uma breve análise sobre este assunto. Referências documentais indicam que pelo Século VIII as Ilhas Quirimbas estariam ainda desertas. A sua ocupação inicial teria sido feita por uma “seita herética do Islão que procurou refúgio nestas ilhas. Os novos habitantes iniciaram o seu comércio com o continente e a escravatura foi o seu ramo preferido”73. De acordo com Carlos Lopes Bento, em 1609 eram povoadas 18 das ilhas, não tendo nunca sido atingido este número posteriormente. Mas em 1807 já apenas estariam habitadas quatro do total das ilhas. Bento diz ainda que “em 1972, das 20 ilhas povoadas no século XVI e parte do XVII, apenas as de Matemo, Ibo, Querimba e M’funvo eram habitadas”. Embora, como na anterior afirmação e em diversos documentos, se refira que apenas quatro das ilhas são permanentemente habitadas, informações obtidas em Pemba, em Setembro de 2003, junto de antigos moradores da Ilha do Ibo que ainda se relacionam com as Quirimbas, davam como habitadas permanentemente as ilhas de Ibo, Macolóeh, Matemwé, M´funvo, Vamizi (ou Mwamizi), Quirambo, Quirimba, Quizíwi. Depois dos anos trinta do Século XX, e até à independência de Moçambique, tinham como base económica principalmente a pesca, com a captura de grande variedade de espécies aquáticas, destacando-se, pelo seu valor económico, as ostras e variados moluscos, nomeadamente as holotúrias; alguma agricultura, na qual se incluía a plantação de coqueiros, em particular na Ilha de Quirimba e, em escala comercial mais reduzida, de cafezeiros, para além de das culturas de mandioca, batata-doce, e árvores fruteiras como citrinos, papaieiras, bananeiras, mangueiras, goiabeiras, ateiras, romãzeiras, principalmente na Ilha do Ibo; a criação de gado bovino, caprino e arietino e de aves domésticas como 72 Mapa com título “Esquema de cobertura fotográfica e da divisão em mosaicos; escala do vôo 1:40000, KL1/3”, DINAGECA, Maputo, 2003; 73 Huibresgtse, P. K., Dans lárchipel de Quirimba, Geographica, revista da Sociedade de Geografia, Ano VII n° 27 – Julho, pàgs. 80 a 90, Lisboa, 1971; 64 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte galinhas e patos; a navegação e algum comércio. Para além destas actividades essencialmente com carácter de subsistência e de reduzido significado comercial, no estudo elaborado por Célia Lorena, João Donato e Henrik Overballe em 198674, refere-se também como actividades económicas de alguma relevância a produção de copra na Ilha de Quirimba e o turismo, bem como o potencial da actividade artesanal, reflectido num relativamente variado leque de artesãos. 4.2. Elementos de cultura, ecologia e ambiente. As relações entre a costa Oriental de África e a Arábia, a Pérsia, a Índia e até a China estabeleceram-se, antes mesmo do nascimento do Islão. Gregos e Romanos chamavam Azânia a esta área de África, o que significa que os contactos com outros povos, nomeadamente do Mediterrâneo remontam a tempos muito recuados, aparentemente já desde o Século I. O contacto continuado, a partir do século IX, com comerciantes árabes, xirazianos da Pérsia, indianos e outros povos do Oriente com os povos africanos da costa deu origem ao povo e à cultura swahili. Embora ela seja resultante de um processo de miscigenação e se discuta o grau de importância dos seus elementos bantu e árabes como elementos dominantes da sua caracterização, nao parece duvidoso que sendo uma importante componente do mosaico africano de culturas, a cultura swahili tem uma identidade própria que se traduz nao só na língua veicular – o swahili – como também em muitos outros domínios da cultura, nomeadamente na arquitectura. Mas também não há dúvida quanto à contribuição de valores árabes e outros valores do Oriente. Note-se que a própria designação swahili parece derivar do plural da palavra árabe sawhail ou costa/ litoral, de onde advem o significado de kiswahili com “língua do litoral”75. Não obstante estarem localmente associadas ao subgrupo cultural kimwani, as Ilhas Quirimbas fazem parte desse mais amplo complexo cultural Leste africano designado por cultura swahili. Embora alguns autores considerem que o núcleo cultural swahili compreende a zona costeira do leste africano que vai de Mogadíscio à foz do rio Rovuma, se não considerarmos apenas o idioma como factor de identificação cultural, têm razão aqueles que definem que a influência cultural Swahili se estende desde a Somália a Sofala, encontrando-se manifestações culturais conexas esta cultura swahili ainda mais ao sul de Moçambique, nomeadamente na província de Inhambane. É no momento áureo do 74 Lorena, Célia, Donato, João e Overballe, Henrik, O Combinado Pesqueiro da Ilha do Ibo, Centre for Alternative Social Analysis, Linnésgade, 14, 1, Copenhagen, 1991. 75 http://wikipedia.org/wiki/swahili -13/09/2005. 65 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte desenvolvimento da cultura swahili que entram em cena os portugueses que, em busca das riquezas do Oriente, levam Vasco de Gama a demandar a costa oriental africana tendo, em 1498, tocado uma das ilhas mais meridionais do arquipélago das Quirimbas, passando depois diante do alto de Quissanga, ponto da costa Norte de Moçambique que tem ao largo a parte Norte da Ilha e Quirimba. Com a anexação definitiva do arquipélago pelos portugueses em 1523, a influência da cultura swahili nas ilhas passa a integrar elementos indo-portugueses e ocidentais, particularmente nos centros em que a presença da administração colonial foi mais forte, como por exemplo na Ilha do Ibo. “As ilhas Quirimbas situam-se dentro dos limites da plataforma continental. As sondas entre as ilhas e a costa não são grandes. A partir da costa continental prolongam-se vastos baixios, havendo também recifes em muitos lugares. Um grande número de passagens entre recifes e ilhas conduz para angras e aguadas, onde há fundeadouros bem abrigados para as embarcações pequenas. A costa continental ao longo da qual se desenvolvem as ilhas do arquipélago das Quirimbas é baixa e uniforme. A altitude das colinas costeiras não excede os 100 metros. A orla de fora dos recifes e ilhas cai a pique. O único perigo afastado consideravelmente da costa é o banco de São Lázaro que se situa a 53 milhas para ESE do cabo Paqueve”76 O conjunto de ilhas constitui como que uma parede interrompida, de onde em onde, e que confina uma relativamente estreita faixa de mar que se desenvolve no sentido Norte-sul da primeira à última das ilhas. A navegação neste quase canal é descrito de maneiras díspares consoante o ponto de vista dos autores, ora como sendo uma navegação aprazível e idílica ora como sendo perigosa e traiçoeira devido aos ventos e às correntes desordenadas. No dizer de A. Gomes e Sousa, “entre as ilhas e a costa há uma infinidade de baixos coralinos, e as próprias ilhas não são mais que reduzidas porções de areia e a vegetação de dispersão marítima tem fixado desde tempos imemoriais”. Quanto ao carácter da navegação na faixa de mar que separa o continente das ilhas, vários são os pontos de vista que a documentação nos oferece. José Torres Ribeiro, ao referir-se às ilhas diz-nos: “Todas ficam próximas umas das outras, formando um canal cuja largura varia de uma a dez milhas, abrigado de todos os ventos do mar e por onde navegam com toda a segurança, no serviço 76 (autor não identificado), Roteiro da costa da República Popular de Moçambique, Direcção Principal de Navegação e Oceanografia do Ministério da Defesa da URSS, 1a edição, 1986. 66 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte de cabotagem, pequenas embarcações…”77. Mas a navegação no quase canal constituído pelo estreito espaço entre as ilhas e o continente nem sempre é descrito desta forma aprazível e idílica. É este o caso da descrição de Ernesto Jardim de Vilhena ao falar de “uma extraordinária e caótica profusão de ilhas, ilhotas, bancos, pedras, restingas”, e de “um mar desencontrado e de correntes e revessas violentas, que muito facilmente podem trazer a perda de um navio”. Carlos Lopes Bento considera ser esta última, dentre todas, a descrição que melhor corresponde à realidade por ele próprio observada no período entre 1969 e 1972, em que, por razões profissionais, residiu na ilha do Ibo. Para além do carácter anárquico e desencontrado das águas que separam as ilhas do continente no dizer de Vilhena, Bento acrescenta, citando vários autores, que “ao estado de anarquia provocado pelo extenso paredão 78 já mencionado, recortado por “um dédalo inextrincável de canais tortuosos (…)” que dão acesso às águas que correm entre as ilhas e as terras firmes, acrescem os fortes aguaceiros e as correntes violentas e desordenadas que aí circulam, seja a equatorial, seja as resultantes das monções e das mares”79. Se, no entanto nos ativermos à opinião de residentes do Ibo que, durante muitos anos, navegaram nesta zona com objectivos comerciais e de transporte de mercadorias, a sua opinião nem sempre é eivada de dramatismo. É o caso do comerciante Mamudo Agy Jacob que nos disse, em 10 de Abril de 2004, que durante os quinze anos que navegou este falso canal entre as ilhas e o continente, para Norte da Ilha do Ibo e até Palma, para comprar peixe aos pescadores, nunca viveu a experiência de mar revolto e de tempestades no seu barco de 15 toneladas, como se refere nalguma documentação. Seja como for, para além das maiores ou menores dificuldades de navegação resultantes de uma costa extremamente recortada e sinuosa, caracterizada por cabos promontórios baías, barras, bancos de areia e lânguas, bem como pelos temporais periódicos que ocorrem especialmente no período das monções, esta língua de mar guardado entre as ilhas e o continente oferece a qualquer navegante uma paisagem de uma beleza e prazer que só é possível pela variedade, recorte e surpresas que, afinal, segundo alguns, também lhe conferem esse perigo que se lhe atribui. Os solos das Ilhas Quirimbas são geralmente de natureza arenosa, assentes numa base coralina. São ilhas cujas altitudes máximas variam ente os 4 e os 30 metros, não 77 Torres, Losé Ribeiro, Documentário Trimestral n° 15, Setembro, Lourenço Marques, 1938; Constituído pelo conjunto de ilhas paralelo à costa 79 Bento, Carlos, As Ilhas Querimba ou de Cabo Delgado. Situação colonial, resistências e mudança (174218822), p12, 1993, Lisboa; 78 67 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte ultrapassando a maioria delas os 10 metros de cota máxima. Não existe nas ilhas nenhum curso de água, existindo contudo, nalgumas delas, lençóis de água subterrâneos, nem sempre próprios para consumo humano, mas a que a população recorre para se abastecer. Os dados climáticos que nos foram fornecidos pelo Instituto Nacional de Meteorologia em 2002, e que se referem aos anos de 1976 e 1980 no posto de Quissanga (por inexistência de postos meteorológicos nas ilhas), embora com algumas falhas, dão-nos os seguintes valores mais recentes: Temperatura máxima média em 5 anos ------- 31,4 °C, Temperatura mínima média em 5 anos -------- 16,5 °C, Humidade relativa ------------------------------------ 72,9 %, Precipitação média em 5 anos80 ----------------- 95,2 mm. A integração desses dados com os dos postos meteorológicos de Pemba, ao Sul, e Mocímboa da Praia, ao Norte do arquipélago, permitem fazer uma extrapolação mais segura para o conjunto das ilhas. No entanto a comparação com dados climáticos históricos das ilhas mais conhecidas, nomeadamente Ibo, Quirimba, Matemo e Quirambo, compilados em 1961 por Fernando de Pinho Morgado, numa série de 18 anos e referentes também o posto de Quissanga81, não apresentam variações significativas. Note-se que o posto de Quissanga fica localizado no continente, próximo das ilhas de Quirimba e do Ibo, a 12° 26´´ de latitude Sul e a 40° 29´ de longitude Este. No que respeita à flora, em geral, as Ilhas Quirimbas enquadram-se na zona de brenhas costeiras que caracterizam o litoral de Cabo Delgado e na qual predomina o mangal. Segundo A. Gomes e Sousa, o arquipélago oferece, do ponto de vista dendrológico, um alto interesse científico pela diversidade das suas espécies lenhosas..., sendo no entanto a maior parte das suas espécies botânicas de origem exótica – da Índia, da Oceânia e da América do Sul –, constituindo assim um interessante campo de estudo da flora das correntes ou de dispersão marítima82. Dentre as espécies arbóreas mais comuns podem citar-se 80 Faltaram dados referentes aos meses de Abril de 1978 e 1980 3 e de Dezembro de 1980; Morgado, Fernando Pinho, Possibilidades pecuárias das ilhas do Ibo, Quirimba e Matemo (Extracto do relatório da deslocação efectuado às ilhas do Ibo, Quirimba e Matemo em 1961), Separata dos Anais dos Serviços de Veterinária, n° 9, cota D350 b m, AHM, Lourenço Marques, 1961. 82 Sousa, A. Gomes e, in Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, ano XXIX, n°.122, Maio e Junho, pág. 127, Lourenço Marques, 1960; 81 68 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte nomeadamente os embondeiros, as esclerocárias, tondues, grewias e outras árvores espontâneas, bem como numerosos arbustos que formam por vezes denso matagal83. A floresta de mangal do Ibo é considerada um dos três pontos-chave para a conservação da biodiversidade da região. Uma grande diversidade de ervas marinhas e macro algas fazem igualmente parte deste complexo florístico. 4.3. Contexto ecológico regional e nacional. Baseando-se na parceria entre os seus cientistas e especialistas espalhados pelo mundo, o Fundo Mundial da Vida Selvagem (WWF) desenvolveu o programa Global 200, a primeira análise comparativa da biodiversidade, cobrindo os habitats mais importantes da Terra, designadamente os terrestres, os de água doce e os marinhos. A finalidade deste programa é garantir que todo o espectro de ecossistemas seja definido e representado de modo a que os esforços de conservação e desenvolvimento regional contribuam de uma maneira articulada para a estratégia global de protecção da biodiversidade. Neste processo foram definidas e elencadas as Eco-regiões mais importantes a nível mundial e, no âmbito destas, foram promovidas as pesquisas científicas pertinentes com vista à caracterização e ao estabelecimento – a um nível mais baixo e com base em recomendações elaboradas em reuniões de trabalho regionais – das sub-regiões de valor global e local a serem protegidas. A Eco-região é um vasto sistema territorial abrangendo por vezes vários países, caracterizado por padrões complexos determinados pelo clima, geologia e história de evolução do planeta os quais, por sua vez, determinam a biodiversidade. Os benefícios potenciais de uma abordagem conservacionista tendo como base a eco-região são: promove a construção de um processo de colaboração visando a conservação; propicia a criação de energias para a participação de investidores; gera apoios governamentais e de doadores; motiva opções para esforços de conservação.84 Entre os 238 mais importantes tipos de habitats ecoreginais no mundo contam-se, em resumo, 142 terrestres, 53 de água doce, 43 marinhos. Há mais de quarenta anos, muitos sítios do litoral leste-africano foram identificados como merecendo um status de protecção. Alguns destes sitos foram classificados como reservas ou parques marinhos. Nessa altura a abordagem a estas áreas resumia-se quase 83 idem, pág. 133; WWF, Proceedings of the Eastern African Marine Ecoregion. Visioning workshop, Mombaça, Kenya, 21 a 24, 2001, pág. 1. 84 69 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte exclusivamente a declará-las como zonas de usos não extractivos. Podem-se citar como exemplos de sucesso dessa abordagem inicial, nos anos sessenta, os casos do parque marinho de Watamu - Malindi, no Quénia, e a Reserva da Ilha de Inhaca, no Sul de Moçambique. O reconhecimento da importância de uma abordagem regional e integrada, e portanto de larga-escala, para se garantir a correcta gestão da biodiversidade marinha é um conceito cujo desenvolvimento é recente. Alguma cooperação com vista ao estudo da perda de biodiversidade marinha e costeira tem sido realizada ao nível regional. Foi a partir de 1985, com a Convenção de Nairobi, que os governos dos países ribeirinhos africanos da parte ocidental do Oceano Índico iniciaram encontros regulares e acordaram o estabelecimento de planos para examinar a perda dos habitas marinhos. Mas a abordagem desta problemática, através do modelo de gestão integrada de zona costeira85, só mais tarde é consagrada através da assinatura da Resolução de Arusha em 1993, iniciando-se a implementação da Convenção de Nairobi, através do direccionamento de recursos e esforços para a priorização das áreas de conservação marinha. A zona inter-marés da costa oriental africana, que em geral fica a descoberto em extensões superiores a 500 metros, alberga uma grande biodiversidade. Esta faixa de litoral africano suporta cerca de 1000 diferentes tipos de ervas marinhas, várias centenas de espécies de esponjas, para cima de 200 espécies de coral, mais de 3000 espécies de moluscos, mais de 300 espécies de caranguejos, pelo menos 50 espécies de estrelas-do-mar, para cima de 100 espécies de pepinos-do-mar e mais de 1500 espécies de peixe. À medida que mais estudos se realizam o número de espécies registadas nestas águas continua a aumenta, sabendo-se já que esta eco-região marinha africana suporta uma rica composição de espécies que excede as 11000 espécies de animais e plantas. Cerca de 15% das espécies de animais e plantas marinhas que ocorrem nesta região são pan-topicais. Entre 60-70% encontram-se apenas na grande região Indo-Pacífica, que se estende desde até à Polinésia. E 10-15% das espécies da vida marinha da África oriental não existem noutros locais da terra, supondo-se que sejam endémicas desta região86. O “workshop vision” do WWF realizado em Abril de 2001 sobre a “Eco-região Marinha da África Oriental” fixou as áreas ecológicas mais importantes a serem protegidas, definiu a 85 Coastal zone managment (ICZM). WWF, The Eastern African Marine Ecoregion. A large-scale approach to the management of biodiversity, WWF Mombaça, 2002, pág. 3. 86 70 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte filosofia e estabeleceu os fundamentos para a gestão da biodiversidade desta eco-região. Nela vivia, em 2001, uma população sempre crescente de 22 milhões de habitantes, a maior parte da qual depende ainda dos recursos dos mares do litoral, quer para a sua subsistência, quer para o lazer e negócios. Fig. 6. Eco-regiões marinhas da África Oriental87 Trata-se de uma vasta linha de costa de cerca de 4.600 kms que se estende desde Chisimayu na Somália até Sodwana Bay na República da África do Sul, que engloba 21 áreas relevantes do ponto de vista da biodiversidade e dentre as quais 8 foram definidas como sendo de importância global (“Global importance”). Encontra-se neste grupo a área transfronteiriça entre Tanzânia e Moçambique definida por “Complexo Mtwara-Quirimbas” cujos sítios mais delicados são a Baía de Mnazi, o Delta do Rovuma e o conjunto de recifes de coral das Quirimbas que se desenvolvem até à cidade moçambicana nortenha de Pemba, capital da Província de Cabo Delgado. 87 Idem, figura da pág. 14. 71 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte A zona de recifes de coral das Quirimbas é o prolongamento de uma vasta faixa litoral englobando áreas costeiras do Quénia, Tanzânia e Norte de Moçambique. Esta faixa litoral é caracterizada pela existência de recifes e bancos de coral bem desenvolvidos, bem como por relativamente extensas manchas de mangal, sendo a mais importante a que se localiza em Moçambique. Pela sua complexa biodiversidade estes recifes de coral constituem um importante recurso biológico e são uma base para a pesca e para o ecoturismo marinho. No caso das ilhas e das terras firmes da costa Norte de Moçambique eles representam um dos mais importantes recursos costeiros em que se baseiam não apenas as comunidades locais mas também uma crescente indústria de turismo88. Os elementos gerais fundamentais de caracterização da área de Mtwara-Quirimbas são: • A sua localização na zona em que a Corrente Sul Equatorial encontra a costa Oriental africana; • A existência de um extensivo complexo de recifes com uma grande diversidade de corais, contando com mais de 48 genera; • O facto de ela possuir importantes locais de alimentação e nidificação de tartarugas; bem como uma área de alimentação de caranguejos (Crab Plovers) e aves migratórias; (iv) a existência dentro da zona do complexo dunar único do Rovuma, com uma flora endémica ou bastante rara e • O facto de ser uma espécie de berçário de baleias (humpback wales). Já desde 1971, durante o regime colonial, fora feita recomendação para que parte das Ilhas Quirimbas e terras firmes do litoral Norte de Cabo Delgado fosse declarada parque nacional. Em Agosto de 2000 o Parque Nacional das Quirimbas foi inscrito na lista dos sítios submetidos à UNESCO para serem declarados património mundial. Mas apenas em 6 de Junho de 2002 foi criado o Parque Nacional das Quirimbas. É o primeiro Parque Nacional criado depois da independência de Moçambique, em 197589. Se por um lado as características da ecologia da região determinam a necessidade de uma política de conservação que proceda ao monitoramento estrito de sua ocupação e 88 Hall, Heather, e outros, Cabo Delgado Biodiversity and Tourism Project. Marine Programe, Moçambique, 2001, pág. 7. Este documento foi promovido pelo Projecto de Biodiversidade e Turismo de Cabo Delgado (CDBTP), criado com o objectivo de assegurar a conservação sustentável do litoral desta província do Norte de Moçambique através do desenvolvimento de parcerias entre as comunidades locais, o sector privado e o governo. 89 http://216.239.59.104/u/WWFint?q=cache:x-Af-0EBKlkJ:www.panda.org/news_ facts/tv/scripts/French_Dopesheet_Mozambique_WSSD.doc+Quirimbas&hl=en&ie=UTF8http://www.panda.org/ , 4 de Abril de 2004. 72 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte estabeleça uma controlada e limitada exploração dos seus recursos naturais, por outro lado é a peculiaridade e o valor destes mesmos recursos que constituem a melhor oportunidade para a sua exploração, muitas vezes ambientalmente destrutiva, com impactos regionais e nacionais. Isto significa que se está perante a confluência de pulsões de sinal contrário que será necessário gerir adequadamente, para se assegurar que o potencial de riqueza natural não seja subvertido e desvalorizado pela realização pouco atenta e não sustentada da capacidade de atracção de investimentos e visitantes que a região possui. A iniciativa do governo moçambicano – incentivada e partilhada pelo WWF – de criação do Parque Nacional das Quirimbas pode ser uma contribuição decisiva para a preservação da biodiversidade do arquipélago do mesmo nome e da região costeira, estabelecendo as possibilidades e limites de intervenção. Apesar da pressão sobre as autoridades centrais, regionais e locais, para a exploração dos recursos desta zona ecologicamente delicada, é encorajador o testemunho de Michael Faye quanto ao estado de conservação e quanto à gestão do Parque Nacional das Quirimbas, nesta primeira fase da sua implantação. Na apreciação geral feita, o conservacionista da Sociedade de Conservação da Vida Selvagem (WCS) Michael Faye refere que gostou do que viu nos voos sobre o Parque Nacional das Quirimbas, tendo ficado com a impressão de se estar a proceder a uma gestão moderna e eficiente. Ele especifica esta sua impressão do seguinte modo: “Num dos mais belos arquipélagos da Terra, senti que as pescas estão a ser geridas tendo em conta também os factores ecológicos. E, mais do que isso, fiquei com a sensação de que a coordenação dos esforços de conservação é promovida de dentro para fora e não é imposta do exterior”90. A validade desta apreciação pode ser aferida pelo contexto em que é feita: o levantamento realizado por Michael Faye sobre o estado de conservação ecológica das mais importantes eco-regiões do continente africano iniciou em 8 de Junho de 2004, no quadro do projecto MegaFower. Este projecto foi apoiado por diversas instituições, nomeadamente o laboratório da Pegada Humana na WCS, a Wild Foundation, os Bateleurs, e teve como principal financiador a National Geographic Foundation. Referências obtidas em Pemba e na ilha do Ibo dão conta do surgimento de alguns conflitos de interesse entre as comunidades locais, as autoridades governamentais de âmbito local, o principal operador da gestão do Parque e alguns agentes de investimento na região. Sendo um fenómeno natural em processos similares e não obstante a complexidade da sua gestão, 90 Quammen, David, Medindo a Pegada Humana, National Geographic Magazine, Setembro de 2005, pág. 39. 73 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte estes conflitos, ainda de pequena repercussão, não têm constituído factor de bloqueio no processo de implementação dos objectivos conservacionistas do maneio do Parque Nacional das Quirimbas. Um adequado e permanente enquadramento administrativo e legal é um elemento chave para que se mantenham os conflitos de interesses aos níveis mais baixos e se estabeleça e reforce a atmosfera motivadora da participação dos diversos agentes em presença no processo de desenvolvimento desta região. 5. Limites e potencialidades de intervenção. 5.1. Contexto administrativo e legal. As ilhas Quirimbas estão repartidas por cinco Distritos do litoral Norte de Moçambique. Trata- se dos Distritos de Palma, de Mocímboa da Praia, de Macomia, de Quissanga e do Ibo. O único distrito quase exclusivamente insular é o Distrito de Ibo. Neste Distrito estão incluídas algumas ilhas do Arquipélago das Quirimbas, sendo as mais importantes as ilhas do Ibo, Quirimba, Matemo, mas também uma pequena parcela do continente adjacente. Note-se que algumas das ilhas nem sequer estão directamente dependentes do distrito, encontrando-se subordinadas ao nível mais baixo de Posto Administrativo o que, evidentemente, não apenas pode não reflectir a sua importância ecológica (nacional e regional), ambiental e cultural, como também pode ser um factor de fragmentação de uma gestão sustentada e integrada de recursos integrados num sistema biológico, geográfico e cultural indivisível. Do ponto de vista administrativo os Distritos são dirigidos por um Administrador Distrital que se subordina ao Governo Provincial e este ao Governo central do país. Interessa ressaltar que, do ponto de vista decisional relativamente a investimentos de montantes significativos, o poder do governo distrital é relativamente restrito. Ao nível nacional, as áreas do Turismo e do Património Cultural e do Ambiente são respectivamente tuteladas pelos Ministérios do Turismo, da Cultura e da Coordenação e Acção Ambiental, os quais têm representações nas Províncias, através de Direcções Provinciais. Estas áreas de governo não estão representadas uniformemente pelos Distritos, dependendo tal facto da sua relevância no território em questão. No caso do Distrito do Ibo não há representações específicas nem da área do turismo nem da área do património cultural ou do Ambiente. Nesta última área, a do Ambiente, o Governo criou, nalguns casos, 74 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte instrumentos de gestão sectoriais específicos ao nível regional ou local e criou ainda operadores não governamentais, aos quais delegou poderes de gestão e monitoração ambiental em coordenação com os órgãos locais, nomeadamente os governos provinciais, distritais ou municípios. Daqui se pode inferir de imediato a fraca capacidade de gestão própria do poder local em relação a estas três importantes áreas de trabalho, o que se reflecte na quase inexistência de recursos e competências técnicas e administrativas locais para contribuir para uma correcta gestão, quer das iniciativas turísticas quer das iniciativas que envolvam o património cultural. No caso das Ilhas Quirimbas e, em particular da Ilha do Ibo, seria importante considerar a elevação da capacidade local de administração, particularmente no que respeita ao turismo e ao património cultural, pela sua importância cultural e pela sua potencial importância económica Tal exigiria um programa específico de capacitação das competências locais para o efeito, para se pronunciar sobre acções de investimentos que sejam propostos nessas áreas e monitorar e sugerir acções de acordo com os problemas em presença. Quanto ao ambiente está em implantação, e em fase inicial de trabalho, um operador não governamental, como corolário da criação do Parque Nacional das Quirimbas. No quadro geral existe já alguma legislação importante no âmbito do Turismo e do Património Cultural e do Ambiente. Seria no entanto necessário considerar a sua especialização no que respeita à sua adequação aos contextos em que elas se aplicam o que, como já se referiu, exigiria competências locais, quer no que respeita à sua concepção, quer no que respeita à sua aplicação no contexto específico. No caso das Ilhas Quirimbas, a relevância dos domínios ecológico, do ambiente e do património cultural exigiria uma maior capacidade de intervenção local, sobretudo devido às pressões de investimento que se estão a verificar e que, tudo indica, se irão intensificar, com impactos no futuro ainda por estabelecer. Os principais instrumentos legais específicos no domínio do turismo são: − A Resolução 14/2003 de 4 de Abril. Trata-se de uma norma de carácter atemporal na qual se estabelecem os objectivos gerais do governo que integram uma política nacional de turismo e se definem os aspectos principais da sua estratégia de implementação. − A Lei 4/2004, de 17 de Junho, também chamada de Lei do Turismo. Trata-se de um instrumento aprovado pela Assembleia da República e que vincula o Estado, podendo apenas ser alterada ou revogada pela própria Assembleia da Republica. Esta Lei substituiu o 75 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte Decreto-Lei n° 49399 de 1969, de 24 de Novembro, em vigor no período colonial e que, tendo funcionado teoricamente até 2004, revelava-se bastante ultrapassado no actual contexto político. A ressurgência do fenómeno do turismo no país, principalmente depois da assinatura dos Acordos de Roma em 1994, determinou a necessidade da sua actualização. − O Plano Estratégico do Desenvolvimento do Turismo, de 2004 a 2013, aprovado em Outubro de 2004. Este plano substitui o anterior que foi elaborado antes de 1994 e portanto durante o período da guerra. Para além destes instrumentos de carácter mais geral existe o Regulamento da Indústria Hoteleira e Similar, aprovado pelo Decreto do Conselho de Ministros n° 69/99, de 5 de Outubro. Este regulamento está em vias de ser substituído, brevemente, por dois regulamentos, nomeadamente o que regulará a actividade das agências de viagem e profissionais de informação turística e o que regulará as áreas de alojamento turístico, a restauração e bebidas. No domínio cultura, o principal instrumento legal é − A Lei n˚ 10 de 22 de Dezembro de 1988, também chamada Lei do Património Cultural. Esta lei aplica-se a todos os bens do património cultural em geral, quer estejam na posse do Estado e dos organismos de direito público, quer sejam propriedade privada, sem prejuízo dos direitos de propriedade que couberem aos respectivos titulares. A tutela da lei estende-se ainda a todos os bens culturais que venham a ser descobertos em território moçambicano, nomeadamente no solo, subsolo, leitos de águas interiores e plataforma continental. A lei estabelece também os termos de defesa e protecção dos bens culturais de outros países existentes em Moçambique tendo em conta as obrigações decorrentes da aplicação do princípio da reciprocidade. Existem outros instrumentos e normas legais especificamente dedicados ao património cultural, como − O Inventário Nacional de Monumentos, Conjuntos e Sítios, elaborado em 2003 pelo Departamento de Monumentos da Direcção Nacional do Património Cultural do Ministério da 91 Cultura ; e a proposta de Normas para a conservação e critérios de classificação de monumentos, conjuntos e sítios. 