UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA ISNTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS A SOCIOBIOLOGIA eo SISTEMA DE CRENÇAS Trabalho apresentado por Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos no âmbito da cadeira semestral do Curso conducente ao Mestrado em Ciências Antropológicas “O Modelo Biológico”, redigida pelo Prof. Dr. Luís E. Franco Ré. Ano lectivo de 1983/84 Lisboa, Julho de 1984 1. INTRODUÇÃO O objectivo deste trabalho é simultaneamente muito estrito em amplitude e escasso em profundidade: destina-se apenas a contribuir para a delimitação da legitimidade da explicação sociobiológica em geral e a permitir o estabelecimento dos dados mínimos para uma estratégia que permita defrontar com êxito qualquer reducionismo. Ao escolher o Sistema de Crenças como campo de acção, pretendi abordar uma das áreas que a tradição tem colocado porventura mais afastada duma mera causalidade biológica. Deixei no entanto a fé para os crentes e procurei equacionar as crenças, em sentido lato, como fenómeno de teor antropológico e de incidência sociológica, muito ao jeito das concepções de Durkheim e Weber sobre a religião. E ao fazer reverter o Sistema de Crenças para a categoria de fenómeno cultural, não pretendo reduzir a sua importância ou dignidade, mas apenas reconduzi-lo a um nível de autenticidade, ou naturalidade, que considero altamente reforçador de toda a argumentação. Dizer de um fenómeno que é transcendente, metafísico ou teológico não invalida a sua pertença à categoria dos fenómenos culturais. Operacionalmente, as linhas deste trabalho oscilarão entre a explicação reducionista da sociobiologia, que vou tentar rejeitar, a estratégia do materialismo cultural, tal como definido por Marvin Harris, (1) que também ainda não decidi adoptar. Lisboa, Julho de 1984 Joaquim Evónio de Vasconcelos (1) Harris, Marvin—El materialismo cultural—Alianza Editorial, S.A, Madrid, 1982 (Título original: Cultural Materialism) 2. A Estratégia base da Sociobiologia Samuel Butler, citado por Ives Christen (1), atribuía a Darwin a convicção de que uma galinha não é mais do que o meio utilizado pelo ovo para pôr outro ovo. Com o advento da genética, ciência desconhecida de Charles Darwin, os sociobiólogos retomaram aquela afirmação colocando o gene no ligar do ovo. O organismo, ou o próprio ovo, passam a ser perfeitamente instrumentais em relação à multiplicação de gene. Estamos perante uma nova ditadura, desta vez do ácido desoxirribonucleico, ou ADN. Nestas circunstâncias, o gene seria completamente amoral, ou melhor, a sua moralidade seria conseguir por todos os meios a maximização da sua presença, em detrimento dos outros, nas gerações seguintes. O gene seria portanto sujeito e objecto da selecção natural, enquanto selecção de traços através da reprodução e/ou sobrevivência diferencial das entidades que eles caracterizam. Conforme os traços são biológicos ou culturais as entidades consideradas indivíduos ou grupos, assim se poderiam distinguir quatro formas de selecção natural, constituiriam o que é chamado o modelo Sociobiológico (2). Para Marvin Harris (3) a sociobiologia é uma estratégia de investigação que pretende explicar a vida social humana por meio dos princípios teóricos da biologia evolucionista darwinista e neo-darwinista. O seu objectivo limita-se a reduzir os enigmas próprios do nível dos fenómenos socioculturais a outros que podem resolver-se ao nível biológico dos mesmos fenómenos. Harris continua dizendo que os biólogos acham essa teoria plausível e atractiva devido à sua adesão incondicional aos princípios epistemológicos gerais da ciência, aspecto com que ele próprio concorda, vendo-se no entanto obrigado a rejeitar a generalização à espécie humana dos princípios neo-darwinistas aplicados às espécies infra-humanas. (1) – Christen, Yves – Uma Introdução à Sociobiologia . Univ. Moderna – Pub. D. Quixote – Lisboa, 1981 (pág. 35) (2) Van Parijs, Phillippe – Evolutionary Explanation in the Social Sciences – Tavistock Publications – London and N. York (pág. 58) (3) Harris, Marvin – Ob. cit. (pág. 139) Sacarrão explica-nos que foi a convergência de disciplina como a genética e a etologia que reavivaram grandemente nos últimos anos o darwinismo, da sua síntese surgindo a sociobiologia (1). Assim, para este zoólogo e antropólogo, o estudo das sociedades animais e humanas e a síntese sociobiológica constituem a cúpula dum movimento de interpretação materialista iniciado com Darwin. Em apoio do que já citámos de Harris na página anterior, Sacarrão também não nega o valor potencial da sociobiologia como ciência das sociedades animais e como método de estudo de muitos problemas da antropologia e da sociologia humana, mas não pode admitir o esquecimento de que o homem não é um animal como os outros nem a imprecisão que leve a tomar como ciência o que não passa de ideologia. Mas será o comportamento, designadamente o humano, resultado do determinismo biológico, hereditariamente determinado? É aqui que reside o cerne da questão, o ponto fulcral onde se digladiam as teorias sociobiológicas e as que radicam na cultura. O grande problema que se coloca é assim o da fronteira entre o geneticamente programado a nível dos sistemas informacionais autoperpetuantes do ADN e o adquirido através da adaptação ao ambiente ou da educação ou enculturação. E, em última análise, não esqueçamos que a sociobiologia pretenderá que a própria aprendizagem é geneticamente determinada, senão em termos de conteúdo, pelos menos em termos de aptidão, de capacidade de aprender. O que, mesmo a confirma-se com base no rigor científico, não vejo que possa constituir desaire muito significativo para as ciências da cultura, como tentarei evidenciar mais adiante. Ao publicar, em 1975, a sua obra “Sociobiology. The new Synthesis”, E. O. Wilson deu origem ao aparecimento da sociobiologia como ciência da instrumentalização do homem e de todos os seres vivos, em que “o organismo é exclusivamente o meio de o ADN fazer mais ADN” (2). “Para os sociobiologistas, o êxito de um organismo é avaliado pelo número dos seus genes representados na geração seguinte—quantos mais transmitir, maior será o seu sucesso. A selecção natural e a adaptação estão ao serviço dessa finalidade suprema” (2). (1) Sacarrão, G.F.- A Biologia do Egoísmo – Biblioteca Universitária – Pub. Europa-América – Lisboa, 1983 (Pág. 14) (2) Sacarrão, G.F. – Ob.cit. (pág. 18 e 19) Sacarrão continua exprimindo a preocupação fundamental de que, se a sociabilidade e os caracteres sociais são adaptativos, logo se conclui que a sociobiologia é a expressão actual do darwinismo social. “ A questão fundamental que, a meu ver, se põe, afinal, é a seguinte: estará o homem pré-programado, prisioneiro dos próprios genes, agindo egoisticamente no sentido de promover a sua máxima representatividade nas gerações seguintes, ou haverá esperança da liberdade, escapando-se ao condicionamento biológico, não no sentido de não lhe sofrer a influência que possa ter, mas de o recusar, de agir contra ele, de o vencer pelo poder da consciência e da razão do homem, distanciando-se assim dos outros animais? Se os sociobiologistas e demais deterministas tivessem razão no essencial, então os homens e as sociedades teriam de resignar-se á condição de produtos de forças biológicas emanadas de genes “bons” e de genes “maus” (1). A partir da exteriorização desta dúvida de base, Sacarrão envereda pelo desenrolar da consequências de natureza social e política que daí adviriam preocupação permanente em toda a obra citada, onde apenas num capítulo de cerca