91 Macamo, Solange Laura (Coordenação geral do projecto) e outros, Inventário Nacional de Monumentos, Conjuntos e Sítios - Património Cultural, Ministério da Cultura e UNESCO, págs. 8, 9, 11, 116 e 117, Maputo, 2003. 76 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte No domínio do ambiente, apesar de este ser um domínio recente como campo específico de gestão do Estado, existe já um acervo de legislação importante. Ela abrange instrumentos legais para diferentes áreas, conexas com problemáticas particulares do ambiente, nomeadamente a das águas marinhas e interiores, a das florestas e fauna bravia, a dos recursos minerais e energéticos, a das pescas, a dos resíduos, a da saúde pública, para além do que está consignado no código penal relativamente aos crimes ambientais. O principal instrumento legal é − A Lei n˚ 20 – Lei do Ambiente, a qual estabelece como seu objecto geral a definição das bases para uma utilização e gestão correctas do ambiente e seus componentes, com vista à materialização de um sistema de desenvolvimento sustentável. Existem também instrumentos legais de nível mais baixo que definem princípios e comandos relativos às políticas governamentais no domínio do ambiente, nomeadamente − A Resolução n˚ 5/95, de 3 de Agosto de 1995, que aprova a Política Nacional do Ambiente, e a Resolução nº 4/2000, de 22 de Março de 2000 que aprova o Plano Quinquenal do Governo para 2000 – 2004. Para além destes instrumentos existem aqueles que definem os órgãos com competência ambiental. São também de referir particularmente os instrumentos de prevenção ambiental como − O Decreto n˚ 76/98, de 29 de Dezembro de 1998, que regula o processo de avaliação de impacto ambiental; − O Decreto n˚ 32/2003, de 12 de Agosto, que regula o processo de auditoria ambiental, e − O Decreto n˚ 44/98, de 9 de Setembro de 1998, que regula o Licenciamento da Actividade Industrial.92 Considera-se modernamente que a participação dos diferentes agentes, directa ou indirectamente interessados nos processos de gestão ligados à sua área de intervenção, potencia a acção das instituições respectivas de tutela do Estado, particularmente no nível local. Para além de permitirem a complementaridade de capacidades com efeitos benéficos na minoração de deficits de habilidades e de recursos e no controlo de impactos negativos de diversa ordem, estas parcerias são um instrumento fundamental na gestão de conflitos de interesse, na partilha de conhecimentos, na revelação e reforço de sinergias, bem como na 92 Veja-se: Serra, Carlos (Jr.), organização, Colectânea de Legislação do Ambiente, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2003. 77 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte realização do controle e apreciação do andamento dos processos de gestão de interesse colectivo. Isto é especialmente relevante em domínios que têm um papel importante nas políticas de conservação e desenvolvimento, nomeadamente no turismo, na gestão do património cultural e na gestão ambiental e territorial. A vulnerabilidade do equilíbrio ecológico da região do Parque Nacional das Quirimbas, agravado pelas grandes carências e nível de pobreza das comunidades reforçam a necessidade da adopção de modelos participativos de gestão, devidamente instituídos por um processo de estudo, consultas, legitimação social e validação, e que funcionem na base de mecanismos consensuais institucionalizados através dos quais se proceda periódica e, se necessário, pontualmente, à concertação de perspectivas, colaboração, monitorização de processos, e aconselhamento científico-técnico. 5.2. Os actuais interesses de investimento. Informações disponíveis de diversas fontes no corrente ano dão-nos uma imagem da actual apetência do investimento privado nas Ilhas. Se considerarmos o impacto mediático de iniciativas de investimento turístico em que está expressa uma relativamente correcta consideração dos problemas ecológicos e ambientais, como é o caso do estabelecimento turístico da Ilha de Quilálea93, é de prever um aumento significativo da pressão do investimento privado na região no futuro, o qual se reflectirá no aumento de solicitações de concessões de terra nas ilhas. Já em princípios de 2002, num estudo sobre turismo, conservação e comunidades, constatava-se que a política do governo provincial, de abertura e de garantias de segurança do investimento do sector privado, estava a conduzir ao desenvolvimento de projectos de turismo com base nas potencialidades da vida selvagem. Também se constatou que, nestes projectos, era variável o nível de consideração e eficácia da formulação e implementação das problemáticas ligadas às comunidades locais. Também se constatava que os principais constrangimentos estavam relacionados com: − falta de uma instituição adequada para facilitar processos e proporcionar um fórum de interacção entre o governo, o sector privado e a comunidade; − compreensão limitada sobre o turismo e suas actividades por parte da comunidade; − incertezas, por parte da comunidade, acerca dos direitos sobre a terra e os recursos; 93 Ver ‘http://www.quilalea.com/’. 78 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte − incertezas sobre as dinâmicas inter-comunitárias nas áreas dos projectos; − limitações nas exigências básicas de comunicação devidas a uma rede pobre de estradas e telecomunicações − dificuldades e reacções na implementação do controlo da actividade dos pescadores provenientes de fora da região; − dificuldades e reacções na implementação dos processos de controlo do uso da vida selvagem na área continental de turismo ligado à conservação; − falta de capacidades e pessoal qualificado ao nível local para gerir e distribuir pelas comunidades os benefícios obtidos a partir da actividade turística94. Até Setembro de 2003, vinte e nove ilhas do conjunto do Arquipélago das Quirimbas foram objecto de solicitações de investimento apresentadas através do Ministério de Agricultura, ao qual se subordina a Direcção Nacional de Geografia e Cadastro que procede ao registo dos pedidos de concessão de terras. Mesmo sabendo-se que nem todas estas intenções de investimento se materializarão, o seu volume representa um evidente sinal da grande procura dos investidores privados conexa com as potencialidades contemplativas e de lazer especializados da região do arquipélago e que interessam particularmente ao domínio do turismo. Neste âmbito é significativa a opinião das autoridades provinciais, que consideram que “a demanda no uso e aproveitamento da terra na região costeira da província de Cabo Delgado é cada vez mais crescente. A pressão sobre os recursos naturais existentes na zona aumentam o número de conflitos, motivados pela falta de conhecimento das regras de conservação nas comunidades, falta de hospitalidade por parte dos investidores e falta de coordenação entre as partes”. Um dos factores que dificultam ou freiam a materialização dos investimentos turísticos são os elevados custos do investimento inicial conexos com a fragilidade das redes infraestruturais por um lado e, por outro lado com uma ainda insuficiente atenção especializada, instituída disponível, imprescindível para regular as intervenções em áreas caracterizadas por grande fragilidade dos seus ecossistemas. Este factor induz a que se desenhem projectos para utentes de alto padrão de rendimentos, na maioria não nacionais, o que 94 Murphree, Michael, Tourism, Conservation and Communitie. Developing a programme for the participation of local communities in tourism and conservation in Cabo Delgado Province – Northern Mozambique, relatório, Governo Provincial de Cabo Delgado, Janeiro de 2002, págs. 9 e 10. 79 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte obriga a uma planificação complexa e, por vezes ao uso de tecnologias inovadoras, geralmente exógenas e só assimiláveis a prazo localmente, tanto pelas autoridades, como pelos operadores, pelas comunidades e população. Outro factor importante que torna complexa a criação de condições de arranque dos investimentos são as exigências decorrentes da aplicação da Lei de Terras e do seu Regulamento. A aplicação do princípio da ocupação de “boa-fé” obriga a negociações, por vezes com um grande número de ocupantes, e à intervenção das autoridades, quer para garantir a protecção dos seus direitos quer para mediar eventuais conflitos de interesses. Serão estes provavelmente algumas das causas que explicam a lentidão e dificuldades da materialização das intenções de investimento na região por parte de capitais e operadores nacionais, sendo ainda, aparentemente, os estrangeiros que melhor enfrentam estes condicionalismos de intervenção. Face a esta situação considera-se urgente a “necessidade de racionalizar o aproveitamento dos recursos e o exercício das actividades de forma sustentável”95, pelo que se propõem algumas acções consideradas importantes, nomeadamente: a divulgação do plano de maneio da reserva marinha para as comunidades pescadoras em especial e em geral para toda a sociedade civil; a flexibilização do processo de tradução da Lei de Terras para o inglês, a fim de permitir a sua divulgação aos investidores; a realização de uma fiscalização multidisciplinar desenvolvidas nas ilhas.” periódica, para o acompanhamento das actividades 96 Para além dos conflitos e dos problemas de controlo que se estão a revelar no processo de desenvolvimento da região costeira do Norte de Moçambique, é de realçar a relevância dada pelas autoridades, no escalão respectivo, ao plano de maneio da reserva marinha como instrumento básico de gestão moderna da região. É também de realçar a referência pelas autoridades provinciais da necessidade de fiscalização periódica das actividades de investimento através de uma metodologia que permita uma abordagem multidisciplinar. Neste sentido seria importante que sejam envolvidos neste processo de controlo e monitoria todos os inbtervenientes sobre os quais recaiam impactos significativos. Referimo-nos não só aos representantes das autoridades governamentais e dos operadores privados, como também das comunidades e de especialistas de reconhecido mérito, nomeadamente no domínio dos impactos sobre o ambiente das actividades em presença. Neste processo o 95 Amimo, Oliveira, Situação de Investimentos no Arquipélago das Quirimbas, Direcção Provincial da Agicultura da Província de Cabo Delgado, Relatório de 11 de Setembro de 2003, Pemba. 96 Idem 80 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte objectivo do controle e fiscalização não deve sobrepor-se aos imperativos da comunicação entre as partes, da cooperação, da busca de ajustamento e inovação nos procedimentos, na prevenção e resolução de conflitos, na garantia da manutenção dos principais factores de sustentabilidade. Podemos assim concluir que um dos pontos fortes da região das Quirimbas, o seu relativo isolamento − de que advém o carácter relativamente saudável dos ecossistemas − está também na origem das principais dificuldades a enfrentar pela implantação de empreendimentos turísticos visando o desenvolvimento da região e a melhoria das condições de vida das comunidades. Em 2005 já se pode constatar que as apetências de investimento situam-se na área do turismo, principalmente no complexo insular, no que concerne ao turismo de média/alta gama. Esta tendência não parece estar a ser suficientemente contrabalançada por iniciativas de matriz comunitária com impacto directo e imediatamente partilhado pelas comunidades locais. Tal facto deverá ser objecto de reflexão e gestão por parte das autoridades no sentido de conferir maior sustentabilidade social aos projectos, no quadro do respeito pelo princípio da equidade, um dos pilares do desenvolvimento sustentável. 5.3. O Plano Nacional das Quirimbas (PNQ). Antes do estabelecimento do Parque Nacional das Quirimbas, e no quadro da pesquisa feita para a elaboração do Livro Branco da Província de Cabo Delgado97, já tinham sido definidos alguns parâmetros caracterizadores da parte costeira e insular localizada defronte do Distrito de Quissanga e que inclui as ilhas que viriam a ser parte do Parque Nacional das Quirimbas: 1. Como recursos naturais refere-se: “A existência de mangais; praias e fauna excepcional no meio aquático”; 2. Como recursos culturais refere-se: Uma arquitectura típica num interessante núcleo edificado e uma importante tradição na ilha do Ibo; uma agricultura característica dedicada ao cultivo do café; a existência de actividade de colheita e venda de pérolas. Pelo Decreto nº 12 de 2002 o Conselho de Ministros de Moçambique criou o Parque Nacional das Quirimbas. Neste diploma legal definem-se os limites geográficos do parque, o tipo e finalidades de zonamento e sua finalidade, designadamente: o de servir “de 97 Elaborado com o apoio da Cooperação Espanhola e com beneplácito da União Europeia. 81 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte instrumento facilitador para as diferentes fases de planeamento e de gestão da conservação dos recursos para os diferentes fins, nomeadamente, eco-turismo, turismo consumptivo e outras utilizações sócio-económicas e culturais”98. Também se estabelece, no seu Art. 4., que o Ministro do Turismo aprovará o regulamento do Parque. Por Despacho de 20 de Dezembro de 2003 o Ministro do Turismo aprova o Plano de Maneio para o Parque Nacional das Quirimbas, para o período de 2004 a 2008. A criação deste parque é não só a afirmação da consciência, a nível nacional, da pertinência da “protecção e preservação dos recursos florestais e faunísticos e da conservação da biodiversidade e de ecossistemas” da zona, mas também indica a necessidade de uma correcta e sustentável gestão da área definida através da implantação de padrões adequados e cientificamente fundamentados para o controlo da crescente actividade no seu território. Para além dos âmbitos científicos conexos com a ecologia da região, o estudo para a definição das normas e atitudes de maneio e gestão contou com a sensibilidade dos mais diversos actores em presença, nomeadamente a administração pública, organizações nãogovernamentais, privados e, em particular, a sensibilidade e participação das comunidades residentes da área. O Parque Nacional das Quirimbas, com 750237 ha, compreende uma vasta área continental e marinha próxima da costa, no litoral norte de Moçambique, e inclui as 11 ilhas meridionais do arquipélago, bem como o Banco de São Lázaro. A parte marinha do Parque (que compreende o mar, as ilhas e o Banco da são Lázaro) estende-se por uma área de 152237 ha, sendo de 134377 ha a área da parte junto à costa e 17860 ha a área correspondente ao Banco de São Lázaro99. Este vasto banco localiza-se ao largo da costa, a 44,5 milhas a Leste da ilha de Matemo100. Em termos gerias, a análise da informação disponível revela, que: − O arquipélago das Quirimbas, incluindo a ilha do Ibo, é de relevância nacional e regional. Esta relevância caracteriza-se por diversas valências, entre as quais se incluem a sua importância ecológica, paisagística, económica e sociocultural. 98 Boletim da República, I SÉRIE – Número 22, de Quinta-feira, 6 de Junho de 2002, Suplemento, Art. 3. Ministério do Turismo, com o apoio do WWF – Moçambique, Plano de Maneio do Parque Nacional das Quirimbas, 2004 – 2008, Maputo, 2004, pág. 5. 100 Ministério da Defesa Nacional, em parceria com a direcção Principal da Navegação e Oceanografia do Ministério da Defesa da URSS, Roteiro da costa da República popular de Moçambique, URSS, 1986, pág. 157. 99 82 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte − A área das Quirimbas que inclui as 11 ilhas meridionais está integrada no Parque Nacional das Quirimbas, estando já instituídos, através do respectivo Plano de Maneio, um conjunto de normas e condicionamentos para guiar a sua gestão. − Preconiza-se a participação da Administração local, das comunidades e dos diversos operadores em presença na gestão do Parque, a qual deve não apenas visar a preservação da biodiversidade e dos valores culturais específicos da região, mas também o princípio do benefício concreto na melhoria das suas condições de vida das comunidades locais. Tal facto contribuirá para a elevação da consciência sobre a importância da gestão sustentada dos recursos naturais, e para que as comunidades sejam um sujeito activo do processo. − É fundamental a capacitação das Administrações locais de modo a que elas possam dar o máximo de colaboração, e para que esta seja competente, atenta e expedita. No capítulo especificamente dedicado ao contexto ecológico regional e nacional das Quirimbas foram referidos indicadores gerais que conferem significância ecológica à ecoregião de que elas fazem parte. Quanto às razões que explicam a elevação da área das Quirimbas a Parque Nacional, o respectivo Plano de Maneio refere as seguintes: "1. Foi identificada como uma área de grande diversidade de habitats, incluindo quatro habitats das eco-regiões declaradas da importância global, designadamente: 2. − Floresta Costeira do sul da Inhambane a Zanzibar; − Mangais da África Oriental; − Eco-Região Marinha da África Oriental; − Florestas da Miombo e Savanas Orientais. Três áreas do parque, nomeadamente a floresta de mangal do Ibo, a Baía de Montepuez e o recife de coral de franja, foram identificados como locais chave para conservação da biodiversidade marinha; o Banco de São Lázaro é também um local importante de características únicas. 3. O recife de coral, especialmente na sua parte exyerior virada para o mar, está em muito bom estado e tem uma diversidade de espécies de coral extremamente alta, proporcionando condições de mergulho e ‘snorkelling’ a nível mundial. 4. As pescarias no Parque são extremamente importantes em termos da economia provincial e da sobrevivência do povo e da Muani; os residentes locais compreendem os problemas que a pesca enfrenta e apoiam totalmente o Parque. 83 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte 5. Existe uma grande diversidade de espécies de peixe, de mangal, de ervas marinhas, de moluscos e de macro-algas; as zonas entre-marés, em particular, foram identificadas como sendo de enorme diversidade. 6. Tem uma topografia submarina diversificada, o que cria uma diversidade de tipos de habitat e impede o seu uso para fins comerciais. 7. A área do parque é uma zona de alimento e nidificação para várias espécies de tartaruga marinha. 8. Existem dugongos na área, assim como golfinhos e algumas espécies de tubarão. Baleias visitam a área anualmente com as suas crias. 9. A área do Parque é atravessada por tês rotas migratórias de elefantes, existindo ainda leões, leopardos, búfalos, mabecos, palapalas, elandes e várias outras espécies de animais de grande porte. Aparentemente, a população de elefantes está ma aumentar. 10. O Parque é local de alimento e nidificação para diversas aves, incluindo algumas aves de rapina em perigo de extinção, tais como as águias bateleur e matrial bem como águias pesqueiras, flamingos e outros. 11. Na área do Parque existem vários tipos importantes de florestas e mata costeira, com um alto nível de diversidade e plantas e endemismo (incluindo mata de Guibortia scheliebeni). Existem grandes áreas de floresta seca e miombo que são de importância para a conservação. Nas suas florestas encontram-se madeiras tais como o pau-preto e o sândalo, entre outras espécies. 12. A área contém os inselbergs de Meluco, zona de importância paisagística e também de grande endemismo. 13. A população do Parque está concentrada em quatro zonas de assentamento, deixando vastas zonas desocupadas. A população apoia a criação do Parque. 14. A área do Parque é importante do ponto de vista histórico e cultural, com locais de influência Árabe, Portuguesa e Africana, e monumentos históricos, incluindo a histórica cidade do Ibo. 15. A área do Parque é uma zona pouco desenvolvida, com habitats ainda no seu estado primitivo, muitos animais, com mares limpos de poluição e um ambiente não contaminado. 84 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte 16. Devido a limitações na fertilidade dos solos, acesso, recursos de água subterrânea e outros factores, a conservação e o turismo constituem a ‘melhor pratica de uso’ da área do Parque.”101 A referência extensiva a estas razões justifica-se porque elas estabelecem não apenas a caracterização geral do Parque, do ponto de vista físico e ecológico, mas também dão indicações sobre o princípio de consulta à população, afirmam a importância do património histórico e cultural da zona, e estabelecem a vocação turística da área preconizando a “promoção do turismo sustentável num plano de acção concreto para a conservação, uso e maneio de um dos seus recursos naturais, o Arquipélago das Quirimbas”. No zonamento do Parque, o Plano de Maneio define quatro tipos de zonas designadas com condicionamentos diferenciados e específicos: (1) zonas de protecção total; (2) zonas de uso não especificado; (3) zonas de uso e desenvolvimento comunitário; (4) zonas tampão. Os mangais do Ibo e o Porto do Ibo estão enquadrados na zona de protecção total. A ilha do Ibo está enquadrada na zona de uso e desenvolvimento comunitário. Nesta zona estão incluídas as outras ilhas habitadas do Parque, designadamente a ilha de a ilha de Matemo a ilha de Quirimba e a ilha de Quirambo – cujo assentamento é administrativamente definido como um dos quatro bairros da vila do Ibo. No que concerne à gestão do Parque, o Plano de Maneio adopta como princípio o conceito chamado de Fogão Africano, o qual consiste em basear a conservação dos recursos em três elementos102: (1) uma clara definição da Propriedade dos Recursos; (2) a necessidade de Benefícios Económicos, (2) a motivação para uma Gestão Sustentável. O Plano Nacional de Maneio não é muito detalhado quanto à preservação e valorização património edificado da Ilha do Ibo. Ele estabelece o princípio da sua preservação e a limitação genérica da actividade de construção nova em todo o perímetro do chamado Bairro Cimento, ou seja, em toda a parte “monumental” da vila do Ibo. Nesta parte da vila apenas se preconizam acções de reabilitação das ruínas e construção existentes. A área de construção destinada a novas unidades hoteleiras é restringida a cinco hectares na zona do farol de Mujaca. Esta abordagem, que vale como medida de precaução na ausência de uma análise na especialidade, aconselha a rápida elaboração de normas, princípios e orientações 101 Ministério do Turismo, com o apoio do WWF, Op.Cit. pág. 6. Ministério do Turismo, com o apoio do WWF, Op.Cit., pág. 28. A designação adoptada baseia-se no fogão tradicional das zonas rurais africanas, que são constituídos por tês pedras sobre as quais assenta a panela e por baixo da qual se acende o fogo. 102 85 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte mais específicas e menos espartilhantes e mais motivadoras, dirigidas às eventuais intervenções sobre o edificado. A não ser feito isto criam-se condições que induzirão, a breve prazo, ao aparecimento de pulsões de construção (em resposta às já manifestas pressões tendentes à melhoria das necessidades de alojamento, de conforto e de novos equipamentos) que darão muito provavelmente origem a intervenções anárquicas, desajustadas tecnicamente e pondo em risco a preservação do carácter e da singularidade do delicado conjunto urbano e arquitectónico ainda perceptível. Exemplos deste tipo de intervenção com efeitos destrutivos e descaracterizantes, sob o falso lema da “reabilitação” embora muito limitados - já existem na vila do Ibo e é fundamental impedir a sua proliferação. Seriam necessários estudos multissectoriais para a definição de princípios e normas que, garantido a manutenção da coerência do edificado no quadro da natureza e objectivos do Parque, não impeçam acções futuras de requalificação, reconstrução e recomposição do tecido edificado, em particular nas áreas em que ele foi esvaziado das construções originais, devido ao abandono ou à falta de manutenção regular pelas entidades competentes, públicas ou privadas. O Plano de Maneio do Parque Nacional das Quirimbas defende que os usos considerados compatíveis com os objectivos e o maneio do Parque são: o Turismo; o Eco-turismo; a Conservação de natureza; e outras actividades sócio-económicas e culturais das comunidades locais abrangidas pelo Parque. Esta definição corrobora o que já tinha sido preconizado pelo Livro Branco da província de Cabo Delgado, elaborado por iniciativa tripartida e conjunta do Governo Moçambicano, da Cooperação Espanhola e da União Europeia. 5.4. O turismo como oportunidade e perigo. Implicações gerais na Província de Cabo Delgado. É evidente e largamente referenciada a questão do investimento turístico feito à margem dos princípios de sustentabilidade. Existem inúmeros exemplos de intervenções cujos impactos negativos sobre o natural e o construído preexistentes são de difícil correcção, perdendo-se referências ambientais e culturais que se processavam equilibradamente e danificando-se irreversivelmente ecossistemas fundamentais nessas zonas. O perigo do impacto negativo do turismo pode traduzir-se por ditos popularizados e afirmações de especialistas que chamam à atenção para tal. Podemos citar como exemplo: 86 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte "O turismo é como o fogo: nele podes cozinhar a teu jantar, mas se não tiveres cuidado ele incendiará a tua casa.”103 “O Turismo é um tigre de duas caudas. Por um lado ele oferece emprego massivo e relança a economia. Por outro, se não for controlado, ele pode roubar aos habitantes grande parte daquilo que torna agradável a vida no seu país e apetecível a sua visita."104 A Estratégia das Maurícias para a ulterior Implementação do Programa de Acção para o Desenvolvimento Sustentável das Estados Insulares105 reafirma o carácter bifacial do turismo ao declarar (cap. VIII, 459): “O turismo é um importante contributo para o crescimento económico dos Estados Insulares. Reconhece-se ainda que este sector pode propiciar muitos choques exógenos. Adicionalmente, se o turismo não é desenvolvido sustentadamente, ele pode danificar ou mesmo destruir o ambiente natural que atrai o turista em primeiro lugar. O desafio para estabelecer o equilíbrio entre desenvolvimento do turismo e o de outros sectores da economia é permanente.” Quando o turismo nasce de potencialidades contemplativas e de lazer estabelecidas a partir do desenvolvimento geral da sociedade, feito transversalmente em diversos sectores, ele aparece assim como o resultado de um conjunto de condições mínimas que já estão previamente estabelecidas, podendo ser caracterizado como uma das vias de desenvolvimento induzido, possível e natural, de um processo de investimento preexistente. Com a emergência, nos anos sessenta, daquilo a que se apelidou de “sociedade de lazer”, o turismo começa a ser uma importante oportunidade em si, de geração de receitas, passando a ter um desenvolvimento explosivo no fim do século passado106. Isto leva a que se invista especificamente visando esse objectivo. Os países mais desenvolvidos, e que possuíam já uma base infra-estrutural e tecnológica estabelecida, aproveitaram mais facilmente as oportunidades que as exigências nascentes de lazer em massa trouxeram. No caso dos países de baixo rendimento ou em vias desenvolvimento esta lógica não se aplica do mesmo modo. Pelo facto de as infra-estruturas e o sector de serviços não estarem adequadamente desenvolvidos e expandidos, é natural que seja muito elevado e menos atractivo o investimento para tornar o turismo uma fonte de receitas e de elevação do bem103 Dito asiático anónimo, http://www.wwf.org.uk/researcher/issues/Tourism/index.asp, 16 de Maio de 2005. Sir Lawrence Van der Post, http://www.irs.aber.ac.uk/bgg/, 16 de Maio de 2005. 105 Nações Unidas, Encontro Internacional para Revisão da Implementação Programa de Acção para o Desenvolvimento Sustentável das Estados Insulares, Port Louis, Maurícias, 10-14 de Janeiro de 2005. 106 “Até ao ano 2010, ela (a indústria do turismo) estará servindo de base à criação de 5 500 000 de empregos por ano” http://www.fgvsp.br/academico/estudos/celt/historia.htm – 4 de Maio de 2005. 