de 40 páginas ´Ideologia Sociobiológica e Biologismo perverso`- se conta mais de uma dúzia de referências como reaccionário, fascista ou similar (2). O que é afinal a sociobiologia? Wilson afirma que é a ciência que estuda todas as bases biológicas dos comportamentos sociais. (3) Julgo o momento de colocar em evidência dois conceitos fundamentais em sociobiologia: • O genotipo condutual, conjunto de instruções hereditárias que afectam o comportamento, e • O fenotipo condutual, produto geneticamente orquestrado das suas experiências condutuais em ambientes determinados (4). Esta conceptualização é do maior alcance, pois, mesmo a nível exclusivamente biológico, o que um organismo é ou o que um organismo faz pode ser e é muitas vezes diferente conforme o ambiente em que se forma, vive ou actua. E se isto é verdade do ponto de vista biológico, como não o será, porventura ainda mais, a nível cultural? (1) Sacarrão, G.F. – Ob. cit. (pág. 26) (2) Idem, Ob. Cit. (págs. 74 a 117) (3) Christen, Yves – Ob. cit. (pág. 34) (4) Harris, Marvin – Ob. cit. (pág. 140) 3. O Sistema de Crenças na Sociobiolgia - Apoios, contradições e críticas Como é que Wilson, independentemente dos seus apoiantes ou detractores, considera o sistema de crenças? Permito-me julgar muito significativo que tenha intitulado um dos subcapítulos da sua obra de “Culture, Ritual and Religion”, agrupando assim os temas que considerou afins para efeitos de estudo (1). Já não fez o mesmo com a ética, para que reservou subcapítulo separado. Em ensaio recente, tive oportunidade de estabelecer as semelhanças e diferenças fundamentais entre Magia, Ciência e Religião (2). Das conclusões a que cheguei e verti naquele trabalho, com base em opiniões clássicas que vão de Frazer a Mauss e de Malinowski a Brown, passando por Durkheim, gostaria de colocar em evidência que “Ciência e magia acreditam no determinismo dos fenómenos naturais”, enquanto “a Religião traz consigo a crença inexorável de que o curso dos acontecimentos pode ser controlado por forças de poderes superiores ao homem.” (3) Mas comum a todos os aspectos ali focados, da magia à ciência, sem excepcionar a religião, está a natureza sociológica do fenómeno, que aponta mais para a necessidade estrutural de crer do que para a forma manifesta de que se reveste a crença, isto para além do papel específico reservado na sociedade ou na comunidade para cada uma das manifestações, em certa medida homólogas ou intermutáveis. Ora, Wilson começa o citado capítulo por aduzir que os rudimentos da cultura são possuídos por primatas não humanos mas que só no homem é que a cultura se infiltrou verdadeiramente em todos os aspectos da vida. Afirma depois que o pormenor etnográfico está geneticamente prescrito, o que resulta em grandes proporções de diversidade entre as sociedades. Como zoólogo entomologista, até é possível que, para Wilson, o detalhe etnográfico corresponda a comportamento, reacção ambiental, mas de qualquer modo lá vem o autor, logo no parágrafo seguinte, esclarecer que aquela prescrição não significa que a cultura se desprenda dos genes, afirmando todavia que o que evolveu foi a capacidade para a cultura, de facto a tendência enorme para desenvolver uma qualquer cultura. (1) Wilson, E.O. . Sociobiology. The new Synthesis. 