104 87 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte estar em determinada região com potencial para tal, a não ser que esse potencial seja de grande importância. Este é o caso de algumas regiões de Moçambique e, em particular, do litoral da Província de Cabo Delgado. Um dos vectores de desenvolvimento de Moçambique já durante o período colonial decorreu das suas possibilidades turísticas, particularmente as ligadas ao turismo balnear e ao turismo cinegético. O aproveitamento destas possibilidades foi temporariamente interrompido após a independência do país, por razões políticas e opções de desenvolvimento que dificultaram ou secundarizaram este sector, o qual deixou praticamente de ter expressão. Depois da assinatura dos Acordos de Paz em 1994, e recuperada a possibilidade de livre circulação pelo território, de novo se volta a colocar a necessidade de potenciar o turismo como factor de crescimento económico. Ele foi declarado pelo governo como uma das áreas mais importantes da economia, dadas as condições naturais em presença e a apetência dos países vizinhos em retomar antigos destinos turísticos revelados ainda durante o período colonial. Nas suas fichas das unidades paisagísticas, o Livro Branco da Província de Cabo Delgado, elaborado com o apoio da Cooperação Espanhola e com o beneplácito da União europeia, estabelece como possibilidade de desenvolvimento para o arquipélago das Quirimbas o seguinte: − “Área com grandes possibilidades turísticas baseada na reutilização das residências de origem portuguesa da cidade de Ibo e em trajectos entre ilhas por via marítima. − Turismo de sol e praia em determinadas ilhas como Mefunvo. − Turismo naturalista e fotográfico.” As potencialidades de turismo balnear e cinegético, ou a sua combinação, continuam a ser a principal motivação dos investidores do sector do turismo. O litoral de Cabo Delgado apresenta substanciais potencialidades de lazer que podem combinar a diversidade ecológica, com as possibilidades balneares e a existência de um património cultural interessante. É também um facto que se tem verificado ultimamente alguma apetência para o turismo nesta região. Mais ainda, o Ministério do turismo moçambicano coloca esta região entre as suas prioridades de promoção. Mas o fraco desenvolvimento, nomeadamente das infra-estruturas, dos serviços e da administração local, faz com que o esforço de adequação destes sectores visando a opção pelo turismo tenha de 88 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte ser cuidadosamente ponderado, tanto do ponto de vista tanto da sua viabilidade económicofinanceira, como do da sua sustentabilidade ambiental e cultural, tendo sempre como objectivo um impacto social positivo, sem o qual se podem gerar, a prazo, problemas de rejeição social erosivas em relação a essa opção básica. É o que se verifica nalgumas áreas de intervenção de investidores de capacidade e intenções duvidosas, nacionais e estrangeiros, em particular de origem sul-africana. Podem-se citar como exemplos a construção privativa descontrolada sobre afloramentos rochosos e dunas junto às praias, com o risco de originar processos erosivos e de inquinamento futuros; a criação de dificuldades de acesso do público às praias, gerando-se sentimentos de desagrado por parte da população local, nunca antes impedida de o fazer; a desfiguração da paisagem com elementos estranhos, desenquadrados e de qualidade duvidosa; a destruição da cobertura vegetal natural e a introdução de espécies exóticas cujo impacto não está devidamente estudado; a destruição de micro-sistemas ecológicos típicos da delicada interface entre a terra firme e o mar; a destruição do enquadramento de construções e ambientes construídos, de valor, do património cultural da zona, ou mesmo a intervenções tecnicamente erradas que as desqualificam, por vezes, irreversivelmente. Estes problemas específicos à intervenção privada, sem acordos específica e suficientemente acautelados e monitorados, somam-se aos altos custos das intervenções que respeitem os princípios de preservação ambiental e que derivam da quase inexistência de infra-estruturas integradas; as dificuldades de controlo dos investimentos por parte das estruturas administrativas locais; a carência de normas específicas que imponham abordagens e tecnologias adequadas e inovadoras quando é necessário. Os problemas aqui referidos verificam-se já com acuidade nos pontos actualmente mais atingidos pela pressão do turismo na costa da província de Cabo delgado, em particular nas imediações da cidade Pemba e nas ilhas Quirimbas. Para contrariar este panorama a prazo, o Ministério do Turismo tem ajustado os planos elaborados, estando nomeadamente em curso de discussão o Plano de 2008 a 2013, sendo de realçar a relevância que neles assume a defesa do princípio da conformidade ambiental. No entanto é fundamental que se reavaliem e se reforcem as instituições e instrumentos administrativos que guiem o investimento turístico e estabeleçam os termos da sua monitorização e controlo. 89 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte 6. O Ibo no contexto das ilhas Quirimbas. 6.1. Acesso, localização, caracterização física e população da ilha do Ibo. O acesso à ilha do Ibo pode ser feito pelo ar, existindo para o efeito uma pista de aviação de pequena extensão; por mar a partir de Pemba; ou por terra e mar, com viagem por terra entre Pemba e Tandanhangue e daqui, de barco de pequeno calado, até à ilha. É de realçar o valor, em si, da viagem por mar entre as ilhas e entre estas e o continente como elemento de contemplação e prazer, pelas surpresas da paisagem e vistas do continente, o que encontra eco nas observações de A. Gomes e Sousa quando escreve sobre as impressões da sua vagem pelas Quirimbas107. A ilha do Ibo é a quarta das trinta e duas ilhas do Arquipélago das Quirimbas, contadas a partir do Sul. Ela localiza-se entre os paralelos 12o 19’ 28” e 12o 24’ 24” Sul e os meridianos 40o 32’ 40” e 40o 37’ 32” Leste. A sua superfície vem referida com números diferentes conforme os autores, variando de 10 Km2 segundo Caniua, F.T. a 15 km2 de acordo com Bento, C. L.. Ainda segundo Caniua, F.T. ela está separada 375 m do continente, no seu ponto mais próximo. Rodeiam-na recifes de coral no quadrante Nordeste/Sudoeste e grandes manchas de mangal a sul e sudoeste. É uma das maiores ilhas do arquipélago, a quarta em extensão segundo Carlos Bento, e será a maior se considerar a área periodicamente inundada pelas marés108. Os pontos extremos da ilha distam de 8450 m no comprimento e de 8200 m na largura, sendo o ponto mais alto de 10 m de altura nas imediacões do reduto de Santo António. Na ilha localiza-se a vila do Ibo, sede do Distrito do mesmo nome, o qual tem uma superfície de 47.5 Km2 e integra as ilhas das Rolas, Ninave, Fiõ, Matemo, Ibo, Quirambo, Quirimba, Quilálea ou Quilaluia e Sencar. As costas Norte e Nordeste da ilha do Ibo são orladas pelo baixo rochoso de Mujaca que cobre e descobre, com uma largura de até 1 milha. A SSE da ilha os recifes de coral estendem-se por 4 milhas e juntam-se aos recifes que avançam a partir da ilha de Quirimba. Entre as ilhas do Ibo e de Quirimba, por um lado, e a costa continental por outro lado, situam-se baixos que são cobertos de mangais e que cobrem e descobrem. Num baixo, a 8 107 Sousa, A. Gomes e, op. cit. pág. 143: “A viagem da costa para estas ilhas é das mais agradáveis devido à grande extensão da costa que se avista, e bem merecia, por tal motivo, ser aproveitada para turismo. Fi-la numa embarcação à vela, desde o palmar de Metone, um pouco ao Norte do cabo Paqueve, em dia de sol intenso de Novembro, tendo assim ocasião de apreciar quanto essa viagem oferece de belo”; 108 A maior segundo a ficha Modelo de classificação de Monumentos Nacionais da Direcção do Património Cultural, do Ministério da Cultura. 90 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte amarras para SW de extremidade W da ilha do Ibo, situa-se uma pequena ilha, a ilha de Quirambo109. Esta ilha constitui o quarto bairro da vila do Ibo. Como, nas maiores ilhas do arquipélago, a ilha do Ibo é constituída por manto rochoso de pedra calcária de origem coralina, com muitos afloramentos à superfície, por solos dunares, nalguns casos «cobertos por húmus resultante da vegetação arbórea, e ainda por uma pequena espessura de solo arável». O solo coralino, irregular e rugoso, com desníveis acentuados, não favorece a circulação cómoda das pessoas, situação agravada, especialmente, quando calcorreado durante a noite110. O clima é tropical sub-húmido, com temperaturas médias anuais entre 24 e 26oC e uma pluviosidade média anual entre 800 e 1000 mm. Tem duas estações do ano, uma quente e húmida (Novembro a Abril) e outra mais fresca (Maio a Dezembro). Em mais de metade dos dias do mês não chove, tanto na estação seca como na chuvosa. Mas quando a chuva vem com força as águas alagam as zonas baixas da ilha e interferem nas construções como importante e pertinaz elemento de desgaste. A ilha sofre a influência de duas monções anuais, a de nordeste e a de sudoeste, e dos ventos locais. No fim da monção de nordeste ocorrem, com frequência, ciclones, com prejuízos na agricultura e na navegação. Apesar de muito raros, também há registos de abalos sísmicos, embora de fraca intensidade111, os quais provavelmente poderão ter alguma influência na conservação dos edifícios, tendo em conta as tecnologias de construção das alvenarias e o tipo de materiais utilizados, pouco propensos à resistência a esforços de corte, com a consequente fissuração das paredes, o que as coloca imediatamente vulneráveis à acção das chuvas. Este aspecto deveria ser estudado mais sistematicamente. Relativamente a outros dados de clima medidos na ilha do Ibo apenas foi possível obter a pluviosidade medida em 1978, que foi de 1003.9 mm, dado que o Ibo era apenas um posto Udométrico. Os restantes dados de humidade relativa, velocidade do vento e insolação, à semelhança do que foi referido para o conjunto do arquipélago, só podem ser obtidos por 109 (autor não identificado), Roteiro da costa da República Popular de Moçambique, Op. Cit. pág. 55. Bento, Carlos Lopes, Uma experiência de desenvolvimento comunitário na ilha do Ibo, Moçambique, entre 1969 e 1972, Separata do Boletim da sociedade de Geografia de Lisboa, Série 115a – Nos 1 – 12, Lisboa, janeiro Dezembro de 1997, pág. 22. 111 Há registos de “terramoto” no séc. XIX e a equipa que eu dirigi em julho de 2002 confirmou o facto, tendo protagonizado um desses pequenos abalos sísmicos durante os trabalhos de levantamento, 110 91 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte interpolação a partir de dados das estações localizadas relativamente próximas do continente, e que se apresentam em Anexo. Na ilha do Ibo a flora nativa apresenta características comuns à das restantes ilhas povoadas. Dentre as espécies arbóreas nativas ou exóticas ocorrem os embondeiros, as casuarinas, as acácias amarelas e rubras, as maçaniqueiras, as seringueiras, figueiras exóticas e as amendoeiras da Índia, bem como árvores e arbustos apreciados pelos seus frutos, nomeadamente coqueiros, mangueiras, cajueiros, tamarindeiros, jambaloeiros, cafezeiros, ateiras, bananeiras, romãzeiras. No centro da ilha e a Leste e Nordeste do aeroporto existem ainda algumas áreas muito restritas de matagal. No extremo leste e sudeste da ilha localiza-se a principal área agricultada da população, fora da zona habitada, com culturas de sequeiro e sazonais, principalmente o arroz, a batata-doce a mandioca, e pequenas manchas de bananeiras. Quanto à fauna, o que se referiu relativamente ao arquipélago em geral aplica-se à ilha do Ibo. Há ainda a referir a existência de diversas espécies de roedores e répteis de pequeno porte. A população da ilha introduziu ao longo do tempo animais domésticos, utilizados na sua dieta alimentar, dentre os quais se destacam hoje os caprinos e aves de capoeira. Como nota ilustrativa do tipo de animais domésticos que a ilha possuiu referira-se que em recenseamento feito em 1972 a população da ilha (que era de 3518 habitantes em 1971) possuía 1675 animais domésticos distribuídos do seguinte modo: 447 cabritos; 65 bovinos; 932 galinhas e 162 patos112. Convém sublinhar que estudos feitos sobre a apetência da ilha no que respeita à criação de gado bovino não aconselham o aumento deste tipo de animais, por falta de pastagens, para além de danos ecológicos que tal significaria. Actualmente o número de bovinos reduziu-se. Em 1986 viviam na ilha do Ibo cerca de 3500 pessoas. Em 1991 a população recenseada na ilha do Ibo era de 3941 pessoas, estando neste número incluídas 252 pessoas da ilha de Quirambo, a qual constitui um dos seus bairros. Parece não ter havido uma substancial variação da população de então para 2003. O número que nos foi dado pelas autoridades da Ilha em 2002 (pela administração e pelos chefes dos bairros) não ultrapassava as cerca de 3500 pessoas. Quanto à variação da população no período entre 1986 a 1997 é interessante notar, como nela se reflectem tão claramente as vicissitudes por que o país passou: até 1986 112 Bento, Carlos Lopes, Uma experiência de desenvolvimento comunitário na ilha do Ibo, entre 1969 e 1972, Separata do Boletim da Sociedade de Geografia, Série 115.a – N.os 1-12, Janeiro-Dezembro de 1997. 92 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte estava-se numa situação de crescimento natural, embora baixo; de 1986 a 1991 dá-se um forte crescimento populacional motivado pela guerra e fruto da maior segurança que as ilhas proporcionavam; de 1991 a 1997 inverte-se o crescimento, verificando-se um forte decréscimo da população. Sublinhe-se que, segundo Carlos Bento, em meados do séc. XIX (1856) a população do Ibo atingira a cifra de 5390 habitantes. Isto significa que desde essa época a população da ilha entra em declínio, não sendo portanto recente a tendência verificada após a independência de Moçambique, não obstante ter havido factores que a tenham acelerado, como por exemplo a guerra terminada em 1994. 6.2. A centralidade da Ilha do Ibo no arquipélago das Quirimbas. Não parece ter sido apenas o comércio de escravos, feito em momentos diferentes principalmente por árabes, portugueses, franceses, que construiu a notoriedade e prosperidade das ilhas Quirimbas como ponto de contacto. Antes da chegada dos portugueses às ilhas também é referido pelos historiadores a procura de fibra de coco e tecidos designados por panos de maluane – designação de local incerto junto às ilhas –, cujo centro de produção se localizou primeiro em Wamizi e, posteriormente, na ilha de Matemo durante todo o século XVII. Note-se que devido a este produto os portugueses apelidaram inicialmente as Quirimbas como Ilhas de Maluane113. Como entreposto comercial, as Quirimbas ganham também alguma importância pela procura de marfim, arroz, milho, carapaças de tartaruga, maná, urzela, caurim e âmbar. Na penúltima década de oitocentos, e conforme descrições Henry O’Neill114de Ao litoral frente às ilhas chegavam as caravanas de comerciantes do interior trazendo cera de abelha, goma copal, cauchu, oleaginosas, para além do marfim. Jerónimo Romero também faz referência à produção de aves de capoeira e de gado caprino, ovino, suíno e bovino na ilha do Ibo. Em finais do século XIX e princípios do século XX, mas durante poucos anos, exportou-se casca de mangal a partir do Ibo; mas este comércio, que rapidamente começou a ter um impacto negativo nas matas de mangal acabou por ser, felizmente, proibido pela Companhia do Niassa. A ilha de Moçambique beneficiou de grandes quantidades de produtos alimentares provenientes das Quirimbas115. 113 Newitt, Malyn, História de Moçambique, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1997, págs. 30 e 176. Os panos de Maluane eram tecidos com seda ou algodão e tingidos com o anil da região. 114 Cônsul britânico na Ilha de Moçambique. Op. cit. pág. 295. 115 Idem, pág.228 e 229. 93 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte Inicialmente, parece que as ilhas mais importantes do arquipélago terão sido a de Vamizi, Matemo e Quirimba. Relativamente à ilha de Matemo, Frei João dos Santos refere no seu livro Etiópia Oriental de 1609, que esta ilha teria sido ocupada por uma grande povoação de mouros, o que se deduziria pelo facto de as ruínas de muitas casas existentes então mostrarem a existência de portais e janelas guarnecidas de colunas lavradas. Em 1570 dá-se a primeira abolição da escravatura, mas esta pratica é re-decretada em 1645116. Só em 1836 é que se proíbe exportação de escravos, mas o fim da escravatura só é decretada em 1858, devendo os escravos ser declarados livres a partir de 1878117. Tendo os portugueses reconhecido que as ilhas se tinham transformado em importantes centros de comércio independente conduzido pelos muçulmanos, uma enorme expedição atacou Quirimba em 1522, tendo reduzido a cinzas a cidade existente na ilha. É provável que em finais do século XVI e princípios do século XVII o arquipélago das Quirimbas tenha sido o maior fornecedor de alimentos à ilha de Moçambique, o que terá levado a que o vice-rei da Índia Lourenço Távora tivesse decidido invernar nestas ilhas com os seus barcos118. A localização geográfica parece ser um dos elementos importantes a considerar no que respeita à notoriedade das Quirimbas. Tudo indica que a sua localização geográfica constituía, simultaneamente, um elemento de atenção por parte de forças externas e um elemento de tensão por parte das chefias administrativas e da população. Situadas no extremo setentrional do território colonial, elas constituíam a primeira linha de defesa do território português na margem ocidental do Índico e funcionavam também como ponto de interacção e de “cobiça” em relação às riquezas do interland naquela parte do continente. Daí os constantes incursões e ataques que sofreram ao longo da sua história, os quais foram muito intensos no fim do século XVII e no primeiro quartel do século XIX. A combinação de vários factores – nomeadamente a maior vulnerabilidade de ilha de Quirimba, a busca de condições mais protegidas de ancoradouro e abrigo das embarcações, e a tentativa de se impulsionar a produção agrícola durante o governo de António de Melo e Castro em Moçambique (entre 1756 e 1763) – levou a que se transferisse a capital das ilhas, localizada inicialmente na ilha de Quirimba, para a ilha do Ibo. Esta transforma-se assim na 116 Na sua monografia sobre a ilha do Ibo (pág. 15), o Administrador de circunscrição António Baptista de Oliveira refere que no período entre 1645 a 1671 o comércio de escravos é a actividade dominante nas Quirimbas. 117 Oliveira, António Baptista de, Monografia da ilha do Ibo (relatório), Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo, pág.28. 118 Newitt, Malyn, op.cit., pág. 177. 94 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte sede do governo subalterno das ilhas e do território do Cabo Delgado, passando por um rápido processo de ascensão. A Vila do Ibo foi fundada, como tal, pela coroa portuguesa em 1761. A partir de 1764 e durante mais de 160 anos ela foi a capital dos governos subalternos e de distrito e só em 1929 é que a actual cidade de Pemba assume formalmente esta qualidade, passando a ser a capital da Província de Cabo Delgado, em substituição da Vila do Ibo. Edificam-se ruas repletas de casas e, entorno de uma praça, ergueram-se belíssimos edifícios públicos. No início do século XIX, apenas Moçambique ultrapassava Ibo enquanto centro onde o comércio se caracterizava precisamente pela prosperidade119. Em 1869 a vila do Ibo foi visitada com grande pompa pela Rainha de Anjuane e seu cunhado120. Em 1862 existiam na ilha do Ibo um total de 171 embarcações. Uma imagem da importância da Vila do Ibo nos fins do século XIX e mesmo durante a primeira metade do século XX transparece, por exemplo, no seguinte: − Funcionava frequentemente como ponto intermédio de partida e de chegada das expedições para o reconhecimento do interior; − Possuía um sistema relativamente importante de defesa da ilha constituída por três fortificações; − Possuía uma administração relativamente consolidada, albergando a sede do Governo do Distrito de Cabo Delgado (embora dependesse em muito da iniciativa dos colonos locais e de donativos privados para levar a cabo iniciativas de interesse para a ilha); − Possuía serviços públicos e privados e equipamentos sociais fundamentais nomeadamente a Administração do Conselho, a sede da Comarca de Cabo Delgado, a Direcção de saúde, serviços alfandegários, a Fazenda, a sede dos Correios e Telégrafos do Distrito, a Delegação Marítima, os serviços meteorológicos, a sede do Banco Nacional Ultramarino (BNU), agências de seguros e estabelecimentos de exportação e importação, bem como uma rede significativa de instalações comerciais, mercado e matadouro público; − Possuía um porto balizado e uma casa do farol em Mujaca; − Era um significativo centro religioso cristão e muçulmano; 119 120 95 Idem, pág. 179 Oliveira, António Baptista de, op. cit. 40. Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte − Possuía alguma indústria, ainda de reduzidas dimensões, nomeadamente de óleos e sabões, de processamento de castanha de caju, de descasque de arroz, de tabaco; e a comunidade chinesa, que fora autorizada a emigrar para a ilha em 1895, introduziram a peca e a secagem de holotúria, que era concentrada e expotada a partir do Ibo; − Possuía iluminação pública, um sistema bem identificado de ruas e travessas121, e o assentamento urbano era gerido através de um Código de Posturas que, entre outros aspectos, definia os limites da vila do Ibo e regulava a construção e o tipo de intervenções sobre o edificado; − Possuía uma intensa vida cultural, não só no que respeita às práticas culturais populares nos diversos domínios já antes referidos no capítulo dos sabres locais, como no que respeita a manifestações mais modernas da cultura de tipo ocidental como o teatro e outras. Até ao primeiro quinquénio do século XX o Ibo chegou a albergar cinco agências consulares ou vice-consulados, sendo quatro delas: a da França, a da Alemanha, a da Espanha e a da Bélgica. O porto do Ibo era demandado por embarcações costeiras e navios de longo curso numa frequência significativa, mesmo depois de ter entrado em processo decadência por deslocalização das autoridades administrativas para a cidade de Pemba, no continente. Em 1933, o porto do Ibo recebeu 41 navios de cabotagem; em 1943, recebeu 20; em 1944, recebeu 17; em 1953 recebeu 36 navios de cabotagem e 4 de longo curso e em 1962 recebeu 52 navios de cabotagem e 8 de longo curso. Neste ano o porto movimentou cerca de 4 mil toneladas de carga de exportação e cerca de 2 mil toneladas de carga de cabotagem. É evidente que a situação de prosperidade do Ibo não pôde ter sido alcançada sem conflitos internos relativamente importantes que não se devem ignorar. A prática da escravatura foi motivo de protestos e revoltas da população que era objecto de tal negócio, tendo-se registado no século XIX levantamentos populares em 1883 e em 1868. 121 Os nomes das ruas da época eram dedicados ao rei, rainha e príncipes portugueses, havendo outras com a designação de Rua Formosa, rua da Bela Vista, Rua Nova, rua da Alegria, rua das Delícias, Rua Verde, rua do Teatro, rua da Escola e até a rua do Contrabando, como nos diz António Baptista de Oliveira no Relatório citado, pág. 46. 96 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte É interessante registar este processo cíclico e persistente de recuperação, mesmo trinta e três anos depois de perder o estatuto de capital de distrito a favor de Pemba. É como se na alma das Quirimbas, nomeadamente no Ibo, houvesse duas tensões em constante contradição: de um lado a tensão das potencialidades criativas e de desenvolvimento que a geografia e a história lhe confere e, do outro lado, a tensão do retrocesso, que a distância e o isolamento por vezes engendram. Esta centralidade da ilha do Ibo caracterizada pela sua relativa prosperidade apresenta também um carácter ambivalente. Ela nem sempre se deveu a uma estratégia planificada do governo colonial: as Quirimbas foram quase sempre deixadas ao seu próprio arbítrio, ao arbítrio das iniciativas dos senhores locais. Raras vezes foram atendidos pelo governo da colónia os pedidos de reforço de verbas solicitados pelas autoridades locais para resolver a necessidade de reabilitação das fortificações, para melhora e ampliar os serviços públicos ou para reparar danos provocados por desastres naturais. Daí que, frequentemente, a Administração do Ibo tenha sido obrigada a recorrer à subscrição pública, ao apoio privado ou a manifestações de desagravo das forças locais: é como se a centralidade da ilha do Ibo fosse obra de uma persistente vontade alimentada pelas suas gentes, até que ela foi vencida pela força das terras do continente e pelas medidas de força das autoridades centrais122. Esta centralidade, descentrada do poder central colonial, mas também alimentada no contacto com culturas de outros povos, plasmou-se no desenvolvimento da sua própria cultura. Parece ser esta uma das razões de base da singularidade do património cultural de que se refere adiante, mas que se encontra em risco de desaparecimento caso não se actue sobre ele, fazendo recurso, inclusive, aos próprios saberes acumulados localmente. 6.3. A ilha do Ibo como repositório de saber local. Que saberes se poderiam destacar como património cultural da Ilha do Ibo em resultado de elaboração própria, e que se afirmariam como traço de identidade característico? A resposta a esta questão é do âmbito da antropologia cultural. No entanto pode-se referir à partida que esses saberes são com certeza marcados pelo contexto geográfico, ecológico e ambiental. As observações feitas na ilha em 2003 e as entrevistas a personalidades seleccionadas para 122 Este tipo de medidas pode ser exemplificado pela instrução de desbalizagem do porto do Ibo e pelo aumento das tarifas, ordenados pelas autoridades distritais para favorecer os portos de Pemba, a Sul, e de Mocímboa da Praia, a Norte. 97 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte o efeito, pelas suas habilidades, permitem no entanto estabelecer ruma hipótese de abordagem à questão colocada. As principais manifestações de saber na Ilha do Ibo, passíveis de ser exploradas e desenvolvidas num novo contexto de revitalização económica, distribuem-se pelos seguintes domínios e constituem as valências que a seguir se enumeram. • O domínio da valorização de profissões e técnicas tradicionalmente exercidas e conhecidas, de que se destacam a construção de alvenarias, a ourivesaria, a carpintaria, a latoaria, a fundição artesanal, a construção naval. Não foi possível fazer o seu levantamento para se estabelecer o significado relativo da sua actual ocorrência. O recenseamento feito por Carlos Lopes Bento em 1971 dava a seguinte imagem123: • O domínio da culinária, nomeadamente no que se refere às práticas de conserva tradicional e doméstica de mariscos (conhecidos localmente pelas designações de macasa, mbareh, nhamata124e outros), de pescado (maragaio), de palmito (quiréreh), em escala adequada e, eventualmente, a produção de compotas (de manga, de goiaba, de maçanica), de frutas secas (banana, manga, maçanica) e o aproveitamento de sumos e bebidas locais (a água de coco, a sura); • O domínio da pesca (peixe e crustáceos); • O domínio da agricultura, com particular realce para o incentivo à reabilitação da prática tradicional de cultura e produção do café125; • O domínio da cultura, nomeadamente a valorização do edificado, da música, da dança, das cerimónias tradicionais, dos produtos da cosmética e higiene tradicionais (m’siro, mussuáqui, mulala e outros a seleccionar). Qualquer das opções referidas, e que eventualmente se decida incentivar com base em estudos de eco compatibilidade, estudos de viabilidade, estudos de mercados especializados e estudos de stocks exploráveis, deverá respeitar os princípios e requisitos estabelecidos de preservação da biodiversidade, do ambiente e da paisagem e da conservação dos recursos naturais. Mas, inversamente, as limitações decorrentes dos critérios de sustentabilidade 123 Bento, Carlos Lopes, Uma experiência de desenvolvimento comunitário na ilha do Ibo, Moçambique, entre 1969 e 1972, Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 115a – Nos 1-12, Janeiro – Dezembro de 1997, pág. 38. 124 Macasa: bivalve da família dos Pinnidae; Mbareh: bivalve da família dos Pteriidae; Nhamata: marisco da família dos Polyplacofora. 125 “Coffea Ibo de Frohner”, conforme Carlos Lopes Bento, op. cit. Pág. 219. 98 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. II Parte ambiental têm também de estar em consonância com a preservação do património cultural tangível e intangível construído ao longo do tempo, pela população. É nomeadamente através da definição de escalas adequadas de exploração, da modernização das técnicas de produção e do controle e monitoria dos processos por parte dos actores envolvidos que se garantirá que as acções de desenvolvimento não se transformem em acções predadoras, e que se estimulará o equilíbrio entre as necessidades da população e a sustentabilidade dos processos. As evidências empíricas indicam um forte tendência de envelhecimento da população e de emigração dos jovens para outras paragens. As indicações colhidas sugerem também o enfraquecimento da dinâmica de preservação dos saberes e práticas tradicionais locais, o que pode conduzir ao desaparecimento de traços relevantes do saber local e indígena. Seria importante a consideração de um programa de revitalização e transmissão deste acervo de conhecimento local de modo a garantir a sobrevivência e o desenvolvimento dos saberes e boas práticas que a inter-relação cultural e o contexto ambiental específico permitiram elaborar e acumular ao longo da história do Ibo e do arquipélago das Quirimbas. Parece hoje evidente que o turismo pode ser a actividade económica capaz de alavancar hipóteses sustentadas de revelação e valorização destes saberes que são parte integrante da cultura das ilhas. Tomando mais uma vez a Declaração das Maurícias, no seu ponto 13, os Estados Insulares em desenvolvimento sublinham a importância da preservação da cultura como representando “a expressão e identidade dos povos e a base da riqueza da diversidade cultural, tradições e costumes”. O estudo dos conhecimentos, do saber-fazer e das técnicas acumulados ao longo do tempo pela população do Ibo e das Quirimbas em geral é, pois, muito importante como factor para a abertura de oportunidades de desenvolvimento sustentado. 