1975 (2) Vasconcelos, J. Evónio – Magia e Caça – ISCSP, 1984 (trabalho apresentado no âmbito da Cadeira “Povos e culturas da África Austral”) E na medida em que os detalhes mais específicos da cultura são não genéticos, podem ser desagregados do sistema biológico e ordenados a seu lado como sistema auxiliar. Esta, a meu ver, a primeira afirmação revestindo perigos evidentes de marginalização da cultura, de a tentativa de a subordinar hierarquicamente ao determinismo biológico. Mas, simultaneamente, trata-se duma posição que reconhece inequívoca autonomia ao mundo cultural, mal disfarçado de sub-sistema. Mas logo adiante Wilson reconhece com toda a clareza que os rituais sagrados são distintivamente humanos e que as suas formas mais elementares dizem respeito à magia, a tentativa activa de manipular a natureza e os deuses. Aqui, em nada se distingue da maioria dos autores de raiz cultural, designadamente dos clássicos, excepto quando considera uma hipótese razoável que a magia e o totemismo constituíam adaptações directas ao ambiente. Sacarrão, ao comentar o facto de Wilson considerar a religião como adaptação, acrescenta que então haveria um determinismo biológico para a fé. (1) Não me parece, à primeira vista, que a ilação esteja totalmente correcta, já que Wilson em nenhum momento deste subcapítulo se refere à fé enquanto tal. Fala sempre em fenómenos religiosos como instituições e só depois na endoutrinação e no desejo de endoutrinar-se. Mas julgo que seria algo abusivo considerar a capacidade de crer, característica antropológica, da mesma natureza da fé, como fenómeno transcendente, isto sem esquecer que existe um nível de raciocínio já suficientemente diferenciado para que os dois fenómenos sejam objecto duma fusão heurística, independentemente dos pontos de partida para a convergência. Já concordo inteiramente com Sacarrão quando rejeita com ardor a utilização abusiva do conceito de adaptação, de modo tão lato que poderia aplicar-se indiferentemente a tudo e a nada. E aqui, na armadura de rigor conceptual, julgo dever residir um dos redutos defensivos contra o reducionismo biológico e a leviandade de que pretende por vezes revestir-me. Wilson afirma ainda mais adiante, de forma inequívoca, que cultura, incluindo as mais brilhantes manifestações do ritual e da religião, pode ser interpretado como um sistema hierárquico de prospecção ambiental. (1) Sacarrão, G. F. – Ob.cit. (pág.103) E no que respeita ao enquadramento que reserva para o sistema de crenças, eis outra insofismável afirmação: “uma antropologia crescentemente sofisticada ainda não deu razões para duvidar da conclusão de Max Weber de que as religiões mais elementares prosseguem o sobrenatural com vista às retribuições puramente mundanas de longa vida, terra e alimentos abundantes, evitar catástrofes físicas e derrotar os inimigos”. (1) Uma forma de selecção de grupo contínua, também opera na competição entre seitas. As que ganham aderentes sobrevivem, as que o não fazem falham. Consequentemente, conclui Wilson, as religiões, como as outras instituições humanas, evolvem no sentido do bem-estar dos seus praticantes Sacarrão não deixa de manifestar a opinião de que a história não parece sustentar esta hipótese, bem pelo contrário. (2) E quando Sacarrão, com o que poderia julgar um certo desvio de perspectiva, acusa Wilson de considerar o marxismo como um sistema de crenças, com a mesma natureza das outras religiões, estou inclinado a dar maior parte da razão a Wilson. Julgo de facto que as religiões, quaisquer que sejam, se integram no sistema de crenças e que este sistema faz parte evidente da cultura, parecendo ainda que a ideia de Deus ou deuses, do ponto de vista estratégico, beneficiaria duma roupagem exclusivamente cultural na sua peleja contra os argumentos da sociobiologia. Ao pseudo-cientifismo da sociobiologia, há que opor o rigor antropológico duma estratégia global. No prosseguimento do capítulo que está a ser apreciado, Wilson ainda manifesta a sua admiração pelo facto de tanto, na substância da religião, ser demosntradamente falso, mas isso não impedir que ela se mantenha como força motora das sociedades. Para Sacarrão, o acento tónico é colocado na expressão de Wilson de que é mais importante ter um deus falso do que não ter nenhum, ou seja, que os homens preferem o crer ao saber. Wilson desenvolve depois a teoria de que a endoutrinação é uma questão essencialmente biológica, já que os seres humanos não só a procuram como são absurdamente fáceis de endoutrinar. (1) Wilson, Edward O. – Ob.cit. (2) Sacarrão, G.F. – Ob.cit. (pág. 103) E se aceitarmos como premissa que a endoutrinação evolve, continua Wilson, a que nível terá lugar a selecção natural? Wilson considera que uma das possibilidades é que isso ocorra a nível de grupo, que o grupo seja a unidade de selecção se faça a nível individual ou que não se faça a qualquer nível, asserções que não serão porventura menos científicas que a de Wilson. Mas eis que o criador da sociobiologia prossegue esclarecendo que, nesta versão de selecção natural a nível grupal, os membros egoístas, individualistas, ganham a supremacia e multiplicam-se à custa dos outros. Mas, como em qualquer processo evolutivo, a sua prevalência crescente acelera a vulnerabilidade da sociedade e apressa a sua extinção. Para ficarmos com uma ideia ainda mais nítida do que prossegue E. O. Wilson, vejamos o que ele pretende dos “genes da endoutrinação”: “… poderiam ser da espécie que favorece a endoutrinação mesmo à custa dos indivíduos que se submetem. Por exemplo, a vontade de arriscar a vida na batalha pode favorecer a sobrevivência do grupo à custa dos genes que permitiriam a disciplina militar fatal. A hipótese de selecção de grupo é assim suficiente para explicar a evolução da endoutrinação”. E porque este benefício demográfico se aplica ao grupo como um todo, pode ser ganho em parte pelo altruísmo e exploração, com alguns segmentos a beneficiar à custa de outros (1). Mais adiante irá considerar a outra possibilidade que reconhece, a de que a endoutrinação evolve a nível individual, sublinhando que o indivíduo pode conformarse para gozar dos benefícios de membro do grupo com um mínimo de dispêndio de energia e risco. Embora os seus rivais egoístas possam ganhar uma vantagem momentânea, ela perde-se a longa prazo através do ostracismo e da repressão. E Wilson termina o seu subcapítulo sobre cultura, ritual e religião com a admissão de que as duas hipóteses — selecção natural a nível individual e de grupo — não se excluem mutuamente e podem até reforçar-se: se a guerra requerer virtudes espartanas e eliminar alguns guerreiros, a vitória pode mais do que adequadamente compensar os sobreviventes em terras, poder e oportunidade de reproduzir-se. (1) Sacarrão, G.F.- Ob.cit. (ver, para melhor esclarecimento, o Cap. IV – Egoísmo e Altruísmo, pág. 40 e segs.) Parece de certo modo estranho que Wilson desloque o plano da sua argumentação da endoutrinação para a guerra quando seria de esperar que se mantivesse no quadro de condições menos extremas para colocar em evidência a necessidade de ser endoutrinado e as vantagens que daí adviriam para a maximização dos genes. Assim, parece que o horizonte fica menos claro quanto às diferenças entre adesão e endoutinação, entre capacidade de aderir e capacidade de ser endoutrinado. Mas a verdade é que se trata mais de possibilidades do que explicações fundamentadas, como o autor já deixou atrás entrever. De tudo quanto aqui se disse até agora, através das citações do subcapítulo específico de Wilson, constata-se que ele considera as religiões como fenómenos adaptativos, que o sistema de crenças faz parte integrante da cultura, que a endoutrinação é um factor fundamental da cultura e que o ser humano até possui um gene próprio para ela, podendo a selecção natural dar-se tanto a nível individual como grupal. Neste contexto e face à falta de suporte rigoroso das afirmações, duas operações se imporiam como prioritárias. A primeira, chamando a atenção para a falta grave que é considerar indiscriminadamente adaptativo o que pode não ser. Sacarrão