99 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte III PARTE: O edificado: arquitectura e Identidade na Ilha do Ibo "Memory is vital to creativity: that holds true for individuals and for peoples, who find in their heritage natural and cultural, tangible and intangible - the key to their identity and the source of their inspiration". UNESCO. World tangible heritage serves as a stimulus for everybody's memory. It crystallizes in its manifestation the specificity of a culture as well as its universal vocation. UNESCO's action in the field of tangible heritage focuses on three axes: prevention, management and intervention. (Tangible Cultural Heritage UNESCO Sector for Culture.htm) Maio de 2003 Um dos aspectos singulares da arquitectura do Ibo é a clara imagem de integração de experiências arquitectónicas tão diferentes dos seus habitantes, ou seja: a experiência popular local de construção e desenho, com ênfase para a experiência swahili, e as experiências de construção e desenho exógenos, nomeadamente a colonial/ocidental e a de outros povos do Índico e do Oriente que demandavam a costa oriental africana. Obtém-se assim como resultado um conjunto cujos elementos de coerência e unidade podem ser encontrados tanto na zona formal como na zona informal. O factor principal que terá contribuído para esta realidade parece estar no conceito referido antes, de centralidade descentrada da ilha do Ibo no quadro da administração colonial. Diz-nos Malyn Newitt que Cabo Delgado, (incluindo assim as Ilhas Quirimbas) constituía uma espécie de zona de ‘fronteira’ onde a autoridade governamental era fraca e os povos de várias origens étnicas e culturais sobreviviam e/ ou prosperavam mediante o desenvolvimento de instituições locais baseadas na cooperação mútua126. Deste modo é natural que tanto as autoridades como a população me geral fundasse as suas aspirações de melhoria de condições de vida principalmente nos recursos de que dispunham localmente, isto é, naquilo que era oferecido pela natureza127, pelas oportunidades128, e pelos saberes em presença129. É este o contexto que permeia toda a abordagem que se desenvolverá a seguir, procurando-se caracterizar a realidade e as opções que a determinam, e tentando-se avançar para considerações propositivas metodológicas ou mesmo de intervenção. 126 Newitt, Malyn, op. cit., pág. 228. O coral, os diversos materiais vegetais, as resinas e até a mica do continente) 128 Por exemplo a telha de Marselha trazida pelos franceses no processo mercantil. 129 Dos povos do continente, dos swahili, dos árabes, dos portugueses, dos indianos e de outros. 127 100 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte 7. A “vila de coral e telha”: lugar, desenho e carácter. 7.1. Referências cronológicas: factores de destruição e decadência, e impulsos de reconstrução e desenvolvimento. A ordenação articulada dos principais factos de interesse para a compreensão dos fenómenos de modelação antrópica da paisagem e sua transformação é um instrumento importante para a sistematização e teorização das diferentes valências da experiência humana no caso de estudo. Ele permite-nos estabelecer as referências a partir das quais se pode estabelecer o nexo entre as preexistências, as transformações e o desenvolvimento do edificado da ilha. A análise do quadro cronológico dos acontecimentos, em Anexo, bem como a consulta à documentação permitem perceber que o processo de construção e desenvolvimento da ilha, do seu assentamento humano e respectivo conjunto edificado, foi-se fazendo por períodos alternados de decadência e reconstrução. 1. Como elementos de decadência e de perturbação do processo normal de desenvolvimento podem-se indicar: a) Ataques e razias a partir do exterior; b) Desastres naturais, em particular tempestades ciclónicas das monções e abalos sísmicos; c) Deficiências e negligência na gestão administrativa; d) Decisões políticas (1) baixando o nível de gestão específica e independente da vila através de uma câmara municipal – com a extinção da câmara municipal em 1986, passando a gestão da vila a depender da administração geral do território nela sediada –, e (2) retirando à ilha a sua centralidade no quadro da administração territorial – com a mudança da capital do Distrito para Pemba, provisoriamente a partir de 1902 e definitivamente a partir de 1929, e com acções específicas de diminuição da operacionalidade e importância do porto em favor de outros portos da costa como Pemba e Mocímboa da Praia; e) Fim do tráfico de escravos e a diminuição da actividade comercial, que resultaram da acção conjugada de medidas legais e da afirmação das potencialidades 101 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte económicas de outros assentamentos costeiros fruto de maior proximidade dos recursos e melhores condições e facilidades de transportes e comunicações; f) Emigração da população para outras partes do país. Mas mesmo apesar destes factores, a ilha foi capaz de reerguer o seu conjunto edificado ao longo da sua história e reencetar processos de recuperação. 2. Os principais factores de reconstrução foram: a1) A existência de uma tradição de construção swahili de consolidada, proveniente da integração do saber dos povos africanos do litoral com contribuições de outros povos nomeadamente a contribuição árabe e as de outros saberes do Índico oriental; b1) A manutenção da centralidade da ilha do Ibo durante um século, o que permitiu decantar experiências, o seu aperfeiçoamento local e até a sua diferenciação para outras opções de concepção e construção, tendo no entanto sido interrompida esta pulsão quando o Ibo entra definitivamente em decadência; c1) A fraca interferência da administração colonial no condicionamento da manifestação da capacidade individual ou corporativa de empreendimento, o que evitou a imposição por via administrativa de opções monumentais e de concepção e projecto exógenos; d1) A cooperação entre as diferentes comunidades, o que és bem expresso na tolerância e convivência religiosa e “civilizacional”. Estes factores de decadência e de reconstrução, que são específicos à ilha e que se desenrolam num ambiente territorial administrativo e de relativo isolamento e confinamento, acabam também por configurar opções de desenho e técnicas cujo conhecimento é importante para a planificação de qualquer actividade de construção e reabilitação da vila. 7.2. Uma interpretação dos principais elementos estruturantes da vila de coral e telha, o Bairro Cimento. Parece não haver referências explícitas da existência de um plano urbano, previamente elaborado, para a implantação física da Vila. Na sua tese de doutoramento sobre as ilhas Quirimbas o Prof. Carlos Bento indica a data de 1761 como data de elevação do povoado do Ibo à categoria de vila e 1764 como data da “implantação” da vila. Segundo este auto, a utilização do termo “implantação” deveu-se ao facto de, para além da tomada de posse dos 102 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte oficiais designados da Câmara 130 em 1764, ter-se feito a inauguração de alguns edifícios construídos na altura, havendo um auto de entrega assinalando o acontecimento. “Tal pressuporia ter havido um traçado ou, pelo menos, uma opção de ocupação espacial, que presidiriam à localização de tais construções. De resto, no quarto trimestre de 1764, os vereadores da Câmara informaram em testemunho público que, em Junho do mesmo ano, chegara às ilhas o sargento-mor de infantaria Alberto Júdice e que este, cumprindo as ordens que recebera previamente, “estabeleceu em um bom terreno (...) do Ibo, a nova Vila à qual deu o nome de São João do Ibo, dividindo o terreno em ruas travessas de boa largura, pondo marcos nos ângulos em que as ruas encontram as travessas. Criou nova Câmara, fez uma cadeia, de duas casas”. Para além da estrutura viária, o sargento-mor Alberto Júdice, “à imitação das melhores vilas do Reino” definiu uma boa praça e levantou um pelourinho, no melhor sítio da vila escolhido pela população, “para comodidade de todos. Sabendo-se das constantes investidas militares e ataques que as ilhas sofriam por parte de povos que ambicionavam o domínio comercial da região, é compreensível que, no mínimo, a estrutura geral da vila tivesse tido definição de uma mão militar, sendo esta apoiada, naturalmente, nos modelos já realizados noutras vilas de Portugal ou das suas colónias”. A partir de uma análise das distâncias e da relação das fortificações entre si e com a parte “formal” da vila, (e mesmo sabendo-se que duas das fortificações não existiam em 1764) parece evidenciar que a localização das três fortificações131 da Ilha configurou, ao longo do tempo, as linhas de força definidoras do campo de desenho, dentro do qual se foi completando e ou desenvolvendo a trama urbana que Serpa Pinto encontrou nos finais do séc. XIX, e que ainda existe. De facto, na geometria actual da vila do Ibo transparece uma curiosa estruturação ancorada num conjunto de três eixos dispostos em triângulo, de lados flectidos para o interior, tendo como vértices as três fortificações militares: a fortaleza de S. João Baptista, a mais importante, o fortim de S. José e o de Sto. António. Dentro do espaço delimitado pelas três fortificações, no qual se desenvolveu o ‘núcleo duro’ do conjunto urbano, actualmente designado de Bairro Cimento, localiza-se a principal praça da vila. ... A praça é composta de três sub-espaços outrora ajardinados com base numa 130 O Juiz Ordinário, o Vereador mais velho e os outros três Vereadores da Câmara Municipal, o Procurador do Concelho e o Escrivão; 131 Com as exigências relativas às limitações de alcance e campo de tiro, que no entanto não se verifica entre a Fortaleza de São João Baptista e a de Sto. António; 103 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte opção de desenho geométrico simples e com árvores de sombra ladeando os principais percursos. Desembocam, irradiam e nela penetram caminhos que prolongam vias provenientes de várias direcções, nomeadamente de Leste, de Nor-Nordeste, de Oeste, de Sudoeste e de Sudeste, fazendo convergir nela fluxos que a atravessam, lhe definem a geometria e a vivificam. Por estas vias fazem-se as ligações respectivamente com a zona comercial, com a zona suburbana ou informal, com a zona residencial da marginal, com a ponte cais e com aberturas que a ligam ao porto de abrigo, local de embarque e de desembarque dos barcos de passageiros e de carga, a motor ou à vela. Nesta vasta praça localiza-se o núcleo monumental da vila e se erguem ainda hoje as mais importantes edificações do poder público: a Alfândega; a Igreja católica; a residência do Administrador; o Hospital; o antigo edifício do Tribunal que hoje alberga a Administração Marítima e as Telecomunicações de Moçambique; o antigo edifício da Fazenda, hoje desocupado; a Escola Primária Pública de nível II (E.P. II); o principal fontenário da vila e o recinto onde agora se realizam as festas públicas, designadamente a tradicional festa de S. João.” É a chamada Praça da República: um espaço urbano hoje degradado e que apresenta descuido, em que o elemento principal é o seu jardim. Este jardim é caracterizado por frondosas amendoeiras da Índia (Terminalia catappa), serigueiras e acácias amarelas (Cassia siamea) a bordejar a área outrora ajardinada e hoje quase vazia de plantas, a não ser as amariliáceas de umbela brancas (Crinum pedunculatus) e brincos de princesa (Hibiscus schizopetalus), muito usadas nos ajardinados132. O elemento particular deste conjunto aiardinado é o facto de as principais árvores serem conhecidas pela população por nomes específicos, como se de pessoas se tratasse. “Valeria a pena aprofundar este domínio, o da arborização da vila e suas particularidades, tanto na zona formal como na informal e fora delas. Este estudo permitir-nos-ia compreender a importância das diferentes espécies arbóreas pelo seu carácter mítico, ou ainda simplesmente pelo seu valor como marco urbano. Para além deste aspecto seria igualmente relevante recensear locais arborizados de índole sagrada cuja preservação teria de se garantir.” É pertinente observar que quanto à praça ou largo principal da vila a sensação de “exagero” dimensional talvez resulte não tanto da combinação, mas sim do somatório de exigências de espaço relativas a três das funções geralmente geradoras, por si só, das praças 132 Carrilho, Júlio, e outros, Ibo. A casa e o tempo, Edições FAPF, Maputo, 2005, pág. 25. 104 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte portuguesas: (i) a confluência/irradiação de percursos; (ii) a função religiosa e de poder “espiritual” simbolizada pela igreja; (iii) as funções ligadas ao poder “temporal” e à administração simbolizadas pela residência do administrador (neste caso também de personalidades com importância e poder?) e ou pelos principais instituições públicas, particularmente “os paços do concelho”133. O mar é omnipresente. Por sugestão, a sul, e por presença a ocidente da vila. É um facto evidente como em qualquer ilha pequena. A Sul da vila localiza-se o porto de abrigo. Para este lado do mar abrem-se os grandes armazéns com os seus ancoradouros privativos. Barcos de diversos tipos ali aportavam. Mas nem sempre isso transparece a partir da vila. Especialmente no que se refere à vista para o porto de abrigo. Para este lado do porto de abrigo desembocam caminhos estreitos que lhe dão acesso a partir da parte nobre da vila. É o lado das traseiras, do trabalho, do transporte comercial e da chegada ou partida dos que demandam ou deixam a ilha. A Ocidente da vila localiza-se o que poderíamos chamar a face contemplativa aberta para a paisagem longínqua do continente, para lá do oceano. Neste interface da vila com o mar, os momentos de preia-mar possibilitam que a zona possa ser utilizada como zona balnear. Mas a maré baixa prolonga a terra por centenas de metros. Este lado do pôr-do-sol foi reservado às casas de pessoas importantes. Aqui se esfuma a vista até aos confins do horizonte. Aqui se localizou a primeira casa do governador. Uma muralha baixa bordeja a praia. Agora não é tão franco o acesso ao lençol de areia. É o lado do olhar. E a Noroeste da vila, para lá da Fortaleza de S. João Baptista, consome-se o mar no sustento dos habitantes mais pobres da vila. É aqui que a população gasta o dia na apanha de mariscos e crustáceos, e de onde a população parte para a pesca de subsistência. É o lado da subsistência. Não existe na ilha uma praia no sentido comum da presença constante de volume de água oferecendo-se permanentemente aos banhistas, mais ou menos junto ao branco areal da linha da costa. Em contrapartida esta realidade muda no período da preia-mar, em é possível tomar banho de mar em quase toda a costa que não esteja guarnecida de rocha ou de mangal, particularmente na zona de abrigo a Oeste da ponta de Mujaca, a Norte da ilha. Por esta razão, esta é a zona mais propícia para instalações balneares, facto que está assinalado no Plano de maneio do Parque Nacional das Quirimbas 133 Teixeira, Manuel (coordenação de), A Praça na cidade portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa, 2001, pág. 12 e 13. 105 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte No que respeita às infra-estruturas básicas, a observação realizada permitiu constatar: − A existência de uma rede viária básica constituída de arruamentos macadamizados munidos dos respectivos passeios nas ruas principais do núcleo urbano, em particular no bairro de ”cimento”. O restante da rede viária é constituído percurso aberto “à mão” e por caminhos de “pé posto”. Note-se que as faixas de rodagem da rede principal, quando utilizadas, são-no exclusivamente por peões, uma vez que não existem, desde há muito, na ilha, veículos motorizados, pelo que o seu estado de degradação resulta apenas do seu desgaste natural. − A existência de uma rede geral de electricidade que distribui energia, com base em cabos aéreos suportados em postes de betão armado, por quase todo o bairro de ”cimento” e parte dos bairros suburbanos, a partir de um gerador municipal em funcionamento. O estado sofrível da rede e seu o funcionamento errático levou a que algumas residências e ou estabelecimentos privados se tenham munido dos seus próprios meios de produção alternativa de energia eléctrica. − A existência de uma rede de cabos telefónicos muito restrita, permitindo principalmente a comunicação telefónica pontual com o exterior. Esta é geralmente feita a partir da sede do serviço público de telecomunicações, implicando uma combinação prévia entre receptor e ou emissor e a deslocação à sede. A rede telefónica interna é quase inexistente. − A não existência de um sistema integrado de captação, adução e distribuição de água potável, estando no entanto erguida uma torre de elevação e armazenamento de água que nunca chegou a entrar em funcionamento. O abastecimento de água potável é feito através de cisternas (estas, principalmente na zona urbana “formal”) e poços domésticos e alguns furos de uso colectivo. É assim natural que o número deste tipo de dispositivos privados seja elevado, da ordem dos mais de cento e cinquenta poços privados na zona suburbana, constituindo assim o principal recurso de abastecimento de água potável. Para além do pequeno número de furos de uso colectivo, a população que não possui acesso privativo à água potável é abastecida, frequentemente, por uso solidário da água dos vizinhos. − A não existência de um sistema de esgotos e saneamento integrados. Os esgotos domésticos, quando existem, constam de “sentinas” ou latrinas e, raramente, de fossas sépticas. Uma parte considerável da população suburbana usa o mato ou a praia para o 106 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte efeito, (“fecalismo a céu aberto”, como hoje sói dizer-se) ou cercados privativos dedicados exclusivamente às necessidades biológicas pessoais, também a céu aberto, fruto de prática cultural antiga, em que o banho tem espaço diferenciado do destinado às outras necessidades biológicas individuais. A inexistência de um sistema público de escoamento das águas pluviais leva a que, na época das chuvas, as partes mais baixas dos arruamentos e da área urbana fiquem temporariamente inundadas. É de referir que este facto parece ter sido deliberadamente considerado na ocupação edificada, uma vez que, na generalidade, estas áreas não foram ocupadas com construções, não havendo portanto casos significativos ou notícias de inundação do interior das habitações, ou outros tipos de edifícios, por má localização em zonas baixas. As duas sub-zonas localizadas dentro do perímetro “formal” do conjunto urbano e consideradas como áreas inundadas no levantamento de Serpa Pinto, em finais do séc. XIX, permanecem desocupadas, mantendose uma delas como zona agricultada e a outra como área de reuniões públicas, munida de uma zona sombreada por um conjunto maciço de grandes mangueiras. 7.3. Tecidos urbanos: elementos da iconografia da ilha. O assentamento formal e o informal e dos habitantes. O estado geral de conservação. Na generalidade a Vila do Ibo, que ocupa entre 15 a 20% da parte firme da ilha, é caracterizada por três grandes zonas relativamente distintas: 1. A ZONA FORMAL, de cerca de 23.3 ha, com construções de pedra e cal, resultante de uma intenção de desenho, que estaria submetida a normas específicas de regulação134 e na qual vive da população da vila. A Zona formal possui uma estrutura identificável e o desenho do edificado é relativamente homogéneo, apresentando uma clara unidade geral. Como já foi referido, esta zona continua a apresentar uma situação de abandono generalizado não obstante, desde o final da década de 90, se terem recomeçado a verificar operações de transferência de propriedade e de reabilitação do edificado. 2. A ZONA INFORMAL, de cerca de 68.4 ha, com construções de pedra e cal ou de pau a pique maioritariamente cobertas com macúti, resultante de um processo espontâneo de ocupação populacional e na qual viviam, em 2002, 2538 habitantes, o equivalente a cerca de 75% da população da ilha. A designação para este tipo de zona urbana é discutível, não 134 Veja-se por exemplo o Código de Posturas da Câmara Municipal do Concelho de Cabo Delgado, aprovado por Acórdão do Conselho de província, nº 1, de 19 de Janeiro de 1894 e publicado pela Imprensa Nacional de Moçambique, em 1894. 107 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte sendo fácil de caracterizar com precisão não contestável. Por ser generalizadamente utilizada em Moçambique, e não só, adoptamo-lo neste texto. Assentamento informal é, na maioria dos casos, a consequência de um processo longo e complexo de ajustamento das famílias, e dos indivíduos, a condições adversas onde os seus interesses, muitas vezes opostos e conflituosos, encontram formas de coexistência num equilíbrio precário mas, apesar de tudo, reconhecido por todos dentro de tal assentamento, ainda que tal nem sempre pressuponha o reconhecimento oficial pelas autoridades. Dir-se-ia que se trata de que é uma zona marcada por aquilo que se poderia definir pela contraditória expressão de zona de Insegurança estável. No caso do Ibo a análise do processo de evolução do seu edificado e as entrevistas realizadas mostraram claramente que, apesar do grande sentido de propriedade que feria ocupações dos vazios ou de edifícios não ocupados, trata-se de uma zona com um grande dinamismo de transformação135. 3. A ZONA DE TRANSIÇÃO, de cerca de 13.6 ha, que hoje constitui parte do Bairro Cimento e estabelece o interface entre a Zona Formal e a Zona Informal, com construções geralmente de pedra e cal, resultante de antiga expansão da Zona Formal, mas sem uma estrutura clara ou reconhecível de organização espacial. Segundo o censo de 1997, a população da ilha do Ibo era de 3054 habitantes. De acordo com informações colhidas em 2002 junto das autoridades da ilha (Administração e Presidentes dos Bairros informais), nas zonas Formal e de Transição referidas e que fazem parte do actualmente chamado Bairro Cimento, vivia cerca de 25% da população da ilha136. Este bairro está separado pela Rua 27 dos restantes bairros da Zona Informal que com ele confinam. A cada uma destas zonas corresponde uma caracterização específica da situação do edificado. A pesquisa de elementos iconográficos para a análise e para suporte de indicações propositivas de novas ocupações e acções de requalificação foi realizada nos relevantes serviços detentores de cartografia, em Moçambique137 e em Portugal138. 135 Cani, Anselmo, A arquitectura popular na ilha do Ibo, in Carrilho, Júlio, Ibo. A casa e o tempo, op. cit., pág. 140. 136 Como indicação da evolução da população da ilha do Ibo referem-se os seguintes dados: 1960 – 4230 habitantes, 1993 – 2758 habitantes, 1997 – 3054 habitantes, 2001 – 3041 habitantes, 2002 – 3384 habitantes. 137 Em Moçambique buscámos elementos iconográficos nas seguintes instituições: Arquivo Histórico de Moçambique; Biblioteca Nacional; Biblioteca do Ministério da Coordenação e Acção Ambiental; Biblioteca do 108 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte Os elementos de cartografia obtidos com referência à ilha do Ibo foram escassos, desactualizados e de pouca precisão. Não tendo sido possível obter fotografias de satélite com resolução adequada, nem contratar um levantamento topográfico a rigor da ilha, devido aos custos envolvidos, foi necessário trabalhar com restituições expeditas e imprecisas feitas por nós, a partir de fotografias aéreas de 1996, 1971 e 1996. Esta última, embora se tenha constatado aproximar-se bastante da realidade que verificámos in situ em 2003, apresentava-se com um grau de precisão apenas suficiente para o presente estudo. De facto, as transformações da ocupação do território insular não ressaltavam de uma forma significativa, devido à emigração de parte da população por razões ligadas ao isolamento da ilha e devido ao regresso dos deslocados resultantes do fim da guerra no início dos anos noventa. Estes aspectos deverão portanto ser ressalvados na leitura dos mapas e elementos cartográficos que se apresentam. Qualquer abordagem futura visando intervenções territoriais extensivas ou integradas necessitará de ser suportada pela obtenção expressa de cartografia mais rigorosa, devidamente georreferenciada, nas fontes ou instituições especializadas. Em 1884, Serpa Pinto definia da seguinte forma a estrutura da ocupação do assentamento urbano: “A vila assenta a NO da Ilha e consta de dois bairros: o europeu e o indígena. O bairro europeu compõe-se de duas ruas principais, a rua de El-Rei e a rua Maria Pia que correm proximamente E/O(...). É nesta parte da vila que residem europeus, baneanes, mouros da Índia e as principais famílias de crioulos da ilha. O bairro indígena fica a E do bairro europeu e é formado por muitas palhotas entre palmares. Neste bairro há também duas ruas principais, a de Sá da Bandeira e a 27 de Julho”. É interessante notar que, ainda hoje, esta rua cujo nome se mantém apenas como rua 27, continua a ser um dos elementos separadores entre a parte formal e a parte informal da vila, constituindo o seu eixo um limite comum dos bairros “Cimento” e “Cumuamba”. O que mudou foi a ocupação da zona formal que quase se desertificou com o abandono dos colonos e dos antigos proprietários. Ministério das Obras Públicas e Habitação; DINAGECA (Direcção Nacional de Geografia e Cadastro); CENACARTA (Centro Nacional de Cartografia e Teledetecção); INAHINA (Instituto Nacional de Hidrografia e Navegação); Biblioteca da Faculdade de Letras; ARPAC (Arquivo do Património Cultural); Governo Provincial de Cabo Delgado; Direcção Provincial de Coordenação e Acção Ambiental; Direcção Provincial das Obras Públicas e Habitação; Administração do Distrito do Ibo; e Centro Cultural Português, afecto à Embaixada de Portugal em Maputo. 138 Em Portugal fizemos a pesquisa de elementos iconográficos no A.H.U. (Arquivo Histórico do Ultramar), na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa e na BAHOP (Biblioteca e Arquivo do Ministério das Obras Públicas e Transportes), em Lisboa. 109 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte Como todos os estabelecimentos humanos urbanos coloniais, reforçando-se esta tendência depois das independências dos países africanos, a vila do Ibo é um conjunto urbano fortemente dicotómico constituído por dois sistemas claros: o sistema formal ou planificado de que faz parte o Bairro Cimento, e o sistema informal ou não planificado que circunda o primeiro. Mas esta divisão geral clássica estava também claramente repercutida no interior dos dois principais sistemas referidos, o formal e o informal, através de sub estratificações expressas por áreas com ocupação homogénea, quer de população de determinada origem (europeia, asiática, e autóctone – assimilada ou não), quer de estratos populacionais de poder económico diferente. A Norte e a Leste da zona formal do conjunto urbano, desenvolve-se em leque o assentamento informal ou não planificado. Ele está organizado em dois bairros: o bairro de Cumuamba - subdividido nos quarteirões “Cumicáfeh”, “Cumuamba”, Pancádi e “Rua 27” -, e o bairro Rituto – com os quarteirões “Cumáueh”, “Rituto”, “Munáua” e “Panangála”. Como já foi referido, a Rua 27 separa a zona planificada da zona não planificada. A Estrada do Aeroporto e o Cemitério Católico limitam-na a Oeste. Fig. do esquema da divisão administrativa da vila . O quarto bairro pertencente administrativamente à vila do Ibo é o bairro de Quirambo, localizado na pequena ilha com o mesmo nome defronte ao velho cais, e que é maioritariamente ocupado por machambas de gente do Ibo. Quanto à rede viária principal que serve de base e de referência à implantação e evolução de um certo tipo de tecido urbano, não é possível omitir o contraste entre a organização espacial e viária dos meios urbano formal e o informal. De facto, se na arquitectura propriamente dita podemos encontrar claros elementos de similaridade nas técnicas e no desenho o mesmo não se pode dizer em relação ao desenho do espaço público. Ao traçado linear e regular das vias do “bairro de cimento” e do seu largo principal, claramente definido conforme a prática e a tradição portuguesa da época, opõe-se o traçado sinuoso característico das cidades swahili e, nalguns aspectos, das cidades árabes. As constatações e análises feitas no domínio do estado geral de conservação têm como referência a situação observada em Dezembro de 2003. Quando nas décadas de oitenta e noventa do séc. XX se falava de um certo abandono da ilha do Ibo, nem sempre se referia à desocupação das casas habitáveis. Muitas delas tinham sido nacionalizadas e foram arrendadas a quem se candidatou a tal, em particular a funcionários e técnicos das organizações que tinham actividades na ilha. As que não foram 110 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte atingidas por aquela disposição legal e cujos proprietários estavam ausentes permaneceram fechadas durante anos, sendo as que mais sofreram com a ausência de cuidados de rotina e periódicos de conservação e manutenção, tendo atingido níveis de degradação assinaláveis. Acresce a isto que, quanto aos edifícios arrendados, os problemas que se colocavam e ainda se colocam parece terem que ver não só com a aparente incapacidade técnica e financeira da administração que as tutela, como também, nalguma medida, com o deficit de capacidade de intervenção atempada, de tradição e pratica rotineira de conservação e manutenção das habitações por parte dos seus arrendatários e ou novos proprietários. As presentes observações feitas foram especificamente em Dezembro de 2003, as quais foram complementadas pelos levantamentos efectuados em Julho de 2001 e Setembro de 2002. O universo definido para o estudo foi a parte “planificada” ou ”formal” da vila. Tomouse por amostra a Avenida da República, a mais importante da vila, em quase toda a sua extensão, ou seja entre a pousada das TDM e a residência do Administrador. Neste troço foram analisados 24 edifícios, que representam aproximadamente cerca de 21% do total de edifícios do Bairro Cimento. Mesmo sem que assumamos a representatividade em termos estatísticos das observações feitas parecem-nos serem significativas as constatações feitas: − cerca de 33% dos edifícios (8) apresentavam-se em avançado estado de ruína, sem cobertura, com muitas das paredes derrubadas até quase ao nível do chão, sem os aros e caixilharias e com os pavimentos destruídos; − cerca de 37% dos edifícios (9) têm todos os elementos de construção presentes, mas estes evidenciam grandes sinais de rotura, envelhecimento, infiltração de águas e fissuras de diversos tipos; − cerca de 30% (5) dos edifícios continuam a ser utilizados, embora apresentem visíveis sinais de degradação grave; − cerca de 8% dos edifícios foram reabilitados; − menos de 3% (6) do total de edifícios observados possuem ligação funcional à rede eléctrica. A situação geral de degradação, para além do abandono dos edifícios, parece ser o resultado de dois factores principais: elevado teor de sal nas paredes e a acção agressiva da água das chuvas. Relativamente à questão da salinidade nas paredes vale a pena referir 111 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte Maurizio Berti que, no relatório de consultoria para o restauro da Igreja Velha da cidade de Inhambane, observa que em alvenarias com elevado teor de sal marinho resultante do tipo de materiais usados, os processos de degradação surgem quando um dos três elementos do ambiente onde se inserem as paredes – a temperatura, a água e o sal – se altera, criando-se um desequilíbrio no conjunto139. De facto, das nossas observações na vila do Ibo ressaltou que as paredes dos edifícios que ainda se encontravam protegidas por cobertura mantinham, em grande medida, as suas características iniciais tanto ao nível da caiação quanto do reboco. A observação empírica do edificado indica que as principais causas da rotura das coberturas parecem ser: o envelhecimento natural dos materiais delas constituintes; a total falta de trabalhos de manutenção, nomeadamente por ausência prolongada dos proprietários; remoção de telhas da cobertura para reutilização. Quanto a outros elementos da construção as principais causas de degradação parecem ser: • nos tectos: − envelhecimento dos materiais que os constituem, − acção das águas chuvas (com o consequente ataque de xilófagos, principalmente fungos, mas também de térmitas), − ausência de manutenção; • nas paredes: − ausência de manutenção, − elevado teor de sal, − acção da água das chuvas, − actividade sísmica; • nos pavimentos: − ausência de manutenção, − acção das águas chuvas; • 139 nas portas e janelas: Berti, Maurizio, Muros de cal e pedra de coral. Manutenção e restauro. O caso da Igreja de Nossa Senhora da Conceição na cidade de Inhambane, relatório para a Cooperação Técnica Alemã em Moçambique, Maputo, 2004. 