fá-lo com eficácia quando diz que “adaptações poderão sê-lo se dermos ao conceito, um sentido amplo, tão generalizado que possa englobar tudo o que se quiser, de real ou aparente, no que respeita ao processo. Mas nesta forma não crítica e sem limites de utilizar tão importante conceito, facilmente se cai em estéril verbalismo, em frasismo oco”. (1) A segunda, procurando pôr em evidência explicações plausíveis de carácter sóciocultural, pois estas partem de princípios que permitem explicar tanto as modificações rápidas como as lentas, tanto as semelhanças como as diferenças, enquanto o modelo genético nenhumas diferenças e semelhanças (2). (1) Sacarrão, G.F. – Ob.cit. (pág. 103) (2) Harris, Marvin- Ob.cit. (pág. 161) No quadro que estou a procurar gizar, o êxito que eventualmente tenham as teorias sociobiológicas “pode atribuir-se aos antropólogos que operam com estratégias sincrónicas, idealistas, estruturalistas e ecléticas, todas elas incapazes de oferecer conjuntos interrelacionados de teorias acerca das trajectórias convergentes e divergentes da evolução sociocultural” (1). Harris é peremptório quando afirma que, na perspectiva do materialismo cultural, a proliferação de genes hipotéticos para as especialidades condutuais humanas carece de fundamentos tanto empíricos como estratégicos. Vale bem a pena ler a sua obra (2) para apreciar como desmonta os traços condutuais que Wilson considera geneticamente controlados, como por exemplo e entre outros, a poliginia e um longo período da socialização. Quanto à poliginia, Marvin Harris mostra-nos que o comportamento sexual é tão variado que desafia qualquer caracterização específica da própria espécie humana. No que respeita à socialização, a sua longa duração deve-se sem dúvida à herança primata do Homo Sapiens mas vem colocar em evidência que a herança genética mais característica do homem é precisamente a sua grande capacidade para o comportamento cultural. Aqui, mais do que em qualquer outra parte deste trabalho, há que dar atenção a que ninguém pretende afirmar que o homem não possui uma natureza ou que a sua predisposição nada tem de geneticamente programada. Seria uma posição tão errónea e reducionista como a que tudo quer explicar geneticamente. Entre o real e o possível, há que, decididamente, não optar pela levianidade ou falta de rigor. (1) Harris, Marvin – Ob.cit. (pág. 161) (2) Harris, Marvin – Ob.cit. (pág. 148 e seg.) – traços condutuais sujeitos a controle genético, seg. Wilson e rebatidos por Harris: tamanho dos grupos sociais íntimos da ordem dos 10-100 indivíduos; poliginia; um longo período da socialização nos jovens; mudança de enfoque de grupos maternos para os baseados no sexo e na idade; jogo social com ênfase na prática de papeis, na agressão simulada e na exploração; as expressões faciais; regras de parentesco complexas; evitação do incesto; linguagem simbólica semântica; vínculos sexuais estreitos; vínculos entre progenitores e filhos; vínculos entre varões; territorialidade. 4. Conclusões O infinitamente pequeno e o ultradeterminismo da genética, com o auxílio da etologia, transformaram o darwinismo e o neodarwinismo numa versão tendencialmente omnipresente da explicação do homem que é a sociobiologia. Mas se o ADN é tão genérico que tudo explica, se é comum a todas as manifestações da vida, terá o seu próprio valor explicativo diminuído pela generalidade da sua presença. E bastaria à sociobiologia ser reducionista, como de facto é, para que tenha se ser encarada com todas as cautelas por quem se preocupe com o verdadeiro rigor científico. O ponto de convergência de todas as preocupações abordadas nos capítulos anteriores radica na natureza do homem, ser que se desloca, quase às cegas e através dum ambiente paradoxalmente estável, entre uma origem que