112 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte − ausência de manutenção, − acção das águas da chuva, − envelhecimento e desgaste dos materiais que as constituem (principalmente no que respeita às ferragens), − remoção para reutilização tanto em casas do Bairro Cimento, em reabilitação, como em casas dos bairros periféricos. De todos os elementos da construção, as portas e janelas parecem ser os que se apresentam em melhor estado de conservação, principalmente no que concerne ao madeiramento, devido ao tipo de madeiras usadas que parecem ser de boa qualidade. Para melhor ilustração do argumento tratado estabelece-se a comparação visual entre a situação do edificado antes e depois da independência de Moçambique, através de uma série de imagens feitas antes da independência e posteriormente a essa efeméride, com mais relevância para o período entre 2000 e 2003, de ângulos similares. A análise das fotografias em que se faz a comparação da situação de conservação dos edifícios antes e depois de 1975 parece evidenciar a importância do abandono como factor fundamental da sua degradação. O único conjunto que se apresenta em melhores condições pós 1975 (relativamente ao período anterior) é o que ainda se encontra ocupado. Este facto confirma a hipótese de que o factor mais relevante de degradação é a falta de atenção face aos edifícios por abandono e desocupação. A necessidade de se re-vocacionar e, consequentemente possibilitar novos motivos e estratégias que motivem a ocupação o seu uso torna-se assim um elemento fundamental da conservação do conjunto edificado. 8. As singularidades do edificado Um dos aspectos singulares da arquitectura do Ibo é a clara imagem, que dela transparece fortemente, de integração de experiências arquitectónicas tão diferentes dos seus habitantes, ou seja: a experiência popular local de construção e desenho, com ênfase para a experiência swahili, e as experiências de construção e desenho exógenos, nomeadamente a colonial/ocidental e a de outros povos do Índico e do Oriente que demandavam a costa oriental africana. Obtém-se assim como resultado um conjunto cujos elementos de coerência e unidade podem ser encontrados tanto na zona formal como na zona informal. O factor principal que terá contribuído para esta realidade parece estar no conceito referido antes, de centralidade descentrada da ilha do Ibo no quadro da administração colonial. Diz-nos 113 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte Malyn Newitt que Cabo Delgado, (incluindo assim as Ilhas Quirimbas) constituía uma espécie de zona de ‘fronteira’ onde a autoridade governamental era fraca e os povos de várias origens étnicas e culturais sobreviviam e/ ou prosperavam desenvolvimento de instituições locais baseadas na cooperação mútua mediante o 140 . Deste modo é natural que tanto as autoridades como a população me geral fundasse as suas aspirações de melhoria de condições de vida principalmente nos recursos de que dispunham localmente, isto é, naquilo que era oferecido pela natureza141, pelas oportunidades142, e pelos saberes em presença143. 8.1. Uma hipótese de caracterização tipológica: a matriz swahili e as contribuições exógenas. Uma das qualidades do edificado habitacional do assentamento humano da ilha do Ibo é a percepção de homogeneidade que dele transparece em geral, sugerindo uma aparente conexão entre a arquitectura «erudita» (ou da elite ‘urbana’) e a arquitectura «popular» (da elite ‘suburbana’), como se o seu desenho tivesse sido presidido por uma génese partilhada e elementos comuns. Se considerarmos que é uma aquisição da cultura swahili, o tipo mais comum de arquitectura doméstica habitacional de estratos de população de baixo rendimento, do litoral da África Oriental caracterizada pelos elementos que a seguir se indicarão, podemos então dizer que é do tipo, de derivação ou de matriz swahili quase toda a arquitectura «popular» do Norte de Moçambique, nomeadamente abrangendo as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Nampula e até a Zambézia. Na Província de Cabo Delgado esta tipologia, está marcadamente presente na faixa litoral, junto à estrada nacional e outras vias importantes e já mais sofisticada e mais apropriada, particularmente em Pemba. Os seis elementos que permitem fazer tal afirmação, e que se encontram bem presentes nas casas da ilha do Ibo, são os seguintes: (1) evolução do «quarto» circular de materiais efémeros para um «quarto» quadrangular de pau-a-pique ou pedra e deste para um núcleo habitacional de partição múltipla, com o piso sobrelevado através de um embasamento de material inerte compactado; 140 Newitt, Malyn, op. cit., pág. 228. O coral, os diversos materiais vegetais, as resinas e até a mica do continente) 142 Por exemplo a telha de Marselha trazida pelos franceses no processo mercantil. 143 dos povos do continente, dos swahili, dos árabes, dos portugueses, dos indianos e de outros. 141 114 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte (2) espaço de circulação/distribuição que se expande, se subdivide e que funciona, na maior parte dos casos, como eixo de uma composição espacial simétrica; (3) cobertura de quatro águas projectadas para o exterior com vista à protecção das paredes de material degradável pelas chuvas, sendo as águas laterais da cobertura encaixadas sob as águas frontal e posterior; (4) cobertura quase invariavelmente sustentada por dois suportes mestres verticais (pilares) contínuos desde o pavimento até à cumeeira e por com uma estrutura secundária em leque em qualquer das águas da cobertura, mas de uma forma mais denunciada nas águas laterais, (5) existência, nas fachadas frontal e posterior e debaixo da projecção do prolongamento da cobertura, de dois espaços relativamente estreitos, para o estar e serventia cobertos mas ao ar livre: a varanda frontal, que é o interface com o espaço público e a varanda posterior, constituindo um espaço de transição funcional e ambiental dentro de um quintal quadrangular privado e fechado por uma vedação; (6) porta de utilização comum para o quintal privado, localizada lateralmente no muro lateral frontalque protege o quintal e ligando este espaço directamente à rua. Este processo de evolução e de conformação arquitectónica do tipo habitacional parece ser muito claro nas ilhas Quirimbas e terras adjacentes e, em particular na ilha do Ibo, devido talvez à importância e, sobretudo, à continuidade do desenvolvimento do seu conjunto edificado. A observação e análise da organização espacial das casas do Ibo levou-nos à hipótese da plausibilidade do estabelecimento de um tipo básico comum que funcionou como suporte flexível da organização e desenvolvimento, até aos nossos dias, tanto da «casa popular» como também da “casa senhorial” de pedra, cal e telha. Em ambos os casos foi também possível revelar uma grande similaridade de opções de transformação volumétrica e partição espacial, influenciadas naturalmente pelos objectivos e capacidades financeiras dos utentes. É a este processo de evolução tipológica, adoptada generalizadamente e desenvolvida por um processo de influência recíproca, pela gente diferenciada dos subúrbios do Ibo continuado e enriquecido nas casas das elites da zona formal ligadas ao poder colonial que, provavelmente, se deve essa percepção de harmonia e integração do conjunto edificado da vila, independentemente da sua escala (menor e maior e volume) e dos materiais, bem como da sofisticação e riqueza aparente das casas e do seu mobiliário. É exactamente este 115 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte carácter conjugado da imagem geral da vila, no seu todo, que provocaram a impressão de unidade em P. K. Huibregtse na visita que fez à ilha bo Ibo em 1971144. Não quero dizer que as casas da zona formal da vila do Ibo sejam especificamente swahili. Mas tudo indica que elas têm uma matriz swahili e que as diferenças dos tipos arquitectónicos da casa senhorial, relativamente à casa popular, se radicam na necessidade de adequação e modernização dos processos construtivos visando a sua economia, viabilidade estrutural e eficiência de funcionamento, bem como à necessidade de se obter edifícios com uma capacidade de inserção urbana e uma escala dimensional e «monumentalidade» difíceis de obter a partir do modelo popular puro. Estamos perante o caso de um processo de dupla miscigenação: (1) a miscigenação que gerou a arquitectura swahili145 e (2) a miscigenação que a requalifica através da adopção de elementos da arquitectura indiana e portuguesa/ocidental. Parece inserir-se bem nesta avaliação o que Manuel Fernandes146 afirma quanto às influências sobre a arquitectura da Ilha de Moçambique e que se aplica, nalguns aspectos, à vila do Ibo, embora neste caso se verifique quase sempre a utilização da cobertura inclinada em vez do terraço, e do quintal como espaço exterior privado em vez do pátio que caracteriza muitas das casas árabes, ou das do sul de Portugal, (ambas enquadradas no tipo mediterrânico) e das casas simples indianas. O exemplo desta linha de absorção e desenvolvimento da tipologia habitacional popular, por parte da elite colonial, é a residência do administrador, na qual, apesar das exigências de escala e monumentalidade, próprias de um edifício simbólico do poder estabelecido, mantém claramente na planta elementos de caracterização da casa popular nomeadamente: um espaço central de circulação e serventia ligando directamente o exterior frontal com o quintal privado; distribuição simétrica e em sequência dos compartimentos, tendo como eixo o espaço central (neste caso subdividido) de circulação e serventia; acesso comum directo ao quintal através de uma entrada de serviço lateral aberta no muro de vedação perimetral; a utilização do coral, da cal e das tecnologias locais a eles relativos na construção das paredes; varanda frontal a todo o comprimento da habitação e varanda posterior encaixada (com compartimentos encerrados nos extremos, como é comum ver-se 144 Huibregtse, P. K., in Geographica, Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, Ano VII- N°27- Julho, 1971. 145 ela própria uma “a synthesis of African and Islamic cultures ” – Donley-Reid, Linda W. Zenj, in Encyclopedia of Vernacular Architecture of the World, edited by Paul Oliver, Cambridge University Press, Cambridge,1997; 146 Fernandes , Manuel, Moçambique Island (Moçambique), in Encyclopedia of Vernacular Architecture of the World, edited by Paul Oliver, Cambridge University Press, Cambridge,1997; 116 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte nas casas populares quando se pretendeu ampliar o espaço habitacional interior). Todos estes elementos espaciais se organizam num volume rectangular compacto. As elites do Ibo, na sua acção de construir com mais conforto e durabilidade, não se limitam a desenvolver o tipo popular de habitação de matriz swahili. Trazem ou adoptam soluções exógenas, de tecnologia e de imagem, mais “evoluídas” ou mais adequadas147 que permitem desenvolver ou mesmo transformar/alterar o tipo local obtido a partir de um processo endógeno de desenvolvimento. São portanto de “matriz” swahili. Trata-se, em resumo, de um percurso de modernização tipológica e tecnológica que, assumido lentamente ao longo do tempo, conduz à fixação de soluções formais, construtivas, de imagem e de ambiente urbano que, por sua vez, ganham sustentabilidade, porque enquadradas cultural e ambientalmente e porque dominadas pelos construtores locais: tanto nas técnicas de construção que lhes passam a ser tão próprias, como nos materiais que lhe são familiares. Parece-nos ter sido este, o processo geral de formação da arquitectura da vila do Ibo e que se revela não só na área “formal”, mas também na periferia “informal”. Seria interessante estudar este processo de interacção «em vai e vem» que parece estabelecer-se do seguinte modo: da “original”casa swahili de coral rectangular, para a casa popular rectangular de matriz swahili, para a casa senhorial de inspiração swahili desenvolvida e desta para a transformação daquela. É provável que a homogeneidade das opções e, sobretudo, a lenta evolução do desenho dos edifícios tenha resultado do facto de praticamente não haver projectos feitos a partir de fora ou por projectistas não residentes na ilha. De resto, talvez tenha sido o carácter essencialmente endógeno do processo de projectação que terá marcado de uma maneira tão peculiar a arquitectura e o ambiente construído da vila do Ibo. Parece que apenas o projecto da Alfândega e do Hospital foram enviados pelas autoridades coloniais. O mesmo deve ter acontecido com a igreja. A alfândega chegou a ser construída mas o hospital não, tendo as autoridades administrativas optado por arrendar, sob certas condições, um edifício para o efeito, pertencente a um tal “N´zungo Africano” e que tinha sido comprado por Agy Jacob Abibo para sua residência. Foi a este dono a quem, posteriormente, o Estado adquiriu o edifício que passou albergar desde então e até hoje as funções de hospital. Com o desenvolvimento do comércio na região das Quirimbas aliado às exigências de maior durabilidade, e em conexão com a eventual introdução de norma que definia que as 147 Árabes, portuguesas, indianas, indonésias ou malaias; 117 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte coberturas deviam ser construídas com material não combustível para evitar os incêndios, passa a ser possível, nos edifícios públicos coloniais e nas casas de ‘status’ mais elevado, o recurso à telha de Marselha148, provavelmente a partir de meados do séc. XIX, e que José Ribeiro Torres diz ter sido trazida (também com a função de lastro) por franceses no retorno dos barcos que se abasteciam de mica e outros produtos na região costeira do Norte de Moçambique, nomeadamente em Bilibiza149; intensifica-se o uso da madeira do continente para as portas e outros elementos em complemento ao uso do mangal, de menor diâmetro e cada vez mais longe e mais fino; introduzem-se os forjados e fundidos de ferro, importados, nas guardas das varandas, nas colunas e nas abas de remate das coberturas; passa a recorrer-se ao cimento para a obtenção de superfícies duras e lisas no pavimento; generaliza-se a chapa zincada ondulada nas coberturas mais recentes; e, finalmente, inicia (felizmente sem continuidade) o uso do betão armado nalgumas colunas. A casa grande e a varanda com colunatas de grossas colunas à maneira indiana, guardas, muretes variados impõem-se como imagem e tipologia estabelecidos. Para a definição desta imagem concorreu, de uma forma muito pronunciada, o “Código de Posturas da Câmara Municipal do Concelho de Cabo Delgado”, publicado em 1894, durante a vigência da Companhia do Niassa nas terras do Norte da Província de Moçambique150. Nelas se estabelecem normas precisas relativas à construção, nomeadamente: sobre o pé direito das casas, as dimensões das janelas, o material das alvenarias, o material e a altura dos muros de vedação, o tipo e material das coberturas (“telha, zinco ou terraço), o reboco e a caiação das casas, a periodicidade e o tipo de reparação e manutenção a serem feitas pelos proprietários e, inclusivamente, a proibição de “caiações externas em cor inteiramente branca”. Não há dúvida que estas normas marcariam muito a conformação da arquitectura da parte planificada da vila do Ibo, constituindo um forte elemento integrador do conjunto edificado. A análise tipológica da arquitectura doméstica do Ibo permite estabelecer o processo de transformação do tipo inicial e que se apresenta na figura a seguir. Os elementos principais 148 Veja-se, Serra, Carlos (direcção de) e outros (pág. 267), Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, História de Moçambique, volume 1, Livraria Universitária – UEM, Moçambique, 2000, que nos diz que já desde 1840, a empresa francesa Fabre & Filhos, com sede em Marselha, tinha-se fixado no Ibo e na Ilha de Moçambique. 149 Torres, José Ribeiro, (revista) MOÇAMBIQUE, Documentário Trimestral, No.15, pág. 71 a 85, Setembro, 1938, Lourenço Marques?” 150 Código de Posturas da Câmara Municipal do Concelho de Cabo Delgado, aprovado por Acórdão do conselho de província n° 1 de 19 de Janeiro de 1894 e publicado pela Imprensa Nacional de Moçambique, em 1984. 118 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte nos casos analisados de transformação do tipo base parecem ser a localização e as vistas predominantes por um lado, e a envolvente natural por outro. Fig. 7 Definição, desenvolvimento e transformação da habitação-tipo “erudita” do Ibo 8.2. Materiais, tecnologias, e elementos de construção. A varanda como elemento característico? Como em casas de outros assentamentos litorâneos na zona da costa Oriental da África de cultura swahili (Lamu, Bajun, Mombaça, Pemba, Zanzibar, Bagamoio), os materiais histórica e tradicionalmente usados na construção da vila do Ibo eram inicialmente, e nalguns casos ainda o são, aqueles que a natureza circundante oferecia com abundância151. Não está 151 Www.ark3.lth.se/diploma/intherheart/architecture.html; 119 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte dimensionado com exactidão o impacto que isso terá tido no ambiente. Seguramente esse impacto existiu, não obstante não se ter traduzido num facto claramente visível. Apesar de se verificar um aumento da destruição da cobertura vegetal na ilha e o quase desaparecimento, ao longo dos tempos, das grandes árvores nos maciços de mangal, também se verificou, em 2002, um incipiente aparecimento deste em zonas próximas da vila do Ibo, onde não existia na década de 1950, por exemplo frente à marginal rua da Bela Vista. Mas também se verificou, em 2004, que esse sinal promissor tinha desaparecido. Sendo o mangal um elemento básico para a construção, para além de outros usos (medicinais, como combustível, e na pesca) e do seu papel fundamental no ecossistema litorâneo, convém referir as notícias da exploração deste produto. A extracção e venda comercial da casca de mangal é relatada nos “Relatórios e Memórias sobre os Territórios” da Companhia do Niassa pelo Governador Ernesto Jardim de Vilhena. Aí se refere que em 1885 inicia a exploração comercial da casca de mangal, embora em quantidades pequenas (20 kgs). Em 1898 há um aumento significativo (quase para o dobro) da exportação em relação ao anterior, caindo no ano seguinte e cessando entre 1900 e 1901. Em 1902 reinicia a exportação, destinada à indústria europeia e americana de curtumes, com aumento súbito para 1.438.240 Kgs, valor este que quadruplica em 1903. Esta subida demasiado brusca da exploração comercial do mangal acaba por preocupar as autoridades da Companhia do Niassa, levando o Governador dos Territórios a estabelecer, em 1902, a Ordem n° 557 que cria o “Regulamento provisório para a extracção e apanha da casca da mangal” e, no ano seguinte, a Ordem n° 645, proibindo, no Concelho do Ibo, a concessão de novas licenças ou renovação das antigas, as quais apenas vigorariam até ao fim do período respectivo. O objectivo expresso era o de ser “de vantagem não se prosseguir a sua exploração intensiva, antes dar-lhes o repouso necessário a refazerem-se das perdas sofridas”. Estas medidas terão restringido a exploração do mangal para fins de utilização local, o que terá contribuído para que o seu impacto ambiental não fosse dramático nos tempos que correm. No Ibo usaram-se extensivamente materiais naturais, transformados ou em bruto para a construção, sendo de citar: o coral, para as alvenarias; a madeira e varado de diversas espécies de mangal; a cal fabricada artesanalmente a partir do coral e de conchas; o tronco e as folhas de coqueiro e de palmeira brava; fibras vegetais como elementos de amarração e Encyclopedia of Vernacular Architecture, op. cit. e Newitt Malyn, História de Moçambique, Publicações Europa América, Portugal, 1997 (pp. 31). 120 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte resinas vegetais para endurecimento das argamassas e elevação da qualidade do acabamento nas alvenarias e pavimentos. A espécie de mangal Lumnitzera racemosa também é referida como sendo utilizada pela população swahili na construção152, mas não teve relevância na entrevista feita aos construtores populares da ilha do Ibo. No domínio da habitação, a natural necessidade e apetência para a modernização nas técnicas e materiais tem maior relevância nos proprietários da elite de origem indo-europeia. Como se indicou as colunas de pedra coralina começam a ser substituídas por colunas de ferro fundido importadas. Uma das características sempre presente nas casas de tipo swahili observadas no Ibo e nas terras firmes do litoral adjacente na Província de Cabo Delgado, bem como no interior Norte, até à Província de Niassa153, é o processo de construção das coberturas. a sustentação primária da cobertura de quatro águas através de dois prumos ligados, os quais suportam uma viga que constitui a cumeeira. Trata-se de um sistema de tipo trilítico de troncos de madeira que se apoiam as madres colocadas quase em forma de leque, principalmente nas águas laterais, ficando sugerida a ideia de ser este um elemento de carácter que permanece como reminiscência das coberturas cónicas comuns nas casas africanas circulares154. Ao referir as pesquisas de Henry de Lumley em Terra Amata, nos arredores de Nice, na França mediterrânica, Bernard Campbell descreve uma hipótese de desenho e tecnologia das cabanas de configuração oval cujos restos arqueológicos estudados, datando do período glacial de Mindel (há cerca de 400 mil anos), denunciam uma estrutura de cobertura constituída por dois prumos de troncos de árvore enterrados no chão, sobre os quais assentava um barrote constituindo a linha de cumeeira. Refere também que, por comparação com os restos arqueológicos descobertos em Olduvai, os princípios deste tipo de construção da cobertura seriam provavelmente conhecidos, muito antes, naquela parte da África Oriental155. A ser verdade esta conclusão, é de estranhar o facto de este esquema de cobertura não se ter desenvolvido autonomamente em África, pelo menos naquela região do continente, tendo-se adoptado quase exclusivamente a cobertura cónica com um só prumo e 152 Dharani, Najma, Field guide to common trees and shrubs of East Africa, Stuik Publishers, Cape Town, 2002. Carrilho, Júlio, Bruschi, Sandro, Um olhar para a arquitectura informal em Moçambique: de Lichinga a Maputo, Centro de Estudos de Desenvolvimento do Habitat da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico, Maputo, 2002; 154 Bruschi, Sandro, e outros, A palhota cilíndrica, a casa swahili e a história complicada das suas transformações, Jornal Notícias, separata “notícias CULTURA”, 24/12/2003, Maputo, 2003; 155 Campbell, Bernard, Ecologia Humana, Edições 70, Lisboa, 1988, pág. 124, fig. 58. 153 121 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte uma estrutura de madres dispostos em leque, nele apoiado. A excepção a este esquema estrutural encontra-se apenas na cobertura de tipo swahili, muito mais tardia e irradiada a partir da costa Oriental do continente. Será talvez por isto que, neste caso, se encontra a explicação da sua existência como aquisição ou reaquisição tardias, a partir do contacto dos povos africanos do litoral com outros povos, nomeadamente da costa do Mediterrâneo e da Ásia? No caso do Ibo, não é apenas a partição espacial das casas que constitui referência da arquitectura “popular” de tipo swahili, adoptada pela arquitectura da elite do bairro de “cimento” da vila. O mesmo acontece com a construção da estrutura da cobertura, evoluindo, inclusivamente, para a adopção de prumos (ou suportes) feitos de outros materiais. É assim que, em algumas casas de pedra, cal e telha do núcleo urbano “planificado”, mesmo tratando-se de edifícios geralmente com coberturas de duas águas, diferentemente das casas “populares” que originalmente apresentam quatro águas na cobertura, persiste o esquema estrutural de tipo swahili, em que a linha principal da cumeeira é suportada por dois elementos verticais, neste caso de alvenaria, à maneira das estacas de madeira ou pau redondo que suportam a estrutura das coberturas de capim ou de “macúti” nos dois pontos de intersecção de três das quatro águas que a compõem, na sua forma típica. E tudo indica que esta opção acabou por ser retomada na zona informal da vila, mesmo quando se trate de coberturas de “macúti” de duas ou quatro águas. Nestes casos, para os suportes de alvenaria, mantém – se o mesmo esquema de localização dos suportes de madeira inicialmente usados, isto é: na linha média da habitação, no ponto de cruzamento das paredes separadoras entre os compartimentos encerrados de acesso interior e as paredes que confinam o espaço central multifuncional que serve em geral como espaço de articulação com o exterior privado ou público. Os pisos superiores e terraços, quando existem, são construídos com uma estrutura de barrotes grossos de madeira, por vezes de espécies arbóreas do continente, devido às necessidades de maior envergadura para vencimento de vãos. Sobre esta estrutura assentava uma camada de varas de mangal mais grossas, ligadas e recobertas com argamassa de cal. Nos casos de pavimentos superiores visitáveis verifica-se a colocação de uma outra camada mais espessa. de varas de mangal mais finas, a qual era também recoberta por argamassa. Muito raras vezes esta camada era acabada com tijoleira. Quanto aos tectos falsos, não apenas se utilizava esta técnica, como também se usavam tábuas de 122 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte madeira do continente para o fechamento da superfície, ficando geralmente os barrotes estruturais à vista, muitas vezes com um desenho em espinha, como acontece em casas portuguesas, principalmente em meio rural. Mais tarde passaram também a ser usadas chapas lisas de fibro-cimento. A maior parte dos pavimentos têm uma base construída com os materiais naturais utilizados nas alvenarias. No entanto nestes dispositivos de construção também passaram a ser utilizados o cimento de uma forma extensiva bem como outros materiais de produção industrial como o mosaico hidráulico. As notícias do fabrico de cal nestas paragens indicam que esta era já conhecida antes da chegada dos portugueses, pela via dos árabes. Quando a cal se produzia artesanalmente na ilha, com alguma regularidade, a pedra de coral era desmontada no mar, num banco a nordeste da ilha. Os barcos largavam na maré alta e eram encalhados sobre o banco de coral e, durante a maré baixa eram desmontados com alavancas os blocos que, depois de secos, seriam a matéria-prima dos fornos de cal. O combustível lenhoso utilizado eram as espécies de mangal com madeira clara, para que a cal não ficasse manchada com o vermelho da cor da casca e do pau usado como lenha, sobretudo para a cal destinada a proteger os rebocos, funcionando como base para a pintura. O fabrico artesanal da cal ainda hoje se verifica na ilha de Matémwe e em Ulúmbua. As espécies de mangal mais utilizadas para queima no processo de fabrico da cal eram a Avicennia marina e a Sonneratia alba. A argamassa utilizada na estrutura das construções era feita com a terra vermelha do continente, colhida a 5 ou 6 milhas de distância. O seu fabrico contava com a adição de um caldo viscoso de resina vegetal, também colhidos no continente. As paredes dos edifícios eram construídas com pedra coralina e, nas grandes construções, possuíam uma estrutura de troncos de mangal - em geral de Rhizophora mucronata – a qual nascia desde as fundações. Estas assentavam em caboucos não muito profundos dado que o manto rochoso da ilha é, na maior parte da sua área não alagada, quase superficial. A alvenaria de fundação também era de pedra coralina mais grossa ligada com uma argamassa mais rica e constituindo uma parede muito larga, nalguns casos de mais de um metro de espessura, aonde assentariam as paredes aparentes do edifício. Este dimensionamento das paredes parece ser muito adequado como elemento de diminuição da irradiação para o interior das habitações. 123 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte Quanto às portas e janelas, bem como em algum mobiliário, também se fazia recurso às tábuas de madeira de mangal, geralmente obtidas dos troncos grandes de Sonneratia alba, mais grossos do que os das outras espécies. Com o desaparecimento das grandes árvores de mangal começou a utilizar-se para os elementos das caixilharias, em particular para as portas e janelas, a madeira do continente. Convém no entanto frisar o facto de que parece que a madeira de mangal era a preferida, pelo menos no dizer de Almasse Jamal156, dado que era mais resistente ao ataque dos xilófagos. Um dos aspectos curiosos relaciona-se com a construção dos frisos, de formas variadas, nos capitéis e nas bases das colunas das varandas. As colunas eram construídas com blocos de pedra coralina, talhados em alguns dos edifícios e modelados à colher pequena ou por arrastamento de moldes de madeira com o perfil do desenho escolhido. Um dos elementos característicos das casas de habitação de pedra e cal do Ibo é a varanda. Ela é um elemento construtivo que se destaca do núcleo principal da construção, munida na maior parte dos casos de cobertura independente, com uma ou três águas ou, raras vezes, resultante do prolongamento da cobertura geral da casa nas fachadas frontais, suportada por colunas de desenho relativamente variado, normalmente colocadas num espaçamento regular. No caso das fachadas posteriores ou do quintal existe um espaço coberto, aberto ou não, geralmente encaixado na construção e que, sendo diferente da varanda frontal na forma e no uso específico, também é designado de varanda, qualificando-a de traseira. Funcionam ambas como elemento de transição entre os domínios privado e público, e os domínios privativo e de serviços respectivamente na frente e nas traseiras da casa. Na fachada frontal o pavimento da varanda está (como em todo o edifício) geralmente sobrelevado em relação ao passeio ou à rua e o seu espaço é, muitas vezes, delimitado por muretes de configuração e alturas variadas. Como se depreende desta definição, não se trata da varanda funcionando como um espaço alpendrado perimetral a envolver totalmente a habitação, como é frequente nas casas ao estilo colonial inglês e americano, isoladas em largos espaços e mais difíceis de agregar em malha urbana em que o efeito de rua seja um condicionamento projectual. Das observações feitas podem-se sistematizar as seguintes funções para as das varandas: • a função social e de lazer doméstico, isto é: a varanda frontal como elemento de socialização, de lazer e de caracterização da imagem do edifício e da rua verificando-se 156 Mestre pedreiro que foi entrevistado para melhor compreensão do processo construtivo tradicional e materiais utilizados. 124 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte também casos em que ela ainda é utilizada para a realização de ofícios para serviço a terceiros, como a de alfaiate; • a função de fronteira e integração, isto é: a varanda como elemento de distinção e contacto entre o privado e o público, do lado da rua, e como elemento de separação e contacto entre o domínio de utilização privativa da família e o domínio do trabalho comum dos empregados, o quintal; • a função de serventia doméstica, ponte e reserva de expansão, isto é: a varanda traseira como espaço privativo e de suporte do aumento da casa conforme novas necessidades e capacidades de investimento para melhorias da qualidade de vida; • a função técnica / de conforto ambiental em ambos os casos, isto é: a varanda como elemento de controlo ambiental, sombreando as fachadas e protegendo-as da incidência directa do sol e das chuvas das monções e promovendo a ventilação transversal do interior das casas. Mas a varanda das casas do Ibo não se resume ao que dela se poderia esperar como elemento de serventia funcional e técnica. Os elementos que a constituem permitem-lhe variedade e personalidade, permitindo ao dono da casa conferir à fachada um carácter particular. Ao obrigar ao prolongamento da cobertura geral do edifício ou mesmo, quando não é o caso, ao possuir uma cobertura independente abaixo da cobertura geral, a varanda confere à rua uma escala mais adequada à dimensão humana. O espaço público entre as casas, no caso vertente a rua, passa a ter, por vezes, junto ao passeio um espaço de percurso que se expande e é lateralmente apoiado, não pela parede pesada e fria de um edifício ou muro cego, mas pelo sombreado das varandas de altura contida e de colunatas variadas, tornando estes percursos mais confortáveis, mais vivos, mais ritmados e portanto menos monótonos, compensando o desabrigo da rua propriamente dita. Será aceitável ou verosímil a semelhança geral que nos pareceu existir, em fotografia, de colunatas, portais, portas, janelas de cidades antigas da costa tanzaniana e queniana, com os de edifícios do Ibo? A serem verosímeis estas semelhanças, poderíamos avançar na hipótese de estarmos em presença de uma variante local da arquitectura swahili eficientemente aculturada pelo colonialismo português, a ponto de não se confundir com ele. De qualquer modo, se considerarmos que, pelo menos, desde o século IX, mercadores 125 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte árabes provenientes do golfo pérsico157, assim como persas e indianos aportaram à costa oriental africana, da Somália a Sofala em Moçambique, num processo de exploração comercial que se foi desenvolvendo até ao século XV, altura em que, no auge deste processo, entram em cena os portugueses; se juntarmos a este contexto de intercâmbio o afã de franceses, holandeses, ingleses e outros pelo domínio da exploração mercantil destas paragens. Se a isto se der a pré-existente base swahili que permeia a cultura desta área cultural da África, então estamos com certeza perante o resultado de um processo complexo de afirmação arquitectural resultante de intercâmbios diversificados, em que participam contribuições provenientes da península arábica, da cultura bantu, e sobretudo da contribuição da arquitectura das ex-possessões portuguesas no sub-continente indiano, bem como de uma decisiva intervenção arquitectónica e, particularmente, urbanística do colonialismo português158, o qual dá foros de cidade a esta miscigenação. Como se pode verificar o impacto deste tipo de construção tradicional é muito pressionante em relação aos recursos oferecidos pela natureza. A alteração da escala da exploração por solicitações adicionais, devido ao aumento da actividade de construção, pode ser muito lesivo para o ambiente. Deste modo é imperativo a introdução de tecnologias e materiais mais avançados e eco-compatíveis. Pode-se também concluir das observações que o elemento construtivo de maior importância no conjunto do edificado do Ibo é a varanda. Ela funciona como elemento caracterizador do edificado de duas maneiras: • como elemento de variação e afirmação dos edifícios no conjunto urbano; • como elemento de integração urbana e de peculiarização do edificado no seu todo. O processo de transformação da arquitectura na ilha parece ter sido um processo de grande dinamismo pelo que a mero objectivo de manutenção e conservação de técnicas e tradições não deve ser visto de uma forma estática. Pelo contrário a adopção de novas opções de projecto mais adequadas, embora integradas no espírito e cultura de habitar local, é um elemento de continuidade do processo histórico de edificação no Ibo. 157 Serra, Carlos (direcção de) e outros - Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, História de Moçambique, volume 1, Livraria Universitária – UEM, Moçambique, 2000. 158 vidé arranjos em planta, fachadas com platibandas a encobrir o telhado nos edifícios oficiais, colunatas de ferro nas varandas, telhas de Marselha, largueza e iluminação de ruas. 126 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte 8.3. Um património a valorizar? A ilha do Ibo e a Ilha de Moçambique: conexões e desconexões. No Inventário Nacional de Monumentos, Conjuntos e Sítios, elaborado em 2003 pelo Departamento de Monumentos da Direcção Nacional do Património Cultural do Ministério da Cultura, define-se o conjunto edificado da vila do Ibo como bem cultural imóvel de valor nacional. Assim, reafirma-se e amplia-se a definição já existente, desde 1962, a qual classificava como monumento histórico “todo o núcleo urbano da ilha do Ibo, com excepção da zona ocupada por construções sem carácter permanente que a respectiva Comissão Municipal delimitar”159. Para além desta definição geral em relação ao edificado da ilha do Ibo, já em 1943 se tinha atribuído a classificação de monumento e relíquia histórica especificamente ao Fortim de S. José, ao Fortim de Santo António, à Igreja de S. João Baptista e à Praça de S. João Baptista. A apetência turística da área começa a expressar-se nos planos, projectos ou intenções de desenvolvimento turístico da região, no investimento privado (ainda incipientemente materializado) e na procura da aquisição de edifícios que, agora, começa a ser difícil de materializar. Redescobrem-se as Quirimbas ainda em tímidos panfletos de propaganda e em sites da internet dando conta, por exemplo, da singularidade e do pitoresco da ilha de Quilálea como local de “topo de gama” para um certo tipo de lazer. Será que esta abertura de oportunidades atingirá o centro urbano do Ibo como “coisa” a revivificar? Certamente. E é aqui que se coloca a necessidade de regular as intervenções sobre o edificado e sugerir um modelo de acção que o valorize, sem o desfigurar. Não é a extensão do legado físico resultante do trabalho do Homem que fica especialmente sublinhado numa análise cuidada daquilo que a conjugação de determinados factores históricos, geográficos, sociológicos, económicos e culturais permitiram edificar na Ilha do Ibo. É a importância do processo de inter-relacionamento e de decantação culturais que deixou como realização física mais um pequeno, mas significativo, sinal no “corpo” da identidade de um país em construção. O conjunto destes sinais particulares construirá a imagem nacional que ainda não conhecemos totalmente mas que, sem o sabermos, se 159 Macamo, Solange Laura (Coordenação geral do projecto) e outros, Inventário Nacional de Monumentos, Conjuntos e Sítios - Património Cultural, Ministério da Cultura e UNESCO, págs. 8, 9, 11, 116 e 117, Maputo, 2003. 127 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte constrói, ao longo do tempo, ontem, hoje e amanhã. Esta é outra razão fundamental para que se acautele a sua preservação e valorização. Ressalvadas as diferenças de escala decorrentes do estatuto e consequentes volumes de construção e mediatização respectiva da informação, os conjuntos edificados das ilhas de Moçambique e da ilha do Ibo apresentam características específicas que lhes conferem identidade própria. Existe à partida um factor de índole política que subjaz à diferenciação entre um e outro destes assentamentos insulares de relevância histórica no contexto moçambicano: o seu estatuto sociopolítico. A Ilha de Moçambique possuiu incontestavelmente, ao longo da história, uma notoriedade que nenhuma das ilhas Quirimbas teve, nem antes nem depois da colonização. A condição de capital do domínio colonial português na África Oriental atraiu para si a localização de instituições importantes e motivou uma forte implantação regional no sistema de assentamentos urbanos da costa oriental africana. Durante alguns séculos a ilha de Moçambique foi a principal referência urbana do território. É natural que a atenção e o nível de investimento do estado colonial fossem mais altos devido às exigências de funcionamento do próprio aparelho administrativo e de serviços. Acresce a isto o facto de a ilha ser a residência da elite administrativa e social do território. Neste contexto, e considerando os dados históricos do tipo de gestão colonial nas Quirimbas o qual nem sempre esteve legitimado pelas autoridades, podemos dizer que, relativamente à ilha de Moçambique, a ilha do Ibo teve uma importância marginal e excêntrica ao poder colonial, tendo funcionado em alguns momentos como ponto de abastecimento em géneros alimentícios para a capital. Parece-nos assim que é deste contexto que decorrem os elementos de diferenciação que caracterizam este dois importantes assentamentos humanos. • A integração de soluções autóctones, nomeadamente as que decorrem da apropriação e desenvolvimento local do desenho de matriz swahili, mesmo pelas elites colonias, parece ser mais forte na ilha do Ibo do que na ilha de Moçambique. Uma das razões para tal, talvez a mais importante, poderá estar na maior exigência de “monumentalidade” de uma capital colonial, a qual teria induzido à maior utilização de modelos metropolitanos de desenho. De resto esta constatação verifica-se, embora com menor extensão e profundidade no conjunto edificado do Largo da República da Vila do Ibo. 128 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte • A disponibilidade de área, menor na ilha de Moçambique, poderá ter influenciado a adopção, nesta ilha, de soluções arquitectónicas de maior aproveitamento de espaço, como por exemplo passeios de peões reentrantes no piso térreo, criando canais de circulação pública à maneira das arcadas de rua de cidades europeias, nomeadamente mediterrânicas, a partir das quais se pode ter acesso directo ao interior dos edifícios. Diferentemente, na ilha do Ibo o sistema de varandas, que se destacam do corpo principal dos edifícios, por vezes como elemento autónomo, desenvolve-se como elemento de transição entre o passeio propriamente dito e o interior daqueles. • A aplicação da solução espacial do quintal de tipo swahili é adoptado quase que integralmente na ilha do Ibo, mesmo na parte habitacional do conjunto edificado formal, enquanto na ilha de Moçambique a solução é mais conexap com a tipologia do pátio mediterrânico/árabe/Indo-português. A presente conclusão necessitaria de uma confirmação através de um estudo do desenvolvimento temporal das edificações que conformariam o espaço-pátio para se concluir sobre a génese desse espaço. Note-se que espaços deste tipo foram encontrados no estudo da zona informal da cidade de Lichinga, como resultado do desenvolvimento perimetral paulatino de construções de apoio no quintal de tipo swahili, as quais, finalmente, envolviam quase por completo o espaço livre do quintal, à maneira do pátio. • A cobertura em terraço, frequente na zona de pedra e cal da ilha de Moçambique, não foi um dispositivo comum na ilha do Ibo. Hoje apenas é possível verificar não mais de meia dúzia de coberturas em terraço, sendo duas na zona formal, em casas de proprietários de origem asiática, e outras na zona informal da vila. No caso dos exemplares da zona informal é bem provável que a casa com esse dispositivo que tanto a diferencia das outras funcione como marca de “status”, aspecto importante no quadro dos valores tradicionais, não sendo no entanto essa opção, de forma e de técnica, uma resultante natural de expressão e pesquisa autóctone. • Do ponto de vista do desenho urbano a quadrícula que organiza a parte formal da ilha de Moçambique é intencionalmente mais regular do que na Vila do Ibo. Neste caso o elemento o desenho do conjunto formal parece ser mais orgânico, desenvolvendo-se dentro de um alinhamento estruturante triangular, em que dois dos lados faceiam a orla marítima, e os vértices se relacionam com a localização das três fortificações. 129 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte • Quanto aos problemas do impacto ambiental derivado da acção antrópica a situação afigura-se mais grave na Ilha de Moçambique, não apenas devido à densidade de ocupação muito mais elevada nesta ilha, mas também pelo processo utilizado para a construção da zona formal, a qual foi edificada à custa do desmonte de pedra coralina na parte sul da ilha de Moçambique. Nesta depressão criada por tal actividade de desmonte concentra-se a população autóctone, em difíceis condições de habitação, sendo necessário um sistema de bombagem de esgotos com vista à sua eliminação ou tratamento. É possível que este conjunto de observações que traduzem a tentativa de diferenciação das opções da trama urbana e arquitectura entre os assentamentos formais das ilhas justifique a percepção Vital Moreira de que o Ibo é seguramente menos áulico e menos monumental (do que a Ilha de Moçambique), apesar das suas três notáveis fortalezas, duas setecentistas e outra oitocentista. Mas o seu desenho urbano é mais aberto. As suas ruas mais largas e alinhadas e a sua arquitectura civil mais equilibrada. (...) O Ibo é seguramente uma das mais singulares realizações das aventuras portuguesas no Índico e uma das mais ricas das heranças do património histórico de Moçambique, que o país só tem interesse em valorizar160. A preservação da ilha de Moçambique como Património Mundial da Humanidade declarado em 1992 está plenamente justificada pelos critérios de elegibilidade da UNESCO. O património da ilha do Ibo não terá a mesma grandeza e a relevância internacional, não obstante a importância da Ilha do ponto de vista ecológico e paisagístico estar já reconhecida nacional e internacionalmente. Mas a singularidade de edificado justifica uma atenção particular e uma estratégia urgente para que não se perca tão rico conjunto de referências culturais, ele próprio com um potencial identitário forte não apenas para as gentes de toda uma região que se referencia naquela realização, mas também para todo o país. 160 Moreira, Vital, no jornal O Público de 21 de Agosto de 2001, Lisboa. 130 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte 9. Sustentabilidade: Critérios para um novo ciclo desenvolvimento na ilha do Ibo 9.1. O turismo como oportunidade de um novo ciclo de florescimento da a ilha. Apesar das manifestações de resistência pontuais contra os ventos da história, contra as medidas de deslocalização do «poder económico e administrativo» da ilha por parte dos agentes da administração colonial, as chamadas “forças vivas” locais, não foram capazes de encontrar alternativas de continuidade ou revivificação do crescimento económico que a escravatura tinha permitido. A tentativa de desbalizagem do canal de entrada para o porto interior da ilha, promovido por Gabriel Teixeira, foi inicialmente travada pelos protestos das elites da ilha, ainda com alguma influência. Mas a mudança definitiva da capital do Distrito para Pemba cristalizou uma tendência irreversível de morte lenta da ilha. Só no início dos anos setenta se inicia a busca de novos caminhos para a sua reabilitação económica. E já nessa altura o turismo perfila-se como a actividade mais viável para tal, estando no Ibo o então Administrador de Distrito Carlos Lopes Bento. Mais do que no último quartel do século XX o turismo é hoje a indústria com o crescimento mais rápido do mundo. Ele pode ter impactos positivos e negativos nas esferas ambiental, cultural, social e económica. Se tomado de uma forma responsável, o turismo pode ser uma força positiva para o impulsionamento de um desenvolvimento sustentável, para a promoção da conservação e protecção ambiental161. Para o Fundo Mundial da Vida Selvagem (WWF) o turismo é, ao nível internacional, uma actividade transversal com impactos múltiplos, nomeadamente na mudança climática e na qualidade das reservas de água doce. O desenvolvimento do turismo de massa em larga escala pode ameaçar ecossistemas frágeis em regiões ecológicas chave. Mas numa escala menor, o ecoturismo ou o turismo comunitário é proposto em muitos projectos de campo como uma alternativa sustentável para a elevação do bem-estar das comunidades162. A Namíbia e a ilha de Chumbe são exemplos africanos do papel importante da sua contribuição de políticas conservacionistas. Tomando como referência documentos da UNESCO que resultaram de reuniões sobre casos de sucesso, com análises, troca de experiências e exemplos de boas práticas para a preservação de conjuntos edificados que constituem património de valor, em contextos 161 162 Why tourism? | WWF-UK | WWF network. http://www.wwf.org.uk/researcher/issues/Tourism/index.asp. 131 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte insulares, as recomendações gerais e úteis para o caso de estudo, nomeadamente num contexto de desenvolvimento turístico, são as que a seguir se apresentam. 1. No âmbito da gestão − Manter os registos ordenados de modo a prover informação sobre o andamento e o grau de realização das iniciativas, incluindo receitas e poupanças. Sem este procedimento será muito difícil definir os pontos fortes e fracos da instituição responsável pela implementação, em particular quando se trate de instituições privadas. − Envolver sempre o staff no processo de decisão. Isto pode ser alcançado através de acções de informação e treino que, entre outros aspectos permitam descobrir aqueles que têm mais aptidões para assumir responsabilidades executivas, e igualmente induzam à adopção de novas ideias por aqueles que têm responsabilidades de implementação. Um processo participativo é essencial em qualquer iniciativa deste tipo, de definição de estratégias de gestão; − Manter um registo actualizado de todos os instrumentos legais e constatações relevantes acerca do ambiente no concernente a todas as facetas da gestão turística. O domínio e cumprimento destes regulamentos é o limiar mínimo das responsabilidades públicas e, em particular, dos empreendimentos privados. − Construir relações fluidas entre os intervenientes, em particular entre a administração local e os empreendedores e operadores turísticos, quer seja directamente, quer seja através de associações locais, com o objectivo de se promover um processo harmonioso de intervenção. Muitas decisões em domínios como saneamento, abastecimento de água, treinamento e informação devem complementar as iniciativas das administrações locais e a legislação, caso elas existam.163 2. 163 No âmbito tecnológico http://www.insula.org/tourism/pagina_n14.htm 132 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte As principais áreas de intervenção tecnológica específicas a serem consideradas cuidadosamente, pelo seu impacto na sustentabilidade dos assentamentos, em particular no contexto de insularidade são: 2. − Energia; − Resíduos sólidos; − Gestão dos recursos de água; − Efluentes e emissões; − Preservação da paisagem e integração do edificado; − Impactos sobre o ambiente”164. No âmbito paisagístico e da edificação São Recomendados como ideias e boas práticas de conservação da paisagem e da integração do edificado: − Uso de ecrãs de vegetação para minimizar impactos visuais negativos, de preferência constituídos por espécies locais; − Respeito dos ambientes frágeis de interesse natural na area circundante dos estabelecimentos edificados e consideração dos relacionados com a problemática da conservação da biodiversidade; − Uso de materiais locais adaptados ao ambiente e envolvência dos estabelecimentos edificados, desde que isso não envolva agressões a espécies protegidas ou provoquem a criação de explorações de inertes (pedreiras), de grande impacto; − Uso de cores com relação mimética com a envolvente / arredores; − Busca de tipologias baseadas na arquitectura local como chave da integração do estabelecimento edificado no ambiente; − Promoção de elementos decorativos que sejam relevantes para a cultura local; 164 http://www.insula.org/tourism/pagina_n2.htm 133 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte − Eliminação de propaganda estática e instalação de sistemas de sinalização de baixo impacto; − Realização de estudos de impacto ambiental antes de iniciar qualquer projecto de construção ou alteração do existente − Incorporação de soluções arquitectónicas passíveis e adopção de critérios de construção bioclimáticos − Identificação, promoção e protecção dos recursos naturais e do património que existem na paisagem, integrando-os como os elementos de destaque na concepção do projecto; − Tanto quanto possível, localizar os novos serviços e facilidades em zonas que estejam já degradadas ou alteradas pela acção antrópica, incluindo a recuperação da área no projecto165. Qualquer tipo de considerações e recomendações como as que se reproduzem, mesmo que resultem de amplas discussões e consensos, não prescindem nem da sua contextualização económica, sociocultural e técnica no processo da sua aplicação, nem de uma atitude próactiva por parte das instituições que tutelam as respectivas áreas de intervenção, de modo a que possam ser adequadamente levadas à prática no quadro de um processo monitorizado. Consideramos importante notar que as recomendações referidas neste capítulo, os desafios visando o equilíbrio, a harmonia do edificado com a paisagem e sua protecção, o respeito pelo ambiente e pela cultura locais, não devem ser pretexto para a adopção de uma atitude de esquematismo arquitectónico de substrato ambientalista, com impacto negativo na busca da modernidade, da criatividade e da inovação tecnológica. Pelo contrário partilhamos que a estas novas exigências, conexas com os princípios do eco compatibilidade, tem de corresponder uma nova atitude projectual que não se resume a uma mera busca de um mimetismo simplista ou à reprodução automática de formas aparentemente imutáveis, sobretudo quando os ambientes edificados são portadores de fortes testemunhos de mudança e reformulação formal ao longo dos tempos. O que parece ser fundamental é que o património cultural e edificado que resultou da procura do equilíbrio do Homem com o ambiente, ou de aquisições fecundas do contacto e aprendizagem com outras culturas não 165 http://www.insula.org/tourism/pagina_n5.htm 134 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte sejam apagados, falseados ou desfigurados por um fundamentalismo tradicionalista ou pela ânsia de um vanguardismo descontextuado e sem fundamento. Pretende-se sim que a herança cultural seja respeitada pela sua dignificação, preservação e valorização, através da correcta e bem medida integração do que de novo se estabeleça, fundamentadas numa pesquisa que revele as opções mais adequadas e que introduzam elementos de mais-valia ao que de valor já existe como resultado do engenho local. 9.2. Uma nova atitude perante o património cultura. A percepção dos habitantes e a necessidade de novas linhas de abordagem para a sustentabilidade das intervenções. Um elemento importante que deve informar qualquer estratégia fundamentada de intervenção de requalificação e reabilitação urbana e que considere as actividades da sua população tem de perceber o tipo de relação que os habitantes têm com o contexto urbano. O inquérito realizado aos moradores da zona informal, onde reside a maioria da população, uma vez que a zona formal ou centro histórico permanece quase desabitado, exprimiu o desapego da maioria da população em relação ao centro histórico. As suas relações com esta parte da vila quase se limitam: à utilização e contacto com serviços públicos como o Hospital, a escola, as telecomunicações, a administração, a polícia e outros; o atravessamento de e para o porto de abrigo; a prestação de serviços como funcionários ou trabalhadores por conta de outrem; a busca de materiais e elementos de construção nos casarões abandonados ou em ruínas, principalmente portas, janelas e telhas. Não pareceu haver vínculos de pertença a esta parte da vila, predominando uma aparente indiferença generalizada. Não foi estabelecido um nexo de significância ou definição de margem de erro quanto à validade desta sondagem. Ela abrangeu os dois bairros informais que circundam a zona formal e foi feita com a utilização do método de amostragem proporcional (34 casos), tomando como universo uma listagem completa de todas as habitações da zona informal (609 habitações). O que parece dar relevância a esta pesquisa empírica de opinião à unanimidade da percepção que ressaltou das repostas dos inquiridos em relação a uma das questões. Nenhum deles manifestou interesse em habitar na zona formal. Quando indicavam as razões de tal opção, o facto sublinhado era deque as casas do centro histórico possuíam os seus proprietários mesmo no caso das que se encontrassem desocupadas há muitos anos. Parece evidente que esta alegação não explicará completamente essa manifestação 135 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte de vontade. A recusa expressa ou implícita de viver no centro histórico talvez encontre explicação mais completa na conjugação de factores como: a) o estilo de vida ligado a formas específicas de subsistência difíceis de dar seguimento ali (pouco espaço para as cercas166, maior distância em relação às machambas de subsistência, a Norte e a Leste da ilha, e em relação aos locais de apanha de produtos do mar, na maré vazante); b) as relações de vizinhança ancestrais; c) os custos fixos adicionais que a mudança acarretaria, d) o forte sentido de propriedade; e) o encerramento do comércio que, tornado informal, se deslocou para a zona respectiva e se implantou no seio da população; f) o mau estado de conservação e abandono do centro histórico. Até que ponto o Ibo diz respeito a todos os moçambicanos? A ponto de ser fundamental a consideração séria da sua conservação e restauro num país em que vencer a pobreza é, sem dúvida, a prioridade? Sobretudo quando esse património deriva em grande medida de uma etapa esclavagista de exploração? Em países que emergiram de dolorosos de libertação, como as ex-colónias, esta questão é recorrente sempre que o problema se coloca. Não vamos discuti-la neste contexto. Diríamos apenas que qualquer dos moçambicanos que o conheçam o conjunto edificado da ilha do Ibo ficarão tocados de mágoa pelo fenecer de uma realização secular que não seria possível noutro contexto antropológico, noutra área cultural, noutro ambiente e, portanto noutro país. Não é apenas a memória do esclavagismo que explica a realização do edificado, não obstante o dever e a verdade histórica de a afirmarmos como um facto. Mas o Ibo é também, e fundamentalmente, essa resultante inegável do trabalho, do saber de interacções culturais que se foram repetindo, moldando técnicas, técnicos e artífices e modelando o espaço que o tempo teimosa e ciclicamente persiste em revelar e resgatar. Não é por acaso que ao entrevistarmos o sr. Fulano, morador na zona informal da vila do Ibo, ele se referiu ao estado de degradação da vila com a expressão desencantada de que “o Ibo já não é Ibo: é uma tristeza, uma negação”167. Esta parece ser uma manifestação de que os habitantes locais, 166 Pequena porção de terra agricultável, do tipo misto de horta e pomar, adjacente ou junto à habitação. Na língua local, o kimwani, esta expressão é uma tradução livre da seguinte frase por ele empregada: “Ibo syihó Ibo. Ahibú!”