não conhece completamente e uma opressora dúvida escatológica. Acentua-se entretanto a natureza bio-cultural do homem, não se ignorem ou desprezem as bases químicas e fisiológicas do seu mistério, incluindo o papel quase majestático, em certos campos, do ADN. Mas reserve-se o lugar certo para a especificidade do espírito, ainda que este seja uma parte superiormente organizada da matéria viva, dependente da complexidade neuroniológica ou de combinações nucleicas. Salvaguarde-se, fundamentalmente, a especificidade do cultural em relação ao biológico. Os recém nascidos adquirem invariavelmente os reportórios culturais dos povos entre os quais hajam crescido. Nos seres humanos, de facto, a vida cultural não é uma espécie de curiosidade periférica e a espécie humana deve à cultura um grau de variação condutual intraespecífica que não ocorre em nenhuma outra espécie. (1) Que o Sistema de Crenças se insere na cultura, parecem quase todos estar de acordo, e essa asserção não procura ofender os crentes que não pretendam impor a fé como forma de revelação científica. (1) Harris, Marvin – Ob.cit. (pág. 145) Mesmo que, devido a alguma revolução ou ruptura epistemológica, as crenças deixassem de estar integradas no domínio do especificamente humano, muito mais dificilmente deixariam o domínio do especificamente cultural. É, assim, na cidadela da cultura que a explicação do homem se manterá inexpugnável à linearidade do ataque sociobiológico. Por outro lado. Adjectivar um fenómeno de adaptativo não o torna de facto adaptativo, o que leva à necessidade de estabelecer parâmetros de rigor científico e de rejeitar as explicações superficiais e não críticas. E, pela positiva, há que procurar uma estratégia de investigação que seja global e tenha em conta a natureza eminentemente bio-cultural do homem, dando à biologia o que lhe pertence e reservando para o domínio sociocultural tudo quanto por esse meio possa ser explicado. Tenhamos entretanto a humildade, ou a paciência, de aguardar o advento de novas explicações e de aceitar, operacionalmente, que o homem é um ser suficientemente complexo, quando comparado com os outros animais, para ser explicado por uma qualquer estratégia reducionista, devendo sempre prevalecer o carácter interdisciplinar que decorre da sua sinergia. No fim de tudo, e parafraseando Marvin Harris, a nossa principal forma de adaptação biológica é a cultura e não a anatomia. Índice Geral Introdução………………………………………………….página 1 Estratégia base da Sociobiologia…………………………..página 2 O Sistema de Crenças na Sociobiologia……………………página 5 - Apoios, Contradições e críticas Conclusões…………………………………………………página 11 Índice Geral………………………………………………...página 13 Bibliografia de Apoio………………………………………página 14 Bibliografia de Apoio 1. Wilson, Edward O. Sociobiology – The New Synthesis 2. Harris, Marvin El Materialismo Cultural Alianza Editorial, S.A., Madrid, 1982 3. Harris, Marvin Vacas, Cerdos, Guerras e Brujas—Los enigmas de la Cultura Alianza Editorial, S.A., Madrid, 1980, 1981, 1982, 1983 4. Sacarrão, G.F. A Biologia do Egoismo Biblioteca Universitária—Pub. Europa-América, 1983 5. Christen, Yves Uma Introdução à Sociobiologia Univ. Moderna- Pub. D. Quixote, Lisboa, 1981 6. Vasconcelos, J. Evónio Magia e Caça ISCSP, 1984 7. Van Parijs, Philippe Evolutionary Explanation ir the Social Sciences Tavistock Publications – London and new York Outra Bibliografia recomendada 8. Morin, Edgar et alia L`unité de L`Homme Centre Royaumont pour une Science de L`Homme Ed. Du Seuil, 1974 9. Lorenz, Konrad L`Agression Flammarion, 1969 10. Lorenz, Konrad Trois essais sur le Comportement animal et Humain Ed. Du Seuil, 1970 11. Moscovici, Serge Homens domésticos, homens selvagens Liv. Bertrand, 1976 12. Chauvin, Rémy As sociedades animais Li. Civilização, Barcelos, 1969