. 167 136 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte mesmo não querendo apropriar-se do centro histórico colonial, consideram-no uma coisa que lhes diz respeito e de que se orgulhavam como realização humana. O Estado e o Governo moçambicanos deram sinais relevantes que parece resultarem já positivamente como elemento importante de um novo patamar nesse típico processo de revelação e resgate do Ibo em particular, e das Quirimbas em geral: revelação e resgate de um património tangível e intangível de grande riqueza. Como foi referido está já estabelecida legalmente a protecção da zona ecológica a que pertence o sistema insular e as terras firmes do litoral. Está já afirmada, tanto a nível nacional como a nível internacional, a importância dos seus recursos marinhos e costeiros. Está também afirmado o valor da sua paisagem natural, do legado edificado e do legado cultural que o suporta. A apetência turística da área começa a expressar-se em referências nos “planos” ou intenções de desenvolvimento turístico da região, no investimento privado (ainda incipiente) e na procura da aquisição de edifícios que, desde 2002, começa a ser difícil de materializar. Redescobrem-se as Quirimbas ainda em tímidos panfletos de propaganda e em sites da internet dando conta, por exemplo, da singularidade e do pitoresco da ilha de Quilálea como local de “topo de gama” para um certo tipo de lazer. Será que esta abertura de oportunidades atingirá o centro urbano do Ibo como “coisa” a revivificar? Certamente. E é aqui que se coloca a necessidade de regular as intervenções sobre o edificado e sugerir modelos de acção que o valorizem, sem o desfigurar. E aos arquitectos, novos e velhos, caberá o dever de se empenharem na abertura de pistas, na definição de uma filosofia de intervenção e de propostas técnicas de trabalho ecocompatíveis, cultural e economicamente enquadradas. Não é somente a dimensão do legado físico resultante do trabalho do Homem que quisemos sublinhar. É a importância do processo de decantação secular que, paulatinamente, deixou como realização física mais um pequeno sinal no “corpo” de uma identidade nacional em construção. O conjunto destes sinais particulares construirá a imagem que ainda não conhecemos totalmente mas que, sem o sabermos, se constrói, ao longo do tempo, ontem, hoje e amanhã. A questão da reabilitação do edificado numa situação de grande carência de recursos, como acontece em Moçambique, só tem sentido se for considerada no contexto da revivificação da vida na ilha e, evidentemente, não deve ser vista como acção dirigida apenas ao edificado ou ao legado físico presente. Qualquer estratégia de reabilitação tem de ter como sujeito, em 137 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte primeiro lugar, a população da ilha e a sua cultura. Porque são elas que constituirão o principal elemento da sustentabilidade do que se construiu e que tem explicação no seu trabalho e, principalmente, na sua cultura. A criação de condições económicas que dêem suporte ao fortalecimento e desenvolvimento cultural terá certamente como resultado induzido a melhoria da capacidade privada de intervenção, nomeadamente sobre o edificado. É evidente que tal premissa não totaliza o alcance do objectivo de reabilitação do conjunto edificado, o que significa que, a par da atenção para se redinamizar a vida económica e sociocultural da ilha do Ibo, teria de ser desenhado um programa específico de requalificação e reabilitação, com uma componente adequada e criteriosamente seleccionada e limitada de restauro filológico do património edificado. E este mesmo programa deveria ser uma componente daquele programa mais vasto. Teriam de ser estabelecidas sub-estratégias de intervenção, nomeadamente no que respeita às técnicas de restauro e reabilitação; às opções de refuncionalização; às possibilidades de participação e de envolvimento de outras instituições, que não apenas as governamentais; à contribuição local; à preservação e uso sustentado dos recursos naturais. Quanto à prioridade de reanimação da vida económica e sociocultural, e tendo em conta que o âmbito do turismo é aquele que aparentemente apresenta maior viabilidade pelos interesses que tem suscitado actualmente, poderiam ser considerados à partida, para além de outros, os seguintes cinco domínios potencialmente portadores de mais-valias: (1) Valorização de profissões 168 e técnicas tradicionalmente exercidas e conhecidas, nomeadamente a ourivesaria, a carpintaria, a arte de pedreiro, a latoaria, a fundição artesanal, a construção naval; (2) Produção agrícola, em particular com a reabilitação e valorização do cultivo e produção do café169 ; (3) Actividades culturais típicos envolvendo a música, a dança, as cerimónias tradicionais, bem como o dos produtos naturais de cosmética e higiene tradicionais (m’siro, muswaki, mulala e outros a seleccionar). (4) Culinária, nomeadamente no que se refere à conserva tradicional de mariscos (conhecidos localmente pelas designações locais de macasa, mbareh, nhamata e outros), de 168 Consideram-se aqui as profissões e técnicas que tivemos ocasião observar em 2003, bem como o levantamento socioprofissional feito por Carlos Lopes Bento, em 1971, e que vem descrito na separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 115a – Nos 1-12, Janeiro/Dezembro de 1997. 169 “Coffea Ibo de Frohner”, conforme Carlos Lopes Bento, op. cit. Pág. 219. 138 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte pescado (maragaio), de palmito (quiréreh), em escala adequada e, eventualmente, a produção de compotas (de manga, de goiaba, de maçanica), de frutas secas (banana, manga, maçanica) e o aproveitamento de sumos e bebidas locais (a água de coco, a sura); (5) Uso controlado dos recursos marinhos e da sua valorização e divulgação, incluindo peixe, crustáceos, conchas, bem como a pesca desportiva e o mergulho. Qualquer das opções se decida incentivar, após pesquisa e avaliações de impacto, deverá respeitar os requisitos de preservação ambiental e conservação dos recursos naturais. Mas, inversamente, as limitações decorrentes dos critérios de sustentabilidade ambiental têm também de estar em consonância com a preservação de valores culturais adquiridos ao longo dos tempos pela população. É nomeadamente através da definição e de escalas adequadas de exploração, da modernização das técnicas de produção e do controle e monitoria dos processos por parte dos actores envolvidos que se garantirá que as acções de desenvolvimento não se transformem em acções predadoras, estimulando-se o equilíbrio entre as necessidades da população e a sustentabilidade dos processos. 9.3. Contribuições para a preservação, requalificação, manutenção e restauro do edificado. Como questão prévia para garantir a sustentabilidade da reabilitação do edificado numa situação de grande carência de recursos, como acontece em Moçambique, é necessário considerar que tal reabilitação só tem sentido se for considerada no contexto da revivificação da vida na ilha do Ibo e, evidentemente, não deve ser vista apenas como acção dirigida ao edificado ou ao legado físico preexistente. Qualquer estratégia de reabilitação tem de ter, em primeiro lugar, como sujeito (alvo e actor) a população da ilha e seu ethos, porque é ela que constituirá o principal elemento da durabilidade do que se construiu e que tem explicação no seu trabalho e, principalmente, na sua cultura. Um plano director para orientar as intervenções físicas deverá ser, por isso e antes de mais, a representação territorial das opções de desenvolvimento num determinado prazo de tempo, tendo em consideração as suas pulsões mais fortes e viáveis de todos os pontos de vista, bem como as fraquezas que exigem intervenções concretas de superação. Tal plano director deve representar apenas um dos instrumentos locais de intervenção, os quais deverão estar articulados num programa mais vasto de desenvolvimento económico e sócio cultural. Quanto à prioridade de reanimação da vida económica e sociocultural, e tendo em conta que o âmbito do turismo é o que mais interesses tem suscitado hoje em dia, poderiam ser 139 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte considerados, à partida, os domínios do saber e do conhecimento local de potencial interesse económico e comercial, referidos no capítulo 6.3 da II Parte. A teoria da conservação sugere que a intervenção num centro histórico não pode e não deve permitir mudanças traumáticas devido à introdução de elementos estranhos no ambiente urbano. A preservação deve visar a satisfação das necessidades dos habitantes através de acções cuidadosas e facilmente identificáveis que não modifiquem irreversivelmente o centro urbano e que se integrem adequadamente no contexto sem a exibição de novos sinais demasiado fortes. “A projectação da recomposição formal e perceptiva de espaços construídos negligenciados, a requalificação e refuncionalização de edifícios degradados, a localização de actividades comerciais em edifícios residenciais, a abertura de bairros degradados à cidade através da localização neles de funções urbanas significativas para o conjunto ( as quais produzem, ao mesmo tempo, renovação urbana e equidade urbana), a eliminação da poluição do ar e e da poluição acústica causada pelo tráfego (que põe em perigo tanto os seres vivos como o património construído), a renovação dos serviços urbanos (que produz, ao mesmo tempo, desperdícios ou lixo) ambiental e danifica o património construído), a criação de ‘lugares seguros’, deveriam ser as acções de um projecto que recupera o sentido de propriedade dos espaços e, ao mesmo tempo, de pertença a eles, no sentido de lhes conferir uma maior capacidade de socialização e de segurança. Na prática isto é realizado através da eliminação de adições estranhas aos edifícios, repropondo, na escala adequada, técnicas tradicionais, tecnologias e materiais que se inserem no saber comum (que é sustentável) ou ao genius loci. E fácil perceber que estas acções de requalificação urbana visam alcançar objectivos de sustentabilidade tais como a melhoria do ambiente, a promoção social e económica das áreas recuperadas no sentido da elevação da qualidade de vida dos residentes”170. Qualquer abordagem de revalorização do edificado terá de considerar princípios básicos que garantam a sustentabilidade e eco-compatilbilidade da acção. São eles: 170 De Marco, Marina, Torre, Carmelo, Refurbishment and Conservation in Sustainable Renewal of Architectural and Urban Heritage. Back Conceptual and Technological Questions, http://www.iris.ba.cnr.it/sksb/PAPERS/04-56.HTM (http://www.iris.ba.cnr.it/sksb/PAPERS/04-56o.pdf). 140 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte • Princípio da informação, que garante que se conhece tão profundamente possível o objecto a revalorizar, que a informação circula adequadamente por todos os intervenientes públicos e empreendedores privados, e que se procede à educação especializada e pública para elevar a competência e a consciencialização geral em reacção às intervenções a realizar; • Princípio da organização, que garante a preparação prévia das acções a levar a cabo, bem como o estabelecimento dos adequados instrumentos de administração, de gestão, de avaliação regular e de controlo de todas as actividades a levar a cabo; • Princípio da participação, que garante uma adequada partilha de realização dos objectivos a alcançar e que maximiza as hipóteses de compatibilidade cultural do empreendimento e respeitando o objectivo de “Pensar globalmente e agir localmente”, que a Agenda 21 estabelece como uma da importantes condições do desenvolvimento sustentável. No que respeita à revitalização do conjunto edificado propõem-se os seguintes níveis gerais de actuação: • Actuação de emergência, para impedir o desmoronamento completo dos edifícios em estado crítico de conservação; • Actuação de consolidação, para evitar que o edificado entre em estado de ruína grave por degradação dos elementos estruturais; • Actuação de recomposição, que consistem em repor e ou requalificar as condições de uso e fruição do edificado, refuncionalizando-o, reparando-o, ou restaurando-o consoante as opções mais aconselháveis. Partindo da análise efectuada e da condições ambientais em presença o caso específico do Ibo permite concluir que: 1. Não parece sustentável restaurar o edificado das áreas monumental e, em geral, da área formal, sem considerar acções específicas de melhoria das condições básicas da vida da população (habitando normalmente nas áreas informais) que lhe dá o sentido de pertença humana e alimenta a sua identidade e peculiaridade culturais, bem como sem a participação de outros importantes agentes de desenvolvimento – particulares, empresas, ONGs; 2. Infelizmente parece inviável reproduzir em larga escala as técnicas e materiais locais usados originalmente, os quais se traduziram no uso intensivo de elementos naturais de grande valor ecológico, ambiental e paisagístico e que hoje são protegidos por lei, como o 141 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte coral e o mangal, além de outros como a folha de coqueiro entrançada (o macúti) e resinas naturais. Tais práticas poderiam ser utilizadas desde que correspondessem a uma selecção criteriosa dos objectos a restaurar, mesmo que com carácter restrito e exemplar; 3. A relevância simbólica atribuída, pelos habitantes da vila, a alguns dos seus elementos arbóreos, bem como de sítios e conjuntos arbustivos sacralizados por ritos ancestrais ou urbanizados, aconselham que se considere com atenção a importância da sua inventariação e conservação, bem como a requalificação do seu enquadramento, respectivamente como marcos urbanos e culturais; 4. Quanto à requalificação do ambiente construído parece ser importante considerar o carácter particular do núcleo edificado nomeadamente no que concerne à imagem, às relações de escala das edificações (e elementos construtivos) entre si e destes com o espaço não edificado, e à relação espacial interior/exterior e privado/público das construções, expressa, por exemplo, pelo sistema das varandas projectadas; 5. É fundamental garantir-se uma administração civil consciente, motivada e continuada, de modo a eliminar-se gradualmente eventuais atitudes predatórias e de indiferença perante a destruição do património cultural, mesmo quando estas sejam explicáveis em determinado contexto histórico. 6. É desejável e por vezes vital (como aconteceu em programas bem sucedidos de reabilitação e maneio faunístico) associar o interesse e participação da população local, profundamente atingidas pela necessidade de resolver os problemas básicos e imediatos da sua subsistência, o que implica à partida a integração dos líderes e personalidades locais e a organização de base da população por actividades e grupos de interesse específicos; 7. É muito importante integrar acções de treino e formação. Estas acções deveriam considerar não só a elevação da capacidade técnica dos gestores directos dos empreendimentos, mas também a criação de uma consciência da importância da preservação dos bens culturais e dos recursos naturais e paisagísticos. Uma vez que grande parte da construção popular do litoral de Moçambique, pelo menos a norte do rio Zambeze, baseia-se na técnica do uso de rocha coralina, de madeiras de mangal e outros materiais que, devido à sua proveniência, possuem um elevado teor de sal marinho, parece-nos fundamental definir-se, na especialidade, o comportamento e interacção físico/químicos destes materiais de construção quando postos em diversas e adversas condições ambientais, desfazendo-se o equilíbrio de temperatura e humidade 142 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte relativa que influencia decisivamente o estado da construção. Esse estudo seria útil para a compreensão dos processos de degradação dos elementos feitos com este tipo de materiais e, por extensão, igualmente útil para se estabelecerem os melhores métodos de conservação do edificado. Outra questão fundamental a ser equacionada no processo de revitalização da ilha do Ibo e da requalificação do seu espaço urbano, prende-se designadamente com a filosofia da reabilitação e as opções estratégicas para o restauro do edificado. Qualquer destes caminhos deverá contar com um processo integrado de orientação e monitoria tendo em atenção os princípios de adequação técnica, ambiental e cultural para, entre outros aspectos, se evitem metamorfoses estranhas ao carácter da arquitectura da vila, particularmente quanto às suas relações de escala na envolvente criada, e quanto à peculiaridade da sua imagem geral. Neste contexto parece-nos importante salvaguardar-se, pelo menos, a manutenção da traça original aparente dos edifícios, em particular no que concerne às fachadas frontais e respeitando-se os princípios de desenho e continuidade das varandas. Estes elementos serão porventura aqueles que melhor caracterizam o conjunto edificado. A revalorização do edificado no quadro de uma estratégia faseada de intervenção, ganhando-se experiência, desencadeando-se sinergias e motivando-se a população e os diferentes operadores passíveis de envolver, deveria considerar três escalas de intervenção, nomeadamente (1) a escala geral do território e da paisagem da ilha, (2) a escala urbana e (3) a escala dos edifícios e outros elementos simbólicos. I. Na escala urbana, seria necessário considerar os seguintes níveis gerais de intervenção: a) Acções de emergência para protecção das fachadas traseiras do conjunto edificado na frente sul da vila, para suster o desmoronamento dos contrafortes, das paredes e embarcadouros que dão para o porto de abrigo; b) Melhoria das infra-estruturas a partir do estudo, na especialidade e de forma integrada e multidisciplinar, do estado e do tipo de infra-estruturas, para a adopção de soluções sustentáveis e eco-compatíveis de 143 • saneamento, • abastecimento de água, Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte • c) abastecimento energia; Recomposição do sistema viário interno e dos acessos à ilha, nomeadamente em Tandanhangue, o local mais próximo de onde se parte de barco para a ilha do Ibo, e que inclua; • Recomposição dos pavimentos e passeios da zona formal, • Requalificação participada da zona informal, com enfoque especial nos seus espaços públicos, vias e equipamentos mais importantes e necessários, nomeadamente na área recreativa e na área do comércio informal, • Recomposição dos pontos de partida e de chegada no porto de Tandanhangue na ponte-cais do Ibo, • Reparação e manutenção do aeródromo (pista de terra e abrigo de chegada); d) Acções de índole legal • regularização propriedade na zona formal, • regularização da ocupação do solo na zona informal, • elaboração de normas-guia para manutenção, reabilitação e restauro dos edifícios existentes, bem como para orientação e condicionamento enquadrador de edifícios novos que venham a ser autorizados onde tal seja não só possível como recomendável; e) Intervenções integradas de recomposição de ambientes edificados, que implicam o estudo na especialidade, mas de forma integrada e multidisciplinar, da definição de opções a tomar nomeadamente reabilitação, requalificação e/ou restauro de: • Rua 27, • Avenida e Largo da República, Rua António José de Almeida, Rua Maria Pia e Rua da Fortaleza; f) Acções de planificação, eventualmente integradas numa estratégia geral ou Plano Director de desenvolvimento da ilha incluindo a promoção da elaboração de planos parciais para: 144 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. III Parte • Completamento de espaços vazios resultante do desmoronamento completo de edifícios, • ordenamento e requalificação da frente de mar ocidental, entre o cais e a Fortaleza de S. João Baptista e que abrange a Rua da Bela Vista, • ordenamento de grandes espaços livres e incaracterísticos, como a área fronteira ao mercado e ao Fortim de Sto. António, a área adjacente ao antigo matadouro, a área adjacente às traseiras ao edifício dos Correios e Administração Marítima. II. Na escala das edificações e elementos simbólicos dever-se-ia proceder a: g) Acções de emergência para travar a degradação por ruína devida ao abandono e predação, nomeadamente das estruturas, coberturas e paredes ainda em estado razoável de conservação, prioritariamente dirigidas aos edifícios classificados, como as fortificações, a igreja católica e a mesquita central; h) Definição de estratégia e modalidades de motivação de proprietários e operadores privados, e que possam induzir à manutenção, reabilitação e restauro das fortificações e de edifícios públicos importantes no plano urbano bem como de edifícios privados com valor intrínseco e valor de enquadramento espacial; i) Promoção da manutenção e arranjo dos cemitérios e locais tumulares de interesse histórico; j) e, numa acção simbólica, promover à limpeza da via aberta no mangal entre a ilha do Ibo e a de Quirimba, como testemunho importante da história e do trabalho humano. 145 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Conclusões CONCLUSÕES I. Reabilitação, preservação e restauro do edificado de valor histórico na ilha do Ibo: para uma política de intervenção escalonada e faseada, baseada em princípios de sustentabilidade e aderência comunitária. O caso do Ibo apresenta duas características importantes a considerar para a definição de uma estratégia de preservação, reabilitação e restauro do núcleo consolidado. São elas: 1. Existência de um assentamento de características duplamente bivalentes: (1) No que respeita à sua organização urbana – zona formal e zona informal; (2) No que respeita à distribuição espacial desigual da população que realmente vivifica o assentamento – ocupação consolidada e antiga da zona informal e rarefacção de ocupação ou alto nível de abandono na zona de edificação consolidada / monumental / formal; 2. Existência de um núcleo urbano planificado muito marcado pela desigualdade colonial (desigualdade esta estratificada ao longo de século/s), o que atenua o sentido de pertença do edificado monumental com valor histórico por parte da população autóctone no período pós-independência, e em relação ao qual essa população exprime simultaneamente uma postura de indiferença (porque não o sente totalmente como seu?) e de pena (pelo que o abandono do núcleo de edificação consolidada isso traduz de menos oportunidades de oferta de serviços e de emprego?); Neste contexto característico de núcleos urbanos pequenos como o da ilha do Ibo, parece ser necessário considerar sempre uma actuação que combine a reabilitação do edificado classificado de valor histórico com a requalificação do espaço e/ou de elementos edificados de importância na actividade de habitar da população que lhe dá e sentido cultural no contexto pós-independência. Isto quer dizer que qualquer acção de restauro integrado e complexo do núcleo edificado consolidado de valor histórico deve estar integrada num programa de desenvolvimento que contenha a dimensão da melhoria sustentada do bemestar da população. O estabelecimento de uma da política de intervenção para suster o processo de ruína e promover uma acção sustentada de preservação, reabilitação e restauro do edificado e da paisagem deveria considerar três níveis fundamentais de actuação: 146 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Conclusões 1. No nível da edificação: • Intervenções de emergência sobre os edifícios classificados como elementos a proteger e que se encontram em vias de ruína estrutural; • Intervenções de consolidação da edificação em perigo de entrar em ruína estrutural; • Definição de Normas - Guia básicas para qualificar e orientar as acções de intervenção técnica sobre edificado, quer por iniciativa pública quer por iniciativa privada ou colectiva; • Intervenções de reabilitação do edificado em estado de abandono, com estudo prévio da definição da viabilidade e modalidades da sua gestão e usufruto, com particular realce para a zona ‘monumental’; • Intervenções de requalificação na área edificada informal e formal, com estudo prévio da definição da viabilidade e modalidades da sua gestão e usufruto em particular na zona formal; • Intervenções de restauro de edifícios de valor arquitectónico ou de enquadramento do espaço urbano em que se inserem. 2. No nível da Paisagem: • Definição de sub-áreas de reserva total e áreas de intervenção controlada dentro da ilha, tendo em conta factores ecológicos e culturais e as necessidades de produção da população da ilha, cujos limites deverão ser estabelecidos. Neste âmbito considerar-se-iam os locais sagrados e rituais, as áreas de produção da população, os maciços vegetais e conjuntos arbóreos de valor paisagístico, para além do que já está definido no Plano de Maneio das Quirimbas. 3. No nível da Administração e Gestão: • Definição de responsabilidades e modalidades de participação dos diferentes e possíveis operadores no processo de planificação, intervenção e controle, com vista a atingir os objectivos de sustentabilidade dos programas a serem realizados. • Para a revelação e fortalecimento de sinergias (financeiras, técnicas e de iniciativa) visando a realização de acções de preservação ambiental e desenvolvimento sustentado, seria vantajosa a inclusão dos operadores, associados globalmente ou por áreas de interesse, no processo de intervenção e desenvolvimento da área de reserva das Quirimbas 147 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Conclusões e, no caso em apreço, da ilha do Ibo, através da realização de convénios com as instituições governamentais tutelares (Ministério da Administração Estatal em articulação com os Ministérios do Turismo, da Cultura, e o da Coordenação e Acção ambiental), em que se estabeleçam direitos e deveres, incluindo alocação eventual de financiamentos, benefícios/prémios e sanções, consensualmente estabelecidas. Como referência desta actuação podemos tomar o caso italiano do acordo estabelecido entre o Ministério do ambiente e da tutela do território e a ANCIM (Associazione Nazionale Comuni Isole Minori) Associação Nacional das Comunas das Ilhas menores, em 2000171. Para além de se dar voz aos principais operadores públicos e outros (Governos locais, entidades privadas, Organizações não-governamentais, associações e comunidades organizadas), criar-se-ia um processo de engajamento e compromisso voluntários com possibilidades de viabilizar actividades que as instituições públicas, por si sós, terão dificuldades de enfrentar. Também se poderia deste modo possibilitar às instituições financeiras e de cooperação de países e instituições doadoras um mais próximo contacto institucional com os operadores, uma maior transparência de utilização dos fundos, e uma mais acurada e atempada determinação de eventuais problemas de realização de programas, permitindo-se acções correctivas a tempo. • É pertinente referir que as carências de capacidade técnica de gestão por parte da Administração local obrigariam a que, numa primeira fase de lançamento de qualquer plano de desenvolvimento para a ilha, se considerasse a possibilidade de criação de um gabinete técnico de apoio para tal. Ao mesmo tempo, e como já foi referido, deveria ser lançado um programa específico de capacitação institucional das instituições do distrito do Ibo. 171 O quadro geral do acordo é baseado na realização de intervenções em áreas marinhas protegidas de pequenas ilhas italianas. Os projectos visam o desenvolvimento sustentável e a conservação dos ecossistemas marinhos costeiros, a diminuição da poluição atmosférica e acústica através de um turismo eco-compatível, eco-indicadores e reconversão das actividades pesqueiras. Neste sentido deverão ser incluídas intervenções de melhoria e difusão de fonte de energia renováveis com vista à auto-suficiência energética, através de instalações eólicas, de produção térmica solar, geotérmicas e fotovoltaicas, bem de promoção de transportes sutentáveis pela utilização de veículos eléctricos e ou veículos de tecnologias híbridas, racionalização e promoção de transportes colectivos. A realização deste acordo envolve um montante total de 15 milhões de EURO. A OPET é uma rede criada pela Comissão Europeia que tem como objecto a promoção e a informação sobre os benefícios decorrentes das novas tecnologias inovadoras em matéria de energia, nomeadamente no que respeita a: fontes de energia renovável, uso racional da energia na indústria, construção e transportes, combustíveis e hidrocarbonetos. 148 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Conclusões II. Para a abertura de novas linhas de pesquisa Uma vez que grande parte da construção popular do litoral de Moçambique, pelo menos a norte do rio Zambeze (mas incluindo também o litoral de Inhambane, a Sul), baseia-se na técnica do uso de rocha coralina, de madeiras de mangal e outros materiais que, devido à sua proveniência, possuem um elevado teor de sal marinho, parece-nos fundamental definirse, na especialidade, o comportamento e interacção físico/químicos destes materiais de construção quando postos em diversas e adversas condições ambientais, desfazendo-se o equilíbrio de temperatura e humidade relativa que influencia decisivamente o estado da construção. Esse estudo seria útil para a compreensão dos processos de degradação dos elementos feitos com este tipo de materiais e, por extensão, igualmente útil para se estabelecerem os melhores métodos de conservação do edificado172. Outra questão fundamental a ser equacionada no processo de revitalização da ilha do Ibo e da requalificação do seu espaço urbano, prende-se designadamente com a filosofia da reabilitação e as opções estratégicas para o restauro do edificado. Qualquer destes caminhos deverá contar com um processo integrado de orientação e monitoria tendo em atenção os princípios de adequação técnica, ambiental e cultural para, entre outros aspectos, se evitarem metamorfoses estranhas ao carácter da arquitectura da vila, particularmente quanto às suas relações de escala na envolvente criada, e quanto à peculiaridade da sua imagem geral. Neste contexto parece-nos importante salvaguardar-se, pelo menos, a manutenção da traça original aparente dos edifícios, em particular no que concerne às fachadas frontais e respeitando-se os princípios de desenho e continuidade das varandas. Estes elementos serão porventura aqueles que melhor caracterizam o conjunto edificado. As questões científicas e tecnológicas que se colocam na elaboração de diagnósticos, caracterização e definição de relações de causa e efeito dos processos de transformação que ocorrem em ambientes específicos de grande riqueza por um lado e fragilidade por outro, como é o caso das pequenas ilhas, bem como para a determinação dos métodos científicos, modelos e metodologias mais adequadas de intervenção, seria também 172 Berti, Maurizio, Arif, Mohamad, Conservação dos antigos edifícios de pedra de coral. Dois casos ao longo da costa moçambicana, Edições FAPF, Maputo, 2005, pág. 28. 149 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Conclusões importante o estabelecimento de parcerias com instituições universitárias e centros de pesquisa. III. Princípios para uma intervenção requalificante no quadro de uma política de cooperação estimulante e duradoura. Não obstante colocar-se no âmbito geral da salvaguarda dos bens arquitectónicos e ambientais dos núcleos centrais das cidades moçambicanas, parecem-nos de grande pertinência como princípios basilares de trabalho, também para o caso de estudo que nos ocupou nesta tese, as observações feitas por Salvatore Dierna e que a seguir transcrevemos173: “Existe um oneroso, mas entusiástico desafio para os quadros técnicos que, nos diversos níveis de competência e de funções, são responsáveis pelos processos de salvaguarda e valorização dos bens arquitectónicos e ambientais dos núcleos centrais das cidades moçambicanas. São cidades que têm sido objecto de uma degradação progressiva ou de processos desavisados de substituição de edifícios ‘monumentais’, como unidades edificadas de qualidade singular; de partes homogéneas de tecido urbano; de espaços públicos e complexos de arranjo unitário ou constituídos por agregação progressiva de edifícios, ao longo do tempo. Tudo isto num contexto em que se assiste, em todo o mundo, a uma substancial contracção nos tempos de historicização dos acontecimentos humanos e, entre estes, em primeiro lugar, aqueles que se materializam no assentamento físico e formal dos edifícios no tempo. É um desafio que se tornou mais complexo e difícil pela exigência de activar ‘boas praticas’ de análise, de projecto e intervenções sobre unidades de assentamento e artefactos construídos existentes que assumam objectivos de eco-eficiência e sustentabilidade ambiental como determinantes significativas. Trata-se de ‘boas praticas’ que, em relação às condições de contexto, podem ser sumariadas em alguns princípios de carácter geral, designadamente: • ao nível do atento conhecimento e atribuição de valor cultural ao edifício ou espaço; • ao nível da avaliação e selecção cuidadosas das mudanças que podem ser admitidas na utilização; 173 Dierna, Salvatore, Intervenções ecologicamente sustentáveis de formação e transformação do habitat, documento subordinado ao tema “Requalificação da arquitectura moderna”, editado pela Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade Eduardo Mondlane, 2004, ponto 12, págs. 9 e 10. 150 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Conclusões • ao nível da escolha bem documentada das modificações compatíveis com o carácter do tipo originário; • ao nível da adopção e aplicação de sistemas e soluções tecnológicas inovadores; • ao nível da introdução, em maior ou menor grau, de formas e linguagens contemporâneas. Finalmente uma dimensão que deveria ser tomada em conta desde o início e durante e ao nível do substrato de todo o projecto, é a que comporta a verificação atenta da sustentabilidade económico-financeira, a sustentabilidade do processo e a sustentabilidade ambiental relativamente às intervenções programadas. Moçambique dificilmente terá, tão cedo, meios financeiros e técnicos para um programa alargado de preservação de tão importantes ambientes e conjuntos edificados, testemunhos da história e elementos de identidade ainda em construção dos moçambicanos. Perdê-los é perder referências identitárias importantes. Parte desse trabalho de conhecimento, caracterização científica e até de preservação e restauro tem sido feito e terá de continuar a ser feito com apoios técnicos e financeiros de outros países. E aqui surge a questão da cooperação inter-governamental e internacional. A este propósito convém referir que, como preconizado pela UNESCO, para que essa cooperação na área cultural, como de resto para o desenvolvimento em geral, seja sustentável ela deverá assentar, nomeadamente, em dois princípios essenciais: • informação simétrica das partes, nomeadamente de cada uma das partes sobre a vontade e capacidades da outra; • possibilidade de discussão e confronto de ideias, isto é: nem imposição de objectivos e processos pelo país doador ao país receptor; nem aceitação paternalista, cega, ou simplista das vontades do país receptor pelo país doador. Para além destes princípios básicos, um programa de restauro e conservação sustentável deve considerar e ou garantir: 1. Reabilitação económica do meio em que se inserem os objectos visados, com eventual revocacionamento funcional e da actividade económica, de forma a dar-se gradualmente sustentabilidade à vida sócio-económica dos seus habitantes, sem impacto negativo nos padrões e actividades culturais básicos e identitários, como acima se refere; 151 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Conclusões 2. Administração pública/gestão local honesta, eficaz, consciente dos objectivos a atingir e competente, considerando dois requisitos importantes: (a) o da motivação do interesse da participação da população e dos diversos agentes/instituições de desenvolvimento; (b) 3. o da vontade expressa e apoio do governo central – legal, financeiro e técnico; Opções de restauro e conservação correctas e, em particular, que não reforcem sentimentos de exclusão, de recusa, ou de indiferença. Em resumo, o restauro e conservação devem assentar, como preconiza a UNESCO, nos três pilares que garantem uma “saudável prática de conservação”: • documentação completa, • administração adequada e eficaz e • protecção legal. 152 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia A - Enquadramento territorial da ilha do Ibo, caracterização da estrutura do edificado, levantamento e imagens do ambiente urbano. 153 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia História de Moçambique, Malyn Newitt, pag.26 Novembro 1997 154 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia 155 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia Litoral Norte de Moçambique É necessário rever a toponímia das ilhas Quirimbas. Os mapas respectivos apresentam em geral designações diferentes para as mesmas Ilhas. 156 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia 157 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia (1) Eco-regiões da África Oriental 158 (2) Litoral Norte de Moçambique com localização da Ilha do Ibo (3) Parque Nacional dasQuirimbas dasQuirimbas Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia WWF Proceedings of the eastern Africa marine ecoregion visioning workshop pag, Mombasa, Kenya . April 21st-24th 2001 159 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia 160 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia 161 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia 162 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia 163 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia 164 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia Postais do Ibo 165 Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia Postais do Ibo 166 B - Arquitectura sem arquitecto: a zona formal. Júlio Carrilho ARQUITECTURA E AMBIENTE: Preexistências, transformações e desenvolvimento sustentável O caso da Ilha do Ibo. Iconografia C - Arquitectura sem arquitecto: a zona informal. 181 D - Elementos para uma proposta de intervenção. 195 196 197 198 199 200 201 202 203 204 205 BIBLIOGRAFIA Sobre teoria e conceito, com relevância para o tema. ALBERTI, M., SOLERA, G., TSETS, V., La Città sostenibile. Analisi, scenari e proposte per un'ecologia urbana in Europa, FrancoAngeli, Milano, 1994. BALBO, Marcelo, POVERA CITÀ, L’urbanizzazione nel Terzo Mondo, FrancoAngeli s.r.l., Milano, 1992. BETTINI, V., FALQUI, E., ALBERTI, M., Il bilancio di impatto ambientale, Clup CluedMilano, 1984. BETTINI, V., L' analisi ambientale, Clup Clued, Milano, 1990. BETTINI, V., L' impatto ambientale tecniche e metodi, Cuen, Napoli, 1995. BETTINI, V., Elementi di ecologia urbana, Einaudi, Torino, 1996. BOLOGNA, Gianfranco, Obiettivo: ridurre il nostro consumo, in State of the World 2004. Consumi. Rapporto annuale del Worldwacth Institute, Edizione italiana a cura di Gianfranco Bologna, Edizioni Ambiente, Milano, 2004. CAMPBELL, Bernard, Ecologia Humana, Edições 70, Lisboa, 1988. CUNIBERTI, Barbara e RATTI, Andrea (a cura di), Progettazione ecologica del territorio. L’esperienza del progetto Ecocentre presso il Centro Comune di Ricerca di Ispra, Maggioli Editore, Dogana, 2001. CLIFFORD, Geertz, Mondo globale, mondi locali. Cultura e politica alla fine del ventesimo secolo, Società editrice il Mulino, Bologna, 2003. CUNNINGHAM William P., CUNNIGHAM, Mary Ann, SAIGO, Barbara Woodwoth, Fondamenti di Ecologia, edição italiana a cura di A. Basset, L. Rossi, McGraw-Hill (Publishing Group Italia), Milano, 2004. DIERNA, Salvatore, Intervenções ecologicamente sustentáveis de formação e transformação de habitat, Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da UEM, Maputo, 2004. DORFLES, Gillo, Artificio e natura,Skira Editore, Milano, 2003. FABBRI, Pompeo (a cura de), Paesaggio, Pianificazione, Sostenibilità, ALINEA editrice, Firenze, 2003. FARIA, Luís Pinto, o Desafio Ecológico, no 5, págs. 106 a 119, local e ano. FLINT, R. Warren e DANNER, Mona J.E., The Nexus of Sustainability & Social Equity: Virginia’s Eastern Shore (USA) as a Local Example of Global Issues, International Journal of Economic Developmen, pág. 5 e 6. FORJAZ, José, Arquitectura, Ambiente e Sobrevivência, Edições FAPF, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 2005. FREGOLENT, Laura e INDOVINA, Francesco, (a cura di), in collaborazione con WWF, Un futuro amico. Sotenibilità ed Equità, FrancoAngeli, Milano, 2002. 206 GAUZIN-MÜLLER, Dominique, Arquitectura Ecológica, Editorial Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2003 (1ª ed, 2001). GUIDONI, Henrico, Storia universale dell’archittetura - Architettura Primitiva, Electa, Milano, 2000. GEERTZ, Clifford, Mondo globale, mondi locali. Cultura e politica alla fine del ventesimo secolo, Società editrice il Mulino, Bologna, 2003 (1a ed.1995). IKEME, Jekwu, Sustainable Development, Globalisation and Africa: Plugging the holes, em Africa Economic Analysis, Environmental Change Unit, University of Oxford, United Kingdom, 1999. KOCH-NIELSEN, Holger, VRDOLJAK, Katarina, D’AMOURS, Renée, Projectar Activamente com a Natureza, Relatório elaborado pelo Development Advisory Group Aps, para o Ministério dos Negócios estrangeiros da Dinamarca, DANIDA, Hørve, 1999. KRUEGER, Mário, A Arte da Investigação em Arquitectura, In ECDJ_em cima do joelho, no 5, revista do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra, 2001 págs. 24 a 39. LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel Brito, Património arquitectónico e arqueológico. Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais, Livros Horizonte, Lisboa, 2004. LORENZO, Raymond, in collaborazione con WWF, La Città Sostenibile, partecipazione, luogo, comunitá, WWF Italia e Editrice A coop. Sezione Elèuthera, Millano, 1998. MAYOR, Federico, BINDÉ, Jérome, The World Ahead: Our Future in the Making, UNESCO, Publishing, Paris, 2001. MAZULA, Brazão, Ética, educação e Criação de Riqueza. Uma reflexão Epistemológica, Imprensa Universitária, Maputo, 2005. MOSTAEDI, Arian, Sustainable Architecture. Low-tech Houses, Carles Broto & Josep Mª Miguel, Barcelona, 2002. NORBERT-SCHULTZ, Christian, Architecture: Presence, Language, Place, Skira, Milano, 2000. PALOSCIA, Raffaele e ANCESCHI Daniela (a cura di), Territorio, ambiente e progetto nei paesi in via di sviluppo, FrancoAngeli/Urbanística, falta local e data. PIANA, Marco (coodinamento di), Il Bioprojetto. Progettare l’edificio con EPS per il rispetto dell’ambiente e dell’utente, BE-MA edirice, Milano, 2001. RACHELI, Gin, Isole e Insularità Futura, Paolo Sorba Editore, L a Madalena, 1996. STEVENSON, Robert E. e TALBOT, Frank H (a cura di), ISOLE, enciclopedia illustrata della Terra, Istituto Geografico De Agostini, Novara, 1994. TEYSSOT, George, A História como Recordação Destruidora, Lotus International no 81, Milão, 1994. 207 TODD, Nancy Jack e TODD, John, Progettare secondo natura, Editrice A coop. Sezione Elèuthera, Milano,1989. TREVISOL Erich Roberto (a cura di), L’Ambiente visto dal territorio. La pianificazzione ambientale autosostenibile per i Paesi in via di sviluppo, L’Harmatan Italia,Torino, 1995. UNITED NATIONS CENTRE FOR HUMAN SETTLEMENTS, Settlement Upgrading Programe, Informal settlement upgrading:The demand for capacity building in six pilot cities. Amman, Ankara, Caracas, Concepción, Ibadan and Nkayi. A research study conducted with the support of the Government of Italy, Ministry of Foreign Affairs, Directorate for Development Cooperation,UNCHS (Habitat). UNITED NATIONS CENTRE FOR HUMAN SETTLEMENTS, Report of the workshop on the network of african countries on local building materials and technologies. 6-8 September1993, Habitat, Nairobi, 1994: capítulo IV. Conflicts between the building-materials industry and the environment, págs.88 a 90. UNITED NATIONS, UN BRUNDTLAND REPORT, Our Common Future, The World Commission for the Environment and Development Alianza Publications, Madrid, 1988 (pag.28 e 29). UNESCO, Recomendação sobre a salvaguarda da beleza e do carácter das paisagens e dos sítios, in LOPES, Flávio, CORREIA, Miguel Brito, Património arquitectónico e arqueológico. Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais, Livros Horizonte, Lisboa, 2004, pág. 95. UNESCO, Recomendação sobre a protecção, no âmbito nacional, do património cultural e natural (de 1972), idem, pág. 141. ICOMOS, Carta internacional sobre o turismo cultural (1999), idem, pág. 277. ICOMOS, Carta sobre o património construído vernáculo (1999), idem, pág. 285. UNESCO, Carta de Cracóvia 2000. Princípios para a conservação e o restauro do património construído (de 2000), idem, pág. 289. WWF, Proceedings of the Eastern African Marine Ecoregion- Visioning workshop, Mombassa, (Kenya, April, 21st – 24th), 2001. WWF, The Eastern African Marine Ecoregion- A large scale approach to the management of biodiversity, AFRICA VISION, Dar-es-Salaam, 2002. Sobre temáticas específicas relevantes ao caso de estudo. ÁGUAS, Neves, (Apresentação e Notas), Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, Publicações Europa-América, Mira – Sintra, Portugal, 1998. ALVES, Carlos, As Fortalezas do Ibo, In “Revista Militar”, compilação da Biblioteca da Sociedade de Geografia, ano 84, nos 7 e 8, págs. 461-64, Lisboa, 1932. 208 BENTO, Carlos Lopes, As ilhas de Querimba. As Fortificações de alguns dos seus Portos de Escala, Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Janeiro a Junho 1989, Lisboa, 1989. BENTO, Carlos Lopes, Uma experiência de desenvolvimento comunitário na ilha do Ibo, Moçambique, entre 1969 e 1972, Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 115.a - nos 1-12, Janeiro-Dezembro, Lisboa, 1997. BENTO, Carlos Lopes, Contactos de cultura pós-gâmicos na Costa Oriental de África. O estudo de um caso concreto, In Estudos Políticos e Sociais, Revista Trimestral do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, Vol. XXII, nos 1-4, Lisboa, 2000. BENTO, Carlos Lopes, Ambiente, Cultura e Navegação nas Ilhas de Querimba. Embarcações, Marinheiros e Artes de Navegar, In Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 119.a Nos 1-12, Janeiro-Dezembro, págs. 83-121, Lisboa, 2001. BERTI, Maurizio, ARIF, Mohamad, Conservação dos antigos edifícios de pedra de coral. Dois casos ao longo da costa moçambicana, Edições FAPF, Maputo, 2005. BRUSCHI, Sandro, Campo e Cidades da África Antiga, Edições da FAPF, Maputo, 2000. BOXER, Charles Ralph, The Querimba Islands in 1744, In Studia, revista trimestral, n° 11, Lisboa, 1963. CARRILHO, Júlio, BRUSCHI, Sandro, Um olhar para a arquitectura informal em Moçambique: de Lichinga a Maputo, Centro de Estudos de Desenvolvimento do Habitat da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico, Maputo, 2002. CORDEIRO, Luciano, PINTO, Serpa e CARDOSO, Augusto, Expedição ao Niassa, in “ O Ocidente”, compilação da Biblioteca da Sociedade de Geografia, vol. 10, n° 291, págs. 19-21, Lisboa, 1887. D’ANTONI, Alessandro, Architectura militar de Antoni, traduzida do iltaliano, para se explicar na Academia Real da Fortificação, Artilheria e Desenho, seis vol. com il., Impressão Regia, (cota: 000228B-1/6 BAHOP), Lisboa, 1818. DHARANI, Najma, Field guide to common trees and shrubs of East Africa, Stuik Publishers, Cape Town, 2002. DAVIDSON, Basil, La civiltà africana. Introduzione a una storia culturale dell’Africa, Casa Editrice Einaudi, Torino, 1997. FERRÃO, José Mendes, A Aventura das Plantas e os Descobrimento Portugueses, Instituto de Investigação Científica Tropical, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e Fundação Berardo, Lisboa, 1993. FONSECA, Pedro Quirino (da), “Breves notas sobre a evolução da Habitação e Construção em Moçambique”, Monumenta – Boletim da Comissão dos Monumentos Nacionais de Moçambique, n.º 4, 1968. 209 GAMA, Henrique Dinis da, Regresso a Lisboa. Pequena praia extrema, pág. 85 a 87, Edições Afrontamento, Porto, 2003. GERARDS (PADRE) ,Constantino, Cabo Delgado. Ibo. Ilhas de Querimba, (Biblioteca do AHM, nº 65, cota SE, avp. 2, p. 20). HORTON, Mark, O Encontro dos Portugueses com as cidades swahili da Costa Oriental, In Culturas do Índico, catálogo de exposicão da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998 (AHM- Arq. Hist. de Moç., cota no 4996); HUIBREGTSE, P. K., “Dans l’archipel de Quirimba”, Geographica, n° 27, 1971, p. 92. KENT, Susan, Domestic architecture and the use of space. An interdisciplinary cross-cultural study, Cambridge University Press1990. JOÃO, Benedito, Factores de Reorganização das Chefaturas no Norte de Nampula e Sul de Cabo Delgadona Segunda Metade do Século XIX, In “Arquivo”, Boletim do Arquivo Histórico de o Moçambique, Cabo Delgado, n 14 especial, Outubro, Maputo, 1993, pág. 178. Lewcock, Ronald, Early Nineteenth Country Architecture in South Africa. A study of interaction of two cultures 1795-1837, A.A. Bakema, Cape Town, 1963. LOUREIRO, João, Memórias de Moçambique, ed. João Loureiro e Associados, Lisboa, 2001. LORENA, Célia, DONATO, João, OVERBALLE, Henrik, O Combinado Pesqueiro da Ilha do Ibo, Center for Alternative Social Analysis, Copenhagen,1991; MATEUS, João Mascarenhas, Técnicas tradicionais de construção de alvenarias. A literatura técnica de 1750 a 1900 e o seu contributo para a conservação de edifícios históricos, Livros Horizonte, Lisboa, 2002. MEDEIROS, Eduardo da Conceição, História de Cabo Delgado e do Niassa (C. 1836 – 1929), ed. própria, Maputo, 1997. MENDES, Manuel, Expedição científica “PINHEIRO CHAGAS”. Mandada organizar para escolher a melhor estrada comercial destinada ao escoamento dos produtos dos lagos Niassa e Tanganhica para o litoral, In “Geographica”, Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa, ano 5, n° 19, págs. 32-51, Lisboa, 1969. MIDDLETON, John, The World of the Swahili. An African Mercantile Civilization, Yale University Press, New haven and London, 1992. MOREIRA, Rafael, (Direcção de), História das Fortificações Portuguesas no mundo, Publicações Alfa, Lisboa, 1989. NEWIT, Malyn, História de Moçambique, Publicações Europa América, Mem Martins, 1997. OLIVEIRA, Baptista de, Monografia do Ibo, Arquivo Histórico de Moçambique (No 10578, cota: C1796j), Maputo, 1965. 210 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, e GALHANO, Fernando, Arquitectura Tradicional Portuguesa, 5a edição, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2003. OLIVER, Paul (ed.), Encyclopedia of Vernacular Architecture of the World, Cambridge University Press, Cambridge, 1997. PAULINO, Francisco Faria, e outros, A Arquitectura Militar na Expansão Portuguesa, edição da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses, Catálogo da exposição realizada no Castelo de S. João da Foz, Porto, Junho-Setembo, 1994. RAFAEL, Saul Dias, Dicionário Toponímico, Histórico, Geográfico e Etnográfico de Moçambique, Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo, 2001. RAPOPORT, Amos, House form and culture, Prentice-Hall, London, 1969. RUFINO, José dos Santos, “Distritos de Tete e Territórios de Cabo Delgado (Niassa)”, em Álbuns fotográficos e descritivos da Colónia de Moçambique, Broshek, Hamburg, 1929. SERRA, Carlos (ed.), História de Moçambique, v. 1, Livraria Universitária – UEM, Maputo, 2000. SOUSA, António de Figueiredo Gomes e, As Ilhas Quirimbas, In Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, ano 29, n° 122, págs. 127-147, Lourenço Marques, 1960. TEIXEIRA, Manuel C., Coordenação de, A Praça na Cidade Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa, 2001; TORRES, José de Castro Branco Ribeiro, Os Portugueses e as ilhas Querimba, In “Moçambique”, Documentário Trimestral, n° 15, págs. 71-85, com estampas, Lourenço Marques, 1938. VELHO, José Raimundo da Palma, A Tomada da Baía de Tungue no Parlamento e na imprensa, compilação da Biblioteca da Sociedade de Geografia, pág. 143, Lisboa, 1887. VITTO, João, Notícias que dá João Vitto das Ilhas de Cabo Delgado, 1778, in Anais da Junta de Investigação do Ultramar, vol. 9, tomo 1, págs. 267-272, Lisboa, 1954. Legislação e estudos feitos sob a égide do Governo de Moçambique Código de Posturas da Câmara Municipal do Concelho de Cabo Delgado, aprovado por Acórdão do Conselho de província n° 1 de 19 de Janeiro de 1894 e publicado pela Imprensa Nacional de Moçambique, em 1894. DANGROUP, Planos Directores de Turismo – Planeamento Físico de quatro Áreas do Litoral de Moçambique - Área Litoral D, Ministério do Turismo de Moçambique, Maputo, 1998; DIRECÇÃO NACIONAL DO PATRIMÓNIO CULTURAL, Plano Estratégico (2003 -2007, Ministério da Cultura de Moçambique, Maputo, 2002; DIRECÇÃO NACIONAL DO PATRIMÓNIO CULTURAL e DEPARTAMENTO DE MUSEUS, Inventário Nacional de Monumentos, Conjuntos e Sítios. Moçambique, Ministério da Cultura de Moçambique, Edição promovida pela UNESCO, Maputo, 2003; 211 GOVERNO DE MOÇAMBIQUE, Política nacional do Turismo e Estratégia de Desenvolvimento do Turismo para 1998-1999, Boletim da Republica, Resolução no 2/95 de 30 de Maio, Maputo, 6 de Junho de1995; GOVERNO DE MOÇAMBIQUE, Política nacional do Turismo e Estratégia de Desenvolvimento do Turismo, Boletim da Republica, Resolução no 14/2003 de 4 de Abril, Maputo, 30 de Abril de 2003; HALL, Heather (ed.), Cabo Delgado Biodiversity and Tourism Project. Marine Programe, relatório, Moçambique, 2001. MINISTÉRIO DO TURISMO, com o apoio do WWF – Moçambique, Plano de Maneio do Parque Nacional das Quirimbas, 2004 – 2008, Maputo, 2004. MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL DE MOÇAMBIQUE, Roteiro da Costa da República Popular de Moçambique, Editado pela Direcção Principal de Navegação e Oceanografia do Ministério da Defesa da URSS, 1986. SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA – MOÇAMBIQUE, ARKITEKTSKOLEN I AARHUS – DANMARK, Ilha de Moçambique. Relatório 1982-1985, Phønix A/S, Aarhus, 1985 SERVIÇOS PROVINCIAIS DE PLANEAMENTO FÍSICO DE CABO DELGADO, Relatório de Levantamentos Socioeconómicos do Distrito do Ibo, Pemba, 1997. SERRA, Carlos (Jr), Colectânea de Legislação do Ambiente, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2003. SERRA, Carlos (Jr), Manual de Direito do Ambiente, Maputo, 2004. SERRA, Carlos (Jr.), organização, Colectânea de Legislação sobre a Terra, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2004. Documentos e endereços da Internet consultados Barkin, David, Wealth, Poverty and Sustainable Development. Contributions to an Alternative Strategy - http://db.uwaterloo.ca/~alopez-o/politics/susdevelop.html, 2002. Sustainable Development: Economic growth and innovation, http://www.stats.govt.nz/domino/external/web/nzstories.nsf/htmldocs/Sustainable+Development: +Economic+growth+and+innovation, 2004. http://www.ecotopia.org/ehof.odum/, pág. 1, 25-08-2005. http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=4029&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html, 2002. http://www.unido.org/doc/3563. FLINT, R. Warren e DANNER, Mona J.E., op. cit., pág. 3(2), 2001. 212 BEDER, Sharon, Costing the Earth: Equity, Sustainable Development and Environmental Economics, New Zealand Journal of Environmental Law , 4, 2000, pp. 227-243. Tradução para português de Álvaro Carmo Vaz, em http://www.uow.edu.au/arts/sts/sbeder/esd/equity.html. UNESCO, CSI, Environnement et développement dans les régions côtières et les petites îles, Caracteristiques des practiques eclairees - http://www.unesco.org/csi/wise/wip2f4.htm http://portal.unesco.org/sc_nat/ev.php?URL_ID=2034&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201. http://www.unesco.org/most/ik8nov.htm. CHING, Lim Li, Sustainability for Whom?, em Science in Society,No 15 Summer 2002, Edited by The Institute of Science in Society, London - http://www.i-sis.org.uk/isisnews/SIS15web.php. NOVARTIS FOUNDATION FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT (NFSD), 2003, Sustainable Development: A Common Challenge for North and South, Site URL: www.novartisfoundation.com, http://www.novartisfoundation.com/en/articles/development/sustainable_development_a_commo n_challenge.htm#30. MONTRUCCOLI, Simona, Approccio all'architettura naturale - http://www.larici.it/ - [email protected], 2004. CLARK, Kenneth N., Sustainable community planning, em Desert Architecture III: Building a Sustainable Future, Arilands Newsletter, No. 36, Fall/Winter, 1994 -http://ag.arizona.edu/OALS/ALN/aln36/Clark.html. Planning for sustainable tourism development / Karelia - Finland and Russia, 1999 http://www.csiwisepractices.org/?read=100. Meeting the Challenges, publicado pelo Departamento de Informação Pública das Nações Unidas, DPI/2060 - July 1999 - 5M, http://www.un.org/esa/sustdev/sids/siga99ia.htm. Rising Temperatures, Rising Seas, Publicado pelo Departamento de Informação Pública, DPI/2060 July 1999 - 5M, em http://www.un.org/esa/sustdev/sids/siga99ia.htm. MCEACHERN and TOWLE, 1974, Impacts of developmental activities on small islands, The Challenge of sustainable management for small islands iii - http://www.insula.org/islands/island2.htm. INSULA.org., Integrated island sustainability - http://www.insula.org/islands/islands4.htm. INSULA.org., Impacts of developmental activities on small islands http://www.insula.org/islands/island2.htm. INSULA.org., Landscape conservation and building integration http://www.insula.org/tourism/pagina_n5.htm. INSULA. org. http://www.insula.org/tourism/pagina_n14.htm. UNESCO, Lamu Old Town, http://whc.unesco.org/en/list/1055, 23-062005. http://wikipedia.org/wiki/swahili -13/09/2005. 213 http://216.239.59.104/u/WWFint?q=cache:x-Af-0EBKlkJ:www.panda.org/news_ facts/tv/scripts/French_Dopesheet_Mozambique_WSSD.doc+Quirimbas&hl=en&ie=UTF8http://www.panda.org/ , 4 de Abril de 2004. NAÇÕES UNIDAS, Encontro Internacional para Revisão da Implementação Programa de Acção para o Desenvolvimento Sustentável das Estados Insulares, Port Louis, Maurícias, 10-14 de Janeiro de 2005. Why tourism? | WWF-UK | WWF network. http://www.wwf.org.uk/researcher/issues/Tourism/index.asp. DE MARCO, Marina, TORRE, Carmelo, Refurbishment and Conservation in Sustainable Renewal of Architectural and Urban Heritage. Back Conceptual and Technological Questions, http://www.iris.ba.cnr.it/sksb/PAPERS/04-56.HTM (http://www.iris.ba.cnr.it/sksb/PAPERS/0456o.pdf). 214